LIMA BARRETO – DIÁRIO DE UM INTELECTUAL ENCARCERADO Maria Isabel Edom Pires Professora da Universidade de Brasília. Resumo Aborda-se aqui o Diário do Hospício, de Lima Barreto, como narrativa testemunhal e ficcional, na qual se pode encontrar o perfil desse intelectual do início do século XX, formado a partir da noção de “fama às avessas”, resistindo à exclusão social por intermédio da escrita e dos excessos do corpo. Palavras-chave: diário; Lima Barreto; exclusão. Abstract We here study the Diário do Hospício (Diary of a mental institution) by Lima Barreto as a testimonial and fictional narrative, in which we can find the profile of this scholar who lived in the beginning of the 20th Century, whose formation was linked to the upsidedown notion of fame, having resisted to social exclusion through writing and the excesses of the body. 67 Keywords: diary; Lima Barreto; exclusion. n. 30 2006 p. 67-73 Sob o título Diário do Hospício, estão reunidos os registros de Lima Barreto no período em que ele esteve recluso no Hospital Nacional dos Alienados, entre 1919 e 1920. O material, dividido em dez capítulos/partes/fragmentos, alguns datados, a par de revelar a lucidez com que o escritor enfrentou o encarceramento, também reprisa alguns temas que estão fartamente distribuídos em seus romances, contos e crônicas. Um dos mais prementes é o tema do intelectual, leitor de Dostoievski, escritor que fala em causa própria e em nome de seus concidadãos, mas que exige não ser confundido com aqueles a quem considera pseudo-intelectuais, aqueles com quem odeia manter palestra por tudo de falso e medíocre que lhe parece haver no que dizem. Trata-se de uma maneira de proceder duramente construída a partir do que lhe foi negado e contra tudo que no círculo de seus pares ele escarnecia. O comportamento público do escritor Lima Barreto, conhecido por intermédio de sua obra e de sua biografia, ao rejeitar amplamente a literatura produzida no seu meio, mostra, assim mesmo, o desejo de fazer parte do campo intelectual, valorizando a leitura, os estudos e outros atributos próprios do círculo das letras. A corporalidade, em um movimento semelhante, fica adstrita à recusa e/ou impossibilidade de vestir a casaca do círculo letrado, de comportar-se sobriamente, de resistir aos delírios alcoólicos, expandindo, assim, sua desdita por meio de manifestações pouco convencionais. Em toda a sua obra vêem-se personagens que valorizam a cultura, a leitura enfim, como forma de ascender socialmente, de ser reconhecido, de receber tratamento e remuneração dignos. Ele reitera o desejo de ingresso no campo intelectual, rejeitando, porém, as fórmulas fáceis, a literatura adjetivesca, o apadrinhamento escancarado, entre outros meios menos nobres ainda, como bem explicita o enredo do Isaías Caminha. 68 Muito particularmente, esse tema se amplia e se desdobra no Diário do Hospício. Nas anotações desse período doloroso da vida de Lima, a experiência da escrita atenta ao tempo miúdo, própria do diário, é tensionada pelo espaço de onde ela emerge – o lugar da reclusão. Perfilam-se ali, portanto, traços próprios desse gênero autobiográfico, tais como o registro do cotidiano mais banal, o círculo dos dias, as impressões do espírito, as reflexões sobre a vida, os projetos. Tudo bem localizado, resulta na anotação de um cotidiano triste e tedioso – “O dia é de tédio e eu procuro meios de fugir dele, de voltar-me para mim e examinar-me” (Barreto, 2004, p.73) –; em dias marcados pela rotina do hospital, que gira em torno das refeições, das raras visitas médicas, da vigilância dos doentes, das festas religiosas e cívicas; nas impressões e reflexões sobre a loucura – “Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte” (Barreto, 2004, p.43) –; e num projeto, assim anotado: “Dia 16-1-20. Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja um dia bonito como o de hoje” (Barreto, 2004, p.96). Esse lugar a que Foucault denomina heterotopia1 de desvio, porque reúne comportamentos desviantes em relação à norma, abriga um intelectual capaz de redigir dali mesmo, do espaço para onde foi deslocado compulsoriamente, uma escrita pela qual procura a sua expressão na anotação diária dos seus sentimentos, na observação minuciosa dos companheiros de desdita. Os fragmentos reúnem anotações as mais variadas, aproximando-os do gênero diário, tal como define Leonor Arfuch (2002, p.110): n. 30 2006 p. 67-73 “Una escritura desprovista de ataduras genéricas, abierta a la improvisación, a innúmeros registros del lenguage y del coleccionismo – todo puede encontrar lugar em sus páginas: cuentas, boletas, fotografias, recortes, vestígios, um universo entero de anclajes fetochísticos -, sujeta apenas al ritmo de la cronología, sin limite de tiempo ni lugar. El diário cubre el imaginário de libertad absoluta, cobija culquier tema, desde la insignificância cotidiana a la iluminación filosófica, de la reflexión sentimental a la pasión desatada. A diferencia de otras formas biográficas, escapa incluso a la comprobación empírica, puede decir, velar o no decir, atenerse al acontecimiento o a la invención, cerrarse sobre si mismo o prefigurar otros textos”. Dos diários íntimos de personagens e personalidades brasileiros, esse Diário do Hospício distancia-se, primeiro, pela classe social do memorialista e, a seguir, pelo espaço de onde se esmiúçam as questões cotidianas. Não se trata, nesse caso, de contabilizar o estado da própria fortuna, de relatar a melhor dieta para o corpo ou de filosofar longamente sobre a felicidade, como se pode observar no Diário Íntimo, de José Vieira Couto de Magalhães (1998), militar, político, empresário e homem das letras do Brasil do século XIX. A comparação posta dessa forma é chocante, porém, mais do que evidenciar as diferenças sociais, ela nos diz dos motivos pelos quais se escreve um diário. Em Couto de Magalhães, a escrita pode sustentar-se pela luta muito subjetiva que os homens travam contra a morte e o esquecimento, pela obsessão de registrarem sua magistral passagem por este mundo, testemunhas que foram de importantes acontecimentos, como também pelo especial prazer de oferecer ao mundo a intimidade de alguém assim tão prestigiado e para mostrar a ascese com que conduziram corpo e espírito. Em Lima Barreto, deve-se considerar a consciência alerta e a extrema vigilância com que ele enfrenta o confinamento. Redigir um diário nessas circunstâncias é também lutar contra a morte. A comparação com o diário do general Couto de Magalhães, desigual por si, incomoda por tudo aquilo que nos registros de Lima Barreto é ausência. A precariedade das condições materiais, a saúde debilitada, a falta de privacidade, os incômodos, as humilhações são a marca de muitas ausências, sendo a mais evidente o respeito ao cidadão. A primeira página desse diário destaca o despojamento material a que são submetidos os internos e a clara noção que possui o autor dos motivos que o levaram até ali. “Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. n. 30 2006 p. 67-73 69 Pode-se dizer que a Lima Barreto faltou tudo menos o desejo de resistir, engendrando naquilo que seria um diário seus outros personagens, Tito Flamínio e Vicente Mascarenhas, que têm em comum com ele os mesmos infortúnios e as mesmas poucas esperanças. Daí resulta uma primeira dificuldade em lidar com as memórias barretianas. Ao mesmo tempo que ele assume a autoria de seus romances, fala de si, de sua desesperança no hospício, também cria uma família que, sabemos, não existiu tal como aparece no diário, o que indica que a esfera particular também se constitui pela ausência. Há, portanto, uma intencionalidade testemunhal, que se encontra com uma intencionalidade ficcional, levando-nos a compreender que na obra de Lima estamos sempre diante de fronteiras da narrativa. Se o diarista já é um ser outro que se escreve, superpõem-se, no Diário, outras camadas de invenção. [...] Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro” (Barreto, 2004, p.19-20). De fato, o cerceamento o incomodava e ele registra em alguns momentos a perseguição e a injustiça cometidas ao removerem-no para lugares de confinamento. Uma das queixas mais recorrentes no Diário diz respeito à biblioteca do hospício. De dentro da heterotopia do desvio, o intelectual busca refugiar-se em outra heterotopia, esta cumulativa do tempo (Foucault, 2001, p.419). Se o tempo que regula as instituições de reclusão é o das refeições, dos passeios no pátio, dos banhos, das visitas, a biblioteca significa para o leitor a junção de vários tempos fora do tempo, como menciona o filósofo francês. Daí ser, para Lima, um lugar de refúgio onde ele podia ler, observar o mar e sonhar com viagens. O oitavo fragmento revela com mais intensidade essa relação. Primeiro ele menciona a deterioração desse espaço em relação a sua reclusão anterior: o número de livros diminuíra e a agitação barulhenta dos outros reclusos não permitia nenhuma leitura. É um relato das condições da biblioteca, mas é também um relato desse “eu” que se narra, passados alguns anos. “O lugar era cômodo e agradável. Dava para a enseada, e se avistava doutra banda Niterói e os navios livres que se iam pelo mar em fora, orgulhosos de sua liberdade, mesmo quando tangidos pelos temporais. Às vezes, lendo, eu me punha a vêlos, com inveja e muita dor na alma. Eu estava preso, vi-os por entre as grades e sempre sonhei ir por aí afora, ver terras, cousas e gentes[...]” (Barreto, 2004, p.82). [...] “Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o mar. Vivia numa cidade marítima, sem ir vê-lo nem contemplálo. Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão [...] Pensava bem em morrer, mas me faltavam forças para buscar a morte. Comprava livros e não os lia. Planejava estudos e não os fazia. Delineava obras e não as realizava” (Barreto, 2004, p.83). Por não encontrar sossego na biblioteca, o diarista resolve ler no dormitório, no que também não é bem sucedido, retornando outra vez à biblioteca. Na tentativa de dar continuidade a um hábito, ronda-o a loucura dos outros, como o ronda a idéia da morte no confronto com a doença. Não só as condições da biblioteca pioraram; também ele sente suas forças se exaurirem pela bebida. 70 Outra marca importante do Diário consiste na observação dos outros reclusos. Ele cita as iniciais dos seus nomes, seus apelidos; descreve seu comportamento e, em alguns casos, como chegaram até ali. Logo, não se percebe apenas a preocupação com o vazio das estantes da biblioteca. O diarista registra o movimento dos outros, quase estabelecendo uma tipologia da loucura. Essa visão “de fora” torna a sua figura ainda mais solitária, incapaz de dividir seu infortúnio com aqueles que desfilam solene e diariamente sua insanidade. No ensaio “A vida dos homens infames”, Michael Foucault (2002) reúne frases, registros dos desafortunados franceses, cuja voz jamais seria ouvida, caso a relação dessa classe com o monarca não se desse por escrito, nos séculos XVII e XVIII, por solicitações para que fossem tomadas providências contra as mais n. 30 2006 p. 67-73 mesquinhas turbulências nas relações cotidianas. O autor enfatiza que esses registros foram arrancados da obscuridade pelo choque com o poder, destacando também as noções de “infâmia” e “falsa infâmia” nos depoimentos dos desconhecidos ou dos famosos. “Existe uma falsa infâmia, aquela que desfrutam homens de pavor ou de escândalo como o foram Gilles de Rais, Guilleri ou Cartouche, Sade e Lacenaire. Aparentemente infames, por causa das abomináveis recordações que deixaram, das malfeitorias que se lhes atribuem, do respeitoso horror que inspiraram, são de fato homens de lenda gloriosa, mesmo que as razões desse renome sejam inversas das que fazem, ou deveriam fazer, a grandeza humana. A infâmia deles não é mais do que uma modalidade da universal fama. Mas o monge apóstata, mas os pobres espíritos extraviados por caminhos desconhecidos, esses são infames a todo o rigor; já não existem senão por via das poucas palavras terríveis que estavam destinadas a torná-los indignos, para sempre, na memória dos homens” (Foucault, 2002, p.102-103). “Boa, propriamente não direi; mas, afinal, a maior, senão a única ventura, consiste na liberdade; o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal nos permitem chegar à janela” (Barreto, 1956, p.258). n. 30 2006 p. 67-73 71 Vida e obra de Lima Barreto circulam ambiguamente pela noção de “infâmia” e “fama às avessas”. As memórias do hospício abrem o volume O Cemitério dos vivos2, conjunto de textos que reúne o diário, o romance inacabado, os documentos oficiais