A UNIÃO ENTRE HOMOSSEXUAIS COMO ENTIDADE FAMILIAR: UMA QUESTÃO DE CIDADANIA Karina Schuch Brunet “ Época triste a nossa em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”. ( Albert Einstein ) SUMÁRIO: 1. A família: uma visão atual - 2. A discriminação constitucional - 3. O preceito igualitário - 4. Considerações finais - 5. Bibliografia O direito não regula sentimentos1, mas pode e deve regular as conseqüências que advém das relações sentimentais entre pessoas. Fala-se, assim, de pessoas, sem se fazer qualquer distinção de sexo. Esses relacionamentos podem refletir nos mais diversos campos do Direito, tal como o obrigacional e o familiar, que aqui tanto nos 1 Expressão usada pelo Min. Rui Rosado de Aguiar no RE nº 148.897 – MG. interessa. Falando-se em sentimento, não se pode negar as ligações afetivas que existem entre pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade é um fato latente na sociedade que insiste em fechar os olhos para essa realidade. O preconceito impera fazendo com que essas pessoas vivam sua afetividade à margem da sociedade política e juridicamente organizada. É preciso que se abra o debate para a questão das uniões entre pessoas do mesmo sexo, numa perspectiva jurídica. A Organização Mundial de Saúde, desde 1985, já não considera a homossexualidade como uma doença. É uma característica pessoal como tantas outras. A homossexualidade sequer é uma opção da pessoa, ela é tão inerente a uns, quanto à heterossexualidade é inerente a outros. E o Direito não pode discriminar, nem relegar à marginalidade por falta de acolhimento, uma pessoa em função de seus atributos pessoais. 1. A FAMÍLIA: UMA VISÃO ATUAL Para que se possa falar das uniões homossexuais como entidade familiar é preciso, antes de tudo, que se tenha uma exata noção do conceito de família. Não de uma família tradicional, preconceituosa e opressora, mas de uma visão moderna e libertadora das relações familiares. A princípio não há o que se preocupar com a definição de família, eis que tantos autores já o fizeram, mas deve-se, no entanto, rever a doutrina a respeito do assunto para que se possa chegar a melhor e mais adequada definição, considerando-se a sua evolução natural. Tradicionalmente, tem-se que família é "el conjunto de personas ligadas por el matrimonio o por el parentesco"2, considerando-a, em sentido estrito, como restrita ao grupo formado pelos pais e filhos3. A relação entre a união de um homem e uma mulher e a conseqüente procriação aparece bastante forte nos conceitos clássicos de família: “La familia es el grupo estable más simple que se encuentra en la sociedade. La unión de un hombre y una mujer forma el núcleo personal de esta estructura, a la que han de unirse los hijos e otros parientes en diversos grados de consanguinidad. ... En condiciones normales, el incremento o la renovación de la población es una función de la familia que de esta manera sirve como lazo de unión entre la vida físiva de los individuos y 4 la del organismo social.” Acontece, porém, que esses tradicionais conceitos de família já não servem à realidade social dos dias atuais. Se é bem verdade que a família é a célula mater da sociedade ( relação entre a vida física e o organismo social ), não nos parece coerente, lógico, sensato ou mesmo possível que haja uma evolução desta sem uma precedente evolução daquela. Aceitar os progressos sociais sem um correspondente familiar é admitir o efeito sem a efetivação da causa, ou seja, é impossível. A sociedade só se transforma e completa, porque a família evolui. Negar a transformação e a evolução da família é uma atitude 2 ENNECCERUS, Ludwig, KIPP, Theodor e WOLFF, Martin. Tratado de derecho civil Derecho de familia. Tomo IV – 1º. Traducción de la 2ª edición alemana Blas Péres González y José castán Tobeñas. Barcelona: Bosh, 1979, p. 2. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família, v. V, Forense: Rio de Janeiro, 1991, p. 16. conservadora, preconceituosa e opressora, em que se identifica uma estrutura política de manutenção da ideologia dominante. A admissão de novas configurações familiares pressupõe a admissão de novos agentes participativos e ativos nas decisões políticas de uma dada sociedade, o que pode não interessar a determinadas classes que detêm o poder. A família precede o Direito e evolui independentemente de sua atualização. Assim, a falta de proteção jurídica a determinadas estruturas familiares demonstra uma postura ideológica conservadora e de exclusão, onde se insiste em manter a margem da sociedade política e juridicamente organizada, estruturas familiares psíquica e culturalmente existentes5. A realidade das uniões homossexuais é esta: existem enquanto entidade familiar, mas são excluídas de uma participação ativa no processo político-social em que se inserem. A família, como já referido, é anterior ao direito e a sua configuração não pode estar aprisionada nos moldes jurídicos postos em dado momento histórico, com base na ideologia dominante à época. A família é cultural e afetiva, não biológica e sexual. 