LIMA BARRETO – DIÁRIO DE
UM INTELECTUAL ENCARCERADO
Maria Isabel Edom Pires
Professora da Universidade de Brasília.
Resumo
Aborda-se aqui o Diário do Hospício, de Lima Barreto, como narrativa
testemunhal e ficcional, na qual se pode encontrar o perfil desse
intelectual do início do século XX, formado a partir da noção de “fama às
avessas”, resistindo à exclusão social por intermédio da escrita e dos
excessos do corpo.
Palavras-chave: diário; Lima Barreto; exclusão.
Abstract
We here study the Diário do Hospício (Diary of a mental institution) by
Lima Barreto as a testimonial and fictional narrative, in which we can
find the profile of this scholar who lived in the beginning of the 20th
Century, whose formation was linked to the upsidedown notion of fame,
having resisted to social exclusion through writing and the excesses of
the body.
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Keywords: diary; Lima Barreto; exclusion.
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Sob o título Diário do Hospício, estão reunidos os registros de Lima
Barreto no período em que ele esteve recluso no Hospital Nacional dos Alienados,
entre 1919 e 1920. O material, dividido em dez capítulos/partes/fragmentos, alguns
datados, a par de revelar a lucidez com que o escritor enfrentou o encarceramento,
também reprisa alguns temas que estão fartamente distribuídos em seus
romances, contos e crônicas. Um dos mais prementes é o tema do intelectual, leitor
de Dostoievski, escritor que fala em causa própria e em nome de seus
concidadãos, mas que exige não ser confundido com aqueles a quem considera
pseudo-intelectuais, aqueles com quem odeia manter palestra por tudo de falso e
medíocre que lhe parece haver no que dizem.
Trata-se de uma maneira de proceder duramente construída a partir do
que lhe foi negado e contra tudo que no círculo de seus pares ele escarnecia. O
comportamento público do escritor Lima Barreto, conhecido por intermédio de sua
obra e de sua biografia, ao rejeitar amplamente a literatura produzida no seu meio,
mostra, assim mesmo, o desejo de fazer parte do campo intelectual, valorizando a
leitura, os estudos e outros atributos próprios do círculo das letras. A corporalidade,
em um movimento semelhante, fica adstrita à recusa e/ou impossibilidade de vestir
a casaca do círculo letrado, de comportar-se sobriamente, de resistir aos delírios
alcoólicos, expandindo, assim, sua desdita por meio de manifestações pouco
convencionais. Em toda a sua obra vêem-se personagens que valorizam a cultura,
a leitura enfim, como forma de ascender socialmente, de ser reconhecido, de
receber tratamento e remuneração dignos. Ele reitera o desejo de ingresso no
campo intelectual, rejeitando, porém, as fórmulas fáceis, a literatura adjetivesca, o
apadrinhamento escancarado, entre outros meios menos nobres ainda, como bem
explicita o enredo do Isaías Caminha.
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Muito particularmente, esse tema se amplia e se desdobra no Diário do
Hospício. Nas anotações desse período doloroso da vida de Lima, a experiência da
escrita atenta ao tempo miúdo, própria do diário, é tensionada pelo espaço de onde
ela emerge – o lugar da reclusão. Perfilam-se ali, portanto, traços próprios desse
gênero autobiográfico, tais como o registro do cotidiano mais banal, o círculo dos
dias, as impressões do espírito, as reflexões sobre a vida, os projetos. Tudo bem
localizado, resulta na anotação de um cotidiano triste e tedioso – “O dia é de tédio e
eu procuro meios de fugir dele, de voltar-me para mim e examinar-me” (Barreto,
2004, p.73) –; em dias marcados pela rotina do hospital, que gira em torno das
refeições, das raras visitas médicas, da vigilância dos doentes, das festas
religiosas e cívicas; nas impressões e reflexões sobre a loucura – “Que dizer da
loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem
absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da
natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles
uma relação de parentesco muito forte” (Barreto, 2004, p.43) –; e num projeto,
assim anotado: “Dia 16-1-20. Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo.
Se voltar terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja um dia bonito
como o de hoje” (Barreto, 2004, p.96).
Esse lugar a que Foucault denomina heterotopia1 de desvio, porque
reúne comportamentos desviantes em relação à norma, abriga um intelectual
capaz de redigir dali mesmo, do espaço para onde foi deslocado
compulsoriamente, uma escrita pela qual procura a sua expressão na anotação
diária dos seus sentimentos, na observação minuciosa dos companheiros de
desdita.
