FACULDADE CEARENSE
SERVIÇO SOCIAL
CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS
A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIAS DE
GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS
PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP”
FORTALEZA – CEARÁ
2014
CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS
A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIAS DE
GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS
PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP”
Monografia submetida à aprovação ao
Curso de Graduação em Serviço Social da
Faculdade Cearense como requisito
parcial para a obtenção do grau de
graduação.
Orientador: Prof. Dr. Mário Henrique Castro
Benevides.
FORTALEZA – CEARÁ
2014
CÍCERA FABIOLA DE SOUZA SANTOS
A ARTE COMO FERRAMENTA DE SIGNIFICAÇÃO DE VIVÊNCIA DE
GRUPOS JUVENIS DO GRANDE MUCURIPE: UM ESTUDO DOS
PROJETOS “ENXAME” E “NEGUINHO DO RAP”
Monografia como pré-requisito para
obtenção do título de Bacharelado em
Serviço Social, outorgado pela Faculdade
Cearense- FAC, tendo sido aprovada pela
banca examinadora composta pelos
professores.
Data de aprovação: _____/_____/_____
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Professor Dr. Mário Henrique Castro Benevides
______________________________________________________
Professor Ms. Francisco Secundo da Silva Neto
______________________________________________________
Professora Ms. Joelma Maria Freitas
A minha mãe, Francisca Edna.
“Ensinar o povo a ver criticamente o mundo é
sempre uma prática incômoda para os que
fundam seus poderes na ignorância dos
explorados.”
(Paulo Freire)
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos coordenadores do Enxame, Valber, Paulo
Emílio, Sidarta e ao Neguinho do Rap que se dispuseram a colaborar com
este trabalho dando-me todo suporte necessário para desenvolver minha
análise de campo.
A minha mãe, Francisca Edna, exemplo de determinação, que me apoiou em
todos os momentos de minha vida e com toda sabedoria deu-me as bases
para meu crescimento pessoal.
Aos meus avôs maternos, Edite Alves e José Bernardino, seu Dedé.
A todos os professores que contribuíram para minha formação acadêmica, em
especial, ao meu orientador Mário Benevides, Cristiane Porfírio, Rúbia
Gonçalves e Renato Ângelo.
Aos meus parceiros de turma e amigos; Diana Soares, Fabrícia Queiroz,
Alfredo Monteiro e Daniele Bandeira. Juntos, compartilhamos momentos de
inquietações, angústia e dúvidas sobre os percalços de nossa formação. Mas
também dividimos sorrisos e comemoramos durante toda caminhada.
Aos companheiros de luta, Marcelo Michiles, Myrna Soares, Marisa
Albuquerque, Isalenny Gonçalves e Emilie Kluwen. Estes tiveram ao meu lado
em um dos momentos mais ricos de minha trajetória acadêmica.
RESUMO
Este trabalho se propõe a pesquisar sobre a arte como ferramenta de
significação de vivências dos grupos juvenis da periferia urbana a partir das
experiências do Projeto Enxame e do Neguinho do Rap. O objetivo central é
compreender como a arte pode ser utilizada como instrumento propulsor de
significação e ressignificação de códigos e signos juvenis e entender de que
maneira ela se reflete na vida dos jovens. O Projeto Enxame foi fundado em
2000 e trabalha com a proposta de ressignificação de valores, da noção de
direito e cidadania, através da arte-educação, ampliando e produzindo novos
códigos culturais. As ações independentes de Neguinho do Rap se iniciaram
no ano de 2012, com intuito de propiciar uma reflexão crítica e consciente
acerca da realidade dos jovens e crianças, utilizando oficinas de hip-hop,
como método arte-educativo. Ambos os projetos visam trabalhar a arte e a
educação promovendo um processo de conhecimento e autoconhecimento
para a afirmação e reconhecimento de identidades culturais. Utilizei como
recurso metodológico para análise de campo levantamento histórico sobre os
projetos, entrevistas com os coordenadores e também conversas informais.
No decorrer do texto, são discutidas ideias de juventude, cultura, arte e
educação. Atualmente, os projetos estão com as atividades paralisadas.
Assim este estudo conclui suas análises fazendo uma reflexão sobre a
relevância desses projetos para juventude periférica.
Palavras-chave: Juventude, arte, cultura, educação e ressignificação de
vivências.
ABSTRACT
This work intends to research the significance of art as experiences of
the youth groups of the urban periphery from the experiences of the Swarm
Project and Neguinho Rap tool. The central goal is to understand how art can
be used as a tool propellant meaning and reframing codes and juvenile signs
and understand how it is reflected in the lives of young people. The Swarm
Project, was founded in 2000 and works with the proposed redefinition of
Value, the notion of rights and citizenship , through art education , expanding
and producing new cultural codes . The independent actions of Neguinho Rap,
initiated in 2012, aiming to provide a critical and conscious about the reality of
young people and children reflection, using hip-hop workshops, as art education method. Both projects aim to work in art education and promoting a
process of self- knowledge and to the affirmation and recognition of cultural
identities Throughout the text are discussed ideas of youth culture, art and
education. Currently, projects are stalled with the activities. Thus this study
concludes his analysis by making a reflection on the relevance of these
projects to peripheral youth.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 08
CAPÍTULO 1 – CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇO EMPÍRICO
1.1 Uma viagem no tempo pelo Grande Mucuripe - Do morro Santa Teresinha
ao Serviluz ................................................................................................ 16
1.2 Duas histórias para contar: Tem Enxame no morro e Neguinho
"nas áreas"................................................................................................ 22
1.3 Precisamos fazer Enxame ....................................................................... 30
1.4 Solta o som, Neguinho! ........................................................................... 38
CAPÍTULO 2 - UM NOVO OLHAR SOBRE A JUVENTUDE
2.1. "A „Juventude‟ é apenas uma palavra"? .................................................. 41
2.2. Juventude e Estado: Políticas Públicas de Juventude e novas maneiras
de fazer política .............................................................................................. 47
CAPÍTULO 3 - JUVENTUDE, CULTURA, ARTE E EDUCAÇÃO: NEXOS
CATEGÓRICOS
3.1. A interpretação das culturas como ponto de partida................................ 54
3.2. A arte como ferramenta de ressignificação ............................................. 62
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 76
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 81
APÊNDICE
Apêndice: Roteiro de entrevista ..................................................................... 85
8
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se constitui mediante o esforço em investigar a arte
como ferramenta propulsora de significação e ressignificação de vivências
dos grupos juvenis da periferia urbana de Fortaleza, partindo das experiências
do Projeto Enxame e das ações independentes de Neguinho do Rap.
Portanto, o objetivo central é analisar a arte como instrumento capaz de
propiciar uma reflexão crítica do movimento do real, tendo por base a
realidade sociocultural da juventude da periferia urbana.
Contextualizaremos sucintamente a experiência de estágio, para que
se compreenda como ela impulsionou a delimitar o objeto de estudo, sendo
elemento determinante para despertar o interesse na escolha da temática
abordada.
No ano de 2012, quando foi iniciado o estágio curricular no Centro
Educacional de Semiliberdade Mártir Francisca, decidiu-se centralizar o olhar
investigativo na área das medidas socioeducativas. Inicialmente, pensou-se
em pesquisar sobre o processo de ressocialização; no entanto, ao fazer um
breve levantamento bibliográfico sobre o assunto, percebeu-se que iria
retomar a mesma discussão já tão enfatizada e pragmática em que se
debruçam vários estudiosos da área: as falhas do processo ressocializante.
Então, após um ano e seis meses vivenciando no campo de estágio, resolvese analisar a temática adolescente-autor de ato infracional mediante um
prisma inovador para o serviço social, dando outro direcionamento às
pesquisas.
O centro de semiliberdade de Fortaleza é coordenado pelo Governo do
Estado e recebe adolescentes que cometeram atos infracionais para
cumprimento de medida socioeducativa. Na instituição, são desenvolvidas
atividades socioeducativas através de oficinas de textura e serigrafia. Desde
que se iniciou o estágio, despertou-se curiosidade em compreender como
9
essas oficinas eram implementadas e qual a visão dos socioeducandos sobre
o impacto delas no processo de ressocialização. Para responder aos
questionamentos, passou-se a acompanhar a dinâmica das oficinas. Após
observar como elas eram aplicadas e a maneira com que os jovens se
comportavam nas aulas, decidiu-se indaga-los, durante atendimentos
realizados pelo setor social, a respeito da percepção deles acerca das
oficinas. Resultado, os relatos de descontentamento com essas atividades
foram significativamente relevantes, entretanto, não me surpreenderam. No
período em que se acompanharam as atividades socioeducativas, percebeuse que elas funcionavam como uma terapia ocupacional para o adestramento
de corpos, ou seja, os jovens ficavam nas salas, participando das atividades
para ocupar o tempo ocioso, mesmo que não se identificassem com pintura,
desenho ou outras opções limitadas de trabalhos artesanais oferecidos.
A fala abaixo é de um socioeducando que foi encaminhado para
atendimento ao setor social porque estava com mau comportamento na
oficina de textura:
Nois tem que ficar ai nessa oficina veia chata, sem fazer nada. Não
tem nem quadro que dê pra todo mundo pintar, porque o Jak ainda
não desenhou. Mó paia esse negocio. Agora ele quer que a gente
pinte esses cavalo vei, nam... ai tem que ficar ai feito besta só
olhando pra ele, pode nem sair que esses educador vei fica ai tudo
se inchando pra gente, dá vontade de quebrar é tudo ai...
(Francisco, 17 anos.)
Cabe ainda ressaltar que, no cotidiano institucional, as manifestações
socioculturais desses adolescentes são reprimidas; por exemplo, o rap é ritmo
proibido de ser cantado nos corredores do centro educacional ou de ser
escutado nos horários de lazer, pois é estereotipado como música de
apologia ao crime. No entanto, contraditoriamente a este conceito
conservador e elitista, o rap é caracterizado como música emanada,
sobretudo das camadas populares da sociedade que abordam em suas
composições críticas as problemáticas enfrentadas no dia-a-dia da periferia.
Dentro da instituição, os jovens assumem uma postura relativa às
codificações dominantes das normas sociais e explicitam o que
supõe que deles se espera. Na rua, seus corpos vão assumindo a
10
cadência dos acontecimentos, ocupando lugares simbólicos que
produzem, instituem e nos possibilitam a nos identificar
personagens mais concretos, situados no conjunto de suas
relações. (DIÓGENES, 2006: 193)
Em oposição ao que era desenvolvido na instituição, a Proposta de
Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará (2002),
documento elaborado para nortear as ações desenvolvidas nos centros
educacionais do estado, destaca como programa a proposta de arte,
educação e cultura nas atividades socioeducativas que devem ser voltadas
para construção de uma consciência crítica da realidade de exclusão dos
indivíduos no intuito de proporcionar a fomentar de novos valores éticos que
caminhem no sentido de superação dessa realidade exercitando o
protagonismo juvenil.
Para tanto, é preciso que o gosto por fazer arte do adolescente
encontre sentido em um fazer arte que o ocupe física e
mentalmente, desenvolvendo seu pensamento artístico, percepção
estética sensibilidade e imaginação. (...) Educar pela arte é, por
conseguinte, a intenção do Programa, entendendo a arte como a
busca de conscientizar em formas, o modo dinâmico do sentir
humano; compreendendo a arte como espaço por excelência do ato
de criação (...) (Proposta de Atendimento ao Adolescente em
Conflito com a Lei no Ceará, p.51).
Com olhar direcionado para o âmbito das oficinas de arte, ainda no
campo de estágio, elaborou-se um projeto de intervenção. Norteando-se pela
proposta pedagógica, com o desejo de inovar as atividades arte educativas no
intuito de estreitar a ponte entre o real e o ideal, foi proposta à direção da
Unidade realizar oficinas de rap e grafite. Para aplicar o projeto, fez-se a
articulação com pessoas que já trabalhavam nessa área. Foi quando se
conheceu o Neguinho do Rap e o Projeto Enxame. No entanto, apesar do
empenho para dar materialidade à sugestão de ação interventiva, ela não foi
autorizada para implementação. Foi justamente esse fato que instigou ainda
mais a curiosidade sobre o assunto.
Assim, se dedicou a lançar um olhar mais amplo, para além dos muros
institucionais, tendo como objetivo central pesquisar a arte como instrumento
11
que apresenta formas alternativas e críticas capazes de pensar uma nova
representação do real, relacionando-a à vivência de grupos juvenis.
O objetivo desta análise consiste em elucidar alguns questionamentos
que emergiram a partir das vivências de estágio, por exemplo: O que é arte?
A arte também tem função educativa? Será que a relação entre arte e
educação
auxilia
no
processo
de
formação
de
consciência
e
da
autoconsciência dos indivíduos? E, se realmente auxilia, como se dá esse
processo? Qual sua contribuição na construção das identidades das culturas
juvenis? Quais os espaços em que a arte é trabalhada como instrumento
socioeducativo? De que maneira a arte é utilizada como ferramenta de
ressignificação dos grupos juvenis? Qual a influência do contexto sociocultural
no universo da arte, educação? Essas perguntas serão discutidas no decorrer
desse texto, no sentido de manter um diálogo permanente entre a teoria e o
campo empírico.
A relação entre Juventude, cultura, arte e educação foi estudada nas
atividades realizadas pelo Projeto Exame e pelas ações desenvolvidas por
Neguinho do Rap, levando em consideração as marcas de territorialidade e o
contexto social em que esses projetos estão imersos.
O Enxame está localizado no bairro Mucuripe, morro Santa Terezinha,
zona litorânea de Fortaleza, área caracterizada por grande vulnerabilidade
social. A região é marcada não só por problemáticas: desigualdade social,
turismo sexual, especulação imobiliária entre outros, mas também por sua
riqueza cultural. Até os anos 90, o morro era conhecido como atração
turística, por ser um dos pontos mais altos da cidade, onde se situa o Mirante.
Atualmente, o local é marcado pelo abandono por parte do poder público e
pelos altos índices de violência. O Enxame trabalha na perspectiva da
recodificação da noção de direito e cidadania, através da arte-educação,
atendendo crianças, jovens e adolescentes. Promove ainda oficinas de hiphop, artes visuais dentre outras atividades. Porém, atualmente o projeto
enfrenta dificuldades para prosseguir sua atuação devido à falta de recursos.
12
Situado no Grande Mucuripe, bairro Serviluz, em cenário semelhante
ao do Enxame, emerge, com suas nuances particulares, as intervenções de
Neguinho do Rap. Neguinho do Rap já foi presidiário, cumpriu mais de 10
anos de pena. E quando saiu do sistema penitenciário gravou um CD e
começou a desenvolver oficinas de rap, grafite, deejay para crianças e jovens
da comunidade, na intenção de afastá-los da criminalidade, utilizando a arte
como instrumento educativo. Para ele, o rap é uma forma expressão da
periferia, é uma maneira de lutar contra o sistema. Entretanto, as ações foram
canceladas, pois Neguinho não tinha nenhum tipo de apoio financeiro para
manter as despesas das atividades.
Nesse contexto, cabe fazer um recorte dos atores aqui investigados, a
juventude urbana periférica. Por isso, como afirma Machado Pais (1990), não
se pode entender a juventude como uma categoria homogênea, pois ela é
marcada por uma pluralidade. "Na verdade, a juventude aparece socialmente
dividida em função dos seus interesses, das suas origens sociais, das suas
perspectivas e aspirações" (PAIS, 1990: 149). Com o objetivo de
compreender a maneira de pensar e agir desse grupo social, inicialmente, fezse uma abordagem teórica, a fim de entender, de modo geral, a disposição da
juventude contemporânea, não limitando essa percepção ao corte geracional,
mas refletindo acerca de sua relação com a dinâmica social.
Assim,
para
apreender
com
maior
profundidade
motivações,
expressões, signos e códigos dos jovens da periferia, foi levada em
consideração a reflexão de autores como DaMatta, que aborda a cultura
enquanto categoria imprescindível para compreensão do modo de vida de
determinada sociedade, relacionando-a ao conjunto de normas sociais e aos
modos de comportamentos de um povo. E Geertz (2008), que entende os
fenômenos culturais através de uma análise interpretativa de seus
significados. Nessa perspectiva, a cultura aparece como forma de
representação de um grupo social, desmistificando a maneira polarizada em
que a palavra cultura é empregada. Muitas vezes usada no sentido pejorativo,
para diminuir ou ignorar uma pessoa ou grupo social, afirmando que este não
tem cultura ou tem cultura inferior.
13
"A cultura, por sua vez, é espaço privilegiado da Arte". (Proposta de
Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, p.52) Para
Peixoto (
), a arte
e a educação são manifestações do processo de
produção da existência humana que compõe o universo cultural. Bourdieu
(1996) defende que essas manifestações culturais tem valor simbólico
orquestrado pelas condições objetivas do espaço social em que o indivíduo
está inserido. Nessa perspectiva, as expressões artísticas dos grupos juvenis
da periferia, não podem ser compreendidas se dissociados do contexto
histórico, social, econômico e político.
Para que os indivíduos entendam a dinâmica da realidade que os cerca
e sejam capazes de pensar criticamente sobre ela, Paulo Freire (2002)
acredita na importância da educação como processo de conhecimento capaz
de despertar a capacidade crítico-reflexiva através do qual o homem ascende
para o estado consciente. O pensamento pedagógico freiriano defende ainda
utiliza uma prática dialógica, ou seja, o exercício do diálogo na tentativa de
educar os indivíduos mediante suas próprias vivências.
Desse modo, a educação pensada por Freire pode vir a ser um
instrumento propulsor de transformações sociais. Da mesma maneira que a
arte, como defende Peixoto, também se apresenta como ferramenta capaz de
despertar o conhecimento e autoconhecimento. E a partir do que foi
sucintamente exposto, é possível vislumbrar a junção entre arte e educação
como esferas que compõem o espaço cultura.
Nas oficinas do Enxame e do Neguinho do Rap, a arte-educação é o
método utilizado nas oficinas de artes visuais, break, grafite, rap, dentre
outras atividades. Pois através dessas atividades arte-educativas estes
projetos buscam recodificar os signos sociais no intuito de promover o
conhecimento e reconhecimento da dinâmica sociocultural, incentivando o
protagonismo juvenil e ampliando os códigos culturais na busca de novas
formas de inserção social.
Inicialmente, a intenção era desenvolver o tema pesquisado a partir do
olhar dos próprios jovens para adentar de maneira mais densa em suas
representações simbólicas, expressão e percepção do mundo que os cerca.
14
Entretanto, o campo empírico impediu que se mergulhasse com maior
profundidade nas impressões pessoais destes atores. Pois somente quando
foi realizada a primeira visita ao Enxame e ao Neguinho do Rap, em agosto
de 2013, deu-se conta de que suas ações interventivas não estavam
funcionando devido à falta de recursos e por isso não tive contato mais
próximo com os alunos. Mesmo assim, durante pouco mais de 6 meses foi
acompanhada a trajetória desses projetos.
Desse modo, a alternativa encontrada foi fazer um levantamento dos
arquivos do Enxame. Iniciar uma busca de reportagens, artigos, gravações de
áudio e vídeo de ambos os projetos e entrevistar os coordenadores. Foi feita
uma entrevista com Neguinho do Rap, dois coordenadores do Enxame, Valber
e Paulo Emílio. Conversou-se algumas vezes com Sidarta Cabral, que é
coordenador do Enxame, com alguns jovens que estavam presentes na sede
do Enxame as vezes em que foram feitas as visitas e com moradores do
Morro Santa Terezinha e Serviluz. Participou-se também dos três primeiros
Encontros Culturais em prol da Revitalização do Mirante. Utilizou-se como
recurso metodológico a entrevista semiestruturada e o relato de vida. Muitas
informações também foram obtidas através de conversas informais. Outra
ferramenta que acompanhou toda a pesquisa foi a escrita de um diário de
campo. Nele, se puderam registrar os momentos que chamaram atenção,
reflexões e descrições sobre a experiência vivenciada.
Portanto, neste trabalho se esforça para manter um diálogo
permanente entre a teoria e o campo empírico. E assim, ele segue
estruturado em três capítulos:
No primeiro capítulo, é feita uma viagem no tempo pelo Grande
Mucuripe, resgatando a história do Morro Santa Teresinha e do Serviluz.
