FACULDADE CEARENSE SERVIÇO SOCIAL CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIAS DE GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP” FORTALEZA – CEARÁ 2014 CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIAS DE GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP” Monografia submetida à aprovação ao Curso de Graduação em Serviço Social da Faculdade Cearense como requisito parcial para a obtenção do grau de graduação. Orientador: Prof. Dr. Mário Henrique Castro Benevides. FORTALEZA – CEARÁ 2014 CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIA DE GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP” Monografia como pré-requisito para obtenção do título de Bacharelado em Serviço Social, outorgado pela Faculdade Cearense- FAC, tendo sido aprovada pela banca examinadora composta pelos professores. Data de aprovação: _____/_____/_____ BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Professor Dr. Mário Henrique Castro Benevides ______________________________________________________ Professor Ms. Francisco Secundo da Silva Neto ______________________________________________________ Professora Ms. Joelma Maria Freitas A minha mãe, Francisca Edna. “Ensinar o povo a ver criticamente o mundo é sempre uma prática incômoda para os que fundam seus poderes na ignorância dos explorados.” (Paulo Freire) AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos coordenadores do Enxame, Valber, Paulo Emílio, Sidarta e ao Neguinho do Rap que se dispuseram a colaborar com este trabalho dando-me todo suporte necessário para desenvolver minha análise de campo. A minha mãe, Francisca Edna, exemplo de determinação, que me apoiou em todos os momentos de minha vida e com toda sabedoria deu-me as bases para meu crescimento pessoal. Aos meus avôs maternos, Edite Alves e José Bernardino, seu Dedé. A todos os professores que contribuíram para minha formação acadêmica, em especial, ao meu orientador Mário Benevides, Cristiane Porfírio, Rúbia Gonçalves e Renato Ângelo. Aos meus parceiros de turma e amigos; Diana Soares, Fabrícia Queiroz, Alfredo Monteiro e Daniele Bandeira. Juntos, compartilhamos momentos de inquietações, angústia e dúvidas sobre os percalços de nossa formação. Mas também dividimos sorrisos e comemoramos durante toda caminhada. Aos companheiros de luta, Marcelo Michiles, Myrna Soares, Marisa Albuquerque, Isalenny Gonçalves e Emilie Kluwen. Estes tiveram ao meu lado em um dos momentos mais ricos de minha trajetória acadêmica. RESUMO Este trabalho se propõe a pesquisar sobre a arte como ferramenta de significação de vivências dos grupos juvenis da periferia urbana a partir das experiências do Projeto Enxame e do Neguinho do Rap. O objetivo central é compreender como a arte pode ser utilizada como instrumento propulsor de significação e ressignificação de códigos e signos juvenis e entender de que maneira ela se reflete na vida dos jovens. O Projeto Enxame foi fundado em 2000 e trabalha com a proposta de ressignificação de valores, da noção de direito e cidadania, através da arte-educação, ampliando e produzindo novos códigos culturais. As ações independentes de Neguinho do Rap se iniciaram no ano de 2012, com intuito de propiciar uma reflexão crítica e consciente acerca da realidade dos jovens e crianças, utilizando oficinas de hip-hop, como método arte-educativo. Ambos os projetos visam trabalhar a arte e a educação promovendo um processo de conhecimento e autoconhecimento para a afirmação e reconhecimento de identidades culturais. Utilizei como recurso metodológico para análise de campo levantamento histórico sobre os projetos, entrevistas com os coordenadores e também conversas informais. No decorrer do texto, são discutidas ideias de juventude, cultura, arte e educação. Atualmente, os projetos estão com as atividades paralisadas. Assim este estudo conclui suas análises fazendo uma reflexão sobre a relevância desses projetos para juventude periférica. Palavras-chave: Juventude, arte, cultura, educação e ressignificação de vivências. ABSTRACT This work intends to research the significance of art as experiences of the youth groups of the urban periphery from the experiences of the Swarm Project and Neguinho Rap tool. The central goal is to understand how art can be used as a tool propellant meaning and reframing codes and juvenile signs and understand how it is reflected in the lives of young people. The Swarm Project, was founded in 2000 and works with the proposed redefinition of Value, the notion of rights and citizenship , through art education , expanding and producing new cultural codes . The independent actions of Neguinho Rap, initiated in 2012, aiming to provide a critical and conscious about the reality of young people and children reflection, using hip-hop workshops, as art education method. Both projects aim to work in art education and promoting a process of self- knowledge and to the affirmation and recognition of cultural identities Throughout the text are discussed ideas of youth culture, art and education. Currently, projects are stalled with the activities. Thus this study concludes his analysis by making a reflection on the relevance of these projects to peripheral youth. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................... 08 CAPÍTULO 1 – CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇO EMPÍRICO 1.1 Uma viagem no tempo pelo Grande Mucuripe - Do morro Santa Teresinha ao Serviluz ................................................................................................ 16 1.2 Duas histórias para contar: Tem Enxame no morro e Neguinho "nas áreas"................................................................................................ 22 1.3 Precisamos fazer Enxame ....................................................................... 30 1.4 Solta o som, Neguinho! ........................................................................... 38 CAPÍTULO 2 - UM NOVO OLHAR SOBRE A JUVENTUDE 2.1. "A „Juventude‟ é apenas uma palavra"? .................................................. 41 2.2. Juventude e Estado: Políticas Públicas de Juventude e novas maneiras de fazer política .............................................................................................. 47 CAPÍTULO 3 - JUVENTUDE, CULTURA, ARTE E EDUCAÇÃO: NEXOS CATEGÓRICOS 3.1. A interpretação das culturas como ponto de partida................................ 54 3.2. A arte como ferramenta de ressignificação ............................................. 62 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 81 APÊNDICE Apêndice: Roteiro de entrevista ..................................................................... 85 8 INTRODUÇÃO Esta pesquisa se constitui mediante o esforço em investigar a arte como ferramenta propulsora de significação e ressignificação de vivências dos grupos juvenis da periferia urbana de Fortaleza, partindo das experiências do Projeto Enxame e das ações independentes de Neguinho do Rap. Portanto, o objetivo central é analisar a arte como instrumento capaz de propiciar uma reflexão crítica do movimento do real, tendo por base a realidade sociocultural da juventude da periferia urbana. Contextualizaremos sucintamente a experiência de estágio, para que se compreenda como ela impulsionou a delimitar o objeto de estudo, sendo elemento determinante para despertar o interesse na escolha da temática abordada. No ano de 2012, quando foi iniciado o estágio curricular no Centro Educacional de Semiliberdade Mártir Francisca, decidiu-se centralizar o olhar investigativo na área das medidas socioeducativas. Inicialmente, pensou-se em pesquisar sobre o processo de ressocialização; no entanto, ao fazer um breve levantamento bibliográfico sobre o assunto, percebeu-se que iria retomar a mesma discussão já tão enfatizada e pragmática em que se debruçam vários estudiosos da área: as falhas do processo ressocializante. Então, após um ano e seis meses vivenciando no campo de estágio, resolvese analisar a temática adolescente-autor de ato infracional mediante um prisma inovador para o serviço social, dando outro direcionamento às pesquisas. O centro de semiliberdade de Fortaleza é coordenado pelo Governo do Estado e recebe adolescentes que cometeram atos infracionais para cumprimento de medida socioeducativa. Na instituição, são desenvolvidas atividades socioeducativas através de oficinas de textura e serigrafia. Desde que se iniciou o estágio, despertou-se curiosidade em compreender como 9 essas oficinas eram implementadas e qual a visão dos socioeducandos sobre o impacto delas no processo de ressocialização. Para responder aos questionamentos, passou-se a acompanhar a dinâmica das oficinas. Após observar como elas eram aplicadas e a maneira com que os jovens se comportavam nas aulas, decidiu-se indaga-los, durante atendimentos realizados pelo setor social, a respeito da percepção deles acerca das oficinas. Resultado, os relatos de descontentamento com essas atividades foram significativamente relevantes, entretanto, não me surpreenderam. No período em que se acompanharam as atividades socioeducativas, percebeuse que elas funcionavam como uma terapia ocupacional para o adestramento de corpos, ou seja, os jovens ficavam nas salas, participando das atividades para ocupar o tempo ocioso, mesmo que não se identificassem com pintura, desenho ou outras opções limitadas de trabalhos artesanais oferecidos. A fala abaixo é de um socioeducando que foi encaminhado para atendimento ao setor social porque estava com mau comportamento na oficina de textura: Nois tem que ficar ai nessa oficina veia chata, sem fazer nada. Não tem nem quadro que dê pra todo mundo pintar, porque o Jak ainda não desenhou. Mó paia esse negocio. Agora ele quer que a gente pinte esses cavalo vei, nam... ai tem que ficar ai feito besta só olhando pra ele, pode nem sair que esses educador vei fica ai tudo se inchando pra gente, dá vontade de quebrar é tudo ai... (Francisco, 17 anos.) Cabe ainda ressaltar que, no cotidiano institucional, as manifestações socioculturais desses adolescentes são reprimidas; por exemplo, o rap é ritmo proibido de ser cantado nos corredores do centro educacional ou de ser escutado nos horários de lazer, pois é estereotipado como música de apologia ao crime. No entanto, contraditoriamente a este conceito conservador e elitista, o rap é caracterizado como música emanada, sobretudo das camadas populares da sociedade que abordam em suas composições críticas as problemáticas enfrentadas no dia-a-dia da periferia. Dentro da instituição, os jovens assumem uma postura relativa às codificações dominantes das normas sociais e explicitam o que supõe que deles se espera. Na rua, seus corpos vão assumindo a 10 cadência dos acontecimentos, ocupando lugares simbólicos que produzem, instituem e nos possibilitam a nos identificar personagens mais concretos, situados no conjunto de suas relações. (DIÓGENES, 2006: 193) Em oposição ao que era desenvolvido na instituição, a Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará (2002), documento elaborado para nortear as ações desenvolvidas nos centros educacionais do estado, destaca como programa a proposta de arte, educação e cultura nas atividades socioeducativas que devem ser voltadas para construção de uma consciência crítica da realidade de exclusão dos indivíduos no intuito de proporcionar a fomentar de novos valores éticos que caminhem no sentido de superação dessa realidade exercitando o protagonismo juvenil. Para tanto, é preciso que o gosto por fazer arte do adolescente encontre sentido em um fazer arte que o ocupe física e mentalmente, desenvolvendo seu pensamento artístico, percepção estética sensibilidade e imaginação. (...) Educar pela arte é, por conseguinte, a intenção do Programa, entendendo a arte como a busca de conscientizar em formas, o modo dinâmico do sentir humano; compreendendo a arte como espaço por excelência do ato de criação (...) (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, p.51). Com olhar direcionado para o âmbito das oficinas de arte, ainda no campo de estágio, elaborou-se um projeto de intervenção. Norteando-se pela proposta pedagógica, com o desejo de inovar as atividades arte educativas no intuito de estreitar a ponte entre o real e o ideal, foi proposta à direção da Unidade realizar oficinas de rap e grafite. Para aplicar o projeto, fez-se a articulação com pessoas que já trabalhavam nessa área. Foi quando se conheceu o Neguinho do Rap e o Projeto Enxame. No entanto, apesar do empenho para dar materialidade à sugestão de ação interventiva, ela não foi autorizada para implementação. Foi justamente esse fato que instigou ainda mais a curiosidade sobre o assunto. Assim, se dedicou a lançar um olhar mais amplo, para além dos muros institucionais, tendo como objetivo central pesquisar a arte como instrumento 11 que apresenta formas alternativas e críticas capazes de pensar uma nova representação do real, relacionando-a à vivência de grupos juvenis. O objetivo desta análise consiste em elucidar alguns questionamentos que emergiram a partir das vivências de estágio, por exemplo: O que é arte? A arte também tem função educativa? Será que a relação entre arte e educação auxilia no processo de formação de consciência e da autoconsciência dos indivíduos? E, se realmente auxilia, como se dá esse processo? Qual sua contribuição na construção das identidades das culturas juvenis? Quais os espaços em que a arte é trabalhada como instrumento socioeducativo? De que maneira a arte é utilizada como ferramenta de ressignificação dos grupos juvenis? Qual a influência do contexto sociocultural no universo da arte, educação? Essas perguntas serão discutidas no decorrer desse texto, no sentido de manter um diálogo permanente entre a teoria e o campo empírico. A relação entre Juventude, cultura, arte e educação foi estudada nas atividades realizadas pelo Projeto Exame e pelas ações desenvolvidas por Neguinho do Rap, levando em consideração as marcas de territorialidade e o contexto social em que esses projetos estão imersos. O Enxame está localizado no bairro Mucuripe, morro Santa Terezinha, zona litorânea de Fortaleza, área caracterizada por grande vulnerabilidade social. A região é marcada não só por problemáticas: desigualdade social, turismo sexual, especulação imobiliária entre outros, mas também por sua riqueza cultural. Até os anos 90, o morro era conhecido como atração turística, por ser um dos pontos mais altos da cidade, onde se situa o Mirante. Atualmente, o local é marcado pelo abandono por parte do poder público e pelos altos índices de violência. O Enxame trabalha na perspectiva da recodificação da noção de direito e cidadania, através da arte-educação, atendendo crianças, jovens e adolescentes. Promove ainda oficinas de hiphop, artes visuais dentre outras atividades. Porém, atualmente o projeto enfrenta dificuldades para prosseguir sua atuação devido à falta de recursos. 12 Situado no Grande Mucuripe, bairro Serviluz, em cenário semelhante ao do Enxame, emerge, com suas nuances particulares, as intervenções de Neguinho do Rap. Neguinho do Rap já foi presidiário, cumpriu mais de 10 anos de pena. E quando saiu do sistema penitenciário gravou um CD e começou a desenvolver oficinas de rap, grafite, deejay para crianças e jovens da comunidade, na intenção de afastá-los da criminalidade, utilizando a arte como instrumento educativo. Para ele, o rap é uma forma expressão da periferia, é uma maneira de lutar contra o sistema. Entretanto, as ações foram canceladas, pois Neguinho não tinha nenhum tipo de apoio financeiro para manter as despesas das atividades. Nesse contexto, cabe fazer um recorte dos atores aqui investigados, a juventude urbana periférica. Por isso, como afirma Machado Pais (1990), não se pode entender a juventude como uma categoria homogênea, pois ela é marcada por uma pluralidade. "Na verdade, a juventude aparece socialmente dividida em função dos seus interesses, das suas origens sociais, das suas perspectivas e aspirações" (PAIS, 1990: 149). Com o objetivo de compreender a maneira de pensar e agir desse grupo social, inicialmente, fezse uma abordagem teórica, a fim de entender, de modo geral, a disposição da juventude contemporânea, não limitando essa percepção ao corte geracional, mas refletindo acerca de sua relação com a dinâmica social. Assim, para apreender com maior profundidade motivações, expressões, signos e códigos dos jovens da periferia, foi levada em consideração a reflexão de autores como DaMatta, que aborda a cultura enquanto categoria imprescindível para compreensão do modo de vida de determinada sociedade, relacionando-a ao conjunto de normas sociais e aos modos de comportamentos de um povo. E Geertz (2008), que entende os fenômenos culturais através de uma análise interpretativa de seus significados. Nessa perspectiva, a cultura aparece como forma de representação de um grupo social, desmistificando a maneira polarizada em que a palavra cultura é empregada. Muitas vezes usada no sentido pejorativo, para diminuir ou ignorar uma pessoa ou grupo social, afirmando que este não tem cultura ou tem cultura inferior. 13 "A cultura, por sua vez, é espaço privilegiado da Arte". (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, p.52) Para Peixoto ( ), a arte e a educação são manifestações do processo de produção da existência humana que compõe o universo cultural. Bourdieu (1996) defende que essas manifestações culturais tem valor simbólico orquestrado pelas condições objetivas do espaço social em que o indivíduo está inserido. Nessa perspectiva, as expressões artísticas dos grupos juvenis da periferia, não podem ser compreendidas se dissociados do contexto histórico, social, econômico e político. Para que os indivíduos entendam a dinâmica da realidade que os cerca e sejam capazes de pensar criticamente sobre ela, Paulo Freire (2002) acredita na importância da educação como processo de conhecimento capaz de despertar a capacidade crítico-reflexiva através do qual o homem ascende para o estado consciente. O pensamento pedagógico freiriano defende ainda utiliza uma prática dialógica, ou seja, o exercício do diálogo na tentativa de educar os indivíduos mediante suas próprias vivências. Desse modo, a educação pensada por Freire pode vir a ser um instrumento propulsor de transformações sociais. Da mesma maneira que a arte, como defende Peixoto, também se apresenta como ferramenta capaz de despertar o conhecimento e autoconhecimento. E a partir do que foi sucintamente exposto, é possível vislumbrar a junção entre arte e educação como esferas que compõem o espaço cultura. Nas oficinas do Enxame e do Neguinho do Rap, a arte-educação é o método utilizado nas oficinas de artes visuais, break, grafite, rap, dentre outras atividades. Pois através dessas atividades arte-educativas estes projetos buscam recodificar os signos sociais no intuito de promover o conhecimento e reconhecimento da dinâmica sociocultural, incentivando o protagonismo juvenil e ampliando os códigos culturais na busca de novas formas de inserção social. Inicialmente, a intenção era desenvolver o tema pesquisado a partir do olhar dos próprios jovens para adentar de maneira mais densa em suas representações simbólicas, expressão e percepção do mundo que os cerca. 14 Entretanto, o campo empírico impediu que se mergulhasse com maior profundidade nas impressões pessoais destes atores. Pois somente quando foi realizada a primeira visita ao Enxame e ao Neguinho do Rap, em agosto de 2013, deu-se conta de que suas ações interventivas não estavam funcionando devido à falta de recursos e por isso não tive contato mais próximo com os alunos. Mesmo assim, durante pouco mais de 6 meses foi acompanhada a trajetória desses projetos. Desse modo, a alternativa encontrada foi fazer um levantamento dos arquivos do Enxame. Iniciar uma busca de reportagens, artigos, gravações de áudio e vídeo de ambos os projetos e entrevistar os coordenadores. Foi feita uma entrevista com Neguinho do Rap, dois coordenadores do Enxame, Valber e Paulo Emílio. Conversou-se algumas vezes com Sidarta Cabral, que é coordenador do Enxame, com alguns jovens que estavam presentes na sede do Enxame as vezes em que foram feitas as visitas e com moradores do Morro Santa Terezinha e Serviluz. Participou-se também dos três primeiros Encontros Culturais em prol da Revitalização do Mirante. Utilizou-se como recurso metodológico a entrevista semiestruturada e o relato de vida. Muitas informações também foram obtidas através de conversas informais. Outra ferramenta que acompanhou toda a pesquisa foi a escrita de um diário de campo. Nele, se puderam registrar os momentos que chamaram atenção, reflexões e descrições sobre a experiência vivenciada. Portanto, neste trabalho se esforça para manter um diálogo permanente entre a teoria e o campo empírico. E assim, ele segue estruturado em três capítulos: No primeiro capítulo, é feita uma viagem no tempo pelo Grande Mucuripe, resgatando a história do Morro Santa Teresinha e do Serviluz. Também é retomada toda a trajetória do Enxame e do Neguinho do Rap, apresentando a proposta de ação desses projetos e destacando a situação atual em que se encontram. O segundo capítulo é de natureza mais teórica, onde se fala sobre a juventude enquanto uma categoria sociológica, analisando os aspectos 15 históricos e sua disposição contemporânea para pensar a relação entre juventude e Estado. No último capítulo, é apresentada a discussão central dessa pesquisa. São abordadas algumas considerações sobre o conceito de cultura e, a partir delas, buscou-se entender a junção entre arte e educação na perspectiva dos projetos estudados. E, nesse sentido, entender a arte como ferramenta de ressignificação dos grupos juvenis da periferia urbana. Assim, esse trabalho é apenas um convite para iniciar uma longa aventura de possibilidades infinitas pelo mundo da cultura, da arte e da educação, pelo do universo da juventude da periférica. 