UFPB - UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CCHLA - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PPGL - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO
NO ROMANCE O REINO ENCANTADO (1878), DE ARARIPE JR.
Por Débora Cavalcantes de Moura Clemente
Orientadora Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
João Pessoa – PB
Julho de 2012
DÉBORA CAVALCANTES DE MOURA CLEMENTE
REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO
NO ROMANCE O REINO ENCANTADO (1878),
DE ARARIPE JR.
Orientadora: Profª. Drª. SOCORRO DE FÁTIMA PACÍFICO BARBOSA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Doutor em Letras. Linha de pesquisa: Literatura e
Cultura.
João Pessoa - PB
Julho - 2012
C626r
Clemente, Débora Cavalcantes de Moura.
Representações da história da Pedra do Reino no
romance O Reino Encantado (1878), de Araripe Jr. /
Débora Cavalcantes de Moura Clemente.-- João Pessoa,
2012.
253. : il.
Orientadora: Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
Tese (Doutorado) – UFPB/CCHLA
1. Literatura e Cultura. 2. História Cultural. 3. Folhetim do
séc. XIX. 4. Araripe Jr., Tristão de Alencar. 5. História da
Pedra do Reino.
UFPB/BC
CDU: 82(043)
REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO NO ROMANCE O
REINO ENCANTADO (1878), DE ARARIPE JR.
Débora Cavalcantes de Moura Clemente
Orientadora Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba – UFPB, como parte dos requisitos à obtenção do título Doutor em Letras. Linha
de pesquisa: Literatura e Cultura.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
_______________________________
Prof. Drª. Maria Ignez Novais Ayala –UFPB
_______________________________
Prof. Drª.Claudia Engler Cury – UFPB
_______________________________
Prof. Dr.Anco Márcio Tenório Vieira–UFPE
_______________________________
Prof. Dr. Flávio José Gomes Cabral - UNICAP- PE
_______________________________
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano - UFPB - Suplente
_______________________________
Fabiana Sena – UFPB - Suplente
João Pessoa
Julho de 2012
“Por onde eu andei cantei as coisas da minha terra”.
(Luiz Gonzaga, “Rei do Baião”, em homenagem ao seu Centenário, 1912-2012).
Agradecimentos
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora por terem colocado em minha vida pessoas tão
especiais sem as quais a conclusão desta tese não teria sido possível. Em todas as fases da tessitura deste trabalho, fui
afortunada com auxílios inestimáveis. Por isso sou grata:
* a Júlia, filha amada, companheira e amiga nas mudanças do Tocantins para João Pessoa e Recife. Além de tudo,
Júlia é leitora e crítica de O Reino Encantado e vem ensaiando seus primeiros passos como poeta.
* a Marcos, com quem minha vida foi “andar por esse país, pra ver se um dia” a gente “descansa feliz”. Além de
amor de minha vida, Marcos é um intelectual competente, incentivador de meu crescimento profissional e primeiro
leitor e crítico entusiasmado desta tese.
* ao amor e apoio incondicional de meus pais, Antônio Donato e Maria Cavalcantes, de meus irmãos Petrônio (in
memorian) e Fred, de Nen, minha outra mãe; agradeço ainda a Michele, minha cunhada, e Felipe, sobrinho querido.
* à dona Lourdes Clemente, aos meus cunhados e cunhadas, Chico e Eliane, Valter (in memorian) e Elite, Miguel e
Nalva, Sandro e Ester, Elizeu e Jan, Marinho, Fábio e Jailma; e aos sobrinhos e sobrinhas Cris, Nayra, Sinara,
Juninho, Eduardo, Rafael, Natália, Andrezinho (in memorian), Priscila, Vitor, Mariana e Fernanda agradeço pelo
carinho com que nos abraçam nos encontros em Paulo Afonso.
* à professora doutora Socorro de Fátima Pacífico Barbosa, minha orientadora, que guiou essa pesquisa com muita
competência.
* às pessoas que conheci e com quem convivi na UFPB – Universidade Federal da Paraíba: às professoras
coordenadoras da Pós em Letras ao longo do meu curso Liane Schneider, Ana Marinho e Sandra Luna; aos
professores Arturo Gouveia e Nadilza Moreira, ministrantes de cursos inesquecíveis; a Rose Mansarda, competente
funcionária do PPGL, que sempre diz uma palavra de conforto quando lhe contamos nossas histórias; e aos colegas
de turma Sávio Roberto, Luciana Fernandes (revisora desta tese), Rosário, Valter, Marcílio, Roberta, Ana Cristina
Carvalho, Ana Carolina, e, especialmente a Giovana Casé, amiga querida, que, como eu, é egressa de uma das casas
das Irmãs Franciscanas de N. S. do Bom Conselho, história que uniu nossas famílias.
* aos professores doutores que aceitaram integrar a banca examinadora de minha defesa de doutorado: Maria Ignez
Novais Ayala, Anco Márcio Tenório Vieira, Flávio José Gomes Cabral e Claudia Engler Cury. A esta última, também
agradeço pelas valiosas sugestões no exame de qualificação da tese.
* às professoras responsáveis pela minha educação básica. Nesse momento, em que se fecha um longo ciclo de
estudos, faço questão de lembrar e de agradecer as minhas queridas professoras, responsáveis por me ensinar as
primeiras letras: as tias Maridalva Rodrigues, Geni Pereira, Fili, Auri Pereira; à tia Socorro Campos, minha professora
da 1ª a 4ª séries, na Escola Prof. Manoel de Queiroz; aos professores e freiras do Colégio Nossa Senhora do Bom
Conselho, em Bom Conselho – PE, minha segunda casa, onde fui acolhida como filha por Ir. Celina, Madre
Cavalcanti, Ir. Mercês, Ir. Geralda, Ir. Petrúcia, Ir. Jesus, Ir. Sara, Ir. Penha, Ir. Salvador, Ir. Augusta e demais freiras,
minhas mestras entre 1985-1989.
* a Wandemberg Sobreira Machado a quem rendo sinceras homenagens em gratidão às benesses que me concedeu
durante os anos que estudei em Bom Conselho. Sua dedicação, empenho e carinho para comigo foram fundamentais
para tornar possível minha permanência no Colégio de Nossa Senhora do Bom Conselho.
* aos conterrâneos belmontenses que residem em João Pessoa, amigos preciosos, que acolheram a mim e a Júlia em
nossa permanência na Paraíba, com muita bondade, zelo e afeto. Agradeço especialmente a Ana Lúcia e Paulo
Lopes, aos seus filhos Iury, Igor e Illo e aos demais membros de sua grande e feliz família. Registro minha eterna
gratidão a Margarida, Abenildo e filhos pela deliciosa acolhida. Não posso me esquecer também de Deda Machado e
filhos; Neuzinha e Mateus; das tias Gilda e Vilani Sobreira, e dos primos Paulo Aderson e Larissa por nosso
reencontro e convivência na Paraíba; de Socorro, Luquinha e Sóstenes e das vizinhas e “sobrinhas” que ganhei:
inicialmente Amanda Machado e Vanessa Martins e, depois, Raiane Severo, Aline Machado, Waléssia Martins, Sílvia
e Shirley Rodrigues.
* ao casal de belmontenses Raimunda e Nego Guimarães e suas meninas que, estando eu já morando em Recife,
acolherem minha filha Júlia em seu lar quando de minhas viagens de pesquisa.
* à tia Gracinha e a Glória pela acolhida como vizinhas e pela amizade.
Agradecimentos
* a tio Antônio e a Lindomar, e aos primos Silvino e Miroca, Saulo e Cláudia, Simone e Milton e aos filhos desses
casais pelo nosso reencontro e feliz convivência aqui em Recife.
* a tio João Cavalcante e ao meu primo Eraldo Gondim, imprescindíveis na minha mudança do Norte para o
Nordeste. Agradeço às primas Elaine e a Edilaine, filhas de Eraldo e Maria José, por acolherem Júlia enquanto eu
pesquisava.
* às pessoas que viabilizaram minha vida profissional no Tocantins: Dr. Dorival Carvalho, Dr. Danilo de Melo e
Souza, Jaldo Arruda, Luz’Dalma, Alcidália, Fernanda e Denise.
* àqueles que reorganizaram minhas atividades profissionais em Pernambuco: professor Sinésio Monteiro e Pedro
Moura, este último, coordenador do Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano, instituição onde tenho a
honra de ser servidora.
* aos funcionários das muitas instituições de pesquisa pelas quais passei: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional,
especialmente a Ana Naldi; Fundação Casa de Rui Barbosa, especialmente Laura Xavier; Fundação Casa de José
Américo; Fundação Joaquim Nabuco, especialmente a Marcondes Oliveira; Arquivo Público Estadual de
Pernambuco Jordão Emerenciano, especialmente a Hildo Leal da Rosa, responsável por a gente se encantar com o
acervo do APEJE; IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto Histórico do Ceará, especialmente a
Madalena Figueiredo; IAHGP - Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, especialmente o
sócio Bruno Câmara; Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública de Pernambuco; Setor de Obras Raras da Biblioteca
da Faculdade de Direito do Recife, especialmente a Renata Lucena, que também transcreveu alguns documentos
utilizados nesta tese.
* ao artista Oscar Araripe em nome de quem agradeço aos demais 57 descendentes de Araripe Jr. com que mantive
contato por e-mail e fui prontamente atendida.
* ao professor Sânzio Azevedo, o grande mestre em literatura cearense, por ter me recebido com presteza e ter
viabilizado a aquisição de importantes documentos no Instituto Histórico de Ceará, em Fortaleza.
* a Ariano Suassuna, por ter me presenteado com uma cópia de O Reino Encantado, na IV Cavalgada à Pedra do
Reino, e ter despertando em mim o interesse pelo romance de Araripe Jr. durante a entrevista que me concedeu, em
1998. Todos esses contatos foram sempre intermediados por seu assessor Josafá, a quem estendo meu
reconhecimento.
* a Edízio Carvalho, por todas as vezes que disponibilizou seu acervo pessoal e/ou aquele em poder da Associação
Cultural Pedra do Reino, necessários à pesquisa.
* aos membros da Associação Cultural Pedra do Reino, formada por jovens belmontenses, defensores de nossa
cultura. Todos, indistintamente, sempre me apoiaram desde as primeiras pesquisas, ainda no mestrado.
* a Clécio Novaes, notável empreendedor cultural, idealizador do Castelo Armorial de São José do Belmonte-PE,
por ter, gentilmente, disponibilizado o acervo do Castelo a minha pesquisa.
* a Paulo Gastão, eterno presidente da SBEC, incansável incentivador de estudos sobre beatos e cangaceiros.
* a Pe. João Carlos Ribeiro, diretor do Colégio Salesiano do Recife, e à família Salesiana, a quem confiei a educação
formal de minha filha Júlia.
Por fim, registro um agradecimento especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Qualificado –
CAPES – pelo apoio financeiro.
Resumo
RESUMO
Esta tese é um estudo do romance O Reino Encantado: crônica sebastianista. A obra foi escrita pelo
literato cearense Tristão de Alencar Araripe Jr., publicada primeiramente em folhetim e, em
seguida, em volume, ambas as edições de 1878. Nosso objetivo aqui é contribuir com os estudos
da história do livro e da leitura no Brasil, à medida que analisamos a obra inédita O Reino
Encantado, primeiro romance da literatura brasileira a tematizar o fanatismo religioso. Trata-se de
uma obra esgotada há mais de cem anos e tanto ela como seu autor continuam no esquecimento.
Araripe Jr. é acolhido apenas como crítico literário que - ladeado por Sílvio Romero e José
Veríssimo-, integra a grande tríade da crítica brasileira do final do séc. XIX e início do séc. XX. O
Reino Encantado é uma re-elaboração literária dos principais registros documentais e da crônica
histórica sobre o movimento messiânico de Pedra do Reino, fato histórico ocorrido no sertão de
Pernambuco entre 1836 e 1838. As análises fundamentam-se nos escritos do historiador francês
Roger Chartier, bem como de seus principais interlocutores. Para tanto, foram adotados os
conceitos de “representação”, “apropriação” e “práticas sociais”, tais como compreendidos pela
história cultural. O problema é saber como Araripe Jr. representou a história da Pedra do Reino e
suas personagens, crenças e “práticas sociais” no espaço ficcional de O Reino Encantado. Para
tanto, recorremos a fontes de estudo como documentos manuscritos, periódicos e compêndios
de literatura do século XIX, localizados em instituições de pesquisa de Pernambuco, Ceará e Rio
de Janeiro. Concluímos que as “representações” da história da Pedra do Reino e das personagens
presentes em O Reino Encantado são orientadas ora por arquétipos românticos, ora pela linguagem
científica de fins do século XIX. As personagens sebastianistas são normalmente representadas a
partir de arquétipos naturalistas, vistas sob a ótica da medicina psiquiátrica. Por sua vez, as
personagens do grupo dos potentados são representadas a partir de arquétipos românticos.
Situado nesse dilema em voga no Brasil na década de 1870, Araripe Jr. inscreve sua visão
particular ante às escolas romântica e naturalista. Transitando entre preceitos de uma e de outra
orientação literária, ele se serve- ainda das principais contribuições do cientificismo vindo da
Europa, valendo-se das novas concepções acerca dos processos de criação literária, notadamente
a imaginação, a observação e a comprovação.
Palavras-chave: 1. Literatura e Cultura. 2. História Cultural. 3. Folhetim do séc. XIX. 4. Araripe
Jr., Tristão de Alencar (1848-1911). 5. História da Pedra do Reino (1836-1838).
Abstract
ABSTRACT
This thesis is a study of the novel O Reino Encantado: Brazilian chronical. It was written by Tristão
de Alencar Araripe Junior, a literate from Ceará, Brazil, and published firstly in serial, and, after,
in volume, both editions in 1878. This research aims to contribute to the studies about book’s
history and the reading in Brazil as we analyzed the unpublished work of O Reino Encantado, the
first Brazilian novel that talks about the religious fanaticism. It is a sold out book more than one
hundred years ago and both it and its author remain in oblivion. Araripe Jr. is accepted only just
as critical literary that - flanked by Sílvio Romero and José Veríssimo -, integrates the great
Brazilian critic triad in the late XIX century and early XX century. O Reino Encantado is a literary
reelaboration of the main documentary records and historical chronical about the Pedra do Reino
messianic movement, a historical fact that happened in the Pernambuco state wilderness region
between 1836 and 1838. The analyses are based in the French historian Roger Chartier writings,
as well as their main interlocutors. In addition, the "representation", "appropriation" and "social
practices" concepts were adopted, such as having understood for the cultural history. The
problem is to know how Araripe Jr. represented the history of Pedra do Reino and their
characters, belief and "social practices" in O Reino Encantado fictional space. For this, we fell
back upon study sources as hand written documents, newspapers and summaries of XIX century
literature, located in Pernambuco, Ceará and Rio de Janeiro research institutions. We conclude
that Pedra do Reino’s history "representations" and the characters present in Reino Encantado
are guided some times by romantic archetypes, other times by the scientific language in the late
XIX century . The sebastianistas characters are usually represented from naturalistic archetypes,
views under the psychiatric medicine optics. On the other hand, the potentates’ group characters
are represented starting from romantic archetypes. In that dilemma rowing in Brazil in the 1870s,
Araripe Jr. he enrolls his private vision before to the romantic and naturalistic schools.
Transiting among precepts of one and another literary orientation, he is still the main
contributions for the coming Europe scientism, being worth of the new conceptions concerning
the literary creation processes, especially the imagination, observation and proof.
Key words: O Reino Encantado (novel); Serial novel (Sec. XIX); Araripe Junior (1848-1911); Pedra
do Reino story; Brazilian literature; book’s history and the reading in Brazil.
Sumário
SUMÁRIO
Introdução
15
Capítulo 1: O itinerário da Pedra do Reino na historiografia literária brasileira: entre a paráfrase e o
esquecimento
1.1. Pedra do Reino: a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite
1.2. Representações da história da Pedra do Reino
1.3. Antônio Áttico de Souza Leite e suas representações
1.3.1. Uma obra em três edições
1.3.2. A legitimação do Estado brasileiro
1.3.3. Elogio à Igreja Católica
1.3.4. O repúdio ao caboclismo
1.3.5. Representações do reino da Pedra do Reino, segundo os sebastianistas
1.3.6. As fontes utilizadas por Antônio Áttico de Souza Leite: limites e problemas
1.3.7. Representação e história: impasses na invenção de Pedra do Reino
1.3.7.1. O massacre do Paraíso terreal: o caso da serra do Rodeador
1.3.7.2. O massacre de Canudos
1.4. Uma versão unívoca de história: representações de Pedra do Reino em outros autores
1.4.1. Daniel Parish Kidder e suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil
1.4.2. Nina Rodrigues e A hecatombe de Pedra Bonita em Pernambuco
1.4.3. Francisco Augusto Pereira da Costa
1.4.4. Gustavo Barroso: Almas de lama e de aço (1928)
1.4.5. Câmara Cascudo em Dicionário do Folclore Brasileiro (1954)
1.4.6. Optato Gueiros e o depoimento de Seu João (1956)
1.4.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957)
1.4.8. Waldemar Valente em Misticismo e Região (1963)
1.4.9. Maria Isaura Pereira de Queiroz em dois tempos
25
28
37
38
38
44
46
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48
53
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81
83
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86
Capítulo 2: Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 - 1878)
2.1. Notícia biográfica de Araripe Jr. (1848 - 1911)
2.2. Discursos em torno da “geração de 1870”
2.3. Romantismo e o Naturalismo no discurso crítico de Araripe Jr. (1868-1878)
2.4. Araripe Jr. e as Cartas a Cincinato
2.5. A “Academia Francesa do Ceará”
2.5.1. Soberania Popular
2.5.2. Liberdade Religiosa
2.5.3. A literatura brasileira contemporânea
2.5.4. O Papado
2.6. Argumentos científicos para analisar literatura
2.7. O sertanejo idealizado x sertanejo “real”
2.8.“Instinto” de nacionalidade: fio condutor da obra de Araripe Jr.
88
90
99
105
110
118
121
122
124
128
134
137
139
Capítulo 3: Representações romântico-naturalistas na composição de O Reino Encantado
3.1. Cativos e libertos na Pedra do Reino: resumo de O Reino Encantado
3.1.1. João, Maria e a profecia
3.1.2. O cenário da trama e o tempo do enunciado
3.1.3. Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio
3.1.4. A Família Vasconcelos
3.1.5. A chegada de Jaime à fazenda das Porteiras
145
146
148
150
151
153
154
Sumário
3.1.6. Invasão à fazenda das Porteiras e o rapto de Maria
3.1.7. A expedição à Pedra do Reino e João Pilé
3.1.8. A participação de João Antônio na expedição
3.1.9. Justina e Maria
3.1.10. Josefa e Manoel Velho
3.1.11. O pacto de desiguais contra um inimigo comum
3.1.12. A expedição chega à Pedra do Reino: a luta entre potentados e sebastianistas
3.2. História, ciência e observação na composição de O Reino Encantado
3.2.1. Imaginação e Observação
3.2.2. Fanatismo religioso, de Souza Leite: a fonte histórica
3.2.3. Meio, raça e momento
3.3. O carro de boi e a locomotiva: Representações do sertão e do litoral
3.4. Sentidos sociais da profecia
3.5. Personagens do romance
3.5.1. João Antônio: arauto e traidor
3.5.2. João Ferreira: o profeta “fanático” e “epilético”
3.5.3. Pedro Antônio e sua cobiça
3.6. Manoel Velho: o vaqueiro nobre, destemido e fiel
3.7. Maria: à imagem de Nossa Senhora
155
156
157
158
159
160
161
163
164
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169
172
175
181
188
192
198
200
203
Notas finais
209
Referências bibliográficas
214
Anexos
228
Relação de figuras
RELAÇÃO DE FIGURAS
FIGURA 1 – Cópia digitalizada de manuscrito sobre D. Sebastião cujo título é "TRACTADO de
vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D.
Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos
os curiozos q. são verdadeiramente [Calholeiros]", sem data, localizador: I-13,01,044. Fonte: BN
– Setor de Manuscritos. Páginas 30 a 34
FIGURA 2 – Capa da 2ª edição da obra Fanatismo Religioso, de Antônio Áttico de Souza Leite.
Fonte: BN – Setor de Obras Raras. Página 39
FIGURA 3 -Cópia digitalizada do “Desenho da Pedra Encantada, e do mais que vi, indaguei, e
fui testemunha ocular nos dias 19 e 20 de outubro de 1838”(desenho feito no local pelo padre
Francisco José Correa de Albuquerque e notas de seu punho.) Autor: Pe. Francisco José Correia
de Albuquerque. Fonte: IAHGP. Página 43
FIGURA 4 – Cópia digitalizada do ofício procedente do Palácio do Governo de Pernambuco,
assinado por Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque dirigido ao Juiz do Crime de Flores,
Manoel dos Passos Baptista pedindo celeridade no processo a que foram submetidos os
sobreviventes de Pedra do Reino, em atenção ao Imperial Aviso de 08 de agosto de 1838, Parte 1,
folha 39 (verso) e 40 (frente). Fonte: APEJE, Tomo RO-11/2: 39-40. Página 59
FIGURA 5 – Cópia digitalizada do ofício originado do Presidente da Província de Pernambuco
cujo destinatário foi o Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos. Fonte: ANRJ- IJ1-823 – 1838 a
1843. Páginas 62 a 64
FIGURA 6 – Cópia digitalizada do ofício do Pe. Antônio Gonçalves Lima dirigida ao Pe.
Francisco José Correia de Albuquerque, publicada no Diário de Pernambuco, em 18 de junho de
1838. Fonte: FUNDAJ – Setor de Microfilmagem. Páginas 70 e71
FIGURA 7 – Cópia digitalizada do ofício procedente do presidente da província de
Pernambuco, dirigida ao prefeito da comarca de Flores comunicando a chegada de dois réus de
Pedra do Reino. Fonte: APEJE/ Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II, 1838. Página 77
FIGURA 8 - Cópia digitalizada do ofício procedente do prefeito da comarca de Flores dirigido
ao presidente da província de Pernambuco comunicando a prisão de dois integrantes da “facção”
de Pedra do Reino. Fonte: APEJE, Pc 5, p. 267, 1838.Página 79
FIGURA 9 –Cópia digitalizada de foto de Tristão de Alencar Araripe Jr. Fonte: Sítio da
Academia Cearense de Letras. Acesso em 22 de setembro de 2011. Página 91
FIGURA 10 –Capa da edição em volume do romance O Reino Encantado. Fonte: Biblioteca
Brasiliana-USP
Guita
e
José
Midlin.
Sítio:ttp://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00105700#page/7/mode/1up. Acesso em
26 de outubro de 2010. Página 147
FIGURA 11 – Cópia digitalizada do ofício procedente do prefeito de Flores e dirigido ao
presidente da província de Pernambuco comunicando os sucessos de Pedra do Reino, datado de
25 de maio de 1838. Fonte: APEJE, Pc 5, p. 251 a 254. Páginas 183 a 186
Relação de abreviaturas e siglas
RELAÇÃO DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABL - Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro - RJ
AMLB/APEB/FCRB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de
Escritores Brasileiros da Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro - RJ
APEJE – Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano -– Recife - PE
AN- Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
BBM - Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
BN – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
FCRB - Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro - RJ
FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco – Recife - PE
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro - RJ
IHAGP- Instituto Histórico, Arqueológico e Histórico Pernambucano - Recife - PE
RE – O Reino Encantado
Introdução
INTRODUÇÃO
Aquele reino era de muitas glórias e riquezas, mas como tudo era encantado só se
desencantava com sangue, era necessário banhar-se as pedras e regar-se todo o campo
vizinho com sangue dos velhos, dos moços, das crianças e de irracionais; que tudo isto,
além de necessário para Dom Sebastião vir logo trazer as riquezas, era vantajoso para as
pessoas que se prestavam a socorrê-lo assim porque, se pretas, voltavam alvas como a
lua, imortais, ricas e poderosas; e se velhas, vinham moças, e da mesma forma, ricas,
poderosas e imortais com todos os seus. Antônio Áttico de Souza Leite
O trecho acima citado constitui uma das inúmeras formas de enunciar os múltiplos
sentidos atribuídos ao Rei de Portugal Dom Sebastião, desaparecido em batalha contra os
mouros, em Alcácer Quibir, África, em 1578. Os portugueses, órfãos do seu rei, diante de um
Estado acéfalo, ou pelo menos enfraquecido, “inventaram” o mito do retorno de Dom Sebastião.
Conforme a crença instituída, o rei retornaria para recuperar o poder e as glórias do reino
português.
O trecho em epígrafe, contudo, não se refere ao sebastianismo tal como fabricado em
Portugal, no século XVI. Seu referente é o episódio histórico registrado na Serra do Reino, no
sertão pernambucano. A presença de duas grandes pedras predispostas uma ao lado da outra foi
apropriada por alguns sertanejos do lugar como um indício de que se tratava de um “reino
encantado”, cujo desencantamento dar-se-ia com o retorno do rei português Dom Sebastião.
Também enuncia essa espera messiânica do rei salvador enquanto que expressa uma crença em
um novo tempo, um tempo de glória, de riqueza e de felicidade. Mas, há uma diferença
fundamental: embora esse episódio possa ser classificado como uma manifestação do
sebastianismo, ele aponta para algumas especificidades que o singularizam diante de outras tantas
formas de crença no retorno do “Encoberto”.
Esses eram os sonhos que norteavam a vida da comunidade que se formou em torno do
monumento natural, conhecido a princípio como Pedra Bonita e mais comumente lembrado hoje
como Pedra do Reino1. Trata-se de um movimento messiânico de cunho sebastianista, liderado
inicialmente por João Antônio dos Santos e depois, pelo seu cunhado João Ferreira da Silva,
ocorrido entre os anos de 1836 a 1838, nas imediações do sítio histórico, localizado onde hoje é o
município pernambucano de São José do Belmonte.
Os sucessos de Pedra do Reino foram temas de diversas obras ou parte delas. Obra
pioneira são as reminiscências de viagem de um pastor metodista norte americano, Daniel P.
Kidder, de 1845, intitulada Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: notícias históricas e
geográficas do Império e das diversas províncias, fruto de sua viagem ao Brasil entre 1836 e 1840.
1Nesta
tese, utilizaremos a expressão Pedra do Reino para nos referirmos ao movimento messiânico. Adotamos esse
critério porque é essa a designação mais recorrentemente utilizada contemporaneamente pela memória coletiva sobre
aquele fato histórico. Porém, alguns textos que citaremos, referem-se ao mesmo movimento messiânico como Pedra
Bonita, Reino Encantado ou Serra Formosa.
15
Introdução
Depois dele, Antônio Áttico de Sousa Leite, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de
Recife e membro do IAHGP – Instituto Histórico, Arqueológico e Geográfico Pernambucano,
publicou Fanatismo Religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de
Villa Bella(1875), que se transformou numa obra de referência sobre o tema. Tornou-se fonte
para obras posteriores, servindo inclusive de pretexto na composição de três romances brasileiros
cujos enredos têm como pano de fundo a história da Pedra do Reino. A saber: O Reino Encantado
(1878), de Tristão de Alencar Araripe Jr., Pedra Bonita (1938), de José Lins do Rego e Pedra do
Reino (1971)2, de Ariano Suassuna.Contudo, no campo das ciências sociais, a exemplo da história
e da sociologia, não se registra estudos de destaque sobre a história da Pedra do Reino. Assim, as
abordagens mais significativas sobre o tema ficaram mesmo a cargo dos literatos.
Obra pioneira é a de Tristão de Alencar Araripe Júnior que publicou O Reino Encantado,
em 1878. O romance é uma re-elaboração ficcional do memorial de Antônio Áttico de Souza
Leite. Araripe Jr. escolhe os principais acontecimentos narrados por Leite e confere a eles uma
versão ficcional.
No centenário da história de Pedra do Reino, em 1938, José Lins do Rego publicou Pedra
Bonita. Nesse romance, José Lins do Rego se distanciou da temática memorialista e da cana de
açúcar, até então predominantes na vasta obra do paraibano, e voltou a atenção para uma
temática e um ambiente nunca antes aproveitados pelo autor: o sertão seco, inebriado pelo
misticismo, povoado por cangaceiros, religiosidade popular e literatura de folhetos de cordel. O
autor de Pedra Bonita busca no estudo de Antônio Áttico de Souza Leite o pretexto para compor
o drama vivido por Bentinho, personagem principal do romance.
Por último, em 1971, a historiografia literária registra a publicação de mais um romance
sobre o tema. Trata-se de Pedra do Reino, primeiro romance do escritor paraibano Ariano
Suassuna, que depois de se consolidar como dramaturgo, apresentou-se como romancista. Assim
como Araripe Jr. e José Lins do Rego, Suassuna elegeu o memorial de Leite como fonte na
composição de sua obra. Em nossa dissertação de mestrado, analisamos esse aspecto de Pedra do
Reino e concluímos que Suassuna utiliza-se amplamente da obra Fanatismo Religioso: Memória
sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado em favor da narração dos fatos históricos relacionados
à Pedra do Reino. Vale salientar que ao fazê-lo, o romancista imprime sentido diferente daquele
Embora o romance seja assim mencionado, a referência completa a ele é SUASSUNA, Ariano Vilar. O Romance da
Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai e volta, Romance Armorial Popular Brasileiro. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1971. Importante informar que sempre que nos referirmos ao fato histórico, grafaremos Pedra do Reino;
as referências ao romance de Ariano Suassuna serão sempre homógrafas, mas em itálico.
2
16
Introdução
utilizado por Antônio Áttico de Sousa Leite. Entre ambos, historiador e romancista, há visível
diferença de objetivo e de ponto de vista ao narrar um mesmo fato3.
Além de ter sido pretexto para os romances aqui apresentados, o episódio de Pedra do
Reino é mencionado em Os Sertões, obra magistral de Euclides da Cunha, publicada em 1901.
Euclides da Cunha, na tentativa de explicar os fatores históricos da religião mestiça entre os
sertanejos, bem como a adesão ao mito sebastianista em Canudos, faz referência ao caso de Pedra
do Reino. Talvez o autor tenha se voltado para a história da Pedra do Reino depois de descobrir,
através dos folhetos de cordel, a grande influência de D. Sebastião entre os seguidores de
Antônio Conselheiro, conforme consta em suas anotações de campo: “um iluminado, ali
congregou toda população dos sítios convizinhos e, engripando-se à pedra, anunciava convicto, o
próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião” (CUNHA, 1997, p. 107).
Para a elaboração desta tese, optamos por pesquisar O Reino Encantado: crônica
sebastianista, romance de Tristão de Alencar Araripe Jr. A escolha se justifica por razões afetivas,
mas também acadêmicas. O Reino Encantado é uma das obras cujo tema principal, conforme
mencionamos, é a história da Pedra do Reino, assunto que desde o mestrado elegemos como
matéria de nossas pesquisas. Nascida no município de São José do Belmonte-PE, desde a infância
convivemos com os registros da memória individual e coletiva acerca desse evento histórico. As
marcas, os sinais e as evidências da ligação afetiva e histórica do município com os
acontecimentos ocorridos no sítio Pedra do Reino podem ser percebidos no cotidiano de São
José do Belmonte. Basta dizer que ali adotou-se uma memória iconográfica composta por
imagens das pedras do reino, sobretudo nos símbolos oficiais do município, a exemplo do hino,
do brasão e da bandeira municipal. Esta última idealizada e confeccionada pela artista plástica
Maria Cavalcantes de Sousa Moura, minha mãe, autora da capa da tese. Memórias oficiais, mas
em constante disputa. Entre os citadinos, é recorrente um conjunto de atividades, manifestações,
espaços culturais, palestras e publicações de obras e de folhetos de cordel em torno da história da
Pedra do Reino4. Entretanto, se a memória coletiva e individual foi uma referência na opção do
3Enquanto
que Antônio Áttico de Souza Leite narra os fatos do ponto de vista do interesse dos poderosos da região,
Ariano Suassuna, através da personagem Quaderna, transforma o romance numa espécie de libelo em defesa da
comunidade de Pedra do Reino. No romance, redimem-se os sebastianistas das acusações e defende-se a justeza do
pleito dos sebastianistas: o confisco dos bens de fortuna dos potentados, a fim de ser redistribuído entre os pobres.
Sobre as fontes históricas utilizadas na composição de Pedra do Reino, de Ariano Suassuna,conf. CLEMENTE,
Débora Cavalcantes de Moura. Entre duas pedras: catolé. (Dissertação de Mestrado) UNICAMP – Universidade
Estadual de Campinas/ IEL- Instituto de Estudos da Linguagem/ Departamento de História e Teoria da Literatura.
2002, o cap. III
4 O exemplo mais expressivo dessas manifestações é a realização da Cavalhada e da Cavalgada à Pedra do Reino que
ocorrem no último final de semana do mês de maio. Em 2012, aconteceu a 20ª edição do evento que é organizado
pela Associação Cultural Pedra do Reino, com sede em São José do Belmonte – PE.
17
Introdução
tema, não será esta o foco da pesquisa. O objeto desta tese é um romance, O Reino Encantado:
chrônica sebastianista.
Necessário registrar que a historiografia literária brasileira reconhece o nome de Araripe
Jr. apenas como crítico literário. No entanto, é preciso anotar a considerável produção literária de
ficção do autor, totalizando algo em torno de 10 romances, tais como O ninho do beija-flor (1874),
Jacina, a Marabá (1875), Um motim na aldeia (1877), O Reino Encantado (1878), Luizinha (1878) –
publicado inicialmente em 1872 com o título A casinha de sapé -, O Retirante (1878) romance
inconcluso, Xico Melindroso (1882), O Guaianás (1882), Quilombo dos Palmares (1882), Miss Kate
(1909), além de um livro de contos intitulado Contos Brasileiros (1868). Com exceção de Luizinha e
Jacina, a Marabá, todas as demais obras só conheceram as primeiras edições que estão esgotadas
há mais de 100 anos5.
Não obstante a volumosa produção de Araripe Jr., a obra aqui selecionada para análise, O
Reino Encantado, não teve o acolhimento necessário por parte da crítica literária e também por
parte dos historiadores da literatura. Basta dizer que selecionamos mais de 40 jornais e periódicos
do Ceará6 e do Rio de Janeiro7, publicados em 1878. Consultamos todas as edições dessas
publicações, página por página, de janeiro a dezembro daquele ano, mas nenhuma menção ao
romance foi localizada por críticos contemporâneos a’O Reino Encantado.
A recepção da crítica especializada limitou-se a um ou outro artigo que menciona O Reino
Encantado, sobretudo aqueles escritos em 1911-12 e 1948, anos que correspondem,
respectivamente, às memórias do 1º ano de falecimento do romancista,8 e à lembrança do
centenário de seu nascimento9.
5O
romance Jacina, a Marabá conheceu uma 2ª edição em 1973, um dos livros da Coleção Imortais da Nossa
Literatura. Cf. ARARIPE JR. Tristão de Alencar. Jacina, a Marabá. 2ª ed. Rio de Janeiro: Três, 1973. Já Luizinha foi
reeditada em 1980, fruto de um convênio entre a Academia Cearense de Letras e a José Olympio. Cf. ARARIPE JR.
Luizinha. 2ª ed. Fortaleza/Rio de Janeiro: Academia Cearense de Letras/ José Olympio, 1980.
6 Jornais consultados que circulavam no Ceará em 1878: O Cearense, O Colossal, Caryry, O Cruzeiro, O Cacete, O Combate,
Gazeta do Sertão, Fraternidade, Baturité,O Retirante, Pedro II.
7 Jornais consultados que circulavam no Rio de Janeiro em 1878: Gazeta de Notícias, Jornal do Comercio, O Vulgarizador,
FonFon, Ilustração Brasileira, Revista Illustrada, Revista Brasileira, Diário do Rio de Janeiro, A Lanterna, O Torniquete, A
Reforma, O Economista Brasileiro, Museu Literário, Gazeta da Tarde, Domingo, O Besouro, Iracema, O Telefone, Revista Instrutiva,
O Original, Alvorada, Diário da Tarde, Amor ao Progresso, Zig-Zague, Fênix Literária, O Socialista, Skating-Rink, Renascença,
Revista Americana, O Phonógrafo.
8 DÓRIA, Escragnolle. “Araripe Jr.” Em: Revista da Academia Cearense de Letras. Tomo XVIII, Nº 18,Fortaleza, nº 18,
1913,p. 100-107; ALMEIDA, Júlia Lopes. “Dois dedos de prosa”. Em: O Paiz, Rio de Janeiro, 31.10.1911, p. 01; A
Notícia. Rio de Janeiro. “Araripe Júnior”. 30.10.1911, p. 03; O Estado de São Paulo. “Araripe Júnior”. 30.10.1911, p. 03;
Gazeta de Notícias. “Morreu ontem Araripe Jr. Rio de Janeiro”, 30.10.1911, p. 1; Correio da Manhã. “Faleceu pela
manhã o dr. Tristão de Alencar de Araripe Júnior”. Rio de Janeiro, 30.10.1911, p. 03; Correio da Manhã. O senhor
Coelho Neto fez o penegyrico de Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 31.10.1911, p. 05
9BARROSO, Gustavo. “O centenário de Araripe Jr.”Em: Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 18 de julho de 1948, p.
03; BRAGA MONTENEGRO. Araripe Jr, subsídios para estudo. Em: Clã-Revista de Cultura. Nº 03, Ano I,
Fortaleza,junho de 1948, p. 01-42; COLARES, Otacílio.“O centenário de Araripe Jr.”Em: Suplemento literário da Folha
da Manhã, Ano XXIV, nº 7464, 3º Caderno, São Paulo, 1º de agosto de 1948, p. 01; CASTELO, José Aderaldo.
Biografia literária de Araripe Jr.- O homem e a época- (A propósito do centenário de seu nascimento). Em: Revista do
18
Introdução
Sobre O Reino Encantado, localizamos um ou outro parágrafo isolado em dicionários e
compêndios de literatura. É o caso do Dicionário Bio-bibliográfico cearense (1ª ed. 1915), do Barão
Guilherme de Studart; do Dicionário Bio-bibliográfico brasileiro (1937), de João Francisco Velho
Sobrinho; da História da Literatura brasileira: prosa de ficção, de Lúcia Miguel Pereira (1950); da
obra A literatura brasileira (1963), de Afrânio Coutinho; da Pequena bibliografia crítica de literatura
brasileira (1964), de Otto Maria Carpeaux; da História da literatura brasileira (1964), de Nelson
Werneck Sodré; do Pequeno dicionário de literatura brasileira. (1ª ed. 1967), de José Paulo Paes e
Massaud Moisés; da obra Poetas e prosadores do Brasil (1968), de Agripino Grieco; do Dicionário de
literatura cearense (1987), de Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa. Antes de todas essas,
em 1900, foi publicada em Buenos Aires a obra El Brasil intectual, do uruguaio Martin Garcia
Mérou, na qual ele dedica quatro capítulos a Araripe Jr., mas apenas um deles refere-se a sua
ficção. Um traço recorrente em todos esses textos, no entanto, é que eles são uníssonos em
afirmar que a obra crítica de Araripe Jr. é detentora de uma qualidade superior a sua produção
ficcional.
No percurso da nossa pesquisa, cujo objetivo era reunir documentos sobre a produção
literária de ficção de Araripe Jr., sobretudo sobre O Reino Encantado, poucas informações foram
obtidas. Apesar do volume de material consultado, infelizmente não conseguimos localizar
pareceres críticos sobre O Reino Encantado. Mas tivemos a grata surpresa de localizar na Fundação
Casa de Rui Barbosa um conjunto de 22 correspondências ativas de Araripe Jr., escritas entre 03
de julho de 1872 e 15 de outubro de 1876. Dessas missivas, seis foram endereçadas ao pai, o
Conselheiro Tristão Alencar, e a sua mãe dona Argentina Alencar de Lima; as outras 15 formam
destinadas exclusivamente a sua mãe, com que mantinha uma relação marcada por fortíssimo
afeto. Na mesma instituição, encontramos um caderno de memórias, com 35 páginas escritas por
Araripe Jr.; um caderno de recordações de sua filha Antonieta Alencar Araripe, no qual ela colou
documentos esparsos referentes e/ou elaborados por membros da família, a exemplo de cartas,
recortes de jornal que mencionasse seus parentes, sobretudo o seu pai; por fim, na Casa de Rui
Barbosa descobrimos um caderno de citações em que Araripe Jr. transcreveu cerca de 1500 frases
de diversos autores. Esse caderno é luxuoso, de capa dura em cuja capa as letras são douradas.
Parte desse material, sobretudo as cartas a sua mãe, utilizamos na elaboração do capítulo 1, como
Instituto do Ceará. Fortaleza: Instituto do Ceará, Tomo 62, Ano, 62, 1948, p. 221 a 242; Suplemento literário de A
Manhã dedicado a Araripe Jr. Rio de Janeiro, Vol. 7, nº 1, 09 de julho de 1944.
19
Introdução
se verá adiante. Dada a importância e ineditismo desses documentos, anexaremos parte deles ao
final desta tese10.
Ficamos radiantes com a riqueza documental localizada na Fundação Casa de Rui
Barbosa. Mas, nessa trajetória não encontramos registro de nenhum estudo acadêmico em nível
de mestrado ou doutorado sobre O Reino Encantado. Por isso que, do ponto de vista acadêmico,
justificamos a pesquisa pelo seu pioneirismo.
Conforme já anotamos, a historiografia literária brasileira acolheu Araripe Jr. apenas como
crítico literário. Seu nome é lembrado tão somente pela produção crítica que integra - ladeado
por Sílvio Romero e José Veríssimo- a grande tríade da crítica brasileira do final do séc. XIX e
início do séc. XX11.
O Reino Encantado como também o conjunto da obra de ficção do autor composta por,
pelo menos, uma dezena de romances ficou relegada ao esquecimento. “A fim de dar nova vida a
este mundo que, desabitado, corre o risco de se tornar inerte” (CHARTIER, 1999, p. 155),
tomamos para nós o desafio de trazer à luz o viés ficcional de Araripe Jr. Discuti-lo como
romancista, autor de O Reino Encantado: crônica sebastianista. Isso posto, partiremos da seguinte
questão: como Araripe Jr. “representa” a história da Pedra do Reino e suas personagens, crenças
e “práticas sociais” no espaço ficcional de O Reino Encantado?
Para discutir essas demandas, partiremos dos escritos do historiador francês Roger Chartier
e de algumas obras de seus principais interlocutores12. Serão particularmente úteis suas categorias
de “representação”, “apropriação” e de “práticas sociais”. No caso de Roger Chartier, faremos
uso aqui de sua obra A história cultural: Entre práticas e representações (1990) e “O mundo como
representação” (1991)13 um dos primeiros textos do autor que foi publicado originalmente em
1989, na revista francesa Annales (1990). No fundamental partimos desse artigo para
Cf. AMLB/APEB/ FCRB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros da
Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – RJ. Documentos AMLB nºs2187 a 2207 e nº 1966.
11 A produção crítica de Araripe Jr. tem sido objeto de vários estudos. Destacamos aquia pesquisa de fôlego de
Afrânio Coutinho(1958-1970) que compilou e publicou em cinco volumes a maior parte da obra crítica de Araripe
Jr., pela Casa de Rui Barbosa. Do mesmo Afrânio Coutinho mencionemos ainda Euclides, Capistrano e Araripe (1959),
Crítica e Críticos (1969) e A Literatura no Brasil (1986). Sublinhemos ainda as considerações de Antônio Cândido
(1969), Alfredo Bosi (1978), Francisco Foot Hardman (1992), Luiz Cairo (1996), para citar apenas alguns.
12 Como, por exemplo, Michel de Certeau (2002; 2005), MICHEL Foucault (2004; 2010); Carlo Ginzburg (1987);
Pierre Bourdieu (1982; 2008); Sandra Jatay Pesavento (1998); Jacques Leenhardt (1998). Naturalmente, estes não
foram os únicos a refletir sobre a categoria representação. Por outro lado, é necessário sublinhar que a polêmica
continua aberta e novas contribuições vêm sendo expostas a público.
13 Outras publicações do mesmo Chartier serão também utilizadas. A saber: CHARTIER, Roger. A história hoje:
dúvidas, desafios e propostas. Em: Revista de Estudos Históricos, Vol. 07, nº 13, 1994, pp. 100113http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1973;Práticas de Leitura. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996; A aventura do livro: do leitor ao navegador. 5ª ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1999;Cultura escrita,
literatura e história. Conversas de Roger Chartier com Carlos A. Anaya, Jesús A. Rosique, Daniel Goldin e Antonio
Saborit. Porto Alegre: Artmed, 2001.
10
20
Introdução
compreender o problema das “práticas” e das “representações sociais”, bem como para entender
o conceito de “apropriação”.
Roger Chartier integra a corrente historiográfica conhecida como nova história cultural.
Não obstante as variações explicativas no interior dessa corrente, compreende-se como
pressuposto que a realidade é construída culturalmente e as representações do mundo social é
que são constitutivas da realidade social. Como afirma Chartier, “as próprias representações do
mundo social é que são os elementos constitutivos da realidade social” (CHARTIER, 1985, p.
683).
Realidade que de nenhum modo é isenta de conflitos, mas, ao contrário, segundo o autor,
é uma construção permanentemente tensa, situada em diferentes campos de força:
“representação é a forma através da qual, em diferentes espaços e situações, uma determinada
realidade é construída, arrazoada, compreendida por diferentes grupos sociais” (CHARTIER,
1996, p. 16).
Portanto, estes e outros pressupostos gerais direcionam o conceito de representação de
Roger Chartier. Conceito que implica pelo menos três tipos de relação com o mundo.
Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de decomposição, que dá origem aos
diversos padrões intelectuais a partir dos quais a realidade é construída de maneiras
contraditórias pelos vários grupos que formam a sociedade; em segundo lugar, as
práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira
específica de estar no mundo, significar simbolicamente um status e uma hierarquia; e,
finalmente, as formas institucionalizadas, objetivadas, por meio das quais os
‘representantes’ (coletivos ou individuais) marcam a existência do grupo, comunidade
ou classe de um modo visível e permanente”(CHARTIER, 1995, p. 552).
Dessa forma, pela noção de “representação coletiva”, é possível compreender as formas
contraditórias de construção da realidade, as práticas que representam esta realidade de modo
simbólico e, por fim, as formas institucionalizadas pelas quais é construída a existência de grupos
e ou de classes sociais. Em virtude dessas considerações, entendemos que tal conceito ajuda a
entender como uma determinada realidade, no caso, a história da Pedra do Reino, é construída,
mas também representada; seja no campo da prática social ou, dito de outra forma, na realidade
vivida pelos sujeitos históricos; seja num discurso literário como O Reino Encantado, de Tristão de
Alencar Araripe Jr.
Ao longo da tese, tentaremos perceber como Araripe Jr. dá voz aos sujeitos envolvidos
no conflito em Pedra do Reino, tanto aos representantes da “ordem”, ou da “legalidade”, os
membros da elite dominante local; como os integrantes da comunidade sebastianista. Por sua
21
Introdução
narrativa de ficção, Araripe Jr. nos proporciona um olhar sobre como aqueles segmentos da
sociedade representavam o mundo ao seu redor, quais eram suas crenças, sua cosmovisão, bem
como suas práticas sociais.
Atrelada à noção de representação, a categoria “prática social” permite decifrar as
sociedades a partir das relações e das tensões que as constituem, conferindo-lhes inteligibilidade.
Chartier anuncia aqui uma alternativa, uma forma de análise das práticas sociais contraditórias,
individuais ou coletivas, constituídas de sentidos para seus agentes.
a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro,
um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática
ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em
confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles
(CHARTIER, 1991, p. 05).
O trecho citado possibilita compreender traços da sociedade brasileira de 1878, ano de
publicação de O Reino Encantado. Ela, a sociedade patriarcal, era composta de uma maioria de
homens e de mulheres cativos, acrescida por um número menor de sujeitos livres e pobres, força
de trabalho subjugada a uma minoria de senhores patriarcais, formando uma sociedade marcada
pelas profundas desigualdades sociais. Por força da violência física e simbólica e do poder de
mando, construía-se o consenso social pautado na submissão, no apadrinhamento, na
subserviência cotidiana. Em Pedra do Reino esse lugar comum foi rompido. Pontos de tensão
fomentados pelo desejo de melhoria de vida, de viver em um paraíso aqui mesmo na terra,
moveram o grupo que se formou em torno das pedras a dar um sentido diferente ao mundo que
era deles.
Esta prática social é composta por sucessivas construções de sentidos. A liberdade
criadora dos indivíduos, atuando criativamente em espaços regulados, caracteriza sempre um
processo de apropriação. Chartier explica como entende a noção de apropriação:
A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações,
referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as
produzem. Assim, voltar a atenção para as condições e os processos que, muito
concretamente, sustentam as operações de produção do sentido (na relação de leitura,
mas em tantos outros também) (CHARTIER, 1991, p. 09).
Por conseguinte, para Chartier representação, práticas e apropriações sociais constituem
faces diferentes de um mesmo processo. Sabemos que, embora ele tenha recebido notáveis
adesões no campo científico-acadêmico, seu legado vem sistematicamente sofrendo revisões,
22
Introdução
sobretudo o conceito de representação. Seria uma forma renovada de relativismo? Uma maneira
de reduzir a história aos condicionantes culturais? Um alargamento deste conceito a tal ponto de
torná-lo ininteligível? As respostas a estas indagações são múltiplas, de acordo com a posição e
interesse dos críticos.
Parece, aos críticos, no entanto, tratar-se de uma forma de reducionismo cultural. Lynn
Hunt, por exemplo, questiona o pressuposto segundo o qual qualquer prática, seja ela econômica,
intelectual, social ou política venha a ser compreendida “como culturalmente condicionada”
(apud CARDOSO, 2000, p. 19). Na mesma linha de pensamento, Ronaldo Vainfas entende que
Chartier substituiu a antiga “tirania do social” por uma nova, a “tirania do cultural”, referindo-se
ao fato de que “fica-se com a impressão de que a única história possível é a história cultural,
(1997, p. 154-155). Peter Burke, por seu turno, reconhece a importância de Chartier ao propor
novos questionamentos às explicações materialistas tradicionais. Mas, entende este historiador
que “ainda parece útil considerar que tais fatores (materiais) estabelecem o tema, os problemas
aos quais os indivíduos, os grupos e, falando metaforicamente, as culturas, procuram adaptar-se e
reagir”( apud CARDOSO, 2000, p. 19).
Não desconhecemos as críticas aos postulados de Roger Chartier, mas não fazemos coro
a elas. Do contrário, entendemos que uma pesquisa sobre as diferentes representações dos
agentes de Pedra do Reino cristalizadas nas narrativas históricas e narrativas literárias contribuirá
para uma compreensão mais dinâmica do episódio porque traz à luz, vozes do passado até então
silenciadas.
Em virtude dessas considerações, segmentamos a tese em três capítulos. Embora o ponto
de partida deste trabalho seja o romance O Reino Encantado, o primeiro capítulo não tratará da
obra, mas exporá os fatos históricos que serviram de pano de fundo na composição do romance.
Assim, recontaremos a história da Pedra do Reino, a partir dos registros que a historiografia
brasileira anotou sobre o episódio. A despeito de o objeto de estudo desta tese ser o romance O
Reino Encantado e a pesquisa se inscreva eminentemente nos domínios da literatura, consideramos
importante compor um capítulo que rememorasse a história de Pedra do Reino. Justificamos a
escolha porque compreendemos que os sucessos desse movimento messiânico não são de
domínio público; é um fato histórico brasileiro pouco estudado no meio acadêmico e não há
registros de menção a ele em nenhum livro didático. O outro intento do capítulo é identificar e
analisar as representações do episódio da Pedra do Reino e dos seus principais atores em
narrativas históricas e em outras obras sobre o tema. Destacamos aqui autores como Antônio
23
Introdução
Áttico de Souza Leite (1898; 1903), Daniel Parish Kidder (1972), Pereira da Costa (1908; 19831985), Nina Rodrigues (2006), Câmara Cascudo (1984), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976;
1997), para citar apenas alguns.
No segundo capítulo, abordamos a trajetória intelectual de Araripe Jr., a partir da sua
produção crítica publicada entre 1868 e 1878. Consideramos que as “representações” que o
romanista elaborou da história da Pedra do Reino e de suas personagens têm estreita ligação com
sua formação, cujos vestígios estão também no discurso não-ficcional que Araripe Jr. produziu.
Por isso, no capítulo 2 consta um apanhado das notícias biográficas sobre Araripe Jr. Depois, há
uma análise da “geração de 1870”, da qual Araripe Jr. participou, compreendendo-a, a partir de
Alonso (2000), como um “movimento reformista” de cunho político, cujos argumentos estavam
centrados em elementos da tradição político-cultural brasileiras, confrontados com um
“repertório” filosófico e científico europeu. E, para concluir o capítulo, elaboramos um exame do
posicionamento de Araripe Jr. ante as tensões romântico-naturalistas em voga no Brasil, a partir
do que ele escreveu entre 1868-1878. Convém anotar que a atividade crítica de Araripe Jr. se
prolongará
até
1911,
ano
de
sua
morte.
Mas
aqui
só
contemplaremos
a
crítica produzida por ele até a data da publicação de O Reino Encantado, 1878, uma vez que a
compreensão do discurso crítico terá como objetivo apenas subsidiar as análises do romance,
objeto de estudo desta tese.
O 3º e último capítulo organiza-se em torno de dois objetivos. Primeiro, apresentar ao
leitor um resumo detalhado do romance O Reino Encantado. Esmeramo-nos nas minudências
porque o romance e romancista são praticamente desconhecidos. Em seguida, analisaremos as
“representações” da história da Pedra do Reino e de suas personagens à luz de orientações
romântico-naturalistas, bases teóricas sobre as quais o romance foi elaborado.
24
Capítulo 1
O itinerário da Pedra do Reino na historiografia literária
brasileira:
entre a paráfrase e o esquecimento
Para Marcos e Júlia, com amor.
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
N
este capítulo, pretendemos alcançar dois objetivos centrais. Primeiro: recontar a
história de Pedra do Reino, em consonância com os registros da historiografia
sobre o movimento messiânico de cunho sebastianista, ocorrido em São José
do Belmonte – PE, entre 1836-1838. Depois, cumpre-nos revisar um conjunto
de obras filiadas às ciências sociais e outras ciências que se dedicaram à história da Pedra do
Reino. São pelo menos dez obras de sociólogos, médicos, militares e memorialistas a partir das
quais analisaremos as “apropriações” e “representações” que tais obras demandam sobre as
diferentes fases do movimento, desde a sua propalação, perpassando pelos fatos principais
ocorridos em maio de 1838, até o sepultamento dos mortos, dado em julho daquele mesmo ano;
assim como discutir nessas mesmas obras o lugar que a historiografia brasileira reservou à história
de Pedra do Reino, caracterizado por um certo esquecimento ou apagamento.
Qual a importância de relatar a história de Pedra do Reino? Por que destinar uma parte
desta tese para recontar o episódio? Entendemos que o fato histórico de Pedra do Reino não é de
domínio público; tem apenas relativa visibilidade; condição que nos impele a, antes de discuti-la,
narrá-la de acordo com os apontamentos historiográficos. Cumpre registrar que tomaremos
como fonte Fanatismo religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na comarca de
Villa Bella província de Pernambuco, do autor pernambucano, Antônio Áttico de Souza Leite,
cuja primeira publicação data de 1875. A opção também demanda justificativa. Por que não
eleger como fonte, por exemplo, a obra pioneira Reminiscências de viagens e permanências no Brasil:
notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias, de Daniel Parish
Kidder(1972), uma publicação em dois volumes, cujos originais em inglês foram uma coedição de
editoras de Londres e da Filadélfia, em 1845? Daniel Kidder era um pastor norte americano da
Igreja Metodista que viajou ao Brasil entre os anos de 1836 e 1840. A obra é fruto de sua viagem
e nela há um sucinto trecho dedicado à história de Pedra do Reino. A despeito de o texto do
pastor Kidder ter o mérito do pioneirismo, optamos por Antônio Áttico de Souza Leite como
fonte.
Trata-se da obra de maior repercussão, quando o assunto é Pedra do Reino. Ao que tudo
indica, o memorial foi eleito como uma espécie de fonte obrigatória dos estudos posteriores
sobre o tema, como um texto matriz de todas as demais que se dedicaram à Pedra do Reino. Em
sua maioria, ecos do texto de Leite, por reproduzirem boa parte dos pontos de vista que ele
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
adotou, a exemplo das representações dos sebastianistas14, de seus líderes, assim como dos
potentados15. A adoção talvez se deva à riqueza de detalhes que o autor utilizou para narrar os
fatos. Ou, talvez, por causa das características literárias que Leite incluiu no memorial, a exemplo
dos diálogos e da inserção do elemento fantástico.
Há de se considerar ainda a peculiaridade editorial da obra de Leite, que conheceu três
publicações. Dificilmente ela teria a repercussão que tem, caso não tivesse sido incluída na Revista
do Instituto Arqueológico e Histórico de Pernambuco. Afirmamos isso porque essa última edição foi a
que sobreviveu até hoje. A primeira, de 1875, não foi encontrada, a segunda é de difícil acesso
porque compõe o acervo de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
O valor da obra de Antônio Áttico de Sousa Leite também se conta porque ela serviu
como fonte na composição de três romances brasileiros: O Reino Encantado (1878), Pedra Bonita
(1938) e Pedra do Reino (1971). São obras que têm como pano de fundo a história da Pedra do
Reino. O Reino Encantado, de Tristão de Alencar Araripe Jr., conforme já indicamos na introdução,
é objeto principal desse estudo. Posto o quê, reafirmamos que não há dúvida quanto à
importância da obra de Antônio Áttico de Sousa Leite para os estudos da Pedra do Reino. Por
isso recorreremos a ele para narrar como os sucessos daquele movimento messiânico passaram
para a história, ainda que o memorial seja passível de problematizações.
Encerrada a narrativa, passaremos à parte mais relevante do capítulo. Nela analisaremos
as “apropriações” e “representações” que um conjunto de obras demandaram sobre a história de
Pedra do Reino. São textos produzidos por diferentes autores, de formação intelectual variada,
localizados em diversos espaços e tempos, oriundos de matrizes ideológicas diversas. A título de
exemplo mencionemos as já citadas reminiscências do pastor Kidder e o memorial de Leite,
assim como as obras As coletividades anormais (2006), do médico Nina Rodrigues, Folclore
Pernambucano (1908), do historiador Francisco Augusto Pereira da Costa, Almas de lama e de aço
(1928), de Gustavo Barroso, O messianismo no Brasil e no mundo (1976), da socióloga Maria Isaura
Pereira de Queiroz, entre outras.
As leituras dos textos produzidos em torno da história de Pedra do Reino suscitam
questões importantes, tomadas de empréstimo a Chartier (1991). Como uma mesma realidade é
construída, pensada e dada a ler por distintos grupos sociais? Ou seja, como os diferentes atores
Chamaremos de “sebastianistas” os participantes do movimento messiânico de Pedra do Reino, ocorrido entre
1836-1838.
15 Denominaremos como “potentados” o grupo que se opôs, combateu e debelou o movimento messiânico de Pedra
do Reino, formado por representantes da Igreja Católica, fazendeiros e militares.
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
de Pedra do Reino, oriundos de grupos sociais desiguais, apropriam-se e representam aquele
movimento messiânico?
Nesse capítulo, visamos discutir o leque de representações da história de Pedra do Reino
e seus atores.
Passemos à narrativa.
1.1. Pedra do Reino: a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite
Segundo Antônio Áttico de Souza Leite, no século XIX, entre os anos de 1836 e 1838, o
sítio de Pedra Bonita, no sertão do Pajeú de Flores (atual município de São José do Belmonte),
Pernambuco, foi cenário de trágicos acontecimentos messiânicos de inspiração sebastianista.
Findo o movimento, contabilizavam-se 53 mortos, entre os quais velhos, adultos e crianças, além
de vários feridos.
No começo de 1836, um “mameluco”16, chamado João Antônio dos Santos17, morador
do termo de Vila Bela (atual Serra Talhada-PE), costumava reunir a população circunvizinha no
sítio Pedra do Reino. Pregava João Antônio dos Santos que o monumento natural, até então
conhecido como Pedra Bonita, era, na verdade, parte de duas belíssimas torres de um templo,
parcialmente visível, e que seria, por certo, o castelo de um reino. João Antônio dos Santos
propalava aos moradores a crença de que estava recebendo em sonho El-Rei Dom Sebastião, que
este lhe revelou a existência de um tesouro. Esse tesouro estaria numa lagoa, próxima à Pedra do
Reino, local de onde ele teria retirado duas pedrinhas brilhantes, supostamente diamantes, que,
segundo João Antônio, seriam pequena amostra do maravilhoso tesouro do reino de D.
Sebastião.
Nessas ocasiões, portava um velho folheto português “de que nunca se apartava, e que
encerrava um desses contos ou lendas, que andavam muito em voga acerca do misterioso
desaparecimento d’ El- Rei- Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, e de sua esperada e
quase infalível ressurreição” (LEITE, 1903, p. 221).
As imagens que se seguem compõem um dos manuscritos sobre D. Sebastião que
circularam no Brasil, localizado na Biblioteca Nacional. O título é “Tratado de vários discursos e
alguns casos históricos acerca do Encoberto Rei de Portugal o Sr. Rei D. Sebastião acompanhado
Mameluco é o nome que se dá ao mestiço de branco com índio.
João Antônio dos Santos é personagem histórica e também foi aproveitado por Araripe Jr. como personagem de O
Reino Encantado, conforme veremos ainda nesta tese.
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Capítulo 1
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de muitas mais coisas curiosas dignas de bastante atenção”. O texto é dividido em “discursos” e
as imagens que trouxemos referem-se ao 1º deles18. [Figura 1]
18No
1° discurso, localizam-se os seguintes dizeres: “Discurso sobre as profecias de hum religioso de São Bento
chamado Fr. João de Rosas Selça: “Huno religioso de São Bento do Aragão chamado Fr. João de Rosas Selça
deichou uma profecia sobre a volta (?) do Encoberto em que mostra ser El Rey Dom Sebastião a qual diz assim:
‘Qual das três coroas por certo/(Da qual huma há só saído)/Hum coroado foi vencido/Estará o Encoberto/Por
mostrar que era perdido/Este é pois quem eu digo/Este que chegado será/Seu partido como amigo/E mil vitórias
fará.’”Esta profecia é uma das mais notáveis dignas de admiração das quais se tem visto e como está importante
conferidas não deixa de causar admiração porque no mundo raras vezes a clamar hum povo de um Reino sem
contradição(...)Foi El Rey D. Felipe jurado e aclamado rei de Portugal, El Rey D. João 4 – também jurado e
aclamado e conduzido ao trono que era seu por herança e foi também Rey de Portugal, pois El Rey D. Sebastião
também havia sido jurado e aclamado Rei de Portugal: aqui estão três reis jurados e aclamados de Portugal, todos
vivos; nesta parte está a profecia cumprida e no mais quando diz: ‘Hum coroado foi vencido/Estará encoberto/Por
mostrar que não era esquecido.’/Diz que um dos três foi vencido./Ficará encoberto por ser Imperador como dizem
outras profecias vejam agora qual dos três Rey nomeado vencido e está encoberto que a parte da profecia estar por
cumprir quando diz:‘ Este é pois quem eu digo/Este que chegado será/Este que outro lhe tirará/Seu partido como
amigo/E mil vitórias fará.’/Vem a dizer que quando aquele rei encoberto digno se fala será chegado quando outro
lhe tivesse partido como amigo o qual se entende como outro Rey coroado ou jurado como os outros parece que se
podia acomodar os outros dois governos vivos de mãe e filho e com o Encoberto trez como se podo escolher de
santo Isidoro quando diz: Vejo entrar uma dama/ Com armas assim carvalho/Em que ressuscita/saindo de uma
campina/Damas sem armas só.
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
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De acordo com Leite, João Antônio dos Santos era detentor de forte poder de persuasão:
o mameluco era homem sagaz, astuto e manhoso, e sabia insinuar-se no ânimo
das pessoas a quem comunicava os mistérios, de que se inculcava depositário.