Também é retomada toda a trajetória do Enxame e do Neguinho do Rap,
apresentando a proposta de ação desses projetos e destacando a situação
atual em que se encontram.
O segundo capítulo é de natureza mais teórica, onde se fala sobre a
juventude enquanto uma categoria sociológica, analisando os aspectos
15
históricos e
sua disposição contemporânea para pensar a relação entre
juventude e Estado.
No último capítulo, é apresentada a discussão central dessa pesquisa.
São abordadas algumas considerações sobre o conceito de cultura e, a partir
delas, buscou-se entender a junção entre arte e educação na perspectiva dos
projetos estudados. E, nesse sentido, entender a arte como ferramenta de
ressignificação dos grupos juvenis da periferia urbana.
Assim, esse trabalho é apenas um convite para iniciar uma longa
aventura de possibilidades infinitas pelo mundo da cultura, da arte e da
educação, pelo do universo da juventude da periférica.
16
CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZANDO O ESPAÇO EMPÍRICO
1.1 Uma viagem no espaço e no tempo pelo Grande Mucuripe – do
morro Santa Teresinha ao Serviluz
Vejo a luz do Mucuripe belo inútil videoclipe blues amargo de razão.
Nenhum barco me acena e minha alma quase plena ri do caos da confusão,
Do trânsito engarrafado, do grito desesperado calado na multidão.
Fagner e Zeca Baleiro.
Cenário do romance do livro Iracema de José de Alencar, cantado e
citado em versos e prosas e famoso ponto turístico da capital na década de
90, o Mucuripe foi enseada de Fortaleza, reduto de navegantes, vila de
pescadores e hoje é um dos bairros litorâneos da cidade mais marcados pela
segregação social. De um lado, grandes e luxuosas construções verticais. Do
outro,
casas
simples
e
barracos que seguem desordenados
outra
verticalidade, os morros, muitas vezes, localizados em áreas de risco. Um dos
cartões postais da capital destaca os arranha-céus que compõe a paisagem
da Avenida Beira Mar com as jangadas que velejam tranquilamente nas ondas
dos verdes mares. Entretanto, ignora com um olhar imediato, as vozes que
ecoam da periferia, desprezando as particularidades de um povo.
A vertente histórica tradicional cabe aqui destacar aquela abordada nos
livros didáticos, afirma a versão lusitana de Cabral como data oficial de
chegada dos povos europeus no Brasil. No entanto, segundo Miguel Ângelo
(2001), foi no Cabo de Santa Maria de la Consolacion, onde anos depois ficou
conhecido como Ponta do Mucuripe, que embarcações espanholas
comandadas por Vicente Yãnez Pizón ancoraram, pela primeira vez,
em
terras brasileira.
Desembarcados o comandante, o escrivão da frota e alguns
marinheiros, abasteceram os navios de lenha e água, mas não
conseguiram parlamentar com os nativos hostis, apontando-lhes as
suas frechas em ameaça. Sobretudo, a terra era inóspita, e por esse
motivo, prosseguiram a rota (RAIMUNDO GIRÃO, 1979: 20).
17
Iniciado o processo histórico de colonização do Ceará, em 1574, o
Mucuripe surge na geografia espacial sendo ilustrado no mapa das capitanias
brasileiras. O nome Mucuripe é de origem indígena - Tupi, porém sua
etimologia nunca chegou a um consenso. Dentre as várias hipóteses sobre
essa nomenclatura, uma delas é que venha de mucuras, um roedor que
existia em abundância nessa região, outra denominação, defende Teodoro
Sampaio Girão, sugere que o nome esteja relacionado com mucuri, árvores
de grande porte encontradas na faixa litorânea. Até chegar sua construção
atual, a palavra já foi grafada de diversas formas: Macuriba, Muccouru,
Macorie, Macuripa as variações dependiam do idioma em que era escrita
(GIRÃO, 1979).
Girão (op. cit.) também afirma que, durante muito tempo, essa região
litorânea permaneceu sem avanços. Era frequentada por navegantes como
refúgio das longas viagens, embarcações que chegavam à enseada em
busca de mercadorias e por piratas; posteriormente tornou-se uma vila de
pescadores.
Para compreender a produção e a apropriação do bairro Mucuripe,
faz-se necessário um resgate de como aconteceram a formação e a
expansão da cidade de Fortaleza, a qual lógica que preside a
gestão da Cidade, como esta está atrelada ao Global, e, a partir daí,
poder perceber que o Mucuripe, mesmo com suas particularidades,
não está dissociado de uma realidade maior (RAMOS, 2003: 42).
Segundo Airton de Farias (2012), a cotonicultura1 impulsionou várias
mudanças na em Fortaleza. A construção da Estrada de Fero de Baturité,
iniciada em 1870, com objetivo de escoar mercadorias, estreitou a distância
entre o litoral e o sertão. O apogeu do cultivo e da exportação do algodão
associado ao consequente processo de crescimento e 'modernização', seguiu
calcada na industrialização do país e moldurada pelo capitalismo que se
consolidava no mundo. Esse período foi acompanhado pelo intenso fluxo
migratório (interior-capital) ocasionado, também, pelas constantes secas,
sobretudo a de 1932, que aglomeravam no centro e ao redor da malha férrea
1
Cultivo de algodão.
18
da capital uma massa de retirantes desempregados e latifundiários em busca
de negócios.
Assim cidade começa a incorporar novos contornos nos ordenamentos
de sua geografia espacial e, na década de 30, "surgem as primeiras favelas
em sua malha urbana, expressão de um saber popular na forma de produzir a
habitação da cidade" (CHAVES, VELOSO e CAPELO, 2006: 52).
O litoral começa a ser ocupado pelas elites da cidade, inicialmente
como área de lazer. Com o crescimento da população urbana, o espaço
litorâneo passa a ser ocupado por segmentos menos privilegiados da
população: jangadeiros, retirantes, pobres e trabalhadores ficam segregados
nas áreas periféricas com ausência de infraestrutura, vivendo condições
precárias.
O movimento de ocupação das zonas de praia pelos pobres
corresponde, essencialmente à demanda por ocupação, reprimida,
dos retirantes que não conseguem se estabelecer no centro da
cidade, vendo-se forçados por política higienista de ordenamento e
controle social a se fixar nos terrenos de marinha, lugar privilegiado
de concentração desse segmento da população (DANTAS, 2002:
52-53).
"A partir de 1980, muitas famílias de pescadores fixaram-se nas
encostas dos morros Teixeira, Morro Santa Teresinha, Castelo Encantado, ou
em bairros que estão ligados ao Grande Mucuripe, como Vicente Pinzón,
Serviluz e Varjota" (RAMOS, 2003: 62). Inicia-se, assim, a problemática
habitacional que se perpetua na contemporaneidade, marcada pela
desigualdade social. Valber, diretor e arte-educador do Enxame e morador do
bairro há mais de 15 anos, ao comentar sobre o processo de especulação
imobiliária e as suas consequências para o local mencionou:
Se você me perguntar por que que o Mucuripe está tão apagado, é
uma tentativa de apagar também história e identidade do bairro (...)
Quanto mais feio e mais abandonado mais barato é o terreno. (...)
Aqui tem uma bacia hidrográfica, O Riacho Maceió. Hoje ela está
poluída, a invasão e os entulhos da construção civil atrapalham o
fluxo natural do riacho, aí quando chove inunda tudo ali em baixo.
19
Pude compreender com maior clareza a afirmação de Valber, quando
entrevistei dona Hermínia, antiga moradora do bairro, que transparecendo
muita felicidade contou-me um pouco sobre a história de ocupação dos
morros Teixeira e Santa Teresinha, a partir de suas vivências. Ela mora em
um dos pontos mais privilegiados do Conjunto Santa Teresinha, o alto do
Morro, onde na década de 90 se localizava um dos pontos turísticos mais
conhecidos de Fortaleza, a vila gastronômica do Mirante.
Eu cheguei aqui em 1981. Antes eu morava no Morro da Teixeira,
que fica ali na frente, ai depois começaram a ocupar, de repente,
derrubaram tudo, era gente chorando, correndo e eu me mudei para
cá e estou até hoje. Aqui é muito bom, eu não quero sair daqui mais
não. Já foi mais animado, tudo aqui em cima era restaurante, era
gente passando direto uma animação só, a gente sentava na
calçada até tarde, não tinha perigo, ai depois os restaurantes saíram
e ficou abandonado. (...) era perigoso viu, agente não podia mais
sentar na calçada, hoje tá mais tranquilo. (...)Os moradores antigos
a maioria venderam tudo, para os donos dos restaurantes, e se
mudaram daqui, mas eu não vendo não. Já me ofereceram dinheiro
pela minha casa, mas agora que vai melhorar, o prefeito já marcou
até um dia para agente providenciar a documentação e fazer a
escritura das casas, a maioria aqui não tem não, é só aquele papel,
como é que é... de compra né! ( Hermínia - Moradora do bairro há
mais de 30 anos.)
Hoje, do antigo Mucuripe pouca coisa restou. A invasão da construção
civil transfigurou a paisagem natural da faixa litorânea, agrediu a natureza;
riacho, dunas e praia, criou uma segregação social de espaços acentuando
as desigualdades e contradições e camuflou as raízes populares que
originaram o bairro, limitando-o a figura emblemática de jangadas velejantes.
Paulo Emílio, coordenador do projeto Enxame e morador do bairro, em uma
entrevista, lamentou sobre o grande número de prédios que compunham a
orla, enfatizando para uma construção em especial que avançou a encosta do
morro: "Sabe um prédio que tem bem na encosta do morro, um que é ele
sozinho, um prédio vermelho? Aquilo ali é totalmente ilegal" (Paulo Emílio).
Uma reportagem do Jornal O Povo notícia que em 2011, a Prefeitura
Municipal de Fortaleza aprovou o projeto de revitalização do Morro Santa
Terezinha, que previa a construção do muro de contenção, instalação de
bondinho e áreas de lazer como anfiteatro, praças e espaços para a prática
de esportes. A obra orçada em R$10 milhões iniciou, segundo moradores, em
20
agosto do ano citado, no entanto, eles afirmam que, há aproximadamente 8
meses, a obra está estagnada. Em fevereiro deste ano, em entrevista ao
mesmo jornal, o segundo o titular da Secretaria do Turismo de Fortaleza
(Setfor), Salmito Filho, afirma que a obra foi suspensa por irregularidades em
sua execução e, para dar continuidade, será preciso fazer uma nova licitação
(Jornal O Povo: 23/05/2011 -06/02/2013).
Entregues ao abandono por parte do poder público, as comunidades do
Mucuripe relutam por melhores condições de vida. Não por acaso decidiu-se
realizar a pesquisa nessa localidade, pois ela possibilitou uma gama de
informações acerca do tema investigado. Os bairros que compõem o Grande
Mucuripe contam com significativo número de associações de comunitárias,
ONGs, e ações independentes.
Imersa na mesma contextualização histórica do surgimento do Grande
Mucuripe, a comunidade do Serviluz emerge com suas particularidades. O
nome do bairro está relacionado com a empresa de luz elétrica - Serviço de
Energia Elétrica Municipal que se instalou no local em 1954, atualmente
desativada.
Uma das primeiras construções realizadas na área, onde hoje é situado
o Serviluz, é o antigo Farol, edificado em 1846 na Ponta do Mucuripe pela
mão-de-obra escrava. Em 1958, foi inaugurado um novo Farol e antigo ficou
desativado e, em 1982 o monumento passou por uma reforma sendo
tombado como patrimônio cultural em 83. Situado na Avenida Vicente de
Castro s/nº, na Ponta do Mucuripe, o Farol que já serviu de museu do
jangadeiro, lamentavelmente, hoje se encontra abandonado, deteriorado pela
erosão marinha e depredado pelos próprios moradores do bairro.
No início dos anos 40 do século XX, foi iniciada a construção do Porto
do Mucuripe, concluída alguns anos depois em 1947. Na década de 50, o
porto passa por grandes reformas e, em 94, é feita ampliação de um terminal
portuário. Ramos (2003) ressalta que "a instalação do porto foi um grande
21
indutor do crescimento Mucuripe e áreas próximas, com alta concentração da
população de baixa renda" (RAMOS, 2003: 57).
Nas proximidades do porto, começou a se formar uma concentração
industrial; instalaram-se várias fábricas, por exemplo, o Moinho Dias Branco.
O crescimento populacional dessa área mesclou-se por um grupo
heterogêneo de trabalhadores. Eram retirantes, pescadores, portuários,
pequenos comerciantes e meretrizes (RAMOS, op. cit.).
Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição e,
por isso, em 1952, 600 mulheres foram ameaçadas de despejo pela
Secretaria da Polícia, pois alguma famílias exigiam a transferência
dos prostíbulos para outros lugares. No Mucuripe, nas proximidades
do velho Farol, instalou-se uma das principais zonas de Prostituição
de Fortaleza (Simone de Souza, Adelaide Gonçalves, 2007: 68).
O complexo portuário modificou gradativamente o cotidiano da
população local. Hoje, o cenário que compõe o Serviluz mistura-se em um
complexo industrial de gás e combustíveis que encobre a comunidade
humilde e pauperizada disposta em becos e ruelas, contornada por uma
beleza particular e exuberante: o mar. O bairro ainda se assemelha a uma vila
de pescadores. Um calçadão sem muita estrutura divide a faixa de praia do
calçamento que se mescla com a areia das dunas levadas pela ação dos
fortes ventos. As ruas são estreitas, muitas sem pavimentação e aquelas que
ficam mais próximas ao mar são tomadas de areia. Propícia para a prática
esportiva do surfe, atividade muito difundida na comunidade, a praia do
Titanzinho é atrativo principal do local e área de lazer dos moradores que com
orgulho lembram que campeões mundiais de surfe saíram do Serviluz.
Uma das atuais problemáticas que preocupa a comunidade é a
construção do estaleiro. De acordo com Governo do Estado, a obra trará
melhorias para os moradores e irá gerar novos empregos para população.
Entretanto, para que o empreendimento seja implantado, será necessário
realizar algumas modificações na costa marítima. Além dos impactos
ambientais, uma dessas modificações implica na construção e ampliação de
novos quebra-mares, para conter as ondulações da maré, o que impacta
22
consequências diretas para os trabalhadores que vivem da pesca e também,
no principal esporte e espaço de lazer dos jovens da região, o surf.
O governador afirmou que o empreendimento não trará impactos
ambientais e sociais. É mentira. É consenso entre os ambientalistas
sérios da cidade que o impacto será imenso e não afetará somente
o Serviluz mas toda a orla de Fortaleza. Quanto aos impactos
sociais, estes são óbvios – removerá famílias, afetará práticas
esportivas e culturais, destruirá ainda mais a identidade e os laços
comunitários [...] Sabemos que o Serviluz é uma Zona Especial de
Interesses Social. [...] Estamos prontos para lutar pelo Serviluz que
queremos. (Carta Aberta das Organizações Populares do Serviluz
de repúdio a instalação de um estaleiro no bairro Serviluz).
É evidente que não se pode deixar de refletir sobre as intenções
políticas que orquestram o desenvolvimento da cidade e consequentemente
refletem na maneira como os espaços sociais vêm sendo produzidos e
reproduzidos. Partindo dessa compreensão, nesse passeio pelo tempo,
dentre os diversos olhares sobre o Grande Mucuripe, que variam desde uma
percepção
poética,
saudosista
e
estratégica
do
colonizador,
cabe,
irrefutavelmente, destacar nesta pesquisa a importância de um olhar em
especial, os personagens contemporâneos dessa história, que em seu
cotidiano configuram as relações e o movimento real dos tempos modernos.
1.2 Duas histórias para contar: Tem Enxame no morro e Neguinho
"nas áreas"
Tem Enxame no morro
Em minhas lembranças de infância de toda riqueza que o Cabo da
Saudade2 apresentava somente uma paisagem seduzia de maneira
estonteante minha atenção e apreendia meu olhar. Era o aglomerado de
pontinhos brilhantes e entre eles a imensidão do mar que, em alguns
2
Girão (1979) refere-se ao Mucuripe como Cabo da Saudade, descrevendo o sentimento dos
jangadeiros que partiam e chegavam ao pelo mar. “Mais certo seria dar ao Mucuripe o nome
de Cabo da Saudade. Ao dobrá-lo quem deixa a terra tem cheia a alma das tristezas. Ao
perder de vista os acenos do comovente adeus das despedidas, talvez para nunca mais. Ao
dobrá-lo, quem chega com o coração fremente de alegria, é ali que começa a matar as
saudade que guardava”. (1979, p.25)
23
momentos, com dificuldade eu avistava. Essa imagem fotográfica ficou
gravada em minha memória, e aproximadamente 15 anos depois, quando
retornei ao Grande Mucuripe, ela se materializou novamente com impacto de
realidade e contornos particulares.
Em uma quinta-feira à noite, visitei, pela primeira vez, a sede do
Enxame. Ao observar o entorno do local, do alto do morro, a imagem que se
fixava em meu olhar era bastante parecida com aquela de anos atrás; de
imediato, parecia até ser a mesma, porém com uma ausência inquestionável,
as águas que se apresentavam por entre as incontáveis luzes noturnas. Em
um espasmo de segundo, me veio ao pensamento: que vista privilegiada! E,
automaticamente, com uma sensação de surpresa, verbalizei a frase
direcionando-a ao Valber, coordenador e arte-educador do Enxame, que no
momento estava abrindo o portão para que eu adentrasse na sede. Percebi
nitidamente que sua fisionomia não correspondia à empolgação do meu
comentário, pois sua expressão variava em um sorriso de boas vindas e um
tom de descontentamento ao direcionar sua visão para o mesmo local o qual
eu elogiava.
Nos momentos seguintes, durante uma longa e descontraída conversa
com Valber e com dois by-boys3, DQ, participa do projeto há dois anos e,
Mauro, há aproximadamente 5 anos, minha impressão imediata sobre o local
foi descortinada e meus conceitos foram suspensos para escutar atentamente
os relatos de Valber que transbordavam suas experiências vividas no bairro e
no Enxame. Os rapazes sentaram-se no chão da varanda e, tendo a vista do
alto do morro como pano de fundo a conversa, prossegui ao som dos
tambores de uma agradável batucada de macumba que acontecia ali perto.
Valber relatou-me sobre toda trajetória do Enxame, contextualizando
com a história do bairro. Depois de desenvolver uma densa pesquisa de
doutorado sobre as expressões de grupos juvenis e seus aspectos culturais, a
socióloga Glória Diógenes recebeu uma bolsa da fundação Macarthur para
3
Nome dado aos dançarinos de break.
24
desenvolver seu projeto sobre "Relação de Gênero, Cultura e Violência
Juvenil" que culminou na origem do Enxame.
A ideia (...) era utilizar oficinas de arte, com jovens pertencentes às
galeras do bairro, como meio de expressão de si, do outro e do
grupo, e como campo de ressignificação da noção de direitos e
cidadania. (...) Tínhamos a ideia de que a arte é um campo
propulsor de significantes, ela certamente irriga territórios
esquecidos do corpo, faz emergir novas formas de linguagem
(DIÓGENES, 2006:191).
O Enxame foi fundado no ano de 2000, através da iniciativa da
socióloga, juntamente com a cooperação dos integrantes do grupo de rap
Conscientes do Sistema, dentre eles Sidarta Cabral que hoje é um dos
coordenadores do Enxame. Em 2001, o projeto recém-iniciado torna-se uma
ONG e no decorrer do ano de 2005 passa por várias mudanças, uma delas é
a saída de Glória Diógenes. Então a coordenação foi assumida por uma
gestão comunitária sob a responsabilidade de Sidarta Cabral, ex-integrante
do grupo de rap Conscientes do Sistema, que também ajudou a fundar o
projeto e ainda hoje é um dos coordenadores. Paulo Emílio, que também é
coordenador do projeto e arte-educador, em uma conversa posterior ao
encontro com Valber, afirmou que um dos desejos da ex-coordenadora era
que o projeto fosse administrado por uma gestão comunitária.