Os fragmentos reúnem anotações as mais variadas, aproximando-os do
gênero diário, tal como define Leonor Arfuch (2002, p.110):
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“Una escritura desprovista de ataduras genéricas, abierta a la
improvisación, a innúmeros registros del lenguage y del
coleccionismo – todo puede encontrar lugar em sus páginas:
cuentas, boletas, fotografias, recortes, vestígios, um universo
entero de anclajes fetochísticos -, sujeta apenas al ritmo de la
cronología, sin limite de tiempo ni lugar. El diário cubre el
imaginário de libertad absoluta, cobija culquier tema, desde la
insignificância cotidiana a la iluminación filosófica, de la
reflexión sentimental a la pasión desatada. A diferencia de
otras formas biográficas, escapa incluso a la comprobación
empírica, puede decir, velar o no decir, atenerse al
acontecimiento o a la invención, cerrarse sobre si mismo o
prefigurar otros textos”.
Dos diários íntimos de personagens e personalidades brasileiros, esse
Diário do Hospício distancia-se, primeiro, pela classe social do memorialista e, a
seguir, pelo espaço de onde se esmiúçam as questões cotidianas. Não se trata,
nesse caso, de contabilizar o estado da própria fortuna, de relatar a melhor dieta
para o corpo ou de filosofar longamente sobre a felicidade, como se pode observar
no Diário Íntimo, de José Vieira Couto de Magalhães (1998), militar, político,
empresário e homem das letras do Brasil do século XIX. A comparação posta dessa
forma é chocante, porém, mais do que evidenciar as diferenças sociais, ela nos diz
dos motivos pelos quais se escreve um diário.
Em Couto de Magalhães, a escrita pode sustentar-se pela luta muito
subjetiva que os homens travam contra a morte e o esquecimento, pela obsessão
de registrarem sua magistral passagem por este mundo, testemunhas que foram
de importantes acontecimentos, como também pelo especial prazer de oferecer ao
mundo a intimidade de alguém assim tão prestigiado e para mostrar a ascese com
que conduziram corpo e espírito. Em Lima Barreto, deve-se considerar a
consciência alerta e a extrema vigilância com que ele enfrenta o confinamento.
Redigir um diário nessas circunstâncias é também lutar contra a morte. A
comparação com o diário do general Couto de Magalhães, desigual por si,
incomoda por tudo aquilo que nos registros de Lima Barreto é ausência. A
precariedade das condições materiais, a saúde debilitada, a falta de privacidade,
os incômodos, as humilhações são a marca de muitas ausências, sendo a mais
evidente o respeito ao cidadão.
A primeira página desse diário destaca o despojamento material a que
são submetidos os internos e a clara noção que possui o autor dos motivos que o
levaram até ali.
“Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só
capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão.
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Pode-se dizer que a Lima Barreto faltou tudo menos o desejo de resistir,
engendrando naquilo que seria um diário seus outros personagens, Tito Flamínio e
Vicente Mascarenhas, que têm em comum com ele os mesmos infortúnios e as
mesmas poucas esperanças. Daí resulta uma primeira dificuldade em lidar com as
memórias barretianas. Ao mesmo tempo que ele assume a autoria de seus
romances, fala de si, de sua desesperança no hospício, também cria uma família
que, sabemos, não existiu tal como aparece no diário, o que indica que a esfera
particular também se constitui pela ausência. Há, portanto, uma intencionalidade
testemunhal, que se encontra com uma intencionalidade ficcional, levando-nos a
compreender que na obra de Lima estamos sempre diante de fronteiras da
narrativa. Se o diarista já é um ser outro que se escreve, superpõem-se, no Diário,
outras camadas de invenção.
[...]
Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me
aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim
para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao
álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as
dificuldades de minha vida material, há seis anos, me
assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura:
deliro” (Barreto, 2004, p.19-20).