4 PUIG BURTAU, José. Fundamentos de derecho civil: familia – matrimonio – divorcio – filiación – patria potestad – tutela, Tomo IV, 2ª ed., Barcelona: Bosch, 1985, p. 1. 5 Lacan entende a família como uma estrutura psíquica e cultural em que se estabelecem funções que não correspondem necessariamente com o padrão de normalidade biológica. Nesse sentido “Se, com efeito, a família humana nos permite observar, nas fases mais primevas das funções maternas, por exemplo, alguns traços de comportamento instintivo, identificáveis aos da família biológica, basta pensarmos no que o sentimento de paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram seu desenvolvimento, para compreendermos que nesse domínio as instâncias culturais dominam as naturais, ao ponto de não se poderem considerar paradoxais os caos em que umas substituem as outras, como na adoção.” in LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Tradução de Marco Antônio Coutinho Jorge e Potiguara Mendes da Silveira Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 12. Caio Mário da Silva Pereira também traz esse entendimento, no sentido de que: “... a família não tem suas normas somente no direito. Como organismo ético e social, vai hauri-las também na religião, na moral, nos costumes, sendo de assinalar que sua força coesiva é, antes de tudo, um dado psíquico.” in PREREIRA, Caio Mário da Silva, op.cit., p. 17. 2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL A Constituição Federal de 1988, não obstante sua postura democrática, excluiu as uniões homossexuais da configuração de entidade familiar. Aplaude-se a evolução constitucional ao conferir status familiar às uniões estáveis, mas envergonha-se da restrição à heterossexualidade. A Constituição liberta uma parcela social ( os companheiros ) ao lhe incluir no processo político-social como ente merecedor de tutela, mas oprime outros ( os homossexuais ) ao confirmar a sua exclusão, por meio da exigência da diversidade de sexos para a caracterização da união estável. A verdade, por pior que possa ser, é a de que a ordem constitucional discrimina e exclui. O art. 226, § 3º e 4º da Constituição Federal reconhece a família, como base da sociedade, mesmo fora do casamento, numa perfeita evolução do conceito, à medida que desvincula a família do casamento. Nesse sentido, a norma constitucional admite a união estável e a família monoparental como entidades familiares. Nada refere quanto às uniões entre pessoas do mesmo sexo. Ao contrário, exclui tal possibilidade ao se referir à união estável apenas entre homem e mulher. Ao fazer essa exclusão, a Constituição Federal estabelece uma direta discriminação ao princípio da igualdade ( art. 5º, caput ), bem como viola as garantias e princípios fundamentais da dignidade ( art. 1º, III ) e da intimidade ( art. 5º, X ) da pessoa humana enquanto cidadão. A norma constitucional ( art. 226, § 3º ) contraria, também, os próprios objetivos fundamentais do Estado ( art. 3º ), especialmente no que se refere à construção de uma sociedade livre, justa e solidária ( inciso I ) e à promoção do bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação ( inciso IV ). Não se concebe, assim, a liberdade, a solidariedade e a justiça social em um Estado que nega tutela a uma realidade fática e basilar6 que é a união entre homossexuais. O ordenamento jurídico, ao excluir de seus quadros de proteção às referidas uniões, exclui o cidadão de uma participação livre na sociedade, pois chancela o preconceito e reduz à marginalização aqueles que, de alguma forma, são considerados indiferentes, minoritários e dispensáveis ao desenvolvimento do Estado. A Constituição, contrariando assim seus próprios objetivos, discrimina em função do sexo. Não do sexo da pessoa em si, mas do sexo da pessoa com quem ela se relaciona7. O homossexual não seria excluído da configuração familiar se não se relacionasse afetivamente com outra pessoa do mesmo sexo. A restrição existe unicamente em função da sexualidade das pessoas envolvidas na relação afetiva, em função do que se chama de orientação sexual8. Não há nada, além do preconceito e da ignorância, que possa interferir na constituição de uma família entre homossexuais. As relações homossexuais são uma antiga forma de expressão de afetividade ( Grécia e Roma antigas )9 e em nada diferem das relações heterossexuais. São uniões formadas com base no respeito, na solidariedade, no carinho e no afeto existente entre os parceiros. O direito a constituir união homossexual é um 6 Utiliza-se o termo basilar no sentido de que a família é a base da sociedade. RAUPP RIOS, Roger. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. mimeog. p. 6: “De fato, quando alguém atenta para a direção do envolvimento ( seja a mera atração, seja a conduta ) sexual de outrem, valoriza a direção do desejo ou da conduta sexual, isto é, o sexo da pessoa com quem o sujeito deseja relacionar-se ou efetivamente se relaciona. No entanto, essa definição ( da direção desejada, de qual seja a orientação sexual do sujeito – isto é, da pessoa do mesmo sexo ou do sexo oposto ) resulta tão só da combinação dos sexos de duas pessoas ( A, quem escolhe, B, o escolhido). Ora, se A for tratado diferentemente de uma terceira pessoa ( C, que tem sua sexualidade direcionada para o sexo oposto ), em razão do sexo da pessoas escolhida ( B, do mesmo sexo que A ) , conclui-se que a escolha de A lhe fez suportar tratamento discriminatório unicamente em função de seu sexo ( se A, homem, tivesse escolhido uma mulher, não sofreria discriminação ). Fica claro, assim, que a discriminação fundada na orientação sexual de A esconde, na verdade, uma discriminação em virtude de seu sexo ( de A )”. 8 Idem, p. 3 9 Para tanto ver, DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 23 a 30. 7 direito inerente à personalidade10 e como tal deve ser respeitado: como um direito essencial à própria existência da pessoa enquanto cidadão digno de exercer seus direitos livremente. É ultrapassada a configuração familiar entre pai, mãe e filhos. A necessidade da presença de um casal nos moldes tradicionais ou mesmo da possibilidade de procriação foi abandonada pela própria Constituição Federal ao acolher a família monoparental ( entre pais e filhos apenas ), bem como ao admitir o livre planejamento familiar. Retoma-se aqui, em parte, o conceito de Lacan11 a respeito da estrutura psíquica e cultural da família em que cada um assume uma função independentemente do correspondente padrão na sociedade. Diz-se em parte porque se exclui os homossexuais dessa possibilidade de assumir papéis na estrutura familiar. Vê-se, assim, que mesmo no mais sincero intuito de avanço, o constituinte brasileiro não conseguiu se livrar de certos preconceitos e acabou por gerar, no seio da própria Constituição, uma discriminação tão primária quanto à referente ao sexo. 3. O PRECEITO IGUALITÁRIO O cerne da questão de exclusão das uniões homossexuais como entidades familiares está na problemática da igualdade. O princípio da isonomia é tão essencial ao sucesso do Estado Democrático de Direito, quanto 10 GUIMARÃES, Marilene Silveira. Reflexões acerca de questões patrimoniais nas uniões formalizadas, informais e marginais, in Repertório de jurisprudência e doutrina sobre direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais, v. 2, coord. Teresa Arruda Alvim, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 11 LACAN, op. cit. , p. 12. “ A análise psicológica deve se adaptar a essa estrutura complexa e não tem o que fazer com as tentativas filosóficas que têm por objeto reduzir a família humana seja a um fato biológico, seja a um elemento teórico da sociedade.” foi o da liberdade para o Estado Liberal. Assim, entende-se que o tratamento injustificadamente desigual dos cidadãos acaba por corromper a própria idéia de Constituição garantista que se pretende ver efetivada. A igualdade teve seu relevo como princípio orientador da toda e qualquer atividade do Estado quando a crise do Estado Liberal trouxe a necessidade de se estabelecer um contraponto entre a liberdade e o poder. Eram livres os que tinham poder, seja econômico, político ou intelectual. Os outros eram dependentes do exercício da liberdade alheia. Assim, a idéia de igualdade surgiu para limitar o exercício de liberdades e poderes que alienavam, oprimiam e escravizavam. Nesse sentido, tem-se que a igualdade contém uma significação como direito em que “se vincula à concepção liberal e lhe dá prosseguimento, pois restringe e limita a atuação do Estado, sendo o primeiro dos direitos fundamentais. Não só abre as Declarações de Direitos, senão que rege e fundamenta também toda a ordem jurídica para a tutela e proteção das liberdades individuais”.12 E é nesses termos que se deve compreender a noção de igualdade entre homo e heterossexuais, como garantia da livre individualidade afetiva de cada