Valber ressaltou que, após a saída de Gloria Diógenes, apesar de
algumas mudanças como cancelamento de atividades e de verbas, a missão
institucional do projeto continuou direcionada em trabalhar a arte-educação na
perspectiva de ressignificação dos valores e conceitos de direitos e cidadania
de jovens e adolescentes respeitando suas vivências e seus aspectos
socioculturais. Merecem destaque aqui os objetivos estabelecidos na
Proposta Pedagógica do Enxame:
ENXAME tem como objetivos principais à promoção da ética, da
paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros
valores universais, através da arte-educação como meio de
ressignificação de si (autoestima), do outro (princípios da alteridade
e da diferença) e de recodificação da noção de direitos e cidadania,
no campo da cultura, da violência juvenil e nas relações de gênero,
com os jovens das periferias de Fortaleza.
25
A ONG tem a proposta de realizar oficinas de break, rap, grafite, teatro,
e outas atividades arte-educativas. As atividades são desenvolvidas no
sentido de promover o processo educativo para formação de uma consciência
social e crítica da realidade, incentivando o protagonismo juvenil.
O projeto já teve várias sedes; inicialmente era localizado no clube
Terra Mar. Em 2013 mudou de sede duas vezes. Hoje, está situado no alto do
morro Santa Teresinha, na Rua Samura, nº 169, em uma casa alugada.
Atualmente, o Enxame vem encontrando entraves para implementar
suas atividades. Um dos principais motivos é a falta de recursos financeiros.
Mas, apesar das dificuldades, ainda continua buscando espaços e maneiras
possíveis para concretizar seu ideal.
Mesmo com toda dificuldade, os enxamistas4 não calam. Continuam se
mobilizando junto com comunidade, promovem eventos, participam de
festivais e driblam barreiras para desenvolver as oficinas. A periferia grita, o
som ecoa e, lá do alto do morro, continuam fazendo Enxame.
Neguinho "nas áreas"
Eu sou Neguinho do Rap, já fui ladrão dos bons.
Gostava de maconha e de curti som.
Eu lhe aconselho, não siga o meu caminho,
a trilha que passei só encontrei espinho.
Eu vou te falar um pouco dessa vida.
Ela é cruel e muito sofrida.
Neguinho do Rap
Em um final de tarde, tive o prazer de conhecer pessoalmente,
Josenildo, hoje conhecido como o Neguinho do Rap ou Negão como é
chamado na vizinhança. Depois de algumas conversas por telefone, em que
4
Como são chamados os participantes do Projeto Enxame.
26
apresentei minha pesquisa explicando o motivo porque decidi procurá-lo,
resolvemos marcar um encontro para que ele pudesse me contar sua história
e falar sobre as ações que desenvolve na comunidade.
Ao chegar ao Bairro Serviluz, quando entrei na avenida principal, Zezé
Diogo, a primeira coisa que se avistou foi a torre do antigo farol do Mucuripe,
o que remeteu imediatamente à origem do bairro. Depois de seguir pela
avenida, após perguntar informações a algumas pessoas que estavam na rua,
foi encontrado o endereço procurado. Ao chegar em uma rua estreita, já bem
próximo à praia, o grafite no muro de uma esquina gafava o seguinte:
“Neguinho do Rap – Liberdade Conquistada”. Então, teve-se a convicção de
que estava no caminho certo. Deram-se mais alguns passos e lá estava ele,
O Neguinho do Rap, sentado enfrente ao M.C Mercadinho do Povo, um
pequeno comércio que funciona na sua própria casa. A pesquisadora
apresentou-se e, logo em seguida, pegaram cadeiras e sentaram-se no outro
lado da calçada.
Enquanto a entrevista era realizada, algumas pessoas que transitavam
pela ruela ou se dirigiam ao mercadinho eram apresentadas. A entrevista
com Neguinho do Rap foi um momento muito enriquecedor para este
trabalho. Sua história renovou o ânimo da pesquisadora e motivou-a mais
ainda a dedicar-se a esta pesquisa.
Josenildo Mário Dutra nasceu em Recife e, com alguns meses de vida,
foi morar em São Paulo. Passou sua adolescência e juventude na periferia
paulista do bairro São Miguel, onde descobriu mais uma possibilidade de
sobrevivência, o crime.
Na favela eu tinha acesso a tudo, ao crime, os cara cortavam carro,
assim, enfrente a minha casa. Ai meu pivete queria uma bicicleta no
natal, e um cara disse: Vamo cortar esse carro que no final tu tem a
bicicleta. E foi assim mesmo, quando terminei tinha 200 contos e
comprei a bicicleta, e o pivete ficou lá todo feliz. (Neguinho do Rap)
Na linguagem de Josenildo, “cortar carros” significa desmanchá-los
amassando a ferragem para retirar as peças que podem ser vendidas. Para
27
ele, o desmanche ilegal de automóveis passou a ser uma maneira fácil de
ganhar dinheiro. E sempre que estava sem condições financeiras de suprir
suas necessidades, não hesitava em efetuar tal prática. Assim, cada vez mais
ele foi se envolvendo com o crime e praticou vários outros atos ilícitos; um
deles culminou em sua primeira entrada no sistema penitenciário.
Na primeira queda lá dentro do sistema conheci outros presos. Eles
diziam vixe, tu fez isso, era só ter feito assim que dava certo. Ai
comecei a passar conhecimento, a pegar conhecimento e eu fui me
aprofundando no crime, foi banco, assalto grande! (...) Quando eu
sai já tinha tudo pronto pra mim, fiz coisas com uns cara lá, era
dinheiro, carro, apartamento. Mais ai sempre vem a consequência
né! (Neguinho do Rap)
Josenildo saiu da prisão, mas regressou ao sistema penitenciário pela
segunda vez. Foi condenado a 22 anos de regime fechado e cumpriu pena no
Instituto Penal Paulo Sarasate – IPPS por sequestro, roubo e outros delitos.
Ele relatou-me sobre suas experiências durante o cárcere e mencionou que,
quando foi encaminhado para o presídio, "era um cara sem expectativa de
vida", não tinha esperanças de sair vivo de lá. Josenildo afirma que a vida de
um presidiário é muito difícil, diferente dos mitos que se propagam
vulgarmente; o preso não tem regalias e não é um gasto alto para o Estado
afinal, muitas vezes, ele é esquecido e sobrevive em condições desumanas,
em celas sujas com caranguejeiras, insetos nocivos e sem higiene. Contoume que uma vez encontrou preservativo masculino dentro da comida.
Segundo ele, dentro do sistema presidiário existem as próprias leis, era
preciso manter a tranquilidade e ser esperto para manter-se vivo lá dentro; um
dia presenciou de sua cela um preso ser desossado. Para ele um dos refúgios
que ajudava a passar o tempo era o rádio que sempre escutava sintonizado
em um programa que só tocava rap; e foi ao som da canção “Depoimento de
um viciado” que ele começou a refletir sobre a condição em que se
encontrava.
Eu escutava rádio lá dentro, um programa que era só rap, ai
comecei a ver o que acontecia lá dentro (...)" Contava meu tempo
pelas copas, passei três copas lá. Quem não tem ninguém aqui fora
é esquecido lá dentro. (...) Dizem que o presidio regenera aquilo não
regenera ninguém não. ( Neguinho do Rap)
28
Dentro do presídio, Neguinho do Rap decidiu que não queria mais viver
daquela maneira; aprendeu a ler e escrever, encontrando no rap uma forma
de transmitir para outras pessoas sua história e percepção do mundo. Ele
queria contar para os garotos da periferia, para os jovens suas experiências
no intuito que eles seguissem trajetórias diferentes.
Comecei a estudar na escola lá no IPPS, depois a escola parou e
eu fiquei estudando sozinho mesmo, com minhas músicas, com o
rap. Com as letras do rap, eu queria dizer para os filhos da dona
Maria, o que aconteceu comigo, para que ele não passe o que eu
passei, não faça o que eu fiz. Agradeço ao movimento rep, conheci
dentro do sistema penitenciário, foram 10 anos dentro do sistema.
Se eu tivesse conhecido antes, talvez fosse diferente. (Neguinho do
Rap).
Entra em cena o Neguinho do Rap e, durante a entrevista, sempre que
respondia as perguntas intercalava sua fala, cantando seus raps. Dentre eles,
num trecho, ele disse ter sido um dos primeiros que fez ainda recluso, "Saí da
Captura".
Veja como está a minha situação tomar o que é dos outro é a vida
do ladrão. Pode acreditar pra tudo tem um jeito deixar de ser ladrão
se tornar um bom sujeito. Como vai ficar outros camarada, carro
importado já tive nessa estrada. Como vou fazer pra me por no meu
lugar, sai dessa estrada só deixando de roubar. Altos 157 já fiz na
minha vida, como é que eu vou fazer para curar essa ferida. Ferida
que eu falo é a do sentimento, dispenso essa arma pra sair desse
tormento. Assim como diz outro cidadão quem compra e usa arma é
policia ou ladrão. Eu sou Neguinho do Rap, depois de sete anos
voltei pra lhe falar sobre a revolta do sistema, o sangue corre na
veia o sofrimento é o lema. Essa é a rotina nessa porra de lugar
ladrão quer sorrir polícia querendo matar, pá, pá pá pá. Aqui só
sobrevive quem tem disposição o sangue faz a força na coragem do
ladrão dentro do sistema penal é pura adrenalina o atraso do
detento é usar crak ou cocaína. Encaro de frente sem querer me
atrasar neguinho me inveja com maldade no olhar, mas eu sou
guerreiro firme e forte ainda estou, eu me fechei pro ódio me abri
para o amor. Pode crê firmeza total, se liga Neguim caiu na real.
(Neguinho do Rap)
Durante uma visita da comissão do poder judiciário ao presídio,
Neguinho aproveitou a oportunidade e chamou um dos representantes, "Ei
doutor, vem aqui, quero falar com o senhor". O homem se direcionou até a
cela e ele questionou: "Eu cometi crimes, tô pagando pelo que eu fiz, mas o
29
Estado tem que me dá dignidade para eu cumprir minha pena, é um direito,
num é?" Então, o secretário da justiça, com quem ele argumentava,
perguntou o que ele queria e, imediatamente Neguinho disse que queria um
local para montar um estúdio de rap dentro da penitenciária e assim poder
passar seu rap para outros detentos. No mesmo instante, tiraram-no da cela e
levaram-no para procurar um local onde fosse possível iniciar a montagem do
estúdio.
Ainda em cárcere, muitas coisas aconteceram; compôs, montou o
estúdio, conheceu sua atual esposa com quem constituiu uma nova família e,
depois de 10 anos, saiu do sistema penitenciário. Em 2009, gravou um CD,
“Liberdade Conquistada”, que também é título de uma de suas músicas. Hoje
ele ainda responde em uma Liberdade Assistida, mas, apesar das
dificuldades enfrentadas no sistema penitenciário, ele diz com convicção que
foi o rap que mudou sua vida. O rap foi a arma que encontrou para lutar
contra o sistema.
Quem está no poder não quer que a favela tenha consciência para
lutar contra eles. Eu aprendi a lutar de outra maneira, sem revolver,
sem arma, com a consciência. (...) Se um político rouba mil conto,
ele não rouba só de um não, ele rouba de milhões de brasileiros.
Ele não faz só um 155 não, ele faz vários 155. Eu roubei, cometi
crimes. Ta errado eu sei, mas eu paguei pelo meu erro, porque eles
também não paga os deles? O problema é que os direitos são muito
desigual. Eles mesmo fazem a lei deles, eles mesmo modificam e
fica tudo certo. Quem tá no poder, não quer que a favela tenha
consciência para lutar contra eles. (Neguinho do Rap)
Já em liberdade, residindo no bairro Vila Velha em Fortaleza, um
acontecimento triste faz nascer um novo rap e novos sonhos. Seu enteado de
14 anos é assassinado com sete tiros no portão da própria casa,
provavelmente em decorrência de uma cobrança de dívidas do tráfico.
"Quando meu enteado morreu, eu fui lá na escola dele, reuni os pivete lá
amigos dele 13,14 15 anos e disse que se eles fossem no mesmo caminho
aquilo ia acontecer com eles também" (Neguinho do Rap).
Atire a primeira pedra quem nunca errou. Deus é o juiz e o mundo é
o professor. Eu também já fui mais novo, afoito, audacioso. Moleque
30
no crime morre antes dos dezoito. E pra quem não sabe mais
precisa saber, o crime não é o creme se intere no proceder. Eu vou
batalhando refazendo a minha vida. Através do rap encontrei outra
saída.(Música Acredite em você de Neguinho do Rap)
Depois do assassinato, Neguinho decidiu que iria passar suas
vivências para jovens e crianças através de sua arte, o rap. Começou a fazer
oficinas de rap, grafite, deejay ainda na comunidade do Vila Velha. Depois foi
morar em outro bairro, no Serviluz. Gravou um clip com a canção “Enquanto
Rola o Crime” e deu algumas entrevistas para emissoras de televisão,
contando sobre as ações que desenvolvia no bairro. Entretanto, não obteve
apoio financeiro, e seu projeto continuou parado.
Em decorrência da falta de recursos financeiros, o projeto deixou de
ser desenvolvido, mas, apesar das dificuldades, Neguinho continua na luta.
Enquanto pensa em novos rumos para dar continuidade a seu projeto, ele
continua compondo seus raps como forma de lançar suas críticas. Suas
músicas falam sobre a realidade da periferia, elencando questões políticas,
culturais e sociais e reivindicando os direitos do povo.
1.3 “Precisamos fazer Enxame”
Quando se optou pelo Projeto Enxame como campo empírico, decidiuse fazer uma breve pesquisa em artigos, monografias, reportagens e no
próprio blog da ONG sobre as ações implementadas. Conhecer, mesmo que
superficialmente, o trabalho desenvolvido pela instituição causou grande
entusiasmo em prosseguir com a análise investigativa na área da arteeducação.
Até esse momento, a informação que se tinha era de que o projeto
estava funcionando a todo vapor. Com muita empolgação de mergulhar no
campo de pesquisa para dar materialidade ao trabalho acadêmico, logo se
entrou em contato por ligação para um dos coordenadores do Enxame e, com
isso, agendou-se uma visita. Ao conversar com Paulo Emílio por telefone, ele
31
contou sobre atual situação da instituição; devido à falta de verbas poucas
atividades estavam funcionando entre elas a oficinas de Break e um curso de
fotografia, o Rolé Fotográfico. Lamentei o número reduzido de atividades, mas
eu ainda podia acompanha-las e conhecer melhor a realidade da instituição.
Na primeira visita, a impressão imediata foi de estranhamento. Ao
chegar
ao
endereço
combinado,
Rua
do
Mirante
-
sem
número,
imediatamente se reconheceu a sede, pois já tinha visto algumas fotos da
fachada no blog. Ao aproximar-se da entrada a pesquisadora ficou confusa,
porque quando olhou o portão adentro, percebeu um aspecto de espaço
abandonado, mas mesmo assim resolveu bater palmas para averiguar se
havia alguém no local. Chamou e logo foi gentilmente recebida por Valber,
coordenador do Projeto. Enquanto aguardávam a chegada dos jovens para
dar início à oficina de break, Valber relatou sobre a trajetória e as
problemáticas enfrentadas pelo Enxame. Depois de algum tempo de
conversa, somente dois alunos haviam comparecido, então a aula foi
cancelada e os garotos permaneceram no local e também participaram do
diálogo.
Terminada a visita, os pensamentos fervilharam, inquietos com várias
dúvidas. Em alguns minutos, tudo havia mudado. A situação estava realmente
complicada, praticamente só as aulas de break estavam acontecendo e ainda
de maneira esporádica, sem horários fixos, o Rolé Fotográfico que iniciou em
agosto já tinha terminado o primeiro módulo e o segundo não tinha data
prevista para início, tudo que restou foi a esperança transmitida nas palavras
de Valber:
Não posso dar uma data, mas estamos trabalhando para que antes
do final do ano provavelmente em outubro ou novembro agente
comece as atividades, estamos aguardando uma verba do edital da
Secult, já temos uma parte do material usado para montar o tablado,
só que aquele espaço ali é aberto ai agente não sabe como vai
fazer por causa da chuva. Mas esse final de semana, sábado vai ter
um mutirão de limpeza da sede. Estamos nos organizando com
muita força de vontade, porque grana, sabe como é, tá difícil, viu.
O Enxame tinha mudado de sede há poucos meses. O novo local se
encontrava em fase de organização, os livros e arquivos da antiga biblioteca
32
da ONG ocupavam algumas estantes empoeiradas por trás de um amontoado
de cadeiras. O prédio cedido através de uma parceria com o Projeto Ilha
Digital precisava de algumas reformas para adaptar o espaço às
necessidades das atividades que deveriam ser desenvolvidas. Naquele
instante, mesclaram-se na mente da pesquisadora as fotografias vistas nas
pesquisas antigas do projeto com a memória de um presente acinzentado, um
passado ideal e a realidade.
"E agora, José?", o que iria fazer? Como iria pesquisar sobre
ressignificação de vivências através da arte-educação no Enxame se as
atividades estavam paradas? Foi quando, depois de longas conversas com o
orientador e a teimosa insistência em não mudar o campo de pesquisa, surgiu
a ideia de fazer um levantamento de arquivos antigos com trabalhos
acadêmicos, fotos, reportagens, artigos, gravações de áudio e vídeo, para
perceber como acontecia e se realmente existiam resultados com a proposta
de ressignificação. Recebeu-se a orientação de entrevistar os coordenadores
da instituição e a Idealizadora da ONG, Glória Diógenes, com a qual não se
conseguiu entrar em contato, a fim de entender os entraves enfrentados pelo
Projeto.
Durante
7
meses,
de
agosto
de
2013
a
março
de
2014,
acompanharam-se de maneira flutuante as ações do Enxame e constatou-se,
nesse período, um processo de estagnação. Há alguns anos, o Enxame
dispunha de uma pequena biblioteca comunitária, oferecia apoio escolar aos
jovens e adolescentes, promovia campeonato de dança, festivais de bandas,
realizava oficinas de break, artes plásticas, informática, grafite, teatro, rap e
outros grupos arte-educativos. Recebiam adolescentes em cumprimento de
medidas socioeducativas de Prestação de Serviço a Comunidade e Liberdade
Assistida.
Em 2005, além de marcar o início de uma gestão comunitária, a saída
de Glória também acarretou outras alterações para o funcionamento do
Enxame.
Depois que a Glória saiu, diminuiu a captação de recursos. Assim,
os alunos recebiam uma bolsa; com vale transporte e tinha
alimentação também, e isso claro né, criava um ambiente ideal
33
para formação dos alunos, querendo ou não muitos ficavam
motivados com isso, alguns iam porque tinha merenda. Esse apoio
financeiro que ela tinha articulado com o governo acabou. ( Valber)
Sidarta Cabral destacou que, realmente, logo que Glória se ausentou,
por questões políticas, o projeto ficou momentaneamente fragilizado. As
verbas foram reduzidas, entretanto, em pouco tempo, o Enxame retornou com
toda força e vivenciou alguns de seus melhores momentos. "O Enxame teve
um ápice, teve um época que estávamos com três projetos, ao mesmo tempo.
Todos contemplados por editais" (Sidarta Cabral).
De acordo com uma matéria publicada no jornal O Povo, em 2011 a
instituição atendia mais de 100 crianças, jovens e adolescentes. A notícia que
fala sobre uma das mudanças de sede do Enxame e de seus 10 anos de
existência, descreve um momento de uma das oficinas de artes plásticas.
Chegamos à nova sede no momento da aula sobre artes plásticas.
Os mais de 20 pré-adolescentes na sala olham atentamente para
um quadro que o professor projeta na tela, contendo uma obra
expressionista do norueguês Edvard Munch. “Que sentimento vocês
percebem nessa figura do quadro?”, pergunta o professor. E
começa o burburinho: “Ele tá com medo!”, diz uma garota. “Ele tá
triste!”, diz um menino. O terceiro vai mais longe: “Ele tá chorando
por causa de alguma coisa...”. Depois é a vez de um quadro de
Cândido Portinari e os pequenos novamente deixam a imaginação
fluir. Ali a turma não é ensinada a perceber a arte como algo
distante. A meninada esbanja expressividade através de rap, break,
grafite, desenho e pintura. (Jornal O povo 26.05.2011)
Em uma das conversas com Valber, ele lembrou saudoso e com
empolgação o tempo em que o projeto funcionava com toda efervescência.