16 CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇO EMPÍRICO 1.1 Uma viagem no espaço e no tempo pelo Grande Mucuripe – do morro Santa Teresinha ao Serviluz Vejo a luz do Mucuripe belo inútil videoclipe blues amargo de razão. Nenhum barco me acena e minha alma quase plena ri do caos da confusão, Do trânsito engarrafado, do grito desesperado calado na multidão. Fagner e Zeca Baleiro. Cenário do romance do livro Iracema de José de Alencar, cantado e citado em versos e prosas e famoso ponto turístico da capital na década de 90, o Mucuripe foi enseada de Fortaleza, reduto de navegantes, vila de pescadores e hoje é um dos bairros litorâneos da cidade mais marcados pela segregação social. De um lado, grandes e luxuosas construções verticais. Do outro, casas simples e barracos que seguem desordenados outra verticalidade, os morros, muitas vezes, localizados em áreas de risco. Um dos cartões postais da capital destaca os arranha-céus que compõe a paisagem da Avenida Beira Mar com as jangadas que velejam tranquilamente nas ondas dos verdes mares. Entretanto, ignora com um olhar imediato, as vozes que ecoam da periferia, desprezando as particularidades de um povo. A vertente histórica tradicional cabe aqui destacar aquela abordada nos livros didáticos, afirma a versão lusitana de Cabral como data oficial de chegada dos povos europeus no Brasil. No entanto, segundo Miguel Ângelo (2001), foi no Cabo de Santa Maria de la Consolacion, onde anos depois ficou conhecido como Ponta do Mucuripe, que embarcações espanholas comandadas por Vicente Yãnez Pizón ancoraram, pela primeira vez, em terras brasileira. Desembarcados o comandante, o escrivão da frota e alguns marinheiros, abasteceram os navios de lenha e água, mas não conseguiram parlamentar com os nativos hostis, apontando-lhes as suas frechas em ameaça. Sobretudo, a terra era inóspita, e por esse motivo, prosseguiram a rota (RAIMUNDO GIRÃO, 1979: 20). 17 Iniciado o processo histórico de colonização do Ceará, em 1574, o Mucuripe surge na geografia espacial sendo ilustrado no mapa das capitanias brasileiras. O nome Mucuripe é de origem indígena - Tupi, porém sua etimologia nunca chegou a um consenso. Dentre as várias hipóteses sobre essa nomenclatura, uma delas é que venha de mucuras, um roedor que existia em abundância nessa região, outra denominação, defende Teodoro Sampaio Girão, sugere que o nome esteja relacionado com mucuri, árvores de grande porte encontradas na faixa litorânea. Até chegar sua construção atual, a palavra já foi grafada de diversas formas: Macuriba, Muccouru, Macorie, Macuripa as variações dependiam do idioma em que era escrita (GIRÃO, 1979). Girão (op. cit.) também afirma que, durante muito tempo, essa região litorânea permaneceu sem avanços. Era frequentada por navegantes como refúgio das longas viagens, embarcações que chegavam à enseada em busca de mercadorias e por piratas; posteriormente tornou-se uma vila de pescadores. Para compreender a produção e a apropriação do bairro Mucuripe, faz-se necessário um resgate de como aconteceram a formação e a expansão da cidade de Fortaleza, a qual lógica que preside a gestão da Cidade, como esta está atrelada ao Global, e, a partir daí, poder perceber que o Mucuripe, mesmo com suas particularidades, não está dissociado de uma realidade maior (RAMOS, 2003: 42). Segundo Airton de Farias (2012), a cotonicultura1 impulsionou várias mudanças na em Fortaleza. A construção da Estrada de Fero de Baturité, iniciada em 1870, com objetivo de escoar mercadorias, estreitou a distância entre o litoral e o sertão. O apogeu do cultivo e da exportação do algodão associado ao consequente processo de crescimento e 'modernização', seguiu calcada na industrialização do país e moldurada pelo capitalismo que se consolidava no mundo. Esse período foi acompanhado pelo intenso fluxo migratório (interior-capital) ocasionado, também, pelas constantes secas, sobretudo a de 1932, que aglomeravam no centro e ao redor da malha férrea 1 Cultivo de algodão. 18 da capital uma massa de retirantes desempregados e latifundiários em busca de negócios. Assim cidade começa a incorporar novos contornos nos ordenamentos de sua geografia espacial e, na década de 30, "surgem as primeiras favelas em sua malha urbana, expressão de um saber popular na forma de produzir a habitação da cidade" (CHAVES, VELOSO e CAPELO, 2006: 52). O litoral começa a ser ocupado pelas elites da cidade, inicialmente como área de lazer. Com o crescimento da população urbana, o espaço litorâneo passa a ser ocupado por segmentos menos privilegiados da população: jangadeiros, retirantes, pobres e trabalhadores ficam segregados nas áreas periféricas com ausência de infraestrutura, vivendo condições precárias. O movimento de ocupação das zonas de praia pelos pobres corresponde, essencialmente à demanda por ocupação, reprimida, dos retirantes que não conseguem se estabelecer no centro da cidade, vendo-se forçados por política higienista de ordenamento e controle social a se fixar nos terrenos de marinha, lugar privilegiado de concentração desse segmento da população (DANTAS, 2002: 52-53). "A partir de 1980, muitas famílias de pescadores fixaram-se nas encostas dos morros Teixeira, Morro Santa Teresinha, Castelo Encantado, ou em bairros que estão ligados ao Grande Mucuripe, como Vicente Pinzón, Serviluz e Varjota" (RAMOS, 2003: 62). Inicia-se, assim, a problemática habitacional que se perpetua na contemporaneidade, marcada pela desigualdade social. Valber, diretor e arte-educador do Enxame e morador do bairro há mais de 15 anos, ao comentar sobre o processo de especulação imobiliária e as suas consequências para o local mencionou: Se você me perguntar por que que o Mucuripe está tão apagado, é uma tentativa de apagar também história e identidade do bairro (...) Quanto mais feio e mais abandonado mais barato é o terreno. (...) Aqui tem uma bacia hidrográfica, O Riacho Maceió. Hoje ela está poluída, a invasão e os entulhos da construção civil atrapalham o fluxo natural do riacho, aí quando chove inunda tudo ali em baixo. 19 Pude compreender com maior clareza a afirmação de Valber, quando entrevistei dona Hermínia, antiga moradora do bairro, que transparecendo muita felicidade contou-me um pouco sobre a história de ocupação dos morros Teixeira e Santa Teresinha, a partir de suas vivências. Ela mora em um dos pontos mais privilegiados do Conjunto Santa Teresinha, o alto do Morro, onde na década de 90 se localizava um dos pontos turísticos mais conhecidos de Fortaleza, a vila gastronômica do Mirante. Eu cheguei aqui em 1981. Antes eu morava no Morro da Teixeira, que fica ali na frente, ai depois começaram a ocupar, de repente, derrubaram tudo, era gente chorando, correndo e eu me mudei para cá e estou até hoje. Aqui é muito bom, eu não quero sair daqui mais não. Já foi mais animado, tudo aqui em cima era restaurante, era gente passando direto uma animação só, a gente sentava na calçada até tarde, não tinha perigo, ai depois os restaurantes saíram e ficou abandonado. (...) era perigoso viu, agente não podia mais sentar na calçada, hoje tá mais tranquilo. (...)Os moradores antigos a maioria venderam tudo, para os donos dos restaurantes, e se mudaram daqui, mas eu não vendo não. Já me ofereceram dinheiro pela minha casa, mas agora que vai melhorar, o prefeito já marcou até um dia para agente providenciar a documentação e fazer a escritura das casas, a maioria aqui não tem não, é só aquele papel, como é que é... de compra né! ( Hermínia - Moradora do bairro há mais de 30 anos.) Hoje, do antigo Mucuripe pouca coisa restou. A invasão da construção civil transfigurou a paisagem natural da faixa litorânea, agrediu a natureza; riacho, dunas e praia, criou uma segregação social de espaços acentuando as desigualdades e contradições e camuflou as raízes populares que originaram o bairro, limitando-o a figura emblemática de jangadas velejantes. Paulo Emílio, coordenador do projeto Enxame e morador do bairro, em uma entrevista, lamentou sobre o grande número de prédios que compunham a orla, enfatizando para uma construção em especial que avançou a encosta do morro: "Sabe um prédio que tem bem na encosta do morro, um que é ele sozinho, um prédio vermelho? Aquilo ali é totalmente ilegal" (Paulo Emílio). Uma reportagem do Jornal O Povo notícia que em 2011, a Prefeitura Municipal de Fortaleza aprovou o projeto de revitalização do Morro Santa Terezinha, que previa a construção do muro de contenção, instalação de bondinho e áreas de lazer como anfiteatro, praças e espaços para a prática de esportes. A obra orçada em R$10 milhões iniciou, segundo moradores, em 20 agosto do ano citado, no entanto, eles afirmam que, há aproximadamente 8 meses, a obra está estagnada. Em fevereiro deste ano, em entrevista ao mesmo jornal, o segundo o titular da Secretaria do Turismo de Fortaleza (Setfor), Salmito Filho, afirma que a obra foi suspensa por irregularidades em sua execução e, para dar continuidade, será preciso fazer uma nova licitação (Jornal O Povo: 23/05/2011 -06/02/2013). Entregues ao abandono por parte do poder público, as comunidades do Mucuripe relutam por melhores condições de vida. Não por acaso decidiu-se realizar a pesquisa nessa localidade, pois ela possibilitou uma gama de informações acerca do tema investigado. Os bairros que compõem o Grande Mucuripe contam com significativo número de associações de comunitárias, ONGs, e ações independentes. Imersa na mesma contextualização histórica do surgimento do Grande Mucuripe, a comunidade do Serviluz emerge com suas particularidades. O nome do bairro está relacionado com a empresa de luz elétrica - Serviço de Energia Elétrica Municipal que se instalou no local em 1954, atualmente desativada. Uma das primeiras construções realizadas na área, onde hoje é situado o Serviluz, é o antigo Farol, edificado em 1846 na Ponta do Mucuripe pela mão-de-obra escrava. Em 1958, foi inaugurado um novo Farol e antigo ficou desativado e, em 1982 o monumento passou por uma reforma sendo tombado como patrimônio cultural em 83. Situado na Avenida Vicente de Castro s/nº, na Ponta do Mucuripe, o Farol que já serviu de museu do jangadeiro, lamentavelmente, hoje se encontra abandonado, deteriorado pela erosão marinha e depredado pelos próprios moradores do bairro. No início dos anos 40 do século XX, foi iniciada a construção do Porto do Mucuripe, concluída alguns anos depois em 1947. Na década de 50, o porto passa por grandes reformas e, em 94, é feita ampliação de um terminal portuário. Ramos (2003) ressalta que "a instalação do porto foi um grande 21 indutor do crescimento Mucuripe e áreas próximas, com alta concentração da população de baixa renda" (RAMOS, 2003: 57). Nas proximidades do porto, começou a se formar uma concentração industrial; instalaram-se várias fábricas, por exemplo, o Moinho Dias Branco. O crescimento populacional dessa área mesclou-se por um grupo heterogêneo de trabalhadores. Eram retirantes, pescadores, portuários, pequenos comerciantes e meretrizes (RAMOS, op. cit.). Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição e, por isso, em 1952, 600 mulheres foram ameaçadas de despejo pela Secretaria da Polícia, pois alguma famílias exigiam a transferência dos prostíbulos para outros lugares. No Mucuripe, nas proximidades do velho Farol, instalou-se uma das principais zonas de Prostituição de Fortaleza (Simone de Souza, Adelaide Gonçalves, 2007: 68). O complexo portuário modificou gradativamente o cotidiano da população local. Hoje, o cenário que compõe o Serviluz mistura-se em um complexo industrial de gás e combustíveis que encobre a comunidade humilde e pauperizada disposta em becos e ruelas, contornada por uma beleza particular e exuberante: o mar. O bairro ainda se assemelha a uma vila de pescadores. Um calçadão sem muita estrutura divide a faixa de praia do calçamento que se mescla com a areia das dunas levadas pela ação dos fortes ventos. As ruas são estreitas, muitas sem pavimentação e aquelas que ficam mais próximas ao mar são tomadas de areia. Propícia para a prática esportiva do surfe, atividade muito difundida na comunidade, a praia do Titanzinho é atrativo principal do local e área de lazer dos moradores que com orgulho lembram que campeões mundiais de surfe saíram do Serviluz. Uma das atuais problemáticas que preocupa a comunidade é a construção do estaleiro. De acordo com Governo do Estado, a obra trará melhorias para os moradores e irá gerar novos empregos para população. Entretanto, para que o empreendimento seja implantado, será necessário realizar algumas modificações na costa marítima. Além dos impactos ambientais, uma dessas modificações implica na construção e ampliação de novos quebra-mares, para conter as ondulações da maré, o que impacta 22 consequências diretas para os trabalhadores que vivem da pesca e também, no principal esporte e espaço de lazer dos jovens da região, o surf. O governador afirmou que o empreendimento não trará impactos ambientais e sociais. É mentira. É consenso entre os ambientalistas sérios da cidade que o impacto será imenso e não afetará somente o Serviluz mas toda a orla de Fortaleza. Quanto aos impactos sociais, estes são óbvios – removerá famílias, afetará práticas esportivas e culturais, destruirá ainda mais a identidade e os laços comunitários [...] Sabemos que o Serviluz é uma Zona Especial de Interesses Social. [...] Estamos prontos para lutar pelo Serviluz que queremos. (Carta Aberta das Organizações Populares do Serviluz de repúdio a instalação de um estaleiro no bairro Serviluz). É evidente que não se pode deixar de refletir sobre as intenções políticas que orquestram o desenvolvimento da cidade e consequentemente refletem na maneira como os espaços sociais vêm sendo produzidos e reproduzidos. Partindo dessa compreensão, nesse passeio pelo tempo, dentre os diversos olhares sobre o Grande Mucuripe, que variam desde uma percepção poética, saudosista e estratégica do colonizador, cabe, irrefutavelmente, destacar nesta pesquisa a importância de um olhar em especial, os personagens contemporâneos dessa história, que em seu cotidiano configuram as relações e o movimento real dos tempos modernos. 1.2 Duas histórias para contar: Tem Enxame no morro e Neguinho "nas áreas" Tem Enxame no morro Em minhas lembranças de infância de toda riqueza que o Cabo da Saudade2 apresentava somente uma paisagem seduzia de maneira estonteante minha atenção e apreendia meu olhar. Era o aglomerado de pontinhos brilhantes e entre eles a imensidão do mar que, em alguns 2 Girão (1979) refere-se ao Mucuripe como Cabo da Saudade, descrevendo o sentimento dos jangadeiros que partiam e chegavam ao pelo mar. “Mais certo seria dar ao Mucuripe o nome de Cabo da Saudade. Ao dobrá-lo quem deixa a terra tem cheia a alma das tristezas. Ao perder de vista os acenos do comovente adeus das despedidas, talvez para nunca mais. Ao dobrá-lo, quem chega com o coração fremente de alegria, é ali que começa a matar as saudade que guardava”. (1979, p.25) 23 momentos, com dificuldade eu avistava. Essa imagem fotográfica ficou gravada em minha memória, e aproximadamente 15 anos depois, quando retornei ao Grande Mucuripe, ela se materializou novamente com impacto de realidade e contornos particulares. Em uma quinta-feira à noite, visitei, pela primeira vez, a sede do Enxame. Ao observar o entorno do local, do alto do morro, a imagem que se fixava em meu olhar era bastante parecida com aquela de anos atrás; de imediato, parecia até ser a mesma, porém com uma ausência inquestionável, as águas que se apresentavam por entre as incontáveis luzes noturnas. Em um espasmo de segundo, me veio ao pensamento: que vista privilegiada! E, automaticamente, com uma sensação de surpresa, verbalizei a frase direcionando-a ao Valber, coordenador e arte-educador do Enxame, que no momento estava abrindo o portão para que eu adentrasse na sede. Percebi nitidamente que sua fisionomia não correspondia à empolgação do meu comentário, pois sua expressão variava em um sorriso de boas vindas e um tom de descontentamento ao direcionar sua visão para o mesmo local o qual eu elogiava. Nos momentos seguintes, durante uma longa e descontraída conversa com Valber e com dois by-boys3, DQ, participa do projeto há dois anos e, Mauro, há aproximadamente 5 anos, minha impressão imediata sobre o local foi descortinada e meus conceitos foram suspensos para escutar atentamente os relatos de Valber que transbordavam suas experiências vividas no bairro e no Enxame. Os rapazes sentaram-se no chão da varanda e, tendo a vista do alto do morro como pano de fundo a conversa, prossegui ao som dos tambores de uma agradável batucada de macumba que acontecia ali perto. Valber relatou-me sobre toda trajetória do Enxame, contextualizando com a história do bairro. Depois de desenvolver uma densa pesquisa de doutorado sobre as expressões de grupos juvenis e seus aspectos culturais, a socióloga Glória Diógenes recebeu uma bolsa da fundação Macarthur para 3 Nome dado aos dançarinos de break. 24 desenvolver seu projeto sobre "Relação de Gênero, Cultura e Violência Juvenil" que culminou na origem do Enxame. A ideia (...) era utilizar oficinas de arte, com jovens pertencentes às galeras do bairro, como meio de expressão de si, do outro e do grupo, e como campo de ressignificação da noção de direitos e cidadania. (...) Tínhamos a ideia de que a arte é um campo propulsor de significantes, ela certamente irriga territórios esquecidos do corpo, faz emergir novas formas de linguagem (DIÓGENES, 2006:191). O Enxame foi fundado no ano de 2000, através da iniciativa da socióloga, juntamente com a cooperação dos integrantes do grupo de rap Conscientes do Sistema, dentre eles Sidarta Cabral que hoje é um dos coordenadores do Enxame. Em 2001, o projeto recém-iniciado torna-se uma ONG e no decorrer do ano de 2005 passa por várias mudanças, uma delas é a saída de Glória Diógenes. Então a coordenação foi assumida por uma gestão comunitária sob a responsabilidade de Sidarta Cabral, ex-integrante do grupo de rap Conscientes do Sistema, que também ajudou a fundar o projeto e ainda hoje é um dos coordenadores. Paulo Emílio, que também é coordenador do projeto e arte-educador, em uma conversa posterior ao encontro com Valber, afirmou que um dos desejos da ex-coordenadora era que o projeto fosse administrado por uma gestão comunitária. Valber ressaltou que, após a saída de Gloria Diógenes, apesar de algumas mudanças como cancelamento de atividades e de verbas, a missão institucional do projeto continuou direcionada em trabalhar a arte-educação na perspectiva de ressignificação dos valores e conceitos de direitos e cidadania de jovens e adolescentes respeitando suas vivências e seus aspectos socioculturais. Merecem destaque aqui os objetivos estabelecidos na Proposta Pedagógica do Enxame: ENXAME tem como objetivos principais à promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais, através da arte-educação como meio de ressignificação de si (autoestima), do outro (princípios da alteridade e da diferença) e de recodificação da noção de direitos e cidadania, no campo da cultura, da violência juvenil e nas relações de gênero, com os jovens das periferias de Fortaleza. 