Falava a cada um numa gíria especial, e sempre em linguagem adaptada à
capacidade, inteligência, e interesses daqueles em quem pretendia incutir suas
doutrinas (LEITE, 1903, p. 221).
João Antônio contava com a ajuda de seus familiares - pai, irmãos, tios. Todos “iam dar o
testemunho das riquezas e fazer repercutir os seus engenhosos embustes no meio das populações
ignorantes de Piancó, Cariri, Riacho do Navio, e margens do Rio São Francisco” (LEITE, 1903,
p. 222). Logo conseguiu inúmeros seguidores. Veio gente da redondeza e também de terras
distantes, por onde a história se espalhou, alimentada pela esperança de obter as maravilhas que o
profeta não cansava de prometer com o retorno de D. Sebastião: as pessoas negras ficariam
“alvas como a lua, imortais, ricas e poderosas; se eram velhas, vinham moças, e da mesma forma
ricas, poderosas, e imortais, com todos os seus” (LEITE, 1903, p. 229). O mentor dos
sebastianistas sertanejos também angariou entre os “fazendeiros do lugar bois, cavalos e dinheiro
em porção não pequena com a onerosa condição de restituir-lhes logo que operasse o pretenso
desencantamento do misterioso reino” (LEITE, 1903, p. 229).
Conta Antônio Áttico de Sousa Leite que João Antônio se apaixonou por uma moça do
lugar, chamada Maria. Porém, os familiares da pretendida não aceitavam o casamento dos dois.
Para convencê-los, João utilizou-se mais uma vez dos versos contidos no folheto que diz:
Quando João casasse com Maria, Aquele reino se desencantaria (LEITE, 1903, p. 221)19. As
pregações do visionário João Antônio tanto conseguiam êxito ao arregimentar seguidores, como
também foram decisivas para que ele conquistasse a família de Maria e se casasse com ela.
Mas atraía também sobre si a reprovação da cúpula da igreja católica. Assim é que o padre
Antônio Gonçalves de Lima, apoiado pelos fazendeiros da região, tratou de reclamar a presença
do missionário Pe. Francisco Correa naquele distrito, a fim de abrir uma missão especial para
combater a seita em seus fundamentos, desmascarar o impostor em suas pretensões e livrar o
pobre povo das garras do falso profeta. A missão do Padre Francisco surtiu efeito. João Antônio,
diante da presença do missionário, entregou-lhe as duas pedrinhas, “que estavam longe de ser
brilhantes e depois de confessar publicamente seus embustes” (LEITE, 1903, p. 229), retirou-se
para os sertões dos Inhamuns, no vizinho estado do Ceará, com Maria.
Como veremos no último capítulo, Araripe Jr. utiliza esses versos para nortear a trama do romance O Reino
Encantado.
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Porém, João Ferreira, um dos seguidores do profeta, assumiu a liderança do grupo, se
autoproclamou rei e distribuiu os demais títulos de nobreza às pessoas do grupo. Foi instituído
um clero. Por isso todos os casamentos e demais atos religiosos eram presididos por um padre
escolhido entre eles, chamado Frei Simão. A poligamia era permitida e se instituiu uma antiga
prática medieval: o rei acompanhava a noiva em sua primeira noite de núpcias.
Sempre que os súditos pediam para ver D. Sebastião e as riquezas que ele lhes reservava,
o suposto rei distribuía entre eles um composto de jurema e manacá, ervas de comprovado poder
alucinógeno, facilmente encontradas na região, adicionadas a aguardente. Sob o efeito da mistura,
todos eram capazes de ver D. Sebastião.
Em certa ocasião, o rei chamou seus súditos para dizer-lhes que D. Sebastião estava triste
e que era preciso lavar as pedras com sangue para que houvesse logo o desencantamento.
Portanto, alguns deveriam ser sacrificados. Mas, logo que EL-Rei D. Sebastião voltasse,
devolveria a vida a todas essas pessoas. Por essa causa, vários adultos se ofereceram para o
sacrifício e ofereceram também seus filhos. A partir daí, muitos foram sacrificados.
Vendo aquela carnificina, um dos membros do grupo, um vaqueiro chamado José Gomes
Vieira, fugiu para a vila mais próxima, contatou o chefe político do lugar, Manoel Pereira da Silva,
e narrou os fatos ocorridos no sítio Pedra Bonita. Este reuniu alguns homens e partiu em direção
à Pedra do Reino, ainda meio descrente em toda aquela história contada pelo vaqueiro. Chegando
lá, encontraram o rei João Ferreira, “O Execrável”, morto. Seu substituto, Pedro Antônio, irmão
do primeiro profeta, João Antônio, juntamente com os seguidores sobreviventes estavam num
lugar um pouco afastado das pedras, dado o estado de decomposição das vítimas, aguardando o
desencantamento de D. Sebastião. Contudo, quem apareceu foi o grupo de Manoel Pereira da
Silva.
Promoveu-se uma batalha entre a tropa de Manoel Pereira da Silva e os adeptos da seita,
resultando na morte da maioria dos homens sebastianistas e na prisão de todos os sobreviventes,
que foram levados a Flores. Na sede do município, mulheres e crianças foram distribuídas entre
as famílias do lugar e os homens foram levados a julgamento.
O primeiro profeta, João Antônio, foi perseguido e morto pela polícia na Bahia, lugar
para onde ele havia se mudado com Maria.
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
1.2. Representações da história da Pedra do Reino
Em Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro afirma que o “segredo da verdade é o
seguinte, não existem fatos, só existem histórias”. A assertiva nos lembra que o acesso direto aos
fatos passados está irremediavelmente perdido; se entramos em contato com eles, será sempre
mediado pelos textos. Desse modo, fazemos coro a Chartier que considera os discursos
históricos como representações.
Compreendemos que as histórias da Pedra do Reino, contadas por Antônio Áttico de
Souza Leite e pelos demais autores, são algumas das muitas representações possíveis do fato
histórico. Entretanto, observaremos que os autores que escreveram sobre Pedra do Reino depois
de Leite tomam Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado como se
fosse a verdade absoluta e definitiva.
Já dissemos que o memorial de Leite é tomado como fonte das demais obras que se
seguiram a ele. Isso se constitui um problema à medida que elas partem do princípio que a
narrativa representa a totalidade dos fatos ocorridos em Pedra do Reino.
Para uma compreensão mais criteriosa da obra de Leite, julgamos necessário reproduzir as
noções de passeidade e de narrativa histórica defendidas por Leenhardt e Pesavento (1998, p. 1011). São conceitos bem distintos. O primeiro, refere-se ao “real acontecido”, a exemplo da
história da Pedra do Reino. O segundo é o “discurso ou texto elaborado pelo autor sobre aquela
passeidade”, caso da obra de Leite e tantas outras.
O movimento messiânico de Pedra do Reino é a passeidade. É o que de real aconteceu
nas imediações do sítio histórico, entre os anos de 1836 e 1838, e seus desdobramentos. Já a
narrativa histórica compõe-se de parte dos ofícios, do memorial de Leite e das demais obras das
ciências sociais que se ocuparam do tema. Leenhardt e Pesavento (1998, p. 06) entendem que
“assumir este posicionamento implica em endossar a presença de tensões e/ou conflitos, tanto
entre os horizontes de representação como aquele que se dá entre o caráter irredutível do fato e
atribuição de sentido que lhe dá o historiado”. O postulado leciona que a narrativa histórica é um
discurso que reelabora a passeidade, uma representação. Michel de Certeau (2002, p. 65-9)
assegura que toda representação do passado, seja ela qual for, não parte de um não lugar social e
temporal, muito pelo contrário, toda representação parte de um lugar social e temporal carregado
de interesses, e influências. Toda a produção historiográfica sobre a Pedra do Reino marcou-se
pelo "lugar social" do discurso: não se podendo esquecer quem falava e de onde falava.
Se assim consideramos, é possível afirmar que é um equívoco perpetuar a ideia de que o
memorial de Antônio Áttico de Souza Leite corresponde à passeidade. Ocorre que esta é a
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
compreensão corrente, desde os autores que sucederam Leite nos estudos de Pedra do Reino até
hoje.
A partir da compreensão da passeidade versus narrativa histórica, a leitura do memorial de
Leite suscita questões importantes. A saber: quais os propósitos históricos de Antônio Áttico de
Souza Leite ao trazer à luz a história de Pedra do Reino? Quais as representações do autor sobre
o movimento de Pedra do Reino? E dos líderes? Dos rituais? Dos sebastianistas de Pedra do
Reino? Que representações demandam a Igreja Católica e o Estado? Como Leite se apropria e
representa os atores de Pedra do Reino e suas práticas? As mesmas interrogações servem para os
demais autores que se apropriaram e representaram a história de Pedra do Reino, os romancistas,
inclusive.
1.3. Antônio Áttico de Souza Leite e suas representações
1.3.1. Uma obra em três edições
Houve três edições de Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino
encantado na comarca de Villa Bella província de Pernambuco. A primeira data de 1875 e foi
publicada pelo Instituto Tipográfico de Direito. Não localizamos nenhum exemplar da edição
inaugural nas bibliotecas que consultamos, nem mesmo em acervos importantes como o da
Biblioteca Nacional, Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, Biblioteca da
Fundação Joaquim Nabuco, só para citar algumas.
Melhor sorte tivemos ao localizar a 2ª edição, no setor de obras raras da Biblioteca
Nacional. Publicada em 1898, 23 anos depois da primeira edição, há na contracapa a informação
de que a obra inclui um “juízo crítico do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe”, pai de Araripe
Jr.[Figura 2]
O prefácio do Conselheiro Tristão, na verdade, era uma carta dirigida ao Monsenhor
Joaquim Pinto de Campos, a quem o remetente se dirige como amigo. As palavras iniciais do
Conselheiro Tristão se assemelham às de um parecerista: “Li o opúsculo que deu-me para
examinar e conhecer seu valor histórico. Julgo digno de publicidade o fato extraordinário, de cuja
narrativa ocupa-se o autor do mesmo opúsculo” (ARARIPE, 1875, 07).
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Capítulo 1
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Convém realçar que, para boa parte do pensamento brasileiro do período, havia
inequívoca autoridade no discurso do Conselheiro Tristão. Filho de família abastada do Ceará,
desde que se tornou bacharel em Direito na Universidade de São Paulo, em 1845, prestou serviço
à área jurídica, por 53 anos, precisamente até 1898, quando se aposentou. A trajetória de Tristão
Alencar Araripe é um exemplo que se reproduziu para tantos outros brasileiros “bem nascidos”
como ele. Para José Murilo de Carvalho, a elite se distinguia por possuir estudos superiores,
sobretudo na área jurídica, o que acontecia com pouca gente fora dela: “a elite era uma ilha de
letrados num mar de analfabetos” (CARVALHO, 2007, p. 65). Ocupou cargos de destaque na
Monarquia além de ser eleito conselheiro do rei, por decreto de 24 de janeiro de 1874, e agraciado
com o oficialato da Ordem da Rosa; e na República, escolhido Ministro do Supremo Tribunal
Federal, em 1890, cargo que ocupou até se aposentar, aos 72 anos. O Conselheiro Tristão ainda
integrou agremiações culturais, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro20.
No prefácio, o Conselheiro Tristão elenca razões para se compreender a Pedra do Reino.
Uma delas é que “cumpre ao homem pensador estudá-lo para conhecer toda debilidade do
espírito humano e cogitar os remédios de seus desvarios”. O Conselheiro Tristão dividiu os
homens em ilustrados e, no que seria o contrário deles, os de espírito débil, os desvairados, a
quem os primeiros deveriam socorrer com seus remédios.
Outro aspecto questionado é o da veracidade dos fatos, tal qual eles foram recontados
por Antônio Áttico de Souza Leite. O fato, nos dizeres do Conselheiro Tristão, se constitui em
“tão singular desvio da razão e dos sentimentos do homem que desafiaria a incredulidade, se o
sucesso não fosse dos nossos dias, se as provas não fossem tão autênticas e robustas, e se, agora
mesmo, não estivesse presenciado aberrações do espiritismo” (ARARIPE, 1898, p. 7-8).
20O
conselheiro Tristão de Alencar Araripe (1821-1908) tem uma vasta obra literária, histórica e jurídica publicada, as
vezes com o pseudônimo de Philopoemen. Algumas de suas obras mais importantes são História da Província do Ceará
(desde os tempos primitivos até 1850); A questão religiosa (1873); Como cumpre escrever a história pátria (1876); Patriarcas da
Independência (1876); Consolidação do processo criminal do Império do Brasil (1876); Primeiras linhas sobre o processo orfanológico
(1879); Pater-famílias no Brasil nos tempos coloniais (1880); Visconde do Rio Branco na Maçonaria (1880); Guerra civil no Rio
Grande do Sul (1881); Notícias sobre a maioridade (1882); 25 de março. O Ceará no Rio de Janeiro (1884); Classificação das leis do
processo criminal e civil (1884); Código Civil Brasileiro (1885); Neologia e Neografia Geográfica do Brasil (1885); Expedição do
Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão (1885); Independência do Maranhão (1885); Movimento colonial da América (1893);
Primeiro navio francês no Brasil (1895); Cidades petrificadas e inscrições lapidares no Brasil (1896); Primazias do Ceará (1903).
Traduções: Ataque e tomada da cidade do Rio de Janeiro pelos franceses em 1711, sob o comando de Duguay-Trouin; Vida do Padre
Estanislau de Campos; História de uma viagem à terra do Brasil, por João de Leri; Relação verídica e sucinta dos usos e costumes dos
Tupinambás, por Hans Staden; Comentários de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, por Pedro Fernandes; História do Ceará – 2ª
Parte.
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
O Conselheiro Tristão considera Pedra do Reino como um movimento socialista. De
todos os juízos críticos que ele faz, esse é que mais merece relevo. O Conselheiro Tristão
entendeu que em Pedra Bonita, além de fanatismo, transparece um pensamento socialista:
No acontecimento de Pedra Bonita não operou somente o fanatismo religioso; ali
transparece também o pensamento socialista. Além do sacrifício de criaturas humanas,
(...) havia o sacrifício de cães, verdadeiros molossos, que no dia do grande evento,
levantar-se-iam como valentes e idômitos dragões para devorar os proprietários.
Aqueles que pretendiam a destruição dos proprietários pelos seus dragões, não
refletiam que seriam eles mesmos as vítimas porque, se lutavam obstinadamente, o
faziam para ressurgir fortes, ricos e poderosos. Tal é a contradição do espírito humano!
O sofrimento atual suscitava nesses visionários o ódio contra o poder e a propriedade,
suprimindo-lhes a lógica (ARARIPE, 1898, p. 9).
O prefaciador entendia que, em lugar de desvalorizar a propriedade e o proprietário,
necessário era valorizar o trabalho. Este não destrói a riqueza:
antes, cria novas fortunas, tirando da miséria e dando gozo a quem produz, e não a
quem somente aniquila. No horrível drama de Pedra Bonita, revela-se claramente o
proletarismo, que ergue-se contra o trabalho e a riqueza, bases da sociedade civilizada e
fundamento da grandeza dos povos (ARARIPE, 1898, p. 10).
O texto do Conselheiro Tristão é de 30 de junho de 1875. Saltam aos olhos as discussões
envolvendo proletarismo, poder, luta de classe e destruição da propriedade, uma vez que
demonstra que a difusão de ideais socialistas é de pelo menos 47 anos antes da fundação do
Partido Comunista Brasileiro, em 25 de março de 1922. A formulação política seria, então, um
pioneirismo? De que forma o Conselheiro Tristão tomou contato com essas ideias, uma vez que
terminologias que ele adotou denotam uma leitura prévia sobre o tema? Para responder questões
dessa natureza, seria necessário, por exemplo, consultar a biblioteca pessoal do Conselheiro
Tristão de Alencar Araripe, doada à biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na
tentativa de historiar seu percurso como leitor. Ou mesmo ler outras obras produzidas por ele, a
fim de localizar novas incursões sobre o comunismo, dando especial atenção aos artigos que o
Conselheiro Tristão publicou em jornais e outros periódicos do Rio de Janeiro, do Ceará e de
outras províncias onde trabalhou. Acontece que as atividades desviariam o olhar do tema da
nossa pesquisa e, por isso, consideramos um preciosismo desnecessário.
Localiza-se ainda na 2ª edição um item intitulado “A quem lê”. É uma espécie de
apresentação, escrita por Solidônio Leite (1898), filho de Antônio Áttico de Souza Leite, que já
havia falecido. Solidônio justifica duplamente a publicação de uma segunda edição da obra do pai.
Primeiro, para reparar a grave falta que o editor Monsenhor Joaquim Pinto de Campos cometeu
41
Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
ao não publicar nela uma estampa explicativa, uma gravura cuja autoria é atribuída ao Pe. Manoel
Correa.
De fato, consideramos a lacuna relevante, uma vez que, no capítulo 12, Antônio Áttico de
Souza Leite elabora uma sucessão de 17 legendas explicativas da estampa compreendida como
uma síntese da história de Pedra do Reino. Segundo, desejava o autor da apresentação atender o
desejo legítimo do pai de preencher tal lacuna e de corrigir a ortografia. Solidônio Leite descartou
a segunda alternativa porque o manuscrito se perdeu, mas se propôs a satisfazer parte do desejo
do pai, mesmo que em memória.
Ainda na apresentação, Solidônio Leite informa que operou duas alterações naquela 2ª
edição. Incluiu a estampa que um de seus irmãos localizou no IAHGP, cuja publicação muito
dependeu do apoio do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, o prefaciador da obra; assim
como, mudou o título original de Memória sobre Pedra Bonita ou Reino Encantado para Fanatismo
religioso. Solidônio Leite conclui o texto assinando-o e especificando o local e a data de seu texto:
Juiz de Fora, janeiro de 1898.
Eis a estampa cuja autoria é atribuída ao Pe. Correia. O desenho serviu de inspiração para
outras representações imagéticas das pedras do reino21. [Figura 3]
21
DESENHO DA PEDRA ENCANTADA, E DO MAIS QUE VI, INDAGUEI, E FUI TESTEMUNHA
OCULAR NOS DIAS 19 E 20 DE OUTUBRO DE 1838 (desenho feito no local pelo padre Francisco José Correa
de Albuquerque e notas de seu punho.) Nº 1- Formatura das duas pedras com a frente para o nascente sobre a serra
do Catolé, que está em nove graus meridionais desta para o Piancó, para o Jardim e para o Pajeru. Nº 2- João Pilé
tendo nos braços uma menina para subir ao céu em corpo e alma por ordem do Rei Santidade João Ferreira; e,
dando um salto, veio do rochedo abaixo; morre a menina, e ele ficou maltratado. Gritavam as mulheres — viva! viva!
quem dera que fosse eu. Nº 3- Os cadáveres de quatorze cachorros que deviam ressuscitar como feras para acabar os
que não davam crédito. Nº 4- Vinte e oito cadáveres de meninos de um ano a oito arrumados como se vê. Nº 5- A
pedra onde se fazia o sacrifício da matança. Nº 6-Dez cadáveres de mulheres e dois dos filhinhos que duas tinham
no ventre. Nº 7- A sepultura em que enterrei esses cadáveres. Nº 8- O cadáver do rei João Ferreira morto pelo filho
de Gonçalo José, que lhe tomou a coroa e ficou sendo D. Pedro I. Nº 9- A figura do Rei Santidade em fralda de
camisa e uma coroa de cipó na cabeça. Nº 10- O algoz que dava a primeira pancada sobre a cabeça da vítima, e o rei
dois talhos, depois degolava. Nº 11- Dez cadáveres dos que morreram, entre estes se achavam os cadáveres das duas
rainhas D. Joana, senhora do rei, com a qual se casou, e D. Joaquina, filha desse Gonçalo José, com a qual se casou
sua Santidade no mesmo dia. Nº 12- Dez cadáveres de dez homens que foram sacrificados de sua boa e livre
vontade. Nº 13- Uma mulher de joelhos esperando a morte com a pancada e as duas cutiladas. Nº 14- Uma mulher
entregando a filhinha ao sacrifício.
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Cabe destacar que a edição de 1898, publicada pela tipografia Matoso, de Juiz de ForaMG, é dedicada ao editor da obra: “Ao Exmo. Sr. Monsenhor Joaquim Pinto de
Campos(...)DEDICA em sinal do respeito, amizade e gratidão que lhe vota. O AUTOR”
(LEITE, 1898, p. 03).
Já na última edição, de 1903, em que o texto passou a integrar o número 47, da Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, o memorial é dedicado a Manoel Pereira da
Silva, comandante da tropa que debelou o movimento de Pedra do Reino:
AO COMENDADOR DA ORDEM DA ROSA MANUEL (sic) PEREIRA DA
SILVA, seu amor às instituições era o mais ingênuo; sua lealdade política, um modelo;
sua dedicação ao serviço público, uma abnegação dos próprios interesses. Em uma
palavra, ninguém melhor do que ele compreendia os deveres do cidadão; e nenhum
cidadão prestou ainda no interior de Pernambuco tão relevantes serviços no espaço de
trinta anos de vida pública (LEITE, 1903, p. 249).
As dedicatórias são sintomáticas. Ambas antecipam a tendência de Antônio Áttico de
Souza Leite em atuar em duas frentes: a primeira tendia a repudiar o caboclismo, ao passo que a
segunda se esmerava em exaltar representantes do Estado e da Igreja Católica, prática discursiva
que vai ser reforçada ao longo do memorial.
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
1.3.2. A legitimação do Estado brasileiro
Conforme já indicamos na introdução, Antônio Áttico de Souza Leite assevera que seu
maior objetivo ao escrever o memorial era o de prestar serviço ao Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico de Pernambuco. A afirmação indica compromissos com orientações do
IHGB- Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição cujos objetivos foram delineados
ainda em 1838, ano de sua fundação. Herdeiro muito próximo de uma tradição iluminista por
inspirar-se nas academias francesas - as academias provincianas, inclusive - o primeiro estatuto do
IHGB rezava que deveria estabelecer relações com instituições congêneres internacionais e
incentivar a criação de institutos históricos nas províncias.
A intenção do IHGB era fomentar a composição historiográfica da recém fundada Nação
brasileira. Assim como interessava concentrar no Instituto informações sobre as diversas regiões
do Brasil e da capital do império, irradiasse as luzes do conhecimento para o restante do País.
Nesse aspecto, é flagrante a filiação do Instituto às academias francesas, conforme assevera
Manoel Salgado Guimarães, no artigo “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”:
da mesma forma que as academias literárias e científicas provinciais francesas do século
XVIII articulavam-se na teia mais ampla do processo de centralização levado a cabo
pelo Estado, sediado em Paris, do Rio de Janeiro as luzes deveriam expandir-se para as
províncias. Integrando-as ao projeto de centralização do Estado e criando os suportes
necessários para a construção da Nação brasileira (GUIMARÃES, 1988, p. 08).
O IHGB partiu da noção de que o Brasil representava a idéia de civilização do Novo
Mundo. A definição também implicava em estabelecer os contrapontos externos e internos ao
projeto de Nação brasileira. Os externos não eram a Europa como um todo nem Portugal em
particular, mas sim as vizinhas repúblicas da América do Sul, por adotarem uma forma de
governo diferente do Brasil, que continuou monárquico. Já o contraponto interno era o
caboclismo, expressão que se referia a tudo aquilo que não representasse a cultura branca e
europeizada.
Na imagem de Nação que o Instituto se dispôs a compor, o Brasil devia, portanto,
representar, do lado de cá do Atlântico, uma civilização branca e européia. Tarefa que, nos
dizeres de Guimarães, exigiria “esforços imensos, devido à realidade social brasileira muito
diversa daquela que se tem como modelo”. As dessemelhanças se constituíam, sobretudo, pelo
amalgamento étnico dos brasileiros. Anos antes, ao discutir as dimensões políticas que
culminaram em setembro de 1822, José Bonifácio antevia uma dificuldade em incluir num
mesmo projeto tanta heterogeneidade: “amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
heterogêneo como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. etc., em um corpo
sólido e político"22.
Os membros do IHGB integravam o que Bonifácio denominou de corpo “político
sólido”. A maioria compunha o aparelho do Estado.
Dos 27 membros iniciais, 12 eram conselheiros de Estado – deste grupo, 7 eram
também senadores –, 1 era exclusivamente senador, 3 eram professores (2 do recémfundado Colégio Pedro II e 1 da Academia Militar); havia ainda outros membros
ligados à burocracia estatal: desembargadores, funcionários públicos, militares, um
pregador imperial (caso de Januário da Cunha Barbosa). Aparecem apenas 2 advogados
(sem qualquer outro indicador de cargo público), 1 comerciante e 1 engenheiro(...)De
maneira geral, pode-se afirmar que o perfil dos membros que engrossaram as fileiras do
IHGB foi este: elementos oriundos da burocracia estatal, logo comprometidos com a
ordem que representavam, apesar do Instituto se definir como instituição políticocultural – apartada, desse modo, dos debates políticos. A hegemonia estabelecida pelos
membros do IHGB – que representavam também a elite pensante – era dupla,
estendendo-se pelo Estado e pela sociedade civil, na qual possuíam ativa participação
como clérigos, jornalistas e professores. Destacava-se aí o papel da escola, canal de
formação dos filhos da elite – por conseguinte, de reforço do cimento ideológico – e,
consequentemente, de difusão dos valores dominantes pela sociedade (CARALLI,
2001, p. 1).
Antônio Áttico de Souza Leite, já sabemos, pertencia ao Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico de Pernambuco. O IAHGP foi o primeiro dos institutos provinciais,
fundado em 1862. O memorial de Leite colocou em prática as premissas do IHGB: a de
sublinhar os feitos de homens de ascendência branca e européia; ao mesmo tempo que repudiou
elementos da cultura indígena e africana.
O autor do memorial não esconde seus compromissos com as orientações do IAHGP.
Nele há, por exemplo, o flagrante propósito de elogiar pelo menos dois potentados cujas
participações em Pedra do Reino foram capitais. Um, o Padre Francisco Correa, representante da
Igreja Católica; o outro, Manoel Pereira da Silva - além de fazendeiro abastado, representava o
Estado, ocupando o posto de comissário de polícia, e ostentava a patente de major - foi o
comandante da tropa que debelou o movimento.
Leite não economizou elogios a Manoel Pereira da Silva. Segundo ele, era:
fazendeiro rico e abastado por si e sua numerosa família, não era contudo o ouro que o
considerava e distinguia entre seus concidadãos, mas sim um complexo de qualidades
raras e de virtudes cívicas e moraes, que dificilmente se encontraram reunida no mesmo
indivíduo (LEITE, 1903, p. 231).
22Citado
por DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808- 1853). Em: MOTA, Carlos Guilherme (org.)
1822:Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 174
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Nos parágrafos subsequentes, o autor continua a enaltecer Manoel Pereira da Silva: bom
pai, bom filho, bom irmão; amava as instituições a quem prestou serviço por 30 anos.
1.3.3. Elogio à Igreja Católica
Antônio Áttico de Souza Leite dedica parte de seu texto para exaltar a participação da
Igreja Católica em Pedra do Reino. Em nome da Igreja, o Padre Manoel Correia de Albuquerque
repudiou e colaborou significativamente para debelar o movimento. Por isso, Leite revela uma
espécie de devoção pelo que o padre fez. Padre Correia é assim apresentado:
um dos homens mais distintos e conceituados do país: como cidadão, tinha
representado esta província na Assembléia provincial, e como sacerdote havia
encarnecido no serviço das missões, que lhe conquistou o mais elevado conceito pela
pureza de suas doutrinas, santidade de sua vida, e austeridade de suas virtudes (LEITE,
1903, p. 219-20).
Padre Correia figurou em dois momentos importantes da história de Pedra do Reino: em
1836 e, depois, em 1838. Em 1836, liderou uma missão cujo intuito era o de se reunir com João
Antônio dos Santos e dissuadir o movimento. O encontro aconteceu na fazenda Cachoeira,
localizada nas imediações de Pedra do Reino, de propriedade de Simplício Pereira da Silva. No
encontro, João Antônio entregou as pedrinhas brilhantes ao religioso, confessou publicamente o
que Leite denomina embustes e prometeu retirar-se do lugar.
Em julho de 1838, Padre Correia toma nova participação nos sucessos de Pedra do
Reino. O missionário toma para si a responsabilidade de sepultar os sebastianistas mortos. O
feito é narrado no memorial como prova de abnegação e santidade e Leite dedica a totalidade do
capítulo IX para enaltecer Padre Correia.
Segundo Leite, padre Correia não estava em Flores entre 14 e 16 de maio de 1838. O
cronista sublinha o estado de aflição e espanto pelo qual o missionário sofreu “quando lhe
informaram que, apesar da sua abnegação e esforços, as doutrinas do mameluco tinham
produzido todos os seus efeitos naturais, atingindo resultados porventura mais trágicos e
funestos” (LEITE, 1903, p. 241).
Dois meses depois dos acontecimentos de Pedra do Reino, Pe. Correia foi ao sítio
histórico para missionar e sepultar os mortos. Conta o cronista que o grande lago de sangue em
volta das pedras “converteu o santo missionário em uma grande sepultura, na qual, com as
próprias mãos e entre lágrimas, encerrou toda a ossada dos mortos, esparsos fragmentos escapos
aos vermes e à rapacidade dos corvos, no curto espaço de dois meses” (LEITE, 1903, p. 241).
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Padre Correia ordenou que erguessem uma cruz por sobre a sepultura coletiva. “Mandou
o caridoso missionário a colocar uma grande cruz de madeira tosca, que ainda hoje se conserva e
testifica que ali jazem os restos mortais das vítimas da horripilante tragédia” (LEITE, 1903, p.
242). Segundo Alcir Lenharo, a simbologia da cruz é revestida de muitas significações. Dentre
elas, a ordem sobre a desordem (LENHARO, 1986, p. 172).
Por fim, o cronista menciona que Padre Correia desenhou uma estampa que, segundo o
padre, retratava os acontecimentos em Pedra do Reino. “Com sua própria mão, para servir de
lição aos vindouros, [desenhou] as pedras, o campo e a ossada das vítimas, tal qual encontrara,
assim como alguns episódios mais trágicos ali sucedidos, que a estampa patenteia e ele tanto se
esforçara por evitar” (LEITE, 1903, p. 241).
O original do desenho encontra-se no IAHGP. Compõe-se do desenho das pedras, dos
cadáveres e retrata cenas importantes como o rei pregando no púlpito; a morte de Isabel e seu
parto depois de morta; João Pilé se precipitando de uma das pedras agarrado a seus netos.
Antônio Áttico de Souza Leite criou uma legenda para o desenho e reservou o último capítulo do
memorial para explicar a estampa.
Caridoso, abnegado, santo missionário: sublinhemos aqui as designações elogiosas que
Antônio Áttico de Souza Leite atribuiu ao religioso. Muito diferentes, porém, são os adjetivos
que o mesmo autor destina aos sebastianistas.
1.3.4. O repúdio ao caboclismo
O autor é verdadeiro devoto dos poderosos do lugar. Ao longo do memorial, Leite
reafirma sucessivas vezes essa condição, porém o mesmo não se pode dizer de sua opinião a
respeito dos sebastianistas. Em relação aos últimos, ao contrário, há uma clara repulsa aos líderes,
à crença sebastianista, aos rituais, enfim, a tudo o que se refere ao movimento de Pedra do Reino.
Ao que tudo indica, trata-se de um repúdio ao caboclismo.
O caboclismo é um termo cunhado por Francisco Adolfo de Varnhagen, no texto
“Notícia do Brasil”, de 1838, e desenvolvido por Carl Friedrich Philipp von Martius (1845), em
Como se deve escrever a história do Brasil. A obra de Martius venceu um concurso de dissertação
promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1842, que tinha como objetivo
colher ideais de como escrever a história da recente nação brasileira. Com a dissertação, Martius
lançou boa parte das bases que compuseram a historiografia brasileira. No que tange ao
caldeamento étnico, a ideias que presidiu Como se deve escrever a história do Brasil foi a de que, ainda
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
que se faça referência “às raças Etiópica e Índia”, “nos pontos principais, a história do Brasil será
sempre a história de um ramo de portugueses” (MARTIUS, 1845, p. 398-399).
Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado alinha-se aos
preceitos de Martius. Perpassa por toda obra um repúdio a tudo que se origina de indígenas e
africanos. Sempre que Leite faz referência aos líderes dos sebastianistas, por exemplo, destaca sua
origem étnica. João Antônio, o primeiro a propalar a crença entre os sebastianistas de Pedra do
Reino, é sempre apresentado como mameluco. Somam-se a essa outras designações pejorativas,
tais como embusteiro, sagaz, astuto, manhoso, ao passo que suas práticas são “engenhosos
embustes” ou “patranhas” capazes de “embair os mais crédulos e ignorantes” (LEITE, 1903, p.
222).
No memorial, Leite descreve a prática de rituais de origem indígena em Pedra do Reino,
tal como a ingestão de mistura de ervas alucinógenas e o fumo de cachimbos como parte do que
ele considerava embustes dos líderes sebastianistas: “eles fumavam cachimbos e bebiam o vinho
encantado (...) certa composição de jurema e manacá muito usada pelos selvagens e pelos
curandeiros de feitiço e de mordeduras de cobra; tem propriedade do álcool e ópio” ( LEITE,
1903, p. 228).
A despeito do repúdio ao caboclismo, Antônio Áttico de Souza Leite descreve também
parte dos sonhos apocalípticos dos sebastianistas. Eles desejavam viver um paraíso terrestre, em
meio à fartura, liderados por D. Sebastião, um rei bom e justo, cuja vinda lhes traria ascensão
social tanto pelas riquezas como também pelo branqueamento da pele.
1.3.5. Representações do reino da Pedra do Reino, segundo os sebastianistas
É tarefa relativamente fácil identificar as apropriações e representações dos potentados
frente aos sebastianistas. Dos primeiros, encontramos registros via documentos oficiais, crônicas,
textos de viajantes. Da outra parte, ainda hoje não tivemos acesso a depoimentos ou qualquer
outro registro dos próprios sebastianistas sobre o movimento de Pedra do Reino. Se há uma ou
outra menção às representações dos sebastianistas ao fato histórico, são sempre mediadas pelo
discurso dos potentados, a exemplo dos documentos oficiais e do memorial de Leite. Isso posto,
só há duas maneiras de identificar e compreender as representações dos sebastianistas sobre o
movimento messiânico de Pedra do Reino, sobre D. Sebastião, sobre si próprios e sobre seus
líderes. Uma, é através dos discursos produzidos pela historiografia, costurados por
compromissos políticos visivelmente contrários ao caboclismo; ou ainda, lançando mão dos
conhecimentos sobre o não-dizer, termo cunhado por Eni Orlandi (2007).
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Para Orlandi, o silêncio indica que para dizer é preciso não-dizer, e que é a inserção dos
sujeitos discursivos nas formações discursivas historicamente determinadas que dão sentidos ao
dizer. O não-dizer, segundo ela,
se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos
possíveis, mas indesejáveis, [...] produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz
[...] a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz
“x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o nãodito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos
que poderiam instalar um trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva,
uma “outra” região de sentidos [...] determinando consequentemente os limites do dizer
(ORLANDI, 2007, p. 73-74).
Importante ressalvar que o silêncio não é o implícito, e sim o sentido apagado ou excluído
(ORLANDI, 2007, p. 102). É esse silêncio constitutivo que trabalha os limites e a constituição
das formações discursivas, determinando os limites do dizer. Isso mostra que o dizer e o
silenciamento são inseparáveis.
Na tentativa de reavivar os sentidos até então minimizados, apagados ou excluídos, que
damos visibilidade às aspirações, crenças e práticas dos seguidores de Pedra do Reino. Antônio
Áttico de Souza Leite menciona a liderança que João Antônio dos Santos exercia sobre os
sebastianistas. Coube ao líder propalar a crença sebastianista, servindo-se de um conjunto de
argumentos, inclusive de um bem cultural como a leitura. Segundo Leite, João Antônio dos
Santos não só falava de D. Sebastião, como também lia e exibia aos seus liderados um antigo
folheto português que assegurava o retorno de D. Sebastião.
Esse aspecto da história de Pedra do Reino nos remete a Roger Chartier (1991), para
quem é essencial compreender como um mesmo texto pode ser diversamente apreendido,
manipulado e compreendido por uma comunidade de leitores. As apropriações dos textos, “a
operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) são processos
historicamente determinados cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os
lugares, as comunidades”. Assim como “as significações múltiplas e móveis de um texto
dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes)”
(CHARTIER, 1991, p. 07).
Embora não tenhamos bibliografia suficiente para afirmar que havia uma difusão ampla
de folhetos dessa natureza, sabemos que viajantes europeus noticiam a existência de folhetos de
igual conteúdo em outras localidades. Spix e Martius (1976), em passeio nos arredores de Vila
Rica, hospedaram-se na fazenda do guarda-mor Inocêncio. Segundo eles, o hospedeiro era um
dos muitos sebastianistas encontrados no Brasil, local onde havia mais crentes no monarca
49
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
português do que em Portugal. “De fato, ele era um dos adeptos do sebastianismo, os quais
estão sempre à espera da volta do Rei D. Sebastião (...) Estes sebastianistas se distinguem por sua
diligência, economia e caridade, são em maior número no Brasil, e, especialmente em Minas
Gerais, do que na própria mãe pátria”(SPIX; MARTIUS, 1976, p. 218). Os viajantes afirmam que
Sr. Inocêncio tentou persuadi-los ao sebastianismo, apresentando-lhes “grande número de
profecias manuscritas, da futura sorte do Brasil” (Idem).
No Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, localizamos meia
dúzia de textos originais manuscritos sobre D. Sebastião. A saber: (1) Sinais físicos de D.
Sebastião e profecias de Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha, sem data, localizador: II-30,24,035;
(2) "Memoria das cousas del Rey Dom Sebastião", escrito em 1670, Localizador: I-11,02,013;
(3)"MEMORIAS particulares Da Jornada que fez O Serenissimo Senhor Rey Dom Sebastião de
Glorioza Memoria E Outras que purificão a Sempre Lamentável perda da sua pessoa E Exercito
Nos Campos de Africa", escrito em 1722; (4)"CHRONICA de muy alto esclarecido Rey Dom
Sebastiam", sem data, localizador I-13,03,018; (5)"Vida de El Rey D. Sebastião", escrito em 1602,
localizador I-13,03,019; (6) "TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca
do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D. Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas
curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos os curiozos q. são verdadeiramente
[Calholeiros]", sem data, localizador: I-13,01,044. Em páginas anteriores deste mesmo capítulo,
incluímos cópia do “TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do
Encoberto Rey de Portugal”... Trata-se de um folheto longo, com mais de 200 páginas, sobre
Dom Sebastião. É possível que este e os demais citados sejam exemplos dos textos que
circulavam no Brasil, sobre os quais falaram Spix e Martius e Antônio Áttico de Sousa Leite.
Voltando ao caso da Pedra do Reino, perguntamos: como João Antônio dos Santos
adquiriu o folheto mencionado na obra de Antônio Áttico de Sousa Leite? Em que ocasião ele
entrou em contato com a crença sebástica? A historiografia não registrou informações suficientes
para respondermos a essas questões. O que se historia é que o poder de convencimento de João
Antônio dos Santos e da força da leitura de um folheto culminou com a formação de uma
comunidade em torno da Pedra do Reino. Famílias inteiras, oriundas de regiões vizinhas, como
Piancó e Cariri, e de outras mais distantes, a exemplo do Riacho do Navio e margens do Rio São
Francisco, compreenderam que o modus vivendi proposto pelo líder de Pedra do Reino tornaria
suas vidas mais felizes. Sendo assim, é possível dizer que, aos olhos de seus liderados, João
Antônio dos Santos congregava para si a condição de messias lecionada por Maria Isaura Pereira
de Queiroz.
50
Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
O messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o
Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do Paraíso
Terrestre, tratando-se pois de um líder religioso e social. O líder tem tal status não
porque possui uma posição dentro da ordem estabelecida, e sim porque suas qualidades
pessoais extraordinárias, provadas por meio das faculdades mágicas ou estáticas, lhe dão
autoridade; trata-se pois de um líder essencialmente carismático. Assim age graças ao
seu dom pessoal apenas, colocando-se fora ou acima da hierarquia eclesiástica ou civil
existente desautorizando-a ou subvertendo-a, a ruptura da ordem estabelecida podendo
ser breve ou de longa duração (QUEIROZ, 1976, p. 27).
Outra característica dos movimentos messiânicos é de se afirmar como uma força prática.
As transformações desejadas, conforme anota Maria Isaura Pereira de Queiroz, não se operam
exclusivamente pelo poder do líder nem mecanicamente. Não é uma crença passiva ou inerte de
resignação e conformismo. Necessário se faz que os adeptos cumpram as ordens do mentor, já
que, diante do espetáculo das injustiças, cabe ao homem trabalhar para “saná-las, pois sua é a
responsabilidade pelas condições do mundo. E, desde que a crença se ativa, dá então lugar ao
movimento messiânico, que se destina a consertar aquilo que de errado existe (...) Estes
objetivos(...) devem sempre ser religiosamente alcançados, isto é, por meio de rituais especiais
que um enviado divino revela aos homens” (QUEIROZ, 1976, p. 29).
Em suas pregações, João Antônio dos Santos prometia muitas benesses tão logo se
operasse o desencantamento de D. Sebastião. Aqueles que acreditassem e o seguissem: “se pretas,
voltavam alvas como a lua, imortais, ricas e poderosas; e se velhas, vinham moças, e da mesma
forma, ricas, poderosas e imortais com todos os seus. Isaura identificou como uma das
características centrais dos movimentos messiânicos que almejam por fim a ordem presente das
coisas (...) instituindo uma nova ordem de justiça e felicidade”. (LEITE, 1903, p. 229)
Depreende-se que os sebastianistas entendiam que a felicidade perpassava necessariamente pela
obtenção de poder e riqueza, assim como pelo pertencimento à etnia hegemônica. Essa última
revela que a comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino compunha-se de homens
pobres e, sobretudo, de escravos negros e índios.
Maria Isaura Pereira de Queiroz cita Roger Bastide para informar que no Brasil não houve
movimento messiânico negro. “Não houve entre nós, porém nem mesmo um messianismo que
concentrasse as esperanças desta etnia reduzida à escravidão. As revoltas de escravos eram, em
geral, leigas, e em sua fuga formavam comunidades que, ao que se sabe, não ofereciam
características de Paraísos Terrestres” (QUEIROZ, 1976, p. 321-2). Cumpre questionar a
informação e até mesmo considerá-la um equívoco, já que o movimento messiânico de Pedra do
Reino era constituído, em sua maioria, de negros e índios cujas aspirações eram o paraíso
51
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
terrestre. Alcançá-lo correspondia, entre outros benefícios, o branqueamento da pele, tornaremse “alvas como a lua”23.
Eis uma das justificativas para tantos aderirem o movimento. Não se sabe ao certo a
quantidade de adeptos. Leite menciona que eram em torno de duzentas pessoas e que muitos
estavam confiantes nessas promessas.
Segundo Leite, os sebastianistas acreditavam que nas pedras havia um reino encantado.
Conforme atesta Eliade (1990), há quem veja com certo mal-estar certas manifestações do
sagrado.
É-lhe difícil aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em
pedras ou em árvores, por exemplo. Mas (...) não se trata de uma veneração da pedra
como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada,
não são adoradas como pedra ou como árvore, são-no justamente porque são
hierofanias, porque mostram qualquer coisa que já não é pedra nem árvore, mas o
sagrado, o ganz andere. (...) Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada a sua
realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros termos, para
aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revela-se
como sacralidade cósmica. O Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania
(ELIADE, 1990, p. 26).
Avizinhar-se do sagrado significava para os sebastianistas aliar-se ao poder, perenidade e
eficácia. É compreensível que, em nome da religião, os sebastianistas desejassem participar da
realidade e saturar-se de poder.
Câmara Cascudo (1984) afirma que europeus e africanos restabeleceram no Brasil
elementos da litolatria, já praticamente desaparecidas nos países de origem. As pedras eram
dotadas de predicativos divinos na Antiguidade, até que o Concílio de Arles, no séc. V, aboliu
formalmente o culto às pedras. Mas para transformar esse culto gentio em culto cristão, sem
abalos ou resistência, Cascudo leciona que a Igreja Católica conservou alguns de seus vestígios.
“São Pedro, o príncipe dos apóstolos, é a pedra angular da Igreja Católica” (CASCUDO, 1984, p.
596). Ainda instituiu as invocações à Senhora da Pedra, da Penha, do Pilar, da Lapa, do Monte.
Para além das considerações de Câmara Cascudo, relembremos aqui cultos a Nossa Senhora cujas
aparições se deram em grutas, a exemplo de N. S. de Lourdes e N. S. das Graças.
23
Conforme veremos no último capítulo desta tese, no romance O Reino Encantado, Araripe Jr. re-atualiza
ficcionalmente a história de Pedra do Reino, “representado” os sebastianistas como quilombolas e a comunidade que
se formou em torno das pedras como um quilombo.
52
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
1.3.6. As fontes utilizadas por Antônio Áttico de Souza Leite: limites e problemas
Na introdução do memorial, Leite informa ao leitor sua dupla intenção: “satisfazer a
curiosidade própria e de prestar ao mesmo tempo ao Instituto Arqueológico e Geográfico desta
província [de Pernambuco] do qual sou indigno sócio, algum serviço” (LEITE, 1898, p. 15).
Neste caso, atuando com os recursos de sua época, num momento decisivo para a própria
continuidade do estado imperial brasileiro e, por outro lado, inspirado nas orientações emanadas
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro– IHGB – encontrava-se o autor diante do prazer
da curiosidade e ao mesmo tempo diante do dever de ofício, vinculado a uma instituição da qual
se dizia “sócio indigno”.
Por outro lado, para compor seu enredo, Leite utilizou materiais diversos, agrupou
algumas fontes de pesquisa e com um tanto de imaginação narrou o que ele chama de
“memórias”. Cumpre destacar o aspecto seletivo da memória, seja ela individual ou coletiva.
Sobre a memória atuam filtros que a caracterizam como uma versão dentre outras possíveis. Esta
questão implica também em saber como o autor teve acesso às suas fontes de trabalho. Como foi
desenvolvido o processo de localização, seleção, explicação e interpretação dos materiais
disponíveis? Conforme suas próprias palavras:
pude realizar em companhia de 34 pessoas (inclusive muitas senhoras) (...) uma viagem
a antiga Serra Formosa, hoje Serra do Reino a fim de observar de perto a célebre Pedra
Bonita (...) pude reunir ali, se bem que com dificuldade, mais duas testemunhas
presencias, além de um dos emissários da polícia, que depois do combate e completa
extinção do Reino, em dezoito de maio de 1838, seguiu e prendeu no centro da
província de Minas o mameluco João Antônio dos Santos, primeiro rei da Pedra
Bonita. (...) (LEITE, 1898, p. 15).
Então, temos arroladas as testemunhas diretas, presenciais, em número de duas, mais as
testemunhas indiretas, ou que não necessariamente foram testemunhas, mas que acompanharam
o autor em sua ida a Serra do Reino, juntando-se ainda um emissário de polícia que participou do
desmantelamento do reduto sebastianista. Neste caso, o que o autor chama de “memórias” são
relatos de pessoas que tiveram acesso não ao fato acontecido, mas ao conjunto das versões
construídas por aqueles agentes, testemunhas diretas ou indiretas. Trata-se de um olhar sobre o
passado, literalmente sobre os mortos, uma representação depois de transcorridos 37 anos
daqueles acontecimentos. Adiante, o autor complementa suas informações acerca das fontes de
pesquisa produzidas em Pedra Bonita.
Com minucioso exame que fiz sobre todo o local que serviu de teatro aos
acontecimentos, com os documentos oficias que pude colher e, mais que tudo, com o
auxílio de uma estampa que felizmente encontrei na qual foram esboçadas pelo padre
Francisco José Correa de Albuquerque (...) creio poder assegurar aos leitores que os
seguintes apontamentos, se não estão escritos em estilo elegante e linguagem castiça,
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
encerram, todavia a verdade histórica daqueles tristes e nefastos acontecimentos. Foi
em que me esmerei e mais não se pode esperar de mim (LEITE, 1898, p. 17).
Dessa forma, para concretizar suas pesquisas sobre Pedra do Reino, o memorialista
lançou mão de distintos recursos. Do ponto da narratividade, a busca da aprovação do leitor pela
via do estilo elegante e linguagem castiça, pura. Neste ponto fica a questão: o que seria uma
linguagem pura? Objetiva? Neutra? Isenta? Não seria uma ilusão do tipo proclamado pela escola
metódica, sobretudo por Leopoldo Von Ranke (1979, p. 49), na sua utopia da objetividade do
conhecimento produzido? Não seria o compromisso, ainda rankeano, de narrar “os fatos como
realmente aconteceram”, o que significa aceitar o que dizem as fontes tal como se apresentam,
reconhecendo nelas a expressão da verdade? Acreditamos que tais compromissos do autor
podem ser facilmente localizados ao longo da obra.
Anotemos aqui outro exemplo das fontes utilizadas por Leite: a reprodução literal do que
seria o depoimento de uma testemunha ocular da história. O capítulo V do memorial, intitulado a
“Revelação do segredo e exposição das atrocidades praticadas na Pedra Bonita”, contém a
narrativa do suposto suicídio coletivo. Para narrar as pretensas cenas de horror sublinhando os
tons de veracidade, Antônio Áttico de Souza Leite lançou mão de um recurso linguístico, a fim
de conferir maior legitimidade e veracidade à narrativa. O autor deu voz ao vaqueiro, em sua
compreensão uma voz irrefutável, já que José Gomes teria sido testemunha ocular e agente
histórico em Pedra do Reino. É um testemunho relativamente longo, de quase cinco páginas,
todo aspeado; uma pretensa transcrição da fala do vaqueiro que em alguns trechos transforma-se
em diálogos deste com o major Manoel Pereira da Silva. A título de ilustração, leiamos um trecho
em que José Gomes narra para o major e aos demais presentes o suposto suicídio coletivo em
Pedra do Reino.
Na narrativa de Antônio Áttico de Souza Leite, o vaqueiro teria declarado que o rei
ofereceu muito vinho aos súditos e revelhou-lhes que D. Sebastião estava muito desgostoso e
triste com o seu povo. Os sebastianistas quiseram saber o motivo de tanto dissabor:
“ ‘E por que? Perguntaram os homens muito aflitos e as mulheres todas muito chorosas.....’
‘Porque são incrédulos!... porque são fracos,!...porque são falsos!... e finalmente, porque
o perseguem não regando o campo encantado e não lavando as duas torres da catedral
do seu reino com sangue necessário para quebrar de vez o cruel encantamento(...)’
‘Ah! meu amo e senhores, o que depois disto se seguiu é horrível!...’
‘O velho Juca foi o primeiro que correu, a abraçou-se com as pedras e entregou o
pescoço a Carlos Vieira que o cortou cérceo, pois já estava com um facão afiado.’
‘Como? (bradaram o comissário e todas as pessoas presentes horrorizadas); pois ele
matou o velho deveras? Estás, sonhando, José?’
‘Sim, meu amo, matou e não foi este só. Mataram ainda muitos homens, muitas
mulheres, muitos meninos e creio que continuam matando’
54
Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
‘Jesus, meu Deus, que horror! Exclamaram de novo as mesmas pessoas acrescentando:
- E que matou essa gente toda, José? Estás doido ou estás mentindo! Gritou o
comissário a, pegando-lhe do braço e sacudindo-o com força...’
‘Antes tivesse doido ou mentido, meu amo’ ”(LEITE, 1903, p. 229-230).
O texto em aspas simples é atribuído ao vaqueiro José Gomes. Compreendemos que, ao
lançar mão do artifício de transcrever a fala de uma testemunha ocular, o efeito de sentido que o
autor quer produzir é que seu texto expressa a “verdade” dos fatos.
O vocativo “meu amo” é recorrente e foi utilizado no momento em que supostamente o
vaqueiro fugiu e foi pedir a proteção do senhor patriarcal. Com a expressão, o narrador pode ter
o propósito de representar uma forma simbólica de submissão, comumente revelada por meio de
um gesto e/ou por uma linguagem respeitosa, sobre a qual Burke (2002, p. 104) discute. Para
além dessas considerações, cumpre-nos questionar em qual fonte Antônio Áttico de Souza Leite
se amparou para escrever com tanta riqueza de detalhes? Em depoimentos dos interlocutores?
Anotados em que ocasião e circunstâncias? O autor não informa nem localizamos qualquer
documento que faça menção ao depoimento. Com certeza, só não foi ao tempo de sua excursão
à Pedra do Reino, já que naquele ano tanto o Major quanto o vaqueiro já haviam falecido, como
o próprio Leite afirma no memorial.
Observamos que, para o autor, o que ele escreve é a “verdade histórica”, empresa para a
qual sinceramente mobilizou suas energias. E, a julgar pelos escritos dos seus sucessores,
interessados nos episódios de Pedra do Reino, esta perspectiva manteve-se praticamente
inalterada, salvo por insignificantes detalhes descritivos, como veremos ainda neste capítulo.
Outras fontes foram utilizadas. O exame do local, alguns documentos oficiais e uma
estampa, gravura onde aparecem ladeadas as duas pedras e algo do cenário natural do lugar. Há
ainda a transcrição literal do que seria o bilhete de um fazendeiro das imediações comunicando
ao Major Manoel Pereira da Silva uma “mortandade” em Pedra Bonita, contendo os dizeres:
Hoje, muito cedo, mandei um portador à lagoa da formosa chamar o compadre Manoel
Vieira e os filhos para virem me ajudar esta semana na desmancha da mandioca dos
Poços. Muito antes de chegar na serra, encontrou ele com dois meninos, que vinham
fugindo às carreiras da Pedra Bonita, aonde lhe disseram que estava havendo, há dois
ou três dias, grande mortandade de gente para desencantar-se um reino. Creio, que isto
será verdade, porque a família do compadre Manoel Vieira e outras por ali vivem, há
muito, metidas por lá sem me aparecerem e acreditam que há nas pedras um grande
reino, que só desencanta com sangue. A mim tem eles dito isto muitas vezes. Seu
compadre e amigo, Manoel Ledo de Lima. Poços, 16 de maio de 1838 (LEITE, 1903, p.
231).
Necessário destacar que, do ponto de vista dos documentos oficiais, de fato alguns
aparecem citados ao longo de suas “memórias”. Porém, observamos nestas memórias, tanto
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
quanto em outros escritos sobre o tema, que tais documentos oficiais são muito mais
proclamados e apenas levemente apresentados à apreciação do leitor. São lacunas não
preenchidas pela narrativa de Leite.
Este problema nos leva a refletir sobre as condições de produção do conhecimento
histórico. Diante das fontes, monumentos produzidos intencionalmente, o pesquisador
resignifica, confere inteligibilidade. São traços, restos, vestígios, discursos deixados pelas vozes do
passado as quais possibilitam ao historiador pontos de acesso ao real acontecido. Como esclarece
Pesavento sobre as fontes:
Se são discursos, são representações discursivas sobre o que se passou; se são imagens,
são também construções, gráficas ou pictóricas, por exemplo, sobre o real. Assim, os
traços que chegam do passado suportam esta condição dupla: por um lado, são restos,
marcas de historicidade; por outro, são representações de algo que teve lugar no
tempo” (PESAVENTO, 1998, p. 19).
Como historiadora, Pesavento analisa essa questão sublinhando a relação do historiador
com as fontes de pesquisa e, no limite, com as representações daí construídas.
1.3.7. Representação e história: impasses na invenção de Pedra do Reino
Tornar-se rica, imortal, poderosa e alva como a lua. Esses eram os sonhos que norteavam
a vida da comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino. Entretanto, as aspirações dos
sebastianistas não se coadunam com a prática dos supostos rituais de sacrifício narrados por Leite
e por isso demandam novas questões. Por que o ritual dos sacrifícios? E, principalmente, até que
ponto os sacrifícios correspondem à passeidade? Ou eles são discursos históricos, na verdade,
justificativas para a dissolução sumária e violenta do movimento messiânico de Pedra do Reino,
elaborados por aqueles que se sentiram prejudicados pela fuga de escravos e pela consequente
escassez de mão de obra?
A historiografia dá voz aos potentados enquanto silencia os sebastianistas de Pedra do
Reino. A despeito disso, é possível tentar vislumbrar novas compreensões sobre o desfecho do
movimento de Pedra do Reino comparando-o aos desfechos trágicos de dois outros movimentos
messiânicos: o da Serra do Rodeador e o de Canudos. Isto porque fazemos coro a Maria Isaura
Pereira de Queiroz, quando observou que uma das características comuns aos movimentos
messiânicos: por serem sempre mal compreendidos pelos governos e pela Igreja, sofrem
perseguições e são condenados ao desmonte “dada a inveja que despertavam em povoados
vizinhos, ou entre os proprietários mais afortunados” (QUEIROZ, 1976, p. 348).
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
1.3.7.1. O massacre do Paraíso terreal: o caso da serra do Rodeador
O primeiro, o da Serra do Rodeador - imediatamente anterior ao de Pedra do Reino,
aconteceu na zona rural do município de Bonito, agreste de Pernambuco. O líder, Silvestre José
dos Santos, propalou a crença sebastianista e anunciou um reino de paz e justiça aqui mesmo na
terra. A força do movimento em torno da Pedra do Rodeador, que segundo Flávio Cabral (2004)
atraiu para si um conjunto de represálias. Até que, numa madrugada de outubro de 1820, as
forças legais orientadas pelo então presidente da Província Luiz do Rego Barreto expulsaram os
sebastianistas do paraíso. Na verdade, os 950 soldados praticaram barbáries contra os
sebastianistas, massacrando-os terrivelmente. Ao ingressarem no Rodeador, mataram, saquearam
e cometeram toda sorte de crime. Muitos sebastianistas morreram; não se sabe quantos, há quem
mencione que foram 300.
Cabral (2004, p. 132-3) afirma que alguns dos sobreviventes foram trazidos para o Recife
e julgados por um conselho de investigação nomeado pelo Governador. O conselho optou pela
condenação dos adeptos de Rodeador. Entretanto, paralelo a esse julgamento, o governador
designou o ouvidor Antero José da Maia e Silva para investigar os sebastianistas que
permaneceram em Bonito. Este teve entendimento dissonante ao do conselho ao concluir que a
crença em superstições e milagres, prestígios e encantamentos é fruto da ignorância, mas não
podia ser considerada como crime.
A Devassa contendo as duas investigações discordantes foi remetida à Corte. Hoje ela
compõe o acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Tivemos acesso a ela, quando, em vão,
buscamos a devassa sobre a Pedra do Reino. A sobrevivência da documentação permite aos
pesquisadores afirmarem que o desfecho do Rodeador foi uma hecatombe.
A conclusão do ouvidor Antero José da Maia e Silva sobre Rodeador não agradou ao
governador. Afinal, Luiz do Rego Barreto havia empenhado todos os seus esforços na tarefa de
condenar os sebastianistas de Rodeador: nomeou um conselho investigativo que produziu farta
documentação condenando os sebastianistas de Rodeador, alegando formarem uma confederação
contra o rei e contra o Estado. Essa versão sobre o movimento messiânico de Rodeador teria
assim passado para história caso não existisse o libelo do ouvidor designado para Bonito.
A manobra política de Luiz do Rego Barreto só não logrou êxito por causa da conclusão a
que chegou Antero José da Maia e Silva. A versão do ouvidor, que embora tenha passado a ser
alvo de desafeto e das críticas do Governador, possibilitou representações bem mais dinâmicas
em relação ao movimento messiânico de Rodeador. Cumpre-nos ressalvar que, não obstante as
duas versões, em documento oficial sobre Pedra do Reino elaborado em 1838, portanto em data
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
bem posterior ao holocausto de Rodeador, o então governador da Província avizinha os dois
eventos e se refere ao Paraíso Terreal de Bonito como zizania24. O presidente da província inicia
o anuário com os dizeres:
Tendo dissipado a zizania perfidamente espalhada por entre os cidadãos ignorantes da
extinta comarca de Bonito, de que os recrutas tinham que ser reduzidos à escravidão,
poderia anunciar-vos hoje, Senhores, que a ordem e a segurança pública não foram
alteradas em nossa província, (...) se um fato digno de figurar em outros séculos, filho
da ignorância e do fanatismo, não viesse perturbar o plácido correr do ano de 1838. Um
indivíduo, morador do sítio Pedra Bonita, (...) por efeito de sua maldade, lembrou-se de
suadir ao povo ignorante daquele lugar, que ali existia um Reino encantado próximo a
desencantar-se ( BARROS, 1839, p. 03).
Os estudos de Flávio Cabral (2004) sobre o Rodeador impõem questões sobre o caso de
Pedra do Reino. Quais as intenções de quem produziu os documentos sobre a Pedra do Reino?
Estava a serviço de quem: dos fazendeiros ou dos seguidores de João Antônio dos Santos? A
quem interessava que o episódio de Pedra do Reino passasse para a história nos termos em que
conhecemos hoje? A história que nos é contada assemelha-se à passeidade ou o que faltou ao
episódio de Pedra do Reino foi um Antero José da Maia e Silva? Ademais: os documentos
primários são uníssonos em afirmar que os sebastianistas de Pedra do Reino foram submetidos a
julgamento. Para citar apenas um exemplo, vejamos o que diz um ofício procedente do Palácio
do Governo de Pernambuco, assinado por Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque,
dirigido ao Juiz do Crime de Flores, Manoel dos Passos Baptista, pedindo celeridade no processo
a que foram submetidos os sobreviventes de Pedra do Reino, em atenção ao Imperial Aviso de
08 de agosto de 1838, Parte 1, folha 39 (verso) e 40 (frente)25: [Figura 4]
24S.f.
Gramínia nosciva; joio. Fig. Desavença, discórdia, incompatibilidade.
execução do Imperial Aviso de 8 de agosto do corrente ano expedido pela Secretaria de Estado dos Negócios
da Justiça, recomendo a Vossa Mercê que acelere quanto for possível a acusação do facinoroso João Antônio e seus
sequazes presos pelos horrorosos acontecimentos da Serra Talhada dessa Comarca e me participe o resultado de seus
processos fazendo um circunstanciado relatório da acusação e defesa dos mesmos réus para ser tudo levado ao
conhecimento do Governo de Sua Majestade Imperial como determina o citado Aviso. Deus guarde Vossa Mercê.
Palácio do Governo de Pernambuco, 20 de setembro de 1838. Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque ao juiz
Manoel dos Passos Batista, juiz de Direito do Crime da Comarca de Flores. (APEJE, Tomo RO-11/2: 39-40).
25Em
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
O ofício indica que a história da Pedra do Reino circulou nas instâncias de poder tanto da
Província como da Corte. Como o fato despertou o interesse de ambos os poderes, o usual
naquele período era elaborar cópias dos processos e remetê-los um para a Capital da Província e
outro à Corte. Seguindo essa orientação, seguimos no encalço de uma cópia do processo ou
devassa. Iniciamos pelo Arquivo Público de Pernambuco, onde localizamos a maioria das
correspondências oficiais sobre Pedra do Reino.
Como não logramos êxito, consultamos o Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
de Pernambuco. O IAHGP guarda uma quantidade relevante de processos crimes do século
XIX, com destaque para os processos do Tribunal da Justiça e do Tribunal da Relação. Ao
consultarmos as caixas referentes aos anos de 1838 e 1839 de ambos os Tribunais, localizamos
seis processos. Quatro de fiança, um de homicídio e outro de ferimento leve. Nenhum deles se
relaciona aos sobreviventes de Pedra do Reino.
De lá seguimos para o Memorial da Justiça que tem um acervo lapidar. Arquiva processos
cíveis e criminais instaurados tanto em Recife como também em algumas comarcas do interior.
Merece destaque a quantidade de processos do século XIX conservados naquela instituição.
Localizamos um bom número de processos de crimes da Comarca de Flores e do distrito de
Serra Talhada. Analisamos as caixas referentes aos anos de 1838 a 1848. Limitemo-nos aqui a
referir os processos de 1838 a 1840, conforme as tabelas abaixo.