Tinha parceria com várias instituições, por exemplo, o Instituto Ayrton Sena
um dos principais apoiadores desde 2001 que promovia a formação
continuada para os arte-educadores, o Museu de arte cultura – MUAC,
COMDICA e o movimento de sket cearense - Old School. Fez apresentações
de um espetáculo com o grupo de teatro e até gravou um CD de rap, que teve
a intenção de misturar o hip-hop com temáticas e ritmos regionais, intitulado
Carta de Alforria.
34
O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência
da periferia. Direto do projeto Enxame, quem ta falando é o Mariano,
esse é meu nome, sou do Nordeste, Ceará, cabra da peste, já vou
levando o meu rap, matar, roubar, é só isso que o sistema me
oferece, sou preto, pobre e tenho orgulho disso, o sistema quer me
ver comendo lixo, isso nunca vai acontecer comigo. A nossa vida
aqui não é muito normal, muita gente para comer, tem que catar
jornal, do jeito que tá não dá pra suportar, a polícia de hoje só sabe
espancar, eles querem por moral e não sabem como fazer, e acham
que a solução que tem é bater, mas cadê o político que tá no poder,
será que vai cumprir ou só fez prometer, primeiro tem que mudar
nossa segurança, porque o povo da favela já perdeu a esperança,
pois os policiais são pior que marginais, e o povo da favela é quem
sofre, meu rapaz. O rap é a liberdade, é a carta de alforria, o grito
de independência da periferia. Esse é o cartão-postal da terra do
sol, onde um pobre se cobre com papel porque não tem lençol, pra
você isso até pode parecer normal, vendo um mendigo dormindo na
calçada, enrolado com jornal, ele só faz isso para não morrer de frio,
não tá como você alimentado, aquecido, embaixo de um teto bem
vestido, pra sobreviver aqui tem que ser forte e ter bastante sorte,
porque só é humilhado assim quem é pobre, ser discriminado
porque é pobre, preto e favelado, não vou virar notícia, dar esse
gosto à polícia, dar ibope às emissoras de televisão, contrariar as
estatísticas para ninguém dar risada da periferia, eu sei que a luz no
fim do túnel não clareou, apenas apagou, na favela o que domina é
a lei de Lúcifer, mas é isso que o sistema quer, não quer me ver de
pé, ver eu com fome atirando na madame de chofer... Enquanto o
rico por aí tem do bom e do melhor, nós da periferia vivemos na
pior, sem ter o que comer, os meus chapas tão roubando pra poder
sobreviver, já não aguento mais ver tanta desgraça, e tudo isso
aumentando a cada dia que passa, as crianças de hoje em dia não
têm mais opção, o futuro dos pivetes é se tornar um ladrão... O
playboy te diz que o meu rap não tá com nada eu não tô nem aí pra
ele, camarada, porque esse é realmente o meu dilema, lutar pra
destruir todo esse sistema, e pra derrubar eu não preciso de
revólver, basta eu falar que minha palavra resolva, porque a minha
arma é a consciência, eu tenho uma munição que não me leva à
violência, tenho o prazer de te falar que eu moro na favela, mesmo
que aqui a vida não seja tão bela, os turistas vêm aqui e vão pra
Praia de Iracema, mas aqui na favela eu sempre vejo a mesma
cena, a polícia espancando meus amigos, meu irmão, isso me
revolta, preste um pouco de atenção, eu não sou um homem bomba
pra me autodestruir, eu sei qual o caminho que eu tenho que seguir,
não preciso de drogas pra população me ver, posso fazer melhor
relatando pra você, o que eu passo aqui no meu dia-dia e falar
sobre o povo da periferia , não importa quantas vezes eu vou ter
que falar, o que importa é que um dia essa porra vai mudar... O rap
é a liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da
periferia. Verdes mares... Castelo encantado... Areias... O rap é a
liberdade, é a carta de alforria, o grito de independência da periferia.
Morro Santa Terezinha... Caça e pesca... Praia do Futuro... ( Carta
de Alforria – Mariano, Lobão, Felipe)
Aos poucos, as atividades começaram a ser paralisadas e as parcerias
foram
canceladas
paulatinamente.
Em
2011,
somente
o
projeto
“Ressignificando Minha Comunidade” foi implementado em parceria com o
Fundo Estadual de Cultura - FEC. Segundo Sidarta, esse projeto deveria ter
35
sido renovado em 2012, mas por se tratar de um ano de eleição, e por outras
justificativas de fins políticos, o Estado reduziu os gastos e cancelou a verba
do FEC, destinada ao Enxame. Com essa surpresa desmotivante, as
atividades foram suspensas de repente por falta de recursos financeiros. A
sede que, nesse tempo, era localizada no prédio do antigo Mirante teve que
ser desocupada. E no início de 2013, através de uma parceria com o Projeto
Aldeia Digital, o Enxame ganha um novo endereço.
No ano de 2013, o projeto praticamente esteve parado. Somente duas
oficinas foram realizadas; fotografia - Rolé Fotográfico e as aulas de break. A
primeira atividade citada nem chegou a ser concluída. E no final do mesmo
ano, novamente ocorre outra mudança de sede, para o espaço onde hoje é o
atual endereço.
Desde 2012, uma das maiores dificuldades enfrentadas é a falta de
verbas. O Enxame reduziu suas atividades por não ter recursos financeiros.
No final 2012 já tínhamos poucas oficinas por falta de
recursos(...)Os arte-educadores começaram a ficar no sistema
voluntários mesmo. Ai tinham outras obrigações para fazer, outras
responsabilidades, tinham família, precisavam trabalhar não dava
para ficar direto no Enxame, ai cada um foi cuidar de suas coisas, o
próprio Sidarta ta trabalhando hoje em outro lugar, porque tem filho,
tem família, não tem como ficar de voluntario não. E te digo uma
coisa, quem tá aqui é porque gosta mesmo. (Paulo Emílio)
Em uma das visitas ao Enxame, sobre as dificuldades financeiras
enfrentadas, Paulo Emílio acrescentou: "Pintamos essa sede nova com uma
grana levantada de eventos que participamos e com brodagem mesmo, posso
dizer que são os próprios educadores que mantém a casa hoje". Paulo Emílio
se referia à sede anterior do Enxame onde se realizou maior parte da
pesquisa de campo.
Atualmente, a uma das poucas atividades que acontecem na ONG é a
oficina de break, pois ela não depende de muitos recursos, no entanto, os
encontros são marcados aleatoriamente. Valber, que também é arte-educador
de break, destaca a importância de um espaço adequado para as aulas; por
36
exemplo, tablado, sala com espelhos e até mesmo objetos pessoais como um
bom tênis para auxiliar a melhorar a desenvoltura dos alunos. Mas diante da
dificuldade de conseguir um local e materiais apropriados, ele afirma já ter o
essencial, a matéria prima para realizar seu trabalho, que são os by-boys com
vontade de permanecerem treinando. A galera do break vem driblando as
barreiras encontradas no caminho e desenvolvendo estratégias criativas para
facilitar as aulas. Por não terem espelhos na parede que possibilitem observar
os próprios movimentos, eles descobriram uma forma alternativa para
aperfeiçoar os passos da dança. Decidiram filmar os treinos e depois
assistirem juntos para saber o que podem melhorar. "Descobri que é até
melhor, pois quando a gente fica olhando no espelho já perdeu vários
segundos do movimento", afirmou Paulo Emílio.
Por não ter estrutura nem recursos humanos e financeiros para receber
novos alunos o trabalho vem sendo desenvolvido com os antigos integrantes.
Mauro e DQ que já acompanham a trajetória da ONG durante algum tempo
reconhecem a importância do Enxame para Comunidade do Morro Santa
Terezinha. DQ disse que depois que começou a frequentar o Enxame e fazer
aulas de break, sua vida mudou. Mauro complementou afirmando: "É
lamentável né, um projeto massa desse e agente não ter grana para
continuar, mas agente tá aqui".
O Enxame foi contemplado com o projeto Mapeamento Cultural do
Governo do Estado, lançado por edital em 2012 e, há mais de um ano,
aguarda o repasse da verba. Sidarta atenta para morosidade e a burocracia
do processo.
Depois de tanta demora, quando ficamos sabendo que a verba tinha
sido liberada procuramos a secretaria do Estado para saber
informações sobre o andamento e eles solicitaram atualização dos
documentação, pois alegaram que como já tinha passado muito
tempo os documentos que tínhamos entre estavam atrasados.
Corremos atrás e entregamos tudo. Depois a secretaria mudou de
sede, e retornamos lá mais novamente e fomos informados que
nossa documentação tinha desaparecido. Como. a mudança eles
com certeza perderam nosso processo, mas não, disseram que
desapareceu. Então tudo começa do zero de novo. Providenciamos
tudo, e quando íamos dar entrada, no novo sistema, agora é um
sistema burocrático de cadastramento, ai solicita um atestado de
funcionamento (Sidarta Cabral)
37
Quando Valber foi entrevistado, indagou-se sobre o motivo pelo qual
depois de tanto tempo essa verba ainda não foi recebida, e ele afirmou: "Falta
de vontade política é o que impede que as ações sejam efetivadas."
O projeto Mapeamento Cultural tem como proposta transformar o
Enxame em um ponto de cultura do Mucuripe. Os planos para o futuro, conta
Paulo Emílio, são de transformar a sede da ONG em museu comunitário,
resgatando a cultura e a identidade do local, "a gente quer fazer tipo um
Mucuripe tour, sabe, um passeio pelo bairro contando a história" (Paulo
Emílio). Lamentavelmente as condições objetivas limitam a realização dos
sonhos dos enxamistas, mas não apagam seus ideais. "Hoje a água é
cortada, não tem lanche, o espaço não é adequado e mesmo sem tudo isso
ainda existe. Esse ano sobrevivemos de bico o ano todim. o Enxame deixou
de viver para sobreviver." (Valber)
Tendo passado por todas experiências enquanto coordenador do
Enxame, Sidarta disse que aprendeu que uma ONG não pode depender
exclusivamente de editais. Ressaltou que é preciso buscar alternativas,
citando o exemplo do Edisca, que presta um serviço na condição de ONG,
vendendo seus espetáculos e oferecendo cursos, para gerar uma fonte de
renda que mantenha o projeto.
Sempre que dá, participamos de eventos, o último foi lá no CUCA,
um campeonato de hip-hop, os meninos do break se garantiram,
mas por pouco não ganhamos. (...) Agora estamos tentando nossa
auto sustentabilidade, não dá pra viver só de edital, estamos
aguardando o resultado, não dá para ficar parado. Também tem
uma galera que ajuda de vez em quando, o Felipe Rima, que foi exaluno do Enxame e hoje ta fazendo sucesso ai no rap também ajuda
o projeto. ( Paulo Emílio)
Os planos do Enxame para o futuro, de acordo com a visão dos
coordenadores, é potencializar os grupos que já existem, como o break que é
a atividade que nunca parou. Criar na sede um espaço cultural. E no âmbito
38
financeiro pensam em buscar a autonomia, fazendo novas parcerias e criando
um "grupo de amigos", para formar uma rede de doações e começar a prestar
serviços para, como cursos, oficinas e venda de produtos produzidos nas
próprias oficinas.
Assim a ONG segue na busca de garantir a continuidade do projeto.
No início desse ano, já foram organizados mutirões para limpeza e
organização da nova sede. Oficinas e outras atividades, como o curso de
fotografia, estão previstas para começarem ainda este ano.
O Enxame continua a passos lentos, "caminhando devagar" como
pontuou Valber. Mas apesar de deparar-se com entraves como o desinteresse
político, falta de incentivo do governo na esfera cultural e a burocracia da
máquina estatal, os coordenadores do projeto não perderam a esperança.
Continuam lutando para que ele retorne a funcionar com todo vigor, pois
acreditam verdadeiramente na importância do Enxame para os jovens da
comunidade.
1.4 Solta o som, Neguinho!
Quando
decidi
que
também
iria
pesquisar
sobre
as
ações
independentes de Neguinho do Rap, entrou-se em contato com ele e
informou-se, para surpresa da pesquisadora, que seu projeto não estava mais
funcionando. O motivo era o mesmo do Enxame: falta de recursos financeiros.
Depois que saiu do presídio, Neguinho gravou dois Cds e um clipe. Em
2012 decidiu implementar uma ação independente. Ele iniciou oficinas de rap,
djay, grafite e break no bairro Vila Velha. As atividades tinham objetivo de
ocupar o tempo ocioso das crianças e jovens da comunidade. Assuntos como
violência, uso de drogas, criminalidade e família eram discutidos nas aulas,
pois se aproximavam do cotidiano dos alunos, despertando o interesse deles
no tema abordado. Assim Neguinho propunha utilizar a arte como instrumento
que propiciasse uma reflexão da realidade. Ele afirma que é uma experiência
39
viva de como a arte, no caso dele, o rap, pode mudar a vida de alguém.
"Agradeço ao movimento rap, conheci dentro do sistema penitenciário, foram
10 anos dentro do sistema; se eu tivesse conhecido antes, talvez fosse
diferente" (Neguinho do Rap).
As atividades aconteciam em uma área parecida com um galpão, que
ficava ao lado da casa onde Neguinho morava. Os gastos das oficinas eram
custeados pelo próprio Neguinho. Ele mesmo comprava o material usado nas
aulas. Por exemplo, sempre que tinha aulas de deejay quebrava uma agulha
do equipamento de som o que acontece corriqueiramente em decorrência do
manuseio do material e, cada agulha custava 50, 60 reais. Por isso, Neguinho
lamenta: "Eu não tenho mais condições de fazer o meu trabalho". A renda
para manter o projeto vinha de um pequeno mercantil que ele tinha, mas
depois de algum tempo o comércio começou a ter prejuízos por conta do
dinheiro utilizado para suas ações independentes. E no mesmo ano, por
consequência a falta verbas o projeto deixou de ser desenvolvido.
Em 2013, já residindo no Serviluz, Neguinho tentou iniciar as oficinas
que realizou no Vila Velha. Ele e outros amigos encaminharam para Seculfor
um projeto que consistia na realização de oficinas de hip-hop e outras
atividades, mas não obteve retorno. Por motivos pessoais, durante esse ano
de 2014, Neguinho não pode se dedicar com maior atenção a seus planos de
retomar com as oficinas, mas mencionou que está esperançoso, que ainda
este ano, tenha alguma posição sobre a retomada de seu projeto com o hiphop, pois tendo em vista que estamos em ano eleitoral e ele conta com alguns
apoios políticos, é provável que ele consiga verbas para recomeçar.
"Infelizmente as coisas só funcionam assim né, quem podia fazer, não faz."
(Neguinho do Rap)
Atualmente, Neguinho trabalha vendendo ovos pelas ruas da cidade
com o auxílio de um carro de som. E para divulgar seu produto gravou o "Rap
do ovo".
40
Aproveita a promoção. Olha o ovo, ovo novinho da hora. Este é o
ovo da Avine. Aproveita a promoção. Pode vir você senhora, pode
vir as criança, pode vir meu patrão senhor cidadão da residência(...)
ovo qualidade é aqui ó, no carro do ovo. (...) As cinco da manhã eu
já levanto, agradeço a Deus correria vou pro tampo. Ainda é cedo
eu faço um cafezinho frito quatro ovos e boto em dois pãezinhos.
Agora sim, com mais disposição, grito e vendo ovo pra população.
Driblando o desinteresse das grandes gravadoras comerciais, ele grava
seus raps em um estúdio localizado na própria comunidade, Erivam Produto
do Morro. Neguinho busca alternativas para não deixar seus sonhos de lado.
E afirma que, mesmo com todas as dificuldades, continuará buscando
alternativas para levar sua mensagem aos jovens da periferia.
41
CAPÍTULO 2 - JUVENTUDE E ESTADO
2.1. "A 'Juventude' é apenas uma Palavra"?
"A juventude é um fenômeno essencialmente histórico. Ela muda de lugar, de cor, de
tamanho, de idade, de humor, de roupa, de linguagem. A ponto de podermos dizer que ela
não existe, a não ser quando é inventada."
Laissance
Neste tópico propõe-se uma reflexão sobre o conceito de juventude
enquanto categorial social construída historicamente, investigando-a a partir
de uma análise sociológica. Decidiu-se apresentar essa discussão porque
esse é, sobretudo, o segmento populacional alvo das ações desenvolvidas
nos dois projetos em que se debruçou o olhar investigativo. Nesse sentido, se
julga imprescindível pensar sobre o espaço ocupado por essa categoria em
nossa organização societária.
Embora a discussão sobre essa temática tenha ganhado ênfase nos
últimos séculos, a ideia de juventude já faz parte da história da humanidade
desde a Grécia Antiga. Na mitologia grega, Hebe, conhecida pelos romanos
como Juvena, era a deusa da imortalidade e da juventude eterna. Em
passagens do livro “A República”, de Platão, escrito estimadamente em 400
a.C, Sócrates, ao discutir sobre a educação para um Estado ideal,
já
descrevia a juventude como um período de formação, uma transição entre
criança e adulto. "De fato, é mormente nessa idade que a pessoa se deixa
amoldar e definir o caráter de acordo com o que se almeja" ( Sócrates, 2007:
77), Em outras passagens do mesmo livro, denotam-se aspectos culturais da
sociedade da época, por exemplo, a idade apta para assumir o governo. Em
um diálogo com Glauco, Sócrates afirma:
Claro está que os governantes devem ser velhos e os súditos,
jovens (...) 119 Aos mais velhos, seria concedida a faculdade de
comandar e mesmo punir os mais jovens(...) Evidentemente um
jovem não se atreveria, sem autorização, a agredir ou ferir pessoas
42
mais velhas, nem mesmo se arriscaria a ofende-la de outra maneira,
por quanto para detê-lo bastariam duas barreiras: o temor e o
respeito. O respeito devido aos pais o impediria de tocar em alguém
e o temor o faria recear que os demais viessem em socorro do
ofendido, fosse eles irmãos ou pais. (2007:119-184)
Na Idade Média, a figura do jovem ou as qualidades da juventude
estavam associadas a braveza dos grandes guerreiros e heróis épicos que se
fixaram em nosso imaginário, por exemplo, Hobin Hood, Lancelot, Dartanham
entre outros. Não menos importante destacar que praticamente os únicos
jovens em que se falam nesse período são os do sexo masculino, sobretudo
os da nobreza e do clero, neste último vale ressaltar nomes como São Tomáz
de Aquino e Giordano Bruno. Entretanto, as personagens femininas também
compunham o cenário medieval com bravura e destreza como é o caso da
heroína francesa Joana Darc (janeiro de 1412- maio de 1431), condenada por
heresia e morta aos 18 anos após liderar a batalha conhecida como Siège
d'Orléans.
Em algumas sociedades, não existe a concepção de juventude, pois a
passagem da infância para vida adulta é feita através de momentos
ritualísticos, desconsiderando um período de transição entre as duas fases.
Um exemplo disso é a festa da moça nova da tribo Tukuna da região da
Amazônia. Quando as meninas menstruam, pela primeira vez, são isoladas
por aproximadamente dois meses em suas casas (ocas), tendo contato
somente com seus vigilantes. Durante esse período, acredita-se que a
menina está sendo protegida de ataque de possíveis demônios. Depois da
reclusão, a "moça-nova" é recebida com comemoração e ritos festivos, e a
tribo acredita que ela está pronta para assumir a idade adulta.
Essa breve abordagem sobre a disposição da juventude em
determinados períodos da civilização humana tem o intuito de contextualizar
os questionamentos centrais desse tópico: Afinal o que é juventude?
Podemos conceituar a juventude como uma categoria homogênea?
A
juventude sempre foi abordada como categoria relevante na construção social
dos
espaços
públicos?
contemporaneidade?
Como
percebemos
a
juventude
na
43
Nos parágrafos anteriores, foram apresentados elementos que
denotam o caráter mutável do conceito de juventude. Portanto, percebemos
que ela é uma construção histórica, muda de uma sociedade para outra,
chegando a tornar-se inexistente em determinadas organizações societárias,
como é o caso das culturas tribais. A juventude constituída socialmente nos
tempos modernos é compreendida como uma fase da vida permeada por
intensas mudanças e pela efervescência das descobertas, sobretudo no
período da adolescência. Ela "é caracterizada como o tempo ou período do
ciclo da vida no qual os indivíduos atravessam da infância para a vida adulta e
produzem significativas transformações biológicas, psicológicas, sociais e
culturais" (UNESCO, 2006).