25 A ONG tem a proposta de realizar oficinas de break, rap, grafite, teatro, e outas atividades arte-educativas. As atividades são desenvolvidas no sentido de promover o processo educativo para formação de uma consciência social e crítica da realidade, incentivando o protagonismo juvenil. O projeto já teve várias sedes; inicialmente era localizado no clube Terra Mar. Em 2013 mudou de sede duas vezes. Hoje, está situado no alto do morro Santa Teresinha, na Rua Samura, nº 169, em uma casa alugada. Atualmente, o Enxame vem encontrando entraves para implementar suas atividades. Um dos principais motivos é a falta de recursos financeiros. Mas, apesar das dificuldades, ainda continua buscando espaços e maneiras possíveis para concretizar seu ideal. Mesmo com toda dificuldade, os enxamistas4 não calam. Continuam se mobilizando junto com comunidade, promovem eventos, participam de festivais e driblam barreiras para desenvolver as oficinas. A periferia grita, o som ecoa e, lá do alto do morro, continuam fazendo Enxame. Neguinho "nas áreas" Eu sou Neguinho do Rap, já fui ladrão dos bons. Gostava de maconha e de curti som. Eu lhe aconselho, não siga o meu caminho, a trilha que passei só encontrei espinho. Eu vou te falar um pouco dessa vida. Ela é cruel e muito sofrida. Neguinho do Rap Em um final de tarde, tive o prazer de conhecer pessoalmente, Josenildo, hoje conhecido como o Neguinho do Rap ou Negão como é chamado na vizinhança. Depois de algumas conversas por telefone, em que 4 Como são chamados os participantes do Projeto Enxame. 26 apresentei minha pesquisa explicando o motivo porque decidi procurá-lo, resolvemos marcar um encontro para que ele pudesse me contar sua história e falar sobre as ações que desenvolve na comunidade. Ao chegar ao Bairro Serviluz, quando entrei na avenida principal, Zezé Diogo, a primeira coisa que se avistou foi a torre do antigo farol do Mucuripe, o que remeteu imediatamente à origem do bairro. Depois de seguir pela avenida, após perguntar informações a algumas pessoas que estavam na rua, foi encontrado o endereço procurado. Ao chegar em uma rua estreita, já bem próximo à praia, o grafite no muro de uma esquina gafava o seguinte: “Neguinho do Rap – Liberdade Conquistada”. Então, teve-se a convicção de que estava no caminho certo. Deram-se mais alguns passos e lá estava ele, O Neguinho do Rap, sentado enfrente ao M.C Mercadinho do Povo, um pequeno comércio que funciona na sua própria casa. A pesquisadora apresentou-se e, logo em seguida, pegaram cadeiras e sentaram-se no outro lado da calçada. Enquanto a entrevista era realizada, algumas pessoas que transitavam pela ruela ou se dirigiam ao mercadinho eram apresentadas. A entrevista com Neguinho do Rap foi um momento muito enriquecedor para este trabalho. Sua história renovou o ânimo da pesquisadora e motivou-a mais ainda a dedicar-se a esta pesquisa. Josenildo Mário Dutra nasceu em Recife e, com alguns meses de vida, foi morar em São Paulo. Passou sua adolescência e juventude na periferia paulista do bairro São Miguel, onde descobriu mais uma possibilidade de sobrevivência, o crime. Na favela eu tinha acesso a tudo, ao crime, os cara cortavam carro, assim, enfrente a minha casa. Ai meu pivete queria uma bicicleta no natal, e um cara disse: Vamo cortar esse carro que no final tu tem a bicicleta. E foi assim mesmo, quando terminei tinha 200 contos e comprei a bicicleta, e o pivete ficou lá todo feliz. (Neguinho do Rap) Na linguagem de Josenildo, “cortar carros” significa desmanchá-los amassando a ferragem para retirar as peças que podem ser vendidas. Para 27 ele, o desmanche ilegal de automóveis passou a ser uma maneira fácil de ganhar dinheiro. E sempre que estava sem condições financeiras de suprir suas necessidades, não hesitava em efetuar tal prática. Assim, cada vez mais ele foi se envolvendo com o crime e praticou vários outros atos ilícitos; um deles culminou em sua primeira entrada no sistema penitenciário. Na primeira queda lá dentro do sistema conheci outros presos. Eles diziam vixe, tu fez isso, era só ter feito assim que dava certo. Ai comecei a passar conhecimento, a pegar conhecimento e eu fui me aprofundando no crime, foi banco, assalto grande! (...) Quando eu sai já tinha tudo pronto pra mim, fiz coisas com uns cara lá, era dinheiro, carro, apartamento. Mais ai sempre vem a consequência né! (Neguinho do Rap) Josenildo saiu da prisão, mas regressou ao sistema penitenciário pela segunda vez. Foi condenado a 22 anos de regime fechado e cumpriu pena no Instituto Penal Paulo Sarasate – IPPS por sequestro, roubo e outros delitos. Ele relatou-me sobre suas experiências durante o cárcere e mencionou que, quando foi encaminhado para o presídio, "era um cara sem expectativa de vida", não tinha esperanças de sair vivo de lá. Josenildo afirma que a vida de um presidiário é muito difícil, diferente dos mitos que se propagam vulgarmente; o preso não tem regalias e não é um gasto alto para o Estado afinal, muitas vezes, ele é esquecido e sobrevive em condições desumanas, em celas sujas com caranguejeiras, insetos nocivos e sem higiene. Contoume que uma vez encontrou preservativo masculino dentro da comida. Segundo ele, dentro do sistema presidiário existem as próprias leis, era preciso manter a tranquilidade e ser esperto para manter-se vivo lá dentro; um dia presenciou de sua cela um preso ser desossado. Para ele um dos refúgios que ajudava a passar o tempo era o rádio que sempre escutava sintonizado em um programa que só tocava rap; e foi ao som da canção “Depoimento de um viciado” que ele começou a refletir sobre a condição em que se encontrava. Eu escutava rádio lá dentro, um programa que era só rap, ai comecei a ver o que acontecia lá dentro (...)" Contava meu tempo pelas copas, passei três copas lá. Quem não tem ninguém aqui fora é esquecido lá dentro. (...) Dizem que o presidio regenera aquilo não regenera ninguém não. ( Neguinho do Rap) 28 Dentro do presídio, Neguinho do Rap decidiu que não queria mais viver daquela maneira; aprendeu a ler e escrever, encontrando no rap uma forma de transmitir para outras pessoas sua história e percepção do mundo. Ele queria contar para os garotos da periferia, para os jovens suas experiências no intuito que eles seguissem trajetórias diferentes. Comecei a estudar na escola lá no IPPS, depois a escola parou e eu fiquei estudando sozinho mesmo, com minhas músicas, com o rap. Com as letras do rap, eu queria dizer para os filhos da dona Maria, o que aconteceu comigo, para que ele não passe o que eu passei, não faça o que eu fiz. Agradeço ao movimento rep, conheci dentro do sistema penitenciário, foram 10 anos dentro do sistema. Se eu tivesse conhecido antes, talvez fosse diferente. (Neguinho do Rap). Entra em cena o Neguinho do Rap e, durante a entrevista, sempre que respondia as perguntas intercalava sua fala, cantando seus raps. Dentre eles, num trecho, ele disse ter sido um dos primeiros que fez ainda recluso, "Saí da Captura". Veja como está a minha situação tomar o que é dos outro é a vida do ladrão. Pode acreditar pra tudo tem um jeito deixar de ser ladrão se tornar um bom sujeito. Como vai ficar outros camarada, carro importado já tive nessa estrada. Como vou fazer pra me por no meu lugar, sai dessa estrada só deixando de roubar. Altos 157 já fiz na minha vida, como é que eu vou fazer para curar essa ferida. Ferida que eu falo é a do sentimento, dispenso essa arma pra sair desse tormento. Assim como diz outro cidadão quem compra e usa arma é policia ou ladrão. Eu sou Neguinho do Rap, depois de sete anos voltei pra lhe falar sobre a revolta do sistema, o sangue corre na veia o sofrimento é o lema. Essa é a rotina nessa porra de lugar ladrão quer sorrir polícia querendo matar, pá, pá pá pá. Aqui só sobrevive quem tem disposição o sangue faz a força na coragem do ladrão dentro do sistema penal é pura adrenalina o atraso do detento é usar crak ou cocaína. Encaro de frente sem querer me atrasar neguinho me inveja com maldade no olhar, mas eu sou guerreiro firme e forte ainda estou, eu me fechei pro ódio me abri para o amor. Pode crê firmeza total, se liga Neguim caiu na real. (Neguinho do Rap) Durante uma visita da comissão do poder judiciário ao presídio, Neguinho aproveitou a oportunidade e chamou um dos representantes, "Ei doutor, vem aqui, quero falar com o senhor". O homem se direcionou até a cela e ele questionou: "Eu cometi crimes, tô pagando pelo que eu fiz, mas o 29 Estado tem que me dá dignidade para eu cumprir minha pena, é um direito, num é?" Então, o secretário da justiça, com quem ele argumentava, perguntou o que ele queria e, imediatamente Neguinho disse que queria um local para montar um estúdio de rap dentro da penitenciária e assim poder passar seu rap para outros detentos. No mesmo instante, tiraram-no da cela e levaram-no para procurar um local onde fosse possível iniciar a montagem do estúdio. Ainda em cárcere, muitas coisas aconteceram; compôs, montou o estúdio, conheceu sua atual esposa com quem constituiu uma nova família e, depois de 10 anos, saiu do sistema penitenciário. Em 2009, gravou um CD, “Liberdade Conquistada”, que também é título de uma de suas músicas. Hoje ele ainda responde em uma Liberdade Assistida, mas, apesar das dificuldades enfrentadas no sistema penitenciário, ele diz com convicção que foi o rap que mudou sua vida. O rap foi a arma que encontrou para lutar contra o sistema. Quem está no poder não quer que a favela tenha consciência para lutar contra eles. Eu aprendi a lutar de outra maneira, sem revolver, sem arma, com a consciência. (...) Se um político rouba mil conto, ele não rouba só de um não, ele rouba de milhões de brasileiros. Ele não faz só um 155 não, ele faz vários 155. Eu roubei, cometi crimes. Ta errado eu sei, mas eu paguei pelo meu erro, porque eles também não paga os deles? O problema é que os direitos são muito desigual. Eles mesmo fazem a lei deles, eles mesmo modificam e fica tudo certo. Quem tá no poder, não quer que a favela tenha consciência para lutar contra eles. (Neguinho do Rap) Já em liberdade, residindo no bairro Vila Velha em Fortaleza, um acontecimento triste faz nascer um novo rap e novos sonhos. Seu enteado de 14 anos é assassinado com sete tiros no portão da própria casa, provavelmente em decorrência de uma cobrança de dívidas do tráfico. "Quando meu enteado morreu, eu fui lá na escola dele, reuni os pivete lá amigos dele 13,14 15 anos e disse que se eles fossem no mesmo caminho aquilo ia acontecer com eles também" (Neguinho do Rap). Atire a primeira pedra quem nunca errou. Deus é o juiz e o mundo é o professor. Eu também já fui mais novo, afoito, audacioso. Moleque 30 no crime morre antes dos dezoito. E pra quem não sabe mais precisa saber, o crime não é o creme se intere no proceder. Eu vou batalhando refazendo a minha vida. Através do rap encontrei outra saída.(Música Acredite em você de Neguinho do Rap) Depois do assassinato, Neguinho decidiu que iria passar suas vivências para jovens e crianças através de sua arte, o rap. Começou a fazer oficinas de rap, grafite, deejay ainda na comunidade do Vila Velha. Depois foi morar em outro bairro, no Serviluz. Gravou um clip com a canção “Enquanto Rola o Crime” e deu algumas entrevistas para emissoras de televisão, contando sobre as ações que desenvolvia no bairro. Entretanto, não obteve apoio financeiro, e seu projeto continuou parado. Em decorrência da falta de recursos financeiros, o projeto deixou de ser desenvolvido, mas, apesar das dificuldades, Neguinho continua na luta. Enquanto pensa em novos rumos para dar continuidade a seu projeto, ele continua compondo seus raps como forma de lançar suas críticas. Suas músicas falam sobre a realidade da periferia, elencando questões políticas, culturais e sociais e reivindicando os direitos do povo. 1.3 “Precisamos fazer Enxame” Quando se optou pelo Projeto Enxame como campo empírico, decidiuse fazer uma breve pesquisa em artigos, monografias, reportagens e no próprio blog da ONG sobre as ações implementadas. Conhecer, mesmo que superficialmente, o trabalho desenvolvido pela instituição causou grande entusiasmo em prosseguir com a análise investigativa na área da arteeducação. Até esse momento, a informação que se tinha era de que o projeto estava funcionando a todo vapor. Com muita empolgação de mergulhar no campo de pesquisa para dar materialidade ao trabalho acadêmico, logo se entrou em contato por ligação para um dos coordenadores do Enxame e, com isso, agendou-se uma visita. Ao conversar com Paulo Emílio por telefone, ele 31 contou sobre atual situação da instituição; devido à falta de verbas poucas atividades estavam funcionando entre elas a oficinas de Break e um curso de fotografia, o Rolé Fotográfico. Lamentei o número reduzido de atividades, mas eu ainda podia acompanha-las e conhecer melhor a realidade da instituição. Na primeira visita, a impressão imediata foi de estranhamento. Ao chegar ao endereço combinado, Rua do Mirante - sem número, imediatamente se reconheceu a sede, pois já tinha visto algumas fotos da fachada no blog. Ao aproximar-se da entrada a pesquisadora ficou confusa, porque quando olhou o portão adentro, percebeu um aspecto de espaço abandonado, mas mesmo assim resolveu bater palmas para averiguar se havia alguém no local. Chamou e logo foi gentilmente recebida por Valber, coordenador do Projeto. Enquanto aguardávam a chegada dos jovens para dar início à oficina de break, Valber relatou sobre a trajetória e as problemáticas enfrentadas pelo Enxame. Depois de algum tempo de conversa, somente dois alunos haviam comparecido, então a aula foi cancelada e os garotos permaneceram no local e também participaram do diálogo. Terminada a visita, os pensamentos fervilharam, inquietos com várias dúvidas. Em alguns minutos, tudo havia mudado. A situação estava realmente complicada, praticamente só as aulas de break estavam acontecendo e ainda de maneira esporádica, sem horários fixos, o Rolé Fotográfico que iniciou em agosto já tinha terminado o primeiro módulo e o segundo não tinha data prevista para início, tudo que restou foi a esperança transmitida nas palavras de Valber: Não posso dar uma data, mas estamos trabalhando para que antes do final do ano provavelmente em outubro ou novembro agente comece as atividades, estamos aguardando uma verba do edital da Secult, já temos uma parte do material usado para montar o tablado, só que aquele espaço ali é aberto ai agente não sabe como vai fazer por causa da chuva. Mas esse final de semana, sábado vai ter um mutirão de limpeza da sede. Estamos nos organizando com muita força de vontade, porque grana, sabe como é, tá difícil, viu. O Enxame tinha mudado de sede há poucos meses. O novo local se encontrava em fase de organização, os livros e arquivos da antiga biblioteca 32 da ONG ocupavam algumas estantes empoeiradas por trás de um amontoado de cadeiras. O prédio cedido através de uma parceria com o Projeto Ilha Digital precisava de algumas reformas para adaptar o espaço às necessidades das atividades que deveriam ser desenvolvidas. Naquele instante, mesclaram-se na mente da pesquisadora as fotografias vistas nas pesquisas antigas do projeto com a memória de um presente acinzentado, um passado ideal e a realidade. "E agora, José?", o que iria fazer? Como iria pesquisar sobre ressignificação de vivências através da arte-educação no Enxame se as atividades estavam paradas? Foi quando, depois de longas conversas com o orientador e a teimosa insistência em não mudar o campo de pesquisa, surgiu a ideia de fazer um levantamento de arquivos antigos com trabalhos acadêmicos, fotos, reportagens, artigos, gravações de áudio e vídeo, para perceber como acontecia e se realmente existiam resultados com a proposta de ressignificação. Recebeu-se a orientação de entrevistar os coordenadores da instituição e a Idealizadora da ONG, Glória Diógenes, com a qual não se conseguiu entrar em contato, a fim de entender os entraves enfrentados pelo Projeto. Durante 7 meses, de agosto de 2013 a março de 2014, acompanharam-se de maneira flutuante as ações do Enxame e constatou-se, nesse período, um processo de estagnação. Há alguns anos, o Enxame dispunha de uma pequena biblioteca comunitária, oferecia apoio escolar aos jovens e adolescentes, promovia campeonato de dança, festivais de bandas, realizava oficinas de break, artes plásticas, informática, grafite, teatro, rap e outros grupos arte-educativos. Recebiam adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de Prestação de Serviço a Comunidade e Liberdade Assistida. Em 2005, além de marcar o início de uma gestão comunitária, a saída de Glória também acarretou outras alterações para o funcionamento do Enxame. Depois que a Glória saiu, diminuiu a captação de recursos. Assim, os alunos recebiam uma bolsa; com vale transporte e tinha alimentação também, e isso claro né, criava um ambiente ideal 33 para formação dos alunos, querendo ou não muitos ficavam motivados com isso, alguns iam porque tinha merenda. Esse apoio financeiro que ela tinha articulado com o governo acabou. ( Valber) Sidarta Cabral destacou que, realmente, logo que Glória se ausentou, por questões políticas, o projeto ficou momentaneamente fragilizado. As verbas foram reduzidas, entretanto, em pouco tempo, o Enxame retornou com toda força e vivenciou alguns de seus melhores momentos. "O Enxame teve um ápice, teve um época que estávamos com três projetos, ao mesmo tempo. Todos contemplados por editais" (Sidarta Cabral). De acordo com uma matéria publicada no jornal O Povo, em 2011 a instituição atendia mais de 100 crianças, jovens e adolescentes. A notícia que fala sobre uma das mudanças de sede do Enxame e de seus 10 anos de existência, descreve um momento de uma das oficinas de artes plásticas. Chegamos à nova sede no momento da aula sobre artes plásticas. Os mais de 20 pré-adolescentes na sala olham atentamente para um quadro que o professor projeta na tela, contendo uma obra expressionista do norueguês Edvard Munch. “Que sentimento vocês percebem nessa figura do quadro?”, pergunta o professor. E começa o burburinho: “Ele tá com medo!”, diz uma garota. “Ele tá triste!”, diz um menino. O terceiro vai mais longe: “Ele tá chorando por causa de alguma coisa...”. Depois é a vez de um quadro de Cândido Portinari e os pequenos novamente deixam a imaginação fluir. Ali a turma não é ensinada a perceber a arte como algo distante. A meninada esbanja expressividade através de rap, break, grafite, desenho e pintura. (Jornal O povo 26.05.2011) Em uma das conversas com Valber, ele lembrou saudoso e com empolgação o tempo em que o projeto funcionava com toda efervescência. Tinha parceria com várias instituições, por exemplo, o Instituto Ayrton Sena um dos principais apoiadores desde 2001 que promovia a formação continuada para os arte-educadores, o Museu de arte cultura – MUAC, COMDICA e o movimento de sket cearense - Old School. Fez apresentações de um espetáculo com o grupo de teatro e até gravou um CD de rap, que teve a intenção de misturar o hip-hop com temáticas e ritmos regionais, intitulado Carta de Alforria. 