COMARCA DE FLORES (1838-1848, Cx.338)
ANO
1838
SUMÁRIO DO CRIME
Ferimento
Homicídio
1839
Tiros e ferimentos
Vistoria
1840
Ordem de prisão por agressão física
Corpo de delito
Assentada de crime
Facada
Tiro
Agressão
DISTRITO DE SERRA TALHADA ou VILLA BELLA (1838-1848, Cx.999)
ANO
1838
SUMÁRIO DO CRIME
Homicídio
Armas curtas
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Corpo de delito indireto
Tiro
1839
Tiro
Homicídio
Pancadas
Insulto
Tomada de presos
Surra
1840
Tentativa de homicídio
Pancadas
Ferimento (facadas)
Fiança
Embora não tenhamos localizado o processo dos sobreviventes da Pedra Bonita, o
sumário dos crimes geradores dos processos acima citados nos deram ânimo para continuar no
encalço da devassa dos sebastianistas de Pedra do Reino. Pois, se um crime de natureza
comparativamente irrelevante como um ferimento leve foi levado a julgamento, quiçá os
supostos crimes atribuídos aos ditos “facínoras” da Pedra Bonita.
Serviu-nos de motivação para encontrá-lo o interesse da Corte pela conclusão do
processo, porque, como já dissemos, processos importantes para o Império eram enviados para o
Rio de Janeiro e, normalmente, alocados no Arquivo Nacional, tal qual a Devassa sobre o do
massacre da Serra do Rodeador (ANRJ, Devassa, Série Interior, IJJ91-245, 1820-1821).
No Arquivo Nacional, mais uma vez, a busca foi infrutífera. Consultamos os volumes
IJJ9-251 e IJJ-252 da Série Interior, correspondentes aos anos de 1832-1838 e 1839-1845,
respectivamente. Restou-nos, depois de tanto esforço, apenas questionar a lacuna. Dificilmente
saberemos como o processo se perdeu; embora não tenhamos uma resposta, cabe aqui tão
somente questionar se isto aconteceu de modo intencional e deliberado ou fortuito. O único
documento localizado no Arquivo Nacional que versa sobre o episódio de Pedra do Reino é um
ofício originado do Presidente da Província de Pernambuco cujo destinatário era o Ministro
Bernardo Pereira de Vasconcelos.[Figura 5]
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Capítulo 1
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Através do documento, o Presidente da Província de Pernambuco comunicou a Corte os
sucessos de Pedra do Reino26.
1.3.7.2. O massacre de Canudos
Talvez, a rememoração do massacre em Canudos também não nos ajude a encontrar a
chave da questão, mas certamente fomentará novas dúvidas.
Voltemo-nos agora para mais um outubro fatídico, o do remate de Canudos, em 1897. O
império de Belo Monte ou o arraial de Canudos foi também um movimento messiânico
sebastianista, liderado por Antônio Conselheiro. De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz,
os sebastianistas de Canudos se dedicavam “à construção das casas, da igreja nova, ao plantio das
roças, ao comércio, à feira, ao artesanato necessário à subsistência. Havia uma professora de
primeiras letras também. Ao entardecer, tinham lugar as rezas por duas horas, que reuniam na
igreja homens e mulheres rigorosamente separados” (QUEIROZ, 1976, p. 235-6). Depois que
Antônio Conselheiro pregava, em companhia de seus apóstolos, rezavam-se ladainhas e
cantavam-se benditos. A vida corria normal, até que fazendeiros se ressentiram da escassez de
Ilmo. Sr. Obrigado pelo parágrafo 12, Art. 5º da Lei de 3 de outubro de 1834 a participar ao governo Imperial
todos os acontecimentos que tiveram lugar na Província confiada a minha administração, levo ao conhecimento de
V. Exª que o prefeito da comarca de Flores, uma das que ficam nas extremidades da Província e o Vigário da
Freguesia de Ingazeira acabam de participar-me pelas cópias inclusas sob os números 1 e 2 que na parte da sobredita
comarca confinada com a de Piancó, Província da Paraíba do Norte um certo João Antônio fizera persuadir nos
povos daquele lugar que ali existia um rico e poderoso reino encantado e que este só desencantaria se o seu terreno
fosse regado com o sangue de homens, mulheres e meninos e tanta foi a persuasão que pode incutir nos ânimos dos
povos ignorantes por onde se espalhou e os próprios pais entregaram-lhe os filhos para serem vítimas dos horrendos
sacrifícios, o qual teve princípio a 16 do passado mês de maio com a morte de 21 homens adultos e 21 meninos de
ambos os sexos e em outras circunstâncias que deixo de referir ????? Ora, tendo tais desgraças chegado ao
conhecimento do comissário de polícia daquele lugar, reuniu este uma força de vinte e seis pessoas e com ela foi
dissolver tão criminoso ajuntamento e prender os que comungavam, do que resultou a morte de cinco pessoas e o
ferimento de 4, todos da dita força e a morte de vinte e nove outros pertencentes aos contrários e a prisão de treze
homens, nove mulheres e doze meninos. Consta-me por participação que o facinoroso João Antônio foi preso e que
tanto ele como os seus sequazes foram entregues à justiça criminal a fim de que contra eles proceda na forma das
leis. Depois da prisão de tais pessoas, a tranquilidade restabeleceu-se na Comarca e toda a Província se acha em paz.
Deus Guarde V. Exª por muitos anos. Cidade da Província de Pernambuco, 30 de junho de 1838. Remetente:
Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque. Destinatário: Bernardo Pereira de Vasconcelos. No verso do
documento, diz que foi respondido em 08 de agosto de 1838. No despacho, diz-se: “Inteirado e recomenda-se que
participe se tem mandado promover a acusação dos réus e qual o seu resultado.” Cf. IJ 1-823 – 1838 a 1843.
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
mão de obra e, principalmente, passaram a sofrer saques e depredações de seus bens, ações
atribuídas aos conselheiristas. As queixas dos fazendeiros do em torno de Canudos são análogas
às dos fazendeiros das imediações de Pedra do Reino.
Ademais, Antônio Conselheiro carreou para si atritos com a administração pública ao
enaltecer a extinta Monarquia e tecer críticas à recém implantada República do Brasil. Os
conflitos culminaram com a mobilização da melhor inteligência brasileira, representada pelo
Exército para combater Canudos.
Foram quatro expedições. As duas últimas do Exército. Mas somente a quarta foi capaz
de dar combate aos sebastianistas de Canudos, mesmo assim, somente após designarem para lá 8
mil soldados, renomados generais, além de contar com a presença in locu do próprio Ministro da
Guerra - Carlos Machado Bittencourt. Várias batalhas ocorreram entre julho e outubro de 1897,
até que a tropa conseguiu fechar o cerco contra Canudos. O que se viu a partir daí foi um
espetáculo de horrores. Os conselheiristas foram vítimas de degolas e de toda sorte de vilanias,
que passaram para a história como um dos maiores massacres ocorridos no Brasil. Vale sublinhar
que as odiosas cenas foram testemunhadas pelo que de melhor havia na imprensa brasileira, uma
vez que a Guerra de Canudos talvez tenha sido a primeira a contar com correspondente de
guerra, que cobriam os sucessos, em tempo real. Foi o caso de Euclides da Cunha, em Canudos, a
serviço do jornal O Estado de São Paulo. A despeito disso, o Exército não se intimidou em investir
toda sanha contra os sebastianistas.
Consideramos importante avizinhar o desfecho de Pedra do Reino ao de Canudos. Neste,
os desmandos do Exército não se intimidaram nem mesmo com a presença dos correspondentes
de guerra. Diante disso, pensemos no caso de Pedra do Reino, cujo desfecho, desde os supostos
suicídios, autoflagelos e supostas cenas de fanatismo aconteceram em lugar ainda hoje ermo e
inacessível. E ainda, a batalha que marcou o desfecho de Pedra do Reino aconteceu sem qualquer
testemunha, quiçá com a presença de jornalistas. Nessas condições, como se comportou a
expedição do Major Manoel Pereira da Silva que se propôs a debelar um movimento que lhes
trazia sérias consequências econômicas, já que na região escasseou a mão de obra? Qual a
intenção da tropa: debelar fanáticos suicidas ou zelar pelo próprio patrimônio?
Antônio Áttico de Souza Leite tenta justificar a iniciativa do Major. Segundo o memorial,
Manoel Pereira da Silva resolveu marchar à Pedra do Reino por causa de seu “amor à causa
pública” e por outros dois motivos. Primeiro, porque conseguiu reunir “grande contingente de
forças”, formado por 35 “paisanos bem montados, armados e dispostos”, sem contar com o
comandante e seus irmãos (LEITE, 1903, p. 233). Além desses, ainda havia as forças de um
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
terceiro irmão do comandante, Simplício Pereira da Silva, e de outra força “que devia ter partido
da fazenda Santa Rita e outros pontos” (LEITE, 1903, p. 233). Em segundo lugar, porque, com a
ida à Pedra do Reino, o Major atendia “a tenaz insistência que seus dois irmãos Cypriano e
Alexandre Pereira empregaram perante ele (sobretudo depois que souberam de um ataque que os
sebastianistas se propunham a fazer em suas casas e fazendas), para que fossem imediatamente
combater o inimigo” ( LEITE, 1903, p. 233).
Necessário se faz comparar as armas dos sebastianistas com aquelas que portavam o
Major Manoel Pereira da Silva e seus comandados. No dia da batalha final ou massacre, os
sebastianistas estavam sob a liderança de Pedro Antônio dos Santos, “o qual estava acompanhado
de um séquito numeroso de mulheres, meninos, e de homens, como ele, seminus e armados de
facões e cacetes” (LEITE, 1903, p. 234). A julgar pela diferença das armas, a luta que se deu foi
desigual. Ainda assim, Leite tenta representar uma pretensa fragilidade da tropa frente aos
sebastianistas. Ora, se por um lado os sebastianistas estavam em maior número, por outro,
estavam mal alimentados, a maioria eram mulheres, crianças e havia os idosos; além do que
portavam apenas armas brancas. Já os potentados, embora estivessem em desvantagem quanto ao
número de combatentes, estes eram todos homens adultos, sob o comando de um
experimentado comandante e portavam armas de fogo. Tanto é que o saldo de mortos é bem
maior entre os sebastianistas.
22 pessoas tombaram mortalmente no combate: o “rei com 16 dos seus sectários,
inclusive 3 mulheres ” (LEITE, 1903, p. 239) e Cipriano e Alexandre, irmãos de Manoel Pereira
da Silva mais 3 dos seus companheiros. Houve ainda um segundo combate, por ocasião da
chegada da tropa de Simplício Pereira, em que morreram mais 8 pessoas que estavam em fuga,
portanto já rendidas. Leite almeja comparar os dois grupos, tentando identificar uma possível
fragilidade da tropa frente aos sebastianistas. Mas, nesse caso, a linguagem matemática destoa da
intenção, conforme veremos adiante.
As chacinas de Rodeador e de Canudos são experiências que ajudam a repensar o
discurso sobre o desfecho de Pedra do Reino. No dizer sempre expressivo de Sandra Pesavento,
os fragmentos ou testemunhos que temos do passado, a que chamamos de fontes, já se
constituem numa representação, numa leitura daquilo que se passou (PESAVENTO, 1998, p.
21). Ou seja, os documentos são indícios do passado; não sua expressão inequívoca.
A postura do memorialista Antônio Áttico de Souza Leite corrobora o que diz Bourdieu:
“as representações dos agentes variam de acordo com a sua posição (e com interesse associados a
ela) e com o seu habitus, como sistema de esquemas de percepção e de apreciação, como
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
estruturas cognitivas e avaliadoras, que eles adquirem através da experiência duradoura de uma
posição no mundo social” (BOURDIEU, 2004, p. 158).
1.4. Uma versão unívoca de história: representações de Pedra do Reino em outros autores
O episódio de Pedra do Reino foi o segundo e último movimento messiânico de caráter
coletivo registrado na história de Pernambuco. Causa-nos admiração que um evento de natureza
tão significativa, de tanta repercussão na literatura, não tenha recebido a atenção de historiadores;
a estranheza se alarga, sobretudo, porque sabemos que os cursos de formação na área
estabeleceram-se na capital e no interior do Estado há mais de trinta anos. As representações que
se registram sobre a Pedra do Reino são de viajantes e cronistas, médicos e militares, folcloristas,
antropólogos e sociólogos. Há ainda alguns leigos que se aventuram a discorrer sobre o tema. O
ponto de convergência entre esse conjunto de obras é a filiação às memórias de Antônio Áttico
de Souza Leite.
Em mais de uma dezena de textos consultados, há recorrência na representação do
episódio de Pedra do Reino e seus mais significativos agentes. Do mais remoto ao mais recente
texto sobre o episódio, reitera-se a narrativa que lemos em Fanatismo Religioso: memória sobre a Pedra
Bonita ou Reino Encantado, como destacamos a partir de agora.
1.4.1. Daniel Parish Kidder e suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil
De acordo com o mencionado na introdução, Reminiscências de viagens e permanência no Brasil,
de Daniel Parish Kidder (1972), é a obra mais remota que localizamos que se traz à baila
representações da história da Pedra do Reino.
Como o viajante norte americano travou conhecimento sobre o episódio? Segundo
consta em suas memórias de viagem, cuja primeira edição em inglês é de 1845, ele utilizou
documentos oficiais como fontes para narrar o que ele denominou de lamentáveis ocorrências de
fanatismo. Em suas representações, o sebastianismo é uma seita, que os crentes esperam que o
jovem monarca português D. Sebastião, desaparecido em África, “voltará, vivo ainda, sem jamais
ter morrido. Os portugueses esperam o seu reaparecimento em Lisboa, mas os brasileiros acham
mais natural que ele venha ter, em primeiro lugar, à sua cidade de São Sebastião” (KIDDER,
1972, p. 93).
Sob seu olhar, João Antônio é um “espertalhão sem escrúpulos” que se instalou numa
floresta onde havia duas cavernas. Denominadas por ele de reino encantado, desencantariam-se
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Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
tão logo as pedras fossem banhadas com o sangue de uma centena de crianças inocentes. Na falta
destas, homens e mulheres deveriam ser imolados.
Julgou o pastor Kidder, que faltou coragem a João Antônio “para levar a cabo seu plano
sanguinário, mas delegou poderes a um de seus asseclas, chamado João Fernandes[sic]”
(KIDDER, 1972, p. 94). Sob a orientação do novo líder, conta Daniel P. Kidder, aconteceram
“numerosas cenas por demais horríveis para serem aqui reproduzidas, começou a matança de
seres humanos. Cada chefe de família era obrigado a oferecer um ou dois de seus filhos. Em vão
as crianças choravam e suplicavam que não as matassem. O pais desnaturados respondia-lhes:
‘não meu filho, não há remédio’(...)” Quando já haviam sido assassinadas 41 pessoas, conta ele
que “alguém conseguiu fugir e comunicar às autoridades a horrível tragédia”( KIDDER, 1972, p.
94).
Chamou também a atenção de Kidder a informação de que os sebastianistas não
enterraram os corpos porque tinham certeza da breve ressurreição. “Verificou-se, depois, que as
vítimas desse horrível fanatismo nem ao menos enterravam os corpos de seus filhos e parentes
mortos, tão certos estavam de sua ressurreição” (KIDDER, 1972, p. 94).
Quais os documentos oficiais a que Daniel P. Kidder teve acesso? O mais provável é que
o contato tenha sido com os dois documentos publicados no Diário de Pernambuco: (1) ofício do
prefeito de Flores dirigido ao presidente da província; (2) carta do vigário de Serra Talhada ao seu
confrade Padre Correa, reproduzidos pelo jornal em 16 e 18 de junho de 1838,
respectivamente.27[Figura 6]
Conf. Diário de Pernambuco. 16 e 18 de maio de 1838. Vejamos a transcrição do ofício: “Artigos de ofício Ilmo.
Revm. Sr. Francisco José Correia. Veja V. Rvm.No que veio dá a malvada ilusão dos diamantes e Reino Encantado
de João Antônio. Tendo notícia o Major Manuel Pereira da Silva que os fanáticos daquele estavam congregando e
iludindo os mais incautos para seu partido e juntos já bastantes no lugar de pedra bonita do sonhado reino, saiu no
dia 18 com uma pequena tropa de 30 homens houve de parte a parte uma tão forte cruenta e cruel guerra que dentro
de poucos instantes ficou o maldito reino arrasado e mortos da parte dos malvados 14 homens, 3 mulheres e os mais
evadiram-se, sendo prisioneiros muitas mulheres; e dessa nossa tropa morreram e saíram 3 feridos; 2 levemente e
um, muito mal; porém espera escapar; e entre os 5 mortos, 2 filhos do finado capitão José Pereira, que foram
Alexandre e Cipriano. O rei João Antônio não está aí há muito tempo e de lá mandou um chamado João Ferreira
fazer cá algumas vezes, e este estava coroado com uma coroa de cipó japiranga, com o título de Santidade que todos
lhe beijam o pé e vivia pregando lá a seu modo de iludir e juntando gentes, rezando e casando com quantos quisesse,
até com duas ou mais mulheres, e ele mesmo já estava casado com sete, e o seu casamento era dessa maneira: eu te
caso pelo poder que Deus me deu- e todos aqueles que não lhe beijava o pé, no mesmo instante o matava, que ainda
matou 19 crianças e 19 adultos de ambos os sexos, e idades. Dizia que o reino se desencantava e restaurava com o
sangue dos inocentes e cada pai de família dava dois ou três filhos para serem assassinados e os pais terem maior
parte na restauração; cujos pais entregavam seus filhinhos de muito livre vontade, e os filhinhos gritavam, choravam
e pediam aos pais que não os deixasse matar e agarrados com eles diziam: não meus filhos, não há remédio, não há
remédio. E o Santidade dizia que se viessem as tropas, não temessem nada e gritassem viva a nosso Rei João
Antônio, viva a nossa liberdade, viva a nossa Religião, vivas e mais vivas que naquele mesmo instante do ataque era
o reino restaurado e ressuscitariam os mortos e pareceriam ali as maiores grandezas do mundo e cairiam sobre os
combatentes e os arrasariam e ficariam eles de posse daquela grandeza e seriam os primeiros do reino, sendo o reino
na pedra bonita e a grande cidade na lagoa formosa, distante meia légua; e, por isso, quando sentiram a tropa
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gritaram com maior entusiasmo do mundo, e fizeram uma gritaria de vivas e vivas que ninguém se entendia, batiam
palmas, faziam a maior zoada, que dar a pode???. As mulheres vendo os maridos morrendo em seus pés, não
corriam, só esperando o desencanto premeditado e só vieram desenganar depois de tudo consumado. Eles não
enterravam os mortos, só esperando brevemente a restauração e gritavam na guerra, é tempo, é chegado o tempo,
chegou o tempo, viva, viva. Dois ou três dias antes do ataque, um irmão de João Antônio chamado Pedro, matou o
Santidade e coroou-se a si próprio, e com estes justos 39 que eles mataram. Ontem tivemos notícia de que nossa
gente, que por lá ainda ficou, matou mais a 2 e já anda toda a mortandade daquela ilusão por 63 pessoas, sendo
mortos lá entre eles 29, na guerra 22 e depois 2. Veja que desgraça meteu João Antônio naqueles miseráveis que
nunca mais se quiseram apartar de semelhante superstição, fanatismo e ilusão. Forte infelicidade, forte desgraça.
Deus nos acuda. Os 5 nosso que morreram era gente escolhida e boa, que foi um seu afilhado, Francisco Ferreira de
São Paulo, Viríssimo, filho do finado José Antônio da Penha e um irmão de Antônio da Cruz, chamado João, primo
legítimo dos mesmos Pereiras. Que gente boa se perdeu. Valha-nos Deus. Deus guarde V. Rvm. Em saúde,
felicidade e paz, para a consolação, de quem protesta ser de V. Rvm. Patrício, apaixonado e amigo. Serra Talhada, 24
de maio de 1838. N.B. Neste instante soubemos que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3,
que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”.
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1.4.2. Nina Rodrigues e A hecatombe de Pedra Bonita em Pernambuco
A obra As coletividades anormais, obra póstuma de 1939, é uma coletânea de textos do
médico legista Nina Rodrigues, reunida por Artur Ramos28. “A hecatombe de Pedra Bonita em
Pernambuco” é um desses textos, escrito provavelmente em 1898, segundo o prefácio da obra
em volume. Nina Rodrigues dividiu-o em duas partes. Na primeira, reescreve a história de Pedra
do Reino tomando como fonte as memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Na parte
seguinte, há uma análise de Pedra do Reino como um exemplo de contágio vesânico29:
Estamos em presença de um caso onde são tão manifestos e evidentes os caracteres da
epidemia vesânica de fundo religioso, que só uma completa ignorância da psicologia
mórbida pode justificar o rigor penal com que foram atingidos alguns dos
sobreviventes, e a violência revelada pelos que se ocuparam do processo para
estigmatizarem a suposta perversidade destes fanáticos. Aqui, mais do que em qualquer
outra circunstância, o desenvolvimento do desvio mórbido desta população pode ser
rigorosamente atribuído à exaltação do misticismo de uma reunião de mestiços
psicologicamente mais equilibrados, pela evocação violenta dos sentimentos e das
crenças atávicas das raças inferiores de onde haviam saído. A litolatria dos índios
americanos e dos negros africanos, ainda em plena atividade entre nós, deve ser
considerada como um legado transmitido diretamente por herança a seus descendentes,
puros ou mestiços.
A disposição insólita dessas pedras, cuja semelhança com os menhirs fere naturalmente o
espírito, não solicitava apenas os sentimentos fetichistas do elemento indígena e negro;
mas ligava-se admiravelmente ainda às tendências supersticiosas da raça branca que tem
uma fé cega nos encantamentos e nas transformações em pedra. Não são somente,
porém, as manifestações de um sentimento religioso ainda muito inferior que nesta
população iam se encontrar tão superficiais, tão pouco cobertos e pouco dominados
pelos sentimentos mais puros e delicados de uma civilização e de uma cultura
superiores. É também a tendência sanguinária, são os instintos cruéis da mais selvagem
ausência de piedade que possuem normalmente, ainda hoje, quando entregues a si
mesmas, as raças inferiores ou seus descendentes diretos que constituem as populações
misturadas (NINA RODRIGUES, 2006, p. 95).
Importante anotar que no romance O Reino Encantado as “representações” das
personagens sebastianistas são calcadas em concepções raciológicas e numa linguagem médico
psiquiátrica. Dedicaremos parte do último capítulo desta tese às analises das representações
dessas personagens.
Artur Ramos é também o autor do prefácio e das notas de As coletividades anormais. No prefácio o médico,
antropólogo e folclorista alagoano relata que a obra é fruto da reunião de textos esparsos publicados sobretudo em
revistas estrangeiras, à época já fora de circulação.
29 Segundo Artur Ramos explica no referido prefácio, contágio vesânico era a denominação genérica que recebia as
várias formas de contágio da loucura,“ desde a loucura a dois, as loucuras familiares até as loucuras epidêmicas,
seguindo de perto as pegadas de Lasègue e Falret, de Régis, de Marandon de Montyel, de Sighele, de Tarde; esclarece
as dúvidas sobre o conceito da palavra multidão, em psicologia coletiva; aborda o estudo da figura do meneure dos
laços afetivos que o ligam à multidão; examina casos brasileiros de meneurs e de epidemias místicas, domésticas e
coletivas” (RAMOS, 2006, p. 17).
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
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1.4.3. Francisco Augusto Pereira da Costa
Francisco Augusto Pereira da Costa é um dos principais cronistas a ocupar-se da história
pernambucana. Suas valiosas contribuições estão registradas em mais de quarenta obras, a maioria
publicada inicialmente na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, de onde
era membro. Citemos aqui Os anais pernambucanos (1983-1985) e Folclore pernambucano (1908), em
que Pereira da Costa dedica trechos à história de Pedra do Reino. A primeira, é uma obra em dez
volumes, cada um contendo cerca de 500 páginas, em que o autor narra acontecimentos da
história de Pernambuco de 1493 a 1850. São 357 anos de história em que se noticiam os feitos de
nomes até hoje conhecidos como também fatos do cotidiano nos seus variados aspectos
econômicos, políticos e religiosos. Dado o volume e extensão da obra, Pereira da Costa não
conseguiu publicá-la em vida. Embora tenha sido escrita durante o século XIX, a primeira edição,
uma empreitada do Arquivo Público de Pernambuco, só veio à luz em 1951, por ocasião do
centenário natalício do autor que faleceu em 1923. Já Folclore pernambucano é uma obra cuja
publicação inaugural é de 1908, na Revista do IHGB, tomo LXX, Parte 2. A segunda e a terceira
edições datam de 1974 e de 2005, respectivamente. Nas duas obras, o autor se coloca como
tributário das memórias de Antônio Áttico de Souza Leite.
Pereira da Costa (1908) principia Folclore pernambucano com um capítulo intitulado
“Superstições populares”. Depois de identificar e interpretar o culto que o povo brasileiro devota
a diversos astros, ao mar, o cronista discute longamente o culto tributado às pedras. A litolatria é
objeto de sua atenção começando por entendê-la entre os povos primitivos, seguidos pelos
egípcios, pelos povos cristãos... até sua chegada aqui no Brasil.
O autor de Folclore pernambucano encerra a discussão sobre o tema ao narrar dois episódios
da história brasileira que se deram em torno de pedras: Rodeador e Pedra Bonita ou Pedra do
Reino.
No que tange à narrativa sobre a Pedra do Reino, dois aspetos merecem evidência.
Primeiro, Pereira da Costa comunga com o Conselheiro Tristão de Alencar Araripe a idéia de
que, além de “fanáticos,” os adeptos de Pedra do Reino também se caracterizavam pelo
pensamento socialista: “Observa-se, porém, que além do fanatismo religioso transparecia também
entre esses visionários, um como que pensamento socialista, porque no dia do grande evento
levantar-se-iam eles como valentes e indômitos dragões para devorarem os proprietários”
(COSTA, 1908, p. 41).
Depois, Pereira da Costa afirma que seu texto consigna-se à Fanatismo religioso: memória
sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, de Antônio Áttico de Souza Leite, a quem apresenta
como o “escritor de uma interessante monografia a quem seguimos pari passu nesta narrativa...”
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
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(COSTA, 1908, p. 38). De fato, o que se lê em Folclore pernambucano é uma paráfrase das memórias
de Leite.
Em Anais pernambucanos, Pereira da Costa (1983-1985) pouco registra de suas próprias
representações sobre a Pedra do Reino. O autor justifica que considerava dispensável descer
detalhes sobre o assunto porque a:
história do reino encantado da Pedra Bonita é conveniente e desenvolvidamente
conhecida, graças a uma interessante monografia sob o título Memória sobre a Pedra
Bonita ou Reino Encantado, escrita por Antônio Áttico de Souza Leite (...). Sob seus
moldes e adiantando um pouco, escrevemos artigo sob o título Reino encantado de D.
Sebastião - que publicamos em junho de 1902 no Diário de Pernambuco, e depois o
consignamos no nosso Folclore Pernambucano (1908) (COSTA, 1983-1985, p. 159).
O tributo ao memorial de Leite é expresso e também se revela nas duas grandes citações
de documentos sobre Pedra do Reino. Das oito páginas destinadas ao tema, o autor reserva quase
sete delas para reproduzir trechos de dois documentos sobre a Pedra do Reino, cujos teores se
coadunam com os princípios que nortearam a composição do memorial de Leite - elogiar o
Estado e a Igreja e repudiar o caboclismo. Os documentos são: (1) o relatório anual apresentado
pelo governador à Assembléia Legislativa de Pernambuco, em 1839 (BARROS, 1839); (2) e a
transcrição de fragmento de uma carta do vigário de Serra Talhada, Pe. Antônio Gonçalves de
Lima(1838), dirigida ao Pe. Francisco José Correa de Albuquerque.
Sobre o relatório, cabe informar que, por força das Leis do Império, competia aos
presidentes provinciais cientizar a Assembléia Legislativa dos principais acontecimentos
ocorridos na Província confiada a sua administração no ano anterior. A leitura do relatório
acontecia em reunião ordinária e há publicação em volume desses documentos dos anos de 1832
a 1840. A coleção completa pode ser consultada no Arquivo Público de Pernambuco e on line no
sítio <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/654/000003.html>.
No que tange à carta, temos poucas informações. Foi possível verificar que, de fato, o
Diário de Pernambuco publicou a carta, em 18 de junho de 1838, embora não tenhamos localizado o
documento original no Arquivo Público de Pernambuco. O que merece relevo são algumas
passagens que Pereira da Costa transcreve sobre a missiva sobre os mortos e sobreviventes de
Pedra do Reino. “Ontem tivemos notícia que a nossa gente, que por lá ainda ficou, matou mais a
2, e já anda toda mortandade daquela ilusão por 63 mortos, sendo mortos entre eles 29, na guerra
22 e depois 2” (LIMA, 1838 apud COSTA, 1983-1985, p. 161).
Depois de se despedir
formalmente do colega de batina, a quem deseja que Deus o guarde com saúde, felicidade e paz,
Pe. Antônio Gonçalves de Lima acrescenta novas informações: “N.B. Neste instante soubemos
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Capítulo 1
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que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai
e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”(LIMA, 1838 apud COSTA, 1983-1985, p.
161-2).
O trecho reforça a imprecisão do número de mortos em Pedra do Reino. Até porque há
notícias de perseguições àqueles que fugiram quando da chegada da tropa que debelou o
movimento. Ao narrar o destino de personagens importantes da história de Pedra do Reino
como Frei Simão, dois filhos de João Pilé e do próprio João Pilé, Antônio Áttico de Souza Leite
afirma que os três primeiros foram assassinados.
Aquele, perto da fazenda Lagoinha e estes, entre a serra Formosa e Conceição do
Piancó, em ato de resistência, com outros companheiros, contra as forças perseguidoras
do capitão Simplício Pereira da Silva. Finalmente, João Pilé ocultou-se no Cariri e nas
imediações de Piancó, onde tempo depois morreu de moléstia natural ( LEITE, 1903,
p. 243-4).
A despeito de o memorial de Leite se prestar a defender os potentados, o autor deixa
escapar parte das vinganças empreendidas pelo capitão Simplício Pereira da Silva, por causa das
mortes de Alexandre e Cipriano, seus irmãos. Para além desses assassinatos é possível que outros
tenham acontecido. O próprio Leite anuncia que o comissário de Serra Talhada designou doze
agentes para perseguir os sebastianistas, sobretudo os líderes. “Roque e Antônio da Cruz, únicos
dos doze que haviam sido expedidos que tinham se atrevido a chegar tão longe com a precatória
respectiva” (LEITE, 1903, p. 242-3) foram os agentes que prenderam João Antônio dos Santos
em Minas do Saruá, hoje região de Brumado e Caetité, parte da Bahia que faz fronteira com
Minas Gerais. Os agentes do comissário deram cabo da vida daquele líder sebastianista em lugar
de nome Lagoa Encantada, nas proximidades de Xique Xique, norte baiano30.
Em outro trecho, Leite assegura que outros líderes de Pedra do Reino também morreram.
José Joaquim, José Vieira, Manoel Vieira (Pai) -todos eles morreram no combate contra as forças
do comissário (LEITE, 1903, p. 243). Diante das informações surge uma questão: quem foram os
O memorialista justifica atitude dos agentes. Diz que só assassinaram João Antônio, o primeiro líder de Pedra do
Reino, porque foram acometidos de febre palustre e “tão precário era o estado de saúde dos dois condutores,
quando chegaram à Lagoa Encantada, três léguas abaixo da vila de Xique Xique, que resolveram matá-lo antes de
serem vítimas da moléstia ou de algum novo ardil.” (LEITE, 1903, p. 243) O ardil ou estratagema a que se refere o
memorialista foi narrada passagens antes, quando o autor Leite se reporta ao exato momento da prisão de João
Antônio. Segundo as memórias de Leite, “quando João Antônio se viu em poder dos adversários, longe de maldizer
a sua sorte e mostrar descontentamento, procurou, ao contrário, captar-lhes os ânimos e deslumbrá-los ao mesmo
tempo com promessas de imensos tesouros, que podia, quando quisessem, por a sua disposição.”(LEITE, 1903, p.
243) Como os agentes não aceitaram a proposta de João Antônio e, no transcurso da viagem, quando os dois
representantes do comissário passaram a sofrer de febre, conta Leite que João Antônio orientou a esposa a matá-los:
“[João Antônio] começou a dirigir-se à mulher em gíria desconhecida por eles, na qual insinuava-lhe que os matasse,
quando estivessem acometidos do mal, porque bastariam as riquezas que eles traziam nos macotes para tornarem-se
riquíssimos.”(LEITE, 1903, p. 243) Com os dizeres, o autor insinua que o objetivo de João Antônio era adquirir
bens, não importando os meios.
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sebastianistas levados a julgamento se quase todos os líderes foram assassinados? De quem está
falando o Presidente da Província, quando afirma no relatório anual à Assembléia Legislativa que,
“consta-me, por participações oficiais, que os presos foram entregues ao Juiz Criminal para
proceder contra eles na forma das Leis; e que o Tribunal do Júri os condenara a diversas penas
para punição de seus horrendos crimes” (BARROS, 1839, p. 04)31. [Figura 7]
Leiamos a transcrição do ofício APEJE/ Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II: Ao prefeito de Flores dizendo-lhe
ter chegado desta cidade os réus condenados a galés perpétua Gonçalo José dos Santos e Antônio Thomás. Ilmo. Sr.
Com seu ofício de 8 do corrente, chegaram a esta cidade os réus Gonçalo José dos Santos e Antônio Thomás
condenados a galés perpétua pelo juiz dessa comarca os quais vão ser aplicados aos trabalhos das obras públicas. O
que participo a V. S. para sua ciência e em resposta ao citado ofício. Deus guarde V. Exm. Palácio do Governo de
Pernambuco, 27 de agosto de 1838. Francisco de Paula.
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Ocorre que a comunicação oficial até agora localizada atesta a condenação de apenas dois
sebastianistas. Um deles, pai de João Antônio dos Santos. O documento que se segue é copia do
ofício que procedeu do prefeito de Flores, Francisco Nogueira Barbosa Paes, e foi dirigido ao
Presidente da Província de Pernambuco, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque,
comunicando a condenação a galés perpétua de Gonçalo José e Antônio Thomas, “desordeiros
da facção que teve lugar na Pedra Bonita”, oriundos da Comarca de Flores32.[Figura 8]
Isso posto, embora Pereira da Costa(1983-1985) se coloque como tributário da obra de
Antônio Áttico de Souza Leite, sua menção à Pedra do Reino em Anais Pernambucanos
permitiram-nos novos olhares sobre os discursos oficiais sobre os sebastianistas sobreviventes.
Vejamos a transcrição do ofício: “No dia dois do corrente mês foram presos e recolhidos à cadeia Gonçalo José
[dos Santos] e Antônio Thomás desordeiros da facção que tiveram lugar em Pedra Bonita e dos mesmos fiz entrega
ao Juiz de Direito do Crime para lhes proceder na conformidade da Lei. Deus guardeV. Exª. Prefeitura da Comarca
de Flores, 29 de junho de 1838. Exmo. Coronel Francisco de Paula Albuquerque, presidente da província de
Pernambuco”. Cf. APEJE, Pc 5, p. 267. Como já vimos no ofício anterior, esses réus foram julgados em Flores,
condenados a galés perpétua e encaminhados ao Recife, local em que os condenados de todas as comarcas do
interior cumpriam suas sentenças. Na exaustiva coleta de documentos que fizemos, não encontramos notícia da
condenação de que quaisquer outros sebastianistas de Pedra do Reino. No ofício do Pe. Antônio Gonçalves de Lima,
de 24 de maio de 1838, localizamos a informação de que, até aquela data, todos os cabeças foram mortos, exceto
três, conforme já citamos no ofício do padre: “N.B. Neste instante soubemos que já as tropas mataram mais 10
pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de
Lima”(LIMA, 1838)”.
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1.4.4. Gustavo Barroso: Almas de lama e de aço (1928)
Da vasta obra do cearense Gustavo Barroso33, interessa-nos aqui uma de título bastante
sugestivo: Almas de lama e de aço. Escrita em 1928, há entre as páginas 16 e 23 um capítulo
chamado “D. Sebastião no Nordeste” onde o autor trata do episódio de Pedra do Reino. O
capítulo de Gustavo Barroso, segundo ele anuncia, será um resumo “do livrinho” do historiador
do episódio “que no-lo deixou descrito com todos os pormenores (...) Foi este o Sr. Antônio
Áttico de Souza Leite e o seu pequeno livro se intitula Fanatismo religioso - memórias sobre o Reino
encantado na comarca de Villa Bella”.
Convém anotar que Gustavo Barroso também reforça o estatuto de “verdade” à história
de Pedra do Reino narrada por Leite: “seria inacreditável isso, se os documentos coevos não o
provassem de modo inilidível (...) De tudo há documentos oficiais: partes, relatórios, ofícios, bem
como os processos dos principais chefes aprisionados que foram submetidos a júri”.
(BARROSO, 1928, p. 21-23).
Além de reproduzir a narrativa de Leite, Gustavo Barroso pontua algumas questões sobre
o sebastianismo. Para ele, “a história do messianismo sertanejo ainda está para ser devidamente
feita com as verdadeiras proporções do seu desenvolvimento no tempo e no espaço(...)”
(BARROSO, 1928, p. 16), sobretudo compreender a raiz de um fenômeno tão recorrentemente
anotado.
De modo muito aligeirado, Gustavo Barroso levanta algumas justificativas de ordem
geográfica, econômica e patológica. As hipóteses são ainda visivelmente comprometidas com
ramos do determinismo do séc. XIX, quando afirma que “se verifica como entre aquela pobre
gente e naquela terra batida de secas, a miséria e a ignorância, que de mãos dadas têm conseguido
efeitos terríveis e sobretudo contagiosos” (BARROSO, 1928, p. 17).
Gustavo Barroso ainda tratou de destino dos sebastianistas de Pedra do Reino. As
informações que ele trouxe, no entanto, vão de encontro às da carta do vigário de Serra Talhada.
Nesta, afirma-se que os principais líderes foram mortos pelas forças perseguidoras do Cap.
Simplício Pereira. Em Almas de lama e de aço, diz-se: “Aos prisioneiros, que eram muitos, Manoel
Pereira não consentiu que se fizesse mal e levou-os para as vilas próximas, onde lhes deu destino
conveniente, entregando os chefetes e os menores às autoridades e arranjando trabalho para os
adultos” (BARROSO, 1928, p. 23). Os desencontros nas informações, mais uma vez, suscitam
Gustavo Barroso (1888-1959) - advogado, escritor e professor -, foi membro da Academia Brasileira de letras .
Escreveu 128 obras sobre história, folclore, ficção, biografias, memórias, política, arqueologia, museologia, economia,
crítica e ensaio, além de dicionário e poesia.
80
33
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
dúvidas sobre o destino dos sebastianistas: quem foi levado a julgamento, se todos os líderes
foram mortos?
1.4.5. Câmara Cascudo em Dicionário do Folclore Brasileiro (1954)
Em Dicionário do folclore brasileiro, obra de Luís da Câmara Cascudo publicada no ano de
1954, localiza-se o verbete Sebastianistas. Embora seja um texto curto, característica recorrente
aos verbetes, é possível subdividi-lo em três partes. O surgimento do sebastianismo em Portugal;
sua chegada e propalação no Brasil; descrição das manifestações coletivas do sebastianismo no
Brasil em Canudos, Rodeador e Pedra do Reino.
Para narrar e descrever o movimento de Pedra do Reino, Câmara Cascudo vale-se das
memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Ainda que ao final do trecho cite outras fontes de
pesquisa, tais como o romance O Reino Encantado (1878), de Araripe Jr., e Folclore pernambucano
(1908), de Pereira da Costa. Cascudo reproduz os pontos de vista de Leite sobre os líderes de
Pedra do Reino, sobre os adeptos do movimento - a quem Cascudo denomina de vassalos, enfim,
ele é fiel, inclusive, à sequência narrativa do memorial. Por mais que isso fique evidente, é
importante dizer que o olhar de Câmara Cascudo recaiu, entre outras, sobre a cena em que a
tropa de Manoel Pereira da Silva e os sebastianistas supostamente se encontram e acontece a
batalha final.
Uma tropa policial, comandada por Manoel Pereira da Silva, apareceu para prender os
assassinos e dissolver o reino da Pedra Bonita. Dizia-se que El-Rei D. Sebastião
apareceria nesse momento, com seu exército. Armados de arma branca e de paus, os
sebastianistas da Pedra Bonita enfrentaram as carabinas da força policial, gritando,
entusiasmados: - Não os tememos! Acudam-nos a tropas do nosso reino! Viva El-Rei
D. Sebastião! (CASCUDO, 1984, p. 701).
No trecho, Câmara Cascudo evidencia a confiança dos sebastianistas no retorno de D.
Sebastião. Por essa razão, mesmo portando apenas armas brancas, enfrentaram sem temor o
arsenal bélico e de fogo da tropa de Manoel Pereira da Silva já que esperavam confiantes que
seriam acudidos pelo exército real do monarca português.
1.4.6. Optato Gueiros e o depoimento de Seu João (1956)
Na obra Lampião, Optato Gueiros transcreveu um depoimento de um morador da região
de Pedra do Reino sobre o episódio de 1838. Embora seja um trecho curto, consideramos
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
importante trazê-lo à luz por ser uma das representações correntes, sessenta anos depois do
término daquele arraial.
O depoente, apresentado apenas pelo prenome, Seu João, conta a Gueiros detalhes de seu
cotidiano. “Vivo muito bem, seu tenente. A minha ocupação aqui é tirar catolé e mandar vender
nas feiras. As minhas andanças nunca passam desta encosta de Serra à Pedra do Reino”
(GUEIROS, 1953, p. 71).
Na sequência o entrevistador indaga seu João sobre a Pedra do Reino. Este, a princípio,
responde que não se sente habilitado a falar sobre o tema e sugere que Gueiros procure outros
moradores da Região, no seu entender, mais gabaritados para tal: “quem pode lhe contar tudo é o
velho João Menino da ponta da Serra, e o major Quincas Leonel, da Oiticica34. Eles lhe
‘debulham’ tim tim por tim tim. Já os vi contar a homens de posição, de passagem em casa
deles”(GUEIROS, 1953, p. 71).
Gueiros insistiu e pediu para que Seu João lhe contasse o que gravou sobre as histórias
que ouviu.
A história é mais ou menos assim: a[sic] uns sessenta anos passados, um Sebastião
Barbosa, juntou na Pedra do Reino, umas quatrocentas pessoas entre homens, mulheres
e crianças, e botou na cabeça deles que São Sebastião iria surgir na Pedra do Reino,
montado num cavalo branco, mas para isso, para que o santo aparecesse logo, seria
necessário matar muitas crianças e mulheres e aspergir o sangue na pedra. O povo se
deixou levar pelas pregações de Sebastião e os pais entregavam os filhos que eram logo
sangrados em cima da pedra. E assim muitas crianças, em número elevadíssimo e
mulheres, foram mortas com a maior indiferença e sangue frio. As forças do governo e
civis armados, em número de quatrocentos mais ou menos, atacaram o Sebastião, na
Pedra do Reino. Houve uma luta de um dia todo, até que, depois de muitas baixas,
conseguiram tomar a Pedra do Reino e acabar com o fanatismo (GUEIROS, 1953, p.
72).
Nas representações de Seu João, o líder dos sebastianistas não foi João Antônio dos
Santos, nem João Ferreira, nem Pedro Antônio dos Santos. Estes, na ordem citada, são
mencionados por Leite como guias do arraial de Pedra do Reino. Para Seu João, o condutor do
movimento foi Sebastião Barbosa, nome jamais aludido nos textos a que tivemos acesso.
Ademais, o esperado não era D. Sebastião, o monarca português, mas o próprio São Sebastião,
santo católico.
Chama ainda a atenção a controvertida linguagem matemática, no tocante ao episódio de
Pedra do Reino. Seu João menciona 400 sebastianistas, como também igual era número de
combatentes na tropa organizada por Manoel Pereira da Silva.
34A
fazenda Oiticica é, ainda hoje, de propriedade dos descendentes de Quinca Leonel ou Joaquim Leonel Pires de
Alencar.
82
Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
1.4.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957)
O sertanejo e o sertão é um livro de memórias de Ulisses Lins de Albuquerque35. No capítulo
– “A luta dos Pereiras e Carvalhos”, o autor se propõe a compreender a origem da contenda
entre as duas famílias. Moradoras do sertão de Pernambuco há séculos, descendentes diretas ou
indiretas de Manuel Lopes Diniz, arrendatário de larga faixa de terras sertanejas, cuja sede foi a
fazenda Panela d’Água, hoje no município de Floresta - PE, Pereiras e Carvalhos protagonizam
querelas com episódios memoráveis. No encalço dessas ocorrências, Ulisses Lins tenta relatar os
eventos mais remotos tomando como fontes depoimentos de Deodato Nunes Pereira e,
sobretudo, um caderno de Manuel Pereira Lins36 que “escrevera toda a história da tremenda luta
em que se empenhara sua família” (LINS, 1957, p. 329).
Qual a relação entre história da Pedra do Reino e Pereiras e Carvalhos? Segundo Ulisses
Lins, o ponto de partida das rusgas entre as duas famílias, em 1836: “fora a séria divergência
havida na então vila de Flores (...) entre o coronel Manoel Pereira da Silva (...) e Francisco
Barbosa Nogueira Paes, que ao lado de Francisco Alves de Carvalho (ambos filiados ao Partido
Liberal), se opuseram a empossar aquele e seus correligionários (do Partido Conservador) nos
cargos de juiz de paz e vereadores” (LINS, 1957, p. 321).
Já que seus objetivos políticos foram frustrados, Manoel Pereira da Silva sentiu-se no
direito de deslocar-se até Flores para tomar satisfação, “acompanhado dos irmãos Simplício e
Francisco Pereira (...) e muita gente armada para enfrentar Francisco Barbosa Nogueira Paes e
Francisco Alves de Carvalho” (LINS, 1957, p. 323).
À chegada dos Pereira e comandados, “houve luta renhida” entre eles e seus opositores
que se encontravam entrincheirados num casarão, no centro de Flores. Conta Ulisses Lins que,
ao final da batalha, Francisco Barbosa Nogueira Paes conseguiu fugir do local, e as marcas da luta
ficaram nas grossas paredes, na porta nas seis janelas de frente do casarão que “estavam de alto a
baixo perfuradas pelas balas dos velhos arcabuzes da época” (LINS, 1957, p. 323). Segundo
Antônio Áttico de Souza Leite, as disputas de 1836 serenaram por obra de Padre Correa de
Albuquerque que, em nome do Estado, dividiu a freguesia de Flores e criou as novas freguesias
de Serra Talhada e Ingazeira (LEITE, p. 220).
O autor foi membro da Academia Pernambucana de Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
de Pernambuco.
36 Manoel Pereira Lins, mais conhecido na região como Né da Carnaúba, referência à fazenda de sua propriedade de
denominação homônima. A fazenda Carnaúba, Né da Carnaúba, suas esposa Pautila de Meneses assim como os
filhos do casal Deósio, Leônidas e Argemiro Pereira são, respectivamente, ambiente e personagens do romance A
Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Conf. A Pedra do Reino, p. 81-101.
83
35
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
A missão apaziguadora de padre Correa surtiu efeito momentâneo. Segundo Ulisses Lins,
Manoel Pereira Lins e seus irmãos voltaram a combater Francisco Barbosa Paes e seu grupo, na
luta da Serra Negra, em 1848. Na ocasião, os Pereiras sagraram-se vencedores dadas as táticas de
guerra do capitão Simplício Pereira que juntamente com seus 400 homens, conseguiram quebrar
o cerco comandado por Nogueira Paes. Este, tal qual aconteceu em Flores, conseguiu mais uma
vez evadir-se do local. Mas, “algum tempo depois foi encontrado nas caatingas um esqueleto
humano, sendo reconhecido como o de Nogueira Paes que possuía um dente de ouro” (LINS,
1957, p. 324).
Cabe aqui evidenciar como Ulisses Lins elabora suas representações de Manoel Pereira da
Silva, seus irmãos e também os Carvalho. O que se depreende do discurso de Ulisses Lins é que,
embora as duas prestigiosas famílias representassem a ordem por serem agentes do Estado ostentando notáveis patentes militares ou mesmo desempenhado funções políticas respeitáveis
como a de prefeito, agiram como vingadores; apuseram-se à ação da justiça e fizeram-na com as
próprias mãos, ao sabor da satisfação ou insatisfação de seus interesses políticos e econômicos.
Se eles agiam entre si, quiçá o que fizeram com os sebastianistas da Pedra do Reino, que eram de
classe inferior à deles e, conforme o pensamento da época, eram considerados de raça secundária.
Dúvidas como essa só se avolumam quando Ulisses Lins rememora as reprováveis
atitudes de Simplício Pereira para com os índios. Em O sertanejo e o sertão, lê-se que Simplício
Pereira da Silva sustentou “uma luta tremenda com os índios que habitavam nas proximidades da
sua fazenda (...) Mas que, no final da questão, havia eliminado inúmeros índios, até que estes se
retiraram da região não suportando o incômodo vizinho” (LINS, 1957, p. 325).
O massacre contra os índios ficou conhecido, tanto é que Simplício Pereira da Silva virou
notícia em periódico cearense. Quando uma cópia do jornal chegou a suas mãos, conta Ulisses
Lins que Simplício Pereira foi se queixar à esposa que o jornalista João Brígido apontava-o como
autor de mais de 50 assassinatos, ocasião em que se deu o diálogo que transcrevemos: “Simplício,
contando com os caboclos, é capaz de passar dos cinquenta. E ele diz enjoado: Ora, que besteira,
mulher! Eu falo é em gente batizada” (LINS, 1957, p. 327).
Acrescenta Ulisses Lins que foi por essa e outras histórias que Simplício Pereira da Silva
ficou conhecido como “o demônio das selvas e era, de fato, uma espécie de gnomo das caatingas,
pois, de pequena estatura- pelo que os sertanejos o crismaram com o apelido de ‘peinha de mão’(aludindo à pequena peia com que prendiam os animais, nas mãos) praticou diabruras tais que se
tornou uma figura lendária no sertão” (LINS, 1957, p. 324-5).
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Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
Qual foi a participação de Simplício Pereira em Pedra do Reino? Ulisses Lins conta
passagens do episódio resumindo o memorial de Leite em dois ou três parágrafos. Depois afirma
que, “mais tarde, [Simplício Pereira] foi forçado a tomar parte no assalto ao arraial dos fanáticos
de Pedra Bonita” porque “os fanáticos prometiam desalojar de suas propriedades os Pereiras e os
Carvalhos que residiam nas imediações, para que as distribuíssem entre os seus [adeptos]” (LINS,
1957, p. 325-6).
Não é demais lembrar uma das anotações de Antônio Áttico de Souza Leite sobre
Simplício Pereira. Segundo o memorialista, as tropas de “peinha de mão” perseguiram os
sebastianistas que conseguiram escapar do ataque das forças legais ao arraial de Pedra do Reino.
1.4.8. Waldemar Valente em Misticismo e região (1963)
Waldemar Valente era médico, mas também cursou mestrado em antropologia. Em 1963,
publicou a obra Misticismo e região, na qual há um capítulo sobre a história de Pedra do Reino. Das
dez páginas reservadas ao tema, nove delas são uma longa paráfrase das memórias de Leite. No
restante do capítulo, Waldemar Valente levanta algumas hipóteses na interpretação do episódio.
Para ele, há entre as pessoas da Região uma disposição mística para a prática do crime e da autoagressão, sobretudo quando o estado de euforia é produzido pela bebida.
A tendência ao assassínio ou ao suicídio, segundo ele, dependia tão somente do líder, de
quem lhes orientasse. Quando para o assassínio, incutia-lhes “a condição de mandatários de
ordens divinas ou sobrenaturais, cumpridoras de rituais, de estrito rigorismo místico.” Quando
lhes orientavam para o suicídio, sentiam-se “criaturas privilegiadas, cuidadosamente escolhidas
para, com o sacrifício da própria vida, salvarem ou redimirem um povo ou um grupo do
sofrimento e da infelicidade em que vivia” (VALENTE, 1963, 59). Nos dizeres de Waldemar
Valente, tais crenças só frutificavam, dado o baixo nível cultural, a tendência para a neurose e
outras doenças mentais, a disposição psicológica para o fanatismo, favorecida pela preparação
criminosa dirigida por reis e profetas “de mentira.”
Os adeptos de Pedra do Reino são portadores de todas elas. A saber:
os delírios arcaicos, de Wahl, ou histeria coletiva, segundo Afrânio Peixoto, são
manifestações de psicoses epidêmicas, frequentes entre as chamadas populações
‘primitivas.’(...) No rol destas formas psicopáticas, de caráter místico coletivo, Artur
Ramos inclui a epidemia de astasia-abasia-coreiforme ( VALENTE, 1953, p. 59).
Por último, Waldemar Valente faz coro a Estêvão Pinto. Este, segundo Valente, inclui
Pedra do Reino na causística das psicoses gregárias (VALENTE, 1953, p. 60).
85
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Capítulo 1
1.4.9. Maria Isaura Pereira de Queiroz em dois tempos
A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz é uma das mais importantes referências nos
estudos de movimentos messiânicos, sobretudo os brasileiros. Na obra O messianismo no Brasil e no
mundo, publicada em 1963, a pesquisadora se propõe a identificar uma tipologia dos movimentos
messiânicos ocorridos na América do Norte, África, Europa e Brasil.
No que tange à Pedra do Reino, Queiroz (1976) o descreve na categoria dos movimentos
messiânicos rústicos, tal qual Rodeador, Canudos, Juazeiro do Norte, para citar apenas alguns.
Estes se caracterizavam, entre outros, pela presença de um líder, normalmente chefe religioso e
profano dos grupos; o messias é um enviado ou a própria reencarnação de figuras cristãs ou de
mitos pagãos; no interior desses grupos normalmente se instituía uma hierarquia, cujos adeptos,
de modo geral, eram conjuntos de famílias de sitiantes, lavradores, vaqueiros, mas todos levando
uma existência modesta.
À descrição dos sucessos de Pedra do Reino, Maria Isaura Pereira de Queiroz intitula de
O Reino Encantado. Todo o texto é uma compilação das memórias de Antônio Áttico de Souza
Leite. Basta dizer que das quinze citações que ela faz, treze são de Leite.
Duas décadas mais tarde, por ocasião das comemorações do centenário de Canudos,
Queiroz traz à baila novamente discussões sobre o episódio de Pedra do Reino. No artigo “D.
Sebastião no Brasil” a autora identifica limitações nas fontes documentais: “toda a documentação
escrita provém normalmente de observadores exteriores aos acontecimentos e muito raramente
dos próprios atores, o que deve ser levado em consideração” (QUEIROZ, 1997, p. 32).
Além dos vícios na elaboração dos documentos oficiais, Queiroz aponta outros aspectos
negativos no que tange os documentos de Pedra do Reino. O corpus documental é escasso e não
foi suficientemente explorado. Para ela, uma forma de minimizar o problema é buscando “a
maior quantidade possível de relatos para verificar, através de sua comparação, em que pontos
concordam, onde encontravam diferenças (...) a comparação entre materiais de diferentes fontes
[preceito fundamental das ciências sociais] para se poder chegar a discernir pontos de
concordância que configurem a realidade” (QUEIROZ, 1997, p. 32). Embora nosso foco não
seja o de identificar a realidade ou verdade do episódio de Pedra do Reino, entendemos que a
comparação dos diferentes discursos sobre o tema nos interessaram já que eles demandam
múltiplas representações.
***
86
Capítulo 1
Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento
Constatamos que a história de Pedra do Reino foi contada e repetida sob um olhar
unívoco e a partir de uma única narrativa. Há uma única versão para as lutas ocorridas em torno
das pedras encantadas, compreensão que consideramos limitada e passível de discussão. Isso
porque nossa percepção dos conflitos se avizinha da do historiador inglês Peter Burke que pensa
que, diante deles, é mais válido realçar a apresentação de pontos de vista opostos do que tentar,
como Acton, articular um consenso. Como Burke, “nos deslocamos do ideal da Voz da História
para aquele da heteroglossia, definida como ‘vozes variadas e opostas’” (BURKE, 1992, p. 15).37
Para além dessas considerações, a história da Pedra do Reino assenta-se em fontes
igualmente refutáveis. Por isso, entendemos que os discursos sobre o movimento liderado por
João Antônio dos Santos são exemplos daqueles que, na compreensão de Eni Orlandi, tiveram os
sentidos repetidas vezes atravessados por paráfrases, em que o mesmo é dito de várias formas
para garantir que a monossemia se naturalize (ORLANDI e RODRIGUES, 2010, p. 144).
***
Neste capítulo, consideramos relevantes trazer à baila os registros da historiografia
brasileira sobre a história de Pedra do Reino. A tarefa se justifica à medida que a compreensão do
evento histórico contribuiu significativamente nas análises acerca do romance O Reino Encantado
que se encontram no capítulo 3 desta tese. Com esse mesmo objetivo, elaboramos o capítulo
seguinte, o capítulo 2. Nele, discutiremos a trajetória intelectual do romancista e crítico literário
Araripe Jr. As informações que conseguimos reunir também foram muito caras às apreciações
sobre O Reino Encantado, presentes no último capítulo da tese.
Em nota, Peter Burke informa que tomou a expressão heteroglossia de empréstimo ao crítico russo Mikhail
Bakthin, em seu Dialogic Imagination. Trad. De C. Emerson e M. Holquist, Austin, 1981, p. xix, 49, 55, 263, 273. Cf.
M. de Certeau. Heterologies: discourse on the other. Trad.De B. Massumi, Minneapolis, 1986.
37
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico
de Araripe Jr. (1868 - 1878)
Para Antônio e Maria, meus pais; e Nen, minha 2ª mãe.
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
E
ste capítulo está centrado na abordagem do processo de transição pelo qual
passou o projeto literário de Araripe Jr., a partir da sua produção crítica
publicada entre 1868 e 1878.
Tal abordagem é inevitavelmente colocada em contraste com os programas literários dos
interlocutores com os quais Araripe Jr. dialogou, sobretudo, aqueles que se envolveram nas
tensões sobre a crítica literária romântica. A princípio, fundamenta-se esta crítica em um discurso
de caráter comparativo e antológico e em cursos de literatura elaborados de acordo com os
métodos dos manuais de retórica e poética ainda vigentes no período; e, num segundo momento,
nos debates político-literários que Araripe Jr. estabeleceu publicamente com a divulgação das
Cartas a Cincinato. Nestas, José Feliciano de Castilho, cognominado Cincinato, e Franklin Távora,
o Semprônio, escreveram e publicaram na imprensa da Corte, entre 1871-1872, missivas que
traziam árduas críticas à obra de José de Alencar.38
Na nossa compreensão, as Cartas a Cincinato são um documento-monumento39 da literatura
nacional que inaugurou uma interpretação do Brasil e da literatura, confrontando a tradição
política e literária brasileiras a partir de novas ideias sobre filosofia e literatura oriundas da
Europa. Elas contribuíram decisivamente para a formação, no Brasil, no decênio de setenta, de
uma geração de tendência eminentemente política, animada do desejo de esquadrinhar a cultura
nacional e dar-lhe orientação diversa.40
É na tensão das matrizes romântico-naturalistas que se localiza o discurso literário de
Araripe Jr., escrito por ele entre 1868-1878, materializado nos textos “Contos da roça” e “Duas
palavras”, ambos de 1868, “Carta sobre a literatura brasílica” e “Riachuelo”, escritos em 1869,
“Falenas” (1870), “Juvenal Galeno” (1872), “O livro de Semprônio” (1872-3), “Escola popular.
As Cartas a Cincinato foram publicadas originalmente no jornal Questões do dia, do Rio de Janeiro, entre agosto de
1871 e o primeiro semestre de 1872. Ainda em 1872, Franklin Távora publicou em Recife uma edição em volume das
missivas, utilizada como fonte desta tese. Cf. TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato: estudos críticos de Semprônio
sobre o Gaúcho e a Iracema, obras de Sênio (J. de Alencar), 2.ª edição, com extratos de cartas de Cincinato e notas do
autor. Pernambuco: J.-W. de Medeiros, 1872. Em 2011, depois de quase 140 de publicação esgotada, as Cartas a
Cincinato foram reeditadas sob a direção do professor Eduardo Martins. Cf. também: TÁVORA, Franklin. Cartas a
Cincinato. Campinas: Unicamp, 2011.
39 Para Le Goff, todo documento é também um monumento no sentido de que “o documento não é qualquer coisa
que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder”. Cf. LE GOFF, Jacques. “Documento - monumento”. Em: ________. História e memória. 4. ed.
Campinas: Unicamp, 1996, p. 545.
40 Algumas justificativas adotadas por Franklin Távora para criticar José de Alencar, nas Cartas a Cincinato, lembram
os argumentos tomados pelo próprio José de Alencar quando criticou Gonçalves de Magalhães, na Carta sobre "A
confederação dos tamoios" (1856). Os pontos de interseção entre as críticas de Távora e as de Alencar foram anotados
por Antonio Candido que observou nelas um "caráter simétrico": "o tipo de argumento é o mesmo, são paralelas as
injustiças e os excessos" (CANDIDO, 1981, p. 367).
38
89
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
O papado” (1874), “Poesia sertaneja” (1875). Importante anotar que a produção crítica de
Araripe
Jr.
se
prolongará
até
1911.
Mas
aqui
só
contemplaremos
a
crítica de Araripe Jr. escrita até a data da publicação de O Reino Encantado, 1878, uma vez que a
compreensão do discurso crítico terá como função subsidiar as análises do romance, objeto de
estudo desta tese.
Com vistas a atingir as metas do capítulo, faremos, a princípio, um apanhado das notícias
biográficas sobre Araripe Jr. Depois, examinaremos a “geração de 1870”, da qual Araripe Jr.
participou, compreendendo-a, a partir de Alonso (2000), como um “movimento reformista” de
cunho político, cujos argumentos estavam centrados em elementos da tradição político-cultural
brasileira, confrontados com um “repertório” filosófico e científico europeu. E, por último,
iremos analisar o posicionamento de Araripe Jr. ante as tensões romântico-deterministas em voga
no Brasil, a partir do que ele escreveu entre 1868-1878.
2.1. Notícia biográfica de Araripe Jr. (1848 – 1911)
As notícias biográficas sobre Araripe Jr., ao que tudo indica, são tributárias dos textos de
Sacramento Blake (1883), Escragnole Dória (1913) e Arthur Motta (1929). Textos nos quais
também nos fiaremos para traçar vestígios do percurso de Araripe Jr., entre 1848 e 1911. Tristão
de Alencar Araripe Jr. nasceu em Fortaleza, Ceará, em 27 de junho de 1848 e faleceu no Rio de
Janeiro, em 29 de outubro de 1911.[Figura 9] Foi o primogênito do casal Tristão de Alencar
Araripe e Argentina de Alencar Lima. Poucas notícias foram registradas sobre a infância de
Araripe Jr, mas é possível afirmar que, naquela fase de sua vida, Araripe Jr. residiu em diversas
províncias brasileiras, em razão das atividades profissionais de seu pai. Sabe-se que Araripe Jr.,
ainda uma criança de seis anos, despediu-se da terra natal quando seu pai foi nomeado para juiz
de direito de Bragança- PA, em 1854.41
Dois anos mais tarde, a família se mudou novamente. Dessa vez para o Espírito Santo,
província em que Tristão Alencar Araripe exerceu o cargo de Chefe de Polícia.42 Seus primeiros
escritos datam dessa passagem por aquela província. O crítico Escragnole Dória localizou uma
carta de Araripe Jr., destinada a sua avó Ana Porcina Ferreira de Lima, conhecida como Ana
Triste.
Cf. Coleção do IHGB. Carta de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para juiz de direito de Bragança- PA.
Documento 5, Lata 315.