O Estatuto da Juventude, Art.1 parágrafo 2, considera jovens as
pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Este recorte por idade é muito
utilizado com o conceito juvenil para subsidiar estudos demográficos,
estatísticos e até mesmo para delimitar o público-alvo das políticas públicas,
espaço que está crescendo na modernidde em prol das conquista de direitos
dessa categorial social emergente. Entretanto, a demarcação cronológica é
insuficiente para contemplar os aspectos que caracterizam o estado juvenil,
portanto, não se pode definir o que é juventude unicamente pela idade
biológica.
Partindo
desse
princípio,
pergunta-se:
quando
entramos
oficialmente na juventude ou quando não mais nos enquadramos nessa
categoria social? O que distancia um jovem de 25 anos do status de adulto?
Cabe aqui transcender a discussão sobre juventude para além dos limites
conceituais, que não dão conta do movimento dinâmico e dos processos de
socialização do homem, e compreendê-la a partir de um olhar macroscópico
que a analise a complexidade da vida contemporânea.
Várias ciências, como antropologia, sociologia e a psicologia,
debruçam-se na contemporaneidade a explicar esse fenômeno.
Os discursos académicos centrados na juventude não são recentes.
Existe um sólido património de estudos dedicados a este grupo
etário, fortemente dependentes dos paradigmas científicos do
44
momento, dos discursos sociais e das representações culturais
construídas acerca desta enigmática fase de vida, que se
metamorfoseia aceleradamente ao sabor das mutações sociais,
culturais e económicas que atravessamos. (Campos, 2007: 93)
Na área das ciências sociais, destacam-se como aporte teórico da
sociologia os estudos de Pierre Bourdieu (2003). Segundo Ricardo Campos
(2007), o sociólogo francês se enquadra na corrente classista5, ou seja,
analisa a disposição da juventude mediante a formação do indivíduo, que é
moldada pela sua condição societária e, consequentemente, pelos valores,
hábitos e interesses da classe social em que faz parte.
Bourdieu (2003) afirma que a juventude não é um dado, ou seja, algo
estático e pontual, mas sim uma categoria construída socialmente. É um tipo
de classificação etária que se estabeleceu em nossa sociedade, como outros
tipos classificações; gênero, classe etc., que rotulam determinados padrões
de comportamento sendo objetos de manipulação. E, para entender sua
formação, é necessário compreender as leis que regem o campo em que o
sujeito está inserido. Sobre isso ele menciona:
Quando passamos dos intelectuais para os diretores executivos,
tudo aquilo que aparenta juventude, cabelos longos, calças jeans,
etc., desaparece. Cada campo, como mostrei a propósito da moda
ou da produção artística e literária possui suas leis específicas(...)
para saber como se recortam as gerações é preciso conhecer as
leis específicas do funcionamento do campo, os objetos de luta e as
divisões operadas por esta luta( "nouvelle vague", "novo romance",
"novos filósofos", "novos juízes", etc.) Isto é muito banal, mas
mostra que a idade é um dado biológico socialmente manipulado e
manipulável; e que o fato dos jovens como se fossem uma unidade
social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e
relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente já
constitui uma manipulação evidente. Seria preciso pelo menos
analisar as diferenças entre as juventudes, ou, para encurtar, entre
as duas juventudes.( BOURDIEU, 2003:153)
Nesse sentido, o autor traz a questão central de sua teoria dialogando
com a concepção de juventude. A divisão de classes permeia toda dinâmica
societária e obviamente coexiste nas culturas juvenis, de um lado os jovens
5
Ao associar a corrente classista a teoria de Bourdieu, Ricardo Campos cita como exemplo
dessa abordagem a obra Les heritiers, de Bourdieu e Passeron (1964), dedicada a explorar
os processos de reprodução social que se manifestam nos jovens, nos seus hábitos e
padrões de consumo cultural.
45
trabalhadores, de outro os jovens burgueses. Ambos assumem funções
distintas. Enquanto o primeiro desempenha atividades que se aproximam dos
papeis da vida adulta como dividir responsabilidades domesticas e conseguir
um emprego para garantir sua subsistência, o segundo grupo ocupa-se de
outras atribuições, marcando o prolongamento do estado juvenil caracterizado
no mundo contemporâneo pela ampliação do período escolar destinado a
atender as demandas do mercado do trabalho. Assim, cada um tem seu
contexto moldurado pelas coerções econômicas, sociais e culturais do meio.
Machado Pais (1990) chama atenção para o erro cometido por alguns
autores da vertente sociológica classista que tendem a abordar a questão da
juventude, subordinando-a às relações de classe. Para ele, esse furor
determinista que compreende as culturas juvenis unicamente por meio das
disputas de poder e interesses econômicos é um viés equivocado e uma
maneira de como não se deve ser empregado o conceito de classe.
(...) não é certo que entre jovens pertencentes a uma mesma classe
social se verifique, indiscutivelmente, uma hegemoneidade cultural
ou de modos de vida (...) Como Tompsosn sugere,contra alguns
marxistas equivocados que tentam descobrir as classes como
realidades, perceptíveis, reificadas, a noção de classe implica a
noção de relações historicamente construídas: as classes não
existem inertes, como coisas em si – existem em relação com
outras classes.( MACHADO PAIS, 1990 159)
Assim, como defende Boudieu (1983), Machado Pais (1990) e Ricardo
Campos (2007), entre outros autores que analisam o tema, seria um equívoco
referir-se à ideia de juventude, percebendo-a como uma unidade, pois ela tem
caráter heterogêneo desprovido de uma ideia comum e universal. No entanto,
faz-se importante destacar a coalescência de valores similares entre jovens
de condições sociais antagônicas, ao mesmo tempo em que as disparidades
não se restringem apenas entre classes divergentes, mas também estão
implícitas no mesmo segmento social, distinguindo-se em várias nuances.
Percebi esse paralelo em minhas vivências de campo ao observar o
comportamento de diversos grupos juvenis durante o 2º Encontro Cultural em
prol da Revitalização do Mirante que ocorreu no Morro Santa Teresinha.
46
A maioria compõe grupos diferentes dos que habitualmente
frequentam o Mirante, porém, semelhantes entre si. Hoje, os
meninos de boné que não encaixam na cabeça, cordões de prata e
roupas de marcaras não caminham na companhia das "cumadis"
(termo usado por alguns jovens da periferia para referirem-se às
garotas), o que é muito normal em dias comuns; a presença de
jovens casais a contemplarem a vista do Mirante. Parte da galera
que ocupa as arquibancadas espera freneticamente com gritos uma
banda local de roque, Old Shape, que irá se apresentar no
anfiteatro. Meu olhar paira entre cabeleiras coloridas; vermelhos
intensos, azul e rosa. O ton preto que toma conta do lugar ganha
destaque isolado em uma camiseta branca grafando a palavra
Ramones. Um grupo (mesclava-se de meninos e meninas entre
aproximadamente 15 e 20 anos) perto de mim, bebia e conversava
em vozes altas sobre uma festa que tinha acontecido no dia
anterior e, sobre os efeitos causados por algumas drogas que
haviam utilizado. Um menino menciona aos risos que seu amigo
ficou "muito doido ontem depois de uma carrerinha", referindo-se ao
uso de pó(cocaína). Enquanto isso, outro grupo de jovens inicia
apresentações circenses de malabarismo com bolinhas, claves e
monociclos. Esse grupo (C.I.M. Companhia Itinerante de Malabares)
é composto em sua maioria por jovens artistas da classe média e
por artistas de rua que optaram por viver uma cultura alternativa.
Eles se uniram por uma ideologia comum: A arte do circo. Os
meninos da organização do evento apresentam programação do
encontro cultural, explicando os motivos que os impulsionaram a
realiza-lo e a importância dele para chamar atenção para as
problemáticas locais. Enquanto os observo imagino... eles são meu
passado, meu presente... quanto deles existe em mim, em meus
pais e até mesmo em meus jovens avós! Como disse
Bourdieu,"somos sempre o jovem ou o velho de alguém" (Diário de
campo 12 dezembro)
"Uma abordagem dessa natureza permite identificar não uma única
juventude, mas juventudes, no plural, além de possibilitar uma discussão a
respeito das representações sociais (...) dos jovens nesses tempos".
(UNESCO; 2006) Para entender as diversas culturas juvenis, faz-se também
preciso compreender a maneira como elas constroem suas identidades e se
afirmam como sujeitos. É perceber suas figurações simbólicas, códigos e
hábitos sem desconsiderar que suas condições objetivas são orquestradas
pela lógica societária vigente e reafirmadas através de instituições como
Estado, família e escola que atuam como mecanismos de produção e
reprodução.
Até aqui foi apresentado o conceito juvenil como um elemento variável
que embora tenha características similares, denotando uma ilusória
homogeneidade, o que é o caso da idade biológica, se configura em um
universo de diversidades. Por isso, nessa analogia, foi retomada a discussão
47
realizada por autores que apresentam a juventude enquanto construção
sociológica capaz de assumir várias configurações, compreendendo-a como
uma criação sociocultural, um conceito historicamente determinado, um
fenômeno da modernidade multável e multifacetado, impróprio de definições
generalistas.
Diante o exposto, pode-se mencionar que os "paradoxos da juventude",
segundo denomina Machado Pais (op. cit.), são mais um desdobramento da
sociedade contemporânea, uma categoria inventada que se tornou elemento
de manipulações, suscetível às transformações aceleradas e as relações
fluidas do mundo pós-moderno e, que, no entanto, tem um espaço próprio em
nossa sociedade.
Cabe salientar que as concepções aqui abordadas apenas apontam
para alguns direcionamentos sobre a maneira de olhar e compreender a
juventude, pois esse é um debate que ainda está em plena efervescência.
2.2. Juventude e Estado: Políticas Públicas de Juventude e novas
maneiras de fazer política
Para entender a relação entre juventude e Estado, é preciso
compreender a conjuntura e a dinâmica de nossa sociedade. Como já foi
abordado, a juventude enquanto categoria social é uma construção recente,
própria da modernidade e vem ganhando ênfase nas últimas décadas nas
discussões dos espaços públicos, apresentando-se como uma realidade
sociocultural e política de nossa época.
De acordo como dados do IBGE, a população juvenil tem demonstrado
uma desaceleração do índice de crescimento desde década de 1970 em
comparação com anos anteriores. Essa mudança demográfica resultou no
envelhecimento da população em decorrência de fatores históricos e sociais
como o declínio dos níveis de mortalidade depois do fim da Segunda Guerra
48
Mundial e a queda das taxas de fecundidade após a introdução no país da
pílula anticoncepcional e de outros métodos contraceptivos. A pirâmide etária
brasileira tem denotado aspectos de uma
nação jovem que está
envelhecendo. Atualmente o Brasil tem uma população com mais de 50
milhões de jovens, o que corresponde a um quarto da população total. Esses
jovens
fazem
parte
de
uma
camada
populacional
que
cresceu
estatisticamente nos últimos anos, a população economicamente ativa,
pessoas de 15 a 64 anos. Ainda a juventude se insere na cena
contemporânea como um segmento da questão social e "aparece em
destaque em estatísticas de violência, desemprego, gravidez indesejada, falta
de acesso a atividades culturais" (Juventudes – UNESCO 2000) situação de
drogadição e delinquência.
Imersa nesse cenário, a faixa etária entre 15 e 29 anos começa a
ganhar destaque nos debates das políticas públicas, apresentando-se como
parcela populacional de demandas específicas. A juventude começa a ser
percebida como a geração do futuro, ou seja, "fazendo parte do processo
através do qual a sociedade prepara os indivíduos para o mundo adulto".
(CAMPOS, 2000, p.95). Assim ela assume uma representação variável em
nossa conjuntura societária. Hora alvo de manipulações no campo das
disputas de poder entre interesses de classe, econômicos e políticos; hora
percebida como segmento populacional capaz de perpetuar uma nova cultura
ideológica e política.
Nos últimos anos, estudos e pesquisas destinaram-se a analisar essa
temática-alvo de debates recorrente e, em 2005, as demandas juvenis
ganham destaque no âmbito político com a criação da Secretaria Nacional da
Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve). Nessa
perspectiva, a implementação da Política Nacional de Juventude (PNJ) é
considerada como um marco na agenda das políticas públicas da categoria.
E, em 2 de fevereiro deste ano, entrou em vigor o Estatuto da Juventude (Lei
12.852. 2013) que, segundo a secretária nacional da Juventude, Severine
Macedo, "é um imenso legado para o Brasil ao dispor sobre os direitos dos
jovens, sobre as diretrizes das políticas públicas" (Estatuto da Juventude).
49
Para a secretária, "o que faz o Estatuto é detalhar dentro das garantias já
previstas pela constituição, quais são as especificidades da juventude que
precisam ser afirmadas" (http://www.juventude.gov.br/estatuto. Acessado em
19.02. 2014). Esse conjunto de ações do Governo Federal tem o objetivo de
inserir os jovens nos debates das pautas nacionais e buscar soluções para as
problemáticas juvenis como exclusão social, pobreza, desemprego e
violência, desenvolvendo programas e projetos específicos para esse público,
fomentando a participação social.
Nesse cenário em que as políticas públicas voltadas aos jovens
ganham ênfase, vale levantar as seguintes reflexões: Quais as principais
dificuldades para implementação dessas políticas? Por que existem tantas
ações voltadas para juventude, mas muitas têm resultados ineficazes? Quais
os entraves enfrentados por essas intervenções?
Segundo Pais (2005), existe uma lacuna entre as "boas políticas no
papel" e sua efetivação, ou seja, o velho bordão: "na prática, a teoria é outra"
(PAIS: 54). Isso ocorre provavelmente em decorrência dessas ações
ignorarem
a
importância
dos
contextos
em
sua
implementação
e
desconsiderar a dinâmica da realidade que desenha novas trajetórias. Essas
propostas de intervenção podem ter respostas equivocadas se não estiverem
ancoradas em estudos aprofundados da realidade. Nesse sentido, o autor
pontua a necessidade das políticas terem sempre referência o "chão que elas
pisam" (op. cit.). Para Mary Castro (2007), um dos grandes problemas das
políticas públicas para juventude é a falta de avaliação e de acompanhamento
sistemático. Outro principal desafio, porém, no âmbito de elaboração, é não
pensar nessa categoria como uma mera fase de transição para vida adulta
sem percebê-la apenas como um segmento mais amplo alvo das políticas de
estado, negligenciando devida relevância às suas singularidades (UNESCO;
2006).
Um aspecto que também deve ser percebido como relevante é o
caráter conservador da maioria das políticas públicas. Geralmente elas são
direcionadas ao âmbito educacional e de empregabilidade visando promover
a
inserção
dos
jovens
na
educação
formal,
cursos
técnicos
e
50
profissionalizantes, preparando-os para atuação no mercado de trabalho no
intuito de manter a normalização da ordem societária vigente. Não destinam
preocupação com a realidade e o contexto de cada indivíduo, mas sim para
moldá-los aos padrões sociais, “educação para o trabalho; trabalho para a
consecução de uma cidadania normalizada; cidadania como categoria estável
de direitos e obrigações” (REGUILLO, 2004: 50 in MACHADO PAIS: 65).
Em contrapartida, o relatório da UNESCO (2012) aponta para a
importância de uma formação técnica e profissional, destacando que muitos
jovens
não
recebem
a
qualificação
adequada,
em
decorrência
da
desigualdade de acesso a educação. Por isso, frisa a necessidade de ofertar
uma vasta gama de possibilidades para que eles aprimorem suas
perspectivas de emprego. Reconhecendo que os jovens que não tiveram
acesso a tais oportunidades terão maior probabilidade a ocupar cargos mal
remunerados. Assim o documento defende que, se os jovens tiverem uma
preparação técnica e profissional de qualidade, se tornarão a força motriz
para o desenvolvimento do país.
Levantaram-se pontos que indicam alguns motivos que podem causar
estranhamento, falta de identificação e participação da juventude com as
ações destinadas a ela. Assim, tem-se a necessidade de pensar políticas
públicas juntamente com a participação ativa desses atores sociais,
compreendendo-os como sujeitos autônomos, capazes de levantar suas
questões e propor suas próprias soluções. Também é preciso conhecer as
representações sociais e motivações desses sujeitos, distanciando-se dos
conceitos estabelecidos por uma visão adultizada e conservadora da
sociedade que não permite transcender suas percepções, limitando a
dinâmica de conceitos e valores as barreiras geracionais (PAIS, op. cit.). Mary
Castro (2007), ao mencionar colocações do CONJUVE, frisa sobre a
importância das politicas públicas de fomentar a participação incentivando a
"formação de um capital social-cultural para exercício de uma cidadania ativa"
(MARY CASTRO, 2007: 116) capaz de construir um capital político que dê
chão a tal participação.
51
Nesse ímpeto, cabe destacar que diversos grupos e organizações de
variados segmentos juvenis buscam formas inovadora de se inserirem na
esfera social. Ultrapassam o ativismo formal e contribuem com suas
intervenções no intuito de mudar a realidade, dando novos contornos aos
debates políticos na luta pela garantia de direitos.
Nos últimos 15 anos, os chamados grupos culturais de jovens
urbanos têm encontrado formas inovadoras para incidir no espaço
público. Por meio de ritmos, gestos, rituais e palavras, estes grupos
culturais instituem sentidos, negociam significados e combatem a
segregação e o preconceito. Por intermédio de seus textos literários,
de suas letras de rap, de suas apresentações de teatro e dança e
de suas programações radiofônicas ou atividades esportivas,
contribuem para a ampliação do espaço público (Juventude e
Políticas Sociais no Brasil; 2010:17).
Vários grupos encontram na dança, na música, nas artes visuais e em
outras maneiras de manifestações culturais modo de participar das lutas
políticas direta ou indiretamente, expressando suas realidades, denunciando
as injustiças sociais, o descaso e a omissão do Estado (FREITAS, 2003).
Assim, apresentam suas problemáticas e levantam suas pautas. Esse
aspecto reivindicatório e político é facilmente notável nas letras das músicas
do Neguinho do Rap e em outras composições de raps.
Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'Filho,
por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.' Aí
passado alguns anos eu pensei: como fazer duas vezes melhor, se
você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela
história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses, por tudo.
Que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o
melhor ou o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher
o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade.
Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí?
Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz.
(Música, A Vida é um Desafio - Racionais M'cs)
O Enxame, durante muito tempo, atuou ativamente na esfera cultural
realizando estratégias arte-educativas no intuito de produzir, ampliar e
ressignificar os códigos juvenis da periferia, no intuito de possibilitar formas
alternativas de inserção social. "O Enxame é apontado pelos seus integrantes
como a voz da juventude no Morro. É uma voz que apresenta outros signos
52
juvenis"
(FREITAS,
2003:
104),
possibilitando
novas
vivências
e
representações sociais.
Em minhas pesquisas de campo, também percebi esse caráter
compilar-se nos Encontro Cultural do Mucuripe, evento idealizado e
organizado por jovens da comunidade. Os encontros que iniciaram em
novembro do ano passado contam com apresentações artísticas de dança,
música, teatro, etc. com a proposta de ocorrer mensalmente e com o objetivo
de chamar atenção para realidade local; a necessidade da conclusão das
obras da Praça do Mirante iniciadas há mais de dois anos no intuito de
revitalizar o Mirante como ponto cultural, incentivando a reocupação do
espaço por parte da população local.
Nessa perspectiva, a esfera cultural aparece como terreno fértil que
possibilita novas representações do cotidiano. Isso faz pensar na importância
de incentivar ações como essas que também dão concretude ao discurso de
participação juvenil que se solidificam em atos de cidadania e políticos em
prol da luta pela garantia de direitos. No entanto, a instrumentalidade
tradicional dos equipamentos políticos parece ignorar essas iniciativas
propagando a participação juvenil como uma "problemática", talvez para
reafirmar a colocação simplista que jovem não gosta de política6. Para dar
materialidade a tal afirmativa, cabe considerar que existe uma forte tendência
entre os jovens de descontentamento com as instituições políticas formais, o
que os levam a optar por maneiras alternativas de fazer política e não o
desinteresse em política.