De fato, o cerceamento o incomodava e ele registra em alguns momentos
a perseguição e a injustiça cometidas ao removerem-no para lugares de
confinamento. Uma das queixas mais recorrentes no Diário diz respeito à biblioteca
do hospício. De dentro da heterotopia do desvio, o intelectual busca refugiar-se em
outra heterotopia, esta cumulativa do tempo (Foucault, 2001, p.419). Se o tempo
que regula as instituições de reclusão é o das refeições, dos passeios no pátio, dos
banhos, das visitas, a biblioteca significa para o leitor a junção de vários tempos
fora do tempo, como menciona o filósofo francês. Daí ser, para Lima, um lugar de
refúgio onde ele podia ler, observar o mar e sonhar com viagens. O oitavo
fragmento revela com mais intensidade essa relação. Primeiro ele menciona a
deterioração desse espaço em relação a sua reclusão anterior: o número de livros
diminuíra e a agitação barulhenta dos outros reclusos não permitia nenhuma
leitura. É um relato das condições da biblioteca, mas é também um relato desse
“eu” que se narra, passados alguns anos.
“O lugar era cômodo e agradável. Dava para a enseada, e se
avistava doutra banda Niterói e os navios livres que se iam pelo
mar em fora, orgulhosos de sua liberdade, mesmo quando
tangidos pelos temporais. Às vezes, lendo, eu me punha a vêlos, com inveja e muita dor na alma. Eu estava preso, vi-os por
entre as grades e sempre sonhei ir por aí afora, ver terras,
cousas e gentes[...]” (Barreto, 2004, p.82).
[...]
“Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o
mar. Vivia numa cidade marítima, sem ir vê-lo nem contemplálo. Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão [...]
Pensava bem em morrer, mas me faltavam forças para buscar
a morte. Comprava livros e não os lia. Planejava estudos e não
os fazia. Delineava obras e não as realizava” (Barreto, 2004,
p.83).
Por não encontrar sossego na biblioteca, o diarista resolve ler no
dormitório, no que também não é bem sucedido, retornando outra vez à biblioteca.
Na tentativa de dar continuidade a um hábito, ronda-o a loucura dos outros, como o
ronda a idéia da morte no confronto com a doença. Não só as condições da
biblioteca pioraram; também ele sente suas forças se exaurirem pela bebida.
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Outra marca importante do Diário consiste na observação dos outros
reclusos. Ele cita as iniciais dos seus nomes, seus apelidos; descreve seu
comportamento e, em alguns casos, como chegaram até ali. Logo, não se percebe
apenas a preocupação com o vazio das estantes da biblioteca. O diarista registra o
movimento dos outros, quase estabelecendo uma tipologia da loucura. Essa visão
“de fora” torna a sua figura ainda mais solitária, incapaz de dividir seu infortúnio com
aqueles que desfilam solene e diariamente sua insanidade.
No ensaio “A vida dos homens infames”, Michael Foucault (2002) reúne
frases, registros dos desafortunados franceses, cuja voz jamais seria ouvida, caso
a relação dessa classe com o monarca não se desse por escrito, nos séculos XVII e
XVIII, por solicitações para que fossem tomadas providências contra as mais
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mesquinhas turbulências nas relações cotidianas. O autor enfatiza que esses
registros foram arrancados da obscuridade pelo choque com o poder, destacando
também as noções de “infâmia” e “falsa infâmia” nos depoimentos dos
desconhecidos ou dos famosos.
“Existe uma falsa infâmia, aquela que desfrutam homens de
pavor ou de escândalo como o foram Gilles de Rais, Guilleri ou
Cartouche, Sade e Lacenaire. Aparentemente infames, por
causa das abomináveis recordações que deixaram, das
malfeitorias que se lhes atribuem, do respeitoso horror que
inspiraram, são de fato homens de lenda gloriosa, mesmo que
as razões desse renome sejam inversas das que fazem, ou
deveriam fazer, a grandeza humana. A infâmia deles não é
mais do que uma modalidade da universal fama. Mas o monge
apóstata, mas os pobres espíritos extraviados por caminhos
desconhecidos, esses são infames a todo o rigor; já não
existem senão por via das poucas palavras terríveis que
estavam destinadas a torná-los indignos, para sempre, na
memória dos homens” (Foucault, 2002, p.102-103).
“Boa, propriamente não direi; mas, afinal, a maior, senão a
única ventura, consiste na liberdade; o Hospício é uma prisão
como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal
nos permitem chegar à janela” (Barreto, 1956, p.258).