42 No Espírito Santo, Tristão de Alencar Araripe exerceu mais de um cargo. No arquivo do IHGB, há um
documento muito pomposo assinado pelo Imperador D. Pedro II exonerando-o do cargo de Chefe de Polícia e
nomeando-o para o cargo de juiz de direito daquela Província. Cf. Documento 6, Lata 315.
90
41
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Tristão de Alencar Araripe Jr.
1848-1911
Fonte: Sítio da Academia Cearense de Letras. Acesso em 22 de setembro de 2011
91
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Diz Dória que “há dele cartas de 1854 (tinha seis anos de idade) descrevendo com graça
e precisão a cidade de Vitória”.43 Os escritos ainda na infância resultavam do desvelo da mãe,
dona Argentina, que “ministrou-lhe o ensino das primeiras letras”44, como era comum à época.
Não localizamos essa missiva do pequeno Araripe Jr., mas a menção à avó paterna de Araripe Jr.,
Ana Triste, sugere-nos trazer à luz informações sobre alguns de seus ascendentes.
Os Alencar Araripe se estabeleceram no Cariri cearense e contam com uma tradição
política de lutas pela independência do Brasil. A família se notabilizou, sobretudo, a partir de 03
de maio de 1817, data marco da chegada no Cariri, das aspirações nativistas e libertárias que
culminaram com a Proclamação da República em 1817, no vizinho estado de Pernambuco. Seria
interessante aproximar logo as duas famílias. No calor da Revolução Pernambucana, Pe. José
Martiniano Pereira de Alencar (um dos cinco filhos de Bárbara Alencar, matriarca da família de
Araripe)45, era estudante de retórica do seminário de Olinda. Desencadeada a Revolução em 6 de
maio de 1817, seguindo-se a proclamação da República, o Governo Provisório sediado em Recife
incumbiu o jovem cearense a propagar em sua terra as idéias libertárias e separatistas. Estas foram
calorosamente recebidas pelos demais familiares de Bárbara Alencar. Mas, por causa da adesão à
República de Pernambuco, a família Alencar Araripe foi presa e passou por inenarráveis
humilhações. Apesar das severas sentenças, um ano depois de findo o movimento, todos os
revoltosos da família Alencar Araripe receberam anistia.
Nem mesmo a terrível memória do cárcere arrefeceu os ânimos dos Alencar Araripe.
Desde o dia em que o jovem Pe. José Martiniano Pereira de Alencar subiu ao púlpito da Igreja
Matriz do Crato e leu o manifesto do Governo Provisório de Recife, a família de Bárbara Alencar
tomou para si a causa da emancipação política do Brasil. O movimento separatista incluiu em sua
plataforma a extinção de impostos, uma política de preços favorável ao açúcar e ao algodão, um
regime republicano, igualdades de direitos entre os cidadãos, mas não previa o fim da escravidão
dos negros, aspecto este que contribuiu para fraturar a unidade do movimento.
Contudo, a Revolta de 1817 influenciou, em 1824, a adesão dos Alencar Araripe ao
movimento conhecido como Confederação do Equador, que contou apenas com o apoio de
algumas vilas ao sul do Ceará e outras, da Paraíba. A Confederação do Equador foi movimento
de cunho libertário, separatista e republicano, iniciado em Recife que, em linhas gerais, propunha
unir as províncias do Norte (incluindo as que hoje pertencem à região Nordeste) a fim de se
formar a Confederação do Equador. Um dos líderes convidou formalmente as províncias a
DÓRIA, Escragnole. Em: Revista da Academia Cearense de Letras. Tomo XVIII, 1913, p. 105
BRAGA MONTENEGRO. Araripe Jr.: subsídios para estudo. Em: Revista Clã, nº 03, 1948, p.17.
45 Sobre Bárbara Alencar, a matriarca da família Cf. GASPAR, Roberto. Bárbara Alencar: a guerreira do Brasil. 3ª ed.
Fortaleza: Instituto do Ceará, 2001.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
integrarem a nova república, mas todos os presidentes declinaram do convite, o que esvaziou o
movimento. A adesão à Confederação do Equador restringiu-se a alguns partidários do Recife e
do Cariri cearense, estes liderados pelos Alencar Araripe.
Havia uma estreita ligação entre a região sul do Ceará e o Recife, mais estreita até mesmo
do que com a capital Fortaleza. Justificadas tanto pela proximidade geográfica, já que o Cariri é
mais próximo de Recife do que da capital cearense, como também porque “durante muito tempo
permaneceu o Ceará sob a jurisdição de Pernambuco, estreitando ainda mais os contatos entre
pernambucanos e caririenses” (ALVES, 2010, p. 15). Conforme ainda afirma Alves, uma das
implicações dessa proximidade é que acontecimentos políticos de Pernambuco, como a
Revolução de 1817 e a Confederação do Equador – cujas ideais foram divulgadas naquela região
pelos filhos da elite caririense que estudavam em colégios e seminários de Recife e Olinda tiveram repercussão primeiramente em cidades do Cariri cearense, como Jardim, Lavras, Icó e,
principalmente, no Crato, para só depois se irradiar para as vilas do litoral do Ceará.
A Confederação do Equador no Ceará, de 1824, é rememorada como uma continuação
da Revolução de 1817 (Idem, p. 42). Ela também adentrou no Ceará por terras caririenses e
contou praticamente com os mesmos participantes. Foi liderada por Tristão Gonçalves de
Alencar Araripe, um dos filhos de Bárbara Alencar e avô paterno de Araripe Jr. Assim como nos
demais líderes sediciosos, exacerbou-se em Tristão Gonçalves de Alencar o sentimento nativista
que o fez abandonar o sobrenome português e passar a adotar apelidos regionais. A partir da
Confederação do Equador, Tristão passou a assinar o sobrenome Araripe, em referência à região
em que ele e a família residiam.46
Para os Alencar Araripe, aquele movimento é rememorado pela tragédia familiar que se
abateu sobre eles: no Ceará, a Confederação do Equador culminou com a morte em combate de
Tristão Gonçalves de Alencar Araripe. A partir de então, a avó de Araripe, Ana Porcina Ferreira
de Lima, passou a se auto denominar Ana Triste.
Mas voltemos ao itinerário de Araripe Jr. ainda na infância. Do Espírito Santo, a família
mudou-se para o Recife, em 1859, local onde Tristão de Alencar Araripe, o pai, exerceu várias
funções47. Em Recife, Araripe Jr. matriculou-se no Colégio Bom Conselho, de Barbosa Lima
Outro exemplo de adoção de nome nativo é o do avô materno de Araripe Jr. Antes de 1824, ele assinava João
Ferreira de Lima. Depois, dispensou o sobrenome português e passou a adotar o nome João Franklin de Lima.
Talvez pela mesma razão, somada à confiança dos ideais da Confederação do Equador, João Franklin de Lima deu às
filhas nascidas entre 1826 e 1830 os nomes das vizinhas repúblicas da América do Sul: Argentina, que foi a mãe de
Araripe Jr., e Bolívia, sua tia; e a uma outra filha, o avô materno de Araripe Jr. nomeou de Liberalina.
47 Coleção do IHGB - Cópia de Decreto de Remoção de Tristão de Alencar Araripe do cargo de Chefe de Polícia da
Província do Espírito Santo para a de Pernambuco, de 1859, e Documento designando o Juiz de Direito Tristão de
Alencar Araripe para ser da Vara Especial do Comércio em Recife-PE, em 1861.
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Sobrinho (sobre quem procuramos e não localizamos novas informações), onde concluiu o curso
de humanidades e o preparatório para ingressar na faculdade.
Em 1869, com 21 anos, Araripe Jr. bacharelou-se na Faculdade de Direito do Recife,
tendo Tobias Barreto e Luís Guimarães Jr. como seus colegas de turma. O período do curso foi
de intensa produção intelectual, momento em que Araripe Jr. estreou tanto na literatura de ficção
como na crítica literária, ao contribuir com jornais da capital de Pernambuco, a exemplo do
Correio Pernambucano e Mosaico. Em 1866, ano de ingresso na Faculdade, Araripe Jr. fundou o
jornal Mosaico - periódico scientífico, litterário e noticioso-, juntamente com outros dois
acadêmicos de Direito, seus colegas de turma: Paulo de Amorim Salgado e Manoel Godofredo
Alencastro Autran. Do periódico publicado pela Tipografia do Jornal do Recife, localizamos 8
números. O primeiro é de 1º de maio de 1866 e o último é de 10 de julho do mesmo ano. Em
todos os números do jornal há publicações de Araripe Jr. São dois contos: “O barco e a
tempestade”, iniciado e concluído no primeiro número do Mosaico e “Desvarios da sorte” (texto
inconcluso), publicado em cinco partes, a partir da edição nº 02 do mesmo periódico. É,
portanto, com a prosa de ficção que Araripe Jr. dá os primeiros passos nas suas contribuições à
literatura brasileira. O Mosaico era um periódico de apenas quatro páginas e não tinha seções
definidas, como era próprio dos periódicos da época (BARBOSA, 2007). Observa-se, no entanto,
que seus redatores esmeravam-se em contemplar os aspectos “científico”, “literário” e
“noticioso”, fazendo jus aos subtítulos do periódico. No primeiro número do Mosaico, por
exemplo, constam cinco seções: Mosaico – Introdução; Parte Scientífica; Literatura (O barco e a
tempestade); Poesias (Sós; Os corruptos; Fascinação); Parte Noticiosa. Ainda na fase de
bacharelando em Direito da Faculdade de Recife, Araripe Jr. publicou a obra Contos brasileiros. Era
nosso intento analisar e comentar o conjunto desses contos e, ao mesmo tempo, buscar uma
conexão com a tessitura de O Reino Encantado. Tarefa inviabilizada por não termos conseguido
localizar nenhum volume do referido livro de contos, nem os números do Correio Pernambucano
em que os contos foram publicados esparsamente.
Foi também na imprensa pernambucana que Araripe Jr. estreou como crítico literário.
Em 1868 e 1869, publicou no Correio Pernambucano os textos “Contos da Roça. Impressões de
leitura” e “Carta sobre a literatura brasílica”, assinadas sob o pseudônimo de Oscar Jagoanharo,
obras sobre as quais discorreremos ainda neste capítulo.
Em 1870, o recém formado bacharel em Direito Araripe Jr. foi nomeado “secretário do
governo da antiga província de Santa Catarina”, local em que permaneceu por dois anos. Em
1872, finalmente voltou a residir na província natal, onde assumiu a função de juiz municipal, em
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Maranguape, “no Ceará, e eleito deputado provincial nos biênios de 1872 a 1875”
(SACRAMENTO BLAKE, 1883, p. 324).
Poucos meses depois de sua chegada ao Ceará, no exato dia de seu aniversário, 27 de
junho, Araripe Jr. se casou com Antonieta Moreira, a quem ele chama carinhosamente de
Totônia, com quem teve cinco filhos. Em carta do dia 03 de julho de 1872, Araripe Jr. noticiou à
mãe o enlace, a felicidade conjugal, os predicativos da jovem esposa48:
Minha adorada mãe, (...) Estou casado e desde o dia 27 que me julgo em um novo
mundo. Sou feliz e espero que essa felicidade se prolongue indefinitivamente (...) Sintome viver e, livre do marasmo que me cercava, começo de novo as aspirar os prazeres
santos da vida (...) Eu precisava além de tudo de uma companheira constante que me
amparasse. Felizmente a Providência (...) coloca-me do meu lado uma mulher que
parece ter sido talhada para minha esposa. Nesta, encontro todos os predicados que
convêm a uma boa e virtuosa consorte e ainda mais todos os elementos necessários
para quebrar as agruras de meio gênio selvagem. Alegre, jovial, expansiva e cândida
estou certo de que ela terá força bastante para neutralizar a minha misantropia e os
efeitos da reconcentração de espírito (...) À Totônia me entrego como a meu anjo
tutelar, à substituta de minha mãe. Compreenda-me ela e serei o mais feliz dos homens
(...) O que direi mais a V.m cês. que só ambiciono agora abraçá-la e mostrar-lhes a minha
companheira? Adeus minha boa e adorada mãe (...) Abençoe a mim e a Totônia e
receba o coração de seu filho obediente e amigo Tristão (APEB/FUNDAÇÃO CASA
DE RUI BARBOSA – grifo nosso).
Nas correspondências seguintes, Araripe Jr. volta, repetidas vezes, a elogiar a jovem
esposa. Em carta de 20 de julho de 1873, rememora a data do casamento e anuncia que Totônia
espera seu primeiro filho, conforme se lê:
Hoje completei doze meses de casado. A vida para mim vai agora tão suave! A minha
Totônia dá-me todos os prazeres e satisfações de espírito. Deus ajude a concluir a obra
que incumbiu-me. Como me sinto preso a vida! Vejo-lhe os primeiros sintomas de
maternidade, e isto é o que basta para encher-me do mais vivo sentimento de
humanidade. Quando o homem sente-a prolonga-se um ser antes que a deu a sua vida
deseje residir a minha futura prole. E não há sentimento tão fecundo como este. Viver
para os filhos. São estas as verdadeiras raízes que procederá na terra. Aqui termino por
esta vez! Adeus minha boa mãe. Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioio,
Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso.
Tristão (APEB/FCRB).
Araripe Jr. confiava que a felicidade no casamento, proporcionado pelos desvelos quase
maternais de Totônia, o livrariam da “misantropia” e “reconcentração do espírito”. Com essas
Localizamos na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma coleção de 21 cartas de Araripe Jr. cuja principal
destinatária era sua mãe, um conjunto de 18 cartas com vários destinatários, além de um caderno de memórias com
poucas folhas escritas. Há ainda um caderno em que Araripe Jr. manuscreveu pensamentos de vários autores, sem
contar com um caderno em que uma das filhas de Araripe Jr., Antonieta Alencar, colou recortes de jornais que
publicaram notícias de seu pai. Aqui na tese, citaremos trechos das cartas de Araripe Jr. a sua mãe e trecho de seu
caderno de memórias. Sempre fizermos referência às cartas, mencionaremos a instituição que guarda os documentos
e, sempre que for possível, colocaremos o número da carta em que localizamos a informação.
48
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
palavras e outras mais claras, o autor referia-se aos sérios problemas psicológicos e neurológicos
que intermitentemente o abatiam. Na mesma carta, contou à dona Argentina Araripe sobre a
gravidade de sua última crise. O problema de saúde tanto o afastou dos deveres profissionais
como também culminou com uma tentativa de suicídio:
Escrevo-lhe hoje como se houvesse acordado de um pesadelo horrível. V.m. bem me
conhece para poder avaliar o que se deveria ter seguido a resolução de 20 de maio
próximo passado. Passei por uma crise tão medonha que supus não resistisse a ela
minha razão. Creia porém que jamais assim teria procedido se não fosse para arrancarme a uma obsessão cujos resultados não sei quais seriam enfim (...) Só o meu coração
sabe verdadeiramente as torturas por que passei. Alivia que me casasse.49 Uma
impressão fortíssima dominava-me profundamente; fiquei atordoado e impossibilitado
de atender convenientemente os meus deveres de magistrado, vi que só com a morte
dessa impressão poderia voltar ao estado normal (APEB/FCRB).
Anos mais tarde, em um caderno de memórias escrito em 1906, Araripe Jr. dizia que a
“fraqueza do espírito” sofrida por ele, ao longo dos anos, era consequência de uma
“neurastenia”50. Para Araripe Jr., o seu problema de saúde o impediu de realizar sua “obra
prima”, mas, ainda segundo suas palavras, foi a força que se seguiu aos longos períodos de
reclusão, que o animaram a escrever sua obra.
A despeito das debilidades de ordem neuropsicológicas, Araripe Jr. legou-nos extensa
obra. Na sua passagem pelo Ceará, sublinhamos a intensa atuação no campo da literatura,
período em que publicou sete romances, A casinha de sapé (1872), O ninho do beija-flor (1874), Jacina,
a Marabá (1875), Um motim na aldeia (1877), O retirante (1877-1878), Luizinha (1878) e O Reino
Encantado (1878), objeto de estudo desta tese. Destes, alguns são incompletos, mas todos estão à
margem do cânone, com publicação esgotada há vários anos. Tanto é que não conseguimos
Enquanto Araripe Jr. viveu, declarou seu amor à Totônia. Conta Escragnole Dória que Araripe Jr., embora tenha
ficado viúvo muito jovem, aos 38 anos, e com filhos pequenos para cuidar, não se casou outra vez.
50 “Não saí porque amanheci hoje com a idéia de lançar no papel as minhas reminiscências. Talvez a leitura que
ontem fiz de um livro sugestivo, escrito, com desusada verve, por um romancista parisiense em voga, tivesse
concorrido para isso. Mas não. O que me sugeriu esse desejo foi a maldita neurastenia. Ah! A neurastenia! A essa
devo ter perdido dois terços de atividades na minha vida. Não a maldigo definitivamente, porque a ressurreição do
espírito após as crises tem sido causa do melhor que existe nos meus trabalhos. Ora, este o meu pretexto para as
minhas delinqüências originou-se dos 58 anos completados a 27 de junho”. Cf. o Caderno de memórias de Araripe Jr.
(APEB/FCRB). Segundo Rafaella Zorzanelli, neurastenia foi um termo cunhado no final do séc. XIX pelo médico
psiquiatra George Beard. Zorzaneli mostra que Beard apresenta a neurastenia comparando-o a outra patologia mais
conhecida, afirmando que “a anemia é para o sistema vascular, o que a neurastenia é para o sistema nervoso” (Beard,
1869 Apud Zorzanelli). Para a pesquisadora, a “ lógica foi a de comparar os dois casos, anemia e neurastenia, como
uma decorrência da falta de algum substrato vitalizante. Se no caso de uma, tratava-se da necessidade de sangue, na
outra, faltava energia nervosa (...) No centro do quadro sintomatológico estava a exaustão física e mental, ao que se
somavam perturbações gástricas, sexuais e neuropsicológicas. Ao redor desse quadro, apresentavam-se outros
sintomas como dores generalizadas, cefaleias, pressão e peso na cabeça, muscae volitantes, zumbidos no ouvido,
dificuldade de concentração, medos mórbidos, inquietação, enrubescimento frequente, transtornos do sono,
sensibilidade no couro cabeludo, pupilas dilatadas, sensibilidade da coluna (irritação espinhal), entre outros. Cf.
ZORZANELLI, Rafaella Teixeira. Neurastenia. Em: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.17,
supl.2, dez. 2010, p.431-433.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
localizar exemplares de alguns desses títulos, nem pesquisas acadêmicas sobre eles. Como crítico
literário, publicou textos nos periódicos O Constituição e Fraternidade, da imprensa cearense. Ainda
em Fortaleza, participou ativamente da Escola Popular e da Academia Francesa do Ceará, sendo
esta uma importante agremiação cultural, de cunho literário e filosófico que existiu, entre 1873 e
1878.51
No ano de 1880, Araripe Jr. passou a morar na Corte, com a esposa e os filhos52. Nos
primeiros anos no Rio de Janeiro, além de atuar como advogado, participou da campanha
abolicionista, ao lado de José do Patrocínio. Conforme afiança Arthur Motta, de 1882 a 1883, o
autor de O Reino Encantado “devotou-se à causa do abolicionismo, trabalhando tenazmente ao
lado de José do Patrocínio. A esposa [Totônia] coadjuva-o nessa propaganda, chegando a fundar
um club infantil, para angariar donativos com que alforriavam escravos” (MOTTA, 1929, p. 487).
Não encontramos registros sobre o local de funcionamento do “club infantil” nem sobre o
número de escravos que foram alforriados mediante essa prática abolicionista. De todo modo,
Araripe Jr. havia conhecido José do Patrocínio ainda quando morava no Ceará, para onde
Patrocínio foi enviado como repórter da Gazeta de Notícias, a fim de fazer reportagens sobre a
seca que, em 1878, assolou a província cearense.
A despeito da atuação política, foi no campo literário que o desempenho de Araripe Jr. foi
mais profícuo. Entre 1880 e 1887, Araripe Jr. escreveu pelo menos 27 textos de crítica literária
para diversos periódicos do Rio de Janeiro como a Gazeta de Notícias, a mesma que publicou O
Reino Encantado, e a Gazeta da Tarde. Este último periódico era de propriedade de José do
Patrocínio, e nele Araripe Jr. tornou-se responsável pelo caderno “Semana Literária”, bem como
para A Semana e a Gazeta Literária, uma revista fundada por Alfredo do Vale Cabral, conforme
escreveu Sacramento Blake. (SACRAMENTO BLAKE, 1883, p. 324).
No Rio de Janeiro, além de sua atuação como crítico literário, escreveu os romances Xico
Melindroso (1882), O Guaianás (1882), Quilombo dos Palmares (1882), Miss Kate (1904). Este último
com o pseudônimo de Cosme Velho.
Por último, Araripe Jr., na qualidade de “distincto homem de lettras” que era, volta a
fazer parte de agremiações culturais. Foi “sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de
Ainda neste capítulo, analisaremos a produção crítica de Araripe Jr. entre 1868 e 1878, como um dos meios de
adquirir subsídios para discutir o romance O Reino Encantado.
52 No ano anterior, Araripe Jr. viajou do Ceará para o Rio de Janeiro e lá buscou a proteção de Duque de Caxias para
instalar-se profissionalmente na Corte. É o que Araripe escreve em carta do dia 15 de outubro de 1879. “A noite de
ontem passada estive com o Duque de Caxias [que] recebeu-me muito atenciosamente (...) Falei-lhe sobre minha
pretensão, que este acolheu, ficando certo de fazer na ausência de meu pai as suas partes. Gostei sumamente do
homem. É um verdadeiro militar, franco e leal”.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
189353 até 1911, ano de seu falecimento, do Centro Artístico do Rio de Janeiro, e membro
fundador da Academia Brasileira de Letras” (SACRAMENTO BLAKE, Idem.). Na ABL –
Academia Brasileira de Letras, escolheu como patrono o poeta Gregório de Matos.
O site da Academia Brasileira de Letras informa sobre a trajetória profissional de Araripe
Jr. no Rio de Janeiro. Segundo consta na página da ABL:
Mudando-se para o Rio, em 1880, exerceu a advocacia até 1886 (...) Nomeado oficial de
secretaria do Ministério dos Negócios do Império; proclamada a República e extinto
aquele Ministério, passou para o da Justiça e Negócios Interiores. Em 1895, foi diretor
geral da Instrução Pública. Em 1903, foi promovido ao cargo que então se criou de
Consultor Geral da República e que ele exerceu até o fim da vida (ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS).
Ao concluir este esboço biográfico, evidenciamos o fato de que o nosso personagem
pertenceu a uma tradicional família da elite da região do cariri cearense. Tradicional e poderosa, a
ponto de intervir diretamente nos episódios políticos mais importantes entre a fase colonial e
imperial. Família influente, portanto. A educação esmerada, a sensibilidade com as letras, o gosto
pelo local e pelo regional, a defesa dos valores liberais, ora marcado pela defesa do abolicionismo;
ora ligada aos ideais republicanos, consistiram não apenas em rupturas internas no seio da
tradição familiar, mas também ajudam a explicar o inefável apego da família Araripe aos cargos
públicos provinciais.
Araripe Jr. não fugiu a essa tradição política que, como vimos, remonta de modo mais
expressivo a 1817 e 1824. Essa é a sua face política, no sentido institucional e partidária, da qual
jamais se desligou e com a qual se explica.
Difícil segmentar esse aspecto biográfico da sua trajetória intelectual, especialmente no
universo das letras. Não obstante, cremos que outro aspecto já apontado teve notória influência
na carreira literária de Araripe Jr. Referimo-nos aos seus deslocamentos sucessivos. Do seu torrão
para a Província do Pará; desta para o Espírito Santo; daí para o Paraná, deste para Pernambuco,
retornando ao Ceará e finalmente para o Rio de Janeiro. De outro modo, podemos inferir que
isto o colocou em contato direto com diferentes realidades do Brasil, do litoral ao interior,
passando pelos sertões. Arriscamo-nos a dizer que desses deslocamentos restaram não apenas
exercícios pontuais da profissão que abraçou – a magistratura – como também repercutiu na
Araripe Jr. ingressou no IHGB, em 1893, mediante uma proposta apresentada à Comissão de História daquele
Instituto. Nosso autor utilizou o romance O Reino Encantado como justificativa para integrar aquela agremiação e o
pleito foi exitoso já que Comissão de História do IHGB de 1893, formada pelo Barão de Capanema, o Dr. César
Augusto Marques, Dr. João Severiano da Fonseca e Augusto Victorino A. Sacramento Blake, sendo relator o
primeiro deles, emitiu parecer favorável ao ingresso de Araripe Jr. no IHGB.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
forma como lançou desde jovem um olhar sobre o outro, praticando uma forma de alteridade
que viria a caracterizar sua fortuna crítica.
Serão justamente estes aspectos, vistos de forma interdependentes, que passaremos a
exame. A inter-relação entre a trajetória biográfica de Araripe Jr. com foco no seu envolvimento
político institucional, o seu olhar sobre o horizonte pátrio, conformado pela república, além do
desafio de interpretar as demandas nacionais com os recursos da literatura.
2.2. Discursos em torno da “geração de 1870”
O Reino Encantado foi escrito no final dos anos 1870, uma das décadas de maior
efervescência intelectual no Brasil, que se notabilizou pelo culto à ciência. De fato, uma das
marcas principais do que, à época, ficou conhecida como “nova geração”, foi a adesão ao
cientificismo e ao liberalismo vigentes na Europa, a exemplo do Positivismo de Auguste Comte54,
do determinismo de Hipollyte Taine55, da sociologia, do mesologismo de Buckle56, do darwinismo
social, spencerianismo57e seu corolário.Segundo Antonio Candido,
O positivismo [...] se divulgou a partir de 1868 com um artigo de Tobias Barreto no
jornal Regeneração; em seguida com os de Sílvio, Sousa Pinto, Franklin Távora, Celso de
Magalhães, Lages Júnior, Rangel de S. Paio etc., nos periódicos: A Crença (1870),
Americano e Movimento (1872), Trabalho (1873). Jerônimo Muniz foi dos primeiros a
divulgar Spencer no Brasil, pela sua ‘Palestra Científica’(CANDIDO, 1988, p. 33-34).
Auguste Comte (1798-1857) foi o criador do Positivismo. A característica essencial ao positivismo, tal qual o
concebeu Comte, é a devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral e única religião
possível. A partir da ciência - e de uma ciência social ou sociologia, da qual Comte é um fundador -, o filósofo
propunha reformular a sociedade para que se obtivesse ordem e progresso. A obra fundamental de Comte é o
"Curso de Filosofia Positiva", livro escrito entre 1830 e 1842, a partir de 60 aulas dadas publicamente pelo filósofo, a
partir de 1826. É na primeira delas que Comte formulou a "lei dos três estados" da evolução humana: o 1º, o estado
teológico, em que a humanidade vê o mundo e se organiza a partir dos mitos e das crenças religiosas; o 2º, o estado
metafísico, baseado na descrença em um Deus todo-poderoso, mas também em conhecimentos sem fundamentação
científica; o 3º e último, o estado positivo, marcado pelo triunfo da ciência, que seria capaz de compreender toda e
qualquer manifestação natural e humana.
55 Hippolyte Adolphe Taine (1828 – 1893), crítico literário e historiador francês, aplicou o determinismo à arte e à
história literária, as quais pretensamente equivaleriam à evolução intelectual e espiritual de cada sociedade. Teórico
mais importante do naturalismo. O determinismo integral englobava os três fatores: raça, meio e momento histórico.
Araripe Jr. adotará princípios do determinismo integral na composição de O Reino Encantado. Veja capítulo 3.
56 Henry Thomas Buckle (1821 – 1862), historiador inglês afiliado ao positivismo e determinismo, aplicou os
métodos das ciências à história. Adotou a teoria climática, privilegiando o determinismo geográfico como fator
preponderante na formação dos povos. “Buckle considerava a história um campo análogo às ciências naturais, que
deveria examinar as leis pelas quais o meio físico age sobre o homem” (Ventura, 1991, p. 90-91).
57 Herbert Spencer (1820 – 1903), filósofo inglês, afiliado ao evolucionismo, organicismo e sociologia biológica;
emais especificamente ao Evolucionismo aplicado à história e ao Darwinismo social.
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Ao lado do movimento iniciado na chamada Escola do Recife58, um movimento
intelectual de viés positivista também se deu no Ceará, a partir de 1873. O grupo, conhecido
como Academia Francesa do Ceará, interessava-se por filosofia, crítica e literatura, utilizou o
jornal Fraternidade e as conferências da ‘Escola Popular’ para divulgar seus estudos. Conforme
ainda explica Candido a “esse tempo, ‘o ideal moderno foi se infiltrando’ em São Paulo, Bahia,
Rio Grande do Sul, Maranhão” (CANDIDO. Idem).
Araripe Júnior, egresso da Faculdade de Direito de Recife e, depois, um dos integrantes
da Academia Francesa do Ceará, foi participante ativo daquela geração denominada pela
historiografia literária brasileira como a “geração 1870” (ALONSO, 2000). Antes de discutir a
trajetória intelectual do crítico Araripe Jr. entre 1868-1878, analisaremos alguns discursos de
intérpretes da geração de 1870, tomando como base as pesquisas de Ângela Alonso (2000). Nelas,
a autora rejeita pesquisas anteriores que, no seu entendimento, desvirtuam a utilização do
“repertório” cientificista europeu na obra da “geração de 1870”.
Os dizeres esclarecedores de Ângela Alonso alertam o quão é cerceador analisar a
“geração de 1870” apenas calculando em que medida os intelectuais brasileiros aderiram a
determinados teóricos do cientificismo europeu da segunda metade século XIX. Para Alonso, ao
avaliarem a “geração de 1870” por essas balizas, os intérpretes do período ora os apreenderam
enquanto um “movimento intelectual”, ora como um “movimento imitativo”. Todavia, nos dois
casos, as ponderações são limitadas porque nelas predominou a idéia segundo a qual o
movimento não ultrapassou as formas sincréticas do repertório intelectual europeu. Conforme
pensa Alonso “é por comparação a teorias européias e em acordo com as memórias e
reconstruções dos próprios agentes que se forma o juízo do movimento da geração 1870 como
intelectual e imitativo” (ALONSO, 2000, p. 41).
Há, por exemplo, quem acuse a geração de 1870 de ter se interessado mais em edificar
novos sistemas filosóficos do que em interpretar a realidade nacional. Tal acusação comporta o
pressuposto de que aqueles intelectuais estavam envolvidos em debates infrutíferos, enquanto
desprezavam solenemente os problemas sociais e históricos da sociedade brasileira. Afirma-se,
ainda, que a geração de 1870 teria sido subserviente ao repertório científico europeu. Entre os
que pensam dessa forma encontra-se Sérgio Buarque de Holanda. Em Raízes do Brasil, obra
clássica da historiografia brasileira, ele afirma que os intelectuais brasileiros oitocentistas
utilizaram o coquetel científico estrangeiro apenas como ornato discursivo, como formas de
alheamento e evasão à realidade brasileira em razão de um “secreto horror a nossa realidade”
Sobre a “Escola do Recife” confira: BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1927; PAIM, Antonio. A Escola do Recife. Londrina: Editora UEL, 1999.
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58
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
(HOLANDA, 1995, p. 159). Outro exemplo dessa visão pessimista sobre o legado da geração de
1870 é, segundo Alonso, a controvertida tese de Roberto Schwarz (1989). O fio condutor desse
trabalho apreende a geração de 1870 enquanto mera imitação de teorias estrangeiras. Por outro
lado, há quem reduza aquela geração de 1870 a um fenômeno de caráter exclusivamente
intelectual, descolado da prática social.
Assim sendo, de modo geral, as análises sobre a geração de 1870 sublinham os aspectos
meramente “intelectuais” e “imitativos” de seus atores. Do mesmo modo ressaltam uma postura
diletante sobre o repertório científico europeu, que, no entendimento desses intérpretes, seria
marcado por uma discussão filosófica universal, com fim nela mesma, alheia à realidade política,
social, econômica e artística-cultural brasileiras. Além do mais, acentuam seu viés teórico,
desconhecendo ou subestimando as práticas sociais exercidas pelos intelectuais daquela geração.
Uma perspectiva como essa, segundo a autora, limitaria a complexidade do movimento
intelectual de 1870 a um campo de idéias descoladas da realidade. Por isto, o caminho seria
compreender o movimento de acordo com o campo das idéias e, concomitantemente, com o
campo das práticas sociais dos integrantes. Os estudos da autora tratam de inúmeros integrantes da
geração intelectual de 1870, pelo menos 130 personagens de formação diversa, por conseguinte
um bloco consideravelmente vasto com o intuito de formular conclusões gerais e comuns a este
bloco. Naturalmente, por força do método aplicado, a autora conduz a interpretação a partir do
semelhante, do fenômeno uniforme que caracterizaria o grupo, mesmo ela tendo consciência de
que no interior do bloco expressava-se um campo de idéias e práticas sociais variadas e distintas.
Segundo Alonso, um ponto de interseção entre os integrantes da “geração de 1870” é a
“unidade de geração” que circunscreveria os indivíduos chegando à idade adulta e ao “mercado”
de trabalho, ao longo dos anos 1870 e início dos anos 1880. Mas certos contemporâneos só criam
laços concretos entre si, configurando uma ação coletiva, “ao serem expostos aos sintomas
sociais e intelectuais de um processo de desestabilização dinâmica […] compartilhando um
destino comum e idéias e conceitos os quais são de certo modo delimitados com seus
desdobramentos” (ALONSO, 2000, p. 37-8). A idéia de geração dá a chave para entender por
que o movimento surge em concomitância com a crise do Império. Seus membros vivenciaram
uma mesma experiência social, compartilhavam uma comunidade de situação: a marginalização frente às
instituições centrais da sociedade imperial (ALONSO, 2000, p. 43-44).
Embora esse critério classificador não seja o único possível, ele é útil para explicarmos os
traços fundamentais da geração da qual pertencia Araripe Jr. Ele e outros intelectuais
protagonizaram discursos e práticas em torno de bandeiras, como a abolição do trabalho escravo,
101
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
a proclamação da República, a liberdade religiosa e a expansão da participação política, entre
outras questões que mobilizaram o pensamento e a ação do grupo.
Não obstante, a autora evita usar o critério econômico de classificação. Longe de situá-los
enquanto classe, a autora entende que o grupo articulava-se em torno de uma “situação”, que era
a crítica ao decadente império brasileiro. No intuito de sanar tal dificuldade, Alonso adota o
campo político, as práticas políticas dos agentes para caracterizá-los e compreendê-los como
reformadores sociais. Em última análise, a adesão a esse sincretismo científico europeu, longe de
expressar um provincianismo ou subserviência intelectual dos brasileiros, teria sido utilizada para
“ressignificar a “tradição nacional”, assim como orientar a “ação política”.
Postura da qual se aproxima Nicolau Sevcenko, que também compreende a “geração de
1870” a partir do campo político. Segundo ele, da “nova geração” “eram todos abolicionistas,
todos liberais democratas e praticamente todos republicanos59. Todos eles trazem como lastro
para seus argumentos as novas ideias europeias e se pretendem os seus difusores no Brasil”
(SEVCENKO, 1999, 79).
A autora, portanto, entende que aquela geração protagonizou um “movimento intelectual
reformista” cujo ponto de interseção seria a experiência compartilhada por seus membros. Por
falta de um campo intelectual autônomo no século XIX, segundo ela, “a experiência da geração
1870 é diretamente política” e está cristalizada na produção textual de seus atores. Por isso,
Alonso adota “a dinâmica política como ângulo de análise” dos discursos e dos exercícios,
recusando-se a compreender e a organizar esses “textos e práticas conforme referências teorias
estrangeiras”. Ou seja, a análise proposta rejeita uma prática recorrente entre aqueles que já se
propuseram a estudar a geração de 1870, que costumam analisar os intelectuais desse período
conforme o grau de adesão ou distanciamento a esta ou aquela corrente cientificista europeia. A
autora prefere inscrever a produção da geração de 1870 “na conjuntura política local”.
Para ela, a mudança de ponto de vista traz revelações importantes:
revela que aquele movimento intelectual nem era alheio à realidade nacional, nem visava
formular teorias universais. As teorias estrangeiras não eram adotadas aleatoriamente,
sofriam um processo de triagem: havia um critério político de seleção. O sentido
principal do movimento intelectual da geração 1870 foi a intervenção política.
Argumento que grupos politicamente marginalizados pela ordem imperial recorreram
ao repertório estrangeiro e à própria tradição nacional em busca de recursos para
expressar seu descontentamento. Suas opções teóricas adquirem, assim, uma dimensão
inusitada: auxiliaram na composição de uma crítica ao status quo imperial (ALONSO,
2000, p. 45).
Conforme ressalva Nicolau Sevcenko, uma exceção foi Joaquim Nabuco, que não foi republicano, mas um liberal
progressista.
59
102
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Portanto, Ângela Alonso analisa a geração de 1870 como um movimento intelectual
político de contestação e reformista. Haja vista que seus atores expressavam “interpretações do
Brasil” por trazerem críticas expressivas ao “status quo monárquico”, críticas essas que traziam em
seu bojo propostas de reformas. Para tanto, os discursos do movimento intelectual adotaram
tanto argumentos da tradição nacional como também recorreram às teorias estrangeiras. Estas,
no entanto, não foram escolhidas ou tomadas aleatoriamente. Do contrário, optou-se por aquelas
que serviam para interpretar a realidade brasileira, assim como dessem margem a programar
reparos à sociedade, à economia ou às artes, como a literatura. A esse conjunto de argumentos, a
autora nomeia “repertório político-intelectual”60 de fins dos oitocentos, recursos que permitiram
àquele “movimento intelectual” exprimir sua crítica ao regime vigente numa forma distinta da
tradição liberal-romântica “inventada pela elite imperial”(ALONSO, 2000, p. 46).
No fundamental, a apropriação desse repertório político e intelectual de matriz positivista
forneceu uma teoria da história sociologicamente formulada.
uma explicação científica da sociedade brasileira. Uma lei de evolução universal
organizaria todas as sociedades em graus de atraso e civilização conforme padrões
sucessivos de produção, sociabilidade, instituições políticas e formas de pensar. Há uma
teleologia, uma crença no progresso social: a história caminha no sentido de
desenvolvimento econômico; complexificação social; secularização das instituições;
expansão da participação política; racionalização do Estado. A correlação entre
mudança econômica, social e política aparece como necessidade. Civilização significa
modernização: a obsolescência das instituições e dos modos de pensar e agir das
sociedades aristocráticas. (Idem).
Por conseguinte, Alonso conclui que não houve uma importação aleatória de ideias
europeias. O “repertório” do qual a geração de 1870 se serviu foi aquele com o qual se poderia
estabelecer diálogo com a “tradição político-intelectual” do Império. Ou seja, o “movimento
intelectual gerou parte de seu repertório a partir de uma apropriação e reinterpretação dos esquemas
de pensamento e formas de ação cristalizadas como tradição político-intelectual nacional”. Esta
reelaboração implicou no “manejo” do cânone dos “símbolos nacionais contra o status quo
imperial”.
Para explicar a categoria repertório, a pesquisadora Ângela Alonso lança mão de dois autores, Swidler e Tilly. O
primeiro diz que “repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo:
padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de
linguagem; conceitos e metáforas” (Swidler Apud ALONSO, p. 46). Alonso complementa dizendo que o valor do
repertório não está na “consistência teórica entre os elementos que o compõem. Seu arranjo é histórico e prático”.
Em seguida, cita Tilly que entende que “repertórios são criações culturais aprendidas, mas elas não descendem de
uma filosofia abstrata ou ganham forma como resultado de propaganda política; eles emergem da luta […]
Repertórios de ação coletiva designam não performances individuais, mas meios de interação entre pares ou grandes
conjuntos de atores […] um conjunto limitado de esquemas que são aprendidos, compartilhados e postos em prática
através de um processo relativamente deliberado de escolha (TILLY Apud ALONSO p. 46).
60
103
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Nesta parte da tese faremos um caminho diferente para analisar a trajetória de Araripe Jr.,
suas idéias e suas práticas, no contexto da geração de 1870. Ao invés de tomar o todo, o coletivo
intelectual em suas práticas sociais, abordaremos o caso específico de Araripe Jr. Contudo, não
significa dizer que seus discursos e práticas serão isolados do coletivo social, do seu tempo. Quer
dizer, apenas, que veremos como nosso autor protagonizou ações intelectuais e práticas políticas,
no interior do movimento social de 1870. Sobre suas próprias impressões dos acontecimentos,
dizia ele: “A mudança das instituições, a adoção de novos costumes políticos, o abalo das idéias,
as agitações dos espíritos criaram uma atmosfera intensa, onde se rebolcam não só ambições de
poder e de fortuna, mas também de glórias olímpicas e literárias” (ARARIPE JR, 1896, p. 108).
Impressões que captam um conjunto significativo envolvendo elementos da política, do
exercício do poder e das formas literárias. Daí a necessidade de que se compreenda em que
medida Araripe Jr. se vinculou às correntes européias e que tipo de uso fez das mesmas aqui no
Brasil. Concordando com a premissa segundo a qual é necessário tomar o movimento em seus
aspectos teórico e prático, veremos particularmente como Araripe Jr dialogou com o repertório
cientificista europeu e como formulou ações para o caso brasileiro. Para tanto, no sentido de
conferir especificidade à trajetória do nosso autor, entendemos que suas ações e suas reflexões
devem ser esclarecidas mediante dois focos centrais.
Primeiro, o problema da constituição da nacionalidade, os desafios que isto apresentava
para a elite intelectual brasileira e suas dimensões de poder. Segundo, mas não desvinculado do
primeiro, o problema da reatualização do campo literário nacional de acordo com a nova
realidade estabelecida. Assim, num único movimento, nação e literatura serão os móveis da
reflexão e das práticas sociais adotadas por Araripe Jr. Móveis que serão aplicados, por
consequência, à forma pela qual o autor vai estabelecer o diálogo e a crítica ao conjunto das
doutrinas européias, bem como a suas sucessivas influências no Brasil oitocentista.
É justamente a partir desse impulso político transformador que Araripe Jr. tenta atualizar
os parâmetros da literatura brasileira e problematizar a constituição da nacionalidade.
Assim sendo, partimos do princípio que Araripe Jr. tinha um projeto político-literário de
construção da nacionalidade, que o literato pôs em prática por meio da crítica e, como logo
veremos, por meio da ficção. No que tange à crítica, a historiografia literária registra farta
quantidade de pareceres críticos de Araripe Jr. direcionados a obra de autores brasileiros e
estrangeiros. São inúmeros textos escritos entre 1868 e 1911, este último, ano do falecimento do
autor de O Reino Encantado. Comumente, quando se analisa (BOSI, 1978; CAIRO, 1996; LIMA,
2004) o conjunto da obra crítica de Araripe Jr., registra-se que seu projeto literário passou por
104
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
duas fases distintas e complementares: uma de matriz romântica e a outra de matriz naturalista.
Nesta parte da tese, o acento recairá sobre o projeto do crítico literário no período que
compreende os anos de 1868 até 1878. A data inicial se justifica porque é deste ano a publicação
de crítica literária mais remota de Araripe Jr. que conseguimos localizar; já o ano de 1878,
conforme já explicamos, justifica-se porque foi o ano de publicação de O Reino Encantado.
2.3.Romantismo e o Naturalismo no discurso crítico de Araripe Jr. (1868-1878)
No decênio 1868-1878, o discurso crítico de Araripe Jr. revela o início de uma transição
pela qual ele passou em sua trajetória intelectual. Nos seus primeiros textos de crítica literária,
Araripe Jr. analisava obras literárias a partir de critérios como “gosto”, assim como considerava
de “bom tom” as obras literárias que tinham a capacidade distrair e moralizar. Por seu turno, em
textos de 1872 a 1875, é possível não só sentir a repercussão do repertório cientificista no juízo
crítico de Araripe Jr, como também identificar práticas sociais que ele exerceu a fim de defender e
consolidar a literatura brasileira. A obra crítica de Araripe Jr. daquele decênio é um registro
historiográfico não apenas das mudanças pelas quais passou o fazer crítico do nosso autor, em
particular, como também das alterações operadas pela crítica literária brasileira de uma maneira
geral.
Nesse período, foram revisados critérios para se compor obras literárias consagrados
durante o Romantismo. Tal revisão não foi pacífica nem consensual. Pelo contrário: a contenda
literária divisou, de um lado, aqueles que defendiam a literatura de viés romântico; e, do outro,
colocaram-se aqueles que defendiam uma literatura que primasse pela análise e pela observação.
Algumas dessas batalhas foram iniciadas no campo da política e depois re-apropriadas no campo
literário. Caso das querelas em torno das Cartas a Cincinato, que oportunamente trataremos.
Evocamos aqui essas missivas apenas para assinalar que a historiografia literária brasileira
considera as Cartas como o marco inicial do declínio do Romantismo brasileiro. Para Antonio
Candido, as Cartas representam “verdadeiro manifesto contra os aspectos mais arbitrários do
idealismo romântico, a favor da fidelidade documentária e da orientação social definida”
(CANDIDO, 1975, p. 295). Isso não só porque José de Alencar, principal nome do Romantismo
pátrio, foi o principal alvo das críticas ali formuladas, mas, sobretudo, pelas discussões que nelas
se travaram em oposição ao status quo do Romantismo. Importante anotar que o locus privilegiado
nos debates foi a imprensa da Corte, de Pernambuco e do Ceará (RIBEIRO, 2008; AUGUSTI,
2006; MARTINS, 2008).
105
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Balizas dessa transição e dessas querelas estão cristalizadas na crítica de Araripe Jr. Ele
estava atento às questões que envolviam a literatura e emitiu seus pareceres sobre as contendas
literárias em voga. Os registros estão em textos que circularam em periódicos de Recife e
Fortaleza, sendo que alguns deles foram publicados posteriormente na Corte ou tiveram
publicação em volume61. Anos mais tarde, a obra crítica de Araripe Jr. foi reunida em cinco
volumes, num trabalho de fôlego dirigido por Afrânio Coutinho e editada pela Casa de Rui
Barbosa, entre 1958 e 197062.
Para analisar o percurso crítico de Araripe Jr. entre 1868-1878, utilizaremos os textos
publicados por ele no período, compilados no volume I das obras completas intitulados “Contos
da roça” e “Duas palavras”, ambos de 1868, “Carta sobre a literatura brasílica” (1869a), “Juvenal
Galeno” (1872)63, “O livro de Semprônio” (1872-3), “Escola popular. O papado” (1874), “Poesia
sertaneja”(1875). Assim como traremos para discussão os textos “Riachuelo” e “Falenas” que
constam no volume V da obra completa, mas que foram publicados em 1869b e 1870,
respectivamente.
“Contos da roça. Impressões de leitura” é o texto de crítica literária escrito por Araripe Jr.
mais remoto que localizamos. Foi publicado em 05 de outubro de 1868, no jornal Correio
Pernambucano, na seção “Literatura”, e assinado com o pseudônimo de Oscar Jagoanharo, datado
de 28 de setembro do mesmo ano. Nele o nosso crítico analisa a obra homônima de Emílio
Zaluar,64 uma coletânea de contos, baseando-se em critérios de matriz romântica. Ao que tudo
Este foi o caso, por exemplo, da uma conferência “A Escola popular. O papado.” Cf. ARARIPE JR. Tristão de
Alencar.
O
Papado.
Fortaleza:
Typografia
Brasileira,
1874.
Disponível
em.:http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00105600#page/4/mode/1up. Acesso em.: 05 de abril 2010.
62 A compilação dos textos contempla a maior parte da produção crítica de Araripe Jr., entre 1868 e 1911, ano de sua
morte. Em 1958, publicou-se o volume I, com a compilação de textos críticos que circularam entre 1868-1887; em
1960, saiu o volume II, com os textos de 1888-1894; em 1963,volume III, 1895-1900; em 1966, o volume IV, 19011910; em 1970, o volume V 1911 e anexos. A coletânea está cronologicamente organizada. No entanto, no volume V
há um texto de 1869 e outro de 1870, “Riachuelo” e “Falenas”, respectivamente, provavelmente localizados
extemporaneamente.
63Juvenal Galeno (1836-1931) Poeta cearense que publicou em 1856 a obra Prelúdios poéticos, considerada como marco
do romantismo no Ceará. Trata-se de um livro em que o autor reuniu poesias esparsas, inclusive aquelas que havia
publicado na Marmota Fluminense, de propriedade de Paula Brito. Cf. BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense
(1948). Fortaleza: Instituto do Ceará, 1986, p. 68-69 Juvenal Galeno ainda publicou o drama Quem com ferro fere (1861),
o poemeto indígena A porangaba e sua obra mais saudada, Lendas e canções populares do Ceará (1865), objeto da crítica de
Araripe Jr. Cf. Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. “Biografia de Juvenal Galeno”. Disponível
em.:http://www.secult.ce.gov.br/equipamentos-culturais/casa-juvenal-galeno/biografia-juvenal-galeno. Acesso em.:
24. fev. 2012.
64 Segundo Edgar Smaniotto, “Augusto Emilio Zaluar nasceu em Lisboa em 14 de fevereiro de 1826, filho de José de
Oliveira Zaluar, major graduado, que servira de comissário pagador da divisão dos Voluntários Reais de El-Rei, na
campanha do Rio do Prata, antes da Independência do Brasil. Augusto Zaluar matriculou-se no 1º ano da
EscolaMédico-cirúrgica de Lisboa, disposto a seguir esses estudos, mas acaba por descobrir-se mais apto à literatura.
Ainda cursando a faculdade, alistou-se nas tropas populares que fizeram a revolução de 1844, sob as ordens da Junta
do Porto. Nesta época decidiu abandonar a medicina e entrar para a literatura. Colaborou com diversos jornais de
Lisboa e algumas revistas, entre elas Epoche, Jardim das Damas, Revista Popular e outras publicações daquele tempo,
principalmente com poemas. Já em 1846 publica um folheto intitulado Poesias, primeira parte. Mas não encontrou nos
106
61
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
sugere, Araripe Jr. crítico partia de princípios como aqueles defendidos por Sotero do Reis, que
via na literatura uma função bem definida.
O fim da literatura é instruir deleitando ou tornar por um trabalho tão proveitoso como
agradável o homem melhor e mais hábil a preencher seus deveres para com Deus, para
com a sociedade e para consigo mesmo pondo-lhe constantemente diante dos olhos o
protótipo do belo, do grandioso, do sublime, do justo e do honesto (REIS, 1862, 04).
Deleitar. Instruir. Agradar. Eis alguns dos critérios que Araripe Jr. utiliza para julgar Contos
da roça. Depois de enaltecer o estilo utilizado por Zaluar, assegura que quem se propor a ler
aquele livro de contos terá na obra uma “breve” e “deliciosa” fonte de “distração”. Para atrair o
leitor à coletânea de Zaluar, Araripe Jr. compara-a às mangabas do Ceará, sua terra natal.
Existem nos tabuleiros e verdejantes várzeas da nossa terra umas frutinhas rubicundas e
apetecíveis, que os indígenas denominam em sua rude linguagem – mangabas; estas
galantes preciosidades dos prados formam as delícias das aves e tornam-se, nas horas
calmosas do meio dia, o conforto dos sequiosos caçadores, que ávidos, procuram a
sombra das árvores que as produzem. Delicadíssimas no paladar são essas frutinhas,
mas apenas começam a ser apreciadas, dissolvem-se e desaparecem, deixando na boca
tão somente mel e desejos de renovar o tão inocente prazer de devorá-las. As narrativas
do Sr. Zaluar são como as mangabas da nossa terra. Doces como mel de abelhas,
sedutoras à vista como fruto do paraíso, aromáticas como as flores das nossas selvas, na
boca desfazem-se como um sorvete (ARARIPE JR., 1868a, p.11).
Nas considerações que faz da coletânea de contos, Araripe Jr. ainda recorre a critérios
subjetivos como “gosto” para qualificar a obra de Emílio Zaluar. Para ele, “todos os contos do
Sr. Zaluar respiram tanta singeleza e graça que só quem não tiver absolutamente gosto literário
poderão desagradar ou parecer monótonos” (ARARIPE JR., 1868a, p.14 - grifo nosso).
Por último, registremos que na fase romântica de sua crítica, Araripe Jr. empregou
argumentos teológicos para avaliar obras literárias. Na “Carta sobre a literatura brasílica”,
também publicada no Correio Pernambucano, nos dias 16 de 17 de junho de 1869, Araripe Jr. analisa
autores do “novo mundo” que escreveram tematizando a América. São contemplados os literatos
nacionais Basílio da Gama, José de Santa Rita Durão, José de Alencar. Dentre os estrangeiros, a
análise recai, entre outros, sobre Fenimore Cooper, romancista norte americano, cuja obra tem
como principal matéria o meio físico, social e humano dos Estados Unidos. Cooper privilegia em
meios literários rendimentos que lhe possibilitassem se sustentar. Decidiu, assim, vir para o Brasil, chegando no Rio
de Janeiro a 3 de janeiro de 1850. Tratou logo de tentar viver de meios puramente literários e jornalísticos. Fez parte
das redações do Correio Mercantil e do Diário do Rio de Janeiro; e em Santos, da Civilização. Em 1856 naturalizou-se
brasileiro”. Ainda de acordo com o mesmo autor, além do livro de contos intitulado Contos da Roça, publicado no Rio
de Janeiro, pelaTypographia do Diario do Rio de Janeiro, em 1868, Augusto Emílio Zaluar publicou oromance O
Doutor Benignos” Zaluar publicou livros de poesias, fez apreciações críticas para outros autores, um poema em
homenagem a Pedro II, uma peça de teatro. Cf. SMANIOTTO, Edgar Indalecio. A fantástica viagem imaginária de
Augusto Emílio Zaluar: ensaio sobre a representação do outro na antropologia e na ficção científica brasileira. Rio de
Janeiro: Corifeu, 2007, p. 26-37.
107
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
sua ficção eventos históricos protagonizados pelo primitivo local e pelo branco europeu, caso de
O último dos moicanos, opção temática que em muito agradava o literato Araripe Jr. Este avalia a
obra de Cooper baseado em critérios como a adoção da “cor local”. Para qualificar a obra
positivamente, Araripe Jr. classifica o lago Glimmerglass a partir de critérios do belo,
prefigurando uma representação acerca daquele fenômeno natural enquanto criação divina,
objeto sacralizado.
March é a criação mais bela que pode sair da mente de Cooper para animar as solidões
do Novo Mundo. Para ele, Glimmerglass é um perfeito escabelo donde se elevam até o
Senhor as suas rústicas, porém férvidas orações. E, com efeito, que magnificências não
se encerram neste sacrário augusto, em que apenas uma família ignorada do mundo
vem quebrar a monotonia e o mutismo das águas cristalinas, onde se perde o frouxo
clarão da pálida lua (ARARIPE JR., 1869a, p. 29).
Para construir sua crítica romântica, Araripe Jr. apelou para uma linguagem que
valorizasse a paisagem americana, de uma maneira geral, e a do Brasil, em particular. Da mesma
forma, nosso autor seguiu a tradição romântica de reconhecer a figura do índio como símbolo da
identidade nacional. Segundo ele, os primitivos habitantes do Brasil assemelhavam-se à
“ferocidade dos francos” e à estrutura das “ideias religiosas dos gauleses”. Assim como eram
implacáveis nas missões de vingança e “na defesa daqueles entes a quem estivessem presos pela
rara dedicação”. Na visão do autor de O Reino Encantado, Peri, personagem de O Guarani, de José
de Alencar, era protótipo do índio fiel e dedicado65. Porém, de todas as características do indígena
brasileiro a de maior relevo seria o amor à liberdade. “O que os tornava, porém, verdadeiramente
originais era o seu estoicismo descomunal em todos os atos da vida. Indiferentes para com o
resto do mundo, só tinham um amor e culto perfeito; e este amor e este culto era o da liberdade,
que constituía-lhe toda a vida e que era a sua alma e o seu paraíso”(ARARIPE JR., 1869a, p. 35).
Para além do indígena, Araripe Jr. entendia que também o “popular”, especialmente o
“sertanejo”, merecia ser identificado como símbolo da nação. Ele justifica sua opção dizendo que
havia no Brasil uma população que, embora não fosse “puramente indígena”, tomou uma feição
que lhe é peculiar porque, já muito longe, está do que chamamos propriamente do “núcleo
Conforme anota Araripe Jr. sobre a personagem de José de Alencar: “Peri é a pérola do sul. O autor apraz-se em
apresentá-lo no meio da floresta em luta com a fera indômita, que é logo por ele vencida e subjugada. O rei altivo das
selvas só quer com isso satisfazer o capricho da criança que constitui-lhe toda a vida e que é para ele uma verdadeira
religião. Esta religião é a encantadora e inocente Cecília, que, incônscia dos perigos que a cercam nos altos sertões do
Brasil, corre afoita pelos prados e bosques que orlam a habitação onde todos a consideram o anjo do bem; e o
selvagem, temendo que tudo a ofenda ou moleste, com seu arco e flechas estabelece um círculo impenetrável em
roda da gentil menina, dentro do qual ninguém é dado penetrar. Tal é a sua solicitude fanática pelo objeto
maravilhoso de seu culto, que nem uma folha, nem uma borboleta consegue roçar o rosto de Ceci impunemente; a
transpassaria com a seta o próprio pensamento mau que para ela se dirigisse, se isto tivesse nas raias do possível. José
de Alencar por esse modo quis apresentar o tipo do selvagem por um dos seus lados mais admiráveis e menos
explorados até hoje, a rara dedicação; e sem dele ausentar todos os predicados que já tivemos ocasião de notar em
Uncas, elevou-se ao maior grau de originalidade que é permitido imaginar ”(ARARIPE JR., 1869a, p. 40).
108
65
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
civilizado”. São os chamados sertanejos66, caboclos ou guascas, assim chamados dependendo da
região do Brasil em que habitam. O autor explica quem eram os “sertanejos” e como eles se
formaram:
Todos nós sabemos que os colonos portugueses, quando se internaram pelos sertões,
tiveram de lutar braço a braço com o selvagem, expelindo-o, aqui, das localidades mais
adequadas ao estabelecimento de plantações, escravizando-o, ali, onde os seus trabalhos
se faziam necessários; porém, afinal, veio a reação: cedendo ao influxo dos costumes
encontrados no país, viram-se obrigados a abandonar grande parte dos seus e aceitar,
por suas vez, alguns hábitos selvagens. Esta união dos costumes, no sul os guascas e
caipiras e, norte, a classe de indivíduos conhecida vulgarmente pelo nome de sertanejos
(ARARIPE JR., 1868a, p. 13-4).
Para Araripe Jr., a literatura que descrevesse “essa gente” exploraria um “verdadeiro
mundo novo para as descobertas dos engenhos imaginosos e das inteligências criadoras”. Nesse
estágio de sua trajetória intelectual, Araripe Jr. considera autores como Juvenal Galeno e Emílio
Zaluar como exploradores competentes desse mundo novo. Citemos aqui suas apreciações sobre
Emílio Zaluar.
O caráter do principal personagem deste pequeno romance está perfeitamente
desenvolvido; nada lhe falta para ser completo. É um desses trovadores dos nossos
sertões, populares, amáveis, simples, nobres em todas as suas ações e justamente
apreciados pelos seus dotes naturais. O Juca do Salto, acostumado desde a infância a
arrostar todos os perigos, a atravessar cachoeiras, a lutar com a correnteza dos rios e a
caçar onças, apresenta um perfeito tipo de nobreza, reunindo em si valor, bondade e
pureza. Inseparável de sua viola, sempre alegre e contente, procura ser amado por todos
e nunca se negava a satisfazer os menores caprichos dos apologistas da sua veia musical
(ARARIPE JR., 1868a, p. 14).
Assim, deduzimos da nota acima que Araripe Jr. concebe Juca do Salto por um conjunto
de representações acerca do caráter da personagem. Ele é descrito como um trovador sertanejo,
nobre em suas ações, destemido diante dos perigos naturais, conhecido pela sua fama de caçador
de onça, um ser puro, dedicado e talentoso. Portanto, Juca do Salto personifica o bem, o belo, o
típico herói romântico nacional.
Agora, vejamos que Araripe Jr. analisou “O vaqueiro”, de Juvenal Galeno, exaltando a
“propriedade” com que o poeta desenhou esse “tipo original de nossos sertões”.
Outra poesia de muito merecimento, por sua propriedade, linguagem, tecnologia e
abundância de traços fiéis, é a do “Vaqueiro”. Aí descreve-se um tipo original de nossos
sertões; é a vida do homem rústico por excelência, que não recua ante o perigo, ora
saltando abismos, ora pulando por cima dos mais corpulentos galhos, contanto que
nunca deixe de trazer o ginete escanchado em cima dos rastros da rês arisca, - objeto de
todas as suas apreensões. Nada lhe falta para ser completo, nem mesmo o coração
Em 1875, no texto “A poesia sertaneja”, Araripe Jr. continuará defendo que o sertanejo seja tema de obra literária.
No entanto, desloca a percepção do sertanejo influenciado por teoria de matriz positivista, como veremos adiante.
109
66
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
sensível, que quase sempre se oculta debaixo desses grosseiros couros (ARARIPE JR.,
1872, p. 48-49).
O vaqueiro cantado por Juvenal Galeno encerra as qualidades do herói romântico.
Embora vivendo em meio inóspito, distante da civilização, porta características cavalheirescas e
tem um destino épico a cumprir. A despeito de todas as barreiras naturais, “não recua ante o
perigo” e cumpre sua louvável missão: livrar de todo o perigo a “rês arisca”. Araripe Jr. considera
sua disposição cavalheiresca análoga à de um Peri e à de um Uncas, heróis de O Guarani e O
último dos moicanos, respectivamente escritos por José de Alencar e Fenimore Cooper. Assim como
Peri, Uncas tinha como missão proteger e salvar a heroína. Ambas, Ceci e Alice, dependiam
totalmente da coragem e da determinação de seus fiéis protetores a fim de continuarem
incólumes ante às ameaças que a natureza e os inimigos apresentavam.
2.4. Araripe Jr. e as Cartas a Cincinato
As impressões de leitura do crítico Araripe Jr., até aqui analisadas, de matriz romântica,
sofreram nítidas reavaliações a partir do momento que ele travou conhecimento com Cartas a
Cincinato.Os posicionamentos de Araripe Jr. em relação às Cartasa Cincinato representam um
marco na renovação dos seus compromissos políticos e de sua postura crítica frente ao ideal de
nação. A partir das Cartas, Araripe Jr. recorre a elementos da tradição literária nacional, somado a
uma triagem do repertório das ciências européias como instrumentos de análise não só das obras
literárias como também do quadro político e social brasileiro. É a partir de 1872 que localizamos
nos registros de Araripe Jr. vestígios das tensões romântico-naturalista que serviram de orientação
para se compor e criticar obras literárias daquele momento em diante.
O advento das Cartas a Cincinato é um exemplo de como a crise do regime imperial, uma
contenda de origem política, foi apropriada para discutir a tradição literária brasileira. As Cartas a
Cincinato são um conjunto de correspondências trocadas entre José Feliciano de Castilho, sob o
pseudônimo de Cincinato, e Franklin Távora, cognominado Semprônio, e publicadas no jornal
Questões do dia, entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872, mesmo ano em que
Franklin Távora publicou-as em volume. Conforme anota Eduardo Martins, o jornal Questões do
dia, editado pelo portuguêsJosé Feliciano de Castilho surgiu:
em agosto de 1871, no contexto dos debates travados sobre o projeto da lei do ventre
livre, e tinha a finalidade de rebater os argumentos contrários à libertação dos filhos de
escravos, levantados na câmara pelos membros da minoria do partido conservador,
além de defender Dom Pedro II da acusação de interferir indevidamente nos negócios
do Estado (...) Feliciano de Castilho indicava na sua segunda carta quais eram ‘as duas
questões da ordem do dia: poder pessoal e elemento servil’ (CASTILHO, 1871, p. 30).