da internação, uma relação de livros do escritor e uma entrevista concedida no hospício ao jornal A Folha. É no cotejo desses textos que se instaura a dubiedade da noção de “fama” e “infâmia”. Lima Barreto não foi evidentemente um banido completo, visto que suas obras foram publicadas, suas crônicas e artigos circularam pelos jornais do Rio de Janeiro e, portanto, suas idéias e experiência puderam ecoar dentro e fora do campo literário. É naturalmente discutível a construção do processo de canonização de sua obra e podem-se arrolar muitos motivos pelos quais ele teve dificuldade de se estabelecer como escritor consagrado em vida, sem os prêmios a que seus pares puderam usufruir. A noção de “fama às avessas”, ou, como menciona Foucault em relação aos escritores citados acima, a “falsa infâmia”, é também ela relativa, no caso, ao escritor fluminense. Nos registros médicos de internação no Hospício dos Alienados, lê-se, em 1914, uma avaliação que diz ser ele “um indivíduo que tem algum conhecimento e inteligente para o meio em que vive” (Barreto, 1956, p.263); em 1919, o registro indica a profissão de escritor, e a avaliação menciona que se trata de um “indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro romances editados, e é atual colaborador da Careta” (Barreto, 1956, p.265); no terceiro registro, que não obedece à cronologia (Lima tem 33 anos de idade), lê-se: “O observado goza nos meios literários da reputação de um escritor talentoso e forte, cheio de mordacidade. Aliás, alguns de seus trabalhos evidenciam esses méritos de escritor” (Barreto, 1956, p.267). O diagnóstico de alcoolismo está presente em todos os registros. A reclusão e suas causas não impediram que se inscrevesse nesses documentos a profissão do autor e, ainda que brevemente, o reconhecimento do seu trabalho. Na entrevista, de 1920, o jornalista chama-o de “romancista admirável” e faz publicidade acerca da obra que ele escrevia sobre o hospício. Pode-se pensar, então, que a falsa infâmia vai sendo construída na proporção de cada escândalo que envolve a vida do autor, no conflito com as regras sociais, embora possa vir disfarçada por elogios a sua obra e pela ironia (ou profunda falta de sensibilidade) da pergunta do jornalista ao autor na entrevista citada. Diz o entrevistador: “Boa, então, esta vidinha?”, ao que o escritor responde: A seguir, menciona a “utilidade” de se encontrar assim, dado que escrevia um livro sobre o interior do hospício. Essas concessões nos registros de entrada no hospício e a entrevista com o “admirável escritor” talvez reforcem mesmo a fama de marginal, pobre, alcoólatra devido à qual quiseram ignorar as reivindicações do cidadão e do intelectual. É por intermédio da sua escrita, à custa da sua infâmia, que podemos conhecer o interior dessa instituição. O encarceramento forjou o seu narrador. Ele nomeou os internos e deu-nos a conhecer as suas queixas, o que faz sobressair o valor documental do diário. Lima é sua própria lenda, fabulada de dentro de sua própria vida. Lima é a sua própria voz, que, buscando alcançar o prestígio e lutando contra os limites do corpo, ecoa na fronteira entre a aceitação, a rejeição, a concessão social e a fama às avessas. Ao falar de si, ele, mais uma vez, fala por aqueles que vivenciam situações semelhantes. Na sétima parte do diário, há o destaque para a revolta de um doente que, alcoolizado, subiu no telhado de uma dependência do hospício e de lá começou a atirar as telhas para todas as direções, inclusive, e especialmente, para a rua, pronunciando descomposturas à diretoria, bebendo cada vez mais, tirando a roupa e berrando muito. O episódio é anotado também no último capítulo do diário, constituído basicamente por fragmentos para serem depois desenvolvidos (na edição que utilizamos estão na ordem inversa), onde surge como uma revolta dos internos a que Lima/Tito assiste com apreensão e terror. O evento provoca aglomeração na rua e mobilização de forças policiais. A cena descrita ocupa um espaço significativo dessas notas3 e pode ser lida de diversas formas. Preferi tomá-la como paradigma para uma comparação que talvez possa dizer-nos um pouco sobre as “instituições totais”, um pouco sobre o