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Vida e obra de Lima Barreto circulam ambiguamente pela noção de
“infâmia” e “fama às avessas”. As memórias do hospício abrem o volume O
Cemitério dos vivos2, conjunto de textos que reúne o diário, o romance inacabado,
os documentos oficiais da internação, uma relação de livros do escritor e uma
entrevista concedida no hospício ao jornal A Folha. É no cotejo desses textos que
se instaura a dubiedade da noção de “fama” e “infâmia”. Lima Barreto não foi
evidentemente um banido completo, visto que suas obras foram publicadas, suas
crônicas e artigos circularam pelos jornais do Rio de Janeiro e, portanto, suas
idéias e experiência puderam ecoar dentro e fora do campo literário. É
naturalmente discutível a construção do processo de canonização de sua obra e
podem-se arrolar muitos motivos pelos quais ele teve dificuldade de se estabelecer
como escritor consagrado em vida, sem os prêmios a que seus pares puderam
usufruir. A noção de “fama às avessas”, ou, como menciona Foucault em relação
aos escritores citados acima, a “falsa infâmia”, é também ela relativa, no caso, ao
escritor fluminense. Nos registros médicos de internação no Hospício dos
Alienados, lê-se, em 1914, uma avaliação que diz ser ele “um indivíduo que tem
algum conhecimento e inteligente para o meio em que vive” (Barreto, 1956, p.263);
em 1919, o registro indica a profissão de escritor, e a avaliação menciona que se
trata de um “indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro
romances editados, e é atual colaborador da Careta” (Barreto, 1956, p.265); no
terceiro registro, que não obedece à cronologia (Lima tem 33 anos de idade), lê-se:
“O observado goza nos meios literários da reputação de um escritor talentoso e
forte, cheio de mordacidade. Aliás, alguns de seus trabalhos evidenciam esses
méritos de escritor” (Barreto, 1956, p.267). O diagnóstico de alcoolismo está
presente em todos os registros. A reclusão e suas causas não impediram que se
inscrevesse nesses documentos a profissão do autor e, ainda que brevemente, o
reconhecimento do seu trabalho. Na entrevista, de 1920, o jornalista chama-o de
“romancista admirável” e faz publicidade acerca da obra que ele escrevia sobre o
hospício. Pode-se pensar, então, que a falsa infâmia vai sendo construída na
proporção de cada escândalo que envolve a vida do autor, no conflito com as regras
sociais, embora possa vir disfarçada por elogios a sua obra e pela ironia (ou
profunda falta de sensibilidade) da pergunta do jornalista ao autor na entrevista
citada. Diz o entrevistador: “Boa, então, esta vidinha?”, ao que o escritor responde:
A seguir, menciona a “utilidade” de se encontrar assim, dado que escrevia
um livro sobre o interior do hospício.
Essas concessões nos registros de entrada no hospício e a entrevista com
o “admirável escritor” talvez reforcem mesmo a fama de marginal, pobre, alcoólatra
devido à qual quiseram ignorar as reivindicações do cidadão e do intelectual.
É por intermédio da sua escrita, à custa da sua infâmia, que podemos
conhecer o interior dessa instituição. O encarceramento forjou o seu narrador. Ele
nomeou os internos e deu-nos a conhecer as suas queixas, o que faz sobressair o
valor documental do diário.
Lima é sua própria lenda, fabulada de dentro de sua própria vida. Lima é a
sua própria voz, que, buscando alcançar o prestígio e lutando contra os limites do
corpo, ecoa na fronteira entre a aceitação, a rejeição, a concessão social e a fama
às avessas. Ao falar de si, ele, mais uma vez, fala por aqueles que vivenciam
situações semelhantes.
Na sétima parte do diário, há o destaque para a revolta de um doente que,
alcoolizado, subiu no telhado de uma dependência do hospício e de lá começou a
atirar as telhas para todas as direções, inclusive, e especialmente, para a rua,
pronunciando descomposturas à diretoria, bebendo cada vez mais, tirando a roupa
e berrando muito. O episódio é anotado também no último capítulo do diário,
constituído basicamente por fragmentos para serem depois desenvolvidos (na
edição que utilizamos estão na ordem inversa), onde surge como uma revolta dos
internos a que Lima/Tito assiste com apreensão e terror. O evento provoca
aglomeração na rua e mobilização de forças policiais.