110
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Desde a primeira carta, Cincinato elegeu José de Alencar como seu principal
interlocutor, convertendo as Questões do dia num verdadeiro libelo contra o escritor
cearense (MARTINS, 2008, p. 1).
As primeiras cartas são de teor majoritariamente político. Nelas José Feliciano de
Castilho, um dos membros do gabinete do Barão do Rio Branco, responsável pela redação da Lei
do ventre livre, fez ácidas críticas a José de Alencar político. Na época, Alencar era integrante do
Parlamento e, além de votar contra a aprovação da referida Lei, aproveitava seus discursos na
Câmara dos Deputados para denunciar D. Pedro II de intervir indevidamente nas questões do
Estado67. Por exemplo, o Imperador foi a público defender a Lei do Ventre Livre, conforme se lê
em uma das manchetes da edição comemorativa do Jornal do Senado, publicada em 14 de maio de
1888, cujo título é “Dom Pedro 2º defendeu a Lei do Ventre Livre”:
Nasceu da vontade de Dom Pedro 2º o projeto da Lei do Ventre Livre, elaborado pelo
gabinete conservador do Visconde do Rio Branco em 27 de maio de 1871. Em sua Fala
do Trono, dias antes, na abertura do ano legislativo, o Imperador antecipara que
“considerações da maior importância aconselham que a reforma da legislação sobre o
estado servil não continue a ser uma aspiração nacional indefinida e incerta”. Por vários
meses, deputados dos partidos Conservador e Liberal discutiram a proposta. Quatro
meses depois, em 28 de setembro, transformou-se na Lei nº 2.040, assinada por Dona
Isabel (JORNAL DO SENADO, p. 02).
Mediante às contendas de José de Alencar com o Imperador, José Feliciano de Castilho
colocou-se no campo de defesa de D. Pedro II. O debate migrou do campo político para o
campo literário à medida que Franklin Távora se tornou um interlocutor de Castilho. De Recife,
Távora, o Semprônio, enviou cartas a Cincinato afirmando que as posturas “retrógradas” de José
de Alencar como político, como parlamentar, também se revelava nas suas produções literárias.
Segundo Távora/Semprônio esse era o caso de alguns romances de Alencar, o Sênior. A partir de
então, o debate girou em torno dos romances O gaúcho e Iracema.
Nas Cartas, Távora/Semprônio confere a José de Alencar a alcunha de “escritor de
gabinete”68 porque Alencar não teria observado in loco a região e os tipos humanos representados
67José
de Alencar fez duras críticas à intervenção do Imperador nas decisões do Parlamento em seus discursos dos
dias 9 de maio, 10 e 15 de julho e 08 de agosto de 1871. Cf. ALENCAR, José Martiniano de Alencar. Discursos
proferidos na sessão de 1871 na Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Typografia Perseverança, 1871. Disponível
em.:http://books.google.com.br/books?id=we5DAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em.: 22. set. 2011.
68 Em 1875, José de Alencar volta a ser alvo de novos ataques. Desta feita, seu oponente será Joaquim Nabuco que
também apelida o autor de Iracema de “escritor de gabinete”. Nabuco define o escritor de gabinete como aquele que
conhece o tema que se propõe a desenvolver apenas através de fontes bibliográficas: “A natureza americana ele
estudou-a nos livros; as flores na botânica; o escritor não conhece a linguagem que fala a natureza, não tem o
desenho, não tem as tintas para exprimir-lhe as formas e o relevo, e não tem o que supre muitas vezes a pintura e
aarte, a análise de suas impressões diante do belo. Quem lê os romances do Sr.J. de Alencar, vê que ele nunca saiu do
seu gabinete e nunca deixou os óculos. O homem que ele nos pinta nunca está em comunicação com o meio em que
vive” (NABUCO em COUTINHO, 1978, p. 209).
111
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
em suas obras. Nesse ponto, Távora se refere especialmente a O Gaúcho, obra que José de Alencar
teria cometido “inexatidões” por não conhecer a região. Por essa causa, Távora dirige uma
pergunta a Alencar: “Por que não foi ao Rio Grande do Sul antes de haver escrito o Gaúcho?. (...)
Isto o faz cair em frequentes inexatidões, quer se propunha a reproduzir, quer a divagar na tela”
(TÁVORA, 1872, p. 15).
Nesse aspecto, Távora considera a postura de Fenimore Cooper mais adequada do que a
de José de Alencar:
O grande merecimento de Cooper consiste em ser verdadeiro; porque não teve a quem
imitar senão à natureza; é um paisagista completo e fidelíssimo. Não escrevia um livro
sequer, talvez, fechado em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha todos os matizes
da natureza, estuda as sensações do eu e do não eu, o estremecimento da folhagem, o
ruído das águas, o colorido do todo; e tudo transmite com exatidão daguerreotípica.
(Idem, p. 13).
Como Távora chegou a essa conclusão sobre a obra de Fenimore Cooper? Ele foi aos
Estados Unidos? A “exatidão daguerreotípica” simboliza a capacidade de reproduzir a cópia mais
perfeita possível da natureza e do homem, ideal alcançado por Cooper. Daguerreotipia é “a
imagem produzida pelo processo positivo criado em Paris, em 1839, pelo francês Louis-JacquesMandé Daguerre (1787-1851) (VASQUEZ, 2002). Necessário destacar que o processo de
produzir imagens pelo daguerreótipo disseminou-se no Brasil nos oitocentos e a ele vinculou-se
uma crença geral na sua capacidade de reproduzir o real tal e qual.
Já o ambiente natural nos romances de Alencar seria uma imitação servil da realidade, não
o seu retrato fiel, motivo que leva Távora a detratar os romances do brasileiro e exaltar os de
Cooper.
(...) Cooper daguerreotipa a natureza, Sênior, [Alencar] é força de querer passar por
original, sacrifica a realidade ao sonho da caprichosa imaginação: despreza a fonte, onde
muita gente tem bebido, mas que é inesgotável e onde há muito licor intacto. Para
Sênior a verdade, dito por muitos, perde o encanto (Idem, p. 14).
Desse modo, Távora estabelece um paralelo entre o ideário romântico versus o de matriz
cientificista. De um lado, valoriza-se a observação científica da natureza e dos costumes
populares com o objetivo de estabelecer a verdade objetiva, mais próxima possível do referente.
Do outro, repele-se o “sonho da caprichosa imaginação” por ela encerrar a um tipo de realidade
falsa, estéril e incoerente. Por guardarem tais características, O Gaúcho e Iracema, os romances de
Alencar,materializariam um conglomerado de erros e dados inverossímeis, tanto no que se refere
112
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
ao tempo quanto ao espaço de que trata, sendo, portanto, inadequados àquela época caracterizada
por tantos avanços literários69 .
As Cartas a Cincinato têm valor capital na historiografia literária brasileira por
representarem a entrada da crítica naturalista na literatura brasileira. Para Afrânio Coutinho, tratase de um documento “do mais alto valor intrínseco, sobre ser um precioso testemunho daquela
fase de passagem do Romantismo para o Realismo, a década de 1870, uma brilhante encruzilhada
das nossas letras” (COUTINHO, 1978, p. 9). Na verdade, o advento das Cartas a Cincinato
desdobrou-se num “verdadeiro campo de reflexão e disputa acerca dos processos de produção e
escrita do gênero” (AUGUSTI, 2006, 114). São discursos teórico-metolodológicos proferidos por
partidários de Alencar e por partidários dos romances naturalistas, a maioria literatos. Grande
parte desses documentos está espalhada nos jornais e periódicos que circulavam na Corte e nas
províncias.70
O próprio José Alencar não se esquivou em defender suas obras e atacar o positivismo e
seus adeptos.
Si não me engano, o Vulgarisador71é destinado a propagar o espirito novo, ao qual talvez
por falta de compreensão ainda não me converti. Reconhecendo e applaudindo os
altivos commetimentos da seieneta moderna, todavia não sacrifico ao idolo de hontem
todas as conquistas de uma civilisação millenaria. Em meu conceito isso que
consideram a ultima palavra da sciencia, não é mais do que uma revolução na qual
como em todas as revoluções da hummanidade vae de envolta com as vontades que
surgem, muitas vezes, o erro, o absurdo e o fanatismo.[...] A sciencia positiva tem
prestado grande serviço aos pensadores, fornecendo-lhes factos e observações
importantes; mas este precioso cabedal, só poderá ser aproveitado, quando os sabios se
desprenderem do materialismo que os invadio, e desistirem da pretenção de governar o
mundo moral pelo microscopio (ALENCAR, 1877).
Esse era um dos eixos do “método moderno” de crítica literária defendido por Távora. Provavelmente tributário
dos ensinamentos do literato francês Emile Zola que afirmava: “O mais belo elogio que se podia fazer a um
romancista, outrora, é dizer: “Ele tem imaginação”. Hoje, esse elogio seria visto quase como uma crítica. É que todas
as condições do romance mudaram. A imaginação já não é qualidade mestra do romancista (...) Insisto nesse declínio
da imaginação porque vejo nisso a própria caracterização do romance moderno. Enquanto o romance foi uma
recreação do espírito, um divertimento ao qual não se pedia senão a graça e a verve, compreende-se que a grande
qualidade era mostrar nele uma invenção abundante. Mesmo quando o romance histórico e o romance ilustrando
uma tese apareceram, era a imaginação que reinava onipotente (...) Com o romance naturalista, o romance de
observação e de análise, as condições mudam imediatamente. O romancista inventa ainda mais; inventa um plano,
um drama; apenas, é uma ponta do drama, a primeira história surgida, e que a vida cotidiana sempre lhe fornece. Em
seguida, na estruturação da obra, isto tem em pouca importância. Os fatos só estão lá como desenvolvimentos
lógicos das personagens. O grande negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos leitores a
comédia humana com a maior naturalidade possível. Todos os esforços do escritor tendem a ocultar o imaginário
sobre o real. Cf. ZOLA, Emile. Do romance:Stendhal, Flaubert e Goncourt. São Paulo: Imaginário/ Edusp, 1995,p.
23-4.
70 Importantes discursos em torno das Cartas a Cincinato ereflexões a posteriori sobre as tensões romântico-naturalistas
na literatura brasileira, na década de 1870, foram trazidas à baila no subtítulo “Às voltas com a representação da
realidade nacional”, p. 106-117, da brilhante tese defendida por Valéria Augusti. Cf. AUGUSTI, Valéria. Trajetórias de
consagração:discursos da crítica sobre o Romance no Brasil oitocentista. 2006. Tese (doutorado). Departamento de
Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, Campinas, 2003.
71 O Vulgarizador era um periódico da Corte que circulou irregularmente entre 1877 e 1879. Nele Araripe Jr. publicou
cinco capítulos do folhetim inconcluso O retirante, entre 04/08/1877 e 05/12/1878. Importante anotar que a
publicação é interrompida em 08/09/1877 e só é retomada em 20/06/1878.
113
69
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
A resposta de Alencar indica um texto polido, porém bastante expressivo na crítica. Por
um lado, reconhece as demandas do “espírito novo”; por outro, denuncia as contradições da
ciência positiva, à medida em que esta defenderia um materialismo no limite entre o “erro, o
absurdo e o fanatismo”; o que ele aponta, é fundamentalmente a sacralização da ciência e suas
consequências nefastas, seja para a sociedade, seja para a literatura.
Além de publicações na
imprensa, Alencar tentou proteger seus romances nos prefácios das obras que publicou
posteriormente às Cartas. Éo caso do prefácio do romance Sonhos d’ Ouro, escrito em 1872,
intitulado “Bênção paterna”72. Trilha seguida por Bernardo Guimarães no prefácio intitulado
“Prólogo” que o romancista escreveu ao Folhas de outono.
Outros romancistas também consagrados, a exemplo de Joaquim Manuel de Macedo,
também participaram desse debate e saíram em defesa de suas obras que também passaram a ser
alvejadas pelos mesmos argumentos que tentavam desbancar alguns dos romances alencarianos.
Joaquim Manoel de Macedo tomou essa tensão poética, originada da política como tema do
romance Nina73.
Cf. SALLES, Germana Maria Araújo. Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (1826-1881). 2003.
Tese (doutorado). Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP,
Campinas, 2003.
73 Cf. MACEDO, Joaquim Manoel de. Nina. Em: COSTA SERRA, Tania Rebelo. Antologia do romance-folhetim (1839 a
1870).Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997, p. 169-170. O romance Nina foi escrito em 1869 e nele
Macedo, por meio das personagens Firmiano e Félix, qual o melhor critério para compor um romance: se a
imaginação ou o real: “Almoçavam os dois amigos em uma bela e agradável manhã no hotel vizinho do Jardim
Botânico, quando Félix, impacientando-se, perguntou a Firmiano o motivo do seu mau humor, que ainda ali o
perseguia. O provinciano hesitou; mas acabando por ceder às instâncias do amigo, e também confiando muito no seu
bom conselho, respondeu. - É que minha santa irmã, que me supõe dotado de raro talento e rica imaginação, impôsme a obrigação de compor um livro de poesias ou um romance... - Falas sério? - Do livro de poesias nem de leve me
preocupo; porque fazer versos é para mim impossível; decoro facilmente os versos que leio; mas compô-los eu? ...
tempo perdido. - Muito bem Firmiano, poeta à força é pintor que borra telas e cantor que desafina a música. - Mas o
romance? Para o romance não há necessidade de metrificação, nem de consoantes... - Enganaste: é indispensável a
metrificação das lições morais e a consonância da imaginação com a realidade, da forma com a matéria, dos quadros
que se inventam com as paixões que neles são expostas. - Segue então que nunca poderei escrever um romance?
Félix dominou-se para não rir. - Olha, Félix, tornou Firmiano, não tenho presunção, nem vaidade; daria porém
metade da minha vida para compor um romance. - Com que fim? - Para satisfazer o inocente capricho de minha
irmã (...) a idéia de que possuo luminosa inteligência é o seu encanto (...) - Em tal caso, mãos à obra! Disse Félix com
os olhos úmidos de lágrimas. Firmiano abaixou confuso a cabeça, e prosseguiu dizendo: - Na província meu
professor de retórica e poética, tratando do romance, disse-nos em uma de suas lições: “Predomina hoje a escola
realista, que matou a romântica, que por seu turno tinha destruído a clássica: com essa nova escola não há quem não
possa ser fecundo romancista; já não se imagina, copia-se, toma- e o chapéu e a bengala, passeia-se nas ruas, visitamse os amigos, espreita-se o que se passa na casa alheia, escreve-se o que se observou, e está feito o romance.” Sapientíssima lição! - Acreditei nela, e para aditar minha irmã, jurei-lhe escrever um romance; tenho porém embalde
passeado, observado, estudado o mais vasto dos nossos teatros, a cidade do Rio de Janeiro, e ainda não encontrei o
romance que tão fácil se afigurava ao meu professor. - É que o seu professor não conseguiria jamais ser o inventor
da pólvora. - Dizeis pois... - Que ele te fez acreditar na extrema facilidade do empenho mais difícil. Em literatura,
Firmiano, a escola realista ensina que o romancista deve ser o copista fiel da vida da sociedade, dos sentimentos, das
paixões, dos costumes, por conseqüência o escrupuloso e sutil sondador dos corações, o revelador das tendências e
do caráter da época, em uma palavra o daguerreótipo moral da sociedade e da família. Julgas que isto seja muito
simples? - Creio que não. - Ah! Certamente não: ver é o menos, saber ver é o mais; observar não é tudo, sentir é que
é o essencial; mas sentir não basta; dizer bem e artisticamente o que sentiu é indispensável; portanto, para se compor
114
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Capítulo 2
Qual a postura de Araripe Jr. frente a esse debate literário? Ele participou intensamente
dessa disputa como partidário de José de Alencar, apoio que se materializou ao escrever “O livro
de Semprônio”(1872-3), em cujo subtítulo se lê: “a propósito dos Sonhos d’Ouro de José de
Alencar e publicações provocadas pelo roceiro Cincinato”. Trata-se de um conjunto de três cartas
endereçadas ao “amigo Juvenal”, provavelmente o poeta Juvenal Galeno (1836-1931). As
missivas foram publicadas originalmente no jornal O Constituição, de Fortaleza. A primeira, datada
de 24 de outubro de 1872 e publicada em 29 de outubro; a segunda, datada de 05 de outubro de
1872 e publicada em 14 de novembro de 1872; a última, de 15 outubro de 1872 e publicada em
09 de março de 1873.
Araripe Jr. escolhe como alvo de suas contestações apenas as críticas a José de Alencar
desferidas por José Feliciano de Castilho, passando ao largo daquelas empreendidas por Franklin
Távora; aspecto que logo retomaremos. Por enquanto, é preciso informar que ao longo dos três
textos, Araripe Jr. anota o teor das críticas encetadas por José Feliciano de Castilho e rechaça uma
a uma.
Ele começa desqualificando a crítica de José Feliciano de Castilho por julgá-la como um
“pretensioso desabafo de queixas particulares” e porque era uma fraca “reação odiosa” de quem
queria apenas “galgar os degraus do Capitólio”74. Para o nosso autor, o único propósito daqueles
dois críticos “despeitados”, desapiedados “iconoclastas de estátuas” era “atacar ou desfazer a
nascente literatura brasileira”, utilizando como alvo José de Alencar, um de seus maiores
expoentes, o “único busto” que a literatura brasileira havia erguido. Araripe Jr. diz que até
aceitaria as críticas que Castilho fez a Alencar se ele fosse uma autoridade como literato, mas,
continua, a atividade literária que Castilho apresentara até então revelavam seu “charlatanismo
literário” sua “inércia” como escritor; que “José Feliciano de Castilho nunca foi poeta, nunca foi
crítico, nunca foi coisa alguma” (ARARIPE JR., 1872-3, p. 61), sendo, portanto, um voto
desautorizado.
Além desse aspecto, Araripe rebate as censuras que José Feliciano de Castilho fez à
linguagem de Iracema.
Em que, porém, têm consistido os seus ataques à reputação do autor de Iracema? Na
parte estética de seus trabalhos? Nos caracteres criadores? Na deficiência do ideal? Na
parte artística? O que direi mais? No fundo das concepções do poeta ou em sua índole?
Não. (...) Procurou as raseiras da obra, as jaças do diamante, certos defeitos de
linguagem (admirabili dictu!), afoitezas de poeta, coisas que são baldas aos mais
pintados, e excluindo tudo mais quanto eram qualidades apreciáveis, ei-lo a malhar
um romance é preciso saber ver, saber sentir, saber dizer. - Lá vai minha esperança de escrever um romance para
minha irmã!...”.
74 Araripe Jr. não faz referência às contendas políticas entre José de Alencar e o Imperador, muito provavelmente
porque seu pai exercia cargo público, ordenado por D. Pedro II.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
sobre a questão de vernaculidades, já por demais discutidas (...) censura no autor da
Iracema descuidos de pena, excrescências inevitáveis em toda a obra do talento; quando
excluindo todas as mais qualidades que concorrem no criticado, o condena aos limbos
querendo retrogradar ao quinhentismo. (Idem, p. 62-63).
Diante das exprobrações de José Feliciano de Castilho, Araripe Jr. rebateu acusando-o de
ter “errado de vocação”, sugerindo-lhe como mais apropriada a profissão de mestre-escola.
Como tal, prestaria um bom serviço aos lentes, a quem proporia exaustivos exercícios de
ginástica gramatical e, ao mesmo tempo, pouparia as letras brasileiras de “assistir a exibição de
uma crítica que faz consistir o mérito do livro na observância de regrinhas”. E Araripe Jr. conclui:
“outrossim, desejaríamos de ver extinta a raça de censores retrógrados, daqueles críticos que
arroubam-se em estudos arqueológicos da língua portuguesa, porque Camões dizia ‘mas porém’
querem que digamos com ele ‘mas porém’”. Sobre esse aspecto, Araripe Jr. contra-argumenta
dizendo que “tudo quanto sob as vistas do Eterno floresce”, está à mercê da “força do
progresso”. Esse seria o caso das línguas, seja ela portuguesa ou de qualquer outra nação,
conforme Araripe Jr. anota:
Entretanto, força é que o carro do progresso vá deixando o trilho de sua passagem em
todas as regiões do possível. A despeito de todos os protestos dos antiquários [a
exemplo de José Feliciano de Castilho], a teoria do progresso na linguagem há de
passar. Além de ser um fato atestado pela história, onde vemos as línguas grega, latina e
italiana e alemã formarem-se e passarem por todas as fases possíveis, vem em
contrapeso o princípio do aperfeiçoamento, regra invariável em tudo quanto sob as
vistas do Eterno floresce (Idem, p. 64 – grifo nosso).
Percebamos que o crítico Araripe Jr. se esforça em mostrar que José de Alencar manejou
a linguagem movido pela “força do progresso”. Para tanto, apropria-se de termos e idéias do
repertório cientificista europeu. Ao que parece, Araripe Jr. tenta mostrar que a linguagem
atualizada de José de Alencar não resultava de um desleixo com a modalidade culta da língua
portuguesa, mas provinha do influxo do “progresso”75; emanava da lei da evolução a que a todos
e a tudo submete.
Por fim, nesse momento que evidenciamos o envolvimento de Araripe Jr. nas querelas
em torno das Cartas a Cincinato, importa responder uma questão: Por que Araripe Jr. limita-se a
contestar apenas às críticas a José de Alencar feitas por Castilho? O que o levava a tal defesa tão
75No
dizer de Jacques Le Goff, a noção de progresso teve uma acepção especial durante o século XIX. Vincula-se o
termo aos “progressos científicos e técnicos, os sucessos da revolução industrial, a melhoria, pelo menos para aselites
ocidentais, do conforto, do bem estar e da segurança, mas também os progressos do liberalismo, da alfabetização, da
instrução e da democracia”. Herdeiro do iluminismo e da revolução francesa, constituiu-se em expressão da ideologia
da filosofia de Auguste Comte que afirmava: “uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui
portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao progresso”. Cf. LE GOFF, Jacques.
História e memória. Campinas: Unicamp, 1996, p. 256-258.
116
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
vigorosa de Alencar? Talvez porque compartilhasse com pelo menos parte da opinião de Távora
sobre as limitações dos romances de José de Alencar. É o que se pode inferir do trecho que se
segue: “Por mais pecados que José de Alencar tenha cometido em sua senectude literária, jamais
seria digno de semelhantes impropérios. As suas primeiras produções o remirão dos descuidos de
hoje”. (Idem, p. 63 – grifo nosso). Deduzimos que, por mais que Araripe Jr. reconhecesse as
limitações artísticas das últimas obras de Alencar, por mais que concordasse que Alencar havia
chegado à “senectude” literária, Araripe Jr., por outro lado, não abria mão de conferir a José de
Alencar o posto de maior prosador brasileiro. Por isso, frisava e enaltecia o valor da obra de José
de Alencar para a consolidação da literatura brasileira e rejeitava o modo desrespeitoso com que
Alencar foi tratado nas Cartas a Cincinato.
Outra hipótese é que, a partir das Cartas, Araripe Jr. passa a aceitar o repertório
cientificista como base para julgar e escrever obras literárias. Os fragmentos sublinhados denotam
traços dessa adesão; mostram um Araripe Jr. já tributário do princípio taineano de que todo autor
de literatura passa por duas fases distintas ao longo de sua produção literária: a fase do
“amadurecimento” intelectual em que apresenta produções artísticas mais consistentes e
elaboradas; terminando com o declínio ou “senectude”, quando o autor passa a reapresentar o
melhor de sua produção. Anos mais tarde, entre 1879 e 1882, Araripe Jr. escreveu O Perfil de José
de Alencar seguindo o modelo taineano citado76. À primeira vista, parece contraditória a posição
de Araripe Jr. diante de Alencar expostas nas Cartas a Cincinato. Mas, vendo por outro ângulo,
trata-se de uma postura de valorização do que, para ele, de melhor havia sido construído no
campo literário nacional, sendo Alencar um desses construtores.
Veremos a seguir como a temporada de Araripe Jr. no Ceará77 será marcada por intensos
debates em torno da “Escola Popular” e da “Academia Francesa do Ceará”.
Em 1894, doze anos depois de publicar O Perfil de José de Alencar, Araripe Jr. publicou 2ª edição da obra e nela
escreveu um prefácio no qual afirmava ter seguido o modelo taineano para analisar o autor de Iracema: “a evolução do
espírito artístico de José de Alencar e, paralelamente, a morfologia, a filiação e a transformaçãoos caracteres dos
personagens dos seus romances. Nisto residia essencialmente a alma do livro. E, relendo-o hoje, depois de doze
anos, não renego, apesar das grandes modificações operadas no meu espírito posteriormente, por novos estudos e
pela meditação das obras de arte atuais. Não o renego, não por esse motivo, mas também porque vejo que, sendo o
perfil do primeiro trabalho sobre uma autor nacional que se escreveu no Brasil aplicando os métodos de H. Taine”.
Como se vê, além de informar sobre o tributo a Taine, Araripe Jr. utiliza o prefácio para fazer uma espécie de
balancete de sua trajetória intelectual entre 1882, ano em que o texto foi escrito, e 1894, ano da segunda edição da
obra, e diz que, ao longo desses anos, seu pensamento evoluiu; nele operou-se “grandes modificações” promovidas
por novos estudos e pela leitura de obras surgidas posteriormente. ARARIPE JR., Tristão de Alencar. “Perfil de
José de Alencar”. Em: COUTINHO, Afrânio. Obras completas de Araripe Jr. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1958, vol. I, p. 123.
77No dizer de Jacques Le Goff, a noção de progresso teve uma acepção especial durante o século XIX. Vincula-se o
termo aos “progressos científicos e técnicos, os sucessos da revolução industrial, a melhoria, pelo menos para as
elites ocidentais, do conforto, do bem estar e da segurança, mas também os progressos do liberalismo, da
alfabetização, da instrução e da democracia”. Herdeiro do iluminismo e da revolução francesa, constituiu-se em
expressão da ideologia da filosofia de Auguste Comte que afirmava: “uma sistematização real de todos os
117
76
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
2.5. A “Academia Francesa do Ceará”
Em 1872, além de se envolver nas discussões sobre as Cartas a Cincinato, Araripe Jr.
retorna ao Ceará. Logo depois de sua formatura, em 1869, na Faculdade de Direito do Recife,
Araripe Jr. havia se mudado para a província de Santa Catarina, onde foi servidor público entre
1870 e 1871. Voltou ao Ceará para assumir a função de juiz de direito da pequena Maranguape,
distante 30 km de Fortaleza, cidade onde permaneceu até sua mudança para a Corte, em 1880.
A permanência no Ceará foi intelectualmente muito proveitosa. Na provinciana Fortaleza
dos anos 1872-3, Araripe Jr., então com 24 anos, passou a reunir-se com outros jovens moços,
que unidos pela “unidade geracional”, também iniciaram sua vida profissional no “limiar da
década de 1870”. Raimundo Antônio Rocha Lima, Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Xilderico
Araripe de Faria, Antônio José de Melo, Felino Barroso, pai de Gustavo Barroso, João Lopes
(Ferreira) da Silva Filho, João Capistrano de Abreu, Frederico Severo, Amaro Soares Cavalcanti
(professor de latim de Baturité), Manuel Quintiliano da Silva (juiz de Missão Velha), Henrique
Théberge, José Castelões Filho, Francisco Borges da Silva eram os companheiros de jornada
intelectual de Araripe Jr. Sobre os quais trataremos individualmente mais adiante. O grupo de
“jovens estudiosos” (AZEVEDO, 1970, p. 06) passou para a historiografia literária brasileira com
o nome de Academia Francesa do Ceará (que funcionou de 1873 até de 1876) e os intérpretes do
período consideram-na como uma dos mais atuantes confrarias da chamada “geração de 1870”.
As performances dos membros da Academia justificam as avaliações que fazem sobre ela.
Os acadêmicos atuaram em três frentes distintas e complementares: uma de cunho intelectual, à
medida que “ali repassaram todas as idéias do século estudando autores do dia como Taine,
Comte, Littré, Spencer, Darwim, e ainda Stuart Mill, Vacherot, Quinet, Renan, Burnouf, Jacolliot,
Renan e outros luminares do pensamento da época” (AZEVEDO, 1970, p. 06). A outra, de viés
político, já que partiu para o enfrentamento de questões relacionadas à crise do Império,
utilizando como libelo o jornal O Fraternidade. Embora o grupo seja sempre lembrado tão
somente pelos embates religiosos em que se envolveu, os pleitos da “Academia Francesa do
Ceará” eram o fim da monarquia e da mão de obra servil, assim como a emancipação da literatura
brasileira, entre outras questões, a exemplo das demandas por educação, sobretudo a feminina. É
o que se depreende de algumas conferências proferidas por membros da Academia Francesa do
Ceará aos alunos da Escola Popular, como logo veremos.
pensamentos humanos constitui portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao
progresso”. Cf. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996, p. 256-258.
118
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
A terceira frente de atuação se materializou com o exercício de práticas sociais ao fundarem
a “Escola Popular”.
Uma escola noturna, gratuita, de inspiração comteana, destinada a
trabalhadores e ponto alto das realizações dos acadêmicos, já que unia a teoria à prática. Na
Escola Popular ensinavam-se matérias do currículo básico, como “língua nacional”, ministrada
por Rocha Lima, Aritmética, por Benjamin, Francês, Geografia e História, ministradas por João
Lopes; além das cinco turmas de “primeiras letras” (ROCHA LIMA, 1968, p. 355) 78. As ações
efetivas da Academia Francesa do Ceará e da Escola Popular desbancam a tese (já mencionada
anteriormente) segundo a qual a “geração de 1870” foi um fenômeno de caráter exclusivamente
intelectual, descolado da “prática social”.Conforme anota João Rocha Ferreira Filho, secretário
da Escola, “além desse curso, que constituiu o trabalho ordinário da escola, foi instalado o curso
de conferências públicas. Durante o ano letivo a escola realizou 8 conferências”79(FERREIRA
FILHO apud ROCHA LIMA, 1968, p. 355-6). Depois de citar os nomes dos oradores e os
títulos de suas respectivas conferências, localiza-se um agradecimento “aos beneméritos cidadãos
da ciência” pelos serviços prestados à Escola Popular. Seguem-se ainda explicações e
informativos que passamos a citar, com o objetivo de apresentar os raros documentos que
encontramos sobre a “Escola Popular”:
A explicação e constituição do Império, revistas e jornais e ensino moral constituirão
uma série de preleções às quintas-feiras. A matrícula subiu de 156 alunos e a frequência
que em maio chegou apenas a 67, montava em novembro a 118 alunos. Eis, meus
senhores, etc...’ Quem leu e assinou o relatório, na qualidade de secretário, foi um dos
mais operosos e constantes amigos de Rocha Lima – João Lopes Ferreira Filho
(FERREIRA FILHO apud ROCHA LIMA, 1968, p. 355-6).
Como se vê, a atuação de Araripe Jr. e de seus companheiros na “Academia Francesa do
Ceará” e “Escola Popular” tanto incorpora um trabalho sistemático de recepção, reflexão, e
apropriação do conjunto das teorias cientificistas em voga na Europa, como prima pela aplicação
prática dos ensinamentos na base social cearense, sobretudo entre trabalhadores da região de
Fortaleza. O foco dessas atividades, portanto, foram as questões candentes da constituição do
campo literário e, ao lado disso, os problemas típicos da fundação nacional.
Sobre a importante experiência de montagem e funcionamento da Escola Popular
dispomos de poucos documentos. Nossas buscas se revelaram infrutíferas em instituições como
o Instituto Histórico do Ceará e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Tudo o que
encontramos está nas obras Academia Francesa do Ceará, do professor Sânzio Azevedo, e Crítica e
literatura, de Rocha Lima, mas que, ainda assim, nos forneceram uma noção de como esta
78
79
Texto publicado originalmente em 11 de dezembro de 1874, no jornal Fraternidade.
Esse texto foi originalmente publicado jornal O Fraternidade, em 1874-1875.
119
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
entidade é reveladora da face política-reformadora que animava seus fundadores e colaboradores.
Lacuna esta que, obviamente, nos levou a concentrar atenção para a “Academia Francesa do
Ceará”.
É comum analisar a “Academia Francesa do Ceará” por meio de depoimentos isolados e
aposteriori dos integrantes da agremiação; ou ainda é recorrente localizar discussões, a nosso ver,
inócuas que se prestam entender se “Academia Francesa do Ceará”se desenvolveu
autonomamente ou se era um núcleo cearense da chamada “Escola do Recife”. De todo modo,
diante dessa discussão, comungamos com o pensamento de Wilson Martins (1977-78, p. 44-45)
que entende que a “Academia Francesa do Ceará” foi um
movimento paralelo e independente da Escola do Recife, [que] embora resultasse das
mesmas preocupações e de idênticos pontos de vista, não era, realmente, uma
agremiação formalmente constituída (...), mas, antes, um ‘agrupamento de jovens
estudiosos’ que se reuniam para colóquios intelectuais, sobretudo em casa de Rocha
Lima” (Idem, p. 44-5).
Ainda segundo Martins a referência francesa dada à academia cearense foi uma ironia
afetuosa de Rocha Lima. Pelas palavras de Wilson Martins é possível observar uma diferença
evidente entre as duas agremiações. A de Pernambuco era institucionalizada, governamental,
organizou-se dentro dos domínios da Faculdade de Direito do Recife, um privilegiado centro de
estudo de humanidades no Brasil; a do Ceará, por sua vez, foi fundada pela iniciativa particular,
provavelmente sem recursos externos, uma espécie de sociedade das artes.
A despeito dessa discussão, concordamos com o princípio segundo o qual esses grupos,
de Pernambuco e de Fortaleza, se unem pela “unidade geracional”, por terem vivenciado uma
mesma experiência social, na medida que compartilhavam uma comunidade de situação, ou seja, a
marginalização frente às instituições centrais da sociedade imperial; e, por isso, surgem como um
movimento contestador e reformista do status quo imperial.
Sendo assim, no caso da “Academia Francesa do Ceará”, consideramos mais relevante
esmiuçar as atividades de cunho intelectual e de cunho político de seus membros, privilegiando
aqui os registros contemporâneos à vigência da Academia. Conseguimos localizar 80 um conjunto
Assim que lemos as conferências de Araripe Jr. e Capistrano de Abreu, as primeiras que conseguimos localizar,
entendemos a importância que os estudos compartilhados na Academia Francesa do Ceará tiveram na formação
intelectual de Araripe Jr., na década de 1870, bem como identificamos sua influência na composição de O Reino
Encantado. Por isso, fomos a campo tentar localizar as demais conferências. Nesse percurso, contamos com os
importantes auxílios do professor Sânzio de Azevedo e de funcionários do Instituto Histórico do Ceará, sobretudo
da bibliotecária Madalena Figueiredo, a quem somos muito gratos. A despeito de todos os esforços e dos impagáveis
auxílios, conseguimos localizar apenas quatro, todas publicadas no jornal O Fraternidade: O Papado, de Araripe Jr.,
História Universal e Soberania Popular, de Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Liberdade religiosa, deXilderico Araripe de
Faria, A literatura brasileira contemporânea, de João Capistrano de Abreu. As demais, até onde nossas pesquisas
120
80
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
de quatro conferências realizadas por Araripe Jr., Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Xilderico
Araripe de Faria e João Capistrano de Abreu, em Fortaleza, no ano de 1874. São os poucos
registros contemporâneos à agremiação que sobreviveram, talvez porque a “Academia Francesa
do Ceará” não tinha sede, não tinha estatuto, nem presidente; as reuniões eram itinerantes,
normalmente aconteciam na casa de um dos membros, e, recorrentemente, eram na de Rocha
Lima. A leitura das conferências permitiram-nos identificar os postulados políticos da “Academia
Francesa do Ceará”, identificar práticas de leitura de seus membros, sobretudo identificando os
autores e os títulos lidos e discutidos no interior da agremiação. Sobre o último aspecto, não nos
interessa aqui medir o nível de adesão dos “cavaqueiros intelectuais” a esta ou aquela corrente
cientificista européia, mas identificar como eles se filiam a tal repertório como argumentos para
defender pleitos que lhe eram caros e justificar ações políticas, ou seja, exercer práticas sociais.
2.5.1. Soberania popular
As conferências sucediam na sede da Escola Popular. Coube a Tomás Pompeu Souza
Brasil Filhoproferir a conferência inaugural, em 16 de agosto de 1874, sob o título de Soberania
popular81. Pompeu Filho leciona que “o desenvolvimento social” e o “desenvolvimento humano”
estão sujeitos às mesmas “leis gerais” que presidem a formação da natureza. Do mesmo modo, o
“progresso e a civilização” são produtos dessas mesmas leis e, como tal, são inevitáveis e
constantes na sucessão dos tempos. Baseando-se nesses princípios, o conferencista explica o que
é a “soberania social”:
A princípio, o homem luta com a natureza para haver a subsistência; depois para ter o
conforto. Finalmente para domá-la e pô-la a seu serviço. Nessa luta, vence o elemento
moral e inteligente (...) Daí a história das evoluções mentais, daí o desenvolvimento do
poder do homem; daí a soberania social (POMPEU FILHO, 1874).
A crença na evolução da sociedade, tal qual ela se processa na natureza, faz com que
Pompeu Filho rejeite a história como uma “enumeração” das ações humanas, em determinada
época e local. E adote para si o método defendido por Auguste Comte, na obra Curso de filosofia
positiva, conforme o próprio Pompeu Filho justifica:
Na classificação das idades históricas, há dois métodos: um que consiste na enumeração
continuada das ações humanas em países e épocas limitadas; outro que deriva da
conseguiram alcançar, estão irremediavelmente perdidas. São elas: A Escola, de Manuel Quintiliano da Silva (juiz de
Missão Velha), Geognose da Terra, de Henrique Théberge, Religião, de Amaro Soares Cavalcanti (professor de latim de
Baturité), Educação na família,deJosé Castelões Filho, Eletricidade e seus efeitos, de Francisco Borges da Silva e, por
último, A Mulher, a família e a educação, de Frederico Severo.
81 Conferência posteriormente publicada no Fraternidade, nos dias 25 de agosto, 29 de setembro, 06, 16 e 27 de
outubro e em 03 de novembro de 1874.
121
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
própria natureza e chama acontecimentos e fenômenos sociais em abono dos estados
mentais do homem e da humanidade. É este que abraço porque dá conta, a um tempo,
da psicologia dos povos, isto é, do estado moral ou mental das raças humanas, e dos
fenômenos que determinam esses estados. Assim divido em três os períodos históricos
porque há passado o gênero humano. Primeiro o que recebe o homem embebido em
sonhos místicos (teológico); segundo o que o toma ainda nas concepções ontológicas
(metafísico); e o ultimo que conduz até a realidade ou a concepção verdadeira e positiva
do universo (positivo). (POMPEU FILHO, 1874)
O autor utiliza a explicação dos três períodos históricos para defender que a soberania
popular há de prevalecer. Na clara intenção de contestar o poder monárquico em voga no Brasil:
“O povo marcha lentamente para os degraus da convenção e começa a balbuciar a condenação
do despotismo. Enfim, rompem-se as cataratas da soberania popular; a onda de liberdade recua e
avança impetuosamente para o futuro. As realezas do direito divino estremecem e precipitam-se”.
E complementa: “De feito, não há soberania natural (hereditária), senão a que resulta da
superioridade intelectual” (POMPEU FILHO, 1874).
Em toda conferência, Pompeu Filho recorre ao repertório cientificista europeu. Ao longo
de seu texto, ele cita trechos de Auguste Comte, Charles Darwin, Buckle; faz alusões a Spencer e
a Alexander Bain e tantos outros. Mas, diferentemente do que pensava o autor de Raízes do Brasil,
a intenção do conferencista não era “evadir-se” da realidade brasileira. Muito pelo contrário. Ele
se lança na defesa de “uma constituição livre” e por um governo cuja “divisão de poderes” seja
compartilhada pelos “diversos membros da nação”, como uma medida de “ordem e de
progresso”. Essas e outras bandeiras correlatas serão defendidas pelos demais conferencistas.
2.5.2 Liberdade Religiosa
A conferência de Xilderico Araripe de Faria intitulou-se Liberdade Religiosa82. Nela, o autor
lança-se primeiramente na defesa de um Estado brasileiro laico. Por isso, repele veementemente
o fato de a Constituição pátria ter adotado a religião católica como a oficial. Para ele, a
justificativa que o Estado utilizou para fazê-lo, baseada no princípio da “maioria” é
improcedente.
Xilderico Araripe de Faria entendia que a função do Estado não era definir a religião a ser
seguida pelos brasileiros, mas garantir-lhes o direito natural à liberdade. A liberdade religiosa,
inclusive. Segundo seus argumentos:
O texto da conferência “Liberdade religiosa”, de Xilderico Farias foi publicada no Fraternidade, nos dias 19 e 30 de
junho de 1874.
122
82
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
O Estado, a sociedade política, não é mais do que a união, justaposição, a coexistência
de indivíduos com os seus direitos e deveres. O Estado tem por fim a garantia dos
direitos e das liberdades de cada um, salva as restrições que a liberdade de cada um faz a
liberdade de todos; donde se vê que, em vez de comprimir, o dever do Estado é
proteger, alargar e desenvolver esses direitos naturais que constituem a personalidade
humana e entre as quais está o direito de adorar a Deus (FARIA, 1874).
O pleito de Xilderico recaía, sobremaneira, pela liberdade de culto, especialmente as
atividades da maçonaria, cerceadas pela Igreja Católica e pelas leis do Estado83. Como argumento
último, o conferencista Xilderico Faria, afirma que a aliança natural do Estado não é a religião,
mas a liberdade.
Para ele, cumpria ao Estado primar pelo desenvolvimento e pelo progresso do Brasil,
esplêndido de galas e riquezas. Em suas palavras, o País seria “mármore bruto” que só esperava
as mãos hábeis de “Phidias para se transformar em estátua cintilante de vida” (FARIA, 1874).
Ocorre que, para o conferencista, o “estatuário” seriam especialmente dois: o primeiro, a
indústria; o outro, a mão de obra livre, em que o trabalho escravo deveria ser substituído por
imigrantes europeus.
O estatuário é a indústria. Venha ela arrancar das entranhas deste solo maravilhoso, o
pão, a riqueza, o luxo. A indústria é o trabalho, mas o trabalho livre, espontâneo,
vivificador, único que nobilita, enriquecendo. Mas faltam-nos braços. Nós estamos na
contingência de ir pedir aos países onde a população regorgita e transborda, que nos
mandem as suas demasias de população (FARIA, 1874).
Na compreensão de Xilderico Faria, a imigração seria a saída para resolver problemas de
escassez de mão de obra no País. Cabe destacar que, a década de 1870, conheceu o auge das
discussões institucionais sobre a pretensa adoção do “imigrantismo”84. Esta, embora de viés
eminentemente racial, era justificada pelos possíveis benefícios que traria à civilização nacional. É
o que assevera Célia Azevedo, em Onda negra, medo branco:
A reivindicação de imigrantes brancos tem claramente o objetivo de substituir o negro
em todos os setores, não só rurais como também urbanos. Longe de pretender que o
imigrante ocupasse lugares vazios, de atender enfim, ao problema da escassez de braços
Sobre as querelas entre a maçonaria e a Igreja Católica em Fortaleza, confira. ABREU, Berenice. Intrépidos romeiros
do progresso: maçons cearenses no império. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult, 2009.
84 Segundo Célia Azevedo, entre 1869 e 1878, os discursos dos deputados da Assembléia Legislativa de São Paulo
sobre a abolição dos escravos demonstram que havia duas correntes distintas: uma pretendia incorporar a mão de
obra do “ex-escravo” e do branco livre no mercado de trabalho; a outra corrente, defendia o “imigrantismo”. A
pesquisadora tenta traçar o distintivo desses dois posicionamentos. “Trata-se do sentido racista que impregnava as
proposições imigrantistas, muito diferentes das argumentações daqueles que pretendiam incorporar ex-escravos e
pobres livres no mercado de trabalho. Enquanto estes últimos tendiam a considerar as dificuldades em se tratar com
negros e mestiços em termos de igualdade jurídica à luz de explicações de cunho sócio-cultural, ou seja, mais nos
moldes do ideário liberal, os imigrantistas, por seu turno, buscavam preferentemente as teorias raciais para embasar a
defesa de seus projetos favoráveis à imigração estrangeira”. Cf. AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo
branco:o negro no imaginário das elites século XIX. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004, p. 120.
123
83
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
(...) acalentava um sonho bem distante de deslocar os escravos como um todo e
substituí-los pelos agentes da civilização, os trabalhadores brancos” (AZEVEDO, 1996,
p. 57).
No entendimento da autora, a prática do imigrantismo era, antes de tudo, uma atitude
“civilizatória”. Uma tentativa de “branquear” a população brasileira, idéia que estava no centro
das discussões sobre a nação. O desejo de “branquear” era uma intenção, que longe de ser velada
ou sugerida com pruridos, era proclamada e defendida com vigor, como se fosse uma atitude
“higienizante”. É o que ela conclui a partir da leitura dos discursos da Assembléia Legislativa de
São Paulo, proferidos entre as décadas de 1860 e 1880, e de afirmações como essa de Tavares
Bastos: “(...) a escravidão deveria ser condenada não tanto pelo mal inflingido aos negros, mas
principalmente pelos males sociais resultantes da presença daquela raça inferior entre nós
(BASTOS apud AZEVEDO, 2004,p. 57) Adotar a política do imigrantismo, por conseguinte,
seria uma prestação de serviço em favor da civilização brasileira.
O imigrantismo, no entanto, não abrangeu todo o território nacional; praticamente se
restringiu às províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, que desde a década de 1870, instituíram
e fomentaram a vinda de europeus, sobretudo, italianos para o Brasil. De todo modo e guardadas
as proporções, o tema foi concomitantemente abordado tanto na “Academia Francesa do Ceará”
e na “Assembléia Legislativa de São Paulo”85, conforme os dizeres de Xiderico Faria em sua
conferência. No trecho, Faria condiciona o “progresso” e a “civilização” à abolição do trabalho
escravo e à chegada do imigrante.
Nós precisamos de imigração. Nós dizemos ao estrangeiro: ‘Vem. Aqui há vastos e
feracíssimos campos, que para transformarem-se em riquíssimos celeiros precisam
apenas de baga de suor que goteja na fronte de homem que trabalha. Aqui há florestas
imensas que para transformarem-se em magníficas cidades precisam apenas do golpe
do machado e da picareta’ (FARIA: 1874).
2.5.3.A literatura brasileira contemporânea
Capistrano de Abreu proferiu uma palestra cujo título foi A literatura brasileira
contemporânea. Logo no início do texto, o conferencista leciona que, naquele momento, havia “dois
Os deputados que defendiam a adoção da política do imigrantismo justificavam também sua escolha baseados
num suposto medo da “onda negra”. A onda negra foi o nome que recebeu os crimes de negros contra seus
senhores e prepostos, ocorridos com mais frequência a partir da década de 1870. É o que se lê no Relatório com que
o Exmo. Sr. Dr. João Batista Pereira, Presidente da Província de São Paulo, passou à administração ao 2º vicepresidente, o Exmo. Barão de Três Rios, em 7 de dezembro de 1878. “A freqüência com que se reproduzem os
crimes de que são vítimas os proprietários rurais ou seus prepostos é um fato gravíssimo e tem gerado sérias
apreensões no ânimo público e trás sobressaltados os lavradores (...) O delinqüente não esconde-se e nem oculta as
provas do seu crime; plácido e tranqüilo busca a autoridade e vem oferecer-se a vindita da lei, sonhando com a
corrente do calceta, que é para ele uma redenção”. Cf. RELATÓRIO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE SÃO
PAULO 1878, p. 27 e 57. Disponível em.:http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1022/ Acesso em 05. fev. 2010. Esse
aspecto da política institucional do imigrantismo será recuperado por Araripe Jr. na composição de O Reino Encantado
como forma de reatualizar a história de Pedra do Reino, conforme veremos no capítulo seguinte.
124
85
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
métodos” em literatura, o “método qualitativo” e “o método quantitativo”. Vejamos como ele
explica o mérito de cada um: “o primeiro considera o produtoe fixa-lhe o valor, apelando para
uma idealidade. O segundo considera o processo, o característico, os antecedentes da realidade.
Um julga; outro define. Aquele procura a beleza e a perfeição; este procura o estado psíquico e
social” (ABREU, 1875 – grifos do autor). A seu modo, Capistrano de Abreu familiariza o leitor
sobre a tensão romântico-naturalista pela qual a literatura brasileira passava (conforme já
anotamos nas discussões em torno das Cartas a Cincinato) e posiciona-se frente à questão.
Capistrano opta por adotar o “método quantitativo”, já que declara sua crença no “determinismo
sociológico” e na convicção de que sociedade brasileira é “regida por leis fatais”, leis estas que
pretende descortinar, ao longo da conferência.
Para levar sua intenção a termo, Capistrano primeiro conceitua a literatura como a
“expressão da sociedade”, e a sociedade seria produto de “ações e reações” continuadas da “ação
da Natureza sobre o Homem, de reações do Homem sobre a Natureza”86[Grifo nosso]. Depois,
propõe tratar “influências físicas no Brasil”, para só então tratar “da sociedade que medrou sob
essas influências e da literatura que exprime essa sociedade”. Com esses termos, o conferencista
antecipa a metodologia que utilizará para compreender a literatura brasileira contemporânea.
Lembremos que esse texto é de 1875.
A proposta de Capistrano demandou uma digressão temporal de mais de 300 anos que
contemplou a natureza brasileira antes e, sobretudo, depois da colonização portuguesa. Uma
metodologia de análise de matriz declaradamente taineana de considerar o meio, ou “as
influências da natureza”, a raça, representada pela “sociedade”, e o momento histórico,
representado pelo atual estágio da literatura brasileira. Com a mesma intenção, Capistrano
explicou a sociedade brasileira por meio da “lei sociológica do consensus”, tomada de
empréstimo a Auguste Comte. “Pela lei sociológica do consensus, fatores e produto, órgãos e
funções estão intimamente ligados, substancialmente unidos. Nada existe fortuito: tudo é regular,
tudo é necessário, tudo concorre; modificar uma parcela é modificar o total” (ABREU, 1875).
Ainda segundo Capistrano de Abreu, essa lei é originária da biologia, “mas desde 1850 Stuart
Glennieaplicou-a às ciências inorgânicas”. Nesses termos, portanto, o processo de colonização
brasileiro modificou não apenas uma parcela, mas a totalidade do meio físico brasileiro.
86O
conceito de literatura defendido por Capistrano de Abreu remete ao conceito de “obnubilação brasílica”,
formulado por Araripe Jr., Vol II, p. 472. É provável que a semelhança seja fruto da fonte comum, na qual tanto
Araripe Jr. como Capistrano de Abreu buscaram inspiração: a obra História da civilização na Inglaterra, de Henry
Thomas Buckle. Segundo Roberto Ventura, “Buckle considerava a história um campo análogo às ciências naturais
que deveria examinar as leis pelas quais o meio físico age sobre o homem e a sociedade” (VENTURA, 1991, p. 9091).
125
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Modificou as “forças da Natureza” (clima, solo, alimentação) como também as aparências ou
“aspectos da Natureza”: as forças mentais do homem, sua capacidade intelectual87.
O alimento e o solo são agregados ao clima brasileiro como fatores de grandeza e
decadência. O clima quente induz a uma alimentação sóbria, farinosa; enquanto que o solo úmido
performa uma “natureza exuberante”, “grandezas que nos esmagam” (ABREU, 1875, p. 67).
Conclui o autor: “Esta situação, que faz do Brasil um dos mais belos países do mundo, faz de
seus habitantes um dos povos mais fracos”. Importante essa tensão porque direciona o olhar de
intelectuais da época. Esse é problema a ser enfrentado, a contradição entre a beleza
“exuberante” do Brasil, de sua terra “fértil” e a fraqueza da população – fraqueza que será
imputada ao fator racial, à miscigenação, mas também, como está claro aqui, ao clima tropical.
“Indolente e exaltado, melancólico e nervoso, eis o povo brasileiro qual o fizeram as forças e
aparências da Natureza. Por mais vários que sejam seus sentimentos, a todos sobrepuja o
alumbramento, o desânimo, a consciência da escravidão às leis mesológicas”.
Utilizando-se do “determinismo sociológico” ao qual se vincula, Capistrano de Abreu
explica a premissa segundo a qual as reações do homem sobre a natureza modificam a sociedade.
Numa atitude otimista, Capistrano, citando Burckle, disse que “a civilização é a vitória do homem
contra a natureza”. E questiona como é possível lutar contra tão poderoso inimigo “sem ciência,
sem indústria”. Ciência, como já sabemos, indicava a crença do autor nos valores cientificistas
como processo de transformação; indústria é índice de modernidade, progresso, sendo necessário
levar esses elementos ao mais recôndito espaço do Brasil, país jovem e pujante por natureza.88 O
homem, portanto, seria o agente físico modificador. Mas, quem seria o ‘agente modificador” no
caso brasileiro?
Capistrano, citando Martius (1845), em “Como se deve escrever a história do Brasil”, diz
que “constando de três raças diversas a nacionalidade brasileira deve ser estudada segundo a lei
do paralelogramo das forças.” Mas Capistrano julga a tarefa inexequível por causa da
miscigenação: “ainda não podemos determinar a intensidade dos agentes que cooperam, e ao
Nesse trecho da conferência, Capistrano abre uma nota de rodapé remetendo suas afirmações a Glennie e Buckle.
partir disso, o autor alinhava algumas considerações sobre o índio. Como este foi afetado pelo sistema físiconatural, que influências reteve. Para ele, apoiado na lição V da obra Filosofia positivista, de Auguste Comte, diz: “O
característico da constituição mental dos Tupis era a hipertrofia da sensibilidade. A inteligência ficava sopitada sob a
exuberância da Natureza e a facilidade da existência; a vontade sem impulsos vegetava mesquinha; tudo o que eles
tinham de vivaz concentrava- se na emoção. E isto que em grande parte explica o seu estado: o subjectivismo era tão
profundo que não podia desenvolver-se a cooperação, base de todo governo, segundo Comte” (ABREU, 1875). A
explicação abaixo é impressionante: “O subjectivismo indígena mostra-se ainda no destino que davam aos
prisioneiros. O sentimento da fraternidade, ou interesse de outra espécie não os levava a incorpora-los pela
escravidão, lançando deste modo as bases da agricultura e do progresso: eis por que os devoravam ou matavam, e
assim, a guerra que em outros climas foi um instrumento de civilização, em nossa pátria concorreu para perpetuar a
barbaria” (ABREU, 1875).
126
87
88A
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
historiador do futuro compete fixar a resultante (ABREU, 1875). Por isso, nesses termos, justifica
que se debruçará apenas sobre o português, “componente predominante”, já que o indígena
sofria da “hipertrofia da sensibilidade”. Quanto ao negro africano, sua participação sequer é
mencionada.
Capistrano de Abreu faz referência à Introduction a la Science Sociale, de Spencer, para
afirmar que as modificações operadas pelo “agente físico” não tem um resultado imediato.
A raça pode considerar-se como um agente físico, porém é mais que um agente físico.
A inteligência se manifesta pelo sistema nervoso e, si, com Spencer, admitirmos que as
mudanças estruturais deste são o resultado pouco a pouco acumulado de suas
mudanças funcionais; si admitirmos a realidade do atavismo, a raça implica
predisposições, é um fator intelectual, super-orgânico (ABREU, 1875, p. 71-72).
De igual modo, com base no Système de politique positive, de Comte, aplicou a “lei da
transformação” para entender a sociedade brasileira.
(...) toda ordem real se modifica espontaneamente pelo exercício, segundo diz Comte, e
o exercício três vezes secular da civilização brasileira, transformara de fond en comble
[tolamente]os elementos iniciais. A lei da transformação pôde formular-se assim: o
órgão se desenvolve à medida que a função se estende; no Brasil as funções acanharamse e o organismo atrofiou-se. Para combater a atrofia, a revolução, como disse, era
improfícua: natura non facit saltus [natureza não dá saltos]Por mais complexos, os
fenômenos sociológicos são mais modificáveis; porém a intervenção quase sempre se
limita a influir sobre a intensidade e velocidade do movimento. Pode tornar-se mais
rápida a transição; não se pôde prescindir dela” (ABREU, 1875, p. 81).
Capistrano aplica a “lei da transformação” a diversos aspectos da vida política e
intelectual do Brasil. Segmenta-os entre aqueles mais “atrofiados” como o teatro, a imprensa, a
educação, sobretudo a feminina89, e os que já foram mais exercitados e que, portanto, as funções
se estenderam e progrediram, a exemplo da agricultura, comércio, pequenas indústrias. Nesse
mesmo estágio, para Capistrano, encontra-se a literatura brasileira, que embora já tivesse
conhecido certo “progresso”, pelas experiências literárias de Gregório de Matos, dos autores da
Escola Mineira, ainda encontrava-se neste estado de fermentação, de empirismo, de
aprendizagem. A solução que o crítico aponta para que a literatura saísse desse estágio, concentrase na adoção de partes das duas escolas em formação, o “indianismo” e o “cosmopolitismo”.
89Capistrano
de Abreu aponta a falta de instrução feminina como um dos fatores de embargo ao “progresso”
brasileiro: “a mulher é ignorante; não pode tomar na elaboração da sociedade o papel que lhe compete, de sorte que
o progresso é unilateral e, por conseguinte, lento e de alguma sorte fictício”. E, em nota, cita Voyage au Brésil, p. 492,
de Agassiz para reclamar a participaçãofeminina brasileira na força de trabalho: “Ascausas do progresso dos EstadosUnidos são muitas e variadas, mas entre todas avulta o cooperar a mulher, tanto como o homem, na obra coletiva.
Com uma população igual à da França, pode dizer-se que o número dos operários do porvir é dobrado. Os
yankeesreconhecem- na, e todos sabem o culto que votam à mulher. No Brasil, como diz profundamente o professor
Agassiz, a única simpatia que pode existir entre o homem e a mulher é a simpatia doméstica; a simpatia intelectual e
moral, a que resulta de sentirem-se colaboradores da mesma elaboração, é impossível (ABREU, 1875).
127
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Só com a palingêneses da sociedade é que a literatura nacional poderá renovar-se.
Entretanto, vejo sintomas de renascimento literário nas duas escolas que se formam: o
cosmopolitismoe o indianismo. Não obstante parecerem e até crerem-se antagônicas,
elas são complementares, solidárias, encaram ambas o mesmo problema, ainda que sob
ponto de vista diverso. No indianismo atual tão diferente do indianismo antigo, o que
predomina é a concepção da arte, é a renovação do princípio artístico que se aspira. No
cosmopolitismo o que predomina é a sociabilidade da arte; aspira-se a inoculá-la na vida
coletiva. Já vimos que princípio íntimo e caráter social da arte são inseparáveis, e estão
ambos viciados no Brasil; por conseguinte, como os que trabalham para melhorar, um
concorre para elevar o outro; a empresa é a mesma: os operários não podem ser
inimigos. Só estas duas escolas seriam importantes, mas prendem - e a um movimento
de renovação de que me ocuparei depois. Podemos afirmar que se realizarão as suas
aspirações; podemos prever que da união, do comércio das duas forças agora
divergentes, nascerá a literatura esplendorosa do porvir (ABREU, 1875).
Segundo compreendemos das análises de Capistrano, “indianismo” e “cosmopolitismo”
são os termos que ele lança mão para fazer referência às discussões sobre um pretenso
passadismo romântico em confronto com a vanguarda naturalista. Na visão de Capistrano,
embora as duas “escolas” se queiram adversárias, na verdade, elas seriam “complementares”,
“solidárias”, porque encaravam o mesmo problema, ainda que “sob pontos de vista diferentes”.
Araripe Jr., no entanto, posicionou-se contrariamente sobre o último aspecto defendido
por Capistrano de Abreu, de que a literatura brasileira ainda não havia nascido, que aconteceria
num “porvir”. Posição que Araripe Jr. se contrapõe da seguinte forma:
Estamos muito longe de concordar com a opinião daqueles que nos supões ainda
distantes de sacudir o jugo de estrangeiras emoções. V. Exª, que naturalmente leu os
trechos de uma conferência sobre a Literatura Contemporânea Brasileira que um dos
nossos mais ilustrados e precoces talentos, Sr. João Capistrano, publicou neste jornal,
saberá o alvo a que precisamente se dirigem minhas palavras (ARARIPE JR, 1875, 98).
2.5.4.O Papado
Por último, trazemos à baila considerações sobre a conferência de Araripe Jr., sob o título
de O Papado. Nela Araripe Jr. discorre sobre a questão religiosa instaurada desde que, no papado
de Pio IX, foi publicada a encíclica Quanta Cura, em 1864, acompanhada do Syllabus90,
A bula papal Syllabus: Contendo os Principais Erros da Nossa Época, Notados nas Alocuções Consistoriais,
Encíclicas e Outras Letras Apostólicas do Nosso Santíssimo Padre, foi estabelecida pelo Papa Pio IX. Publicada em
1862, trata-se de uma lista dos 80 principais “erros modernos”, divididos em nove parágrafos: I. Panteísmo,
Naturalismo e Racionalismo Absoluto; II. Racionalismo Moderado; III. Indiferentismo, Latitudinarismo; IV.
Socialismo, Comunismo, Sociedades Secretas, Sociedades Bíblicas, Sociedades Clérico-Liberais; V. Erros Sobre a
Igreja e os Seus Direitos; VI. Erros de Sociedade Civil, tanto Considerada em Si, Como nas Suas Relações com
aIgreja; VII. Erros acerca da Moral Natural e a Moral Cristã; VIII. Erros Acerca do Matrimônio Cristão; IX. Erros
acerca do Principado Civil do Pontífice Romano. A título de exemplo, um dos principais erros dos tempos
modernos, segundo a bula Syllabus era a supremacia da razão sobre a religião, conforme se lê: “3º A razão humana,
considerada sem relação alguma a Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, é a sua própria
lei e suficiente, nelas suas forças naturais, para alcançar o bem dos homens e dos povos. Aloc. Maxima quidem, de 9
de Junho de 1862.” Cf. Syllabus. http://santamariadasvitorias.org/wordpress/syllabus-condenacao-dos-erros128
90
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
documentos emanados da hierarquia católica em Roma que se opunham à secularização dos
costumes, tendo seus antagonistas representados pela Maçonaria e por qualquer aspecto de
liberalismo, o progresso científico, inclusive. Em Fortaleza, como de resto, em todo Brasil,
naquele momento, os embates entre maçons e católicos estava no seu auge. O nosso autor não
era da maçonaria, por isso seus postulados não entraram no mérito religioso das contendas entre
a Igreja Católica e os maçons. Suas bandeiras eram defender a laicização do Estado brasileiro91 e
rebater o princípio da encíclica Quanta Cura, que repudiava o progresso da ciência. A conferência
O papado, como a de Pompeu Filho, dialoga com Auguste Comte, à medida que defende o
período histórico positivo, regido pela razão, em favor do progresso e da civilização.92
Araripe Jr. aborda o tema proposto sob ponto de vista da história, de sua vertente
metódica e científica, nascida na Alemanha e divulgada na França, entre outros, por Hippolyte
Taine e Fustel de Coulanges. Sua perspectiva é estabelecer a verdade, o que ele indica logo no
início da palestra. Para ele, a verdade não está nos extremos – dogma religioso ou sectarismo
partidário - mas está na história. “O móvel é a história, o espírito das sociedades em evolução, na
civilização, nas tendências orgânicas da mesma e nas reais manifestações das leis que regem a
sociedade” (ARARIPE JR., 1874, p. 71). Portanto, a perspectiva histórica por ele utilizada segue
pressupostos do evolucionismo social, pois cada sociedade conhecerá os estágios atrasados e
evoluirá em direção aos estágios adiantados, de progresso social. Esta sociedade avançada é a
civilização, a modernidade, o que há de novo em termos de tecnologia, teoria e bens sociais à
disposição da humanidade. Fica, ainda, implícito que cada sociedade funciona como uma espécie
de organismo vivo, que evolui das formas primárias para as mais complexas, mas o faz segundo
leis gerais que determinam o curso da história.