34 O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da periferia. Direto do projeto Enxame, quem ta falando é o Mariano, esse é meu nome, sou do Nordeste, Ceará, cabra da peste, já vou levando o meu rap, matar, roubar, é só isso que o sistema me oferece, sou preto, pobre e tenho orgulho disso, o sistema quer me ver comendo lixo, isso nunca vai acontecer comigo. A nossa vida aqui não é muito normal, muita gente para comer, tem que catar jornal, do jeito que tá não dá pra suportar, a polícia de hoje só sabe espancar, eles querem por moral e não sabem como fazer, e acham que a solução que tem é bater, mas cadê o político que tá no poder, será que vai cumprir ou só fez prometer, primeiro tem que mudar nossa segurança, porque o povo da favela já perdeu a esperança, pois os policiais são pior que marginais, e o povo da favela é quem sofre, meu rapaz. O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da periferia. Esse é o cartão-postal da terra do sol, onde um pobre se cobre com papel porque não tem lençol, pra você isso até pode parecer normal, vendo um mendigo dormindo na calçada, enrolado com jornal, ele só faz isso para não morrer de frio, não tá como você alimentado, aquecido, embaixo de um teto bem vestido, pra sobreviver aqui tem que ser forte e ter bastante sorte, porque só é humilhado assim quem é pobre, ser discriminado porque é pobre, preto e favelado, não vou virar notícia, dar esse gosto à polícia, dar ibope às emissoras de televisão, contrariar as estatísticas para ninguém dar risada da periferia, eu sei que a luz no fim do túnel não clareou, apenas apagou, na favela o que domina é a lei de Lúcifer, mas é isso que o sistema quer, não quer me ver de pé, ver eu com fome atirando na madame de chofer... Enquanto o rico por aí tem do bom e do melhor, nós da periferia vivemos na pior, sem ter o que comer, os meus chapas tão roubando pra poder sobreviver, já não aguento mais ver tanta desgraça, e tudo isso aumentando a cada dia que passa, as crianças de hoje em dia não têm mais opção, o futuro dos pivetes é se tornar um ladrão... O playboy te diz que o meu rap não tá com nada eu não tô nem aí pra ele, camarada, porque esse é realmente o meu dilema, lutar pra destruir todo esse sistema, e pra derrubar eu não preciso de revólver, basta eu falar que minha palavra resolva, porque a minha arma é a consciência, eu tenho uma munição que não me leva à violência, tenho o prazer de te falar que eu moro na favela, mesmo que aqui a vida não seja tão bela, os turistas vêm aqui e vão pra Praia de Iracema, mas aqui na favela eu sempre vejo a mesma cena, a polícia espancando meus amigos, meu irmão, isso me revolta, preste um pouco de atenção, eu não sou um homem bomba pra me autodestruir, eu sei qual o caminho que eu tenho que seguir, não preciso de drogas pra população me ver, posso fazer melhor relatando pra você, o que eu passo aqui no meu dia-dia e falar sobre o povo da periferia , não importa quantas vezes eu vou ter que falar, o que importa é que um dia essa porra vai mudar... O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da periferia. Verdes mares... Castelo encantado... Areias... O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da periferia. Morro Santa Terezinha... Caça e pesca... Praia do Futuro... ( Carta de Alforria – Mariano, Lobão, Felipe) Aos poucos, as atividades começaram a ser paralisadas e as parcerias foram canceladas paulatinamente. Em 2011, somente o projeto “Ressignificando Minha Comunidade” foi implementado em parceria com o Fundo Estadual de Cultura - FEC. Segundo Sidarta, esse projeto deveria ter 35 sido renovado em 2012, mas por se tratar de um ano de eleição, e por outras justificativas de fins políticos, o Estado reduziu os gastos e cancelou a verba do FEC, destinada ao Enxame. Com essa surpresa desmotivante, as atividades foram suspensas de repente por falta de recursos financeiros. A sede que, nesse tempo, era localizada no prédio do antigo Mirante teve que ser desocupada. E no início de 2013, através de uma parceria com o Projeto Aldeia Digital, o Enxame ganha um novo endereço. No ano de 2013, o projeto praticamente esteve parado. Somente duas oficinas foram realizadas; fotografia - Rolé Fotográfico e as aulas de break. A primeira atividade citada nem chegou a ser concluída. E no final do mesmo ano, novamente ocorre outra mudança de sede, para o espaço onde hoje é o atual endereço. Desde 2012, uma das maiores dificuldades enfrentadas é a falta de verbas. O Enxame reduziu suas atividades por não ter recursos financeiros. No final 2012 já tínhamos poucas oficinas por falta de recursos(...)Os arte-educadores começaram a ficar no sistema voluntários mesmo. Ai tinham outras obrigações para fazer, outras responsabilidades, tinham família, precisavam trabalhar não dava para ficar direto no Enxame, ai cada um foi cuidar de suas coisas, o próprio Sidarta ta trabalhando hoje em outro lugar, porque tem filho, tem família, não tem como ficar de voluntario não. E te digo uma coisa, quem tá aqui é porque gosta mesmo. (Paulo Emílio) Em uma das visitas ao Enxame, sobre as dificuldades financeiras enfrentadas, Paulo Emílio acrescentou: "Pintamos essa sede nova com uma grana levantada de eventos que participamos e com brodagem mesmo, posso dizer que são os próprios educadores que mantém a casa hoje". Paulo Emílio se referia à sede anterior do Enxame onde se realizou maior parte da pesquisa de campo. Atualmente, a uma das poucas atividades que acontecem na ONG é a oficina de break, pois ela não depende de muitos recursos, no entanto, os encontros são marcados aleatoriamente. Valber, que também é arte-educador de break, destaca a importância de um espaço adequado para as aulas; por 36 exemplo, tablado, sala com espelhos e até mesmo objetos pessoais como um bom tênis para auxiliar a melhorar a desenvoltura dos alunos. Mas diante da dificuldade de conseguir um local e materiais apropriados, ele afirma já ter o essencial, a matéria prima para realizar seu trabalho, que são os by-boys com vontade de permanecerem treinando. A galera do break vem driblando as barreiras encontradas no caminho e desenvolvendo estratégias criativas para facilitar as aulas. Por não terem espelhos na parede que possibilitem observar os próprios movimentos, eles descobriram uma forma alternativa para aperfeiçoar os passos da dança. Decidiram filmar os treinos e depois assistirem juntos para saber o que podem melhorar. "Descobri que é até melhor, pois quando a gente fica olhando no espelho já perdeu vários segundos do movimento", afirmou Paulo Emílio. Por não ter estrutura nem recursos humanos e financeiros para receber novos alunos o trabalho vem sendo desenvolvido com os antigos integrantes. Mauro e DQ que já acompanham a trajetória da ONG durante algum tempo reconhecem a importância do Enxame para Comunidade do Morro Santa Terezinha. DQ disse que depois que começou a frequentar o Enxame e fazer aulas de break, sua vida mudou. Mauro complementou afirmando: "É lamentável né, um projeto massa desse e agente não ter grana para continuar, mas agente tá aqui". O Enxame foi contemplado com o projeto Mapeamento Cultural do Governo do Estado, lançado por edital em 2012 e, há mais de um ano, aguarda o repasse da verba. Sidarta atenta para morosidade e a burocracia do processo. Depois de tanta demora, quando ficamos sabendo que a verba tinha sido liberada procuramos a secretaria do Estado para saber informações sobre o andamento e eles solicitaram atualização dos documentação, pois alegaram que como já tinha passado muito tempo os documentos que tínhamos entre estavam atrasados. Corremos atrás e entregamos tudo. Depois a secretaria mudou de sede, e retornamos lá mais novamente e fomos informados que nossa documentação tinha desaparecido. Como. a mudança eles com certeza perderam nosso processo, mas não, disseram que desapareceu. Então tudo começa do zero de novo. Providenciamos tudo, e quando íamos dar entrada, no novo sistema, agora é um sistema burocrático de cadastramento, ai solicita um atestado de funcionamento (Sidarta Cabral) 37 Quando Valber foi entrevistado, indagou-se sobre o motivo pelo qual depois de tanto tempo essa verba ainda não foi recebida, e ele afirmou: "Falta de vontade política é o que impede que as ações sejam efetivadas." O projeto Mapeamento Cultural tem como proposta transformar o Enxame em um ponto de cultura do Mucuripe. Os planos para o futuro, conta Paulo Emílio, são de transformar a sede da ONG em museu comunitário, resgatando a cultura e a identidade do local, "a gente quer fazer tipo um Mucuripe tour, sabe, um passeio pelo bairro contando a história" (Paulo Emílio). Lamentavelmente as condições objetivas limitam a realização dos sonhos dos enxamistas, mas não apagam seus ideais. "Hoje a água é cortada, não tem lanche, o espaço não é adequado e mesmo sem tudo isso ainda existe. Esse ano sobrevivemos de bico o ano todim. o Enxame deixou de viver para sobreviver." (Valber) Tendo passado por todas experiências enquanto coordenador do Enxame, Sidarta disse que aprendeu que uma ONG não pode depender exclusivamente de editais. Ressaltou que é preciso buscar alternativas, citando o exemplo do Edisca, que presta um serviço na condição de ONG, vendendo seus espetáculos e oferecendo cursos, para gerar uma fonte de renda que mantenha o projeto. Sempre que dá, participamos de eventos, o último foi lá no CUCA, um campeonato de hip-hop, os meninos do break se garantiram, mas por pouco não ganhamos. (...) Agora estamos tentando nossa auto sustentabilidade, não dá pra viver só de edital, estamos aguardando o resultado, não dá para ficar parado. Também tem uma galera que ajuda de vez em quando, o Felipe Rima, que foi exaluno do Enxame e hoje ta fazendo sucesso ai no rap também ajuda o projeto. ( Paulo Emílio) Os planos do Enxame para o futuro, de acordo com a visão dos coordenadores, é potencializar os grupos que já existem, como o break que é a atividade que nunca parou. Criar na sede um espaço cultural. E no âmbito 38 financeiro pensam em buscar a autonomia, fazendo novas parcerias e criando um "grupo de amigos", para formar uma rede de doações e começar a prestar serviços para, como cursos, oficinas e venda de produtos produzidos nas próprias oficinas. Assim a ONG segue na busca de garantir a continuidade do projeto. No início desse ano, já foram organizados mutirões para limpeza e organização da nova sede. Oficinas e outras atividades, como o curso de fotografia, estão previstas para começarem ainda este ano. O Enxame continua a passos lentos, "caminhando devagar" como pontuou Valber. Mas apesar de deparar-se com entraves como o desinteresse político, falta de incentivo do governo na esfera cultural e a burocracia da máquina estatal, os coordenadores do projeto não perderam a esperança. Continuam lutando para que ele retorne a funcionar com todo vigor, pois acreditam verdadeiramente na importância do Enxame para os jovens da comunidade. 1.4 Solta o som, Neguinho! Quando decidi que também iria pesquisar sobre as ações independentes de Neguinho do Rap, entrou-se em contato com ele e informou-se, para surpresa da pesquisadora, que seu projeto não estava mais funcionando. O motivo era o mesmo do Enxame: falta de recursos financeiros. Depois que saiu do presídio, Neguinho gravou dois Cds e um clipe. Em 2012 decidiu implementar uma ação independente. Ele iniciou oficinas de rap, djay, grafite e break no bairro Vila Velha. As atividades tinham objetivo de ocupar o tempo ocioso das crianças e jovens da comunidade. Assuntos como violência, uso de drogas, criminalidade e família eram discutidos nas aulas, pois se aproximavam do cotidiano dos alunos, despertando o interesse deles no tema abordado. Assim Neguinho propunha utilizar a arte como instrumento que propiciasse uma reflexão da realidade. Ele afirma que é uma experiência 39 viva de como a arte, no caso dele, o rap, pode mudar a vida de alguém. "Agradeço ao movimento rap, conheci dentro do sistema penitenciário, foram 10 anos dentro do sistema; se eu tivesse conhecido antes, talvez fosse diferente" (Neguinho do Rap). As atividades aconteciam em uma área parecida com um galpão, que ficava ao lado da casa onde Neguinho morava. Os gastos das oficinas eram custeados pelo próprio Neguinho. Ele mesmo comprava o material usado nas aulas. Por exemplo, sempre que tinha aulas de deejay quebrava uma agulha do equipamento de som o que acontece corriqueiramente em decorrência do manuseio do material e, cada agulha custava 50, 60 reais. Por isso, Neguinho lamenta: "Eu não tenho mais condições de fazer o meu trabalho". A renda para manter o projeto vinha de um pequeno mercantil que ele tinha, mas depois de algum tempo o comércio começou a ter prejuízos por conta do dinheiro utilizado para suas ações independentes. E no mesmo ano, por consequência a falta verbas o projeto deixou de ser desenvolvido. Em 2013, já residindo no Serviluz, Neguinho tentou iniciar as oficinas que realizou no Vila Velha. Ele e outros amigos encaminharam para Seculfor um projeto que consistia na realização de oficinas de hip-hop e outras atividades, mas não obteve retorno. Por motivos pessoais, durante esse ano de 2014, Neguinho não pode se dedicar com maior atenção a seus planos de retomar com as oficinas, mas mencionou que está esperançoso, que ainda este ano, tenha alguma posição sobre a retomada de seu projeto com o hiphop, pois tendo em vista que estamos em ano eleitoral e ele conta com alguns apoios políticos, é provável que ele consiga verbas para recomeçar. "Infelizmente as coisas só funcionam assim né, quem podia fazer, não faz." (Neguinho do Rap) Atualmente, Neguinho trabalha vendendo ovos pelas ruas da cidade com o auxílio de um carro de som. E para divulgar seu produto gravou o "Rap do ovo". 40 Aproveita a promoção. Olha o ovo, ovo novinho da hora. Este é o ovo da Avine. Aproveita a promoção. Pode vir você senhora, pode vir as criança, pode vir meu patrão senhor cidadão da residência(...) ovo qualidade é aqui ó, no carro do ovo. (...) As cinco da manhã eu já levanto, agradeço a Deus correria vou pro tampo. Ainda é cedo eu faço um cafezinho frito quatro ovos e boto em dois pãezinhos. Agora sim, com mais disposição, grito e vendo ovo pra população. Driblando o desinteresse das grandes gravadoras comerciais, ele grava seus raps em um estúdio localizado na própria comunidade, Erivam Produto do Morro. Neguinho busca alternativas para não deixar seus sonhos de lado. E afirma que, mesmo com todas as dificuldades, continuará buscando alternativas para levar sua mensagem aos jovens da periferia. 41 CAPÍTULO 2 - JUVENTUDE E ESTADO 2.1. "A 'Juventude' é apenas uma Palavra"? "A juventude é um fenômeno essencialmente histórico. Ela muda de lugar, de cor, de tamanho, de idade, de humor, de roupa, de linguagem. A ponto de podermos dizer que ela não existe, a não ser quando é inventada." Laissance Neste tópico propõe-se uma reflexão sobre o conceito de juventude enquanto categorial social construída historicamente, investigando-a a partir de uma análise sociológica. Decidiu-se apresentar essa discussão porque esse é, sobretudo, o segmento populacional alvo das ações desenvolvidas nos dois projetos em que se debruçou o olhar investigativo. Nesse sentido, se julga imprescindível pensar sobre o espaço ocupado por essa categoria em nossa organização societária. Embora a discussão sobre essa temática tenha ganhado ênfase nos últimos séculos, a ideia de juventude já faz parte da história da humanidade desde a Grécia Antiga. Na mitologia grega, Hebe, conhecida pelos romanos como Juvena, era a deusa da imortalidade e da juventude eterna. Em passagens do livro “A República”, de Platão, escrito estimadamente em 400 a.C, Sócrates, ao discutir sobre a educação para um Estado ideal, já descrevia a juventude como um período de formação, uma transição entre criança e adulto. "De fato, é mormente nessa idade que a pessoa se deixa amoldar e definir o caráter de acordo com o que se almeja" ( Sócrates, 2007: 77), Em outras passagens do mesmo livro, denotam-se aspectos culturais da sociedade da época, por exemplo, a idade apta para assumir o governo. Em um diálogo com Glauco, Sócrates afirma: Claro está que os governantes devem ser velhos e os súditos, jovens (...) 119 Aos mais velhos, seria concedida a faculdade de comandar e mesmo punir os mais jovens(...) Evidentemente um jovem não se atreveria, sem autorização, a agredir ou ferir pessoas 42 mais velhas, nem mesmo se arriscaria a ofende-la de outra maneira, por quanto para detê-lo bastariam duas barreiras: o temor e o respeito. O respeito devido aos pais o impediria de tocar em alguém e o temor o faria recear que os demais viessem em socorro do ofendido, fosse eles irmãos ou pais. (2007:119-184) Na Idade Média, a figura do jovem ou as qualidades da juventude estavam associadas a braveza dos grandes guerreiros e heróis épicos que se fixaram em nosso imaginário, por exemplo, Hobin Hood, Lancelot, Dartanham entre outros. Não menos importante destacar que praticamente os únicos jovens em que se falam nesse período são os do sexo masculino, sobretudo os da nobreza e do clero, neste último vale ressaltar nomes como São Tomáz de Aquino e Giordano Bruno. Entretanto, as personagens femininas também compunham o cenário medieval com bravura e destreza como é o caso da heroína francesa Joana Darc (janeiro de 1412- maio de 1431), condenada por heresia e morta aos 18 anos após liderar a batalha conhecida como Siège d'Orléans. Em algumas sociedades, não existe a concepção de juventude, pois a passagem da infância para vida adulta é feita através de momentos ritualísticos, desconsiderando um período de transição entre as duas fases. Um exemplo disso é a festa da moça nova da tribo Tukuna da região da Amazônia. Quando as meninas menstruam, pela primeira vez, são isoladas por aproximadamente dois meses em suas casas (ocas), tendo contato somente com seus vigilantes. Durante esse período, acredita-se que a menina está sendo protegida de ataque de possíveis demônios. Depois da reclusão, a "moça-nova" é recebida com comemoração e ritos festivos, e a tribo acredita que ela está pronta para assumir a idade adulta. Essa breve abordagem sobre a disposição da juventude em determinados períodos da civilização humana tem o intuito de contextualizar os questionamentos centrais desse tópico: Afinal o que é juventude? Podemos conceituar a juventude como uma categoria homogênea? A juventude sempre foi abordada como categoria relevante na construção social dos espaços públicos? contemporaneidade? Como percebemos a juventude na 43 Nos parágrafos anteriores, foram apresentados elementos que denotam o caráter mutável do conceito de juventude. Portanto, percebemos que ela é uma construção histórica, muda de uma sociedade para outra, chegando a tornar-se inexistente em determinadas organizações societárias, como é o caso das culturas tribais. A juventude constituída socialmente nos tempos modernos é compreendida como uma fase da vida permeada por intensas mudanças e pela efervescência das descobertas, sobretudo no período da adolescência. Ela "é caracterizada como o tempo ou período do ciclo da vida no qual os indivíduos atravessam da infância para a vida adulta e produzem significativas transformações biológicas, psicológicas, sociais e culturais" (UNESCO, 2006). O Estatuto da Juventude, Art.1 parágrafo 2, considera jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Este recorte por idade é muito utilizado com o conceito juvenil para subsidiar estudos demográficos, estatísticos e até mesmo para delimitar o público-alvo das políticas públicas, espaço que está crescendo na modernidde em prol das conquista de direitos dessa categorial social emergente. Entretanto, a demarcação cronológica é insuficiente para contemplar os aspectos que caracterizam o estado juvenil, portanto, não se pode definir o que é juventude unicamente pela idade biológica. Partindo desse princípio, pergunta-se: quando entramos oficialmente na juventude ou quando não mais nos enquadramos nessa categoria social? O que distancia um jovem de 25 anos do status de adulto? Cabe aqui transcender a discussão sobre juventude para além dos limites conceituais, que não dão conta do movimento dinâmico e dos processos de socialização do homem, e compreendê-la a partir de um olhar macroscópico que a analise a complexidade da vida contemporânea. Várias ciências, como antropologia, sociologia e a psicologia, debruçam-se na contemporaneidade a explicar esse fenômeno. Os discursos académicos centrados na juventude não são recentes. Existe um sólido património de estudos dedicados a este grupo etário, fortemente dependentes dos paradigmas científicos do 44 momento, dos discursos sociais e das representações culturais construídas acerca desta enigmática fase de vida, que se metamorfoseia aceleradamente ao sabor das mutações sociais, culturais e económicas que atravessamos. (Campos, 2007: 93) Na área das ciências sociais, destacam-se como aporte teórico da sociologia os estudos de Pierre Bourdieu (2003). Segundo Ricardo Campos (2007), o sociólogo francês se enquadra na corrente classista5, ou seja, analisa a disposição da juventude mediante a formação do indivíduo, que é moldada pela sua condição societária e, consequentemente, pelos valores, hábitos e interesses da classe social em que faz parte. Bourdieu (2003) afirma que a juventude não é um dado, ou seja, algo estático e pontual, mas sim uma categoria construída socialmente. É um tipo de classificação etária que se estabeleceu em nossa sociedade, como outros tipos classificações; gênero, classe etc., que rotulam determinados padrões de comportamento sendo objetos de manipulação. E, para entender sua formação, é necessário compreender as leis que regem o campo em que o sujeito está inserido. Sobre isso ele menciona: Quando passamos dos intelectuais para os diretores executivos, tudo aquilo que aparenta juventude, cabelos longos, calças jeans, etc., desaparece. Cada campo, como mostrei a propósito da moda ou da produção artística e literária possui suas leis específicas(...) para saber como se recortam as gerações é preciso conhecer as leis específicas do funcionamento do campo, os objetos de luta e as divisões operadas por esta luta( "nouvelle vague", "novo romance", "novos filósofos", "novos juízes", etc.) Isto é muito banal, mas mostra que a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável; e que o fato dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já constitui uma manipulação evidente. Seria preciso pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes, ou, para encurtar, entre as duas juventudes.( BOURDIEU, 2003:153) Nesse sentido, o autor traz a questão central de sua teoria dialogando com a concepção de juventude. A divisão de classes permeia toda dinâmica societária e obviamente coexiste nas culturas juvenis, de um lado os jovens 5 Ao associar a corrente classista a teoria de Bourdieu, Ricardo Campos cita como exemplo dessa abordagem a obra Les heritiers, de Bourdieu e Passeron (1964), dedicada a explorar os processos de reprodução social que se manifestam nos jovens, nos seus hábitos e padrões de consumo cultural. 