A cena descrita ocupa um espaço significativo dessas notas3 e pode ser
lida de diversas formas. Preferi tomá-la como paradigma para uma comparação
que talvez possa dizer-nos um pouco sobre as “instituições totais”, um pouco sobre
o descaso dos governantes, um pouco sobre Lima e um pouco sobre o cemitério
onde ele se encontrava vivo e do qual dizia que, se voltasse, cometeria o suicídio. O
cotejo é com a tela A jangada do Medusa, de Théodore Géricault, cuja alusão é a de
um naufrágio do navio Medusa, que transportava soldados para uma colônia
francesa. Do acidente, resultou o abandono da embarcação pelo capitão, que
deixou a maioria dos passageiros sozinhos e sem auxílio. A tela, em composição de
pirâmide, mostra os restos do Medusa, uns homens mortos, outros em desespero
e, no topo de uma das pirâmides (são duas), um homem que acena vigorosamente,
com as últimas energias que parece restarem, a um navio, entrevisto muito, muito
ao longe, de onde poderia chegar a salvação.
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O personagem de Lima Barreto, companheiro de naufrágio, parece
também acenar, impulsionado pela embriaguez, para algum tipo de salvamento
que os tirasse daquele cemitério onde jaziam esquecidos ou como experimentos
dos tratamentos cientificistas do período. O companheiro de Lima Barreto acusa a
diretoria, profere impropérios, consegue mobilizar a atenção pública
(possivelmente por curiosidade); encena, enfim, um gestual grandiloqüente, tal
como os personagens de Géricault, avistando uma suave mancha no horizonte, a
do navio Argus, que talvez nem consiga notá-los, como não o faziam as instituições,
de uma maneira geral, em relação aos vivos que naufragavam naquele cemitério.
O gesto vigoroso do detento embriagado no alto do telhado contrasta com
os corpos dóceis, os “doentes silenciosos”, como os descreve Lima Barreto. São
corpos e mentes amoldados pela disciplina do vigiar e punir, que alcança
especialmente os de classe social inferior:
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“Os guardas em geral, principalmente os do pavilhão e da
seção dos pobres, têm os loucos na conta de sujeitos sem
nenhum direito a um tratamento respeitoso, seres inferiores,
com os quais eles podem tratar e fazer o que quiserem”
(Barreto, 1956, p.65-66).
Atingido pela fama às avessas, fomentada pelos excessos do corpo, Lima
Barreto, experimentando o encerramento no cárcere, instilou no seu diário a
memória dos infames, esses anônimos, doentes, assassinos, vagabundos, velhos
e aleijados, de quem, em muitos momentos, nutria ressentimento pela convivência
tumultuada, mas a quem se irmanava naquele sentido mais amplo que pode ser
colhido em toda a sua obra, qual seja o de reconhecer em cada excluído
socialmente um igual, parceiro da mesma embarcação.
NOTAS
1
“lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são
espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas”. (Foucault, 2001).
2
Ver Barreto (1956). Em nota prévia, Francisco de Assis Barbosa, organizador e compilador desses escritos,
esclarece que o livro divide-se em quatro partes: 1) Diário do hospício (apontamentos); 2) O cemitério dos
vivos (fragmentos); 3) “Inventário” (Coleção “Limana”); e 4) “O caso clínico”, reunindo documentos relativos
às internações do escritor no Hospício Nacional de Alienados, e uma entrevista concedida ao periódico A
Folha, do Rio de Janeiro, publicada em 31/1/1920.
3
Antonio Candido, no artigo “Os olhos, a barca e o espelho”, anota sobre o episódio: “É possível que a
densidade da visão ficcionalizada se deva à relação estreita, de cunho especular, entre o escritor, o alucinado
e a coletividade dos loucos – relação que por sua vez parece esclarecer muitos lados da humanidade em
geral” (Candido, 1987, p.48).
REFERÊNCIAS
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Cultura Econômica de Argentina, 2002.
BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos: memórias. HOLLANDA, Diogo de. (Org.). São Paulo: Editora
Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos: memórias. In: BARBOSA, Francisco de Assis. (Org.). São Paulo:
Brasiliense, 1956.
CANDIDO, Antonio. Os olhos, a barca e o espelho. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
Ática, 1987.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 4ª ed. Lisboa: Vega, 2002.
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Estética: literatura e pintura,
música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário íntimo. In: MACHADO, Maria Helena P. T. (Org.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
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