O método que Araripe Jr. usa para análise social é o método histórico. Como ele diz,
seleciona os fatos, circunscreve-os na direção dos seus interesses de pesquisa, produz uma síntese
entre eles e depois, este é o objetivo final, formula as leis que os governam. Ressaltamos que,
como esclarece o autor, ele busca compreender o fato social “papado” em sua origem e
modernos-liberdade-dos-cultos-laicismo-socialismo-etc/ Acesso em: 26 de outubro de 2011. Em O Reino Encantado,
Araripe Jr. faz referência à encíclica Quanta Cura e ao Syllabus ao apresentar a personagem Pe. Correia como um
sacerdote digno de respeito por sua formação religiosa ter acontecido antes do advento dos Syllabus.
91 “A Constituição imperial de 1824 instaurou no Brasil o regime de padroado, unindo Igreja Católica e o Estado.
Pelo regime, o imperador podia nomear bispos, controlar o clero e participar de outras atividades da Igreja. Em
contrapartida, o Estado responsabilizar-se-ia pelo sustento dos religiosos, construção de igrejas e por outras
despesas. Dessa forma, o clero brasileiro somente obedeceria às decisões do papa com a autorização imperial”. Cf.
PEDROSA, José. Novos rumos. Março/abril de 2002. Disponível em.:http://www.obreirosdeiraja.com.br/o-nordestecontra-o-quilo/Acesso em.: 28. set. de 2010.
92Segundo Eric Hobsbawm (2007), o papa Pio IX adotou uma postura de extrema hostilidade à crescente tendência
liberal do séc. XIX . A partir de 1864 e depois, com o Conílio Vaticano de 1870, o catolicismo se tornou totalmente
intransigente, recusando qualquer acomodação com as forças do progresso, industrialização e liberalismo (...) mas ao
custo de abandonar muito de seu terreno aos adversários (HOBSBAWM, 2007, p. 382).
129
Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
constituição. Acompanhando sua exposição fica evidente que o autor analisa este “fato social”,
marcando bem o seu caráter histórico e humano. Portanto, datado e falível em comparação com
o cristianismo primitivo, original e puro. Quando ele compara a frase de Luís XIV – o estado sou
eu – e diz a equivalente – o papado sou eu – ele pretende indicar como esta instituição social
religiosa já não responde pelos antigos ideais cristãos. Portanto, ele analisa o papado em suas
condições históricas, seus limites e suas contradições internas.
Outro aspecto que destacamos no texto é a importância que o autor emprega para as
superstições. Em O Reino Encantado, como veremos, ele também atribui o fato social de Pedra do
Reino às superstições. Para ele, “a superstição é o germe de todas as nossas crenças e para o qual
não devemos olhar unicamente para o seu lado ridículo” (ARARIPE JR, 1874, p. 82). Para
aquilatar a importância deste fenômeno, ele invoca Benjamin Constant: “a filosofia que se obstina
a tratar esse impulso misterioso com menosprezo não passará de uma filosofia superficial e
presunçosa” (ARARIPE JR, 1874, p. 82). O que ele entende por superstição? Este aspecto tem
uma importância crucial na composição ideológica do autor. Para ele, a superstição é o campo
intocado da alma humana, domínio do coração que arrebata os sentimentos, as crenças, o
misticismo e tudo o mais não explicado. Pensamos que ele queira se referir ao que chamamos
hoje de crenças, imaginário e mentalidades.
Perguntava Le Goff (2003) sobre a mentalidade dos navegantes no século XVI: como se
comportam os reis, os comandantes dos navios e os marinheiros diante da morte, diante do
desconhecido? Para ele, Le Goff, a resposta é que todos, indiferentemente de sua posição na
hierarquia social, demonstram o mesmo sentimento de temor e respeito pela morte. Pensamos
que Araripe Jr., ao falar de superstição, está falando nesse aspecto da vida sobrenatural diante do
qual o homem não tem explicação e sobre a qual a razão não governa: “é incontestável, pois, a
existência de uma linguagem universal que a razão não define nem compreende, mas que o
coração aceita e sente repercutir no mais recôndito do seu refolho” (ARARIPE JR, 1874, p. 83).
Portanto, a superstição é parte de uma linguagem universal. Le Goff explica suas formas de
manifestação num plano interclassista, indiferenciada. Mas, o recôndito a que alude Araripe Jr. é
que precisamos compreender com mais detalhes. Dado, assim, esse domínio que escapa a razão,
há que se reconhecer, como o autor, que existem campos recônditos na “natureza virgem e
selvática”, campo invulnerável à civilização. Este campo seria, inclusive, a religião professada nos
seus excessos, nos desvios e no controle da mente do cidadão. O que Araripe Jr. prega é o
domínio da razão, seguindo a filosofia das luzes. Não descarta a necessidade da religião, mas quer
separar suas funções daquelas que devem estar na alçada do Estado. Para ele, um Estado laico
seria propiciador de uma instrução universal, moderna e civilizadora. Pensamos que esta
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
perspectiva aparece em O Reino Encantado, tanto na configuração do campo “selvático e natural”,
como é dito sobre o sítio histórico, quanto sobre o conjunto de crenças e superstições que
ostentam, conforme ainda veremos. Aliás, o autor caracteriza este fenômeno ligando-o à Idade
Média, condenada neste caso como a Idade das Trevas ante a qual dever-se-ia impor as luzes da
civilização. Ao que tudo indica, uma forma de se contrapor a encíclica Quanta Cura, já que nesta
se reforçavam paradigmas medievais e repudiava tudo que representasse o moderno.93
De todo modo, é possível estabelecer diálogos entre a encíclica papal e o texto de Araripe
Jr. Ilustra isso a afirmação do parágrafo final da palestra em ele diz preferir se perder com
Colombo nos mares tormentosos do que ficar à margem do progresso da ciência e da civilização,
numa “hedionda estagnação” ou se render às superstições e às novas modalidades de “fogueira”,
como o Sílabos, impostos pelo papado.
Se por uma dessas anomalias que não tem nome voltarem as fogueiras como veio o
Sílabos e a infalibilidade, as guerrearei de morte. Quero a âncora da Religião como
repouso, mas nunca como hedionda estagnação. E se me privarem deste consolo, ou
reduzirem de novo ao instrumento infernal das astúcias, declaro mil vezes preferirei
perder-me, como Colombo, nos mares tormentosos e desconhecidos que os teólogos
anatematizam. Ao menos descobrirei novos mundos! (ARARIPE JR.: 1874)
Ao que tudo faz crer, com o trecho acima, Araripe Jr. se contrapunha à passagem da
encíclica que afirma que os representantes da Igreja de tempos passados se opuseram às “iníquas
tramas” de homens que se lançaram ao mar, “espumejando suas confusões como as ondas
encapeladas do mar”, “prometendo liberdade”. Estes, segundo a encíclica, eram, “na realidade”,
“escravos do mal” cujos objetivos eram destruir “os fundamentos da religião católica e da
sociedade civil” (PIO IX, 2010, p. 1).
É o que se lê no trecho da encíclica: “Quanta cura e vigilância pastoral os Romanos Pontífices, predecessores
Nossos, dispensaram em todos os tempos em cumprir a missão a êles confiada pelo mesmo Cristo Nosso Senhor, na
pessoa de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, de apascentar as ovelhas e os cordeiros, já nutrindo toda a grei do
Senhor com os ensinamentos da fé, já embebendo-a dos pastos envenenados, de todos , mas mui especial a de vôs,
Veneráveis Irmãos, é perfeitamente conhecido e sabido. Porque, em verdade, o que em seus corações mais
profundamente gravaram Nossos predecessores, defensores e vindicadores de nossa sacrossanta religião católica,
solícitos como eram de modo extraordinário pelo bem das almas, foi condenar e destruir todas as heresias e erros,
que, combatendo nossa fé divina, a doutrina católica da Igreja, a honestidade dos costumes e a salvação eterna dos
homens, suscitaram graves tormentas e acarretaram danos à sociedade civil e cristã, de maneira lamentável. Em
virtude disso, Nossos predecessores, refertos da fortaleza apostólica, contrapuseram contínua resistência as iníquas
tramas dos homens que espumejando suas confusões como as ondas encapeladas do mar e prometendo liberdade,
quando na realidade eram escravos do mal, trataram de destruir, com suas opiniões capciosas e escritos perniciosos,
os fundamentos da religião católica e da sociedade civil; de arrancar do seu meio toda a virtude e justiça; e depravar
todos os corações; de separar da reta norma dos costumes sãos; prendê-los, desta forma, ao seio da Igreja católica”.
PIO IX, Papa. Quanta Cura - sobre os principais erros da época. (1864), p. 1-2 Disponível
em.:http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=enciclicas&artigo=quantacura&lang=br
a. Acesso em: 18. Abr. 2010.
93
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
É importante frisar que foi a partir do texto O papado que Araripe Jr. passou a recorrer ao
repertório cientificista europeu como esteio de sua atividade de analista da nacionalidade
brasileira. Anos mais tarde, Araripe Jr. fez um breve balancete desse período e reconheceu essa
inflexão, ao afirmar que seu primeiro contato com autores como Auguste Comte, Taine, Buckle e
outros aconteceu em 1873, durante as atividades da “Academia Francesa do Ceará”. Dizemos
isso baseados em informações do próprio Araripe Jr. de que seu contato com as idéias
positivistas se deu naquele ano. O dado encontra-se no prefácio à 2ª edição da obra Perfil de José de
Alencar, escrito em 189494.
A reconstituição de minhas idéias data de 1873. Foi neste ano que li pela primeira vez
as obras de Spencer, a História da Civilização da Inglaterra, de Buckle, e os trabalhos
críticos de Taine. Residia eu então na província do Ceará, quando aí formou-se um
círculo de moços estudiosos, do qual constituiu-se centro o falecido Raimundo Rocha
Lima , discípulo fervoroso de Comte. Neste círculo passaram-se em revista, quanto
permitiam as forças de cada um, todas as idéias do século. Como era de se esperar, não
tardou que as conversações se fizessem jornal e o jornal, tribuna. A questão religiosa ia
em seu auge. Organizaram-se conferências contra o clero (...) Ao lado de Capistrano de
Abreu, de Tomás Pompeu e de outros fortes do círculo, entrei nesses ensaios. Sem
estudos científicos, tão pouco acessíveis ainda hoje aos bacharéis em direito, depois
disto, lenta foi, para mim, a ascensão na montanha filosófica. Eu não podia ser
indiferente ao ingresso, no país, de novas idéias; mas era obrigado, por higiene, a
sujeitar-me a processo de assimilação cauteloso. Se lenta foi, pois, a transformação
mental, mais lenta ainda deveria ser a mutação dos bastidores literários, das
engrenagens empregadas na composição, dos hábitos, enfim, adquiridos na primeira
lição (ARARIPE JR. 1874).
A “assimilação cautelosa”, a “transformação mental lenta” indicam que em momento
algum Araripe Jr. foi subserviente ao sincretismo científico. Em sua prática intelectual, ele se
apropriou de um apanhado do “repertório” científico europeu, que lhe proporcionou uma
reinterpretação dos esquemas de pensamento e formas de ação cristalizados como tradição políticointelectual nacional. Tanto é que, em sua atividade de crítico literário, sempre primou por uma
seleção muito criteriosa dos teóricos a que se filiou. Mesmo os escolhidos passavam sempre pelo
seu crivo meticuloso e, mesmo os que eram assimilados, sofriam os devidos senões. No entanto,
as mencionadas ressalvas não eram rabugices intelectuais tampouco perseguições pessoais 95.
Originalmente, os primeiros capítulos do Perfil de José de Alencar haviam sido publicados em periódicos do Rio de
Janeiro, a exemplo de O Vulgarizador, Revista Brasileira, Gazeta de Notícias, Gazetinha, entre outros. Em 1882, a obra
conheceu a primeira edição em volume que reuniu os textos esparsos nos jornais e periódicos mencionados. Araripe
Jr. escreveu um prefácio especialmente para a 2ª edição em que faz uma espécie de balancete de duas décadas (18731894) de intensa atividade intelectual. São memórias de dedicação à literatura brasileira e universal.
95 Durante mais de 40 anos de intensa atividade intelectual, profissional e política, o único desafeto declarado de
Araripe Jr. foi Rui Barbosa. Isto porque Araripe Jr. e Rui Barbosa estiveram em lados opostos no advento da revolta
da armada. Araripe Jr. tornou-se entusiasta de Floriano Peixoto, “quando dominou a revolta da armada de
1893,considerando-o o salvador da República. Chegou [Araripe Jr.] a se alistar como voluntário do batalhão
acadêmico que guarnecia a praia do Flamengo. Daí lhe adveio a antipatia manifestada em relação a Rui Barbosa”. Cf.
MOTTA, Arthur. Op. cit. p. 489. Desafeto que Araripe Jr. estampou no seu texto “Diálogo sobre as novas grandezas
do Brasil”, compilado no volume IV, de sua obra completa, já citada, p. 341-449. Curiosamente, é a Fundação Casa
132
94
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Outrossim, amparavam-se em sólido conhecimento da poética clássica96, aliado a uma noção
apurada do romantismo, além de uma perspicácia impressionante no olhar para novos
conhecimentos, como aqueles que se apresentavam no nascente naturalismo97. É o que também
se depreende do trecho que se segue.
Devo logo dizer-vos que não fui acostumado a ler história com o espírito obliterado do
fanatismo, prevenido pela intolerância, buscando a todo transe a confirmação do
dogma, à feição de certos naturalistas, que, depois de haverem improvisado em seus
gabinetes um sistema abstruso, empreendem longas viagens em cata de fenômenos que
possam justificar os caprichos de suas imaginações exaltadas. Não; o método que recebi
é totalmente inverso. Sempre busquei os fatos separados de toda e qualquer
preocupação, e só depois de compendiados e formada a síntese foi-me lícito procurar
as leis que porventura os regem. Deste modo a história não se me impôs pelos nomes
de seus autores ou daquele que em nome de quem a escreveram; nela não enxerguei
senão um campo vasto de explorações, um mundo desconhecido, onde se devia
encontrar os dados certos de todas as tendências do homem em sua vida complexa e
terrena (ARARIPE JR.: 1874 - grifo nosso).
Subentende-se que Araripe Jr. reconhecia sua inflexão rumo ao cientificismo europeu.
Porém não se reconhecia como um crítico “naturalista” fanático e intolerante, “em cata de
fenômenos” que pudessem justificar suas “imaginações exaltadas”. Menos ainda, se reconhecia
sectário acrítico de um autor; em sua atividade de crítico literário, afirmava ele, à escolha dos
fatos a serem analisados, seguiam-se os necessários resumos e formação da “síntese”. Depois de
vencidas essas etapas, é que ele buscava “as leis” que regiam aqueles fatos.
***
A “Academia Francesa do Ceará” e a “Escola Popular” trouxeram a Fortaleza essa
efervescência política, religiosa e intelectual. Conforme leciona Sânzio Azevedo, constituiu uma
“associação que podemos chamar de lítero-filosófica, pois não tratou somente de Filosofia, como
também não tratou só de literatura, mas de ambas as coisas” (AZEVEDO, 1971, p. 06-07).
Por fim, um depoimento de Tomás Pompeu de Souza Brasil Filho resume a atividade
intelectual da agremiação:
Cada um de nós lia e tomava notas de uma obra de Comte, Darwin, Spencer ou Littré,
e reunidos, expúnhamos os resultados dessa leitura, submetendo-a à critica ou análise
dos demais. Nesses prélios intelectuais apurávamos a dialética, dilatando o espírito de
observação e síntese; dir-se-ia que ali estavam universitários alemães a controverterem
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que abriga a maior parte dos documentos de Araripe Jr. É um conjunto
expressivo de documentos formado por 21 cartas familiares, cuja destinatária é sua mãe Argentina Araripe; há ainda
um caderno de memórias iniciado em 1906, mas com poucas páginas escritas, além outras cartas sem um destinatário
regular.
96 Cf. MONTENEGRO, Pedro Paulo. A teoria literária na obra de Araripe Jr. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
97 Acima de qualquer coisa, Araripe Jr. era um crítico literário entusiasta e defensor da literatura brasileira e muito
polido em suas críticas, com os novos autores, inclusive.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
os mais árduos problemas científicos e filosóficos (BRASIL FILHO apud AZEVEDO,
1971, p. 30).
A nota de Pompeu Filho atesta a intensa atividade intelectual promovida pela “Academia
Francesa do Ceará”. Sobre esse aspecto, Araripe Jr. anota que um desembargador cearense “não
receou dar a Fortaleza o nome de Tübingen brasileira” (ARARIPE JR. apud AZEVEDO. Idem),
uma referência à cidade alemã reconhecida pela sua universidade e pela quantidade de estudantes
na rua.
2.6. Argumentos científicos para analisar literatura
O resultado dos estudos da tradição cultural brasileira e da nova filosofia se revelam no
fazer literário de Araripe Jr. posterior ao ingresso na agremiação cearense. É o que podemos
inferir da leitura do texto “A poesia sertaneja”, escrito em 1875. Se na conferência O papado
Araripe Jr. se abastece da teoria cientificista para analisar questões de ordem religiosa e filosófica,
no texto “A poesia sertaneja” (1875) passa a se servir de uma seleção das teorias cientificistas em
análise literárias e, conforme veremos, na escrita de O Reino Encantado. Ao que tudo indica,
porém, o interesse de Araripe Jr. não era mais em edificar novos sistemas filosóficos com fins
neles mesmos, mas sim interpretar a realidade nacional. Conforme se lê no subtítulo, “cartas ao
Exmo. Conselheiro José de Alencar”, “A poesia sertaneja” é uma série de duas cartas, publicadas
no Constituição, em Fortaleza, e, posteriormente, publicadas em O Globo, no Rio de Janeiro. Esta
última foi a fonte utilizada por Afrânio Coutinho na compilação da obra crítica de Araripe Jr. As
cartas foram escritas à propósito da obra Nosso Cancioneiro, de José de Alencar.
De início, Araripe Jr. admite que a literatura brasileira estava passando por uma “grande
evolução”, traduzida por uma “extensa tendência” de criar novos “símbolos” que manifestassem
a nossa “vida social”. E ele continua:
Assim é que vemos objetos que outrora nos enfastiavam o espírito e apareciam-nos sob
um aspecto repugnante ou com uma fisionomia alva e abtrusa, começaram a ferir-nos a
imaginação de um modo diversíssimo, assumindo proporções simpáticas,
transformando-se, pouco a pouco, em inesgotáveis fontes de misteriosas forças de
produção. O fenômeno é real e não tarda que se propague, atingindo aqueles mesmos
laços e situações, que há bem pouco eram reputados os mais ridículos deste mundo. Tal
era o ponto de vista que tomávamos para observá-los (ARARIPE JR., 1875, p. 98-99).
Para Araripe Jr., uma das “inesgotáveis fontes de misteriosas forças de produção” que
deveriam ser utilizadas como símbolos nacionais era o sertão/sertanejo. Mas o aproveitamento
estético do sertão inóspito e recôndito não podia ser justificado apenas por sua suposta
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
ambiência selvagem, ou mesmo por suas particularidades exóticas. Importante que se
compreenda que Araripe Jr. propôs a adoção do espaço sertanejo como temática e problema
literário, tendo como viés uma percepção reveladora do social ao desenvolver sua crítica e ao
antecipar soluções inovadoras para a questão nacional.
Do ponto de vista do espaço geográfico e do meio social, ele afirma o sertão como
campo de possibilidades, repositório de símbolos para a representação literária da sociedade, a
sertaneja em particular. O autor rebate uma prática social advinda “da vida carnavalesca das
cortes” que via os tipos de vida societária no interior como desprezíveis. Para ele, ao contrário,
trata-se de “um mundo completamente novo de emoções originais, que interessem tanto ao
poeta, que o representa pela face mais sedutora, como ao filósofo, que em qualquer parte que seja
vai buscar os germes da futura civilização de um povo ou de uma raça” (ARARIPE JR., 1875,
98).
Sob esse ponto de vista, amparado numa perspectiva diferente do olhar imposto por
teorias extemporâneas europeias, Araripe Jr. critica a representação do “campo” como portadora
de uma cultura “grotesca”, ante a qual reina o silêncio e a “indiferença” de extratos da cultura
dominante, sobretudo a dos letrados do litoral. Contudo, essa contradição, sertão x litoral,
parece-nos, não é central para o nosso autor, pelo menos não é formulada nos termos
euclidianos, em forma de antítese. Araripe Jr., ao contrário, esboça uma perspectiva da formação
social brasileira com o objetivo de alcançar a síntese entre as raças formadoras da nacionalidade.
A sua crítica é no sentido de afirmar a importância desses elementos étnicos e, dessa forma,
reafirmar os valores éticos e estéticos, psicológicos e culturais do homem do campo, dos vastos
sertões. Num processo evolutivo, acredita o autor que “não causaria surpresa se disséssemos que
justamente dessa crisálida brotariam os fundamentos de onde terá um dia de derivar a
transformação do Brasil” (ARARIPE JR., 1875, p. 99).
Portanto, para Araripe Jr., o desafio era afirmar a nacionalidade e com isto inscrever os
símbolos mais significativos da nação, que seriam o sertão e o sertanejo. Tarefa que, segundo ele,
não seria concretizada com a aceitação mecânica e servil das idéias importadas do continente
europeu. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de uma crítica ao colonialismo cultural e,
além disso, de impor restrições frente a esse ideário, de cunho positivista. Não bastava aceitar as
novas idéias que aqui chegavam, necessário antes que as mesmas sofressem um processo de
crítica. Dizia ele que:
as populações sem autonomia das capitais vivem uma verdadeira vida de empréstimos,
vão subscrevendo as revoluções européias, sem fazer passar as conquistas da civilização
pelo crivo da nossa índole social, expurgando o que absolutamente não pode adaptar-se
à natureza tropical. (...) A força impulsiva do autóctone subordinará o influxo
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
civilizador vindo de fora, fa-lo-á entrar em circulação como meio de aperfeiçoamento,
mas nunca como única condição de existência (ARARIPE JR., 1875 , p. 99).
Dessa forma, para o crítico Araripe Jr., não se trata de evitar ou recusar as ideias vindas
do exterior. A questão é depurar tais idéias pelo confronto meticuloso das mesmas com os dados
da realidade socioambiental brasileira. Como já havia feito em O papado, de (1874), Araripe Jr.
volta a defender a necessidade de não se viver “vida de empréstimos”; para ele, não era
admissível que a intelectualidade brasileira saísse por aí subscrevendo “as revoluções europeias”
sem antes “passar as conquistas da civilização pelo crivo da nossa índole social, expurgando o que
absolutamente não pode adaptar-se à natureza tropical” (ARARIPE JR., 1875, p. 99).
Ao que parece, Araripe Jr. alertava seus interlocutores para as teorias raciais em voga.
Estas também compunham o conjunto dos modelos evolucionistas que, por sua vez, não só
elogiava o progresso e a civilização, como concluía que a mistura de raças heterogêneas era
sempre um erro e levava à degeneração tanto do indivíduo como de toda a coletividade
(SCHWARCZ, 1994, p. 138). Ele logo percebeu que aderir às premissas científicas em sua
totalidade significava, ao mesmo tempo, reconhecer a inviabilidade do País como nação, já que a
miscigenação era um fato consumado. Por outro lado, o autor de O Reino Encantado também se
recusou fechar os olhos para as inovações da ciência. E qual foi a solução para o impasse?
Araripe Jr. acreditava que a saída estava nos efeitos saneadores da civilização, por
perceber a marcha da história no horizonte do progresso e assim acreditava num sentido para a
história. A julgar por suas próprias afirmações, este sentido parece ser menos filosófico e mais
científico. A civilização, para o autor, descortinava-se e concretizava-se, na modernidade, no
elemento tecnológico que caracterizava a novidade, como que marcando bem a diferença entre
um passado que se quer preservar e um futuro como índice de superação. Disse ele:
Prolonguem-se as estradas de ferro; ponham-se essas raças que povoam o interior em
mais contato com a vida civilizada; cobrem energia, desenvolvam-se suas forças mentais
e veremos se deste embate, na pujança das faculdades e tendências com que dotou-as o
sol dos trópicos, não surgirá para este imenso país de maravilhas uma situação como
nunca imaginaram aqueles colonos que primeiro puseram o pé em terras de Santa Cruz.
A força impulsiva autóctone subordinará o influxo civilizador vindo de fora, fa-lo-á
entrar em circulação como meio de aperfeiçoamento, mas nunca como única condição
de existência (ARARIPE JR., 1875, p. 99 – grifo nosso).
O autor busca assimilar a emergente sensibilidade moderna, sem abrir mão do diálogo
com o repertório plural das tradições98. Para sermos mais exatos, o autor vai além ao propor que
Sobre as formas que assumem esse diálogo entre tradição e modernidade nos oitocentos, entre a intelectualidade
brasileira, ver VELOSO, Mônica Pimenta. Um folhetinista oral: representações e dramatizações da vida intelectual na
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98
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
o elemento tradicional incorpore no seu cotidiano as conquistas modernas. Nesse sentido,
Araripe Jr. via que a forma de transformar o Brasil num “país de maravilhas”, a solução para o
impasse da miscigenação brasileira, seria o investimento na ciência, à medida que se
proporcionasse às “raças do interior” o contato com “a vida civilizada”, a fim de desenvolverlhes as “forças mentais”.
Mas o otimismo de Araripe Jr. foi uma rara exceção. Conforme anota Schwartz, no que
tange ao temário racial do Brasil, no período, “a saída foi preconizar a adoção do ideário
científico, porém, sem seu corolário teórico — aceitar a idéia da diferença ontológica entre as
raças sem a condenação à hibridação — à medida que o país, a essas alturas, encontrava-se
irremediavelmente miscigenado” (SCHWARCZ, 1994, p.138). Ou seja, boa parte da
intelectualidade brasileira se serviu do discurso científico para corroborar a hierarquia entre as
raças, a superioridade de umas sobre as outras. Atitude que, longe de ser um diletantismo
filosófico, era, na verdade, um discurso racial do qual se lançava mão para defender uma
hegemonia já consagrada e explicar as desigualdades sociais99.
2.7. O sertanejo idealizado x sertanejo “real”
Nesse itinerário em que o objetivo é apresentar a transição pela qual passava o fazer
crítico de Araripe Jr., um último aspecto merece ser relevado. Entre 1868-1878, suas produções
críticas endossam duas representações distintas do sertanejo: uma, em 1868, de viés
flagrantemente romântico e a outra de concepção positivista. Em algumas páginas atrás,
trouxemos à baila um juízo crítico de Araripe Jr., intitulado “Contos da roça” (1868), acerca de
alguns contos de Emílio Zaluar. No texto, Araripe Jr. sublinhou que a personagem sertaneja de
virada do século XIX. Em: VELOSO, Mônica Pimenta; LOPES, Antonio Herculano & PESAVENTO, Sandra
Jatahy. História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006.
99 O darwinismo social, por exemplo, foi o argumento do qual se lançou mão para justificar hierarquias sociais já
consolidadas; depois, serviu de justificativa para adoção de políticas públicas excludentes, uma vez que noções como
a de cidadania eram suplantadas por argumentos de cunho racial, conforme as análises que realizamos sobre a
política do imigrantismo. O fundamento para conclusões semelhantes a essa vinha dos homens de ciência. Para
ilustrar o pensamento desses intelectuais, citemos João Batista Lacerda (1911), então diretor do Museu Nacional do
Rio de Janeiro: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução"
(LACERDA Apud SCHWARCZ, 1994, p. 137). Discursos como esse, proferidos por membro da elite científica
brasileira, podem ter servido também para abonar políticas institucionais de branqueamento da nação. No
interessante artigo “O Espetáculo da miscigenação” e na obra O Espetáculo das raças, a pesquisadora Lília Schwarcz
mapeia os discursos sobre raça, urdidos nas diferentes instituições irradiadoras de saber e de pesquisa brasileiras. A
saber: os museus etnográficos de Belém – PA, Rio de Janeiro e São Paulo; as faculdades de Direito de Recife e de
São Paulo e as faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro dos institutos históricos de Pernambuco, Rio de
Janeiro e São Paulo. Cf. SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo da miscigenação. Em: Estudos Avançados. Nº8, Vol. 20,
1994 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
nome Juca do Salto havia sido “perfeitamente desenvolvida”, uma vez que suas ações se
pautavam em valores como amabilidade, simplicidade e destemor. Juca do Salto também foi
aclamado pela sua capacidade de vencer as intempéries da natureza, valendo-se, para tanto,
apenas de sua força física e de seu destemor, características das quais lançava mão para “arrostar”
adversidades impostas pela natureza sertaneja. Por tudo isso, Araripe Jr. conduziu Juca do Salto à
galeria “do mais perfeito tipo de nobreza” que reunia em si valores como bondade e pureza.
Já no texto “A poesia sertaneja”, de 1875, Araripe Jr. passa a reconhecer que a “emoção
épica” do homem sertanejo desapareceu e que, desse modo, já não era possível representá-la em
literatura, esta uma “expressão da sociedade”. Vejamos como o crítico lamenta esse fato:
Com pesar o digo: - a emoção épica que tanto devera exaltar a mente dos primeiros
criadores, que resultaram do cruzamento da raça indígena com os portugueses, de todo
desapareceu. Com muito custo hoje chegaríamos a descobrir, observando
acuradamente os seus costumes e tradições, uma reminiscência dessa situação, para
julgar a qual não encontramos símbolos artísticos de qualquer natureza que seja. O que
é certo é que, antes de findar-se o século passado, a feição desse tipo primitivo foi
substituída por um arremedo, que pouca coisa ou nada conservava das tendências
daqueles que embrenharam-se, livres como o touro, pelos sertões, com a mente pejada
de fantasmas e uma única confiança, a que residia em seu braço e em seu arrojo
incomparável (ARARIPE JR., 1875, p. 100).
Da feição do sertanejo de outrora pouco ou nada se conservou: já não era possível
retratá-lo sob as mesmas bases que Emílio Zaluar utilizou em Juca do Salto. Aquela modalidade
de sertanejo havia sucumbido, antes mesmo que registros sobre ele fossem cristalizados em
qualquer símbolo artístico. Nem mesmo as canções populares e orais serviriam de fonte para
retratar o sertanejo de outrora, porque as intenções com as quais foram escritas não passavam de
“legendas”. E Araripe Jr. reforça:
Cairemos, porém, em um equívoco lamentável toda vez que pretendermos aquilatar ou
reconstruir esse estado emocional pelas canções populares ou pelos pseudo-poemas
que encontramos na boca dos nossos atuais sertanejos, poemas estes que, sendo
produto de uma situação completamente diversa daquela, só podem produzir emoções
que porventura caracterizam a época durante a qual a musa popular o compôs
(ARARIPE JR., 1875, 101– grifo nosso).
De modo que restava ao poeta apenas a possibilidade de retratar o estado atual do
sertanejo; não seria possível reconstituir o seu passado, já desvanecido. Dos vestígios do passado
restavam reminiscências dos poetas populares sertanejos, mas, segundo Araripe, não retratavam o
cotidiano do homem do sertão, visivelmente transfigurado. O sertanejo de então já não era livre,
tampouco a força de seu braço podia ser sua única valença. De qualquer modo, era o sertanejo
“real”, passível de observação e de ser tomado como tema de obras literárias.
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Nessa perspectiva, a situação do sertanejo era análoga à do vaqueiro: ambos achavam-se
“escravizados” “pelos patronos ricos e fazendeiros notáveis que avassalavam as terras que o rei
concedera-lhes em patrimônio”. É com feição de escravizado, oprimido e tarefeiro que Araripe
Jr. representa o sertanejo e o vaqueiro, em 1875, um sertanejo e um vaqueiro completamente
diversos do heróico e honrado Juca do Salto.
Deste século, [século XVII] quando já o sertanejo ou o vaqueiro não era mais produto
daquela indômita aspiração para o desconhecido, para o ameaçador, quando as terras
pela maior parte viam-se desbravadas, quando o Brasil não era mais esse país encantado
e misterioso, para onde o espírito descia como para um abismo insondável, quando,
finalmente, essa raça semi-aborígine, com a gradual transformação das causas, achava-se
escravizada pelos patronos ricos e fazendeiros notáveis que avassalavam as terras que o
rei concedera-lhes em patrimônio, que talavam os campos por (onde) antes os
centauros impavidamente atiravam-se tão livres como o selvagem das priscas eras; deste
século, repito, desde que o sertanejo colocou-se na terrível contingência de servir ou ser
esmagado, que poesia podia brotar? Que sentimento heróico encontrar-se-ia em
indivíduos que, abocanhados em suas nobres aspirações, vivendo como escravos,
oprimidos, eram obrigados a percorrer os campos atrás da rês fugitiva, não como o
homem que luta pelo sentimento da própria vida, mas por uma obrigação e como
tributo? (ARARIPE JR., 1875, p. 100 – grifo nosso).
Antes de mais nada, o crítico ressalta que, do século XVIII para o século XIX, o sertão
nordestino conheceu significativas mudanças em sua base econômica. A liberdade que
caracterizava o vaqueiro “indômito” havia desaparecido no século XIX e novas relações de
produção levaram-no a uma “escravização” diante de seus patrões. Daí porque, segundo Araripe
Jr., a nova realidade não autorizava romantizações sobre a existência cotidiana dos vaqueiros. No
limite, para ele, o sertão e o sertanejo deveriam ser caracterizados segundo essa nova realidade
socioeconômica e cultural, cujo traço marcante era o trabalho escravo.
2.8.“Instinto”100 de nacionalidade: fio condutor da obra de Araripe Jr.
O “instinto de nacionalidade” é o fio condutor da obra de Araripe Jr., ao longo dos 43
anos que dedicou à literatura, entre 1866-1911. A despeito das matrizes ideológicas a que tenha se
filiado, seja romântica, seja naturalista; a despeito das revisões que porventura ele tenha operado
nos critérios que utilizou para julgar obras literárias, Araripe Jr. esteve no campo de defesa do
nacionalismo literário. Há em sua trajetória esse ponto de interseção, conforme anota Coutinho:
Termo que tomamos de empréstimo a Machado de Assis que explica o que seria, para ele, o “instinto de
nacionalidade” em literatura. “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as
cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro” Cf.
MACHADO DE ASSIS. Instinto de nacionalidade.(1873) Em: www.domíniopublico.gov.br. Acesso em 02 de janeiro de
2012.
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
o caráter brasileiro constituiu o impulso da ideia central de sua obra e da sua atuação
como escritor. Araripe Jr. pregou em toda oportunidade a nacionalização da cultura e
da literatura brasileira (...) aplaudindo com entusiasmo os que mostravam, na sua obra,
o predomínio do meio brasileiro, fosse físico, social ou humano (...) Assim, inspiração,
tipos, costumes, paisagem, assuntos, tradições, tudo deveria conduzir o escritor
brasileiro para essa meta de americanização e brasilidade (COUTINHO, 1970, p. XI).
De fato, essa orientação presidiu todos os seus escritos, tanto nessa fase de transição que
estamos nos propondo a discutir (1868-1878); como, de resto, em toda sua produção intelectual,
atividade que só cerrará pouco antes de sua morte, em outubro de 1911. Araripe Jr. comungou da
invenção de uma certa tradição literária, pós Independência política de 1822, comprometida com
a fundação do Estado Nacional; ao passo que teceu duras críticas à literatura elaborada por
brasileiros que se manteve fiel à herança estrangeira, fosse ela qual fosse. Na compreensão de
Araripe Jr., os literatos brasileiros deveriam privilegiar temas pátrios.
A poesia (...) não pode deixar de ceder, ou mais cedo ou mais tarde, à influência do
clima, do aspecto do país e da índole de seus primitivos habitantes. Aí é onde existe a
verdadeira fonte das inspirações, que não são filhas (deixa assim expressar-me) de uma
mera convenção. Querer o contrário é querer sufocar no berço uma literatura que pode
ter, para o futuro, um grandiosíssimo desenvolvimento (ARARIPE JR., 1869a, p. 26).
ou
Essas embastidas florestas, que ofereciam outrora ao selvagem um abrigo seguro e
saudável contra os ardores do sol que abrasa a vasta região tórrida; esses magníficos
asilos de verdura onde os raios do astro do dia nem sequer podem penetrar; essas selvas
cheias de saborosos frutos, de ridentes festões e flores; esses matos povoados por
animais de toda casta, de indômitas feras e infinidade de esquisitas aves e áureos
insetos; esses gigantescos e faustosos rios, esses cristalinos regatos, essas tremendas
cascatas que enchem as abóbadas de verdura de fragor imenso; todas as coisas, enfim,
que soem dar ao nosso Brasil um aspecto sublimemente fantástico e cismador,
tornaram-se objetos de nossa maior predileção (ARARIPE JR., 1868a, p. 20).
Ou seja, o clima e outros aspectos da natureza brasileira, assim como o índio, deveriam
ser a verdadeira fonte de inspiração para os poetas. Essa bandeira tinha um reverso. Araripe Jr.
combatia com veemência as obras literárias que não tomassem por fonte os temas brasileiros,
comportando-se como “enxertos literários” do “velho continente”. O crítico considerava essa
atitude literária como um desfavor à nascente literatura nacional.
(...) tive ocasião de manifestar os meus sentimentos a respeito dessa literatura ainda em
germe, a qual os encarniçados apologistas dos enxertos literários tão obstinadamente
têm procurado estigmatizar com o ridículo epíteto de cabocla. Com efeito, não será
desprezando o que de mais belo e inspirador existe em nossos climas que havemos de
sacudir com o jugo das impressões importadas do velho continente. Trilhando vereda
tão diversa daquela que deveríamos seguir, nunca chegaremos a proclamar a nossa
emancipação. (ARARIPE JR., 1869a, p. 25– grifo nosso).
Desse modo, Araripe Jr. professou que a emancipação da literatura brasileira perpassava
necessariamente pelo apreço ao que “de mais belo e inspirador existe em nossos climas”. Ao
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Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
mesmo tempo, rejeitava a postura de alguns analistas contemporâneos a ele. Para eles, a literatura
brasileira não passava de mero “enxerto” da portuguesa e era ridicularizada sob a alcunha de
“cabocla”. É possível que o protesto dele seja um diálogo com autores que comungavam da ideia
defendida pelo cônego Fernandes Pinheiro, em sua obra Curso elementar de literatura nacional:
(...) julgamos bem que pese ao nosso patriotismo, que nas faixas infantis ainda se acha
envolta a litteratura brasileira. Tel-a-hemos brevemente,(...) numerosos são os
elementos que se agglomeram para a sua constituição, e o movimento impresso em
1836 pelo Sr. Magalhães vai produzindo brilhantes resultados. Discordamos porém da
opinião dos que pretendem enchergar uma nacionalidade, um cunho particular nos
escriptos d’alguns illustres brasileiros, compostos durante o regimen colonial, ou ao
crepúsculo d’aurora boreal da independencia, quando as preocupações políticas
absorviam todas as attenções. Não passam de gloriosos precursores Durão, Basilio da
Gama, os dois Caldas, S. Carlos, os dois Alvarengas, Claudio Manoel da Costa e alguns
outros bellos engenhos que faziam ouvir seus cantos no meio da servidão da pátria.
Não descobrimos porém em seus versos uma ideia verdadeiramente brasileira, um
pensamento que não fosse commum aos poetas d’alem-mar. Para isso é certo que
poderosamente contribuia a educação que então se dava á juventude, e para brasileiros
e portuguezes era infallivel o oraculo de Coimbra. Impossivel é pedir originalidade a
quem não tem ideias suas. Si [sic] por empregarem alguns nomes indigenas devem esses
auctores serem classificados na litteratura brasileira injusto fôra excluir da indostanica
[sic] Camões, Barros, Castanheda (PINHEIRO, 1862, p. 10 – grifos nossos).
No entendimento do cônego Fernandes Pinheiro e dos seus contemporâneos, a literatura
brasileira era um decalque da portuguesa. Para ele, não havia uma literatura genuinamente
brasileira; o fato de um ou outro autor empregar “alguns nomes indígenas” não era suficiente
para destacá-la da portuguesa, do mesmo modo que os autores que aqui despontavam, como
Durão e os demais, tinham pensamentos comuns aos poetas portugueses. Enfim, tratava-se de
um ponto de vista contrário ao de Araripe Jr. que, por seu turno, utilizava seus textos de crítica
como peças de defesa da literatura nacional. Sotero dos Reis foi um de seus alvos a partir do
momento em que anunciou no Curso de literatura portuguesa que o tema indianista não deveria mais
ser utilizado em obras literárias. Diante disso, Araripe Jr. conclama os literatos brasileiros a
repelirem tal princípio.
Combatamos, repilamos com todas as nossas forças o princípio que o Sr. Sotero dos
Reis (pessoa a quem, aliás, muito respeitamos, na qualidade de profundo literato e
filólogo) intenta propagar como verdadeiro, de que já faz mister lançar de parte essa
literatura cabocla dos nossos avós. Como assim, se agora é que começamos a
desenvolvê-la?! Como assim, se agora apenas contamos cinco ou seis obras no gênero,
que merecem classificação?! (...) Não obstante, é assuntos desta ordem que o autor do
Curso de Literatura Portuguesa anatematiza como impróprios para formarem a base de
nossos estudos e ensaios literários (ARARIPE JR., 1868, p. 12-13).
Araripe Jr. não media esforços para se contrapor aqueles que não reconheciam as
especificidades da literatura brasileira. Com o mesmo empenho, conclamou os nacionais a
abandonar o culto à literatura estrangeira e privilegiar brasileira.
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Capítulo 2
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Deixemos à antiga Grécia os seus risonhos bosques povoados por ninfas e sátiros, as
suas musas e os seus deuses, os seus heróis e os seus pastores, as suas montanhas e as
suas fontes; não passem da Índia as suas extraordinárias crenças, a sua ruidosa teogonia
e as lutas estupendas de seus semideuses, de que são verdadeiros intérpretes os Vedas, o
Mahabárata e o Sacuntala; fique a Alemanha com a sua atmosfera carregada e as
inspirações sombrias que lhe produziram o Fausto e o Werther; permaneçam na Itália os
pálidos gondoleiros, o seu azulado céu e a sua poesia cismadora; não transponha os
montes da Escócia o eco dos misteriosos cantos do bardo de Morven; deixemos, afinal,
à França a sua literatura multiforme porque novos e brilhantes mundos se patenteiam
aos vôos da poesia, desde que Colombo, transpondo as balizas da velha navegação e
atirando-se aos tenebrosos mares do ocidente, franqueou um imenso estado às
imaginações ardentes e aos espíritos empreendedores. De impressões completamente
estranhas, de uma natureza tão cheia de esplendores como a da América, dessas
florestas seculares, desses rios colossais não deve portanto surgir uma literatura original,
melancólica e, ao mesmo tempo, pasmosa. (ARARIPE JR., 1869a, p. 26).
Com a inclusão do trecho acima, reafirmamos que Araripe Jr. pregou, em toda a
oportunidade, a nacionalização da literatura. Em seus pareceres críticos, aplaudia com entusiasmo
as obras que contemplavam o meio brasileiro. Foi emblemático o julgamento que Araripe Jr. fez,
em 1869 e publicou no jornal Dezesseis de Julho, do Rio de Janeiro, sobre o poema épico Riachuelo.
O poema, escrito em cinco atos pelo poeta L. J. Pereira da Silva, tinha como tema a Guerra do
Paraguai. Na visão de Araripe Jr., o autor do poema se propôs a escrever um poema épico, mas
não teria logrado êxito no seu intento porque havia desobedecido a vários aspectos da arte
poética, teria cometido equívocos no que tange à elaboração do herói e de seu principal
antagonista; além do que teria privilegiado eventos secundários, relegando a segundo plano
eventos mais importantes; enfim, com seu poema, Pereira da Silva foi de encontro às principais
lições da poética clássica. Contudo, uma das poucas características de Riachuelo que merecia relevo
era o tema nacional escolhido pelo autor.
Muitos são os defeitos, é verdade, que se notam em todo o poema; o que, porém, não é
possível negar é que seu autor possui as mais pronunciadas disposições para o gênero
épico. O Sr. Pereira da Silva já fez muito no seu trabalho. Mostrou que em seu peito só
pode pulsar um coração generoso, entusiasta e capaz de uma empresa literária
verdadeiramente patriótica. Se não conseguiu elevar um monumento eterno aos bravos
do Prata, ao menos abriu caminho (...) a outras produções mais elevadas(ARARIPE JR.,
1870, p. 201 – grifos nossos).
Em Riachuelo, Araripe Jr. evidenciou os “defeitos de composição” (tanto formais quanto
de conteúdo), porém salvaguardou o tema por ser de caráter nacional. No entanto, observamos
que, ao criticar a obra Falenas, de Machado de Assis, Araripe Jr. faz movimento contrário: registra
a destreza de Machado no que tange à construção dos aspectos formais dos poemas reunidos em
Falenas, mas, com pesar, escreve que o poeta Machado privilegiou a paisagem grega em
detrimento à brasileira, característica que denotaria certa falta de criatividade do poeta. É o que
142
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
Araripe Jr. anota em crítica publicada no jornal Dezesseis de Julho, da Corte, em 6 de fevereiro de
1870101.
Justíssimas queixas deveria expor ao seu autor [ao autor de Falenas] pela ingratidão com
que se tem havido para com este tão formoso Brasil, para com este tão prolífico solo ao
qual deve a vigorosa imaginação que possui; longas increpações teria de fazer, pela
manifesta preferência que vota ao grito da cigarra de Anacreonte 102 sobre o melodioso
canto da sabiá (...)(ARARIPE JR, 1870, p. 223).
A crítica de Araripe Jr. não passou despercebida a Machado de Assis. Embora não tenha
se dirigido especialmente a ele, o autor de Falenas semanifestou contra à postura dos críticos,
sobretudo os da “nova geração” que só reconheciam “o espírito nacional” nas obras que têm
como tema um assunto local. Para Machado, esses pareceres são frutos de uma opinião ainda mal
formada, “restrita em extremo” e “pouco solícita”. Os críticos da “juventude literária” conforme Machado se referiu à “geração de 1870” - citam e amam Basílio da Gama e Durão
“como precursores da poesia brasileira” e rejeitam poetas que, a exemplo de Gonzaga e,
podemos acrescentar o exemplo do próprio Machado, que “respirando os ares da pátria, não
souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo” (ARARIPE JR., 1870,
p. 224). Portanto, segundo Machado, valorizar apenas as obras que desenvolvam temas locais
seria uma opinião “errônea” e limitante aos “cabedais da nossa literatura”.
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e
A citação foi localizada no volume 5 da obra crítica de Araripe Jr. reunida por Afrânio Coutinho.
o que se registra no semanário pinturesco Archivo Popular, publicado em Lisboa, em 1843,sobre
Anacreonte e sua preferência pelas cigarras: “Anacreonte nasceu em Téo (...) foi coevo de Pisistrato, de Solon, de
Esopo e viveu 500 anos antes da era cristã. A exemplo de Píndaro e de Homero, teve a glória de transmitir seu nome
ao gênero de poesia em que fora insigne; poesia que na nossa língua, mormente nas odes, conservou o nome original
do progenitor e por isso foram elas chamadas “Odes anacreônticas”(...) As poesias de Anacreonte respiram a malícia
e o bom humor, a delicadeza e a facecia[sic]. Não é possível dar um esboço do seu estilo; há em todas as
composições um matiz tão suave, uma graça tão singela, que não se podem reproduzir tradução. La Fontaine imitou
dois trechos de Anacreonte e pode imitá-los porque La Fontaine é um gênio que se pode reputar quase igual ao
poeta grego (...) Eis aqui uma fraca tradução de uma das odes de Anacreonte feita à cigarra: ‘Quanto és feliz, inocente
cigarra! Ainda mal sobre os ramos de uma árvore apagastes a sede com minguada gota do rocio da manhã e já teu
canto celebra a aurora: o mundo é teu, inseto feliz! Todos os tesouros que vês no campo são teus, todos os que nos
levam a tornar curtas as horas te pertencem. Amiga constante do lavrador, causa-lhe por ventura o menor dano!
Todos te saúdam como correio precursor de amenos dias. Ariada pelas musas, querida de Apolo foi ele que te deu a
tua voz harmoniosa. Nunca a pesada velhice fez murchar tua mocidade. Prudente filha da terra toda a tua felicidade
cifra-se no teu canto; não temes as cruas enfermidades nem te assusta e desventura isenta das paixões. Inimiga do
sangue a tua natureza corre parelhas com a dos deuses. Cigarra bondosa e cândida, eu te saúdo!’ Esta ode de
Anacreonte lembra os entretenimentos de Sócrates em que alude à cigarra, cantada e venerada por muitos poetas da
antiguidade. Muitos povos dessas eras tinham em particular veneração esta filha da terra; os atenienses, mormente,
que se reputava filhos do sol, traziam nos cabelos como ornatos cigarras de oiro. Anacreonte dizendo que a cigarra
não envelhece, quis, sem dúvida, aludir à fábula de Titão, que tendo desejado ser imortal, não se lembrou pedir aos
deuses uma mocidade perpétua e, por fim, chegou a tal extremo de velhice, que a Aurora compadecendo-se dele o
metamorfoseou em cigarra”. “A poesia de Anacreonte”. Em: Archivo Popular: leituras de instrução e recreio.
Semanário pintoresco. Lisboa: Typografia A.J.C. da Cruz, 1843, Vol. VII, Nº 44, p. 348.
101
102Leiamos
143
Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878)
Capítulo 2
do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
(MACHADO DE ASSIS, 1873, p. 3).
Esse ponto de vista não foi compartilhado por Araripe Jr. O cearense sublinhou o talento
de Machado de Assis, mas não lhe perdoou “o cajado da pastora”, em outras palavras, a matriz
clássica aplicada à poesia machadiana. Com essa postura, Araripe Jr. confirma que perpassa por
toda sua obra crítica a exortação pelo emprego da vida brasileira e da natureza americana, não só
como mananciais de inspiração, porém como temática e problema literário que lhe fornecesse
elementos para discutir a questão nacional.
É possível afirmar que Araripe Jr. foi um artífice da nacionalidade brasileira, um intérprete
dos valores constituídos e a constituir dessa nação emergente nos trópicos. Entendemos que o
seu anseio fundamental organiza-se em torno dos valores nacionais que deveriam consolidar-se
na prática social em um futuro promissor, cuja fabulação dar-se-ia por meio do campo literário. É
do crítico e do romancista de quem falamos, mas é também do brasileiro, originário de família
sertaneja.
Na qualidade de romancista, Araripe Jr. pôs em prática os princípios que pregou nos
textos críticos. No que tange ao tema, por exemplo, no romance O Reino Encantado usou o sertão
como ambiente e o sertanejo como personagem, tendência que se consolidou nos romances
naturalistas de 1880 a 1890. Ainda quanto ao temário de O Reino Encantado, não é demais
reafirmar que Araripe Jr. inaugurou na literatura de cunho regional o tema do misticismo
religioso, com visíveis adesões posteriores: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Pedra Bonita
(1938), de José Lins do Rego, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.
No romance O Reino Encantado, de Araripe Jr., encontramos a tensão primordial que ora
vincula a obra à matriz romântica, ora a inclina para representações de viés naturalista, conforme
veremos no capítulo seguinte.
144
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas
na composição d' O Reino Encantado
Para meus irmãos, Fred e Petrônio (de saudosa memória); e para meu sobrinho Felipe.
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
“´Na pedra está escrito que quando João se casasse
com Maria o reino se desencantaria”(RE, p. 77)103
3.1. Cativos e libertos na Pedra do Reino: resumo de O Reino Encantado
T
emos neste último capítulo duas metas a cumprir. Primeiro, traremos à luz um
apanhado do enredo do romance O Reino Encantado. [Figura 10] Toda tese que
tem uma obra literária como objeto de estudo, a elaboração de um resumo é uma
praxe. Em nossa tese, a presença do apanhado do enredo, mais do que um costume, é uma
necessidade, já que O Reino Encantado é um romance desconhecido, cuja única edição foi
publicada em 1878. Depois, analisaremos o modo com que Araripe Jr. elaborou ficcionalmente as
“representações” da história da Pedra do Reino e das personagens do romance. Conforme já
antecipamos no capítulo 2, para compor o romance, Araripe Jr. serviu-se de orientações de
matriz romântico-naturalista, de uma linguagem da medicina psiquiátrica e da obra Fanatismo
religioso. Esta última foi utilizada como fonte histórica, documental, como “expressão da verdade”
sobre a história de Pedra do Reino.
***
Daqui por diante, anotaremos as passagens relevantes para o desenvolvimento do enredo
de O Reino Encantado. Todas as ações do romance se desenrolam em torno das práticas sociais de
dois grandes grupos que se opõem, mas que, entre si, apresentam divisões internas, conforme
indicaremos ao longo deste capítulo.
As referências ao romance O Reino Encantado serão feitas com as iniciais RE, seguida do número da página onde se
localiza a citação. Cf. ARARIPE JR., Tristão de Alencar. O Reino Encantado. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878.
146
103
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
147
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
De um lado, está o grupo que chamaremos de sebastianistas, composto pelas personagens
integrantes da comunidade que se formou em torno da Pedra do Reino ou por aqueles que se
aliaram aos líderes do movimento messiânico. Este grupo se compunha de mestiços,
negros,índios, escravos e brancos pobres que, tanto na sociedade local como no romance O Reino
Encantado, serviam de mão de obra destinada ao trato com a lavoura e com o gado. Eles não
ocupavam nenhum cargo ou função de mando nas instâncias do poder constituído na região. Do
outro lado, o grupo que denominamos de potentados, formado por personagens que
representam os três setores dominantes naquela sociedade da província de Pernambuco: o Clero
católico, os fazendeiros locais e os coronéis de patente.104
Convém informar que aqui utilizaremos os dados da edição em volume do romance, esta
dividida em duas partes: 1) a primeira, intitula-se “A Fazenda das Porteiras”105 e é composta de
12 capítulos; 2) já a segunda parte chama-se “Os Sebastianistas”106 e é formada por mais 21
capítulos107.
3.1.1. João, Maria e a profecia
Em O Reino Encantado, os sebastianistas acreditavam numa profecia escrita num
“alfarrábio achado alhures” (RE, p. 83), segundo a qual D. Sebastião estaria encantado nas pedras
do reino. De acordo com a mesma predição, assim que D. Sebastião fosse desencantado,
distribuiria suas riquezas dentre aqueles que confiassem no seu breve regresso. Além dos bens de
fortuna, a profecia garantia a mudança étnica dos sebastianistas, já que D. Sebastião torná-los-ia
“alvos como a lua”. No entanto, para que se operasse o desencantamento e se cumprisse a
Marcos Clemente, citando Eul- Soo Pang, havia diferentes tipos de coronéis: “aqueles ligados à
economia nacional e internacional, caso verificado no recôncavo baiano e na zona da mata de Pernambuco. Estes,
segundo o autor, estavam mais sujeitos ao controle do Estado”. Inversamente, acontecia “com os coronéis do sertão
– sertão das três ribeiras – Pajeú, Moxotó e Navio - em Pernambuco; os sertões do São Francisco, entre Bahia,
Alagoas e Sergipe e os sertões do vale do Cariri, no Ceará, houve menor controle do Estado”. Cf. CLEMENTE,
Marcos Edílson de Araújo. Imagens do Cangaço: relações de poder e cultura política no tempo de Lampião
(1916/1938). UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro - Tese de Doutorado em História Social. Rio de
Janeiro, 2011, p. 98. Além dessa modalidade de coronel, o coronel fazendeiro, havia ainda o coronel de patente que
além de ser proprietário de terras, recebia do governo central uma patente militar, passando a ser um representante
das forças militares. Cf. LEITE, Glacyra. Pernambuco 1817: estruturas e comportamentos. Recife:
Fundaj/Massangana, 1998, p. 102. Esse foi o caso de Manuel Pereira da Silva que era major do Exército e, depois da
expedição que organizou à Pedra do Reino, logrou a patente de Coronel.
105 A saber: I. Abre-se o cenário; II. O carro; III. A fazenda das Porteiras; IV. Noite aziaga; V. Idílio interrompido;
VI. O filtro; VII. O rastejador; VIII. A serpente e a rola; IX. Um coração partido; X. Tibúrcio; XI. Ergue-se a ponta
do véu; XII. A batida.
106 São eles: I. Recordações históricas; II. Justina; III. Sombras; IV. A ex-rainha; V. Pedra Bonita; VI. Maria; VII. O
Profeta; VII. A fanática; IX. Explicações; X. João Ferreira; XI. A crise; XII. O encontro; XIII. Entre os quilombolas;
XIV. A Casa Santa; XV. O Segredo da jurema; XVI. O mortecínio; XVII. A revolta; XVIII. O novo rei; XIX. A
desforra; XX. Desmoronamento; XXI. Conclusão.
107 Na edição em folhetim não há divisão do romance em duas partes e há a supressão de dois capítulos quais sejam,
“Idílio interrompido” e “O novo rei”, perfazendo o total de 31 capítulos. Outra diferença mais aparente entre as
duas edições é que no folhetim o capítulo “O mortecínio” tem como título “A victimação”.
148
104Segundo
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
profecia com todas as suas vantagens para os crentes no reino encantado, seria necessário que se
realizassem alguns rituais, entre os quais o casamento de João com Maria. “Quando João se
casasse com Maria,/ Aquele reino desencantaria” (LEITE, 1904, p. 221). Portanto, há uma
espécie de mote, linha condutora para o romance, a profecia é o locus da trama, em torno dela,
desenrola-se o enredo.
Quem é João? Quem é Maria? Maria é uma sinhazinha, filha do casal de fazendeiros
Bernardo Vasconcelos e dona Clemência Vasconcelos, brancos, proprietários de escravos e de
duas grandes fazendas: Porteiras e Pau Ferro, ambas localizadas nas imediações do sítio Pedra do
Reino.
No romance O Reino Encantado, o João que deveria se casar com Maria era João Ferreira,
mameluco, personagem importante entre os sebastianistas108. João Ferreira, personagem histórica
e ficcional, tanto no romance como na historiografia da Pedra do Reino, foi o segundo rei do
lugar, aquele que assumiu o trono, depois que João Antônio, primeiro rei dos sebastianistas,
retirou-se para os sertões dos Inhamuns, no Ceará109, conforme anotamos no capítulo 1 desta
tese110. João Ferreira também era cunhado de João Antônio, casado com Josefa, uma de suas
irmãs, também personagem histórica e da ficção.
Ocorre que o casamento de João com Maria era fato improvável por vários motivos. O
primeiro é que João Ferreira era casado com Josefa na Igreja; e, de acordo com a religião católica
seguida por Maria e seus pais, essa condição proibia João Ferreira de contrair novas núpcias.
Depois, o casamento quebraria a rígida hierarquia social em vigor: ambos eram oriundos de
“raças” diferentes, condição que, para os padrões do lugar, tornava-se uma barreira
intransponível. Além do mais, Maria era a única herdeira de terras e outros bens de fortuna; ao
passo que João Ferreira nada possuía. Eis, portanto, alguns dos sentidos sociais implícitos na
conhecida profecia. Ela tensiona os principais códigos sociais vigentes, quais sejam o religioso, o
racial e, por fim, o econômico.
Nesse contexto, os sebastianistas decidem-se pelo rapto de Maria como forma de quebrar
tais interdições socioculturais. Pressentimentos e superstições, pactos e intrigas, poder, honra e
No memorial de Antônio Áttico de Souza Leite, o João que deveria se casar com Maria era João Antônio dos
Santos, primeiro rei de Pedra do Reino, conforme se lê no subtítulo “Pedra do Reino, a história que se conta em
Antônio Áttico de Souza Leite”.
109 Embora tenha ido morar no Ceará, em O Reino Encantado, João Antônio continuará tendo influência na trama. No
romance, Araripe Jr. vê que a saída dele não foi uma forma de retirá-lo do enredo, mas, ao contrário, compor sua
tessitura. Por isso, voltaremos a falar sobre João Antônio ainda nesta parte do capítulo.
110 Sobre João Antônio, personagem histórica, cf. no capítulo 1 o subtítulo “Pedra do Reino, a história que se conta
em Antônio Áttico de Souza Leite”.
149
108
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
violência: eis os elementos que matizam a composição da trama de O Reino Encantado, que se
desenvolve em torno do sequestro de Maria.
3.1.2. O cenário da trama e o tempo do enunciado
O narrador inicia o romance convidando o leitor a transportar-se para Pernambuco,
“terra heróica, que foi berço desses esforçados paladinos, que expulsaram de suas praias os
denodados batavos” (RE, p. 03). Segue com a descrição do cenário, sobretudo da paisagem
sertaneja comparando-a à do litoral e à dos pampas gaúchos. Nesse aspecto, o romance de
Araripe Jr. remete-nos à obra-prima de Euclides da Cunha, Os sertões. Esse parentesco se revela
sobremaneira com “A terra”, no trecho em que o autor de Os sertões compara o sertanejo ao
gaúcho. Além desse aspecto há o fato mais explícito em que Euclides afirma que sua obra é
tributária de O Reino Encantado e cita-o textualmente. Com isso demonstra que este romance de
Araripe Jr. serviu-lhe de inspiração, sendo uma de suas matrizes.
No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da
costa se alteiam, em formas caprichosas, na Serra Talhada, dominando, majestosos,
toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita
garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, erguese um bloco solitário — a Pedra Bonita.
Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas
dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população
dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo
advento do reino encantado do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a
pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre
ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante,
castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que
houvessem contribuído para o desencanto (CUNHA, 1997, p. 82).
Outra semelhança entre O Reino Encantado e Os sertões está na divisão interna de ambas as
obras, em cujo aspecto são tributárias dos “fatores taineanos” quais sejam raça, meio e momento
histórico. Porém, tanto em O Reino Encantado (1878) como em Os sertões (1902) há uma releitura
da ordem dos “fatores taineanos” já mencionados. Conforme observaram Luiz da Costa Lima
(1997, p. 99) e Leopoldo Bernucci (1995, p. 53), Euclides da Cunha preferiu dividir sua obra em
três partes A terra, O homem, A luta. Na nossa compreensão, essa maneira nova de ordenar os
fatores de Taine pode ter tido como matriz à releitura dos mesmos fatores empreendida anos
antes por Araripe Jr., em O Reino Encantado (1878). Neste, o romancista apresenta primeiro a
paisagem sertaneja, depois os homens e mulheres envolvidos na trama, para, por fim, apresentar
a luta que se deu entre potentados e sebastianistas, os dois grupos antagônicos. Ao que parece, a
intenção de Araripe Jr., tanto quanto a de Euclides da Cunha ao alterar a sequência dos fatores de
Taine, era secundarizar a ênfase em torno da questão racial.
150
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
O narrador afirma que o romance se ambienta “na circunscrição de Flores”, mais
precisamente no povoado de Serra Talhada - PE (hoje município) e em suas proximidades. O
dado é histórico. A Comarca de Flores é uma das mais antigas de Pernambuco, foi a primeira
comarca do sertão daquela província e seu território abrangia vastíssima extensão de terras 111. É
de igual maneira histórico o espaço romanesco de Pedra do Reino e imediações, hoje pertencente
ao município de São José do Belmonte - PE. Por outra via, são exemplos de ambientes
exclusivamente ficcionais as fazendas Porteiras e Pau Ferro. Embora aquelas cercanias sejam um
conglomerado de fazendas e pequenos sítios, nenhuma delas se chamava Porteiras ou Pau Ferro.
O tempo do enunciado é o ano de 1838. O narrador cientifica o leitor do cenário político
local e do que seriam suas consequências para a população da região onde se localizam as pedras
do reino. O narrador considera que os acontecimentos de Pedra do Reino são frutos de duas
ordens de situação: as violentas lutas políticas112 e o quadro de superstições entre os sertanejos.
Lutas políticas desapiedadas tinham posto em alarma os espíritos calmos e sensatos; e a
superstição, a despeito dos esforços de um digno sacerdote, tendo erguido o colo como
a hidra113 da Fábula, insinuava-se pelo ânimo dos míseros campônios, produzindo as
mais assombrosas cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar (RE, p.04).