45 trabalhadores, de outro os jovens burgueses. Ambos assumem funções distintas. Enquanto o primeiro desempenha atividades que se aproximam dos papeis da vida adulta como dividir responsabilidades domesticas e conseguir um emprego para garantir sua subsistência, o segundo grupo ocupa-se de outras atribuições, marcando o prolongamento do estado juvenil caracterizado no mundo contemporâneo pela ampliação do período escolar destinado a atender as demandas do mercado do trabalho. Assim, cada um tem seu contexto moldurado pelas coerções econômicas, sociais e culturais do meio. Machado Pais (1990) chama atenção para o erro cometido por alguns autores da vertente sociológica classista que tendem a abordar a questão da juventude, subordinando-a às relações de classe. Para ele, esse furor determinista que compreende as culturas juvenis unicamente por meio das disputas de poder e interesses econômicos é um viés equivocado e uma maneira de como não se deve ser empregado o conceito de classe. (...) não é certo que entre jovens pertencentes a uma mesma classe social se verifique, indiscutivelmente, uma hegemoneidade cultural ou de modos de vida (...) Como Tompsosn sugere,contra alguns marxistas equivocados que tentam descobrir as classes como realidades, perceptíveis, reificadas, a noção de classe implica a noção de relações historicamente construídas: as classes não existem inertes, como coisas em si – existem em relação com outras classes.( MACHADO PAIS, 1990 159) Assim, como defende Boudieu (1983), Machado Pais (1990) e Ricardo Campos (2007), entre outros autores que analisam o tema, seria um equívoco referir-se à ideia de juventude, percebendo-a como uma unidade, pois ela tem caráter heterogêneo desprovido de uma ideia comum e universal. No entanto, faz-se importante destacar a coalescência de valores similares entre jovens de condições sociais antagônicas, ao mesmo tempo em que as disparidades não se restringem apenas entre classes divergentes, mas também estão implícitas no mesmo segmento social, distinguindo-se em várias nuances. Percebi esse paralelo em minhas vivências de campo ao observar o comportamento de diversos grupos juvenis durante o 2º Encontro Cultural em prol da Revitalização do Mirante que ocorreu no Morro Santa Teresinha. 46 A maioria compõe grupos diferentes dos que habitualmente frequentam o Mirante, porém, semelhantes entre si. Hoje, os meninos de boné que não encaixam na cabeça, cordões de prata e roupas de marcaras não caminham na companhia das "cumadis" (termo usado por alguns jovens da periferia para referirem-se às garotas), o que é muito normal em dias comuns; a presença de jovens casais a contemplarem a vista do Mirante. Parte da galera que ocupa as arquibancadas espera freneticamente com gritos uma banda local de roque, Old Shape, que irá se apresentar no anfiteatro. Meu olhar paira entre cabeleiras coloridas; vermelhos intensos, azul e rosa. O ton preto que toma conta do lugar ganha destaque isolado em uma camiseta branca grafando a palavra Ramones. Um grupo (mesclava-se de meninos e meninas entre aproximadamente 15 e 20 anos) perto de mim, bebia e conversava em vozes altas sobre uma festa que tinha acontecido no dia anterior e, sobre os efeitos causados por algumas drogas que haviam utilizado. Um menino menciona aos risos que seu amigo ficou "muito doido ontem depois de uma carrerinha", referindo-se ao uso de pó(cocaína). Enquanto isso, outro grupo de jovens inicia apresentações circenses de malabarismo com bolinhas, claves e monociclos. Esse grupo (C.I.M. Companhia Itinerante de Malabares) é composto em sua maioria por jovens artistas da classe média e por artistas de rua que optaram por viver uma cultura alternativa. Eles se uniram por uma ideologia comum: A arte do circo. Os meninos da organização do evento apresentam programação do encontro cultural, explicando os motivos que os impulsionaram a realiza-lo e a importância dele para chamar atenção para as problemáticas locais. Enquanto os observo imagino... eles são meu passado, meu presente... quanto deles existe em mim, em meus pais e até mesmo em meus jovens avós! Como disse Bourdieu,"somos sempre o jovem ou o velho de alguém" (Diário de campo 12 dezembro) "Uma abordagem dessa natureza permite identificar não uma única juventude, mas juventudes, no plural, além de possibilitar uma discussão a respeito das representações sociais (...) dos jovens nesses tempos". (UNESCO; 2006) Para entender as diversas culturas juvenis, faz-se também preciso compreender a maneira como elas constroem suas identidades e se afirmam como sujeitos. É perceber suas figurações simbólicas, códigos e hábitos sem desconsiderar que suas condições objetivas são orquestradas pela lógica societária vigente e reafirmadas através de instituições como Estado, família e escola que atuam como mecanismos de produção e reprodução. Até aqui foi apresentado o conceito juvenil como um elemento variável que embora tenha características similares, denotando uma ilusória homogeneidade, o que é o caso da idade biológica, se configura em um universo de diversidades. Por isso, nessa analogia, foi retomada a discussão 47 realizada por autores que apresentam a juventude enquanto construção sociológica capaz de assumir várias configurações, compreendendo-a como uma criação sociocultural, um conceito historicamente determinado, um fenômeno da modernidade multável e multifacetado, impróprio de definições generalistas. Diante o exposto, pode-se mencionar que os "paradoxos da juventude", segundo denomina Machado Pais (op. cit.), são mais um desdobramento da sociedade contemporânea, uma categoria inventada que se tornou elemento de manipulações, suscetível às transformações aceleradas e as relações fluidas do mundo pós-moderno e, que, no entanto, tem um espaço próprio em nossa sociedade. Cabe salientar que as concepções aqui abordadas apenas apontam para alguns direcionamentos sobre a maneira de olhar e compreender a juventude, pois esse é um debate que ainda está em plena efervescência. 2.2. Juventude e Estado: Políticas Públicas de Juventude e novas maneiras de fazer política Para entender a relação entre juventude e Estado, é preciso compreender a conjuntura e a dinâmica de nossa sociedade. Como já foi abordado, a juventude enquanto categoria social é uma construção recente, própria da modernidade e vem ganhando ênfase nas últimas décadas nas discussões dos espaços públicos, apresentando-se como uma realidade sociocultural e política de nossa época. De acordo como dados do IBGE, a população juvenil tem demonstrado uma desaceleração do índice de crescimento desde década de 1970 em comparação com anos anteriores. Essa mudança demográfica resultou no envelhecimento da população em decorrência de fatores históricos e sociais como o declínio dos níveis de mortalidade depois do fim da Segunda Guerra 48 Mundial e a queda das taxas de fecundidade após a introdução no país da pílula anticoncepcional e de outros métodos contraceptivos. A pirâmide etária brasileira tem denotado aspectos de uma nação jovem que está envelhecendo. Atualmente o Brasil tem uma população com mais de 50 milhões de jovens, o que corresponde a um quarto da população total. Esses jovens fazem parte de uma camada populacional que cresceu estatisticamente nos últimos anos, a população economicamente ativa, pessoas de 15 a 64 anos. Ainda a juventude se insere na cena contemporânea como um segmento da questão social e "aparece em destaque em estatísticas de violência, desemprego, gravidez indesejada, falta de acesso a atividades culturais" (Juventudes – UNESCO 2000) situação de drogadição e delinquência. Imersa nesse cenário, a faixa etária entre 15 e 29 anos começa a ganhar destaque nos debates das políticas públicas, apresentando-se como parcela populacional de demandas específicas. A juventude começa a ser percebida como a geração do futuro, ou seja, "fazendo parte do processo através do qual a sociedade prepara os indivíduos para o mundo adulto". (CAMPOS, 2000, p.95). Assim ela assume uma representação variável em nossa conjuntura societária. Hora alvo de manipulações no campo das disputas de poder entre interesses de classe, econômicos e políticos; hora percebida como segmento populacional capaz de perpetuar uma nova cultura ideológica e política. Nos últimos anos, estudos e pesquisas destinaram-se a analisar essa temática-alvo de debates recorrente e, em 2005, as demandas juvenis ganham destaque no âmbito político com a criação da Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve). Nessa perspectiva, a implementação da Política Nacional de Juventude (PNJ) é considerada como um marco na agenda das políticas públicas da categoria. E, em 2 de fevereiro deste ano, entrou em vigor o Estatuto da Juventude (Lei 12.852. 2013) que, segundo a secretária nacional da Juventude, Severine Macedo, "é um imenso legado para o Brasil ao dispor sobre os direitos dos jovens, sobre as diretrizes das políticas públicas" (Estatuto da Juventude). 49 Para a secretária, "o que faz o Estatuto é detalhar dentro das garantias já previstas pela constituição, quais são as especificidades da juventude que precisam ser afirmadas" (http://www.juventude.gov.br/estatuto. Acessado em 19.02. 2014). Esse conjunto de ações do Governo Federal tem o objetivo de inserir os jovens nos debates das pautas nacionais e buscar soluções para as problemáticas juvenis como exclusão social, pobreza, desemprego e violência, desenvolvendo programas e projetos específicos para esse público, fomentando a participação social. Nesse cenário em que as políticas públicas voltadas aos jovens ganham ênfase, vale levantar as seguintes reflexões: Quais as principais dificuldades para implementação dessas políticas? Por que existem tantas ações voltadas para juventude, mas muitas têm resultados ineficazes? Quais os entraves enfrentados por essas intervenções? Segundo Pais (2005), existe uma lacuna entre as "boas políticas no papel" e sua efetivação, ou seja, o velho bordão: "na prática, a teoria é outra" (PAIS: 54). Isso ocorre provavelmente em decorrência dessas ações ignorarem a importância dos contextos em sua implementação e desconsiderar a dinâmica da realidade que desenha novas trajetórias. Essas propostas de intervenção podem ter respostas equivocadas se não estiverem ancoradas em estudos aprofundados da realidade. Nesse sentido, o autor pontua a necessidade das políticas terem sempre referência o "chão que elas pisam" (op. cit.). Para Mary Castro (2007), um dos grandes problemas das políticas públicas para juventude é a falta de avaliação e de acompanhamento sistemático. Outro principal desafio, porém, no âmbito de elaboração, é não pensar nessa categoria como uma mera fase de transição para vida adulta sem percebê-la apenas como um segmento mais amplo alvo das políticas de estado, negligenciando devida relevância às suas singularidades (UNESCO; 2006). Um aspecto que também deve ser percebido como relevante é o caráter conservador da maioria das políticas públicas. Geralmente elas são direcionadas ao âmbito educacional e de empregabilidade visando promover a inserção dos jovens na educação formal, cursos técnicos e 50 profissionalizantes, preparando-os para atuação no mercado de trabalho no intuito de manter a normalização da ordem societária vigente. Não destinam preocupação com a realidade e o contexto de cada indivíduo, mas sim para moldá-los aos padrões sociais, “educação para o trabalho; trabalho para a consecução de uma cidadania normalizada; cidadania como categoria estável de direitos e obrigações” (REGUILLO, 2004: 50 in MACHADO PAIS: 65). Em contrapartida, o relatório da UNESCO (2012) aponta para a importância de uma formação técnica e profissional, destacando que muitos jovens não recebem a qualificação adequada, em decorrência da desigualdade de acesso a educação. Por isso, frisa a necessidade de ofertar uma vasta gama de possibilidades para que eles aprimorem suas perspectivas de emprego. Reconhecendo que os jovens que não tiveram acesso a tais oportunidades terão maior probabilidade a ocupar cargos mal remunerados. Assim o documento defende que, se os jovens tiverem uma preparação técnica e profissional de qualidade, se tornarão a força motriz para o desenvolvimento do país. Levantaram-se pontos que indicam alguns motivos que podem causar estranhamento, falta de identificação e participação da juventude com as ações destinadas a ela. Assim, tem-se a necessidade de pensar políticas públicas juntamente com a participação ativa desses atores sociais, compreendendo-os como sujeitos autônomos, capazes de levantar suas questões e propor suas próprias soluções. Também é preciso conhecer as representações sociais e motivações desses sujeitos, distanciando-se dos conceitos estabelecidos por uma visão adultizada e conservadora da sociedade que não permite transcender suas percepções, limitando a dinâmica de conceitos e valores as barreiras geracionais (PAIS, op. cit.). Mary Castro (2007), ao mencionar colocações do CONJUVE, frisa sobre a importância das politicas públicas de fomentar a participação incentivando a "formação de um capital social-cultural para exercício de uma cidadania ativa" (MARY CASTRO, 2007: 116) capaz de construir um capital político que dê chão a tal participação. 51 Nesse ímpeto, cabe destacar que diversos grupos e organizações de variados segmentos juvenis buscam formas inovadora de se inserirem na esfera social. Ultrapassam o ativismo formal e contribuem com suas intervenções no intuito de mudar a realidade, dando novos contornos aos debates políticos na luta pela garantia de direitos. Nos últimos 15 anos, os chamados grupos culturais de jovens urbanos têm encontrado formas inovadoras para incidir no espaço público. Por meio de ritmos, gestos, rituais e palavras, estes grupos culturais instituem sentidos, negociam significados e combatem a segregação e o preconceito. Por intermédio de seus textos literários, de suas letras de rap, de suas apresentações de teatro e dança e de suas programações radiofônicas ou atividades esportivas, contribuem para a ampliação do espaço público (Juventude e Políticas Sociais no Brasil; 2010:17). Vários grupos encontram na dança, na música, nas artes visuais e em outras maneiras de manifestações culturais modo de participar das lutas políticas direta ou indiretamente, expressando suas realidades, denunciando as injustiças sociais, o descaso e a omissão do Estado (FREITAS, 2003). Assim, apresentam suas problemáticas e levantam suas pautas. Esse aspecto reivindicatório e político é facilmente notável nas letras das músicas do Neguinho do Rap e em outras composições de raps. Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.' Aí passado alguns anos eu pensei: como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses, por tudo. Que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz. (Música, A Vida é um Desafio - Racionais M'cs) O Enxame, durante muito tempo, atuou ativamente na esfera cultural realizando estratégias arte-educativas no intuito de produzir, ampliar e ressignificar os códigos juvenis da periferia, no intuito de possibilitar formas alternativas de inserção social. "O Enxame é apontado pelos seus integrantes como a voz da juventude no Morro. É uma voz que apresenta outros signos 52 juvenis" (FREITAS, 2003: 104), possibilitando novas vivências e representações sociais. Em minhas pesquisas de campo, também percebi esse caráter compilar-se nos Encontro Cultural do Mucuripe, evento idealizado e organizado por jovens da comunidade. Os encontros que iniciaram em novembro do ano passado contam com apresentações artísticas de dança, música, teatro, etc. com a proposta de ocorrer mensalmente e com o objetivo de chamar atenção para realidade local; a necessidade da conclusão das obras da Praça do Mirante iniciadas há mais de dois anos no intuito de revitalizar o Mirante como ponto cultural, incentivando a reocupação do espaço por parte da população local. Nessa perspectiva, a esfera cultural aparece como terreno fértil que possibilita novas representações do cotidiano. Isso faz pensar na importância de incentivar ações como essas que também dão concretude ao discurso de participação juvenil que se solidificam em atos de cidadania e políticos em prol da luta pela garantia de direitos. No entanto, a instrumentalidade tradicional dos equipamentos políticos parece ignorar essas iniciativas propagando a participação juvenil como uma "problemática", talvez para reafirmar a colocação simplista que jovem não gosta de política6. Para dar materialidade a tal afirmativa, cabe considerar que existe uma forte tendência entre os jovens de descontentamento com as instituições políticas formais, o que os levam a optar por maneiras alternativas de fazer política e não o desinteresse em política. Num documento publicado recentemente pelo Conselho da Europa sobre a participação política dos jovens europeus (Lauritzen, Forbrig e Hoskins, 2004), o retrato que nos é dado é o de uma juventude desencantada com as instituições e os modos tradicionais de participação política. A confiança nas instituições políticas está em decréscimo, o que se reflete num significativo abstencionismo eleitoral (Galland e Roudet, 2001). No Brasil, como em Portugal, o panorama não é diferente. Num recente inquérito abrangendo cerca de nove milhões de jovens brasileiros, dos 15 aos 24 anos, apenas 10% mostrava interesse pela política (Dayrell e Carrano, 2002). 6 Uma pesquisa da UNESCO apura um dado curioso; 63 dos jovens entrevistados acham que a juventude não de hoje não se importam com política. 53 Para estes jovens, o poder careta procura enquadrá-los no regime dominado pelos caretas, não por acaso também designados de “quadrados”. Em contrapartida, os jovens sugerem ser por estes vistos como “desenquadrados”, “desalinhados”, “marginais”, termos que apontam para uma exclusão que muitos jovens transformam em oportunidade para reafirmarem, exacerbadamente, suas identidades. (PAIS, op. cit.: 54) O descrédito no atual sistema político propicia espaço para movimentos que buscam novas maneiras de governabilidade, sobretudo aquelas baseadas na participação popular. Partindo dessa compreensão, não podemos ignorar as diversas formas de inserção social e de atuação política de uma juventude que emerge como categoria social e apresenta modos criativos de mobilização, rompendo com os padrões estabelecidos e apresentando ideias novas capazes de oxigenar ou renovar nossa organização societária. Por isso, Machado Pais (op. cit.) destaca a necessidade de compreender as manifestações das diferentes culturas juvenis considerando a construção de suas identidades e expressões simbólicas e levanta a seguinte reflexão: "Desenhar políticas de juventude é desenhar mapas de futuro. Mas não valeria a pena desenhá-los se não houvesse viajantes para os percorrer. Que sentido podem os jovens dar à política se se sentem fora dela?" (MACHADO PAIS, op. cit., p.66). Nesse sentido, a juventude percorre seus cominhos. Enquanto alguns defendem e acreditam nos modelos formais de luta e atuação política, outros buscam formas alternativas de se inserirem na esfera social, ou pactuam das duas vertentes. Não cabe aqui opinar os trilhos a serem seguidos, mas apresentar as formas possíveis de atuação da juventude, sobretudo, destacar o espaço de participação coletiva, ocupado por grupos juvenis que se encontram à margem do sistema e das instituições tradicionais do Estado normativo. 