um, independentemente de sua orientação sexual. Não se desconhece, no entanto, o fato de que é inerente à função da lei, uma certa ingerência discriminatória na vida das pessoas, pois não se pode impor a todos os cidadãos as mesmas obrigações, poderes, direitos e deveres, 12 sem considerar as peculiaridades de dadas situações e BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 128. características individuais dos sujeitos. Mas se deve estar atento para os limites da discriminação legal. Seguindo a teoria de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, o critério discriminatório da lei deve estar fundado em uma justificativa racional, guardando-se uma relação entre o elemento discrímen e os efeitos jurídicos atribuídos a ela13. Tem-se, ainda, que “in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundado em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público”.14 Ora, que razão valiosa para o bem público há em se negar a qualificação de entidade familiar para as uniões homossexuais? Não há qualquer razão. Não se identifica, no caso, nenhum critério de discriminação com fundamento racional que justifique efeitos jurídicos diferenciados. A família deve ser protegida em seu aspecto de afetividade, solidariedade, vida em comum; e não em seu aspecto biológico ou sexual15. A Constituição alberga a igualdade sexual em seu texto em vários dispositivos. Genericamente, quando determina que todos são iguais perante a lei e em seus objetivos fundamentais de promoção de bem comum; especificamente, quando diz que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações ( art. 5º, I ) e proíbe a diferenciação salarial, funcional ou de critérios de admissão por motivo de sexo ( art. 7ª, XXX ). Vê-se, assim, que o sexo é uma característica pessoal protegida constitucionalmente e que sua utilização como critério de discrímem deve ser muito bem sopesada face ao 13 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 38. 14 Idem, p. 41. preceito igualitário, principalmente quando se trata de questões de família em que o fundamento da discussão deve estar no afeto e nas condições de se estabelecer um convívio harmônico, mas jamais na orientação sexual dos parceiros. Tem-se, com isso, que a Constituição estabelece uma discriminação sexual, entendida em seu sentido mais intolerável de preconceito. A regra do art, 226, § 3º não configura uma diferenciação racional fundada na efetivação do bem comum. Ao contrário, evidencia resquícios de uma Constituinte que não conseguiu superar determinados preconceitos e, por isso, exclui. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Deve-se entender, no entanto, que a discriminação e exclusão constitucional são apenas aparentes ou, então, inconstitucionais16. Sem esse 15 Aqui se confirma a irrelevância desses aspectos pela própria Constituição: família monoparental, adoção e livre planejamento familiar. 16 Tratando da questão da inconstitucionalidade de normas constitucionais, ver BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais ? Tradução de José Manuel M. Cardoso da Costa. Lisboa: Almedina, 1994, p. 62. Tratando de direito supralegal positivado ( consideram-se aqui os direitos e garantias fundamentais ), o autor diz que: “À “Constituição” , e à Constituição não só em sentido material, mas também em sentido formal, pertence igualmente o direito supralegal, na medida em que tenha sido positivado pelo documento constitucional. Uma norma jurídica que infrinja direito constitucional assim positivado será, portanto, simultaneamente “contrária ao direito natural” e inconstitucional. Ver também as páginas 23 e 24, onde o autor faz referência à jurisprudência alemã a respeito do assunto, em especial a decisão de 24/04/50 do Tribunal Constitucional da Baviera. entendimento de que a Constituição traz em si a solução para a sua própria contradição, não seria possível encontrar uma forma de proteção às uniões homossexuais. A discriminação e a exclusão seriam incorrigíveis, o que não se pode conceber em um Estado que se diz democrático e de direito17. Assim sendo, identifica-se, hoje em dia, a necessidade uma visão verdadeiramente afetiva das relações familiares. O aspecto jurídico, centrado principalmente no patrimônio, tem se mostrado insuficiente para a caracterização da família. Não se tem conseguido mais a subsunção da norma ao fato nas questões de direito de família. Os fatos que se concretizam no mundo não encontram qualquer correspondente legal. A sociedade é outra, a família é outra e o Direito insiste em se manter o mesmo. A manutenção do ordenamento jurídico em seus moldes tradicionais é, ainda, um perigo àquelas