3.1.3. Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio
Em cena, surgem duas personagens, dois andarilhos cujos destinos não se revelam de
início. O leitor é informado apenas sobre a raça a que eles pertenciam. Essas definições raciais
estão sempre latentes na obra e, mais que isso, são portadoras de tensões. Um era “mameluco”,
o outro, um homem branco. Mais tarde, saberemos que o mameluco é Pedro Antônio e o homem
branco é Tibúrcio que estão indo ao encontro de Frei Simão, que “pertencia à raça africana” (RE,
p. 07), a fim de executarem o plano fundamental para o desencantamento do reino: o rapto e
sacrifício de Maria. Notemos que, em O Reino Encantado,é notória a atenção que Araripe Jr.
dispensa ao tema racial. Em outra parte desta tese, analisaremos aspectos das representações dos
conflitos oriundos do caldeamento das três raças, a partir das personagens do romance.
O território da antiga comarca de Flores pertencente hoje aos municípios de Tacaratu, Cabrobó, Floresta, Serra
Talhada, São José do Belmonte, entre outros. Foi criada em 1833 por força da Resolução do Conselho da Província,
que dividiu Pernambuco em nove comarcas, sendo uma delas a de Flores. Sua instalação ocorreu em maio de 1834.
Antes dessa resolução, em virtude do alvará de 15 de janeiro de 1810, já havia sido criada a comarca do Sertão da
Província
de
Pernambuco,
da
qual
a
Vila
de
Flores
foi
uma
das
sedes.
Cf.
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/pernambuco/flores.pdf. Acesso em.: 26. out. 2011.
112 Sobre as lutas políticas em Flores, Serra Talhada, confira o capítulo anterior no subtítulo Ulisses Lins em O sertanejo
e o sertão (1957).
113 Hidra: hi.dra1sf (gr hýdra) 1.Mit gr Serpente de sete cabeças que renasciam quando decepadas, a não ser que fossem
todas cortadas de um só golpe. Foi morta por Hércules. 2.fig Mal muito alastrado, que aumenta apesar dos esforços
feitos para extingui-lo.
151
111
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Frei Simão espera Pedro Antônio e Tibúrcio em um casebre nas imediações da fazenda
Porteiras. O Frei reafirma aos recém chegados a importância daquela ação para desencantar o
reino e esclarece que só seria possível raptar Maria com o auxílio da escrava Justina. Esta era a
única dentre os sebastianistas que tinha acesso à casa dos Vasconcelos, por ser escrava da família,
onde cumpria a função de mucama de Maria.
Não é demais lembrar que os sebastianistas tinham o plano de sequestrar Maria e levá-la à
Pedra do Reino para que se cumprisse a profecia do desencantamento. Consta que, assim que se
consumasse o casamento de Maria com João Ferreira, o reino desencantaria. Conforme as
palavras de Frei Simão, dirigindo-se para Tibúrcio e Pedro Antônio: “Os fiéis estiveram presentes
às vozes da Casa Santa e todos ouviram o espírito exclamar que, quando João se casasse com
Maria, o reino se desencantaria. É preciso assim que se faça a grande obra do encontro e o
sangue dessa virgem vá lavar o altar dos mistérios” (RE, p. 08).
Em O Reino Encantado, quem eram Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio? O que há de
importante na composição dessas personagens que leve à compreensão do enredo do romance?
Cabe dizer que as três personagens faziam parte do grupo dos sebastianistas, todavia apenas Frei
Simão acreditava na profecia. Já os outros dois não tinham fé em D. Sebastião tampouco nas
promessas de se tornarem “limpos da fealdade anterior, alvos, formosos” (RE, p. 117). Tibúrcio,
na verdade, queria raptar Maria e casar-se com ela. O rapaz sabia que nunca contaria com o
consentimento dos pais de Maria para contrair núpcias com a moça. Maria e o casal Vasconcelos
repugnavam Tibúrcio pelas seguintes razões. Ele havia sido adotado por Bernardo e dona
Clemência e criado como irmão de Maria. Depois de educar Tibúrcio com zelo e carinho os
Vasconcelos escorraçaram-no de casa quando souberam que ele, já rapaz, havia tentado estuprar
Maria, num ato violento e, pode-se dizer, incestuoso, já que Maria e Tibúrcio cresceram como
irmãos.
Tibúrcio se coligou com os sebastianistas quando soube da intenção deles de raptar sua
pretendida. Viu naquela ação a única forma de possuir seu objeto de desejo. O plano pessoal de
Tibúrcio era o de se antecipar à ação dos sebastianistas, raptar Maria e ir embora com ela para um
lugar onde jamais fossem encontrados.
Pedro Antônio, por seu turno, também não acreditava na profecia nem nas riquezas do
reino encantado. Ele acreditava em outro tesouro. Pedro Antônio calculava que João Ferreira e
Frei Simão guardavam muitos bens de fortuna, como joias e dinheiro (RE, p. 46) subtraídos das
fazendas da região, por onde os líderes dos sebastianistas divulgaram a crença no reino encantado
de D. Sebastião. Pedro Antônio se julgava merecedor dessas riquezas, pois atribuía a obtenção
152
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
desses bens ao poder de persuasão de João Antônio, seu irmão. O plano de Pedro Antônio era o
de se fingir de crente em D. Sebastião, cumprir as tarefas que lhe fossem delegadas e, depois de
ganhar a confiança dos líderes de Pedra do Reino, furtar o tesouro para si; fugir para lugar
distante e viver uma vida financeiramente abastada.
3.1.4. A Família Vasconcelos
Enquanto Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio tramavam o sequestro de Maria,
ouviram, ao largo, os movimentos de um carro de boi. Bernardo Vasconcelos, dona Clemência e
Maria eram os passageiros do carro e estavam em viagem de retorno à fazenda das Porteiras. De
longe, a família era observada por Frei Simão, Pedro Antônio e Tibúrcio. No trajeto entre o
povoado de Serra Talhada e a fazenda, a menina confidenciou aos pais que vinha sendo
acometida de fortes pressentimentos em relação a Jaime, primo e noivo de Maria que há dias
havia desaparecido. A mãe tentou, em vão, dissuadi-la daqueles pensamentos, lembrando-lhe que
o rapaz tinha o costume de caçar e que não era a primeira vez que ele se ausentava sem deixar
notícia.
As aflições de Maria são reforçadas por Bernardo Vasconcelos. Embora ele afirme
acreditar que Jaime esteja bem, diz que as preocupações da filha têm fundamento e são muito
piores:
Rumores estranhos soaram a meus ouvidos, e há quem fale vagamente em coisas
inauditas. Olha esse desaparecimento por toda parte de negros e escravos que viviam até
então na segurança do labor; esses roubos de crianças de que já acusam os quilombolas,
impressionaram-me profundamente (...) embora se atribua tudo isso a vingança de
adversários, dou-lhe origem bem diversa. (...) Devemos ir preparando o espírito para
quaisquer emergências dolorosas, pois estamos cercados de invisíveis inimigos 114 (RE,
p. 09 – grifo nosso).
Os donos da fazenda chegam de viagem e são recebidos por Manoel Velho. Personagem
importante, sobretudo, no desfecho do enredo, Manoel Velho não é escravo, é apresentado
como um homem branco, fiel vaqueiro da fazenda das Porteiras e apaixonado pela mucama
Justina. Embora soubesse que ia desagradar aos patrões, por força do dever, Manoel Velho,
informa-lhes os últimos acontecimentos na fazenda das Porteiras: a fuga de escravos, o
desgarramento de alguns animais e o retorno de Frei Simão às redondezas. Bernardo Vasconcelos
detestava Frei Simão por considerá-lo feiticeiro: “O velho insoneiro voltou as nossas terras (...) O
Veja que Bernardo Vasconcelos se refere a negros e a escravos. Denota-se que a condição de escravo reservava-se
tanto aos negros, como também a descendentes de outras etnias, provavelmente índios.
114
153
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
mísero, quem sabe se não cogita contra nós algum horrendo malefício” (RE, p.10). As novidades
deixam o fazendeiro furioso e mais preocupado.
3.1.5. A chegada de Jaime à fazenda das Porteiras
Na noite daquele mesmo dia, parte dos pressentimentos de Maria também se
materializou. Os Vasconcelos já haviam se recolhido, quando ouvem o tropel de um cavalo que
transportava Jaime desfalecido. O rapaz estava fisicamente em estado lastimoso e visivelmente
perturbado, já que tudo que dizia parecia desconexo. Maria perguntou a Jaime o que lhe
aconteceu, por onde ele andava. Jaime respondeu como quem segredava e pede a discrição da
noiva para o que ela vai ouvir:
Não me fales... abaixa a voz.... por quem és? Disse ele fazendo menção de tapar-lhe a
boca. De onde venho? Pois não sabes?! Venho do meio dos assassinos... dos antropófagos...
do inferno... de um mundo de horrores... Ainda o ignoravas?...(...) Vamos... saiamos daqui...
eles aí vêm... os infames... os perversos... Perseguem-me, e é bem possível que te
assassinem, Maria. São capazes de aniquilar-nos todos para beber-nos o sangue (RE, p.
15).
Jaime não expressou isso claramente, mas, nos capítulos seguintes, sabemos que ele
chegava à fazenda das Porteiras voltando de Pedra do Reino. Lá, segundo o narrador, o noivo de
Maria presenciou um mundo de horrores. Vasconcelos indaga Jaime sobre a participação de Frei
Simão no que ele sofrera e o rapaz acena a cabeça afirmativamente. Vasconcelos então esbraveja:
Não há mais dúvida! Bradou o fazendeiro com fúria. No meio de tudo isto só vejo as
abusões de Frei Simão. Ele é letrado e foi acólito 115 de padre. Aí está em que dão seus
feitiços. Bem me dizia o reverendo vigário que sempre andasse aprecatado contra esses
adivinhos que entendem de ciência oculta (RE. p.15).
“Dois dias são passados das cenas que acabamos de descrever” (RE, p. 16). Depois dos
cuidados que Maria e sua mãe dedicaram a Jaime, ele recobrou boa parte da saúde. Enquanto o
jovem casal tomava o sol da manhã, dona Clemência veio lhes dizer que Bernardo Vasconcelos
tinha se ausentado da fazenda das Porteiras. Tinha ido atender a um chamado do feitor da
fazenda Pau Ferro, também de propriedade da família, que mandou chamar o seu patrão e
senhor, “em razão do levante de alguns negros e da mortandade estranha que está se observando
no gado de toda espécie” (RE. p. 17).
Acólito - na igreja católica, pessoa incumbida de ajudar o diácono em suas funções litúrgicas; sacristão, ajudante,
assistente.
154
115
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Maria considerou a viagem uma atitude impensada do pai por dois motivos: a) a viagem
era arriscada por causa dos salteadores que recorrentemente atacavam as estradas; b) por deixálos sós, a mercê da ação dos mesmos malfeitores que vinham surrupiando o gado das Porteiras.
Mais uma vez, os maus pressentimentos de Maria se materializaram.
3.1.6. Invasão à fazenda das Porteiras e o rapto de Maria
Naquela noite, os sebastianistas invadiram a fazenda das Porteiras. Conforme conta o
narrador, o grupo de invasores era formado, sobretudo, pelos negros fugidos das fazendas de
Vasconcelos, todos indignados com o tratamento desumano que recebiam do senhor. Os negros
estavam sob o comando de Tibúrcio que gritava: “Machados à cima! Bradou ele com o ódio a
fuzilar-lhe das pupilas sangrentas. Acabemos com isto! Poupem a quem devem poupar e quanto
ao mais é cevarem os seus justos ódios como bem lhes parecer!” (RE, p. 39).
O ataque dos sequestradores levou à completa destruição da vivenda dos Vasconcelos,
assim como foram mortos aqueles que vigiavam o local. Menos Manoel Velho que teve a vida
poupada por obra de Justina. O amor que o vaqueiro nutria pela mucama era recíproco e Justina
deu provas do seu amor, ao livrar Manoel Velho da morte. É preciso que se diga ainda que
Clemência e Maria sobreviveram à sanha dos assaltantes.
Reportemo-nos exclusivamente ao caso de Maria, importante para a sucessão do enredo.
Maria percebe que a fazenda será tomada por invasores. Diante do perigo, a moça entende que só
lhe resta rezar e dirige-se ao quarto onde há um oratório com a imagem de N.S. da Penha, sua
padroeira. Depara-se com Justina, sua mucama, que havia sumido da fazenda há dias. Justina diz
que está ali a pedido de Frei Simão, roga o perdão à sinhazinha e explica-lhe que só retornou à
fazenda com o objetivo de salvar Maria. A mucama conta-lhe que os homens que invadiram a
fazenda são “soldados do reino” e estão ali por causa de Maria:
Por causa da beleza da sinhazinha é que os soldados do reino vêm a Porteiras. Apóstolo
São João, pela boca do Rei Santidade, disse que o encantamento só desapareceria se nhã
Mariquinha fosse por a mão sobre a pedra dos martírios. Ora como a menina não ia lá
por sua vontade, será preciso matar gente e levá-la a força. Mas sinhazinha, que sabe
tudo agora pode livrar da morte nhô Bernardo e nhã Clemência... e também sinhozinho
Jaime (...) (RE, p. 33).
Por algum tempo, Maria se viu numa encruzilhada. Estava em suas mãos escolher “entre
a salvação de seus pais e a repugnância em dar crédito às singulares revelações de Justina” (RE, p.
33). Pelas mãos de Justina, a menina decidiu ir para a Pedra do Reino.
155
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Pouco tempo depois dessa conversa entre Maria e Justina, Tibúrcio vai ao quarto de
Maria para colocar em prática seu plano pessoal. Mas chega tarde. Justina já tinha levado Maria e
colocado a menina em local seguro. Ao encontrar o quarto vazio, Tibúrcio despejou toda sua
raiva em Jaime, o noivo de Maria, e o assassina cruelmente (RE, p. 40).
Ainda não tinha amanhecido o dia, quando Bernardo Vasconcelos regressou da fazenda
Pau Ferro e encontra a sede da Porteiras completamente queimada. Diante da cena, ele caminha
pelos arredores da fazenda em busca de alguma pista sobre a esposa e a filha. Um dos escravos
que conseguiu sobreviver à violência da noite anterior garantiu a Bernardo Vasconcelos que elas
tiveram as vidas poupadas e haviam sido arrebatadas pela gente de Frei Simão (RE, p. 43).
A notícia encheu o fazendeiro de esperança. Bernardo Vasconcelos resolveu ir à vila de
Serra Talhada a fim de conseguir a ajuda que necessitava para resgatar Maria e dona Clemência.
Em Serra Talhada, o fazendeiro consegue a adesão do comissário de polícia Manuel Pereira da
Silva e do missionário Pe. Francisco José Correia de Albuquerque. Essas duas personagens são,
também, simultaneamente históricas e ficcionais. Já nos referimos a eles no capítulo 1, na
condição de personagens históricas. No espaço romanesco, as composições de ambas as
personagens são equivalentes ao que se registrou na historiografia sobre a Pedra do Reino116.
Ao chegar em Serra Talhada, Vasconcelos participa a Pe. Correia e ao comissário Manuel
Pereira que Maria e dona Clemência tinham sobrevivido à catástrofe. Embora estivessem na
condição de cativas e em local esmo, mãe e filha estavam vivas: “(...) chegara a descobrir alguns
de seus escravos que se conservaram por perto do sítio da catástrofe. Um deles certificara-o do
cativeiro da senhora, e criara-lhe no espírito as mais sérias suspeitas de que Maria fora arrebatada
da mesma sorte” (RE, p. 43).
3.1.7. A expedição à Pedra do Reino e João Pilé
Bernardo Vasconcelos, auxiliado por Manuel Pereira e Pe. Correia, lidera a expedição à
Pedra do Reino, que tentará resgatar Maria e Clemência. Os três homens mobilizaram
fazendeiros da região, que enviaram seus homens fortemente armados para compor a expedição.
116O
narrador apresenta Pe. Correia: “um missionário denodado, conhecido em todo o centro de Pernambuco por
suas virtudes e que por mais de uma vez fora ali chamado para a catequese e instrução do povo. Grato ainda hoje à
memória dos habitantes de Villa Bela, o Pe. Correa, tornara-se um herói nesses impérvios sertões, é o seu nome bem
dito por todos, simbolizou a mansidão e o apostolado evangélico.”(RE, p. 42). Já Manuel Pereira da Silva, era
“Comissário do distrito de Serra Talhada, homem sisudo e honesto (...) que cogitava em um meio de livrar seus
jurisdicionados do terrível flagelo que os perseguia”. (RE, p. 42).
156
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Das dificuldades encontradas, a maior delas era encontrar um rastejador, um guia ou “mateiro”
de confiança, que conhecesse o caminho e estivesse disposto a conduzi-los até lá. O guia ou
“mateiro” escolhido foi um rapaz que se identificou com o nome de João Vital. O narrador o
apresenta ao leitor por meio da raça a que pertencia: caboclo, índio tapuio.
A expedição se pôs a caminho de Pedra do Reino, seguindo o rumo indicado por João
Vital. No trajeto, Padre Correia receou da idoneidade de João Vital, mas Manuel Pereira advogou
a favor do índio. Padre Correia se aproxima de seus amigos e diz-lhes: “Não estou gostando das
lérias deste súcio. Isto é gente boa quando fiel; mas logo que dão para sonseira, requintam-se os
seus instintos na finura, e não há quem possa vencê-los na trapaça. Cuidado, comissário, muito
cuidado” (RE, p. 46). Mas o comissário rechaça: “Permita, reverendíssimo, que ache infundadas
as suas suspeitas. Este homem é conhecido e há quem o garanta. Por que havemos de criar
suspeitas antes do tempo?” (RE, p. 46).
As suspeitas de Padre Correia, no entanto, tinham fundamento. João Vital, na verdade era
João Pilé, sebastianista convicto, que estava ali em missão orientada por Frei Simão: desviar do
caminho de Pedra do Reino, todos aqueles que fossem opositores da crença sebastianista. Tão
logo anoiteceu, o rastejador abandonou a tropa, deixando-a entregue a própria sorte. Com o
inesperado, a caravana resolveu parar e montar acampamento, descansar, para no dia seguinte,
tomar as medidas necessárias para que chegassem à Pedra do Reino.
3.1.8. A participação de João Antônio na expedição
Enquanto os demais membros da expedição dormiam, Pe. Correia velava-lhes o sono.
Nesse meio tempo, houve um acontecimento inesperado. João Antônio, o primeiro rei de Pedra
do Reino, apareceu diante do padre, dizendo-lhe: “Meu santo padre, socorrei-me! Salvai esta alma
das penas eternas! Estou perdido! Mas não tanto por minha culpa como pela infâmia de João
Ferreira. Ouvi-me, ouvi-me, em confissão” (RE, p. 49).
Pe. Correia quis saber o porquê de João Antônio ter voltado à região de Pedra do Reino.
Queria entender o motivo de João Antônio descumprir o acordo firmado na missão de há dois
anos atrás, quando Pe. Correia recomendou que ele esquecesse aquela história de
desencantamento e se retirasse para os Inhamuns. João Antônio respondeu:
tentou-me o demo outra vez... e como a vida que levava não me dava para comer, e
aquele negócio, que sabeis, rendia-me alguma coisa, não querendo aparecer mais nesta
amaldiçoada terra, enviei um discípulo, um companheiro a minha gente... O padre
mestre sabe que eu especulava sem outras intenções... Contudo, João Ferreira traiu meu
pensamento... Meteu-se-lhe o esconjurado nos cascos e está a matar gente de um modo
atroz, no meu nome, e por causa dos santos que invoca! (RE, p. 50).
157
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Pe. Correia diz a João Antônio que dos arrependidos é o reino do céu. Depois da
confissão, estabelece uma penitência: como forma de expiar seus pecados, João Antônio deveria
conduzir a expedição à Pedra do Reino. “João Antônio, prepara-te para guiar-nos, redimindo
com um ato meritório as tuas graves culpas. Esses miseráveis devem ser exterminados” (RE, p.
50). João Antônio aceita a proposta e conduz os expedicionários à Pedra do Reino (RE, p. 50).
3.1.9. Justina e Maria
Inicia-se a Parte 2 do romance intitulada Os sebastianistas. O narrador retoma o enredo
rememorando que Justina foi quem, de fato, raptou Maria. E continua explicando que Justina
escondeu Maria em lugar seguro e foi ao encontro de Frei Simão. Ao ver a mucama diante de si,
Frei Simão cobra a fidelidade de Justina ao Santidade117 e quer saber por que Justina não deu cabo
à vida de Manuel Velho. Justina responde: “O Manuel percebeu tudo... Fingiu-se adormecido e;
quando quis embeber-lhe o ferro, subjugou-me, prendeu-me e evadiu-se” (RE, p. 57). Ao ouvir a
mulata, Frei Simão comunica-lhe que Manuel Velho está sob a guarda dos sebastianistas.
Diante da informação, Justina propõe uma permuta: ela entrega Maria a Frei Simão e, em
troca, o frade liberta Manuel Velho: “É um negócio. Diga-me o pai onde está o vaqueiro que
entregarei nhã Mariquinha” apelido de Maria (RE, p. 57). E assim acontece. Maria fica em poder
de Frei Simão e Justina se encontra com Manuel Velho (RE, p. 58). Este fica furioso ao saber da
catástrofe nas Porteiras e, mais ainda, em saber que Maria e dona Clemência estavam em poder
dos sebastianistas. Seu ódio foi tamanho que ele tentou contra a vida de Justina.
Manoel Velho logo compreendeu que de nada lhe valia dar fim à vida de Justina. Para ele
era mais importante elaborar um plano para salvar dona Clêmencia e Maria; para isso, sabia que
precisava contar com o auxílio da mucama Justina. Tal qual fez Pe. Correia com João Antônio,
Manoel Velho pede a Justina que expie seus pecados, conduzindo-o à Pedra do Reino.
Embora relute em conduzir Manuel Velho à Pedra do Reino, Justina resolve fazê-lo, a fim
de se redimir com o vaqueiro. Como já dissemos, a intenção do vaqueiro era resgatar Maria e
dona Clemência.
Justina e Manoel Velho chegam à Pedra do Reino. Não entram no arraial, mas se põem
em um local onde é possível observar tudo o que se passa lá dentro. Segundo o narrador, Manuel
Velho se impressiona com o que vê. No lugar havia cadáveres de vários animais misturados a
117
Em O Reino Encantado, Dom Sebastião recebe as seguintes designações: Santidade, Encoberto, Rei.
158
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
cadáveres humanos. Muito sangue espalhado pelo chão. E tudo isso exalava um mau cheiro
insuportável. Ante essas e outras cenas, o narrador dá uma ideia das sensações do vaqueiro.
Automaticamente deixou-se Manuel conduzir-se até a entrada do arraial, como
dominado pelas mesmas sensações que experimenta um indivíduo deslocado de repente
de onde vivia, para ser atirado no meio de um país completamente diverso do seu, onde
a fantasia cria sonhos infernais. O passado varreu-se-lhe da memória, e só depois de
mais ou menos prolongado espasmo, coordenaram-se as suas idéias e permitiram-lhe
pensar. Foi então que o vaqueiro pôde melhor observar o que era em realidade o covil
dos quilombolas (RE, p. 61).
Manoel Velho observou que entre os sebastianistas havia muitos negros fugidos das
fazendas Porteiras e Pau Ferro, de propriedade de Bernardo Vasconcelos. Mas nada comentou
sobre isso com Justina, que ficou de seu lado durante o tempo em que o vaqueiro observou o
povoamento construído em torno de Pedra do Reino. Justina tentou convencê-lo a crer em D.
Sebastião e a participar dos rituais que eram praticados ali. Mas os objetivos de Manuel Velho
eram outros.
Depois de algum tempo, em que ambos espreitavam o arraial, começou uma terrível
tempestade e um raio atingiu Justina. Ao ver que Justina estava desacordada, muito doente,
Manoel Velho vai buscar socorro. O vaqueiro bateu à primeira porta que encontrou: a de uma
cabana de palha, localizada não muito distante de onde eles estavam. Quem os recebeu foi Josefa,
a dona da casa, que imediatamente auxiliou Manoel Velho nos cuidados para que a saúde de
Justina se restabelecesse.
3.1.10. Josefa e Manoel Velho
Josefa, conforme já dissemos nesse resumo, era a ex-esposa de João Ferreira e irmã de
João Antônio e Pedro Antônio. Apesar da ligação afetiva e consanguínea com os líderes do
movimento messiânico, havia sido escorraçada do arraial de Pedra do Reino e excomungada da
crença em D. Sebastião. Josefa tornou-se persona non grata a partir do momento em que não
aceitou as traições do marido. Conta o narrador que, em Pedra do Reino, “o chefe dos
quilombolas exercia entre os seus o mesmo célebre direito de colher as primícias do noivado de
que gozava os senhores feudais na Idade Média” (RE, p. 66). Ou seja, João Ferreira esposava as
mulheres do arraial, depois de cerimônias de casamentos celebradas por Frei Simão. A ex-rainha
não se conformou com a deslealdade do marido e, como revide, começou a fazer campanha
contra João Ferreira e Frei Simão, no interior do arraial. Segundo o narrador, por essa causa, João
Ferreira excomungou Josefa, “proibiu [aos sebastianistas - grifo nosso] toda a comunicação com
159
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
a excomungada, e declarou que todo aquele que infringisse este preceito seria vítima irremissível
dos dragões destinados à destruição dos maus” (RE, p. 93)118.
Justina despertou do desmaio e logo se desesperou porque, ao abrir os olhos, viu que
estava deitada na casa de Josefa e diante da ex-rainha. Temeu ser excomungada e, por isso,
implorou a Manoel Velho que saíssem imediatamente dali.
O vaqueiro acalmou Justina. Convenceu-a de que, estando em casa de Josefa, ele estaria a
salvo e a mucama poderia ir à Pedra do Reino fazer companhia e proteger Maria.
Manoel Velho tinha suas razões para proferir essas palavras. Enquanto Justina
permaneceu desacordada, Manoel Velho ouviu as longas histórias de Josefa sobre João Ferreira e
a Pedra do Reino. Pelas mágoas que guardava do ex-marido, logo identificou que Josefa seria
uma importante aliada no seu conhecido plano de resgatar Maria e dona Clemência das mãos dos
sebastianistas.
Justina obedeceu a Manoel Velho. Daquele momento em diante até o fim do romance,
Justina permaneceu numa das tendas de Pedra do Reino, ao lado de Maria, protegendo-a.
3.1.11. O pacto dos desiguais contra um inimigo comum
O vaqueiro ficou em companhia de Josefa. Algum tempo depois, Tibúrcio e Pedro
Antônio chegam à casa da ex-rainha e contam a ela que romperam com Frei Simão e João
Ferreira. Ambos se sentiram traídos por julgar que Frei Simão havia se aproveitado da força física
e da capacidade dos dois de liderar os negros na invasão da fazenda das Porteiras, mas que, no
exato momento do rapto de Maria, havia tomado a menina apenas para si, sem permitir, sequer,
que eles a vissem. Tibúrcio e Pedro Antônio não sabiam que tinha sido Justina quem, na verdade,
sequestrou Maria.
Josefa esperou que a raiva dos dois homens diminuísse para lhes propor um pacto. No
entendimento de Josefa, todos ali deveriam se aliar e tomar o poder de João Ferreira e Frei
Simão. Ela antevia, no entanto, que eles não aceitariam que Manoel Velho integrasse o pacto,
dada a conhecida fidelidade que o vaqueiro devotava a Bernardo Vasconcelos e família, situação
frontalmente oposta aos interesses de Tibúrcio. Ainda assim, Josefa conseguiu convencê-los da
importância de Manoel Velho para o êxito do pacto.
Quando foi expulsa de Pedra do Reino, Josefa deixou o arraial prometendo revanche: “Ah! João Ferreira... tenho
desejo de trincar-te o coração... Deixas-me estar aqui, porque tens medo... não é assim?.. Não hás de viver com vinte
e trinta mulheres, sem vergonha, descarado, infame, abandonado aquela que recebeste à face da igreja! (RE, p. 67).
118
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
O narrador explicita o pensamento de Tibúrcio e Pedro Antônio, ao aceitar, ainda que a
contragosto, a aliança com o vaqueiro: “melhor alvitre, portanto, seria conspirarem sem reservas
contra o inimigo comum, e aguardarem o desfecho da tragédia para então entenderem-se mais
em particular do ponto em diante em que seus desejos divergissem” (RE, p. 103). O narrador
complementa expondo o pensamento de Manoel Velho sobre o mesmo pacto: “Auxiliado por
uma perspicácia admirável, o vaqueiro percebeu tudo o que se passava na cabeça dos dois
tratantes, e mentalmente acedeu à proposta” (RE, p. 103).
As considerações do narrador revelam que as personagens tinham “um inimigo comum”,
mas interesses particulares. A saber: Josefa desejava reaver o marido, ainda que ele estivesse
morto; Tibúrcio, possuir Maria; Pedro Antônio queria tornar-se rei de Pedra do Reino e confiscar
as riquezas que julgava estar sob a guarda de João Ferreira e Frei Simão; por último, Manoel
Velho esperava resgatar Maria e dona Clemência e devolvê-las a Bernardo Vasconcelos. Josefa foi
a primeira a ver seus objetivos pessoais realizados, mas somente com a leitura do romance o
leitor saberá como ela atingiu sua meta. Do mesmo modo, Pedro Antônio depôs João Ferreira do
trono e foi coroado rei de Pedra do Reino; e só aguardava o momento certo, para se apossar dos
tesouros do reino e escapar dali. Enquanto isso tudo se passava, os expedicionários avançavam
rumo à Pedra do Reino.
3.1.12. A expedição chega à Pedra do Reino: a luta entre potentados e sebastianistas
A expedição liderada por Bernardo Vasconcelos irrompeu no centro do arraial. A
primeira reação de Frei Simão foi achar que os expedicionários eram o “exército do grande
reino”. Sobre isso, diz o narrador:
A súbita aparição dos expedicionários (...) atordoou o mandingueiro [Frei Simão ] a
ponto de fazê-lo acreditar que um milagre se operava, e que o Encoberto vinha em seu
socorro. Esta ilusão foi tanto mais duradoura quanto a fumaça e a sua cegueira não lhe
permitiam reconhecer a natureza dos recém-chegados. E como poderia ele supor que
fossem inimigos, quando saíram precisamente do lugar onde, segundo a profecia,
deviam ressurgir os exércitos do grande reino? (RE, p. 149).
De igual maneira pensaram os escravos. De pronto, eles julgaram que a expedição
representava “os dragões preditos pelo profeta deposto [João Ferreira] que vinham vingá-lo,
talvez (...) instintivamente curvaram os joelhos e bradaram por misericórdia” (RE, p. 148).
Quando a poeira assentou, é que foram capazes de reconhecer o engano e antever seu
fim. Demos aqui voz ao narrador para compreendermos a reação dos escravos, ao reconhecer os
componentes da tropa:
161
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Isto, porém, passou-lhes como uma nuvem, porque mal dissipou-se a fumaça,
reconheceram o engano. Eram homens; nada tinham de demônios, nem de anjos
exterminadores. À frente deles, vinha Vasconcelos, vinha o senhor, o fazendeiro de
Porteiras, acompanhado de uma autoridade policial que bem conheciam. Seguiam-no
soldados paisanos de Serra Talhada. Não restava, pois, a mínima dúvida do fim que os
trazia ali. Eles, os escravos fugidos, rebeldes, assassinos, iam ser presos, trucidados,
garroteados, arrastados ao tronco. Era impossível iludirem-se mais sobre o futuro que
os aguardava (RE, p. 148).
Diante da constatação, os escravos decidiram lutar até a morte, para não serem
reconduzidos ao cativeiro. Conta-nos o narrador:
Voltar ao cativeiro para sofrerem castigos indizíveis é que nunca suportariam. Perdidas,
portanto, as últimas esperanças do desencantamento só o que lhes restava era
derramarem a última gota de sangue por sua liberdade. Este movimento instinto
acendeu toda a ferocidade bravia que o peso da superstição lhes tirará. O ódio contra o
que eles chamavam de verdugo reviveu de uma maneira terrível e açulou o vigor
amortecido de suas almas selvagens para impeli-los sobre a turba que se lhes mostrava
com todas as cores negras da vida das senzalas (RE, p. 149).
Para não voltar ao cativeiro, resolveram contra-atacar os expedicionários. Mas a luta era
muito desigual. “A superioridade dos meios de destruição de que dispunham os expedicionários,
deu-lhes logo vencimento de causa” (RE, p. 150). E, conforme atesta o narrador, o “ardor da
gente de Vasconcelos era irresistível. Aquela onda de carne humana a fluir e refluir animada pelo
instinto de conservação, afinal, estourou e os fanáticos desdobrando-se em sentido inverso
buscaram asilo aonde pudessem escapar às armas inexoráveis” (RE, p. 149).
O narrador conta que coube a Manuel Pereira e a um de seus irmãos a luta contra os
“negros de Porteiras”:
O major Manuel Pereira, por seu lado, e seu irmão 119, reagindo contra a fúria dos
escravos, apertaram-nos em um círculo de fogo e, acutilando [golpear- Grifo nosso] os
mais audazes, levando a coice das armas os inermes, que em desespero escarniçavam-se
(SIC) na resistência como um bando de cães danados, colocaram-os em breve em
termos de mais nada poderem fazer. Apertados sobre a aresta do precipício até onde
tinham recuado, muitos preferiam despenhar-se no abismo a se entregarem; os que
escaparam, sem forças para se oporem a vontade do mais forte, sujeitaram-se à sorte
dos vencidos e, em um momento amarrados, foram reduzidos à impotência. (RE, p.
150).
O narrador não nomeia o irmão de Manuel Pereira da Silva. No entanto, na historiografia sobre a Pedra do Reino,
afirma-se que três irmãos de Manuel Pereira da Silva integraram a expedição à Pedra do Reino: Simplício Pereira da
Silva, conhecido pelo seu destemor e agressividade, além de Alexandre e Cipriano Pereira da Silva, esses dois últimos,
mortos no ataque aos sebastianistas de Pedra do Reino. Cf. o subtítulo 3.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957),
do primeiro capítulo desta tese.
119
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Capítulo 3
Depois que todos os sebastianistas são mortos ou rendidos, o narrador realça que “tudo
isto se passou mais rápido do que descrevemos”. Em lugar de receber as esperadas riquezas do
reino encantado de D. Sebastião, os crentes no breve retorno do jovem monarca português são
vítimas de um massacre. O narrador ainda afirma que os sebastianistas sobreviventes “foram
postos à disposição das autoridades judiciárias de Flores” (RE, p. 154).
Três meses depois, Pe. Correia retornou à Pedra do Reino para sepultar os mortos e, no
local, ergueu um cruzeiro.
E Clemência? E Maria? O que lhes aconteceu? Clemência, que estava protegida na casa de
Josefa, foi encontrada logo que os expedicionários chegaram ao arraial. Quanto à Maria, a
chegada da expedição coincide também com um momento crucial de sua vida. A filha de
Vasconcelos estava na tenda, aos cuidados da mucama Justina, quando Tibúrcio invadiu o local.
Uma fração de segundo depois, Manoel Velho também chega à mesma tenda e num ato heróico
consegue livrar Maria dos domínios de Tibúrcio, assassina-o e, tomando Maria em seus braços,
entrega-a sã e salva a Bernardo Vasconcelos.
3.2. História, ciência e observação na composição de O Reino Encantado
A leitura do resumo do romance permite observar que, na tessitura de O Reino Encantado,
Araripe Jr. simultaneamente reatualiza a história da Pedra do Reino a partir do que ele designa de
“crônica sebastianista”. O subtítulo indica que ele adotaria uma obra baseada em um evento
histórico localizado, mas ao mesmo tempo romanceado segundo paradigmas literários
disponíveis na época, quais sejam o romântico e o naturalista. De modo que, na impossibilidade
de observar diretamente a trama do evento referido, confere a comunidade de Pedra do Reino
um status de quilombo, narrando uma épica negra em confronto com uma memória histórica
vencedora, composta e sancionada pelos brancos.
Desse ponto de partida, serve-se Araripe Jr. no intuito de propor uma reflexão acerca do
problema racial brasileiro, seus impasses e seus horizontes; bem como dialoga sobre outras
questões centrais do momento, a exemplo da emergência da nação, e de como deveria ser
concebido o campo literário nacional.
Para tanto, nosso romancista se utiliza de três referentes para tecer O Reino Encantado.
Primeiro, evoca o candente debate em torno dos pares realidade X imaginação e idealização X
observação, debate que mobilizou o melhor da crítica literária sobre a passagem do romantismo
para o realismo/naturalismo. Veremos como este episódio teve especial repercussão com a
163
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
publicação das Cartas a Cincinato, já aludidas no capítulo anterior, nas quais Franklin Távora critica
José de Alencar. Segundo, Araripe Jr. retoma as memórias de Antonio Áttico de Souza Leite para
recompor a história de Pedra do Reino e, terceiro, o autor busca suporte teórico científico
europeu, sobretudo em Hippolyte Taine ao qual recorre para desenvolver suas premissas de raça,
meio e tempo ou contexto histórico, no sentido de dar voz aos sebastianistas, repercutindo seu
universo de crenças, sofrimentos e esperanças, bem como as representações da comunidade
quilombola. Somadas a essas premissas taineanas, Araripe Jr. compõe as personagens
sebastianistas por meio de uma linguagem médico-psiquiátrica, desenvolvida por Cesare
Lombroso, segundo a qual toda prática criminosa era consequência de uma condição biológica.
Ou seja, havia indivíduos “naturalmente” predispostos ao crime.
Passaremos a examinar cada um destes aspectos.
3.2.1. Imaginação e Observação
O primeiro aspecto trata dos debates em torno dos pares realidade X imaginação e
observação X idealização. O momento é de encantamento x desencantamento, embates entre o
velho e novo, se bem que nem sempre seja possível distingui-los assim tão facilmente. Conforme
Martins, episódio marcante foram as Cartas a Cincinato, de Franklin Távora, consideradas pela
historiografia literária como um marco inicial do declínio do romantismo no Brasil. Retomamos
aqui alguns aspectos expostos nestas cartas, justificando que, embora as mesmas tenham sido
publicadas por Franklin Távora e direcionadas criticamente a José de Alencar, foram elas um
divisor de águas no fazer literário dos nossos homens de letras.
As discussões em torno desses documentos mobilizaram a inteligência brasileira que
passou a questionar o status quo da escola romântica em confronto com valores estéticos do
naturalismo. Por isso, as discussões em torno das Cartas nos auxiliam a recompor a posição de
Araripe Jr. neste tipo de debate e, mais ainda, esclarecem sobre a composição do romance O
Reino Encantado.
O que se critica e o que se propõe sobre o papel da “observação” e da “imaginação” no
trabalho do romancista? Esta questão remete para a forma de compreensão do real, bem como
remete para as formas de representações do mesmo. Aspectos relativos aos conceitos de
“originalidade” e “genialidade” então consagrados ao artista romântico, serão severamente
questionados.
164
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Voltando os olhos para as Cartas a Cincinato, o que vemos não é tanto o repúdio absoluto
à natureza da imaginação, categoria estética inquestionavelmente aplicada no interior tanto dos
processos românticos como dos realistas. A negação direciona-se para o preceito romântico
segundo o qual o artista poderia e deveria criar sua arte, seu mundo literário, suas representações
do real apenas confiando em sua própria capacidade de imaginar, fantasiar e, portanto,
desvinculando-se do referente histórico ou literário ao seu redor.
Assim, para Távora, a imaginação solta, o impulso criador individual e isolado não teria
sentido. Ao contrário, para ele, os mecanismos de criação literária e artística deveriam seguir os
padrões da imitação perfeita, do belo reproduzido, da fidelidade ao real. Imitar a natureza, mas
também refazê-la com o auxílio da observação: "Logo, a natureza em primeiro lugar, e depois,
complexa e completa observação – eis os dois elementos, as duas possantes asas do gênio”.
(TÁVORA, 1872, p. 147). Agrega-se a esta fórmula a noção de verossimilhança uma vez que,
ainda segundo Távora, esta seria o mecanismo de conformidade à realidade externa ou à
informação histórica.
É certo que Araripe Jr. saiu em defesa de José de Alencar no auge dos debates acerca das
Cartas a Cincinato. Contudo, devemos notar que o autor de O Reino Encantado, diante das
polêmicas, manifestou profunda divergência apenas frente às acusações de que Alencar não
utilizava a norma culta da língua portuguesa na composição de seus romances. Não consta que o
mesmo houvesse replicado as críticas de Franklin Távora, especialmente no que tange os
aspectos formais da composição do romance. Fato que nos leva a acreditar que Araripe Jr.
concordava com Távora, pelo menos nos lineamentos centrais de sua crítica, que era o problema
da “imaginação” em confronto com o da “observação”. Nesse ponto, uma das explicações
possíveis é que Araripe Jr. mostrava-se influenciado pela seguinte concepção de romance de
Taine: “O romance não é um mero jogo de imaginação, capricho isolado a partir de uma cabeça
quente, mas uma cópia dos costumes em torno do sinal e um estado de espírito” (TAINE, 1863,
p. 01). Fiel a esta concepção, Araripe Jr. vai buscar em Antonio Áttico de Souza Leite o material
para o seu romance.
3.2.2. Fanatismo religioso, de Souza Leite: a fonte histórica
Há uma estreita relação entre as representações da história da Pedra do Reino em O Reino
Encantado e o memorial de Souza Leite. Este aspecto nos leva ao seguinte questionamento: Por
que Araripe Jr. reproduziu parte do memorial de Leite em seu romance? Que tipo de vinculação
estabeleceu entre as duas narrativas? Nossa hipótese é que Araripe Jr. compreendeu que o
165
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
memorial de Leite era um documento expressivo acerca da “verdade histórica”. Afinal, esta busca
pelo estabelecimento da verdade assume um caráter de missão nas obras de alguns escritores
brasileiros, a partir da década de 1870.
Ao que tudo indica, Araripe Jr. adotou essa maneira de representar a história de Pedra do
Reino porque se alinhava aos ideais positivistas e seu corolário, questões amplamente discutidas
entre os membros da Academia Francesa do Ceará, da qual Araripe Jr. fazia parte.
Nesse período, a reflexão literária adotou a ideologia como aporte, especialmente a
ideologia positivista. Araripe Jr., por exemplo, referia-se a “soberania do povo” num esforço por
incluir este segmento social na reflexão literária. Temos, assim, um caso de solução estética que
em absoluto não representava as reais condições de exclusão social da maioria das populações do
Brasil. Analisando esse processo de construção literária, Cara afirma que “o instrumental teóricopositivista, no intuito de organizar uma sociedade democrática, aliando preocupações místicas e
fé na ciência, ajudou a encapar a tosca realidade brasileira: de um modo geral, a utilização de um
modelo sempre traz a ilusão de domínio do objeto” (CARA, 1995, p. 67).
A este impasse referia-se Araripe Jr. na sua obra Silvio Romero polemista, na qual vaticina
sobre os efeitos “entorpecentes” da ideologia positivista: “ O positivismo, como todos sabem,
extinguiu todas as dúvidas e vacilações do espírito humano, fechou o inquérito às curiosidades do
pensamento, deu solução a todas as questões e fez a alma ascender para regiões inacessíveis ao
vulgo profano e vertiginosas para os espíritos intolerantes” (ARARIPE JR., 1900, p. 369).
A literatura de fins de século XIX e início do século XX era vista como instância
encarregada de documentar e/ou descrever o real. Conforme anota Mônica Veloso, a tradição
brasileira de valorizar a literatura documental é de herança positivista que, em linhas gerais,
concebia o fazer literário como apêndice ou epifenômeno da sociedade. Portanto, o fazer literário
em voga perpassava necessariamente pela tarefa de se “debruçar sobre um objeto exterior, (...)
dissecando-o e analisando-o como se fora um fato pronto a ser decodificado. (...) A realidade
social era concebida como um fato a ser examinado pelas lentes da ciência” (VELOSO, 1988, p.
241).
Isso posto, a obra Fanatismo religioso era a base adequada para se construir um romance:
primeiro, porque trazia uma história “verídica”, ou seja, um acontecimento histórico. O termo
verídico usado por Araripe Jr. remete para veracidade, veraz, ou seja, para aquilo que é
considerado verdadeiro. Podemos aceitar isto no sentido de que os eventos históricos
apreendidos por Araripe Jr. tenham realmente acontecido. Porém, é necessário ressaltar que a
apreensão desse evento a posteriori é sempre muito problemática e, conforme já indicamos nos
166
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
capítulos anteriores ao apresentar os conceitos de monumento e documento, de autoria de
Jacques Le Goff, um evento “verídico” não necessariamente aconteceu tal como narrado e/ou
representado posteriormente. Em nosso entender não há dúvida que se trata de uma versão
vencedora, permeada de lacunas e silêncios, constitutiva de uma violência oficial, mas também
simbólica.
Ademais, a história contada por Antônio Áttico de Sousa Leite trazia em seu bojo
ingredientes necessários para discutir as questões em voga no contexto do decadente império
brasileiro. Para citar apenas dois exemplos, a obra Fanatismo religioso discutia questões de religião,
tema em destaque na década de 1870 no Brasil, conforme vimos no capítulo anterior. Cabe
destacar que Souza Leite apresenta o sincretismo que orientava as práticas religiosas dos
sebastianistas, de matriz concomitantemente católica e oficial, somada à de origem africana e
indígena. Outro aspecto da obra de Antônio Áttico de Souza Leite em voga no Brasil, no período
de composição de O Reino Encantado, é a questão racial. Não é demais lembrar que as aspirações
da comunidade sebástica de Pedra do Reino perpassavam pela mudança de raça. Era desejo de
todos serem “alvos como a lua”, condição primordial para, no contexto brasileiro de então, entre
outros benefícios, ascender ao poder. Esses dois aspectos da obra Fanatismo religioso permitiram ao
romancista Araripe Jr. utilizar O Reino Encantado para ampliar a discussão para temas corolários,
carregados de tensões e atuais nos últimos 30 anos do século XIX, como atraso X civilização,
escravidão X abolição, entre outros.
Não há como negar as ressalvas que o crítico Araripe Jr. anotou ao influxo das teorias
européias cientificistas, sua passiva e servil recepção em terras brasileiras. Por outro lado, no
campo da ficção, como autor do romance O Reino Encantado,ele experimentou os regulamentos
do positivismo sem os mesmos rigores do seu fazer crítico. Outras duas situações corroboram o
compromisso positivista com a “verdade”. Uma no campo da ficção no qual, ao longo do
romance, o narrador assegura ao leitor que está contando uma história verídica. “A noite se
apresentou enevoada e feia; e não menos carregados que a natureza se mostrava os semblantes
dos vários personagens desta muito verídica história” (RE, 130). E na última página do romance
reafirma: “É possível que um dia nós resolvamos a relatar a sorte vária que tiveram alguns dos
personagens desta verídica história” (RE, 155).
A outra situação de compromisso com o “real” acontece também no campo da autoria,
em que emerge o homem e intelectual Araripe Jr. Embora ele tenha produzido uma obra
inquestionavelmente literária, é certo que incorpora em O Reino Encantado aspectos da ciência
histórica. Tanto que buscou reconhecimento ante o IHGB, instituição responsável por oficializar
a reflexão historiográfica. Diante disso resta a questão: por que Araripe Jr. escolheu O Reino
167
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Encantadopara apresentar e justificar à comissão de história do IHGB sua proposta de sócio para
aquele instituto? Não há uma resposta definitiva para esta indagação. Entretanto, os
compromissos do nosso autor com a filosofia positivista, herdeira de Taine e de Comte,
desaguavam necessariamente nesta visão do social, sobretudo na ânsia de caracterizar o real e no
interior deste localizar e propagar o núcleo de verdade. É a missão do literato em busca de uma
pedagogia histórico-social, transmitida pelas páginas do romance.
É o que deixa entrever o parecer da Comissão de História do IHGB que, em 1893,
emitiu parecer favorável ao ingresso de Araripe Jr. como sócio daquela instituição. Assinaram o
documento o Barão de Capanema, o Dr. César Augusto Marques, Dr. João Severiano da Fonseca
e Augusto Victorino A. Sacramento Blake, sendo relator o primeiro deles. Para abonar a
admissão de Araripe Jr. no Instituto, a comissão louva Araripe Jr. pelas contribuições que o
postulante deu ao instruir o público sobre a história pátria por meio do romance O Reino
Encantado. A comissão anota ainda que, ao atribuir função pedagógica ao romance, Araripe Jr.
tanto segue um modelo da literatura praticada em “países cultos”, como também o faz por um
caminho mais ameno, opção que atrai um número maior de leitores.
De há muito que em todos os países cultos busca-se propagar os conhecimentos
históricos e geográficos por meio do Romance que com forma mais amena atrai a
atenção dos leitores e destrói a aridez própria dos estudos dessa ordem.O senhor Dr.
Araripe Jr. veio colocar-se ao lado desses escritores e em boa hora o fez, pois escreveu
o Reino Encantado onde nos conta as cenas sanguinolentas que em Pernambuco, com
grande ofensa dos seus créditos representou o mais desenfreado fanatismo religioso,
fazendo-se muitas vítimas, gastando-se muito dinheiro da fazenda pública, arruinandose muitas fortunas, cansando-se o exército e até indo a esses lugares um venerando
sacerdote que foi nosso consórcio.120
O parecer da Comissão de História talvez tenha, equivocadamente, conferido a O Reino
Encantado o status de romance histórico. E é possível que tenha balizado o parecer em
orientações como as de Dutra e Mello de que
o romance histórico pode achar voga entre nós [brasileiros]; [pois] tem uma actualidade
que não deve desprezar. As investigações históricas a que deve proceder quiçá trarão
luz sobre alguns pontos obscuros que homens devotados à história do paiz buscam
hoje elucidar; pode tornar-se de envolta moralizador e poético se bem cair no preceito
– Omne tulit punctun qui miscuit utile dulci”121 (DUTRA E MELLO, 1844, p. 746-751
– grifo nosso).
Por fim, a atitude positivista de compor um romance que se pautasse na “verdade dos
fatos” se traduz ainda no subtítulo da obra: O Reino Encantado: crônica sebastianista. A acepção da
Cf. Documentos do Arquivo do IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pasta 37. Lata 51 D
A expressão em latim é de Horácio, significa deleitar e instruir o leitor. Conferir: HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa:
Livraria Clássica Editora, s.d., p. 106-107.
168
120
121
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
palavra crônica era análoga à definição de História. No dicionário de Antônio Silva Moraes
(1755-1824, p. 350), crônica é “história escrita conforme a ordem dos tempos, referindo-se a eles
as coisas que se narram”. Já o historiógrafo é “cronista”, “cronógrafo”(682); ao passo que
cronista é aquele “que escreve crônica”122. Conforme ensina Massaud Moisés, o “vocábulo
crônica mudou de sentido ao longo dos séculos” (MOISÉS, 1999, p. 131-2). No início da era
cristã, designava uma lista ou relação de fatos acontecidos, ordenados conforme a sequência
linear do tempo, “sem aprofundar-lhe as causas ou dar-lhes qualquer explicação”. Por volta do
século XII, “acercou-se francamente do pólo histórico o que determinou uma distinção: as obras
que narravam os acontecimentos com abundância de pormenores e algo de exegese, ou situavamse numa perspectiva individual da História, recebiam o tradicional apelativo “crônica”. A título de
exemplo Moisés coloca as obras de Fernão Lopes, escritas no séc. XIV. Ainda conforme
Massaud Moisés, somente no Renascimento o termo crônica começou a ser substituído por
História. Seja como for, ainda é na sua interface com a História que o termo “crônica” é utilizado
como subtítulo de O Reino Encantado.
Elaborar um romance seguindo as premissas positivistas significava, pois, experimentar
um tipo de escrita que não mais se baseava na intuição e no subjetivismo, tão caros ao
Romantismo. Mas pautar-se por critérios mais consentâneos. Veremos agora o terceiro aspecto
que é a relação de Araripe Jr. com a concepção social de Taine acerca do tripé meio, raça e
momento.
3.2.3. Meio, raça e momento
“Explicações”. Este é o título do capítulo IX de Reino Encantado, no qual Araripe Jr., por
meio do narrador, esboça breve, mas solidamente a sua concepção de sociedade, de verdade,
enfim, do fenômeno registrado em Pedra do Reino. Naturalmente, não é o único. Ocorre que se
torna necessário comentá-lo. Para ser exato, de modo franco, vê-se ali apenas a página inicial em
que o autor/narrador expõe de modo direto suas influências cientificistas. Assim por exemplo,
afirma que “um fenômeno todo patológico se passava em Pedra Bonita. Só assim teriam explicado
tais aberrações do espírito humano” (RE, p. 85).
O fenômeno, portanto, caracterizaria um quadro coletivo patológico, uma aberração, uma
doença. Descrição que se ajusta à definição do João Ferreira como um “epiléptico” com todas as
consequências que esta “doença” acarreta, segundo o discurso médico científico da época. É
SILVA, Antônio de Morais Silva. Diccionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e
acrescentado por Antônio Morais Silva, natural do Rio de Janeiro. (Vol. 1 A-K), p. 350 e 682.
169
122
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
certo que o narrador relativiza estes aspectos ao dizer que os adeptos do falso rei eram criaturas
“broncas, sem instrução”. Mas, não será a epilepsia nem exatamente a falta de educação escolar
os fatores centrais capazes de explicar as manifestações violentas naquela comunidade sertaneja.
O “desvairamento” somente poderia ser provocado por “causas em grande parte físicas e capazes
de perturbar as funções ordinárias do cérebro” (RE, p. 85).
É que o cérebro perturbado, segundo o narrador, seria capaz de causar estranhas
anomalias, inclusive a de entorpecer a verdade. Morbidez, contágio, despotismo, tudo agindo sob
influências de disfunções cerebrais, levando aquela gente a aceitar “tão estupendos absurdos
como verdade” (RE, p. 85).
O diagnóstico que se segue é enfático. Tratava-se de uma espécie de “loucura epidêmica”.
Porém, a loucura presenciada em Pedra do Reino teria condicionantes mais sólidos, talvez
irremovíveis, determinantes da ação, bem assim da reação humana em seu meio sócio-geográfico.
Para Araripe Jr., este condicionante poderoso seria o clima dos trópicos: “Não são raros fatos,
semelhantes aos de Pedra Bonita e muito menos impossíveis em um clima tórrido, equatorial, onde
a muita luz e a intensidade do calor produzem a irritação do sistema nervoso e na formação dos
temperamentos propendem sempre para a exageração das funções mentais” (RE, p. 85).
Eis aí toda importância que se concebe ao clima, ao meio de modo geral, na explicação de
fenômenos sociais. O clima tanto quanto o meio explicariam as loucuras, as violências
desmedidas, o fanatismo, o isolamento social. Entretanto, como bem escreve o narrador, estas
manifestações atingem impiedosamente indivíduos submetidos à exploração do seu corpo e do
seu trabalho. É o “pobre sertanejo”. É o “escravo oprimido”. É o “mísero lavrador”, todos
expostos a “desvairamentos”, carentes de uma “crença sólida”.
Novos horizontes viriam com a ciência, portadora desta crença sólida. Já vimos em outra
parte desta tese qual seria esta base científica redentora. Agora, devemos verificar particularmente
que tipo de influência levava o autor a assumir o determinismo geográfico. Primeiro, devemos
esclarecer que no século XIX esta e outras formas de determinismo não eram estranhas, ao
contrário, compunham o repertório intelectual nas universidades, instituições científicas e mesmo
no seio da sociedade. Também não era exatamente um produto do século XIX. Ora, a
compreensão da influência do meio – não apenas o clima, mas o relevo, o terreno, as formas da
natureza, a base geográfica, enfim - sobre o comportamento humano vem de longa data123.
Hipócrates, século V a.C, por exemplo, em seu Tratado dos ares, das águas e dos lugares distinguia os homens segundo
a região em que viviam. Os habitantes de altitudes “onde sopra o vento e a água é abundante – são eles de alta
estatura, doces e bravos e os habitantes das regiões descobertas e sem água, onde o clima está sujeito a bruscas
170
123
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
A França tanto quanto a Alemanha do século XIX criaram e expandiram poderosas
escolas representantes do determinismo geográfico, nomeado enquanto uma
“geografia
humana”, ou uma “geografia histórica”, conceitos que mais confundiam que orientavam. Entre
os alemães, Karl Ritter e Frederico Ratzel fundariam uma vigorosa escola “antropogeográfica”.
Na França, Vidal de Le Blache igualmente produziu seguidores. Conforme Glenisson, com os
estudos destes naturalistas, que foram também historiadores e jornalistas, “acentuaram-se as
relações estreitas entre a ‘raça’ e o ‘meio’. O que um não explicava, tinha no outro a sua razão de
ser” (GLENISSON, 1979, p. 67).
Esta, portanto, é o assento sobre o qual repousa, não de modo tranquilo, o pensamento de
Araripe Jr., na base teórica de O Reino Encantado. Os franceses de modo mais decisivo. Jules
Michelet, por exemplo, afirmava que “sem uma forte base geográfica, o povo, o ator histórico,
parece andar no ar, como nas pinturas chinesas em que não existe o chão. (...) E este solo não é
apenas o teatro da ação. Pela alimentação, pelo clima, influi ele de uma centena de formas...”.
Todavia, pensamos que em Michelet o cerne de suas indagações históricas não era propriamente
o “chão”, o meio geográfico, mas sim o povo, as raízes populares da França em busca da
identidade nacional. Neste ponto, as influências de Araripe Jr. são visíveis. A sua fabulação de
Pedra do Reino, enquanto uma épica quilombola, muito informa sobre as buscas das raízes
nacionais e toda uma discussão sobre o caráter do povo brasileiro.
Por outro lado, é menos evidente a influência de Michelet sobre o autor cearense.
Devemos buscar em Taine os traços mais influentes. Não tão expressivo e talentoso como
Michelet, Taine escreverá linhas exprobatórias sobre a revolução francesa, sobre Robespierre
especialmente124. Aspirava ele a elevar a história ao nível das ciências naturais: “permitir-se-á ao
historiador comportar-se como um naturalista; eu estava diante do meu objeto de estudos como
se estivesse diante da metamorfose de um inseto” (TAINE, 1863). Para além desta metáfora que
indica a passagem de um ser inferior para um de estágio superior, uma espécie de darwinismo
social, Taine organiza seu pensamento a partir da articulação do meio, da raça e do momento.
Segundo Nelson Werneck Sodré, Taine foi precursor na tarefa de emancipar os estudos
literários dos puros critérios individuais: “em resumo, Taine condicionava a manifestação literária
ao meio, e conferia, na apreciação deste, um coeficiente muito importante ao fator clima; conferia
igual importância, ainda, ao fator raça” (SODRÉ, 1984, p. 63). Dessa forma, meio e raça seriam
os vetores principais na explicação da manifestação literária, condicionando-a.
modificações – preferencialmente louros, nervosos, secos, arrogantes e indóceis”. Cf. GLENISSON, Jean. Iniciação
aos estudos históricos. 3. ed. Difel: São Paulo – Rio de Janeiro, 1979, p. 64-65.
124 Cf. CAIRE-JABINET, Marie-Paule. Introdução à historiografia. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2003, p. 98.
171
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
De fato, o meio, o ambiente, o território seriam definitivos na caracterização das raças.
Opondo os povos germânicos e os povos latinos, Taine vislumbra diferenças marcantes e
indeléveis entre eles: os germânicos devido ao clima frio, as vegetações densas, ao regime de
pântanos seriam tristes, violentos, carnívoros, dados a embriagues; os latinos, bem como os
helênicos porque submetidos a um ambiente recoberto de campos, na presença dos mares
desenvolveram a arte da navegação e do comércio, as formas políticas mais acuradas, a abertura e
o apego para desenvolver a fala, a invenção, a ciência, a literatura.
Embora Araripe Júnior considere seriamente estes princípios do raciocínio determinista e
os aceite como premissa geral, o que vemos dos seus escritos é um esforço impressionante na
tentativa de atenuar tão severas sentenças. Daí o seu conceito de obnubilação brasílica: “Consiste
este fenômeno na transformação por que passavam os colonos atravessando o Oceano Atlântico,
e na sua posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo” (ARARIPE JR., 1960, p.
407). A inversão aqui anotada é no sentido da adaptação humana ao meio em que vive. Ora,
podemos entender o termo adaptação de várias formas. Tanto podia significar a aceitação do
entorno como algo inevitável, como poderia ser uma postura e uma prática criadoras diante dos
desafios naturais. Esta segunda hipótese parece mais aceitável.
Finalmente, podemos dizer que o determinismo esposado por Araripe Júnior representou
uma influência marcante do seu tempo, indicando os influxos sofridos pela intelectualidade
brasileira diante da inteligência europeia. Não obstante, não se esquivou de rejeitar aquilo que lhe
parecia mais obtuso, irreal, quando confrontado com a nossa formação histórica e cultural.
Diferentemente do seu contemporâneo, o crítico literário Sílvio Romero, que se apegou com
notável veemência a concepção racial, tornando-se praticamente cético quanto às positividades
do processo histórico brasileiro, Araripe Jr., ao contrário, entendia que se os fatores geográficos e
raciais eram inevitáveis, não seriam necessariamente irredutíveis. É o que passamos a assinalar,
confrontando com as representações que Araripe Jr. elabora do sertão, da história de Pedra do
Reino e de suas personagens.
3.3. O carro de boi e a locomotiva: Representações do sertão e do litoral
Araripe Jr. inicia o romance com o capítulo intitulado “Abre-se o cenário”, no qual
apresenta ao leitor o cenário da trama. O romancista representa o ambiente sertanejo apoiado no
determinismo mesológico, comparando o litoral X sertão como categorias paralelas à civilização
X atraso. Os símbolos utilizados para marcar o litoral “civilizado” em oposição ao sertão
“retrógrado” são a locomotiva como meio de transporte, o advento de cidades com alta
172
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
densidade demográfica e o aparecimento da indústria açucareira. É o que se pode depreender do
trecho:
Já o silvo da locomotiva retine ao longo das praias anunciando a atividade industrial;
inúmeras cidades e povoados emergem dos mesmos lugares que serviram de abrigo aos
santos piagas; grandes máquinas das oficinas açucareiras gemem sob o esforço do
vapor, e imensas mandalas de gado manso tripudiam pelos prados, onde o rude
fazendeiro cria o elemento da pública riqueza (RE, p. 03).
A narrativa acima fala por si. Evidente o otimismo frente aos vapores do progresso, mas
devemos ver que, pela lacuna textual, também é possível ler os limites do pensamento ou os
compromissos ideológicos professados ou não. A locomotiva, um dos símbolos da civilização,
que deveria ser também um dos símbolos da nação, retine, expande-se, desabriga velhos ídolos
indígenas “piagas”, povoa e floresce semeando máquinas, oficinas e riqueza. O que não está dito,
entretanto, é que também aliena, oprime, gera novos encantamentos em torno de deuses
racionais, técnicos e individuais. Como anunciou Karl Marx (1856, p. 198-299) “todos os nossos
inventos e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, enquanto reduzem a
vida humana ao nível de uma força material bruta”.
Lastima o narrador como o sertão, daquele momento histórico, em situação
diametralmente oposta, ainda não havia sido alcançado pelo progresso. Por isso, o ambiente
sertanejo é representado pelo “geral atraso em que relativamente as idéias, jazia a província” que
mais se assemelhava a um fragmento do deserto, dada a “pequena população aí espalhada”.
Símbolo emblemático é a diferença entre os meios de transporte utilizados em ambas as
localidades. No espaço sertanejo de então, mesmo uma família abastada como a do fazendeiro
Bernardo Vasconcelos, utilizava o carro de boi como meio condução.
A estrada de rodagem que também causava admiração e simbolizava os ventos do
progresso não existia naquele sertão recôndito. O que se via eram as sendas/trilhas por onde
passavam com dificuldade os carros de boi, puxados pela força imprevisível dos animais
aguilhoados pelo ferrão do “mulatinho”, que por sua vez era também fustigado como os escravos
na sua faina diária. Sobre estes há a seguinte descrição do narrador.