54 CAPÍTULO 3 - JUVENTUDE, CULTURA, ARTE E EDUCAÇÃO: NEXOS CATEGÓRICOS 3.1. A interpretação das Culturas como ponto de partida Para entender a realidade dos atores aqui estudados, serão utilizados aportes teóricos da antropologia que caminham no sentido de compreender as múltiplas dimensões do ser social sem segmentar sua existência, considerando suas diversidades. Assim, será relacionada a dinâmica social com os conceitos de cultura, para elucidar as manifestações desses sujeitos. Ao dissertar sobre a realidade humana, Roberto da Matta (1981) aborda a relação entre duas categorias; social e cultural, elencando suas semelhanças e diferenças, considerando-as como fundantes da condição humana. A primeira categoria consiste em um sistema de ações ordenadas de indivíduos que atuam coletivamente. A segunda refere-se aos valores, ideologias, tradições, regras e costumes. Essas duas esferas sociais constroem-se mutualmente formando a realidade que nos cerca. Assim, em cada grupo social, existe um conjunto de normas e condutas passíveis a modificações seguindo a dinâmica da realidade. Ao mesmo tempo em que os valores culturais modificam-se, consequentemente a forma de organização societária também mudam. Partindo dessa percepção, serão apresentadas algumas definições sobre cultura. Primeiramente vale salientar que os conceitos aqui expostos divergem do sentido atribuído ao senso comum. Provavelmente já se ouviu expressões do tipo: "Mário não tem cultura" ou "Maria é muito culta", essas colocações estão relacionadas nas falas cotidianas com a quantidade de informações e conhecimentos adquiridos, por exemplo, se uma pessoa leu poucos livros, não teve acesso à educação formal ou não tem conhecimento em determinado assunto, se diz popularmente que ela não tem cultura. Esse significado da palavra cultura é empregado muitas vezes de modo polarizado, 55 inclusive como ferramenta discriminatória, para menosprezar, diminuir ou classificar pessoas e grupos sociais (Roberto da Matta). O conceito aqui utilizado provém de uma abordagem que entende a cultura como uma categoria de suma importância para compreensão da vida social. É através desse conceito que se busca interpretar os códigos sociais e a maneira de viver de determinada sociedade, analisando a forma como os indivíduos constroem seu espaço, modificam o mundo e a si mesmos. Nesse sentido, a cultura está relacionada ao conjunto de normas sociais e aos modos de comportamentos de um povo. Não como algo inerte e de livre escolha, mas como algo que de modo geral nós é imposto e que também pode ser alterado, "está dentro e fora de cada um de nós" na relação entre sociedade e indivíduo7 (Roberto da Matta). O conceito de cultura defendido por Clifford Geertz (2008) parte de uma abordagem semiótica, ou seja, analisa os sistemas de signos em variados campos, arte, religião, política, educação etc. Estuda os fenômenos culturais através de uma análise interpretativa de seus significados, "acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu" (GEERTZ, 2008: 04). O autor também lança a percepção de cultura como um mecanismos de controle, em outras palavras, um conjunto de normas, instruções e leis em que o homem é absolutamente dependente e que governam o comportamento do ser social. Nesse ponto evidencia-se o caráter público da cultura, constituído por estruturas de significados socialmente estabelecidos que não devem ser observados, descolados de seus contextos Ao investigar sobre a relação entre cultura e violência a partir das vivências de jovens da periferia de Fortaleza, Glória Diógenes em seu estudo sobre gangues, galeras e movimento hip-hop, relata a respeito das 7 Para exemplificar essa discussão, retomo a uma reflexão apresentada no capitulo 2. Bourdieu defende que a juventude é uma construção histórica construída socialmente. Nessa perspectiva, ela é sobretudo, uma categoria culturalmente constituída. Assume variados conceitos de acordo com os períodos históricos e, seguindo a dinâmica cultural, metamorfoseia-se ao longo dos tempos ao sabor das transformações sociais. 56 representações simbólicas usadas por esses grupos. A juventude, em sua disposição contemporânea se subdivide em uma diversidade de culturas juvenis. Esses grupos juvenis são caracterizados por uma variedade cultural, eles se separam e se aproximam entre si na medida em que divergem ou partilham dos variados signos; conjunto de vocabulário, comportamento, gosto musical e maneira de se vestir etc., e com esse viés, aparecem carregados de significantes. O estilo utilizado pelos componentes das "galeras" de periferia tem o "boné" – Segundo um integrante da gangue do Castelo Encantado – como documento, como código de comunicação visual apenas perceptível aos enturmados. (...) Os estilos são signos de comunicação visual, um modo de apresentação que opera um refluxo da linguagem para dar passagem a sinais inscritos nos corpos, coreografados nas gestualidades. ( Diógenes, 2008:28) No Enxame, os meninos do break partilham de linguagens e signos comuns. Nas apresentações, o estilo dos jovens trazem marcas que identificam o movimento hip-hop; a batida da música que embala a dança, as expressões corporais acentuadas como forma de comunicação e as vestimentas; tênis, bonés, gorros, camisas grafitadas, calças ou shorts largos. No decorrer da pesquisa, a pesquisadora foi se familiarizando com alguns dos códigos de linguagem. Não entendia por que a maioria deles tinha um nome estranho, que, com certeza, não correspondia aos nomes de registro, como bboy DQ. Então, Valber explicou-a que os dançarinos eram chamados de bboys e as meninas de b-gyrl, e, com o passar do tempo, cada b-boy pode ganhar um apelido de acordo com sua personalidade. Para os garotos, o apelido pode simbolizar uma sensação de pertencer ao grupo, a partir do momento em que suas características são reconhecidas. Neguinho do Rap gravou um clip com a música "Enquanto rola o crime". Nesse clip, em alguns momentos, notou-se que os códigos visuais que demarcam o hip-hop se aproximam sutilmente ao modelo norte-americano8; alguns b-boys e o Mc aparecem usando indumentárias como blusões, casacos e grandes cordões de prata. Em contraponto, o cenário do vídeo 8 Vale salientar que a comparação feita do clipe com aproximação do estilo norte-americano evidenciado por alguns códigos visuais de vestimentas dos participantes, é uma pontuação subjetiva de minha análise, pois talvez essa relação não tenha intuito proposital, mas meramente influenciada pela reprodução inconsciente de outros símbolos culturais . 57 comunidade do Serviluz - evidencia as marcas de territorialidade, apresentando o contexto dos bairros de periferia; crianças sozinhas na rua, vielas sem pavimentação e barracos, dimensão que não pode ser dissociada de uma análise cultural dos significantes. Segundo Bourdieu (1996), para apreender a lógica das relações sociais, é necessário mergulhar com profundidade nas particularidades da realidade a ser estudada, sempre dialogando a teoria com o campo empírico contextualizando historicamente. Assim, denota-se o caráter dialético construtivista entre o indivíduo e o meio em que está inserido. O autor utiliza três categorias primordiais em suas análises: Campo, capital e habitus. O primeiro consiste nos diferentes espaços da vida social, por exemplo, campo econômico e político. Cada campo possui uma lógica própria de funcionamento e tem autonomia relativa em comparação a outros campos. O segundo refere-se ao conhecimento adquirido de modo explícito e também implicitamente. O último consiste em uma noção mediadora que capta as ações dos indivíduos, considerando uma subjetividade socializada, ou seja, o modo como a sociedade se deposita em nós. É uma aptidão natural, mas também um condicionamento social, sobretudo, variável e gerador de práticas sociais. Para pensar a cultura e suas representações simbólicas, é preciso ter uma noção-chave dessas categorias considerando que elas existem de modo entrelaçado. Portanto, o espaço social é marcado por um sistema hierarquizado de disputa de poderes, delimitado não só pelas relações econômicas, mas também pelas relações simbólicas. E é justamente nesse sentido que o capital cultural é utilizado como uma espécie de moeda de troca. Apropriado pelo mercado, não em termos financeiros, mas de bens simbólicos, entra no jogo das disputas de poder. A posição social dos indivíduos não depende só da quantidade de dinheiro e de bens materiais acumulados, mas está associada ainda ao capital cultural adquirido (conhecimento nos diversos campos; musical, literário, artístico; Grau de escolaridade, diplomas, títulos etc.). Os diferentes níveis de aquisição de capital estão ligados a condições específicas de socialização condicionada pela distribuição desigual de 58 poderes. Assim, os gostos e as práticas culturais (habitus) são orquestradas pelo espaço e o campo em que o indivíduo está inserido (BOURDIEU, op. cit.). Quando Valber foi entrevistado, ele contou um pouco sobre sua história para explicar como se aproximou do movimento hip-hop, ressaltando que suas experiências eram muito similares às histórias de vida de vários jovens que frequentaram o Exame. Refletindo sobre isso, notou-se um paralelo entre o estruturalismo construtivista9 de Bourdieu e os relatos de Valber. Imerso no cenário das grandes periferias marcado pela pobreza e precariedades sociais, ele passou por algumas vivências de rua e, foi justamente na rua, através de amigos que ele teve pela primeira vez contato com o hip-hop. Foi também o movimento hip-hop que lhe apresentou novas possibilidades de ver o mundo, abriu portas e o fez aprender a valorizar sua cultura local, lutando contra toda forma de preconceito. Nesse tempo era engraçado, eu ainda era muleque vei. Agente ia à noite, quando o colégio, ali no CSU, tava fechado e pulava o muro para ensaiar na quadra. Não tinha outro lugar pra agente ensaiar, ai agente ia pra lá. Uma galera, dançava break, catava rap, era só por diversão mesmo. Isso na década de 90, o movimento hip-hop ainda tava começando aqui. Foram dizer lá no colégio que tinha uns meninos pulando o muro, ai um dia a diretora pegou agente. Quando ela viu o que era perguntou porque que agente não tinha ido lá conversar com ela, era só explicar. Ai agente começou a ensaiar lá. (Valber) Se Valber tivesse construído suas referências culturais no campo musical, tendo como base a realidade das classes elitistas, qual seria a probabilidade de seu capital cultural estar voltado para o movimento hip-hop? Será que ao escutar uma música ele iria escolher com toda empolgação a faixa "Nego drama" do Racionais MCs para tocar? E se ele tivesse nascido em algum país do Oriente Médio, ou na Índia? O contato de Valber com hiphop e suas expressões culturais é profundamente marcado por sua trajetória educativa e socializante. Com esse mesmo direcionamento, faz-se uma reflexão mais ampla sobre o espaço ocupado na sociedade pelas culturas urbanas das classes 9 Denominação dada à teoria de Pierre Bourdieu. 59 menos favorecidas. No campo das disputas de poder, a cultura foi apropriada como elemento estratégico pelo mercado de bens simbólicos, transformandose em instrumento de dominação para classificar hierarquicamente a cultura dos seguimentos sociais e garantir a reprodução de padrões (BOURDIEU, op. cit.). Com o ranço dessa supremacia cultural elitista, a classe dominante impõe sua própria cultura criando pejorativamente a noção de uma cultura boa e cultura ruim. Percebe-se essa postura segregacionista refletir-se no grafite, rap, funk e artes de rua. O rap, por exemplo, é estigmatizado como ritmo musical de apologia ao crime, rotulado vulgarmente como "música de bandido" por relatar nas letras o cotidiano das periferias. Já o grafite, apagado pela cor cinza que pinta a capital paulista, é desprezado como forma de intervenção artística e ainda reluta para ser reconhecido sendo alvo de colocações preconceituosas. As artes urbanas seguem estereotipadas representando simbolicamente códigos de uma cultura inferior. Essa relação sociocultural deve ser percebida como reflexo da disposição de uma sociedade estratificada que se repercute em diversos campos; político, econômico, artístico, etc., levando em consideração a posição historicamente ocupada por cada classe ou grupo na disposição social, sem desconsiderar as interrelações que coexistem entre essas classes na composição da estrutura social (BOURDIEU; op. cit.). Tem-se ainda um recorte importante a ser feito. Nas músicas de rap, de modo geral, um aspecto presente é o ódio pelo playboy. Fazendo uma reflexão, pontuam-se duas colocações sobre o assunto. A primeira trata-se de perceber um choque cultural, uma atitude etnocêntrica que cria estereótipos estabelecendo uma relação hostil com a diferença do cotidiano. Já a segunda defendida por Rogerio Silva (2012) interpreta a aversão a figura do palyboy, como uma reação das culturas periféricas frente às formas de participação social limitadas no campo cultural pelas injustiças sociais. Hey boy o que você está fazendo aqui. Meu bairro não é seu lugar E você vai se ferir. Você não sabe onde está. Caiu num ninho de cobra. E eu acho que vai ter que se explicar. Pra sair não vai ser 60 fácil. A vida aqui é dura. Dura é a lei do mais forte. Onde a miséria não tem cura. E o remédio mais provável é a morte. Continuar vivo é uma batalha. Isso é se eu não cometer falha. E se eu não fosse esperto. Tiravam tudo de mim. Arrancavam minha pele(...) Você faz parte daqueles que colaboram. Para que a vida de muitas pessoas. Seja tão ruim. Acha que sozinho não vai resolver. Mas é por muitos pensarem assim como você. Que a situação. Vai de mal a pior. E como sempre você pensa em si só. Seu egoísmo ambição e desprezo. Serão os argumentos pra matar você mesmo. Então eu digo Hey boy... Não fique surpresa. Se o ridículo e odioso círculo vicioso sistema que você faz parte. Transforma num criminoso. E doloroso. Será ser rejeitado humilhado. Considerado um marginal. Descriminado, você vai saber. Sentir na pele como dói. Então aprenda a lição. Hey Boy.... "- Aí boy sai andando ai certo... - Eu tenho todos os motivos - Mas nem por isso eu vou te roubar - Morô? - Sai andando / -Vai caminha mano! - Não tem nada pra você aqui não, seu otário! - Vai embora - Sai fora - E não pisa mais aqui hein! (Racionais MCs – Hey boy) Nas ruas da sul eles me chamam Brown, maldito, vagabundo, mente criminal O que, toma uma taça de champanhe também curte desbaratinado, tubaína, tutti-frutti. Fanático, melodramático, bonvivant, depósito de mágoa, quem está certo é os Saddan , ham... Playboy bom é chinês, australiano, fala feio e mora longe, não me chama de mano "- E aí, brother, hey, uhuuul!" Pau no seu c... aaai! Três vezes seu sofredor, eu odeio todos vocês." ( Da ponte pra cá. Racionais MCs) As músicas de Mano Brown, vocalista dos Racionais MCs, deixam bem evidente a repulsa ao estilo de vida das elites brancas. Essa é uma característica comum nas composições de rap. A recusa, muitas vezes intolerante, aparece nas crônicas musicas como uma tentativa de denunciar as contradições do sistema. Confirmou-se que esse aspecto também é uma marca na fala de Neguinho do rap, quando ele mencionou sobre postura de rappers( cantores de rap) que depois de ganharem reconhecimento na mídia mudam sua conduta. O cara que sai da periferia, manda vê no rap, ai começa a fazer projeto social massa, (...) quando começa a fazer sucesso quando as coisas dão certo, deveria aproveitar fica ai andando de carão, chei da grana, fazendo coisa nada a ver.( Neguinho do Rap) Analisar a realidade das culturas juvenis periféricas predispõe a compreensão do princípio de alteridade. Mergulhar nesse universo distinto dos padrões formais e acadêmicos requer uma "revolução do olhar", romper 61 com a ideia de centralidade de seus próprios valores, suspender preconceitos e construções habituais para colocar-se no lugar do outro, refletindo acerca das diferenças culturais. Sobre isso, Laplantine (2006) pontua: "De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa" (p. 21). Valber relembrou a reação manifestada pelos jovens quando surgiu a proposta de misturar o rap com os ritmos regionais. Foram apresentadas para os alunos composições de Bezerra da Silva, Luiz Gonzaga entre outros compositores. A maioria desses alunos nunca tinha escutado tais cantores. A diferença geracional emergiu como um impacto imediato. A garotada acostumada com as batidas do rap, em um primeiro momento, recusou e não demonstrou empolgação em escutar as "músicas de véi" sem nem mesmo conhecê-las. A intenção da oficina consistia em mostrar que muitos cantores antigos também escreviam as letras de suas canções a partir de suas realidades, como a letra “Asa Branca”, que falava sobre a seca no Sertão. Outro objetivo central da oficina era resgatar a historicidade e a cultura popular que os jovens reconheciam como algo distante e muitos nem sequer conheciam. A proposta da oficina foi materializada no CD “Carta de Alforria”, que consolidou a mistura de ritmos regionais com o rap. Uma coisa natural do ser humano e ter preconceito com aquilo que ele não conhece né... então a primeira reação dele para qualquer coisa que é alheia a ele é esse sentimento de estranheza né, assim como os meninos do Enxame estranharam a "música de véi", como eles diziam, mas que com o passar dos meses e com o trabalho que nos fizemos dentro das oficinas eles viram que nossa cultura é tão rica como a cultura que a gente tá importando. (...) Nosso rep é diferente tinha o objetivo de misturar nosso som com ritmos regionais, com a cultura nordestina, nossas raízes. Fomos os primeiros a fazer isso, misturamos o coco, a embolada e isso não deixa de ser rap. Quando lançamos, a ideia causou uma estranheza no movimento hip-hop. Recebemos muitas críticas: "foge do paim." Alguns diziam que não era rap, mas depois entenderam nossa mensagem. E já recebemos elogios do próprio movimento hip hop do Ceará. Criamos nossa identidade dessa forma. Tanto é que todo minha argumentação comprova isso, meninos que simplesmente não tinham menor conhecimento sobre a sua própria cultura local no momento que eles passaram a conhecer né, eles assimilaram aquilo como parte deles e dai ajudou a consolidar a formação deles em termo de a identidade.(Valber) 62 Nessa perspectiva, com um viés educacional e político, o Enxame ainda busca agregar valores a nossa pluralidade cultural, reforçando a autoimagem dos jovens no intuito de fazer com que eles valorizem e percebam a importância da cultura local sem desconsiderar suas marcas de territorialidade. Assim, cultura aparece como um instrumento que possibilita lançar um novo olhar sobre o outro. Não só entender as variadas organizações societárias e grupos sociais distintos, mas também o nosso próprio modo de vida, abrindo o leque consciente da diversidade cultural. 3.2. A arte como ferramenta de ressignificação "A arte é muito significativa pra mim, foi o que me fez ver o mundo diferente." Neguinho do rap Essa discussão propõe maturar sobre a arte como ferramenta de ressignificação de vivências dos grupos juvenis da periferia urbana a partir das experiências do Projeto Enxame e do Neguinho do Rap, tendo por base as colocações apresentadas no tópico anterior, considerando a cultura como elemento indissociável e imprescindível para apreensão crítica da lógica social. Inicialmente, cabe ter como reflexão alguns questionamentos que serão discutidos no decorrer deste texto. Qual a ligação existente entre arte, educação e cultura? Na relação entre arte e educação, qual a importância social desse binômio? Como a arte contribui no processo de educação? De que maneira esses dois segmentos atuam com instrumento propulsor de ressignificação de vivências dos grupos juvenis? No decorrer do processo de produção da existência humana, a religião, a ciência, a arte e a educação aparecem como manifestações que compõe a 63 esfera cultural. Essas expressões são orquestradas pelas condições objetivas do espaço social em que emergem e marcadas por suas representações simbólicas. (BOURDIEU; op. cit.). Partindo dessa compreensão, a seguir será exposto o pensamento de alguns autores sobre arte e educação para posteriormente analisar a relação entre esses dois segmentos que circundam o universo da cultura e engendram nossa organização societária. Vários pensadores, a exemplo, Geertz e Coli, reconhecem a dificuldade de definir um conceito sobre arte. Para Coli (1995), por mais que se busque uma resposta definitiva, as concepções apresentam-se muitas vezes dicotômicas, longe de chegar a uma solução única. (..)