Num documento publicado recentemente pelo Conselho da Europa
sobre a participação política dos jovens europeus (Lauritzen, Forbrig
e Hoskins, 2004), o retrato que nos é dado é o de uma juventude
desencantada com as instituições e os modos tradicionais de
participação política. A confiança nas instituições políticas está em
decréscimo, o que se reflete num significativo abstencionismo
eleitoral (Galland e Roudet, 2001). No Brasil, como em Portugal, o
panorama não é diferente. Num recente inquérito abrangendo cerca
de nove milhões de jovens brasileiros, dos 15 aos 24 anos, apenas
10% mostrava interesse pela política (Dayrell e Carrano, 2002).
6
Uma pesquisa da UNESCO apura um dado curioso; 63 dos jovens entrevistados acham
que a juventude não de hoje não se importam com política.
53
Para estes jovens, o poder careta procura enquadrá-los no regime
dominado pelos caretas, não por acaso também designados de
“quadrados”. Em contrapartida, os jovens sugerem ser por estes
vistos como “desenquadrados”, “desalinhados”, “marginais”, termos
que apontam para uma exclusão que muitos jovens transformam em
oportunidade
para
reafirmarem,
exacerbadamente,
suas
identidades. (PAIS, op. cit.: 54)
O descrédito no atual sistema político propicia espaço para
movimentos que buscam novas maneiras de governabilidade, sobretudo
aquelas baseadas na participação popular. Partindo dessa compreensão, não
podemos ignorar as diversas formas de inserção social e de atuação política
de uma juventude que emerge como categoria social e apresenta modos
criativos de mobilização, rompendo com os padrões estabelecidos e
apresentando ideias novas capazes de oxigenar ou renovar nossa
organização societária.
Por isso, Machado Pais (op. cit.) destaca a necessidade de
compreender as manifestações das diferentes culturas juvenis considerando
a construção de suas identidades e expressões simbólicas e levanta a
seguinte reflexão: "Desenhar políticas de juventude é desenhar mapas de
futuro. Mas não valeria a pena desenhá-los se não houvesse viajantes para
os percorrer. Que sentido podem os jovens dar à política se se sentem fora
dela?" (MACHADO PAIS, op. cit., p.66).
Nesse sentido, a juventude percorre seus cominhos. Enquanto alguns
defendem e acreditam nos modelos formais de luta e atuação política, outros
buscam formas alternativas de se inserirem na esfera social, ou pactuam das
duas vertentes. Não cabe aqui opinar os trilhos a serem seguidos, mas
apresentar as formas possíveis de atuação da juventude, sobretudo, destacar
o espaço de participação coletiva, ocupado por grupos juvenis que se
encontram à margem do sistema e das instituições tradicionais do Estado
normativo.
54
CAPÍTULO 3 - JUVENTUDE, CULTURA, ARTE E EDUCAÇÃO: NEXOS
CATEGÓRICOS
3.1. A interpretação das Culturas como ponto de partida
Para entender a realidade dos atores aqui estudados, serão utilizados
aportes teóricos da antropologia que caminham no sentido de compreender
as múltiplas dimensões do ser social sem segmentar sua existência,
considerando suas diversidades. Assim, será relacionada a dinâmica social
com os conceitos de cultura, para elucidar as manifestações desses sujeitos.
Ao dissertar sobre a realidade humana, Roberto da Matta (1981)
aborda a relação entre duas categorias; social e cultural, elencando suas
semelhanças e diferenças, considerando-as como fundantes da condição
humana. A primeira categoria consiste em um sistema de ações ordenadas de
indivíduos que atuam coletivamente. A segunda refere-se aos valores,
ideologias, tradições, regras e costumes. Essas duas esferas sociais
constroem-se mutualmente formando a realidade que nos cerca. Assim, em
cada grupo social, existe um conjunto de normas e condutas passíveis a
modificações seguindo a dinâmica da realidade. Ao mesmo tempo em que os
valores culturais modificam-se, consequentemente a forma de organização
societária também mudam.
Partindo dessa percepção, serão apresentadas algumas definições
sobre cultura. Primeiramente vale salientar que os conceitos aqui expostos
divergem do sentido atribuído ao senso comum. Provavelmente já se ouviu
expressões do tipo: "Mário não tem cultura" ou "Maria é muito culta", essas
colocações estão relacionadas nas falas cotidianas com a quantidade de
informações e conhecimentos adquiridos, por exemplo, se uma pessoa leu
poucos livros, não teve acesso à educação formal ou não tem conhecimento
em determinado assunto, se diz popularmente que ela não tem cultura. Esse
significado da palavra cultura é empregado muitas vezes de modo polarizado,
55
inclusive como ferramenta discriminatória, para menosprezar, diminuir ou
classificar pessoas e grupos sociais (Roberto da Matta).
O conceito aqui utilizado provém de uma abordagem que entende a
cultura como uma categoria de suma importância para compreensão da vida
social. É através desse conceito que se busca interpretar os códigos sociais e
a maneira de viver de determinada sociedade, analisando a forma como os
indivíduos constroem seu espaço, modificam o mundo e a si mesmos. Nesse
sentido, a cultura está relacionada ao conjunto de normas sociais e aos
modos de comportamentos de um povo. Não como algo inerte e de livre
escolha, mas como algo que de modo geral nós é imposto e que também
pode ser alterado, "está dentro e fora de cada um de nós" na relação entre
sociedade e indivíduo7 (Roberto da Matta).
O conceito de cultura defendido por Clifford Geertz (2008) parte de uma
abordagem semiótica, ou seja, analisa os sistemas de signos em variados
campos, arte, religião, política, educação etc. Estuda os fenômenos culturais
através de uma análise interpretativa de seus significados, "acreditando, como
Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que
ele mesmo teceu" (GEERTZ, 2008: 04). O autor também lança a percepção
de cultura como um mecanismos de controle, em outras palavras, um
conjunto de normas, instruções e leis em que o homem é absolutamente
dependente e que governam o comportamento do ser social. Nesse ponto
evidencia-se o caráter público da cultura, constituído por estruturas de
significados socialmente estabelecidos que não devem ser observados,
descolados de seus contextos
Ao investigar sobre a relação entre cultura e violência a partir das
vivências de jovens da periferia de Fortaleza, Glória Diógenes em seu estudo
sobre gangues, galeras e movimento hip-hop, relata a respeito das
7
Para exemplificar essa discussão, retomo a uma reflexão apresentada no capitulo 2.
Bourdieu defende que a juventude é uma construção histórica construída socialmente. Nessa
perspectiva, ela é sobretudo, uma categoria culturalmente constituída. Assume variados
conceitos de acordo com os períodos históricos e, seguindo a dinâmica cultural,
metamorfoseia-se ao longo dos tempos ao sabor das transformações sociais.
56
representações simbólicas usadas por esses grupos. A juventude, em sua
disposição contemporânea se subdivide em uma diversidade de culturas
juvenis. Esses grupos juvenis são caracterizados por uma variedade cultural,
eles se separam e se aproximam entre si na medida em que divergem ou
partilham dos variados signos; conjunto de vocabulário, comportamento,
gosto musical e maneira de se vestir etc., e com esse viés, aparecem
carregados de significantes.
O estilo utilizado pelos componentes das "galeras" de periferia tem
o "boné" – Segundo um integrante da gangue do Castelo Encantado
– como documento, como código de comunicação visual apenas
perceptível aos enturmados. (...) Os estilos são signos de
comunicação visual, um modo de apresentação que opera um
refluxo da linguagem para dar passagem a sinais inscritos nos
corpos, coreografados nas gestualidades. ( Diógenes, 2008:28)
No Enxame, os meninos do break partilham de linguagens e signos
comuns. Nas apresentações, o estilo dos jovens trazem marcas que
identificam o movimento hip-hop; a batida da música que embala a dança, as
expressões corporais acentuadas como forma de comunicação e as
vestimentas; tênis, bonés, gorros, camisas grafitadas, calças ou shorts largos.
No decorrer da pesquisa, a pesquisadora foi se familiarizando com alguns dos
códigos de linguagem. Não entendia por que a maioria deles tinha um nome
estranho, que, com certeza, não correspondia aos nomes de registro, como bboy DQ. Então, Valber explicou-a que os dançarinos eram chamados de bboys e as meninas de b-gyrl, e, com o passar do tempo, cada b-boy pode
ganhar um apelido de acordo com sua personalidade. Para os garotos, o
apelido pode simbolizar uma sensação de pertencer ao grupo, a partir do
momento em que suas características são reconhecidas.
Neguinho do Rap gravou um clip com a música "Enquanto rola o
crime". Nesse clip, em alguns momentos, notou-se que os códigos visuais que
demarcam o hip-hop se aproximam sutilmente ao modelo norte-americano8;
alguns b-boys e o Mc aparecem usando indumentárias como blusões,
casacos e grandes cordões de prata. Em contraponto, o cenário do vídeo 8
Vale salientar que a comparação feita do clipe com aproximação do estilo norte-americano
evidenciado por alguns códigos visuais de vestimentas dos participantes, é uma pontuação
subjetiva de minha análise, pois talvez essa relação não tenha intuito proposital, mas
meramente influenciada pela reprodução inconsciente de outros símbolos culturais .
57
comunidade
do
Serviluz
-
evidencia
as
marcas
de
territorialidade,
apresentando o contexto dos bairros de periferia; crianças sozinhas na rua,
vielas sem pavimentação e barracos, dimensão que não pode ser dissociada
de uma análise cultural dos significantes.
Segundo Bourdieu (1996), para apreender a lógica das relações
sociais, é necessário mergulhar com profundidade nas particularidades da
realidade a ser estudada, sempre dialogando a teoria com o campo empírico
contextualizando historicamente. Assim, denota-se o caráter dialético
construtivista entre o indivíduo e o meio em que está inserido. O autor utiliza
três categorias primordiais em suas análises: Campo, capital e habitus. O
primeiro consiste nos diferentes espaços da vida social, por exemplo, campo
econômico e político.
Cada campo
possui uma
lógica própria de
funcionamento e tem autonomia relativa em comparação a outros campos. O
segundo refere-se ao conhecimento adquirido de modo explícito e também
implicitamente. O último consiste em uma noção mediadora que capta as
ações dos indivíduos, considerando uma subjetividade socializada, ou seja, o
modo como a sociedade se deposita em nós. É uma aptidão natural, mas
também um condicionamento social, sobretudo, variável e gerador de práticas
sociais. Para pensar a cultura e suas representações simbólicas, é preciso ter
uma noção-chave dessas categorias considerando que elas existem de modo
entrelaçado.
Portanto, o espaço social é marcado por um sistema hierarquizado de
disputa de poderes, delimitado não só pelas relações econômicas, mas
também pelas relações simbólicas. E é justamente nesse sentido que o
capital cultural é utilizado como uma espécie de moeda de troca. Apropriado
pelo mercado, não em termos financeiros, mas de bens simbólicos, entra no
jogo das disputas de poder. A posição social dos indivíduos não depende só
da quantidade de dinheiro e de bens materiais acumulados, mas está
associada ainda ao capital cultural adquirido (conhecimento nos diversos
campos; musical, literário, artístico; Grau de escolaridade, diplomas, títulos
etc.). Os diferentes níveis de aquisição de capital estão ligados a condições
específicas de socialização condicionada pela distribuição desigual de
58
poderes. Assim, os gostos e as práticas culturais (habitus) são orquestradas
pelo espaço e o campo em que o indivíduo está inserido (BOURDIEU, op.
cit.).
Quando Valber foi entrevistado, ele contou um pouco sobre sua história
para explicar como se aproximou do movimento hip-hop, ressaltando que
suas experiências eram muito similares às histórias de vida de vários jovens
que frequentaram o Exame. Refletindo sobre isso, notou-se um paralelo entre
o estruturalismo construtivista9 de Bourdieu e os relatos de Valber. Imerso no
cenário das grandes periferias marcado pela pobreza e precariedades sociais,
ele passou por algumas vivências de rua e, foi justamente na rua, através de
amigos que ele teve pela primeira vez contato com o hip-hop. Foi também o
movimento hip-hop que lhe apresentou novas possibilidades de ver o mundo,
abriu portas e o fez aprender a valorizar sua cultura local, lutando contra toda
forma de preconceito.
Nesse tempo era engraçado, eu ainda era muleque vei. Agente ia à
noite, quando o colégio, ali no CSU, tava fechado e pulava o muro
para ensaiar na quadra. Não tinha outro lugar pra agente ensaiar, ai
agente ia pra lá. Uma galera, dançava break, catava rap, era só por
diversão mesmo. Isso na década de 90, o movimento hip-hop ainda
tava começando aqui. Foram dizer lá no colégio que tinha uns
meninos pulando o muro, ai um dia a diretora pegou agente.
Quando ela viu o que era perguntou porque que agente não tinha
ido lá conversar com ela, era só explicar. Ai agente começou a
ensaiar lá. (Valber)
Se Valber tivesse construído suas referências culturais no campo
musical, tendo como base a realidade das classes elitistas, qual seria a
probabilidade de seu capital cultural estar voltado para o movimento hip-hop?
Será que ao escutar uma música ele iria escolher com toda empolgação a
faixa "Nego drama" do Racionais MCs para tocar? E se ele tivesse nascido
em algum país do Oriente Médio, ou na Índia? O contato de Valber com hiphop e suas expressões culturais é profundamente marcado por sua trajetória
educativa e socializante.
Com esse mesmo direcionamento, faz-se uma reflexão mais ampla
sobre o espaço ocupado na sociedade pelas culturas urbanas das classes
9
Denominação dada à teoria de Pierre Bourdieu.
59
menos favorecidas. No campo das disputas de poder, a cultura foi apropriada
como elemento estratégico pelo mercado de bens simbólicos, transformandose em instrumento de dominação para classificar hierarquicamente a cultura
dos seguimentos sociais e garantir a reprodução de padrões (BOURDIEU, op.
cit.). Com o ranço dessa supremacia cultural elitista, a classe dominante
impõe sua própria cultura criando pejorativamente a noção de uma cultura
boa e cultura ruim. Percebe-se essa postura segregacionista refletir-se no
grafite, rap, funk e artes de rua. O rap, por exemplo, é estigmatizado como
ritmo musical de apologia ao crime, rotulado vulgarmente como "música de
bandido" por relatar nas letras o cotidiano das periferias. Já o grafite, apagado
pela cor cinza que pinta a capital paulista, é desprezado como forma de
intervenção artística e ainda reluta para ser reconhecido sendo alvo de
colocações preconceituosas.
As
artes
urbanas
seguem
estereotipadas
representando
simbolicamente códigos de uma cultura inferior. Essa relação sociocultural
deve ser percebida como reflexo da disposição de uma sociedade
estratificada que se repercute em diversos campos; político, econômico,
artístico, etc., levando em consideração a posição historicamente ocupada por
cada classe ou grupo na disposição social, sem desconsiderar as interrelações que coexistem entre essas classes na composição da estrutura
social (BOURDIEU; op. cit.).
Tem-se ainda um recorte importante a ser feito. Nas músicas de rap, de
modo geral, um aspecto presente é o ódio pelo playboy. Fazendo uma
reflexão, pontuam-se duas colocações sobre o assunto. A primeira trata-se de
perceber um choque cultural, uma atitude etnocêntrica que cria estereótipos
estabelecendo uma relação hostil com a diferença do cotidiano. Já a segunda
defendida por Rogerio Silva (2012) interpreta a aversão a figura do palyboy,
como uma reação das culturas periféricas frente às formas de participação
social limitadas no campo cultural pelas injustiças sociais.
Hey boy o que você está fazendo aqui. Meu bairro não é seu lugar
E você vai se ferir. Você não sabe onde está. Caiu num ninho de
cobra. E eu acho que vai ter que se explicar. Pra sair não vai ser
60
fácil. A vida aqui é dura. Dura é a lei do mais forte. Onde a miséria
não tem cura. E o remédio mais provável é a morte. Continuar vivo
é uma batalha. Isso é se eu não cometer falha. E se eu não fosse
esperto. Tiravam tudo de mim. Arrancavam minha pele(...) Você faz
parte daqueles que colaboram. Para que a vida de muitas
pessoas. Seja tão ruim. Acha que sozinho não vai resolver. Mas é
por muitos pensarem assim como você. Que a situação. Vai de mal
a pior. E como sempre você pensa em si só. Seu egoísmo
ambição e desprezo. Serão os argumentos pra matar você
mesmo. Então eu digo Hey boy... Não fique surpresa. Se o
ridículo e odioso círculo vicioso sistema que você faz parte.
Transforma num criminoso. E doloroso. Será ser rejeitado
humilhado. Considerado um marginal. Descriminado, você vai
saber. Sentir na pele como dói. Então aprenda a lição. Hey Boy....
"- Aí boy sai andando ai certo... - Eu tenho todos os motivos - Mas
nem por isso eu vou te roubar - Morô? - Sai andando / -Vai
caminha mano! - Não tem nada pra você aqui não, seu
otário! - Vai embora - Sai fora - E não pisa mais aqui hein!
(Racionais MCs – Hey boy)
Nas ruas da sul eles me chamam Brown, maldito, vagabundo,
mente criminal O que, toma uma taça de champanhe também curte
desbaratinado, tubaína, tutti-frutti. Fanático, melodramático, bonvivant, depósito de mágoa, quem está certo é os Saddan , ham...
Playboy bom é chinês, australiano, fala feio e mora longe, não me
chama de mano "- E aí, brother, hey, uhuuul!" Pau no seu c... aaai!
Três vezes seu sofredor, eu odeio todos vocês." ( Da ponte pra cá.
Racionais MCs)
As músicas de Mano Brown, vocalista dos Racionais MCs, deixam bem
evidente a repulsa ao estilo de vida das elites brancas. Essa é uma
característica comum nas composições de rap. A recusa, muitas vezes
intolerante, aparece nas crônicas musicas como uma tentativa de denunciar
as contradições do sistema. Confirmou-se que esse aspecto também é uma
marca na fala de Neguinho do rap, quando ele mencionou sobre postura de
rappers( cantores de rap) que depois de ganharem reconhecimento na mídia
mudam sua conduta.
O cara que sai da periferia, manda vê no rap, ai começa a fazer
projeto social massa, (...) quando começa a fazer sucesso quando
as coisas dão certo, deveria aproveitar fica ai andando de carão,
chei da grana, fazendo coisa nada a ver.( Neguinho do Rap)
Analisar a realidade das culturas juvenis periféricas predispõe a
compreensão do princípio de alteridade. Mergulhar nesse universo distinto
dos padrões formais e acadêmicos requer uma "revolução do olhar", romper
61
com a ideia de centralidade de seus próprios valores, suspender preconceitos
e construções habituais para colocar-se no lugar do outro, refletindo acerca
das diferenças culturais. Sobre isso, Laplantine (2006) pontua: "De fato,
presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas
míopes quando se trata da nossa" (p. 21).
Valber relembrou a reação manifestada pelos jovens quando surgiu a
proposta de misturar o rap com os ritmos regionais. Foram apresentadas para
os alunos composições de Bezerra da Silva, Luiz Gonzaga entre outros
compositores. A maioria desses alunos nunca tinha escutado tais cantores. A
diferença geracional emergiu como um impacto imediato. A garotada
acostumada com as batidas do rap, em um primeiro momento, recusou e não
demonstrou empolgação em escutar as "músicas de véi" sem nem mesmo
conhecê-las. A intenção da oficina consistia em mostrar que muitos cantores
antigos também escreviam as letras de suas canções a partir de suas
realidades, como a letra “Asa Branca”, que falava sobre a seca no Sertão.
Outro objetivo central da oficina era resgatar a historicidade e a cultura
popular que os jovens reconheciam como algo distante e muitos nem sequer
conheciam. A proposta da oficina foi materializada no CD “Carta de Alforria”,
que consolidou a mistura de ritmos regionais com o rap.
Uma coisa natural do ser humano e ter preconceito com aquilo que
ele não conhece né... então a primeira reação dele para qualquer
coisa que é alheia a ele é esse sentimento de estranheza né, assim
como os meninos do Enxame estranharam a "música de véi", como
eles diziam, mas que com o passar dos meses e com o trabalho que
nos fizemos dentro das oficinas eles viram que nossa cultura é tão
rica como a cultura que a gente tá importando. (...) Nosso rep é
diferente tinha o objetivo de misturar nosso som com ritmos
regionais, com a cultura nordestina, nossas raízes. Fomos os
primeiros a fazer isso, misturamos o coco, a embolada e isso não
deixa de ser rap. Quando lançamos, a ideia causou uma estranheza
no movimento hip-hop. Recebemos muitas críticas: "foge do paim."