novas parcelas sociais que precisam de imediata proteção, mormente os homossexuais que sofrem de discriminação e preconceitos evidentes. Não basta que a Constituição garanta o direito a liberdade, dignidade, intimidade e, principalmente, igualdade, garantias prevalecentes a qualquer norma em contrário, ainda que constitucional. A respeito da aparência das contradições constitucionais, ver POGLIESE, Marcelo Weich. Considerações sobre a possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais, in internet www.jus.com.br/doutrina/bachof.html .p. 6 e 7. Tratando da hierarquia e unidade da Constituição, o autor entende que: “Portanto, todas as normas quando inseridas em uma Constituição seriam dotadas de constitucionalidade. Os choques ou antinomias entre regras ou entre regras e prinípios haverão de ser harmonicamente conciliadas, transformando-se numa contradição aparente que, de alguma forma, macularia a coerência e a força da Constituição.” Ainda, diz que: “Se pendermos para hierarquia, necessariamente, os tribunais haverão de se pronunciar sobre as antinomias no Texto; se optarmos pelo princípio da unidade da Constituição, os choques serão apenas aparentes e a função dos Tribunais se limitará na harmonização do texto através da interpretação do conjunto da obra.” Deve-se ressaltar que o autor entende mais coerente e cautelosa, a teoria da unidade constitucional. Também sobre o tema, ver BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 214 a 242. 17 Sobre esse assunto ver necessariamente RIOS, Roger Raupp. Diretos humanos, homossexualidade e uniões homossexuais, in Direitos humanos, ética e direitos reprodutivos, org. Denise Dourado Dora e Domingos Dresch da Silveira. Porto Alegre: Themis, 1998, p. 127 a 133. A verdade é que consta na Constituição uma norma discriminadora. E isso é um perigo, considerando-se o dogmatismo corrente em nossa sociedade. Mesmo que a Teoria Constitucional tenha encontrado soluções ( aparência ou inconstitucionalidade ) para essa situação, ainda se corre o risco de prevalecer na mente dos mais conservadores a idéia de que a união estável como entidade familiar é somente aquela entre heterossexuais. E como exigir que os cidadãos não discriminem uns aos outros se a própria Constituição o faz? Entende-se que a produção legislativa depende de uma manifestação e/ou transformação social que imponha a sua necessidade, mas esse processo transformacional já ocorreu, inclusive com manifestação explícita18 de sua necessária regulamentação, sem, no entanto, haver qualquer atividade nesse sentido, face ao império do preconceito e exclusão. Vê-se, com isso, que os Tribunais19 têm um papel decisivo na atualização do Direito, procurando formas adequadas para a tutela de direitos não protegidos legalmente. Questiona-se, entretanto, a necessidade de uma regulamentação das uniões homossexuais aos moldes da união estável. Parece que tal produção legislativa seria dispensável, caso a Constituição não se preocupasse 18 Projeto de lei nº 1.151/95 ( da Deputada Marta Suplicy – PT – SP ). Não obstante as críticas que se possa fazer ao projeto apresentado pela Dep. Marta Suplicy, principalmente no excesso de regulamentação e exclusão de certas camadas sociais que não têm acesso ( econômico ou intelectual ) aos cartórios de Registro Civil, deve-se entendê-lo como uma iniciativa valorosa para o reconhecimento das uniões homossexuais. 19 Nesse sentido, já se tem alguma jurisprudência. Recentemente o STJ ( Min.-rel. Ari Pargendler ) confirmou a decisão da 10ª Vara Federal de Porto Alegre em que se condenou à FUNCEF a pagar pensão ao parceiro de um homossexual segurado que havia falecido. Ainda, pode-se referir o Agravo de Instrumento nº 599 075 496 do TJRS e a Apelação Cível nº 96.04.55333-0/RS do TRF da 4 Região. Por fim, recentemente o INSS, através da Instrução Normativa nº 25 de 07 de julho de 2000, por força de decisão judicial ( Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0 ), dispôs sobre os procedimentos adotados para concessão de pensão por morte de companheiro ou companheira homossexual. Em seu art. 3º, referese à comprovação da união estável, evidenciando, assim, o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como estáveis, nos termos da Constituição Federal. com a conversão da união estável em casamento. Acredita-se que esse seja o único empecilho à adoção da tese de que as relações entre pessoas do mesmo sexo sejam entidades familiares. A estabilidade e o intuito de assistência mútua, solidariedade, respeito e afeto são idênticos em ambos os tipos de uniões. A procriação, como já referido, já não é mais essencial. A única