descaso dos governantes, um pouco sobre Lima e um pouco sobre o cemitério onde ele se encontrava vivo e do qual dizia que, se voltasse, cometeria o suicídio. O cotejo é com a tela A jangada do Medusa, de Théodore Géricault, cuja alusão é a de um naufrágio do navio Medusa, que transportava soldados para uma colônia francesa. Do acidente, resultou o abandono da embarcação pelo capitão, que deixou a maioria dos passageiros sozinhos e sem auxílio. A tela, em composição de pirâmide, mostra os restos do Medusa, uns homens mortos, outros em desespero e, no topo de uma das pirâmides (são duas), um homem que acena vigorosamente, com as últimas energias que parece restarem, a um navio, entrevisto muito, muito ao longe, de onde poderia chegar a salvação. 72 O personagem de Lima Barreto, companheiro de naufrágio, parece também acenar, impulsionado pela embriaguez, para algum tipo de salvamento que os tirasse daquele cemitério onde jaziam esquecidos ou como experimentos dos tratamentos cientificistas do período. O companheiro de Lima Barreto acusa a diretoria, profere impropérios, consegue mobilizar a atenção pública (possivelmente por curiosidade); encena, enfim, um gestual grandiloqüente, tal como os personagens de Géricault, avistando uma suave mancha no horizonte, a do navio Argus, que talvez nem consiga notá-los, como não o faziam as instituições, de uma maneira geral, em relação aos vivos que naufragavam naquele cemitério. O gesto vigoroso do detento embriagado no alto do telhado contrasta com os corpos dóceis, os “doentes silenciosos”, como os descreve Lima Barreto. São corpos e mentes amoldados pela disciplina do vigiar e punir, que alcança especialmente os de classe social inferior: n. 30 2006 p. 67-73 “Os guardas em geral, principalmente os do pavilhão e da seção dos pobres, têm os loucos na conta de sujeitos sem nenhum direito a um tratamento respeitoso, seres inferiores, com os quais eles podem tratar e fazer o que quiserem” (Barreto, 1956, p.65-66). Atingido pela fama às avessas, fomentada pelos excessos do corpo, Lima Barreto, experimentando o encerramento no cárcere, instilou no seu diário a memória dos infames, esses anônimos, doentes, assassinos, vagabundos, velhos e aleijados, de quem, em muitos momentos, nutria ressentimento pela convivência tumultuada, mas a quem se irmanava naquele sentido mais amplo que pode ser colhido em toda a sua obra, qual seja o de reconhecer em cada excluído socialmente um igual, parceiro da mesma embarcação. NOTAS 1 “lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas”. (Foucault, 2001). 2 Ver Barreto (1956). Em nota prévia, Francisco de Assis Barbosa, organizador e compilador desses escritos, esclarece que o livro divide-se em quatro partes: 1) Diário do hospício (apontamentos); 2) O cemitério dos vivos (fragmentos); 3) “Inventário” (Coleção “Limana”); e 4) “O caso clínico”, reunindo documentos relativos às internações do escritor no Hospício Nacional de Alienados, e uma entrevista concedida ao periódico A Folha, do Rio de Janeiro, publicada em 31/1/1920. 3 Antonio Candido, no artigo “Os olhos, a barca e o espelho”, anota sobre o episódio: “É possível que a densidade da visão ficcionalizada se deva à relação estreita, de cunho especular, entre o escritor, o alucinado e a coletividade dos loucos – relação que por sua vez parece esclarecer muitos lados da humanidade em geral” (Candido, 1987, p.48). REFERÊNCIAS ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico – dilemas de la subjetividad contemporânea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2002. BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos: memórias. HOLLANDA, Diogo de. (Org.). São Paulo: Editora Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos: memórias. In: BARBOSA, Francisco de Assis. (Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956. CANDIDO, Antonio. Os olhos, a barca e o espelho. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 4ª ed. Lisboa: Vega, 2002. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário íntimo. In: MACHADO, Maria Helena P. T. (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. n. 30 2006 p. 67-73 73 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. 74