Alguns diziam que não era rap, mas depois entenderam nossa
mensagem. E já recebemos elogios do próprio movimento hip hop
do Ceará. Criamos nossa identidade dessa forma. Tanto é que todo
minha argumentação comprova isso, meninos que simplesmente
não tinham menor conhecimento sobre a sua própria cultura local
no momento que eles passaram a conhecer né, eles assimilaram
aquilo como parte deles e dai ajudou a consolidar a formação deles
em termo de a identidade.(Valber)
62
Nessa perspectiva, com um viés educacional e político, o Enxame
ainda busca agregar valores a nossa pluralidade cultural, reforçando a
autoimagem dos jovens no intuito de fazer com que eles valorizem e
percebam a importância da cultura local sem desconsiderar suas marcas de
territorialidade.
Assim, cultura aparece como um instrumento que possibilita lançar um
novo olhar sobre o outro. Não só entender as variadas organizações
societárias e grupos sociais distintos, mas também o nosso próprio modo de
vida, abrindo o leque consciente da diversidade cultural.
3.2. A arte como ferramenta de ressignificação
"A arte é muito significativa pra mim, foi o que me fez ver o mundo diferente."
Neguinho do rap
Essa discussão propõe maturar sobre a arte como ferramenta de
ressignificação de vivências dos grupos juvenis da periferia urbana a partir
das experiências do Projeto Enxame e do Neguinho do Rap, tendo por base
as colocações apresentadas no tópico anterior, considerando a cultura como
elemento indissociável e imprescindível para apreensão crítica da lógica
social.
Inicialmente, cabe ter como reflexão alguns questionamentos que
serão discutidos no decorrer deste texto. Qual a ligação existente entre arte,
educação e cultura? Na relação entre arte e educação, qual a importância
social desse binômio? Como a arte contribui no processo de educação? De
que maneira esses dois segmentos atuam com instrumento propulsor de
ressignificação de vivências dos grupos juvenis?
No decorrer do processo de produção da existência humana, a religião,
a ciência, a arte e a educação aparecem como manifestações que compõe a
63
esfera cultural. Essas expressões são orquestradas pelas condições objetivas
do espaço social em que emergem e marcadas por suas representações
simbólicas. (BOURDIEU; op. cit.). Partindo dessa compreensão, a seguir será
exposto o pensamento de alguns autores sobre arte e educação para
posteriormente analisar a relação entre esses dois segmentos que circundam
o universo da cultura e engendram nossa organização societária.
Vários pensadores, a exemplo, Geertz e Coli, reconhecem a dificuldade
de definir um conceito sobre arte. Para Coli (1995), por mais que se busque
uma resposta definitiva, as concepções apresentam-se muitas vezes
dicotômicas, longe de chegar a uma solução única.
(..)É difícil falar de arte. Pois a arte parece existir em um mundo
próprio, que o discurso não pode alcançar. (...) Poderíamos dizer
que a arte fala por si mesma: um poema não deve significar e sim
ser, e ninguém poderá nos dar uma resposta exata se quisermos
saber o que é o jazz ( Geertz.1997:142)
Dentre as diferentes vertentes que dialogam sobre a natureza da arte
abordarei algumas construções que exprimem ideias as quais julgo de suma
importância para criar uma ponte teórica capaz de alicerçar minhas
observações acerca do campo empírico.
Apesar de não ter uma definição clara do que é arte, provavelmente se
deparar-se com um quadro de Leonardo da Vinci, Tarsila do Amaral, Candido
Portinari ou escutar a Nona Sinfonia de Beethoven, indubitavelmente irá
identificar essas obras como arte. Isso porque existe uma tendência em
associar as manifestações culturais características de uma sociedade como
produções artísticas. Portanto, culturalmente, se converteu um discurso e
uma simbologia que confere o estatuto de arte. Por exemplo, se você for
visitar algum museu ou galeria, imediatamente saberá que nesses espaços irá
encontrar obras de arte, pois esses locais imprimem um rótulo da arte a
determinados objetos (COLI,1995). Desse modo, tradicionalmente nomes
como Van Gogh, Michelangelo, Pablo Picasso são assimilados à qualidade de
artistas renomados. No entanto, outras concepções debruçam-se a entender
64
a ideia de arte, porém nesse texto, sobretudo, "o importante é termos em
mente que o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou
teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa
cultura" (COLI, op. cit.: 10-11).
Geertz (1997) vai além das colocações de Coli; ele considera a arte
como um segmento cultural que expressa a forma de viver de uma sociedade,
tecendo a relação entre a arte e a vida coletiva. O autor considera que as
expressões artísticas materializam o modo de organização societária
tornando-o visível no plano semiótico. Em outras palavras, os meios através
dos quais a arte se expõe são carregados de representações simbólicas, de
códigos visuais e linguísticos que imprimem os hábitos culturais e
consequentemente reconstroem o espaço social. Nesse sentido, a estética
aparece como algo secundário, não se trata de ignorá-la, mas entender que
essa apreciação da forma é incorporada por um padrão de vida. Então, ao
contemplar um quadro antigo, registro de uma atividade visual, é observado
não só a obra em si, mas também aspectos que identificam a sociedade em
que foi criada (GEERTZ, op. cit.). Por exemplo, retomando a pesquisa de
campo para ilustrar o caráter prático dessa teoria. As letras das músicas de
Neguinho do Rap e do Projeto Enxame falam sobre o cotidiano, demonstram
a realidade da favela, reconstruindo o cenário periférico. Assim, ao escutar um
rap, é possível perceber aspectos que denotam as vivências de um grupo.
Obviamente a percepção de cada pessoa também está condicionada a sua
experiência de mundo. Por isso, Geertz (op. cit.) ainda afirma que “as
habilidades, percepção, técnicas e sensibilidade, tanto do artista quanto do
público, são características adquiridas, mas sem desconsiderar as aptidões
individuais. A arte e os instrumentos, para entendê-las, são feitos na mesma
Fábrica" (GEERTZ, op. cit.:178).
A participação no sistema particular que chamamos de arte só se
torna possível através da participação no sistema geral de formas
simbólicas que chamamos de cultura, pois o primeiro sistema nada
mais é que um setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto é, ao
mesmo tempo, uma teoria da cultura e não um empreendimento
autônomo. E, sobretudo, se nos referirmos a uma teoria semiótica
da arte, está deverá descobrir a existência desses sinais na própria
65
sociedade, e não em um mundo fictício de dualidades,
transformações paralelos e equivalência. ( Geertz, 1997: 165)
Portanto, esse olhar sobre a "arte como sistema cultural" propõe uma
análise semiótica que não deve ser descolada do universo social, da maneira
como os homens se constroem e produzem o meio em que habitam.
Tampouco justificativa para desconsiderar a estética. O estudo da dimensão
de sinais e códigos deve ir para além de uma interpretação simbólica, levando
em conta os indicadores sociais, históricos e culturais em que se
contextualizam sua materialidade.
Peixoto (2001) conceitua a arte como um produto do "trabalho humanocriador-livre" (p. 03) à luz da concepção materialista dialética, resgatando o
elo entre arte e vida, partindo de uma visão de cunho social da arte. A arte,
enquanto criação humana e forma de comunicação estética, está vinculada a
uma
realidade
historicamente
e
socialmente
datada
e,
portanto,
inevitavelmente envolta em ideologias, compondo a supraestrutura social. Ela
materializa-se mediante as condições objetivas do real e, através de suas
qualidades simbólicas, propicia a suspensão dessa realidade para uma nova
visão, ou como denomina Marx, um concreto pensado, resgatando a essência
humana.
Como produto essencialmente humano, a arte não é, nem poderia
vir a ser, uma produção automática; é, sim, um produto humano
completo e complexo, para o qual são solicitadas as qualidades
mais refinadas do homem enquanto tal: em primeiro lugar, a
elaboração de uma certa compreensão do mundo e a abstração,
para tomá-la como conteúdo da obra; em segundo lugar, a
capacidade de criar, que envolve três ações básicas: projetar na
mente o produto final, buscar os meios mais verdadeiros e
significativos para a sua elaboração, concretizar o planejado num
processo altamente dinâmico que, em seu decorrer (ou seja, no
movimento da própria obra em seu vir-a-ser), não apenas pode
determinar transformações no plano original do trabalho, como
também nas maneiras de ser, pensar e criar do artista no diálogo
com sua criação. Em síntese, trata-se da dialética da práxis humana
em toda a sua completude, da qual pode emergir um novo artista,
um novo produto ou uma nova realidade, de ordem espiritualmaterial. (Peixoto.2005:159) Arte no cotidiano
Nesse sentido, uma obra de arte condensa a percepção de mundo do
artista "enquanto indivíduo determinado-determinante do contexto histórico-
66
sócio-político e cultural a que pertence" (PEIXOTO, 2005). O artista, criadorfruidor, exprime seus conhecimentos acumulados, ao mesmo tempo que cria
uma nova experiência interpretativa como fonte geradora de conhecimentos.
Ou seja, a produção artística é modulada pelo meio, mas também carrega
aspectos psíquicos e subjetivos. Assim, as manifestações artísticas só podem
ser compreendidas em toda sua riqueza, inclusive em seus elementos
estéticos, se for considerado seu contexto e suas relações com o meio social.
Tendo por princípio essa relação dialética entre arte e vida, Peixoto
desconstrói, assim como Bourdieu e Walter Benjamin, a sacralização da obra
de arte. Ela recusa a ideia de "arte pela arte", desmistificando a noção do
artista enquanto ser iluminado detentor de uma genialidade inata. Pois o
indivíduo-artista, nessa concepção, é desconectado de sua realidade social,
dos interesses econômicos e políticos da ordem vigente. Sua criação não é
concernente às condições objetivas de sua vida e está desligada do real
(Peixoto, 2001).
Se a relação arte-indivíduo- sociedade é trabalhada dentro do
âmbito da vida cotidiana, teremos relações imediatamente
humanas. (...) a arte inserida no cotidiano pode vir a ser um
momento de veemente exercício da liberdade, de ampliação da
consciência-autoconsciência e de intenso prazer sensório-intelectual
desvinculado das relações de posse e dominação que permeiam a
quase totalidade das relações humanas, na sociedade capitalista
contemporânea. (Peixoto, 2001: 5)
Ainda com base nesse posicionamento materialista dialético, Peixoto
(2001) busca esclarecer a função educativa da arte, considerando a relação
entre arte e educação. Nesse sentido, a autora apresenta a educação como
resultante do trabalho humano de segunda natureza, ou seja, fruto da
produção não material.
É no âmbito ideológico, na produção de novas ideias, valores, e
conceitos que a educação, como segmento integrante da cultura humana,
utiliza-se de sua capacidade reflexiva para exercer importante função no
processo de humanização do homem, fomentando sua consciência coletiva e
autoconsciência. O processo educativo vai além dos métodos formais. Ele se
dá inclusive de modo não intencional. Nesse caso, se processa no cotidiano,
no âmbito familiar e na vida coletiva no decorrer de toda trajetória do
67
indivíduo. Por isso o espaço cultural é percebido eminentemente como
educativo, propiciador de fonte de conhecimentos variados e forte
determinante no estabelecimento de um sistema de valoração a ser
assimilado/transformado pelos indivíduos, sistema que regerá a formação de
hábitos e atitudes e a forma como esses indivíduos constroem, percebem e
interpretam os símbolos que compõem e expressam sua cultura (Peixoto, op.
cit., p.104-105).
De acordo com o dicionário Aurélio, a educação é conceituada como
"processo de desenvolvimento da capacidade física intelectual e moral da
criança e do ser humano de modo geral, visando à melhor integração
individual e social". Para Paulo Freire (1996), a educação é um processo de
formação no qual as pessoas vão se construindo ao longo de sua vida. Ela
tem objetivo não só de transmitir informação e conhecimento, mas servir
como uma alavanca, propiciando um exercício crítico-reflexivo através do qual
o homem ascende para o estado consciente. “Ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua
construção” (FREIRE, 1996, p. 21).
Nessa perspectiva, o pensamento pedagógico freiriano utiliza uma
prática dialógica na tentativa de educar os indivíduos mediante suas
vivências. O homem deve conhecer sua historicidade, entender a realidade
em que está imerso para, a partir dela, desenvolver estados intelectuais na
produção de saberes. O ato do diálogo iminentemente propõe uma troca de
experiências onde se faz necessário respeitar as diversidades culturais,
compreendendo as particularidades do outro, no processo de humanização.
Portanto, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.
(Freire. 1996) Assim a educação é um instrumento de libertação da
consciência, em que o homem deixa de ser um mero espectador de sua
história e descobre-se como ser autônomo capaz de construir sua própria
existência. O método educativo de Freire defende uma ruptura com o
tradicionalismo pedagógico. Não é só saber ler e escrever, mas interpretar o
mundo a sua volta, ter autonomia para, participar e exercitar sua cidadania
(Freire, 1987).
68
Portanto, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Assim a
educação popular, pensada por Paulo Freire, pode ser um instrumento
propulsor de transformações sociais. Da mesma maneira que a arte, como
defende Peixoto, também se apresenta como ferramenta capaz de propiciar
uma consciência crítica da realidade.
Read (2001), em seu livro “Educação Pela Arte”, defende a junção da
arte e educação, baseando-se nas doutrinas de Platão. Ele acredita que a
arte é um elemento essencial no processo de aprendizagem, é um momento
de autocriação para formação da autoconsciência. Assim, "a educação deve
ser um processo não apenas da individualização, mas também de integração,
que é a reconciliação entre a singularidade individual e a unidade social"
(Read, op. cit.: 06).
Segundo as concepções pedagógicas norteadoras da Proposta de
Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei no Ceará, a ação
educativa dever ser guiada no sentido de uma vivência cidadã, tendo como
princípio formação humana integral, democracia, ética, justiça, emancipação e
construção coletiva. No âmbito das atividades socioeducativas é pensada a
relação entre educação e arte, destacando a importância de educar pela arte,
não na visão de educação artística tradicional, mas sim "fazer Arte-Educação,
ou seja, fazer da arte, do produzir arte, do frui arte um grande instrumento do
fazer educativo" (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a
Lei no Ceará, p.51.). Para tanto, a arte é descrita como uma ferramenta capaz
de tornar a mente flexível, o que é uma condição fundamental para aprender.
Ela desenvolve a imaginação, a percepção estética e a sensibilidade. A
estética, por sua vez, volta-se para os sentidos, para educação dos
sentimentos, do olhar, que deve ser estimulado e manifesta-se como forma de
expressão. Assim, "o olhar ultrapassa o ver, investigando, questionando o que
está além do visto." (Proposta de Atendimento ao Adolescente em Conflito
com a Lei no Ceará, p.52.) É também uma maneira de compreensão do
mundo e de si próprio, apontando para uma mudança e para o crescimento
humano.
Ao perguntar a Valber sobre o que é arte, ele mencionou:
69
A arte é uma forma de expressar aquilo que agente enxerga no
mundo. A arte por si só ela já educa. Ela tem essa grande vantagem
em relação a qualquer outro tipo de técnica ou convenção já criada
pelo homem. Porque ela proporciona essa nossa percepção da
realidade e nos sensibiliza de todos os aspectos que nos cercam
porque a partir disso, uma vez que agente tenha esse olhar artístico
das coisas nos podemos fruir através disso aprender, ter um novo
olhar. Ela tem o poder de sensibilizar nossa percepção, a forma
como agente ve o mundo, como agente enxerga as coisas. E isso
influência na criatividade para a produção e reprodução dos meios
artísticos que agente consegue assimilar.
A arte-educação é o método pedagógico utilizado nas oficinas do
Enxame e do Neguinho do Rap. Através das atividades arte-educativas, estes
projetos buscam recodificar os signos sociais no intuito de promover o
conhecimento e reconhecimento da dinâmica sociocultural, incentivando o
protagonismo juvenil.
A proposta do Projeto Enxame, desde sua fundação, é utilizar oficinas
de arte com os jovens que pertencem às galeras do bairro no campo de
ressignificação no intuito de ampliar códigos culturais possibilitando novas
estratégias de inserção social. "Tínhamos a ideia de que arte é um campo
propulsor de significantes, ela certamente irriga territórios esquecidos do
corpo, faz emergir novas formas de linguagem" (DIÓGENES, 2006: 192).
Uma nova forma de linguagem; foi isso que despertou em Felipe Rima,
ex-integrante do Enxame e atualmente um dos grandes nomes do rap em
Fortaleza. O jovem driblou o contexto de violência em que vivia e desenvolveu
uma habilidade: a rima em forma de rap.
Usamos nosso rap pra lutar contra o sistema o povo da favela vai
seguir esse dilema. Ele da de bandeja tudo que você quer droga
dinheiro arma e mulher só quer te iludir pra depois te derrubar. Vou
te dar um conselho pare pra escutar pois não é usando drogas que
você vai vencer preste um pouco de atenção faça o que vou fazer
vou cantar o meu rap para denunciar tudo que ta errado seja aqui
seja lá siga o meu conselho saia dessa ilusão porque essa vida não
tem futuro não de um jeito ou de outro eu vou fazer a minha parte
porque cantando rap eu estarei fazendo arte e não vou ser mais um
que o sistema vai tragar porque eu apredi que posso conscientizar
minha mente é consciente eu sei o que fazer mas não vou cruzar os
braços tenho que ajudar você não posso ver meu povo se auto
destruindo e se eu não falar eu estarei contribuindo o que eles
70
caiam no mundo da perdição e eu não quero isso pro meu povo
então vamos fazer esse quadro mudar vai ser muito difícil mais não
parem de lutar vou ter que enfrentar as autoridades e vou mostrar
pra eles toda a realidade mesmo que eu seja muito criticado não vai
ter molesa presse bando de safados você deve estar me achando
atrevido escute o meu rap e não tampe os ouvidos porque ele é
verdade e força de expressão então me ajude a cantar esse refrão o
bairro onde eu morro vida é mito precária ganhar cinco reais pra
trabalhar uma diária os pais os filhos sem opção de vida muitos tem
que roubar pra arrumar comida aqui infelizmente a vida já não é tão
boa pobre sendo humilhado e o rico sorrindo a toa. Eu sei que o
sistema ele quer me destruir mais isso eu te garanto ele não vai
conseguir porquê eu canto rap não é pra ter fama é só pra tirar o
meu povo dessa lama. Viver reclamando não vai me levar a nada eu
tenho que agir é isso ai meu camarada vou usar a minhas armas e o
sistema combater porque deus está comigo ele não pode m,e
vencer sou do projeto enxame onde aprendi rimar me deram a
munição agora vou bombardear eu mando esse rap com muita
satisfação e vamos novamente cantar esse refrão (Música
"Conscientes do Sistema" de Felipe Rima)
A fala que segue abaixo é do pai do ex-aluno do Enxame. O trecho foi
extraído da primeira faixa do CD Carta de Alforria, em que os pais dos
participantes relatam sobre a influência do projeto na vida de seus filhos. O
CD é formado por músicas autorais.
É o meu nome é Ribamar pai do Felipe. O Felipe eu sempre admirei
ele desde criancinha pelo desempenho que ele sempre teve nos
estudo. Sempre foi aquela criança que não deu trabalho nos estudo
né... Mas eu que na época era bandido né e ele se espelhava em
mim né, como sempre o filho quer se espelhar no pai e ele tinha
aquela queda também pra ser temido como eu era, gostava muito
de arma e povo me temia porque eu andava muito armado. Isso eu
vejo que mudou, na vida dele os pensamentos mudaram, graças a
Deus. Na verdade quando ele disse que ia entrar no Enxame né eu
não dei muita importância. Ai foi que eu vim acordar, o Enxame
realmente é um projeto que incentiva o adolescente a crescer em
alguma coisa. Porque as vezes, você tem o talento em si, mas ai
falta oportunidade, falta o caminho, falta alguém abrir uma porta pra
você poder entrar. Iai o Felipe encontrou essa porta através do
Enxame e está desenvolvendo seu Talento, graças a Deus.
(Ribamar)
Valber
relatou-me
sobre
as
experiências
de
ressignificação,
mencionando a influência dela para que os jovens redescubram novos
valores, encontrem suas potencialidades e busquem novos espaços na
própria comunidade. Para que, assim, possam criar suas identidades se autoafirmando dentro de seu contexto sociocultural.