É difícil falar de arte. Pois a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar. (...) Poderíamos dizer que a arte fala por si mesma: um poema não deve significar e sim ser, e ninguém poderá nos dar uma resposta exata se quisermos saber o que é o jazz ( Geertz.1997:142) Dentre as diferentes vertentes que dialogam sobre a natureza da arte abordarei algumas construções que exprimem ideias as quais julgo de suma importância para criar uma ponte teórica capaz de alicerçar minhas observações acerca do campo empírico. Apesar de não ter uma definição clara do que é arte, provavelmente se deparar-se com um quadro de Leonardo da Vinci, Tarsila do Amaral, Candido Portinari ou escutar a Nona Sinfonia de Beethoven, indubitavelmente irá identificar essas obras como arte. Isso porque existe uma tendência em associar as manifestações culturais características de uma sociedade como produções artísticas. Portanto, culturalmente, se converteu um discurso e uma simbologia que confere o estatuto de arte. Por exemplo, se você for visitar algum museu ou galeria, imediatamente saberá que nesses espaços irá encontrar obras de arte, pois esses locais imprimem um rótulo da arte a determinados objetos (COLI,1995). Desse modo, tradicionalmente nomes como Van Gogh, Michelangelo, Pablo Picasso são assimilados à qualidade de artistas renomados. No entanto, outras concepções debruçam-se a entender 64 a ideia de arte, porém nesse texto, sobretudo, "o importante é termos em mente que o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura" (COLI, op. cit.: 10-11). Geertz (1997) vai além das colocações de Coli; ele considera a arte como um segmento cultural que expressa a forma de viver de uma sociedade, tecendo a relação entre a arte e a vida coletiva. O autor considera que as expressões artísticas materializam o modo de organização societária tornando-o visível no plano semiótico. Em outras palavras, os meios através dos quais a arte se expõe são carregados de representações simbólicas, de códigos visuais e linguísticos que imprimem os hábitos culturais e consequentemente reconstroem o espaço social. Nesse sentido, a estética aparece como algo secundário, não se trata de ignorá-la, mas entender que essa apreciação da forma é incorporada por um padrão de vida. Então, ao contemplar um quadro antigo, registro de uma atividade visual, é observado não só a obra em si, mas também aspectos que identificam a sociedade em que foi criada (GEERTZ, op. cit.). Por exemplo, retomando a pesquisa de campo para ilustrar o caráter prático dessa teoria. As letras das músicas de Neguinho do Rap e do Projeto Enxame falam sobre o cotidiano, demonstram a realidade da favela, reconstruindo o cenário periférico. Assim, ao escutar um rap, é possível perceber aspectos que denotam as vivências de um grupo. Obviamente a percepção de cada pessoa também está condicionada a sua experiência de mundo. Por isso, Geertz (op. cit.) ainda afirma que “as habilidades, percepção, técnicas e sensibilidade, tanto do artista quanto do público, são características adquiridas, mas sem desconsiderar as aptidões individuais. A arte e os instrumentos, para entendê-las, são feitos na mesma Fábrica" (GEERTZ, op. cit.:178). A participação no sistema particular que chamamos de arte só se torna possível através da participação no sistema geral de formas simbólicas que chamamos de cultura, pois o primeiro sistema nada mais é que um setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto é, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura e não um empreendimento autônomo. E, sobretudo, se nos referirmos a uma teoria semiótica da arte, está deverá descobrir a existência desses sinais na própria 65 sociedade, e não em um mundo fictício de dualidades, transformações paralelos e equivalência. ( Geertz, 1997: 165) Portanto, esse olhar sobre a "arte como sistema cultural" propõe uma análise semiótica que não deve ser descolada do universo social, da maneira como os homens se constroem e produzem o meio em que habitam. Tampouco justificativa para desconsiderar a estética. O estudo da dimensão de sinais e códigos deve ir para além de uma interpretação simbólica, levando em conta os indicadores sociais, históricos e culturais em que se contextualizam sua materialidade. Peixoto (2001) conceitua a arte como um produto do "trabalho humanocriador-livre" (p. 03) à luz da concepção materialista dialética, resgatando o elo entre arte e vida, partindo de uma visão de cunho social da arte. A arte, enquanto criação humana e forma de comunicação estética, está vinculada a uma realidade historicamente e socialmente datada e, portanto, inevitavelmente envolta em ideologias, compondo a supraestrutura social. Ela materializa-se mediante as condições objetivas do real e, através de suas qualidades simbólicas, propicia a suspensão dessa realidade para uma nova visão, ou como denomina Marx, um concreto pensado, resgatando a essência humana. Como produto essencialmente humano, a arte não é, nem poderia vir a ser, uma produção automática; é, sim, um produto humano completo e complexo, para o qual são solicitadas as qualidades mais refinadas do homem enquanto tal: em primeiro lugar, a elaboração de uma certa compreensão do mundo e a abstração, para tomá-la como conteúdo da obra; em segundo lugar, a capacidade de criar, que envolve três ações básicas: projetar na mente o produto final, buscar os meios mais verdadeiros e significativos para a sua elaboração, concretizar o planejado num processo altamente dinâmico que, em seu decorrer (ou seja, no movimento da própria obra em seu vir-a-ser), não apenas pode determinar transformações no plano original do trabalho, como também nas maneiras de ser, pensar e criar do artista no diálogo com sua criação. Em síntese, trata-se da dialética da práxis humana em toda a sua completude, da qual pode emergir um novo artista, um novo produto ou uma nova realidade, de ordem espiritualmaterial. (Peixoto.2005:159) Arte no cotidiano Nesse sentido, uma obra de arte condensa a percepção de mundo do artista "enquanto indivíduo determinado-determinante do contexto histórico- 66 sócio-político e cultural a que pertence" (PEIXOTO, 2005). O artista, criadorfruidor, exprime seus conhecimentos acumulados, ao mesmo tempo que cria uma nova experiência interpretativa como fonte geradora de conhecimentos. Ou seja, a produção artística é modulada pelo meio, mas também carrega aspectos psíquicos e subjetivos. Assim, as manifestações artísticas só podem ser compreendidas em toda sua riqueza, inclusive em seus elementos estéticos, se for considerado seu contexto e suas relações com o meio social. Tendo por princípio essa relação dialética entre arte e vida, Peixoto desconstrói, assim como Bourdieu e Walter Benjamin, a sacralização da obra de arte. Ela recusa a ideia de "arte pela arte", desmistificando a noção do artista enquanto ser iluminado detentor de uma genialidade inata. Pois o indivíduo-artista, nessa concepção, é desconectado de sua realidade social, dos interesses econômicos e políticos da ordem vigente. Sua criação não é concernente às condições objetivas de sua vida e está desligada do real (Peixoto, 2001). Se a relação arte-indivíduo- sociedade é trabalhada dentro do âmbito da vida cotidiana, teremos relações imediatamente humanas. (...) a arte inserida no cotidiano pode vir a ser um momento de veemente exercício da liberdade, de ampliação da consciência-autoconsciência e de intenso prazer sensório-intelectual desvinculado das relações de posse e dominação que permeiam a quase totalidade das relações humanas, na sociedade capitalista contemporânea. (Peixoto, 2001: 5) Ainda com base nesse posicionamento materialista dialético, Peixoto (2001) busca esclarecer a função educativa da arte, considerando a relação entre arte e educação. Nesse sentido, a autora apresenta a educação como resultante do trabalho humano de segunda natureza, ou seja, fruto da produção não material. É no âmbito ideológico, na produção de novas ideias, valores, e conceitos que a educação, como segmento integrante da cultura humana, utiliza-se de sua capacidade reflexiva para exercer importante função no processo de humanização do homem, fomentando sua consciência coletiva e autoconsciência. O processo educativo vai além dos métodos formais. Ele se dá inclusive de modo não intencional. Nesse caso, se processa no cotidiano, no âmbito familiar e na vida coletiva no decorrer de toda trajetória do 67 indivíduo. Por isso o espaço cultural é percebido eminentemente como educativo, propiciador de fonte de conhecimentos variados e forte determinante no estabelecimento de um sistema de valoração a ser assimilado/transformado pelos indivíduos, sistema que regerá a formação de hábitos e atitudes e a forma como esses indivíduos constroem, percebem e interpretam os símbolos que compõem e expressam sua cultura (Peixoto, op. cit., p.104-105). De acordo com o dicionário Aurélio, a educação é conceituada como "processo de desenvolvimento da capacidade física intelectual e moral da criança e do ser humano de modo geral, visando à melhor integração individual e social". Para Paulo Freire (1996), a educação é um processo de formação no qual as pessoas vão se construindo ao longo de sua vida. Ela tem objetivo não só de transmitir informação e conhecimento, mas servir como uma alavanca, propiciando um exercício crítico-reflexivo através do qual o homem ascende para o estado consciente. “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 21). Nessa perspectiva, o pensamento pedagógico freiriano utiliza uma prática dialógica na tentativa de educar os indivíduos mediante suas vivências. O homem deve conhecer sua historicidade, entender a realidade em que está imerso para, a partir dela, desenvolver estados intelectuais na produção de saberes. O ato do diálogo iminentemente propõe uma troca de experiências onde se faz necessário respeitar as diversidades culturais, compreendendo as particularidades do outro, no processo de humanização. Portanto, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. (Freire. 1996) Assim a educação é um instrumento de libertação da consciência, em que o homem deixa de ser um mero espectador de sua história e descobre-se como ser autônomo capaz de construir sua própria existência. O método educativo de Freire defende uma ruptura com o tradicionalismo pedagógico. Não é só saber ler e escrever, mas interpretar o mundo a sua volta, ter autonomia para, participar e exercitar sua cidadania (Freire, 1987). 68 Portanto, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Assim a educação popular, pensada por Paulo Freire, pode ser um instrumento propulsor de transformações sociais. Da mesma maneira que a arte, como defende Peixoto, também se apresenta como ferramenta capaz de propiciar uma consciência crítica da realidade. Read (2001), em seu livro “Educação Pela Arte”, defende a junção da arte e educação, baseando-se nas doutrinas de Platão. Ele acredita que a arte é um elemento essencial no processo de aprendizagem, é um momento de autocriação para formação da autoconsciência. Assim, "a educação deve ser um processo não apenas da individualização, mas também de integração, que é a reconciliação entre a singularidade individual e a unidade social" (Read, op. cit.: 06). Segundo as concepções pedagógicas norteadoras da Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, a ação educativa dever ser guiada no sentido de uma vivência cidadã, tendo como princípio formação humana integral, democracia, ética, justiça, emancipação e construção coletiva. No âmbito das atividades socioeducativas é pensada a relação entre educação e arte, destacando a importância de educar pela arte, não na visão de educação artística tradicional, mas sim "fazer Arte-Educação, ou seja, fazer da arte, do produzir arte, do frui arte um grande instrumento do fazer educativo" (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, p.51.). Para tanto, a arte é descrita como uma ferramenta capaz de tornar a mente flexível, o que é uma condição fundamental para aprender. Ela desenvolve a imaginação, a percepção estética e a sensibilidade. A estética, por sua vez, volta-se para os sentidos, para educação dos sentimentos, do olhar, que deve ser estimulado e manifesta-se como forma de expressão. Assim, "o olhar ultrapassa o ver, investigando, questionando o que está além do visto." (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, p.52.) É também uma maneira de compreensão do mundo e de si próprio, apontando para uma mudança e para o crescimento humano. Ao perguntar a Valber sobre o que é arte, ele mencionou: 69 A arte é uma forma de expressar aquilo que agente enxerga no mundo. A arte por si só ela já educa. Ela tem essa grande vantagem em relação a qualquer outro tipo de técnica ou convenção já criada pelo homem. Porque ela proporciona essa nossa percepção da realidade e nos sensibiliza de todos os aspectos que nos cercam porque a partir disso, uma vez que agente tenha esse olhar artístico das coisas nos podemos fruir através disso aprender, ter um novo olhar. Ela tem o poder de sensibilizar nossa percepção, a forma como agente ve o mundo, como agente enxerga as coisas. E isso influência na criatividade para a produção e reprodução dos meios artísticos que agente consegue assimilar. A arte-educação é o método pedagógico utilizado nas oficinas do Enxame e do Neguinho do Rap. Através das atividades arte-educativas, estes projetos buscam recodificar os signos sociais no intuito de promover o conhecimento e reconhecimento da dinâmica sociocultural, incentivando o protagonismo juvenil. A proposta do Projeto Enxame, desde sua fundação, é utilizar oficinas de arte com os jovens que pertencem às galeras do bairro no campo de ressignificação no intuito de ampliar códigos culturais possibilitando novas estratégias de inserção social. "Tínhamos a ideia de que arte é um campo propulsor de significantes, ela certamente irriga territórios esquecidos do corpo, faz emergir novas formas de linguagem" (DIÓGENES, 2006: 192). Uma nova forma de linguagem; foi isso que despertou em Felipe Rima, ex-integrante do Enxame e atualmente um dos grandes nomes do rap em Fortaleza. O jovem driblou o contexto de violência em que vivia e desenvolveu uma habilidade: a rima em forma de rap. Usamos nosso rap pra lutar contra o sistema o povo da favela vai seguir esse dilema. Ele da de bandeja tudo que você quer droga dinheiro arma e mulher só quer te iludir pra depois te derrubar. Vou te dar um conselho pare pra escutar pois não é usando drogas que você vai vencer preste um pouco de atenção faça o que vou fazer vou cantar o meu rap para denunciar tudo que ta errado seja aqui seja lá siga o meu conselho saia dessa ilusão porque essa vida não tem futuro não de um jeito ou de outro eu vou fazer a minha parte porque cantando rap eu estarei fazendo arte e não vou ser mais um que o sistema vai tragar porque eu apredi que posso conscientizar minha mente é consciente eu sei o que fazer mas não vou cruzar os braços tenho que ajudar você não posso ver meu povo se auto destruindo e se eu não falar eu estarei contribuindo o que eles 70 caiam no mundo da perdição e eu não quero isso pro meu povo então vamos fazer esse quadro mudar vai ser muito difícil mais não parem de lutar vou ter que enfrentar as autoridades e vou mostrar pra eles toda a realidade mesmo que eu seja muito criticado não vai ter molesa presse bando de safados você deve estar me achando atrevido escute o meu rap e não tampe os ouvidos porque ele é verdade e força de expressão então me ajude a cantar esse refrão o bairro onde eu morro vida é mito precária ganhar cinco reais pra trabalhar uma diária os pais os filhos sem opção de vida muitos tem que roubar pra arrumar comida aqui infelizmente a vida já não é tão boa pobre sendo humilhado e o rico sorrindo a toa. Eu sei que o sistema ele quer me destruir mais isso eu te garanto ele não vai conseguir porquê eu canto rap não é pra ter fama é só pra tirar o meu povo dessa lama. Viver reclamando não vai me levar a nada eu tenho que agir é isso ai meu camarada vou usar a minhas armas e o sistema combater porque deus está comigo ele não pode m,e vencer sou do projeto enxame onde aprendi rimar me deram a munição agora vou bombardear eu mando esse rap com muita satisfação e vamos novamente cantar esse refrão (Música "Conscientes do Sistema" de Felipe Rima) A fala que segue abaixo é do pai do ex-aluno do Enxame. O trecho foi extraído da primeira faixa do CD Carta de Alforria, em que os pais dos participantes relatam sobre a influência do projeto na vida de seus filhos. O CD é formado por músicas autorais. É o meu nome é Ribamar pai do Felipe. O Felipe eu sempre admirei ele desde criancinha pelo desempenho que ele sempre teve nos estudo. Sempre foi aquela criança que não deu trabalho nos estudo né... Mas eu que na época era bandido né e ele se espelhava em mim né, como sempre o filho quer se espelhar no pai e ele tinha aquela queda também pra ser temido como eu era, gostava muito de arma e povo me temia porque eu andava muito armado. Isso eu vejo que mudou, na vida dele os pensamentos mudaram, graças a Deus. Na verdade quando ele disse que ia entrar no Enxame né eu não dei muita importância. Ai foi que eu vim acordar, o Enxame realmente é um projeto que incentiva o adolescente a crescer em alguma coisa. Porque as vezes, você tem o talento em si, mas ai falta oportunidade, falta o caminho, falta alguém abrir uma porta pra você poder entrar. Iai o Felipe encontrou essa porta através do Enxame e está desenvolvendo seu Talento, graças a Deus. (Ribamar) Valber relatou-me sobre as experiências de ressignificação, mencionando a influência dela para que os jovens redescubram novos valores, encontrem suas potencialidades e busquem novos espaços na própria comunidade. Para que, assim, possam criar suas identidades se autoafirmando dentro de seu contexto sociocultural. 71 Essa pessoa ai é mal, é ela mesmo? Ela ta aqui na oficina? Mas eu fiquei sabendo que ela... O importante pra gente é saber que essa pessoa também pode fazer outra coisa, pode ser bom na dança, no grafite. Agente vai trabalhando com ela, nem todos ficam e claro, mas agente ta aqui pra isso. Essas crianças, esses adolescentes muitas vezes já vem de uma realidade complicada. Eu sei o que é ser menino de rua, eu já fui, mas no meu tempo era diferente, hoje tem o crack, tem outra realidade. A escola não tem condições de educar pela própria precariedade do sistema que agente conhece, ai quem vai educar esses adolescente? Ai agente ressignifica para zele ver que pode ser de outra maneira. Para ele não reforçar o que todo mundo diz, que o marginal, que não presta, não tem futuro.(...) Vou dar o exemplo da minha convivência com o hip hop, são pelo menos 15anos de estrada rodando o Ceará todo. Nossos alunos que foram trabalhados na oficina de rap e ritmos nordestinos, que tiveram o primeiro contato com o ritmo nordestino em uma oficina, eles eram pra ser sei lá o que ou ta ai no mundo do crime, hoje muitos são cantores de rap, como o Felipe Rima, ou fazem outras coisas, estudam, mas estão longe da criminalidade. Com isso, entendeu-se com maior clareza a importância dessa proposta ao escutar a gravação de uma das oficinas de rap do Enxame intitulada "O rap e a ideia do vagabundo", com o qual foi realizada uma discussão sobre a música, "O vagabundo Sagrado", do grupo Cirurgia Moral, tendo como instrutores Glória Diógenes e o rapper Lobão. - Glória: O que seria um vagabundo sagrado? Por que, que ele é um vagabundo sagrado, por exemplo? - Lila: Eu acho que assim, eu acho que o vagabundo sagrado é aquele que sobrevive às guerras né, porque sei lá, porque dos dezoito não passa um vagabundo. -Gloria: Por isso ele é sagrado? - Lila: Hum, hum porque ele sobrevive a isso tudo.(...) - Adriano: Eu acho que é porque Deus protege ele né, ai ele se torna sagrado sei lá. - Mariano: eu acho que o vagabundo é sagrado, por causa que ele não é aquele vagabundo que chega lá, mete as fita, as parada é auqle vagabundo que só fica na dele e tal, sem mexer com ninguém sabe chegar e sabe sair. - Glória: Sabe chegar e sabe sair. - Lila: E que usa a malandragem dele para fazer o bem e não o mal. Tem cara que usa a malandragem para fazer o mal, pra se drogar, que usa a malandragem pro bem. - Felipe: Tem uma música do Apocalipse né, que malandragem pra ele não é roubar, não é matar. A música é mais ou menos assim: " a música pra mim pe poder trabalhar, poder incentivar a pivetada a estudar, com trabalho pretendo ganhar o meu dinheiro bem diferente do playboy brasileiro", malandragem pra ele é isso ai que eu acho que é um vagabundo sagrado. - Lobão: Ele é um vagabundo sagrado porque ele ta no meio da vagabundagem, e tá passando informação tentando tirar o irmão do mundo do crime, esse é o resumo da música, é por isso que ele é o 72 vagabundo sagrado. Porque ele é visto por todos também como vagabundo que no caso ele pede um pouco de malandragem pra ele conseguir tá lá dentro exercendo seu trabalho sem ser atingido por nada, nem pela polícia porque ele é um cara consciente, nem pelo outro cara que é traficante, que é o vizinho dele, que é amigo dele que no caso chegado. (Oficina do dia 09.04.2003) Neste trecho destacado, é perceptível que a atividade se propõe a refletir sobre os significados sociais, possibilitando a construção de conhecimento mediante uma escuta pensante utilizando o diálogo como um método que possibilita o conhecimento crítico da realidade através de uma problematização de determinado assunto. As oficinas, promovidas pelas ações independentes de Neguinho do rap, também visam criar um ambiente de diálogo, partindo das experiências cotidianas dos próprios jovens, com a intenção de formar um pensamento crítico-reflexivo e indivíduos conscientes de suas realidades. Nas oficinas de hip-hop, a gente pegava a galera, fazia grupo de 4 e começava a escrever, quem não sabia escrever desenhava, pintava se expressava como sabia. Primeiro, a gente falava um pouco sobre a convivência dentro de casa, com a família, depois os amigos, sobre a comunidade. Porque primeiro vem a família, o que se vive em casa, depois aquilo se reflete na vida, na comunidade. Ai agente ia discutindo cada história e pensando como é que podia passar par comunidade, pra o outro, que fulano morreu para ele não cometer o mesmo erro. Ai saia uns raps, grafite, até uns paço novo de hip-hop. (Neguinho do rap) Dessa maneira, música, dança e imagens produzem uma sensibilidade e uma fruição artísticas, na medida em que os jovens são mobilizados a dialogar com o que é apresentado e produzir a partir de suas percepções e vivências, seja na forma de rap, poesia, desenhos ou pinturas. Nessa perspectiva, Valber afirma que compartilhou, no projeto, momentos enriquecedores no campo da ressignificação. E, enquanto arteeducador, acredita na importância da associação entre arte e educação no processo de aprendizagem. "A metodologia da arte-educação é mais didática do que o ensino formal, quanto mais lúdico, mais a gente prende a atenção deles" (Valber). 