diversidade é a orientação sexual dos parceiros, ou seja, um critério perfeitamente irrelevante face ao princípio da igualdade, indispensável à própria democracia e pluralidade que se pretende no Estado Democrático de Direito. A conversão em casamento, no entanto, impede que se trate igualmente a união estável e a união homossexual, pois é inerente ao conceito de casamento a diversidade de sexos20, pelo menos esta é a teoria dominante. Assim, a um primeiro momento, em que se pretende um mínimo de conquista e reconhecimento das relações homossexuais, não se acha conveniente entrar no mérito da questão da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Considerando-se, então, a impossibilidade de equiparação da união estável à união homossexual, diante da facilitação da conversão daquela em casamento, bem discriminadora como da existência de uma norma constitucional ( ainda que não válida ), entende-se conveniente o reconhecimento legal das relações entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares, desde é claro, que se tenha o intuito de vida comum21. 20 A esse respeito, ver VIEIRA, Teresa Rodrigues. O casamento entre pessoas do mesmo sexo no direito brasileiro e no direito comparado, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena de julho de 1996, nº 14/96, p. 250 a 255, bem como REIS, Dagma Paulino dos. O homossexualismo e a discriminação no direito e na vida social e familiar, in Revista Jurídica, nº 269. Porto Alegre: Nota Dez, 2000, p. 15. 21 Fala-se aqui em vida comum no sentido de convívio harmônico, respeito, solidariedade e amor. Não parece aconselhável, no entanto, que a lei adentre questões íntimas da vida e relação de cada um ( como fez na união estável ) sob o rótulo da tutela pelo Estado. Essa exagerada interferência estatal da vida privada das pessoas pode excluir ainda mais. Excluir de uma participação ativa e consciente do papel que cada um de nós tem na sociedade. Ao regular minúcias da vida privada das pessoas, o Estado viola a própria dignidade e privacidade de seus cidadãos, comprometendo sua própria característica democrática. O que se pretende, assim, é que o Estado reconheça as uniões homossexuais como entidades familiares, incluindo os parceiros do mesmo sexo no processo político-democrático do país como verdadeiros cidadãos, como parcela ativa da sociedade que pode exercer sua liberdade de expressão sem qualquer marginalização e preconceito. 5. BIBLIOGRAFIA BACHOF, Otto. Normas Constitucionais inconstitucionais? Tradução de José Manuel M. Cardoso da Costa. Lisboa: Almedina, 1994. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. São Paulo: Malheiros, 1996. CZAJKOWSKI, Rainer. União livre à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. 1ª ed., 2ª tiragem. Curitiba: Juruá, 1996. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 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Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Tradução de Marco Antônio Coutinho Jorge e Potiguara Mendes da Silveira Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. Vol. V, Forense: Rio de Janeiro, 1991. PEREIRA, Rodrigo da Cunha ( coord. ). Direito de família contemporâneo: doutrina, jurisprudência, direito comparado e interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. POGLIESE, Marcelo Weich. Considerações sobre a possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais, in internet www.jus.com.br/doutrina/bachof.html. PUIG BURTAU, José. Fundamentos de derecho civil: familia – matrimonio – divorcio – filiación – patria potestad – tutela. Tomo IV, 2ª ed., Barcelona: Bosch, 1985. REIS, Dagma Paulino dos. O homossexualismo e a discriminação no direito e na vida social e familiar, in Revista Jurídica, nº 269, Porto Alegre: Nota Dez, 2000, p. 14 a 24. RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Mestrado em Direito – UNISINOS ( mimeog. ). __________________ Diretos humanos, homossexualidade e uniões homossexuais, in Direitos humanos, ética e direitos reprodutivos, org. Denise Dourado Dora e Domingos Dresch da Silveira. Porto Alegre, Themis, 1998, p. 127 a 133. ROURE, Denise de. Pela primeira vez, uma revista, jurídica desmistifica, através de análises judiciosas, um tema eivado de preconceitos, traumas e tabus, in Consulex, ano II, nº 16, abril/98, p. 16 e 17. SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. STJ: equívocos e verdades, in Consulex, ano II, nº 16, abril/98, p. 18 a 20. VIEIRA, Teresa Rodrigues. O casamento entre pessoas do mesmo sexo no direito brasileiro e no direito comparado, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena de julho de 1996, nº 14/96, p. 250 a 255.