71
Essa pessoa ai é mal, é ela mesmo? Ela ta aqui na oficina? Mas eu
fiquei sabendo que ela... O importante pra gente é saber que essa
pessoa também pode fazer outra coisa, pode ser bom na dança, no
grafite. Agente vai trabalhando com ela, nem todos ficam e claro,
mas agente ta aqui pra isso. Essas crianças, esses adolescentes
muitas vezes já vem de uma realidade complicada. Eu sei o que é
ser menino de rua, eu já fui, mas no meu tempo era diferente, hoje
tem o crack, tem outra realidade. A escola não tem condições de
educar pela própria precariedade do sistema que agente conhece,
ai quem vai educar esses adolescente? Ai agente ressignifica para
zele ver que pode ser de outra maneira. Para ele não reforçar o que
todo mundo diz, que o marginal, que não presta, não tem futuro.(...)
Vou dar o exemplo da minha convivência com o hip hop, são pelo
menos 15anos de estrada rodando o Ceará todo. Nossos alunos
que foram trabalhados na oficina de rap e ritmos nordestinos, que
tiveram o primeiro contato com o ritmo nordestino em uma oficina,
eles eram pra ser sei lá o que ou ta ai no mundo do crime, hoje
muitos são cantores de rap, como o Felipe Rima, ou fazem outras
coisas, estudam, mas estão longe da criminalidade.
Com isso, entendeu-se com maior clareza a importância dessa
proposta ao escutar a gravação de uma das oficinas de rap do Enxame
intitulada "O rap e a ideia do vagabundo", com o qual foi realizada uma
discussão sobre a música, "O vagabundo Sagrado", do grupo Cirurgia Moral,
tendo como instrutores Glória Diógenes e o rapper Lobão.
- Glória: O que seria um vagabundo sagrado? Por que, que ele é
um vagabundo sagrado, por exemplo?
- Lila: Eu acho que assim, eu acho que o vagabundo sagrado é
aquele que sobrevive às guerras né, porque sei lá, porque dos
dezoito não passa um vagabundo.
-Gloria: Por isso ele é sagrado?
- Lila: Hum, hum porque ele sobrevive a isso tudo.(...)
- Adriano: Eu acho que é porque Deus protege ele né, ai ele se
torna sagrado sei lá.
- Mariano: eu acho que o vagabundo é sagrado, por causa que ele
não é aquele vagabundo que chega lá, mete as fita, as parada é
auqle vagabundo que só fica na dele e tal, sem mexer com ninguém
sabe chegar e sabe sair.
- Glória: Sabe chegar e sabe sair.
- Lila: E que usa a malandragem dele para fazer o bem e não o
mal. Tem cara que usa a malandragem para fazer o mal, pra se
drogar, que usa a malandragem pro bem.
- Felipe: Tem uma música do Apocalipse né, que malandragem pra
ele não é roubar, não é matar. A música é mais ou menos assim: " a
música pra mim pe poder trabalhar, poder incentivar a pivetada a
estudar, com trabalho pretendo ganhar o meu dinheiro bem
diferente do playboy brasileiro", malandragem pra ele é isso ai que
eu acho que é um vagabundo sagrado.
- Lobão: Ele é um vagabundo sagrado porque ele ta no meio da
vagabundagem, e tá passando informação tentando tirar o irmão do
mundo do crime, esse é o resumo da música, é por isso que ele é o
72
vagabundo sagrado. Porque ele é visto por todos também como
vagabundo que no caso ele pede um pouco de malandragem pra
ele conseguir tá lá dentro exercendo seu trabalho sem ser atingido
por nada, nem pela polícia porque ele é um cara consciente, nem
pelo outro cara que é traficante, que é o vizinho dele, que é amigo
dele que no caso chegado. (Oficina do dia 09.04.2003)
Neste trecho destacado, é perceptível que a atividade se propõe a
refletir sobre os significados sociais, possibilitando a construção de
conhecimento mediante uma escuta pensante utilizando o diálogo como um
método que possibilita o conhecimento crítico da realidade através de uma
problematização de determinado assunto.
As oficinas, promovidas pelas ações independentes de Neguinho do
rap, também visam criar um ambiente de diálogo, partindo das experiências
cotidianas dos próprios jovens, com a intenção de formar um pensamento
crítico-reflexivo e indivíduos conscientes de suas realidades.
Nas oficinas de hip-hop, a gente pegava a galera, fazia grupo de 4 e
começava a escrever, quem não sabia escrever desenhava, pintava
se expressava como sabia. Primeiro, a gente falava um pouco sobre
a convivência dentro de casa, com a família, depois os amigos,
sobre a comunidade. Porque primeiro vem a família, o que se vive
em casa, depois aquilo se reflete na vida, na comunidade. Ai
agente ia discutindo cada história e pensando como é que podia
passar par comunidade, pra o outro, que fulano morreu para ele
não cometer o mesmo erro. Ai saia uns raps, grafite, até uns paço
novo de hip-hop. (Neguinho do rap)
Dessa maneira, música, dança e imagens produzem uma sensibilidade
e uma fruição artísticas, na medida em que os jovens são mobilizados a
dialogar com o que é apresentado e produzir a partir de suas percepções e
vivências, seja na forma de rap, poesia, desenhos ou pinturas.
Nessa perspectiva, Valber afirma que compartilhou, no projeto,
momentos enriquecedores no campo da ressignificação. E, enquanto arteeducador, acredita na importância da associação entre arte e educação no
processo de aprendizagem. "A metodologia da arte-educação é mais didática
do que o ensino formal, quanto mais lúdico, mais a gente prende a atenção
deles" (Valber).
73
Aqui retomo as considerações a respeito da educação não formal,
porém não no enfoque anteriormente defendido por Peixoto (2005), mas
trazendo outra visão. Messias (2008) destaca o caráter intencional da
educação não formal, descrevendo-a como uma ação planejada e estruturada
que, no entanto, vai de encontro com a formalidade da escola tradicional que
sistematiza seus parâmetros de eficácia através de indicadores como
avaliações rígidas, notas, e dados quantitativos. Na educação popular, não
formal, a escolha de participar é voluntária. Assim, os temas trabalhados
devem despertar a curiosidade e o interesse do educando para que ele seja
seduzido pelo ato de aprender.
Nesta pesquisa de campo, foi identificado "O Encontro Cultural em prol
da Revitalização do Mirante" como espaço que possibilita a educação nãoformal. A mobilização de um grupo social culminou em uma atitude política
que tem o objetivo de chamar atenção para as problemáticas locais.
Cobrando uma solução para tais problemáticas o encontro é realizado
mensalmente,
reunindo
apresentações
culturais,
incentivando
as
manifestações artísticas locais e fomentando a participação coletiva.
O hip-hop também aparece compondo o cenário empírico dessa
pesquisa, representado com maior ênfase pelo rap, que é um elemento
comum entre o Enxame e o Neguinho do Rap. Rogério Silva (2012) escreve
que o hip-hop é um movimento cultural e social, um instrumento educativo da
periferia, uma forma lutar contra violência, uma maneira de fazer política, de
primar pela cidadania de questionar o sistema capitalista contemporâneo e as
injustiças sociais para lutar contra uma realidade hostil, utilizando os
"instrumentos da arte para se manifestar e difundir a sua proposta"
(ROGÉRIO SILVA, 2012: 220).
Esse movimento social seria conduzido por uma ideologia (ou pelo
menos por certos parâmetros ideológicos) de autovalorização da
juventude de ascendência negra, por meio da recusa consciente
de certos estigmas (violência, marginalidade) associados a essa
juventude, imersa em uma situação de exclusão econômica,
educacional e racial. Sua principal arma seria a disseminação
da ―palavra‖: por intermédio de atividades culturais e artísticas, os
jovens seriam levados a refletir sobre sua realidade e a tentar
transformá-la. (Rocha, Domenich, Casseano, 2001: 18-9 in
ROGERIO)
74
Assim, o rap está conectado a um movimento estético-político mais
amplo, o movimento hip-hop. Entretanto, como Souza (2009) expõe o rap
não está comprometido com grandes transformações sociais. Ele não
apresenta um projeto alternativo concreto, tem somente o intuito de explicitar
as problemáticas e a situação degradante dos subúrbios urbanos, alertando
para necessidade de participação do jogo democrático. Silva (2012) também
aponta que essa visão do hip-hop não é hegemônica, muitas vezes esse
movimento social é visto apenas como uma manifestação cultural de “tribos
urbanas”.
Cabe aqui destacar um ponto relevante, sobre a percepção acerca do
impacto do movimento hip-hop, mais especificamente do rap, na vida dos
grupos da periferia e sua contribuição no campo da ressignificação auxiliando
a construção e afirmação de uma identidade cultural. Sobre isso, Neguinho do
Rap afirmou: "Quando fui entrando no Rap, vi que é muito rico, e muitas
pessoas podem aproveitar esse momento para mudar, pra refletir. Se eu
tivesse conhecido antes, talvez fosse diferente”.
Tendo como ponto de partida os pressupostos teóricos apresentados,
desde o início desse capítulo, pode-se inferir que a cultura, enquanto código
de um grupo social, aparece como espaço privilegiado de manifestação da
arte.
Partindo
dessa
perspectiva,
explorei
nesse
tópico
algumas
considerações que trabalham a relação entre arte e educação considerando
uma relevância fundamental; o contexto sociocultural em que os indivíduos
estão imersos.
Desse modo, as experiências de reconstrução e recodificação de
hábitos e valores pesquisadas no Projeto Enxame e no Neguinho do Rap me
fazem refletir sobre a importância dessas ações para a juventude periféricas.
E com esse intuito, a junção entre arte e educação foi apresentada como uma
nova perspectiva que pode carregar um sentido politizador capaz de
possibilitar novos caminhos e olhares para o mundo.
75
Portanto, a arte pode ser percebida como um terreno fértil que
possibilita o processo de conhecimento. Ela aparece, sobretudo, como um
campo de expressão e ressignificação dos códigos culturais, trilhando
caminhos para novas formas de inserção social.
76
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"A arte existe para que a realidade não nos destrua"
Friedrich Nietzsche
Toda a discussão teórica realizada neste trabalho foi cuidadosamente
pensada para dialogar com o recorte feito no campo empírico, mediante uma
contextualização histórica da dinâmica social, pois se acredita que a
existência humana não pode ser entendida em sua amplitude se
desconectada das condições concretas da vida.
De acordo com Marx (1983), a realidade só pode ser compreendida em
sua totalidade a partir das condições materiais e objetivas do homem, ou seja,
da estrutura social que delimita o modo de vida e consequentemente, a
relação social dos indivíduos em um determinado período histórico. Marx
afirma:
Na produção social da sua vida, os homens estabelecem relações
determinadas, necessária e independentes de sua vontade,
relações de produção que correspondem a uma dada fase de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade
destas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma supraestrutura
jurídica e politica [...] O modo de produção da vida material
condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral.
Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao
contrario, é o seu ser social que determina a sua consciência.(Marx:
1983:47-48)
Assim iniciou-se o trabalho descrevendo historicamente o espaço em
que o campo de pesquisa está imerso, tentando desvendar suas relações
políticas, econômicas e culturais. Por isso, no primeiro capítulo julguei
importante fazer uma viagem no tempo pelo Grande Mucuripe. Isso me fez
entender a relação de territorialidade estabelecida entre a cidade e realidade
de segregação enfrenta tanto pelos moradores do Morro Santa Teresinha
quanto pela comunidade do Serviluz. E, como Neguinho do Rap diz na
música "Acredite em você", foram vistos de perto "Os trilhos que separam o
Morro da sociedade".
77
Com esse direcionamento pude apreender com maior clareza o
cotidiano dos jovens da periferia urbana. Considerei ainda, alguns conceito
sobre juventude e sua disposição na contemporaneidade a fim de apropriarme de elementos que me possibilitassem ter uma visão macrossociológica
desse grupo social. Portanto, esse estudo se desenvolveu na tentativa de
entender os grupos juvenis sem desconectá-los das relações sociais, afinal
eles são mais um desdobramento da sociedade atual. Assim, as vivências
não estão, obviamente, desligadas das expectativas, imaginários, modelos e
padrões estabelecidos pela nossa organização societária. É nesse ponto, que
no segundo tópico do capítulo dois, é feita uma reflexão sobre Juventude e
Estado, destacando o papel das políticas públicas e apresentando formas
alternativas de fazer política. Sobretudo, levando em consideração, as
manifestações dos atores aqui estudados. Contudo expressões como rap,
ações coletivas e mobilizações comunitárias aparecem como maneiras
estratégicas de inserção social.
Mas por que trabalhar com o universo juvenil? Como menciona
Campos (2007),
por um lado, os jovens se encontram entre os agentes culturais com
maior dinamismo e criatividade na produção, manipulação e
consumo de objetos e imagens de diversa ordem, sendo porventura
detentores de uma visualidade singular; e, por outro lado, são um
dos objectos privilegiados do discurso das instituições culturais
contemporâneas, nomeadamente dos mass-media e das indústrias
culturais globalizadas.( Campos, 2007: 168)
E nesse jogo, como afirma Bourdieu (1983), a juventude é uma
categoria manipulada e manipulável.
Por isso, partindo de uma releitura do materialismo histórico, e da
concepção dos autores abordados, a cultura aparece como maneira de
expressão do modo de vida, modo de existir no ser social. Ela não está
descolada da questão material e concreta da existência. Assim ela
compreende as possibilidades de consciência social dos homens. Essa
concepção marxista desconstrói o discurso de senso comum que percebe a
cultura como algo isolado do contexto histórico-político e marginaliza
78
determinados grupos que não se inserem dentro do padrão massificado e
mercadológico da produção cultural e artística. Portanto, é preciso entender
as condições objetivas para compreender as expressões culturais de
determinado grupo sociais.
Assim, minha intenção em abordar os conceitos de cultura que
caminham no sentido de interpretar as representações sociais, ou seja, de
entender a cultura como código de um grupo, foi no intuito de romper tabus.
Superando ideias preconceituosas, elitistas e percepções estereotipadas de
que a juventude pobre não entende de arte ou não tem cultura. Tais
concepções conservadoras vão de encontro ao que foi investigado no
Enxame e no Neguinho do Rap. As falas que estão diluídas por esse trabalho
registradas através de entrevistas, relatos e conversas informais são
carregadas
de
conhecimentos,
de
compreensão
crítica
que
partem
principalmente da experiência cotidianas dos sujeitos pesquisados.
Ao fazer um levantamento, na área do grande Mucuripe, identificaramse mais de cinco projetos que desenvolvem trabalhos no campo da arteeducação. Grupos como Enxame, Neguinho do Rap, Kebra Molas, Instituto
Povo do Mar, Curumins e Power Dance vem ampliando o contato de jovens e
crianças com a esfera cultural. Buscam na arte uma ferramenta educativa. E
tendo acompanhado o Enxame e ações do Neguinho do Rap, pode-se
concluir que esses projetos Ecoam os gritos do subúrbio. A periferia encontra
na arte, através deles, um instrumento que possibilita recodificar e
reinterpretar o movimento do real.
A proposta de ressignificação trabalhada nos projetos e, formulada de
maneira sistematizada pelo Enxame na proposta pedagógica e em outros
documentos que norteiam as ações da instituição, são voltadas para
promoção de novos valores, reinterpretação da noção de direitos e cidadania
através da arte-educação como método educativo. A junção entre arte e
educação possibilita o processo de conhecimento, fazendo uma ruptura com
o tradicionalismo pedagógico no sentido abordado por Paulo Freire. A
educação popular, defendida por esse autor, consiste em despertar a
79
capacidade critico-reflexiva para interpretar o mundo, e não apenas saber ler
e escrever.
Desse modo, educação e a arte são também formas ideológicas,
formas de produção e reprodução de ideias que manifestam a representação
da vida, transmitidas pelo comportamento dos indivíduos mediante a
realidade que os cerca.
Percebeu-se essa abordagem teórica compilar-se na pesquisa de
campo. Constatou-se a importância da relação entre a arte e educação para
os jovens da periferia. Não a educação formal, mas uma educação dialógica
que considera a realidade dos indivíduos e se desenvolve através dela. Assim
notou-se a educação como instrumento educativo, politizador e realmente
comprometido uma formação que visa promover a cidadania, possibilitando
novos olhares e novas formas de perceber o mundo.
Neste sentido, o que encontrei no campo empírico, foi a quebra com a
lógica da educação tradicional ou bancária como denomina Bourdieu (2003).
Esse método educativo trabalha para uma mudança da realidade dos
indivíduos. O modelo de educação formal que recebemos nas escolas está
voltado para o mercado de trabalho, para o vestibular e, de modo geral, para
atender os interesses norteadores da lógica mercantil, garantindo a
reprodução do sistema vigente. Não é uma educação política, no sentido
mais abrangente da palavra, que está direcionada com foco para
fortalecimento da democracia e da cidadania, tampouco comprometida com
uma transformação da sociedade como defende Paulo Freire (2002).
Contudo, a educação assim com a arte não é neutra. Entendendo os espaços
sociais como sociedades de classe, ela favorece ou aqueles que esperam a
mudança ou aqueles que têm interesse que tudo se mantenha como está.
Nesse sentido, Bourdieu (2003) acredita que a escola é uma instituição de
reprodução da lógica vigente. Portanto a educação popular é um elemento
potencializador de transformações sociais, na medida em que faz emergir
uma consciência critica a partir da problematização do real.
Partindo do pensamento apresentado, concluo que as ações do
Enxame e do Neguinho do Rap desenvolvem um trabalho muito significativo
80
para a juventude periférica. Cada um com suas singularidades. O Enxame
dispõe de um espaço fixo, mesmo que através de doações recebe apoio
financeiro e tem um caráter institucional. Já o Neguinho do Rap trata-se de
uma ação totalmente independente, não tem sede e não recebe nenhum tipo
de recurso material. Eles têm suas particularidades e formas diferentes
realizam seus trabalhos. O primeiro de modo mais planejado com propostas
pedagógicas e objetivos delimitados. O segundo de maneira mais intuitiva,
sem aparatos técnicos nem documentação definida. Mas o importante é que
através da arte, eles conseguem produzir e fomentar novos códigos culturais,
considerando as representações já utilizadas por esses jovens em sua
realidade cotidiana. E nesse viés, promovem com primor um processo
educativo que propicia uma reflexão autoconsciente e, sobretudo, desperta
uma valoração da identidade cultural desses jovens.
Entretanto, lamentavelmente, essas iniciativas, apesar de promissoras,
encontram-se praticamente paralisada. Entender o porquê que o Enxame e
Neguinho do Rap enfrentam entraves para permanecem realizando suas
intervenções é um questionamento que poderá ser pesquisado em um
trabalho futuro. Mas, por enquanto, é válido como resultado deste trabalho,
salientar a relevância dessas ações e evidenciar a importância da
continuidade desses projetos.
81
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APÊNDICE - Roteiro de entrevista semi-estruturada
1 - O que é arte para você e qual a importância dela na sua vida?
2- Na sua percepção, como a arte pode contribuir e impactar na vida dos
jovens e adolescentes? Você acha que ela pode ser trabalhada como uma
ferramenta capaz de propiciar mudanças nos indivíduos?
3- Qual a importância da arte para o projeto que você (desenvolvido pela
ONG) desenvolve?
4 - Nas oficinas, existe algum espaço para uma discussão sobre a arte? Se
existe, metodologicamente, como ela é trabalhada e abordada?
5- Qual é a contribuição desse trabalho desenvolvido para os sujeitos alvos
do projeto e para comunidade?
7- Quais as dificuldades enfrentadas para implementação e continuidade do
projeto?
8- Como você avalia a importância do seu projeto para sociedade?
9- Qual a sua percepção em relação a atuação do Estado nas políticas
públicas voltadas para valorização da do binômio cultura e arte destinadas a
juventude?
10- Você conhece algum projeto semelhante ao seu, que também atue nessa
perspectiva da arte como ferramenta pedagógica? E aqui no Grande
Mucuripe?
11- Seu projeto mantém alguma parceria com ONGs da Comunidade? Se não
mantém o que limita ou impede essa parceria e o que você acha da
possibilidade de estabelecer parcerias com outras instituições comunitária?
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