73 Aqui retomo as considerações a respeito da educação não formal, porém não no enfoque anteriormente defendido por Peixoto (2005), mas trazendo outra visão. Messias (2008) destaca o caráter intencional da educação não formal, descrevendo-a como uma ação planejada e estruturada que, no entanto, vai de encontro com a formalidade da escola tradicional que sistematiza seus parâmetros de eficácia através de indicadores como avaliações rígidas, notas, e dados quantitativos. Na educação popular, não formal, a escolha de participar é voluntária. Assim, os temas trabalhados devem despertar a curiosidade e o interesse do educando para que ele seja seduzido pelo ato de aprender. Nesta pesquisa de campo, foi identificado "O Encontro Cultural em prol da Revitalização do Mirante" como espaço que possibilita a educação nãoformal. A mobilização de um grupo social culminou em uma atitude política que tem o objetivo de chamar atenção para as problemáticas locais. Cobrando uma solução para tais problemáticas o encontro é realizado mensalmente, reunindo apresentações culturais, incentivando as manifestações artísticas locais e fomentando a participação coletiva. O hip-hop também aparece compondo o cenário empírico dessa pesquisa, representado com maior ênfase pelo rap, que é um elemento comum entre o Enxame e o Neguinho do Rap. Rogério Silva (2012) escreve que o hip-hop é um movimento cultural e social, um instrumento educativo da periferia, uma forma lutar contra violência, uma maneira de fazer política, de primar pela cidadania de questionar o sistema capitalista contemporâneo e as injustiças sociais para lutar contra uma realidade hostil, utilizando os "instrumentos da arte para se manifestar e difundir a sua proposta" (ROGÉRIO SILVA, 2012: 220). Esse movimento social seria conduzido por uma ideologia (ou pelo menos por certos parâmetros ideológicos) de autovalorização da juventude de ascendência negra, por meio da recusa consciente de certos estigmas (violência, marginalidade) associados a essa juventude, imersa em uma situação de exclusão econômica, educacional e racial. Sua principal arma seria a disseminação da ―palavra‖: por intermédio de atividades culturais e artísticas, os jovens seriam levados a refletir sobre sua realidade e a tentar transformá-la. (Rocha, Domenich, Casseano, 2001: 18-9 in ROGERIO) 74 Assim, o rap está conectado a um movimento estético-político mais amplo, o movimento hip-hop. Entretanto, como Souza (2009) expõe o rap não está comprometido com grandes transformações sociais. Ele não apresenta um projeto alternativo concreto, tem somente o intuito de explicitar as problemáticas e a situação degradante dos subúrbios urbanos, alertando para necessidade de participação do jogo democrático. Silva (2012) também aponta que essa visão do hip-hop não é hegemônica, muitas vezes esse movimento social é visto apenas como uma manifestação cultural de “tribos urbanas”. Cabe aqui destacar um ponto relevante, sobre a percepção acerca do impacto do movimento hip-hop, mais especificamente do rap, na vida dos grupos da periferia e sua contribuição no campo da ressignificação auxiliando a construção e afirmação de uma identidade cultural. Sobre isso, Neguinho do Rap afirmou: "Quando fui entrando no Rap, vi que é muito rico, e muitas pessoas podem aproveitar esse momento para mudar, pra refletir. Se eu tivesse conhecido antes, talvez fosse diferente”. Tendo como ponto de partida os pressupostos teóricos apresentados, desde o início desse capítulo, pode-se inferir que a cultura, enquanto código de um grupo social, aparece como espaço privilegiado de manifestação da arte. Partindo dessa perspectiva, explorei nesse tópico algumas considerações que trabalham a relação entre arte e educação considerando uma relevância fundamental; o contexto sociocultural em que os indivíduos estão imersos. Desse modo, as experiências de reconstrução e recodificação de hábitos e valores pesquisadas no Projeto Enxame e no Neguinho do Rap me fazem refletir sobre a importância dessas ações para a juventude periféricas. E com esse intuito, a junção entre arte e educação foi apresentada como uma nova perspectiva que pode carregar um sentido politizador capaz de possibilitar novos caminhos e olhares para o mundo. 75 Portanto, a arte pode ser percebida como um terreno fértil que possibilita o processo de conhecimento. Ela aparece, sobretudo, como um campo de expressão e ressignificação dos códigos culturais, trilhando caminhos para novas formas de inserção social. 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS "A arte existe para que a realidade não nos destrua" Friedrich Nietzsche Toda a discussão teórica realizada neste trabalho foi cuidadosamente pensada para dialogar com o recorte feito no campo empírico, mediante uma contextualização histórica da dinâmica social, pois se acredita que a existência humana não pode ser entendida em sua amplitude se desconectada das condições concretas da vida. De acordo com Marx (1983), a realidade só pode ser compreendida em sua totalidade a partir das condições materiais e objetivas do homem, ou seja, da estrutura social que delimita o modo de vida e consequentemente, a relação social dos indivíduos em um determinado período histórico. Marx afirma: Na produção social da sua vida, os homens estabelecem relações determinadas, necessária e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma dada fase de desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma supraestrutura jurídica e politica [...] O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao contrario, é o seu ser social que determina a sua consciência.(Marx: 1983:47-48) Assim iniciou-se o trabalho descrevendo historicamente o espaço em que o campo de pesquisa está imerso, tentando desvendar suas relações políticas, econômicas e culturais. Por isso, no primeiro capítulo julguei importante fazer uma viagem no tempo pelo Grande Mucuripe. Isso me fez entender a relação de territorialidade estabelecida entre a cidade e realidade de segregação enfrenta tanto pelos moradores do Morro Santa Teresinha quanto pela comunidade do Serviluz. E, como Neguinho do Rap diz na música "Acredite em você", foram vistos de perto "Os trilhos que separam o Morro da sociedade". 77 Com esse direcionamento pude apreender com maior clareza o cotidiano dos jovens da periferia urbana. Considerei ainda, alguns conceito sobre juventude e sua disposição na contemporaneidade a fim de apropriarme de elementos que me possibilitassem ter uma visão macrossociológica desse grupo social. Portanto, esse estudo se desenvolveu na tentativa de entender os grupos juvenis sem desconectá-los das relações sociais, afinal eles são mais um desdobramento da sociedade atual. Assim, as vivências não estão, obviamente, desligadas das expectativas, imaginários, modelos e padrões estabelecidos pela nossa organização societária. É nesse ponto, que no segundo tópico do capítulo dois, é feita uma reflexão sobre Juventude e Estado, destacando o papel das políticas públicas e apresentando formas alternativas de fazer política. Sobretudo, levando em consideração, as manifestações dos atores aqui estudados. Contudo expressões como rap, ações coletivas e mobilizações comunitárias aparecem como maneiras estratégicas de inserção social. Mas por que trabalhar com o universo juvenil? Como menciona Campos (2007), por um lado, os jovens se encontram entre os agentes culturais com maior dinamismo e criatividade na produção, manipulação e consumo de objetos e imagens de diversa ordem, sendo porventura detentores de uma visualidade singular; e, por outro lado, são um dos objectos privilegiados do discurso das instituições culturais contemporâneas, nomeadamente dos mass-media e das indústrias culturais globalizadas.( Campos, 2007: 168) E nesse jogo, como afirma Bourdieu (1983), a juventude é uma categoria manipulada e manipulável. Por isso, partindo de uma releitura do materialismo histórico, e da concepção dos autores abordados, a cultura aparece como maneira de expressão do modo de vida, modo de existir no ser social. Ela não está descolada da questão material e concreta da existência. Assim ela compreende as possibilidades de consciência social dos homens. Essa concepção marxista desconstrói o discurso de senso comum que percebe a cultura como algo isolado do contexto histórico-político e marginaliza 78 determinados grupos que não se inserem dentro do padrão massificado e mercadológico da produção cultural e artística. Portanto, é preciso entender as condições objetivas para compreender as expressões culturais de determinado grupo sociais. Assim, minha intenção em abordar os conceitos de cultura que caminham no sentido de interpretar as representações sociais, ou seja, de entender a cultura como código de um grupo, foi no intuito de romper tabus. Superando ideias preconceituosas, elitistas e percepções estereotipadas de que a juventude pobre não entende de arte ou não tem cultura. Tais concepções conservadoras vão de encontro ao que foi investigado no Enxame e no Neguinho do Rap. As falas que estão diluídas por esse trabalho registradas através de entrevistas, relatos e conversas informais são carregadas de conhecimentos, de compreensão crítica que partem principalmente da experiência cotidianas dos sujeitos pesquisados. Ao fazer um levantamento, na área do grande Mucuripe, identificaramse mais de cinco projetos que desenvolvem trabalhos no campo da arteeducação. Grupos como Enxame, Neguinho do Rap, Kebra Molas, Instituto Povo do Mar, Curumins e Power Dance vem ampliando o contato de jovens e crianças com a esfera cultural. Buscam na arte uma ferramenta educativa. E tendo acompanhado o Enxame e ações do Neguinho do Rap, pode-se concluir que esses projetos Ecoam os gritos do subúrbio. A periferia encontra na arte, através deles, um instrumento que possibilita recodificar e reinterpretar o movimento do real. A proposta de ressignificação trabalhada nos projetos e, formulada de maneira sistematizada pelo Enxame na proposta pedagógica e em outros documentos que norteiam as ações da instituição, são voltadas para promoção de novos valores, reinterpretação da noção de direitos e cidadania através da arte-educação como método educativo. A junção entre arte e educação possibilita o processo de conhecimento, fazendo uma ruptura com o tradicionalismo pedagógico no sentido abordado por Paulo Freire. A educação popular, defendida por esse autor, consiste em despertar a 79 capacidade critico-reflexiva para interpretar o mundo, e não apenas saber ler e escrever. Desse modo, educação e a arte são também formas ideológicas, formas de produção e reprodução de ideias que manifestam a representação da vida, transmitidas pelo comportamento dos indivíduos mediante a realidade que os cerca. Percebeu-se essa abordagem teórica compilar-se na pesquisa de campo. Constatou-se a importância da relação entre a arte e educação para os jovens da periferia. Não a educação formal, mas uma educação dialógica que considera a realidade dos indivíduos e se desenvolve através dela. Assim notou-se a educação como instrumento educativo, politizador e realmente comprometido uma formação que visa promover a cidadania, possibilitando novos olhares e novas formas de perceber o mundo. Neste sentido, o que encontrei no campo empírico, foi a quebra com a lógica da educação tradicional ou bancária como denomina Bourdieu (2003). Esse método educativo trabalha para uma mudança da realidade dos indivíduos. O modelo de educação formal que recebemos nas escolas está voltado para o mercado de trabalho, para o vestibular e, de modo geral, para atender os interesses norteadores da lógica mercantil, garantindo a reprodução do sistema vigente. Não é uma educação política, no sentido mais abrangente da palavra, que está direcionada com foco para fortalecimento da democracia e da cidadania, tampouco comprometida com uma transformação da sociedade como defende Paulo Freire (2002). Contudo, a educação assim com a arte não é neutra. Entendendo os espaços sociais como sociedades de classe, ela favorece ou aqueles que esperam a mudança ou aqueles que têm interesse que tudo se mantenha como está. Nesse sentido, Bourdieu (2003) acredita que a escola é uma instituição de reprodução da lógica vigente. Portanto a educação popular é um elemento potencializador de transformações sociais, na medida em que faz emergir uma consciência critica a partir da problematização do real. Partindo do pensamento apresentado, concluo que as ações do Enxame e do Neguinho do Rap desenvolvem um trabalho muito significativo 80 para a juventude periférica. Cada um com suas singularidades. O Enxame dispõe de um espaço fixo, mesmo que através de doações recebe apoio financeiro e tem um caráter institucional. Já o Neguinho do Rap trata-se de uma ação totalmente independente, não tem sede e não recebe nenhum tipo de recurso material. Eles têm suas particularidades e formas diferentes realizam seus trabalhos. O primeiro de modo mais planejado com propostas pedagógicas e objetivos delimitados. O segundo de maneira mais intuitiva, sem aparatos técnicos nem documentação definida. Mas o importante é que através da arte, eles conseguem produzir e fomentar novos códigos culturais, considerando as representações já utilizadas por esses jovens em sua realidade cotidiana. E nesse viés, promovem com primor um processo educativo que propicia uma reflexão autoconsciente e, sobretudo, desperta uma valoração da identidade cultural desses jovens. Entretanto, lamentavelmente, essas iniciativas, apesar de promissoras, encontram-se praticamente paralisada. Entender o porquê que o Enxame e Neguinho do Rap enfrentam entraves para permanecem realizando suas intervenções é um questionamento que poderá ser pesquisado em um trabalho futuro. Mas, por enquanto, é válido como resultado deste trabalho, salientar a relevância dessas ações e evidenciar a importância da continuidade desses projetos. 81 REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas Sobre a Teoria da Ação. 9. ed. Campinas-SP: Papirus, 1996. 2008 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense. 1987. ________ . A juventude é apenas uma palavra. in Questões de Sociologia. Lisboa: Fim do Século. 2003 COLI, Jorge. O que é Arte? 15. ed. Brasiliense. São Paulo. 1995. CAMPOS, Ricardo. Pintando a Cidade: Uma abordagem antropológica do graffiti urbano. Dissertação de Doutorado em Antropologia. Universidade Aberta. 2007. CASTRO, Mary Garcia. Políticas públicas de juventude: Questão para participação. In Psicologia social articulando saberes e fazeres. Belo Horizonte: Autêntica. 2007. DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará - Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará. 2002. CHAVES, Gilmar. VELOSO, Patrícia. CAPELO, Peregrina. Ah, Fortaleza!. Fortaleza: Terra da Luz. 2006. 82 DIÓGENES, Glória. A arte de fazer Enxame: experiências de ressignificação juvenil na cidade. In Revista Política e Sociedade. Nº8. Abril, 2006 _________ . Cartografia da Cultura e da Violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. 2. ed. São Pulo: Annablume. 2008. Estatuto da Juventude. Agosto 2013. FREITAS, Joelma Maria. Imagens da juventude no espaço urbano: Corpos, símbolos e signos da cultura visual. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza. 2003. RAMOS, Leidiana da Costa. Mucuripe: Verticalização, Mutações e Resistência no Espaço Habitado. Proposta de Dissertação em Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _________ . Pedagogia do oprimido. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2002. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 8. ed. Petrópolis- RJ: Vozes. 2006. GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. 2.ed. Banco do Nordeste do Brasil. 1979) IBGE. População jovem no Brasil: a dimensão demográfica. IPEA. Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília. 2009. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense. 2006. LUKÁCS, Gyorgy. Marxismo e teoria da literatura. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular. 2010. MESSIAS, Ivam dos Santos. Hip hop, educação e poder: o rap como instrumento de educação não formal. Proposta de Dissertação em Mestrado em Cultura e Sociedade. Universidade Federal da Bahia. 2008. 83 MATTA, Roberto da. O que é cultura. PAIS, Jose Machado. Jovens e cidadania in Revista Sociologia Problemas e Práticas. nº 49. 2005. _________ . A construção sociológica da juventude: alguns contributos in Revista Análise Social, vol.XXV. 1990. PEIXOTO, Maria Inês Hamann. Arte no cotidiano: Consciência e autoconssciência. 2003 _________ . Educação e arte: um nexo categórico. 2002. _________ . Relação arte, artista e o grande público: a prática estéticoeducativa numa obra aberta. Tese de Doutorado. Faculdade Estadual de Campinas. 2001. Políticas Públicas de Juventude. Secretaria Nacional de Juventude. PLATÃO. A República. 2.ed. São Paulo: Escala. 2007. Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará. SILVA, Rogério de Souza. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade Estadual de Campinas. 2012. SOUZA, de Simone. GONÇALVES, Adelaide. Uma nova história do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Demócrito Rocha. 2007. KARL, Marx. ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e Literatura. (Textos escolhidos). 2. ed. São Paulo: Expressão Popular. 2012 UNESCO. Juventude e Habilidades: Colocando a educação em ação. Relatório de Monitoramento global de ETP. 2012 UNESCO. Juventude, juventudes: o que une, e o que separa. Brasília. 2006. 84 AZEVEDO, Miguel Ângelo. Cronologia ilustrada de Fortaleza – Roteiro para um turismo histórico cultural. Fortaleza: Banco do Nordeste. 2001. HERBERT,Read (2001).Educação Pela Arte. São Paulo: Martins Fontes. 2001. FARIAS, Airton de. História do Ceará. 6.ed. Fortaleza: Armazém da Cultura. 2012. http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2011/05/23/noticiafortaleza,2248107/pr efeitura-lanca-projeto-de-urbanizacao-do-morro-santa-terezinha.shtml acessado em 18 de dezembro de 2013 http://www.opovo.com.br/app/colunas/muitoprazer/2003/11/27/noticiasmuitopr azer,317688/o-laboratorio-subterraneo-da-arte.shtml acessado em 18 de dezembro de 2013 http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza/2013/02/06/noticiasjornalfortalez a,3001535/obra-no-morro-santa-terezinha-passara-por-nova-licitacao.shtml acessado em 20 de dezembro de 2013. http://www.juventude.gov.br/conjuve/ acessado em abril de 2014 http://www.juventude.gov.br/ acessado em abril de 2014 85 APÊNDICE - Roteiro de entrevista semi-estruturada 1 - O que é arte para você e qual a importância dela na sua vida? 2- Na sua percepção, como a arte pode contribuir e impactar na vida dos jovens e adolescentes? Você acha que ela pode ser trabalhada como uma ferramenta capaz de propiciar mudanças nos indivíduos? 3- Qual a importância da arte para o projeto que você (desenvolvido pela ONG) desenvolve? 4 - Nas oficinas, existe algum espaço para uma discussão sobre a arte? Se existe, metodologicamente, como ela é trabalhada e abordada? 5- Qual é a contribuição desse trabalho desenvolvido para os sujeitos alvos do projeto e para comunidade? 7- Quais as dificuldades enfrentadas para implementação e continuidade do projeto? 8- Como você avalia a importância do seu projeto para sociedade? 9- Qual a sua percepção em relação a atuação do Estado nas políticas públicas voltadas para valorização da do binômio cultura e arte destinadas a juventude? 10- Você conhece algum projeto semelhante ao seu, que também atue nessa perspectiva da arte como ferramenta pedagógica? E aqui no Grande Mucuripe? 11- Seu projeto mantém alguma parceria com ONGs da Comunidade? Se não mantém o que limita ou impede essa parceria e o que você acha da possibilidade de estabelecer parcerias com outras instituições comunitária?