O veículo [o carro de boi] consistia em um desses carros enormes de madeira tosca, que
ainda se conservam hoje nos nossos sertões para a condução de gêneros e lenha, e, uma
vez por outra, prestam-se com improvisado toldo de couros ao transporte de famílias,
na impossibilidade de melhores carruagens. Vinha puxado por três nédias juntas de
bois, a cuja frente marchava um mulatinho armado de uma grande vara de ferrão; atrás,
escoltava-o um pajem agaloado, montando um alazão tostado.
Dentro viam-se três pessoas sentadas sobre um colchão. A primeira dessas pessoas era
um indivíduo de seus quarenta para cinqüenta anos, cujo semblante denotava a
importância de sua posição. [tratava-se de Bernardo Vasconcelos] Seguiam-se duas
173
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
mulheres em que fácil era descobrir-se logo mãe e filha, tal a semelhança fisionômica [
eram dona Clemência e Maria] . (RE, p. 08 – grifos nossos).
O narrador apoia-se ainda em categorias mesológicas para indicar que a falta de
civilização e de progresso que afetava o espaço sertanejo tinha como consequência a explosão de
“intrigas e paixões clamorosíssimas”.
Lutas políticas desapiedadas tinham posto em alarma os espíritos calmos e sensatos; e a
superstição, a despeito dos esforços de um digno sacerdote, tendo erguido o colo como
a hidra da Fábula, insinuava-se pelo ânimo dos míseros campônios, produzindo as mais
assombrosas cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar (RE, p. 03).
.
Com o pequeno trecho, o narrador reporta-se a duas agitações concomitantes pelas quais
passava o sertão, jurisdicionado à comarca de Flores. A primeira, “as lutas políticas desapiedadas”
foram um outro acontecimento histórico cujo móvel foi a disputa pelo poder local, em que
personalidades como Manoel Pereira da Silva entraram em rota de colisão com o então prefeito
de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes e Francisco Alves de Carvalho (ambos filiados ao
Partido Liberal). Estes se opuseram a empossar Manoel Pereira da Silva e seus correligionários
(do Partido Conservador) nos cargos de juiz de paz e vereadores. Descontentes com a desfeita,
Manoel Pereira da Silva, seus irmãos e aliados invadiram a sede de Flores a fim de assassinar o
prefeito e seus partidários. O confronto entre os dois grupos culminou com a fuga do prefeito
Nogueira Paes e com o desmembramento da freguesia de Flores nas de Ingazeira e de Serra
Talhada. A criação das novas freguesias implicava na disponibilidade de uma quantidade maior de
cargos e funções na administração pública no âmbito da comarca de Flores, de modo que
partidários de ambos os grupos fossem contemplados com funções de mando. A despeito das
medidas tomadas a fim de que os cargos públicos fossem distribuídos igualitariamente entre os
grupos rivais, aquela disputa foi o marco inicial de uma contenda entre as famílias Pereira e
Carvalho, que perdurou até meados do século XX, com inúmeras vítimas fatais de ambas as
famílias. (LINS, 1957, p. 321-329).
O registro das contendas políticas nos domínios da comarca de Flores, em que os
potentados digladiavam-se entre si em busca de cargos públicos, símbolos de status e poder,
fazem-nos concordar com a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz quando leciona que a
maioria dos movimentos messiânicos são deflagrados em momentos em que a localidade vivia
conflitos políticos. A autora reporta-se ao caso de Pedra do Reino dizendo que “na época dos
sucessos de Pedra Bonita, a comarca de Flores era teatro de desordens e conflitos (...) em que
dois grandes chefes políticos se afrontavam, numa rivalidade que mais tarde terminou de maneira
trágica” (QUEIROZ, 1976, p. 318).
174
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
A outra agitação sobre a qual refere-se o romance foi a história da Pedra do Reino que,
conforme diz o narrador, foi motivada pela superstição e culminou com as “mais assombrosas
cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar” (RE, p. 03). Nesse trecho do romance, o
ponto de vista do narrador se coaduna com o da memória oficial sobre o movimento de Pedra do
Reino que, conforme já vimos no capítulo 1 desta tese, caracteriza-o como expressão violenta da
sociedade dita primitiva, arcaica, marcada pelo fanatismo. Os sebastianistas, porém, não
compartilhavam com essa posição do narrador. Para eles, os sentidos sociais do movimento de
Pedra do Reino e da profecia que o norteava eram completamente distintos.
3.4. Sentidos sociais da profecia
Em O Reino Encantado, o arauto da profecia foi João Antônio dos Santos, primeiro “rei”
ou “profeta” do “Encoberto” ou “D. Sebastião”. Conta o narrador que, na sua primeira
pregação, João Antônio conduziu à Pedra Reino “dois ou três negros boçais” e, “munido de um
caleidoscópio”, mostrou-lhes as maravilhas de um reino encantado. Explicou-lhes que, embaixo
daquelas duas pedras, havia uma “imensa cidade enterrada de cuja catedral só as torres apareciam
petrificadas. Depois dizia que nesta cidade reinava um príncipe encantado, desaparecido outrora
em Portugal por maldade dos mouros” (RE, p. 87). Este rei havia aparecido a João Antônio
“rogando-lhe que se constituísse o seu profeta para o fim de tentar por todo modo quebrar o
encanto que privava a si e aos seus da vida terrestre e visível” (RE, p. 87). Além de prenunciar o
regresso de D. Sebastião, a profecia ordenava que os sebastianistas praticassem alguns rituais;
pois, caso os protocolos não fossem cumpridos, D. Sebastião não se desencantaria. De acordo
com o testemunho do narrador, João Antônio prossegue na exposição dos rituais no afã de
alcançar o desencantamento:
Então o rei D. Sebastião lhe dissera que se fazia de mister juntar o maior número
possível de crentes, formar um povo, orar, jejuar, regar todo o campo em torno dos
grandes monólitos com sangue não só de toda espécie de quadrúpedes, como de
crianças, adultos e velhos.
Em sete semanas dever-se-ia consumar todos os sacrifícios necessários. As vitimas
seriam voluntárias; os adultos só caíram sob o cutelo do algoz se assim o permitissem
sua fé e fossem em graça, porquanto todo o sangue impuro derramado por violência
votava o sacrificado às fúrias infernais.
Finda que fosse a hecatombe e fortalecida a crença, todas aquelas pedras rebentariam, e
o reino surgiria na terra cheio de esplendor, com exércitos poderosos, que, guiados,
pelo príncipe glorioso, lançar-se-iam na conquista do país inteiro.
Com ele então ressuscitaram os animais irracionais transformados em dragões e em
serpentes monstruosas para devorarem todos os ricos, todos os poderosos e pedreiros
livres, cujas riquezas seriam partilhadas pelos habitantes do reino; e os sacrificados
voltariam a tomar as suas carnes e formas por instantes abandonadas para serem
príncipes, princesas, fidalgos, nobres ou titulares, cercando o trono refulgente. Não
haveria mais distinções, todos seriam brancos e formosos, ricos e bons, tomando-se a
175
Capítulo 3
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
vida no domínio desta nova ordem de coisas uma felicidade sem nuvem sequer de
tristeza que perturbasse sua limpidez (RE, p. 87).
É preciso anotar os sentidos sociais dos termos da profecia, segundo como elas foram
compreendidas pelos sebastianistas. Para aquelas personagens, o vivido e o historicamente
experienciado estão carregados de significações socialmente situadas, preservadas e re-atualizadas.
O experienciado muitas vezes foi compreendido sob formas distintas, tanto quantos forem os
olhares e as maneiras de dialogar com os diferentes autores que compreendem o acontecido sob
seus prismas. Assim, é possível dizer que as percepções sobre o vivido tende a ser uma projeção
do olhar alheio que se revela na fluidez das relações e associações feitas. Sob esta ótica, a história
é construída pelas distintas maneiras de se ver, apreender e representar o passado e vislumbrar o
futuro.
Para os sebastianistas, quais os sentidos sociais contidos no ato de se “formar um povo”?
A fim de compreendermos as representações da formação de um povo, da fundação de uma
cidade ou de uma comunidade, recorremos à compreensão de Mircea Eliade (2002) sobre a
“cosmogonia”. Esta, segundo o antropólogo, “constitui o modelo exemplar de toda situação
criadora: tudo que o homem faz, repete, de certa forma, o ‘feito’ por excelência, o gesto
arquetípico do Deus criador: a criação do mundo” (ELIADE, 2002, p. 34). Nesse sentido, é
possível afirmar que, para os sebastianistas, a fundação da comunidade que se formou em torno
da Pedra do Reino, que reuniu cerca de trezentas pessoas125, representava um recomeçar, um
morar num mundo novo, livre de determinadas imperfeições.
A cosmogonia, portanto, além de servir de arquétipo para toda criação, seu produto, o
Cosmo representava o “sagrado”, já que o Cosmo “é uma obra divina, fértil, sendo, portanto,
santificado em toda sua estrutura. Por extensão, tudo que é perfeito, ‘pleno’, harmonioso em
suma: tudo o que é ‘cosmicizado’, tudo o que se assemelha a um Cosmo, é sagrado” (ELIADE,
2002, p. 34). O fato de o “arraial” de Pedra do Reino ser considerado um Cosmo, um arquétipo
de “obra divina”, um espaço sagrado, é admiravelmente bem ilustrado pela personagem Justina,
escrava, mucama de Maria. Ela se recusa a conduzir Manuel Velho à Pedra do Reino porque lá
era “local sagrado”, reservado apenas aos que tinham “fé no reino encantado”, e diz ao vaqueiro
Manoel Velho: “Em Pedra Bonita só entram os que têm fé, e tu não a possuis” (RE, p. 59). Por
125A
comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino recebe diversas designações, ao longo do romance,
sendo arraial e quilombo as mais recorrentes. É o que se lê na descrição que o narrador faz da comunidade: “O
arraial não tinha grandes dimensões; e as palhoças distribuídas a capricho poderiam dar guarida a uns trezentos
moradores. Formavam uma espécie de arco de círculo, cuja corda seria a linha que passava pela base dos dois
maiores monólitos. No centro levantava-se uma habitação maior que as outras, a qual por certos adornos externos
parecia pertencer ao chefe da cabilda.
176
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
conseguinte, o arraial seria um “campo sagrado”, o espaço destinado a orações e jejuns, nos quais
o foco era atingir o paraíso prometido126.
Em O Reino Encantado, Justina transita tanto no grupo dos sebastianistas, já que aderiu a fé
na profecia, como no dos potentados, por ser mucama de Maria e namorada do vaqueiro Manuel
Velho. Importante sublinhar que nos diálogos em que Justina estabelece com essas duas
personagens tem um caráter didático, à medida que ela explica aos seus interlocutores
especificidades da profecia e os sentidos dos rituais.
Mas de que maneira os sebastianistas se “apropriaram” dos ritos previstos na profecia?
Segundo Bourdieu(BOURDIEU, 2008, p. 93-98), o rito tem a função social de separar aqueles
que se identificam dos que se estranham. Mas isto somente é possível por existir duas realidades
distintas que coexistem num mesmo espaço, caso dos sebastianistas e potentados de Pedra do
Reino. Se o rito delineia fronteiras e institui diferenças, é necessário observar qual seu lugar
dentro do campo social e mais especificamente onde se situa no contexto de Pedra do Reino, na
encruzilhada de interesses e intenções conflituosas que polarizavam sebastianistas e potentados.
A profecia prescrevia a prática do jejum e da oração. Orar e jejuar é uma prática comum
em várias religiões, quais sejam o judaísmo, islamismo e cristianismo. Em O Reino Encantado, ao
que parece, o referente é a Bíblia, livro sagrado dos cristãos, na qual há registros de personagens
do Antigo e do Novo Testamentos que pregaram abstinência temporária de alimentos, ao mesmo
tempo em que elevavam orações a Deus. O narrador de O Reino Encantado entende que parte dos
rituais que João Antônio estabeleceu tem o mesmo referente, à medida que certas práticas
religiosas em Pedra do Reino são a “concretização das sombras que o fetichismo, amalgamado
com os mal compreendidos princípios da religião dos brancos depositara em suas almas” (RE, p.
87 – grifo nosso).
Se em O Reino Encantado, para os sebastianistas, o arraial de Pedra do Reino era locus sagrado, para os potentados e
seus prepostos, o arraial não passava de um “antro de quilombolas” e “cabilda de fanáticos”, de aspecto “pavoroso”,
conforme se lê no trecho que passamos a citar em que o narrador expõe a visão do vaqueiro Manoel Velho sobre o
local: “Havia em tudo o quanto circundava um aspecto pavoroso, que crescia à proporção que se avizinhava dos
rochedos. Entre estes, no fundo da tela, suspendiam-se, destacando-se do resto, duas gigantescas rochas quase iguais
na altura, retas, separadas entre si por mui pequeno interstício, que pela alvura assemelhavam-se a dois fantasmas
envolvidos a amplas mortalhas. Por capricho do acaso acontecia que, ao tempo em que Manuel desembocava da
esplanada, o globo prateado da lua, colocando-se por trás desses duendes de granito, cercava-os de uma espécie de
auréola diáfana, esbranquiçada, projetando sua sombra imensa até onde estavam os nossos observadores. Na
penumbra deixada por esta luz tíbia que envolvia o recinto moviam-se pequenos fogos, em torno dos quais se
enfileiravam de promiscuidade com palhoças e casebres, grupos vários e simétricos de catolezeiros, cujas folhas
revolvidas pelos ventos produziam não só chiados tristes, como traziam ao pensamento idéias de que ali se agitassem
larvas e almas penadas” (RE, p. 60). A maneira que os potentados do romance representavam o arraial de Pedra do
Reino era análoga à versão oficial sobre o movimento.
126
177
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Esse mesmo princípio serve para entender o trecho da profecia que fixa o “dia do
desencantamento”. Como lemos anteriormente, “em sete semanas dever-se-ia consumar todos os
sacrifícios necessários”. Sete semanas equivalem ao período de quarentas dias. Na Bíblia há duas
quarentenas, duas quaresmas, uma no Antigo e a outra no Novo Testamento, que embora
afastadas no tempo, ambas são períodos de dores, sacrifícios, privações, jejuns, orações e outros
padecimentos com as quais se esperava alcançar uma “vida nova”, protagonizadas por Moisés e
Jesus.
Jesus Cristo também é grande arquétipo para os “sacrifícios voluntários” sobre os quais
fala a profecia, à medida que se entregou à morte para fazer nascer um mundo novo. Um novo
reino, em que “os ricos seriam humilhados e o pobres, exaltados”.
Tal qual o referente, os sacrifícios dos sebastianistas deveriam ser voluntários. Além do
que os adeptos de João Antônio se entregariam à morte contando com garantias análogas àquelas
recebidas por Jesus. Este se submeteu aos flagelos e à morte já sabendo que aquele fenecer seria
passageiro, pois em três dias aconteceria a ressurreição. A profecia previa um epílogo semelhante
aos sebastianistas: “os sacrificados voltariam a tomar as suas carnes e formas por instantes
abandonadas” (RE, p. 87). É essa a crença da mucama Justina, sebastianista convicta. No trecho
que se segue, mais uma vez, Justina explica a Maria que irá se entregar à morte, na certeza de ter a
vida restaurada.
Justina tem tanta fé no que há de acontecer que nestes dias vai morrer, e isto porque
quer. Não morreu Jesus por nós?! o céu se abrirá, Deus Todo Poderoso se há de
mostrar com o Príncipe Encoberto a seu lado e todos nós ressuscitaremos como diz no
credo a Santa Madre Igreja. Que felicidade! Que felicidade! (RE, p. 75).
A ressurreição se estenderia aos “animais irracionais”, que retornariam à vida, mas não
mais em suas formas de origem, e sim, transformados em seres míticos e bíblicos, como dragões
e serpentes. Os dragões e as serpentes seriam utilizados como instrumentos de justiça e de
punição contra o modelo de poder em vigor. Esses monstros teriam a função de “devorar todos
os ricos, todos os poderosos e pedreiros livres”. Com a citação desse trecho de O Reino Encantado,
faremos um contraponto com os dizeres de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1970, p. 324),
segundo a qual os movimentos messiânicos normalmente não fazem queixas contra os ricos,
tampouco seus integrantes pleiteiam uma mudança de posição social. Mas não era essa a postura
dos sebastianistas do romance nem dos sebastianistas históricos.
No espaço ficcional, Araripe Jr. re-atualiza a história de Pedra do Reino como um
movimento messiânico que pretendia alterar a hierarquia social em voga e inaugurar um novo
178
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
modelo para se conduzir as funções de mando e de poder, haja vista que as “riquezas seriam
partilhadas”. Ou seja, os bens de fortuna deixariam de se concentrar nas mãos de poucos e
seriam distribuídas entre os sebastianistas; a riqueza deixaria de ser um privilégio de poucos para
ser socialmente partilhada.
Com o advento do reino de D. Sebastião, todos seriam agraciados com distintivos de
nobreza, tornando-se “príncipes, princesas, fidalgos, nobres ou titulares”. Portanto, as atividades
profissionais de vaqueiro, capataz, mucama, cozinheiro, zelador e outras, costumeiramente
exercidas pelo sertanejo escravo ou branco pobre, seriam substituídas por outras mais
condizentes com o status que D. Sebastião lhes conferiria.
Um dos princípios mais importantes da profecia era que o ideal de igualdade perpassava
pelo branqueamento. Tal aspecto, tanto aproxima o romance de uma de suas fontes de
composição, as memórias de Antônio Áttico de Sousa Leite, como também colocavam o
romance em diálogo com as teorias racistas debatidas exaustivamente pela intelectualidade
brasileira, na década de 1870 e seguintes. Nesse aspecto, a profecia dos sebastianistas era um
discurso racial do qual se lançava mão para defender valores étnicos do branco, uma hegemonia
já consagrada, embora a maioria dos sebastianistas fosse de negros e mestiços. Na predição,
predomina-se o que é estimado na sociedade brasileira contemporânea à publicação de O Reino
Encantado, imbuída intelectual e politicamente em esforços pelo “branqueamento” da nação e
pouco afeita aos valores étnicos e históricos dos negros e índios. Portanto, os valores étnicos dos
sebastianistas alinham-se ao pensamento da maior parte dos “homens de ciência” de finais do
século XIX e início do XX, sobre os quais nos falam Lília Schwartz (1994). Para ilustrar o
pensamento desses intelectuais, a pesquisadora cita João Batista Lacerda (1911), então diretor do
Museu Nacional do Rio de Janeiro: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um
século sua perspectiva, saída e solução" (SCHWARTZ, 1994, p. 137). Por fim, tornar-se “alvo
como a lua” representava ser nobre, rico, “limpo da feldade”, assumir cargos e funções de
mando, alcançar a “felicidade sem nuvem”.
O estado de felicidade permanente remete à ideia de jardim do éden previsto na Bíblia.
Contudo, a visão de paraíso anunciada na profecia era diferente do paraíso prometido pela
hieraquia católica, apalavrado “pela religião dos brancos”, na medida em que se concretiza não no
céu, mas na terra. “A felicidade sem nuvem” emergiria das torres fincadas na terra, o paraíso
terreal. É o que explica Justina a Maria, no trecho que se segue, em tom quase didático:
Escute ainda, meu anjinho, continuou a astuta mulata adoçando a voz e dando-lhe um
tom de quem embala uma criança. A cidade santa está sepultada aqui mesmo! A
sinhazinha não quer vê-la? É lá, quem sabe, que há de encontrar o senhor e nhã
Clemência... O rei Santidade diz que nhã Mariquinha seria levada para um palácio de
179
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
fadas que lá existe, grande como todo o povoado de Serra Talhada, rico como não é o
do imperador, onde reinaria cercada de uma corte vinda com o Encoberto dos confins da
terra (RE, p. 76 – grifo nosso).
Esse é o único trecho do romance em que se menciona o imperador do Brasil. Nessa
passagem, a escrava Justina, sebastianista convicta, estabelece uma comparação entre os dois
monarcas, D. Pedro I e D. Sebastião de Pedra do Reino. Na sua visão, o monarca português era
rico “como não é o imperador”. Ou seja, seu poder suplantava o de D. Pedro I,
consequentemente, era mais vantajoso acreditar no rei que emergiria da terra e cujas práticas
governamentais dariam fim a todos os flagelos a que ela e os demais sebastianistas viviam
subjugados. Muito mais proveitoso do que acreditar em um rei que governava à distância, sem
qualquer benefício para pessoas do seu grupo, formado por escravos, mestiços e brancos
pobres127.
De que maneira os sebastianistas se “apropriaram” da profecia? De que forma
operacionalizaram a produção de sentidos dos enunciados na profecia? As perguntas são
pertinentes à medida que, se por um lado, a profecia trazia em seu bojo inúmeros benefícios a um
grupo social desassistido, por outro, cobrava que os sebastianistas pagassem de forma antecipada
e com a própria vida as pretensas benesses. O narrador de O Reino Encantado elabora às questões
uma resposta verossímil. Segundo ele, “para uma classe de oprimidos, de miseráveis, como são
[eram] os escravos entre nós” os sacrifícios representavam uma “continuidade”, uma constante,
um lugar comum. Por conseguinte, subjugar-se a atos violentos, expor-se a sessões de flagelo, a
rituais de humilhação, de morte moral, de holocausto, não lhes parecia absolutamente recusável,
haja vista que fazia parte do cotidiano dos escravos. A partir da profecia, o diferencial era o que
se seguia ao flagelo: a esperança de saírem do jugo a que eram submetidos (RE, p. 87).
Talvez por isso, os sebastianistas tenham se submetido voluntariamente aos sacrifícios. Se
para o grupo social formado pelos potentados os rituais de flagelo significavam uma prova cabal
Importante assinalar que o discurso do narrador do romance reproduzia a maior parte dos pontos de vista da
versão oficial do movimento sobre Pedra do Reino. Um dos exemplos disso pode-se ler na interpretação que ele faz
das apropriações que os sebastianistas têm sobre D. Sebastião. Para o narrador, o D. Sebastião imaginado pelos
sebastianistas era fruto de um sincretismo entre a religião oficial com a mitologia indígena e africana. “O D.
Sebastião imaginado por João Antônio de certo nada mais tinha de comum com o consolador, o Messias,
engendrado pelo amor pátrio dos portugueses durante o reinado dos Felipes. Depois de zanzada pelo molde
grosseiro da imaginação dos seus asseclas, essa figura não era mais do que uma correção ou aperfeiçoamento dos
manipansos, sacis, caaporas e outras semelhantes crendices, que a gente ignorante vestia com as roupagens do rei
legendário gravado em suas memórias pelos contos de Carocha e de Maria Borralheira. Se algum menos bronco
elevava-se a concepção dos gênios e das fadas, pairando assim em mundos imaginários, de onde descia cheio de
aspirações fantasiosas, a maior parte dos prosélitos não enxergava as pinturas, nas descrições de João Antônio, outra
coisa além da concretização das sombras que o fetichismo amalgamado com os mal compreendidos princípios da
religião dos brancos depositara em suas almas (RE, p. 87 ).
127
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
de fanatismo e superstição, para os sebastianistas representava a senha para um paraíso terreal,
um céu aqui mesmo. Nesse sentido, fazemos coro a Bourdieu quando afirma que o rito deve ser
compreendido como uma forma de linguagem que traduz e projeta maneiras de se identificar e de
se estranhar dentro de uma comunidade (BOURDIEU, 2008, p. 93-94).
3.5. Personagens do romance
Em O Reino Encantado, há uma flagrante amalgamação de personagens históricas e outras
meramente ficcionais. Para relacionar as do primeiro caso, tomamos como fonte o memorial de
Antônio Áttico de Sousa Leite e documentos primários, entre os quais os ofícios trocados entre
as autoridades da Comarca de Flores, da Presidência da Província de Pernambuco e da Corte, no
Rio de Janeiro, todos localizados no APEJE - Arquivo Público de Pernambuco e no Arquivo
Nacional - RJ.
Apresentamos a seguir um exemplo desse conjunto de fontes. Trata-se do primeiro
documento que se produziu sobre os sucessos de Pedra do Reino128. Embora o texto tenha sido
escrito nas primeiras décadas do século XIX, a escrita caligráfica permite até mesmo ao leitor que
não tem conhecimento de paleografia, identificar os nomes de algumas das principais
personagens históricas. O documento data de 25 de maio de 1838, portanto, sete dias depois dos
principais sucessos da história de Pedra do Reino, acontecidos entre os dias 14 e 17 de maio
daquele ano. Por meio dele, o prefeito da Comarca de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes,
comunica ao presidente da Província, Francisco do Rego Barros, sobre maio de 1838, na Serra do
Reino.
Conforme registrado a seguir, o ofício em questão contém quatro páginas129:[Figura 11]
Nesta tese, convencionamos denominar como Pedra do Reino o fato histórico ocorrido entre 1836-1838, no
sertão de Pernambuco. Nossa opção se justifica porque é com essa designação que hoje, de uma maneira geral,
fazem referência àquele movimento messiânico. Entretanto, nos documentos oficiais de 1838, as autoridades
designam o fato histórico como Pedra Bonita, conforme poderá ser observado na transcrição do ofício. Cf. nota 03.
129 Leiamos a transcrição do ofício. “Pela vez primeira que me dirijo a V. Exª participando o estado desta comarca,
que apesar de se achar tranquila, todavia, tenho que levar ao conhecimento de V.Exª o caso mais extraordinário, mais
terrível, cruel, nunca visto e quase incapaz de acreditar-se, eu deixaria de noticiar um semelhante acontecimento se
não fosse obrigado pelo emprego que por V. Exª. me foi confiado, tal ____ desconhecer a incapacidade de meu
critério. Permita-me V. Exª., que por um pouco, vá analisando os fatos e por juízos tais e quais tiveram lugar nesta
comarca, nas imediações do Piancó. Há mais de dois anos, V.Exª., que um homem de nome João Antônio, morador
do sítio Pedra Bonita, distante desta vila vinte e duas léguas, lugar este composto de bosques, junto dos quais se
acham dois penedos acroceraunios, se lembrasse de apresentar uma zizania aos povos dizendo que naquele lugar
existia um reino encantado e que estava a desencantar-se, em cuja ocasião apareceria El Rei Dom Sebastião com um
grande exército, ricamente adornado e que todos que os seguissem seriam felizes e foi lidando nesta seita que em dias
de novembro do ano próximo passado, aconselhado pelo missionário Francisco José Correia de Albuquerque,
fizeram uma viagem para o sertão dos Inhamuns donde mandasse um enviado de nome João Antônio, homem
hostil, péssimo e esquisito de sorte que este lobo assim chegado no lugar de Pedra Bonita e aclamando-se rei, tratou
de trazer aos povos ____ sujeitos as umas ideias supersticiosas, dizendo-lhes que para a restauração do reino
181
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tornava-se necessário que fossem imoladas as vítimas de homens, mulheres e meninos, que em breves dias,
ressuscitariam todos e que ficariam imortais sendo estes sacrifícios____ para regar o campo encantado com sangue
humano e dos inocentes, depois do que apareceriam as maiores riquezas do mundo e que todos os pardos do lugar
ficariam mais alvos que a própria lua; de maneira que assim pode conduzir os povos ignorantes as suas falsas
declamações e péssima doutrina e conseguiu que alguns pais entrassem seus filhos ao cutelo do sanguinário tigre e no
dia 14 do corrente deu princípio as suas hostilidades assassinado até quarta feira, 18 deste mesmo mês, vinte e um
adultos e vinte e um parvulos de ambos os sexos e casando cada homem com duas ou três mulheres sendo este
contrato feito pelo mesmo idólatra, com superstições próprias de sua imoral conduta, porém o seu resultado foi
tristíssimo porque Pedro Antônio, irmão do primeiro inventor João Antônio, já intolerante aos desmandos
semelhantes canifrás ou talvez ambicioso de substituir-lhe no reino, determinou o assassiná-lo como o fez no dia de
terça feira, 17, dia em que, correndo um dos moradores do lugar, pôs aviso ao Comissário Manuel Pereira da Silva e
este, imediatamente foi reunir uma força composta de vinte seis guardas nacionais e paisanos e seguiram no dia sexta
feira, 18, do supracitado mês, de seu sítio Belém, distante deste lugar da desordem oito léguas, já perto, encontraram
a Pedro Antônio assassino do bárbaro João Ferreira, coroado com uma coroa de cipó, tomada ao seu antecessor, e
acompanhado de um grupo de homens e mulheres que gritavam em altas vozes: “Cheguem que os não tememos, e
acudam-nos as tropas do nosso reino”. E com tais alaridos principiaram a brigar-se e os desordeiros puderam logo
/a cacetar e espadar com que brigavam/ matar seis homens da tropa e ferirem a quatro, entre os quais mortos foram
os cidadãos Alexandre Pereira da Silva e Cipriano Pereira, irmãos do comissário/ ____ sensível, mas V. Exª. ,
debalde foi o plano dos desordeiros, que sendo fortemente atrasados, perderam, em um instante, vinte e nove
pessoas, inclusive as mulheres, além dos feridos que pelos matos correram, sendo prisioneiros três homens, nove
mulheres de doze meninos. Note, V. Exª. que naquele dia 18, às quatro horas da tarde, foi que me chegou a notícia
das primeiras desordens, não por parte oficial do Comissário, mas sim por uma carta particular de uma pessoa de
crédito, a vista da qual, a todo preço, reuni quarenta homens e logo marchei à frente deles para prender os
desordeiros, mas foram malogrados os meus passos porque chegando perto de Pedra Bonita, já tudo estava
destruído, como acima teve dito, Exª, esta minha asserção não foi baseada só na parte do comissário, mas sim na
condição, contudo, que todos [os] presos fossem, mesmo as crianças de cinco a doze anos, de maneira que
parecendo o caso um sonho, todavia é real, pelas razões que pondero a V. Exª., os presos de que faço menção foram
pela minha tropa conduzidos para a cadeia desta vila, e deles fiz entrega ao Juiz Criminal, com parte, para conhecer
sumariamente, e doze meninos entreguei ao Juiz do Cívil para as mandar distribuir por pessoas que os possam
educar, lhe que V.Exª providencie a resposta.
Deus guarde V. Exª.
Prefeitura da Comarca de Flores, 25 de maio de 1838
[Dados do destinatário, Francisco do Rego Barros, Presidente da Província de Pernambuco]
Francisco Barbosa Nogueira Paes”.
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
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Capítulo 3
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Neste ofício, destacamos nomes das personagens ao mesmo tempo históricas e ficcionais,
presentes na historiografia da Pedra do Reino como também no enredo de O Reino Encantado. São
elas: (1) João Antônio [dos Santos]; (2) o Missionário Francisco José Correia de Albuquerque,
chamado no romance de Pe. Correia; (3) João Ferreira; (4) por último, localizamos o nome da
personagem Pedro Antônio que, tanto na ficção como na crônica histórica, era irmão de João
Antônio e foi último rei de Pedra do Reino.
Na tabela abaixo, enumeramos 11 personagens simultaneamente históricos e ficcionais.
Por outro, localizamos 6 personagens meramente ficcionais.
PERSONAGENS
PERSONAGENS
SIMULTANEAMENTE
MERAMENTE
HISTÓRICOS E FICCIONAIS
FICCIONAIS
João Antônio
Bernardo Vasconcelos
Maria
Manuel Velho
João Ferreira
Tibúrcio
Frei Simão
Jaime
Pedro Antônio
Justina
Pe. Correia
Dona Clemência Vasconcelos
Comissário Manuel Pereira
Isabel
Gonçalo José dos Santos
João Pilé
Josefa
Desse conjunto de personagens, passamos a discutir a forma com que Araripe Jr. reelabora artisticamente algumas delas. Importante destacar que na galeria de personagens de O
Reino Encantado parte delas é “representada” segundo orientações da estética romântica e outra
parte “representada” sob orientação da estética naturalista. Os preceitos românticos são sempre
utilizados para caracterizar as personagens do grupo dos potentados, como logo mais
analisaremos os casos das personagens Maria e o vaqueiro Manuel Velho.
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Capítulo 3
Já as personagens sebastianistas são “representadas” segundo duas orientações distintas: a
primeira, através de “o fator raça”, conforme Taine compreendia; depois, as “representações”
perpassam pela adoção de uma linguagem da medicina psiquiátrica, em voga no Brasil da época,
conforme indicamos no início deste capítulo. É o que se depreende das seguintes explicações
formuladas pelo narrador:
Um fenômeno todo patológico se passava em Pedra Bonita. Só assim teriam explicado
tais aberrações do espírito humano. Embora fossem os adeptos de João Ferreira
criaturas broncas, sem instrução, a quem nem por isso se pode negar o natural bom
senso, não admitimos que o desvairamento chegasse a tamanhos despropósitos, a não
ser por causas em grande parte físicas e capazes de perturbar as funções ordinárias do
cérebro.
Para que aquela gente aceitasse tão estupendos absurdos como verdade, e deixasse de
perceber os contrastes da visão com a realidade da vida, seria preciso que sobre ela
atuasse uma causa mórbida, valente, despótica, contagiosa.
Não restava dúvida que existe uma corrente que, dadas certas condições, encadeia os
espíritos enfermos uns aos outros e tem a força de corromper todos quantos se lhes
põem em contato. Será acaso a primeira vez que se fala na loucura epidêmica?
Se a epilepsia se transmite pela simples impressão, não será para admirar que a
alucinação de um grupo de indivíduos, em constante comunicação, se possa propagar,
reduzindo ao mais triste estado de uma multidão predisposta a receber influências
mórbidas (RE, p. 85 – grifo nosso).
Um “fenômeno patológico”, perturbações das “funções ordinárias do cérebro”, de “causa
mórbida”, “contagiosa”, “espíritos enfermos”, “loucura epidêmica”: todas essas palavras e
expressões são utilizadas para designar os sebastianistas de Pedra do Reino. Conforme
analisaremos as “representações” de algumas dessas personagens, começando pelos “reis” ou
“profetas” de Pedra do Reino. Em O Reino Encantado, o arraial de Pedra do Reino começou a se
formar em 1836 e resistiu até maio de 1838. Nesse período, a comunidade foi liderada por três
diferentes profetas: João Antônio dos Santos, João Ferreira e Pedro Antônio.
3.5.1. João Antônio: arauto e traidor
Para os sebastianistas, João Antônio dos Santos é representado em O Reino Encantado
como um mameluco, instituidor e arauto da profecia; como aquele que fundou o arraial de Pedra
do Reino. É possível afirmar que ele foi apropriado pelos sebastianistas como uma autoridade
legítima e reconhecida dentro da comunidade (BOURDIEU, 2008, p. 93). Levantamos aqui duas
hipóteses para isso. A primeira é que as predições de João Antônio traziam no seu bojo soluções
práticas e imediatas para os males que afligiam a maioria dos sebastianistas. A outra, é que João
Antônio possuía predicativos que o distinguiam de seus liderados, quais sejam a inteligência, a
astúcia e, sobretudo, o domínio de certos aspectos do universo letrado e intelectual. São
exemplos destes as habilidades de ler e de escrever, além de demonstrar familiaridade com
rudimentos da história.
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Capítulo 3
Lera o (...) em um alfarrábio achado alhures as profecias referentes ao malogrado D.
Sebastião, e, persuadindo-se de que nada mais fácil havia do que fazer acreditar a certa
gente em uma missão sobrenatural, empreendeu um dia tentar o proselitismo.
Dizia a lenda que o santo rei apareceria pelas partes do oriente; nada mais simples,
pensou ele, do que mudar o evento para um país do ocidente, e assim o fez. Em sua
rústica linguagem procurou demonstrar aos que escutavam, como possível lhe foi, que
nem em África, nem em Ásia, podia ter lugar esse milagre; e, acrescentando que só em
terras da cruz o Esperado devia ressurgir, concluía que o sucesso veridicar-se-ia no Brasil,
pois segundo ouvira aos entendidos fora este país pelos descobridores ao instrumento
do martírio consagrado (RE, p. 86 – grifo nosso).
É possível que os sebastianistas tenham vislumbrado na capacidade intelectual de João
Antônio um critério para compreendê-lo como uma voz autorizada e representativa do mundo
que era deles. Entretanto, essa visão sobre João Antônio se restringia aos sebastianistas, com
exceção dos seus irmãos Pedro Antônio e Josefa, que não acreditavam na profecia.
O narrador, no entanto, representava-o de outra forma. Para ele, João Antônio também
era um profeta “impostor” e “embusteiro”, pois, embora divulgasse, não acreditava na profecia.
Conforme anota o narrador, sua intenção era utilizar o conhecimento que tinha sobre o mito do
jovem monarca português, D. Sebastião, com o único propósito de reunir bens de fortuna. Tanto
é que uma de suas primeiras providências foi instruir alguns escravos a subtrair dos fazendeiros
gado, ouro e outros bens de alto valor comercial. O que João Antônio fazia com esses bens?
Segundo o narrador, “ouro e prata que [os escravos] puderam furtar ou haver por meios ilícitos,
passaram para as mãos do impostor [João Antônio], que as fingia sepultar nas entranhas dos
rochedos. Assim foi-lhe a indústria produzindo os desejados resultados (...)”. O movimento de
Pedra do Reino seria para João Antônio “um meio de vida”.
De acordo com a narrativa, João Antônio continuou a ludibriar seus liderados até o dia
em que observou que era necessário recuar, pois alguns deles estavam, de fato, acreditando em
“suas patranhas”.
[João Antônio] reparou que o fervor da sua gente e daqueles em que o segredo o
procuravam em Pedra Bonita, tomava proporções incômodas. Um dia mostrou-se-lhe
uma pobre escrava fanatizada já ao ponto de rogar-lhe em brados a morte de um
filhinho. João Antônio assustou-se com o efeito tão cedo denominado por suas
patranhas, e imediatamente pensou em moderar esse ardor intempestivo.
Retirou-se do esconderijo, proibiu que lá fossem ou falassem em Pedra Bonita, e
transportou para os povoados o exercício do inculcado sacerdócio, arrependido sem
dúvida da imprudência que cometera (RE, p. 88).
Nesse meio tempo, Pe. Correia organizou uma missão, encontrou-se com João Antônio e
pediu-lhe que se retirasse para os Inhamuns, região do Ceará. Para João Antônio, o pedido do
padre foi álibi certo para arrefecer os ânimos dos sebastianistas cuja fé era mais fervorosa,
conforme explica o narrador.
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Deixando Flores, mostrou ele como sabia ser esperto. Ficar ali seria arriscar a perder de
vez aquilo que mais de espaço podia abrir-lhe minas tão férteis como as que em suas
artimanhas fazia o povo acreditar. (...) cercara-o logo um pessoal por tal modo
desvairado que, se não o arredasse do sombrio local onde exibira pela primeira vez os
quadros criados por sua fantasia, era bem possível que ou chegasse aos excessos que
dos escravos receiam, ou botasse o negócio a perder (RE, p. 89).
Ele fechou o arraial, proibiu que as pessoas voltassem lá e retirou-se para os Inhamuns.
Mas antes, instituiu um apostolado, a quem orientou a atrair novos fiéis, no Piancó, região da
Paraíba e na região das margens do São Francisco, a fim de que eles continuassem arrecadando o
seu sustento, seu “meio de vida”.
Compunha-se esse pretenso apostolado de Pedro Antônio, irmão do embusteiro,
conhecido dos nossos leitores, o qual era dotado de iguais astúcias, do pai do próprio
impostor, Gonçalo José dos Santos, de uma família de visionários existente na
localidade e designada pelo nome de Vieiras, de um denominado João Pilé, que diziam
já ter por várias ocasiões falado com o diabo à meia noite, e finalmente do afamado
João Ferreira que encontramos entrozinado em Pedra Bonita a dirigir os seus cruéis
sacrifícios.
Com exceção do primeiro, todos viam em João Antônio um inspirado verdadeiro, e no
contato em que com ele viviam, consubstanciaram-se por tal forma com a engenhosa
legenda, que esta por último merecia-lhes mais fé do que o pai nosso, o credo e as outras
orações recebidas no ensino da igreja (RE, p. 89).
João Ferreira não seguiu com o grupo porque havia sido acometido por uma
“enfermidade nervosa desconhecida no lugar”. Poucos dias depois, quando este se recuperou,
voltou ao arraial e soube que João Antônio havia ido embora para os Inhamuns. Por isso
resolveu ir ao Ceará conversar com ele. Conforme anota o narrador, depois desse encontro entre
os dois cunhados, João Ferreira tornou-se o novo líder de Pedra do Reino.
Ignoramos o que houve entre os dois cunhados, e de que meios lançou mão o profeta
para conseguir do primeiro rei a comissão que surgiu a desgraça de Serra Formosa.
O que podemos afirmar é que logo depois, voltando de Inhamuns, João Ferreira
passava por Porteiras e ligava-se estreitamente com o mandingueiro a quem os
habitantes da Serra Talhada tinham batizado com o nome de Frei Simão por haver
durante anos sido cargueiro de um religioso franciscano assim chamado.
Desta ligação foi que se originou verdadeiramente o parto monstruoso.
Longas noitadas levaram estes dois demônios a saturarem-se mutuamente das suas
idéias despropositadas, e por fim, fundindo suas almas em um único pensamento,
alaram-se em cata do desconhecido (RE, p.102).
Conforme se depreende do trecho, o encontro entre João Antônio e João Ferreira
simbolizou a passagem da liderança do movimento de Pedra do Reino, do 1º para o 2º profeta.
Contudo, João Antônio retornou mais uma vez ao arraial quando soube que João Ferreira pôs em
prática os sacrifícios humanos previstos na profecia. Daremos voz a personagem João Antônio
que, em conversa com Pe. Correia, explica o modo com que tentou dissuadir João Ferreira de
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Capítulo 3
presidir rituais de assassinato. Conta João Antônio que voltou à Pedra do Reino porque seus
negócios nos Inhamuns não eram rentáveis como em Pedra do Reino.
e como a vida que levava não me dava para comer, e aquele negócio, que sabeis, rendiame alguma coisa, não querendo aparecer mais nesta amaldiçoada terra, enviei um
discípulo, um companheiro a minha gente... o padre mestre sabe que eu especulava sem
outras intenções... contudo João Ferreira traiu meu pensamento... Meteu-se-lhe o
esconjurado nos cascos e está a matar gente de um modo atroz, no meu nome, e por
conta dos santos que invoca! (...) Ah! Logo que soube do que estava fazendo o
malvado, corri à Pedra Bonita; mas já era tarde. Tinham todos enlouquecido e,
embriagados, não houve mais palavra para eles. João Ferreira está possesso...
desconheceu-me, e obrigou-me a fugir com receio de alguma violência (RE, p. 62).
João Antônio foi praticamente escorraçado do arraial, conforme o trecho citado. Sua
saída do arraial, às pressas, marcou o rompimento definitivo de João Antônio com João Ferreira.
Ao ser praticamente expulso do arraial, João Antônio dirige-se a Serra Talhada. Mas antes de
chegar ao povoado, encontra-se com a tropa de Manuel Pereira e Pe. Correia que, àquela altura,
estava perdida por ter sido abandonada pelo rastejador João Pilé, conforme anotamos na primeira
parte deste capítulo.
O encontro com Pe. Correia simboliza uma nova fase das representações da personagem
João Antônio. De arauto e idealizador da profecia do movimento de Pedra do Reino, João
Antônio passa a ser uma espécie de traidor dos sebastianistas porque dispõe-se a conduzir a
expedição ao arraial de Pedra do Reino.
Se aos olhos dos sebastianistas, João Antônio transformou-se num traidor, para os
potentados, João Antônio passou a ser visto como uma espécie de redentor. Afinal, foi João
Antônio que lhes tirou da situação de desvantagem em que ficaram perante os sebastianistas; a
tropa estava perdida e sem meios de seguir adiante. Somente por causa dos préstimos de João
Antônio, que serviu de guia à expedição, que logo alcançou o arraial, resgatou Maria e dona
Clemência, além de destruir o arraial e debelar o movimento.
Como prêmio, Pe. Correia intermediou a fuga de João Antônio, antes que ele fosse
entregue à justiça. Conforme anota o narrador, “na ocasião de serem os fanáticos conduzidos
para o povoado [o sumiço de João Antônio] encheu a todos de espanto”. E continua:
Tempos depois, confessou o missionário a seu amigo Manuel Pereira o pecado de havêlo subtraído a ação da justiça e, garantindo-lhe a tranquilidade das consciências em
Flores, acrescentou que assim o fizera por evitar que o despeito não desviasse mais esta
alma do bom caminho (RE, p. 15 – grifo nosso).130
As representações de João Antônio, segundo os potentados, modificam-se à medida que o primeiro profeta
dispõe-se a conduzir os sebastianistas às pedras. Antes, quando isto não havia acontecido, Pe. Correia, em conversa
com Manuel Pereira da Silva sobre a missão que havia realizado tempos antes junto aos sebastianistas, tinha a
seguinte opinião sobre João Antônio: “Aqui chegando, encontrei esta gente completamente desvairada. Inquiri das
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Sendo assim, João Antônio foi poupado porque se arrependeu e aderiu à “verdadeira
religião” e ao “bom caminho”. Ou seja, a personagem passou a repudiar as superstições que
enformavam a profecia e, em sinal de progresso e de civilização, aderiu à religião oficial, ali
personificada pelas orientações de Pe. Correia. Conforme explica o padre, “onde impera a
superstição, afoga-se a religião e todos os sentimentos que elevam e embrandecem a bruteza
animal desaparece” (RE, p. 42). A missão do padre, ali, era fundar e consagrar a “religião
verdadeira”, que, segundo ele, seria a católica ou a “religião dos brancos”. Estamos, portanto,
diante do que podemos chamar de discurso fundador. No caso, a constituição dos fundamentos
cristãos, associados aos preceitos da vida civilizada. É, por outro lado, um discurso que prescreve
a ordem, o ordenamento social, que não se restringe à esfera religiosa, mas enraiza-se
concomitamente nas esferas política, econômica, social e judiciária. Em última instância, o
estabelecimento da comunidade Pedra do Reino é representado como um risco à ordem
estabelecida, tanto quanto é uma evidência de que a ordem não é um dado natural, mas uma
construção sistemática do poder. Na verdade, esta fala somente compreende-se a partir do seu
lugar específico. Trata-se, assim, de construção discursiva, de práticas e de estratégias a fim de
atingir estes objetivos.
3.5.2. João Ferreira: o profeta “fanático” e “epilético”
Como já dissemos, João Ferreira substituiu João Antônio. Conta o narrador que a
passagem do posto se deu da seguinte forma. Logo que soube da partida do 1º profeta, João
Ferreira ficou transtornado ao saber que João Antônio tinha deixado Pedra do Reino: “João
Ferreira gritou, berrou, espumou, praticou atos em suma de um possesso, e, apesar da oposição
dos que os cercavam, partiu em busca do fundador da seita” (RE, p. 92). Tão logo melhorou
dessa crise nervosa, João Ferreira resolveu procurar João Antônio, nos Inhamuns. Chegando lá,
entrou num acordo com o primeiro profeta que o orientou a se coligar a Frei Simão131 e
reativarem o arraial em torno de Pedra do Reino.
causas e não tardei em descobrir que aquele impostor, instruindo numas extravagantes legendas bebidas em um
velho alfarrábio, andava a mostrar aos incautos e inocentes umas pedras falsas a que dava nome de brilhantes,
inculcando possuir o segredo de uma portenhosa mina. Com estas e outras historietas, embaia o povo, que
maravilhado chegou a convencer-se de que este homem tinha em si alguma coisa de extraordinário! O que é certo
que não tardou que o miserável, a troco de promessas que se haviam de realizar muito breve, ia conseguindo o seu
intento, que era fazer-se cercar de uma corte de idiotas que o admirassem. Com este prestígio, obteve então dos que
tinham alguns bens de fortuna, dinheiro, bois e cavalos” (RE, p. 44).
131
Em O Reino Encantado, Frei Simão era morador de um sítio próximo à fazenda Porteiras e havia sido iniciado na
comunidade de Pedra do Reino por João Antônio, que, a princípio, quis mostrar a Frei Simão que suas palavras não
passavam de uma usurpação. Mas o frade, ao “observar as extraordinárias cenas em que o futuro profeta falava com
os espíritos invisíveis, mostrando-lhe no céu letras de fogo a confirmarem o impulso sagrado que o levara a pôr de
parte o criador do embuste, o mandingueiro acendeu ao plano de considerar o mameluco excluído da graça do
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Capítulo 3
Dentre os três profetas, um diferencial de João Ferreira é que ele era o único que
acreditava no reino encantado. No romance, diferentemente de João Antônio, João Ferreira não
é representado como ludibriador dos sebastianistas ou um embusteiro, mas sim como alguém que
realmente confiava na profecia. É o que se depreende do diálogo entre ele e Frei Simão. Este
lamenta o fato de os sacrifícios serem em número menor do que o necessário para o reino se
desencantar.
- [Frei Simão] o povo está cheio de medo e recusa entregar-se. O número dos
sacrifícios anunciados não cresce, e nada de levantar-se a pedra do encantamento. O
diabo é sujo, e, se consegue meter na cabeça dessa gente que o reino não desencanta,
está tudo perdido.
- [João Ferreira] Quem te disse, que possa alguém transtornar a obra do santo? É essa
mesma pouca fé que há de argumentar a raiva de Deus e atirar as vítimas ao encontro
do gume afiado da espada. O Encoberto renovou sua aparição dignando-se falar ao seu
humilde servo. E sabeis o que me disse?... Tremem-me as carnes... mas a sua vontade
será cumprida. O casamento do apóstolo com Maria realizará a profecia, e tanto sangue
há de correr que nele se afogarão todos os vícios e maldades abomináveis desta gente
miserável, que vê e não crê, tem a vida gloriosa ante os olhos e a despreza. Vamos; a
esposa divina nos espera... Combatamos a cegueira que a escurece e tu não soubeste
dissipar (RE, p. 71 – grifo nosso).
João Ferreira acreditava que logo após seu casamento com Maria, os sacrifícios
voluntários iriam acontecer em número suficiente para afogar todos os vícios e maldades. Por
isso, pediu a Frei Simão que apressasse a cerimônia, de modo que todos os males fossem
dissipados.
Outro aspecto importante que diferencia João Ferreira dos demais reis de Pedra do Reino
é que ele é representado por meio de uma linguagem própria da medicina psiquiátrica. Conforme
o narrador expõe:
De todos os sócios de João Antônio, nenhum apresentou desde logo sintomas tão
graves de desordem mental como João Ferreira. Havia neste homem uma propensão
singularíssima para a idéia fixa. Mal, portanto, se lhe encasquetaram no cérebro as idéias
de um encantamento, tornou-se taciturno, selvagem, perdeu todo o apetite e entregouse a um gênero de vida que nem estava nos hábitos do sertanejo, nem continha-se nos
limites prescritos pelo intérprete do rei desaparecido em Acacer-el-Kibir (RE, p. 89 –
grifo nosso).
Segundo Peres (2010, p. 18), em 1817, Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840),
médico psiquiatra francês e discípulo de Philipe Pinel (1745-1811), descreveu alguns sintomas
para a melancolia. Dentre eles, a tristeza, o abatimento e o desgosto de viver e o delírio sobre
uma idéia fixa. De acordo com o narrador, a ideia fixa de João Ferreira era a do desencantamento
Encoberto. Deixaram ambos o casebre, chamaram João Pilé, os Vieiras, e o mesmo Gonçalo dos Santos; fundaram o
reino visível de Pedra Bonita que tinha de ser percussor do verdadeiro reino, e o mistério das sete semanas encetou-se
na sexta-feira da paixão” (RE, p. 92).
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Capítulo 3
do reino que se apoderou dos seus pensamentos de um modo singular, que seus hábitos nem se
assemelhavam ao do sertanejo comum, nem aos hábitos dos outros sebastianistas de Pedra do
Reino.
No capítulo do romance intitulado “João Ferreira”, o narrador anota que o 2º profeta de
Pedra do Reino era oriundo do Piauí. Embora não fosse da região de Serra Talhada, todos sabiam
de seu passado “sombrio”, uma vez que Josefa, sempre que se zangava com o marido gritava aos
quatro ventos que ele não passava de um “monstro” e que suas esquisitices tiveram origem na
infância.
Sucedera o fato assim: entrou o malvado um dia em um cercado de criações que a mãe
muito zelava, e deixando-se apoderar um ímpeto desordenado armou-se de uma faca e
atirou-se como um louco sobre os inocentes animalejos talhando-os a direita e a
esquerda. A destruição foi colossal; e a mãe de João Ferreira, vendo-o naquele estado
deplorável, extenuado, coberto de sangue, a olhar contentíssimo para os destroços
filhos de seu braço, correu assombrada em busca de socorro.
Valeu-lhe este desbarato um furioso castigo, que, entretanto, de nada serviu-lhe, porque
o menino crescendo em idade não perdeu a mania extravagante.
Saindo de casa paterna, por não o puderem suportar atirou-se a uma vida aventurosa, e
embrenhou-se na vereda de crimes (RE, p. 89).
Pe. Correia já tinha ouvido Josefa e o próprio João Ferreira em confissão e, por esse
meio, sabia das atrocidades que o marido de Josefa era capaz de cometer. Conta o narrador que
o padre se desestruturou ao saber que João Ferreira havia herdado de João Antônio a liderança
do movimento de Pedra do Reino.
Tremeram-me as carnes, logo que me deram esta notícia, e convim que as cenas que
presenciamos teriam de realizar-se. Esse homem, cujo caráter por meu ministério
conheço a fundo, é a fera mais terrível, o espírito mais obcecado, o fanático de
imaginação mais desvairada que percorre estes sertões. João Ferreira... sanguinário,
louco mesmo pelo sangue como é, de posse do ânimo da gente do seu amigo, será
capaz de coisas estupendas! E aí estão os fatos demonstrando o... não resta mais dúvida
para mim... o monstro começou a sua obra... (RE, p. 44).
No diagnóstico do narrador, João Ferreira era acometido por um quadro patológico de
loucura. Compreensão esta que se coaduna com a de um grupo significativo de médicos
brasileiros do século XIX, discípulos do médico italiano Cesare Lombroso, que acreditava numa
concepção biológica do crime. Em suas teorias, Lombroso defendeu que o criminoso é portador
de determinadas características biológicas, ou seja, o criminoso seria “anômico e naturalmente
impelido ao crime”. Ao que tudo indica, é com essa concepção que o narrador caracteriza João
Ferreira, já que, conforme se lê no trecho acima, “ele era “sanguinário, louco mesmo pelo
sangue”. A ligação entre a concepção ficcional da personagem João Ferreira e o conhecimento
médico-psiquiátrico difundido por Lombroso torna-se mais evidente à medida que constatamos
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Capítulo 3
que o médico italiano e seus seguidores defendiam que, entre as causas da criminalidade inata,
estaria o fato de que todo criminoso seria portador de epilepsia. E João Ferreira é qualificado
como epilético:
Havia de feito na figura do profeta um quer que fosse de epilético, que aterrava. Os
olhos vidrados eram agitados por movimentos convulsivos, as pupilas erradias e
desencontradas davam-lhe aspecto de um homem em quem a razão se transviara e com
quem perigosíssimo seria tratar naquele instante; a respiração tornava-se custosa, a
cabeça deixava-se de vez enquanto sacudir por pequenos estremecimentos, e os dedos
recurvados contraíam-se como querendo apegar-se a um invisível objeto (RE, p. 71).
Qual a concepção de epilepsia no período? De acordo com Lombroso, a “epilepsia (...)
reúne e funde os loucos morais e os delinquentes natos em uma mesma família natural”. Por
conseguinte, a epilepsia e a predisposição para o crime seriam as duas faces de uma mesma
moeda, assim como a prática de crimes poderia ser considerada um sintoma de epilepsia. Tanto é
que Lombroso é categórico ao afirmar que “o epilético normalmente é uma caricatura do crime”
(LOMBROSO, 1887, p. 456). E explica que:
Para os leigos, que só percebem na epilepsia o acesso convulsivo ou o equivalente
psíquico, ou essas formas singulares a que se chama de ausências e vertigens etc., esta
aproximação poderia parecer absurda; não é a partir do momento em que se considera,
não somente os epifenômenos mais evidentes destes infelizes, mas também todas as
características, cujo conjunto constitui [...] a história natural do epilético (LOMBROSO,
1887, p. 438).
Antes de Lombroso, em 1857, o médico Benedict-Augustin Morel desenvolveu a “teoria
da degenerescência”, publicado na obra Traité des Dégénérescences. Para ele, os “degenerados” seriam
os indivíduos acometidos de patologias que tivessem uma origem oculta, dentre esses males
figuraria a epilepsia. Ou seja, a classificação dos chamados degenerados teria como base fatores
físicos e, sobretudo, fatores psíquicos. Com essa ordem de argumentos, o grupo dos degenerados
seria formado não apenas pelos epiléticos, mas também por portadores de outras doenças como
alcoólatras, alienados, sifílicos, todos considerados “um desvio doentio do tipo normal da
humanidade (...) resultado de uma influência mórbida, seja de ordem física, seja de ordem moral”
(MOREL, 1857 Apud. PORTOCARRERO, 2002, p. 49).
Uma explicação dessa natureza pressupunha o epilético como um criminoso em
potencial, conforme já defendido por Lombroso. Nesse caso, caberia ao médico cuidar tanto da
parte física como também mental do “degenerado”.
Considerando que a personagem João Ferreira foi concebida como epilético, é possível
afirmar que ele guardava em si as características do doente, quais sejam a delinquência e a
amoralidade. Ainda de acordo com o narrador, a epilepsia seria contagiosa e, por isso, acometia
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
os demais membros da seita. João Ferreira orquestrava um delírio coletivo. Diante da figura do
“rei santidade”, os moradores do arraial se comportavam de maneira submissa:
Uns ajoelhavam-se, outros beijavam a fímbria da camisola do profeta, e todos, batendo
nos peitos em forma de submissão, bradavam com um ar aparvalhado, que bem
revelava o estado de embrutecimento em que se achavam:
- Rei Santidade! Rei Santidade!
Era tristíssimo o espetáculo que apresentava essa gente semi-nua, imunda, esquálida,
depauperada por excitações morais de toda ordem, vigílias e jejuns, impostos pela
crença que seguiam.
Pela maior parte eram escravos fugidos, entre os quais se mostravam alguns mestiços
arrancados à pequena lavoura e um ou outro indivíduo de raça branca cujo contato com
os africanos tornara tão boçais como eles.
Em geral todos tinham no semblante uma expressão de bestialidade indefinível (...)
Estes infelizes davam cópia perfeita do que é o gênero humano, e a que é capaz de
reduzi-lo à ignorância, quando não o guia a razão forte do filósofo e uma superior
individualidade (RE, p. 72 – grifo nosso).
O determinismo racial somado à falta de instrução seriam, para o narrador, as
justificativas para o “tristíssimo espetáculo” das “excitações morais”. Como se lê, a maioria dos
sebastianistas do romance era formada por mestiços, alguns brancos, mas todos teriam se
tornado “boçais” em razão do contato com os negros africanos. Boçal é uma qualificação
pejorativa originária do italiano “bozzo” que significa “peça de pedra tosca”, “aquele que tem
rudeza”, “que não foi cultivado”, “sem arte”, “sem engenho” (SILVA, 1789, p. 185). Ou
indivíduo que não conheceu o progresso nem a civilização. A despeito de compreender as
“práticas sociais” de Pedra do Reino por meio do determinismo racial, a postura do narrador,
assemelha-se à de Araripe Jr., o crítico, à medida o que nos possibilita algumas inferências. Por
exemplo, é possível deduzir que eventos como os de Pedra do Reino não voltariam mais a
acontecer desde que se instrumentalizasse o sertanejo a fim de que ele superasse a ignorância e se
guiasse pela “razão forte do filósofo”.
Para o narrador, no entanto, o efeito da superstição teria atingido às mulheres de maneira
mais devastadora. De todos os componentes do “séquito” de João Ferreira elas seriam as mais
fervorosas fanáticas:
As mulheres, estas ainda mais do que os homens pareciam degradadas pelos efeitos da
superstição.
Sem o mínimo vestígio de pudor, arrastando-se pelo chão em acessos de um histerismo
repugnante, pairando-lhes nos olhos encovados uns visos de apatetamento, conduziam
os filhos sem carinho, e, fora de si, não se satisfaziam em reverenciar o rei Santidade,
queriam adorá-lo, queriam beijar-lhe as plantas e receber por qualquer modo um toque
que as santificasse (RE, p. 72).
Degradadas, histéricas, apatetadas: assim eram as mulheres que teriam acreditado na
profecia. As reverências delas a João Ferreira, porém, baseavam-se na crença de que um simples
“toque” nas vestes do “rei Santidade” era suficiente para santificá-las. Importante dizer que João
196
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Ferreira não circulava ordinariamente pelo arraial. Suas aparições eram cercadas de pompa e
ritualizadas. Era justamente nessas ocasiões, que as mulheres buscavam pelo menos tocar nas
vestes do “Santidade”, a fim de alcançar as glórias do reino encantado.
Uma das ocasiões mais solenes do arraial de Pedra do Reino era o batismo de um novo
membro da seita, ritual que sempre era presidido por João Ferreira. Em O Reino Encantado o único
batismo narrado é o de Maria, que recebeu de João Ferreira um batismo de sangue, conforme o
trecho que se segue.
Os fanáticos encaminharam-se para o centro da praça, e os roucos búzios tornaram a
troar. O poviléo se ergueu e os acompanhou; e em procissão dirigiram-se todos para o
lado do sul, onde existia uma grande laje côncava.
Neste sítio mugiam três touros amarrados a um mourão previamente disposto.
Apenas aí chegados, o singular companheiro do negro velho subiu com ele a pedra
levando a pobre menina inanimada, e levantaram o rosto para os céus em forma de
quem orava. Depois se armou o primeiro de uma grande espada, e o mandingueiro
arriando-se da pedra foi desprender um dos touros e fê-los encostar a uma das
extremidades da laje.
A lâmina tangida com a destreza sem igual desceu sobre a nuca da vitima subjugada, e
uma jorro de sangue preto e espumante inundou essa espécie de pia engendrada por
nunca vista superstição. Degolado por aquele modo o animal, o corpo foi cair para
longe estrebuchando no meio de estertores horríveis. A mesma cena reproduziu-se com
os dois restantes, então os celerados repletos de sangue, após ligeira ablução das mãos,
profanações do sinal da cruz, e rezas do ritual cristão estropiadas por uma e mais vezes
derramaram sobre a cabeça de Maria essa água lustral de nova espécie (RE, p. 62 – grifo
nosso).
O batismo é um rito de passagem. Segundo Parker (1995; 155), os ritos de passagem
“ajudam o indivíduo a processar subjetivamente e a aceitar uma mudança de posição social. (...)
Procura-se que o iniciado adquira um novo status para os demais e um novo modo de ser perante
os outros”. Além disso, o rito de passagem teria relevada importância para a comunidade a que
pertence o iniciado, uma vez que “cada ritual constitui-se um motivo para reunir-se, fortalecer os
laços de solidariedade, festejar, e assim ritualizar a passagem dos “seus” de uma etapa de
progressão para outra”(Idem). No caso de Maria, ser citada na profecia não era suficiente para
que ela pertencesse àquela comunidade; era necessário, pois, que Maria fosse submetida ao rito de
passagem aceito pelo grupo dos sebastianistas, o batismo de sangue. Qual o significado do
batismo de sangue? O batismo de sangue é uma prática social e religiosa relatada por povos
antigos, inclusive no Antigo Testamento da Bíblia 132. A cena do batismo de sangue de Maria teria
132
No livro do Êxodo, capítulo 24, versículos de 3 a 8, há a narração da aliança entre Deus e os homens intermediada
por Moisés, cujo símbolo teria sido o batismo de sangue e sua aspersão no altar, conforme se lê: “Naqueles dias:
3Moisés veio e transmitiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os decretos. O povo respondeu em coro:
'Faremos tudo o que o Senhor nos disse'.4Então Moisés escreveu todas as palavras do Senhor.Levantando-se na
manhã seguinte,ergueu ao pé da montanhaum altar e doze marcos de pedrapelas doze tribos de Israel.5Em seguida,
mandou alguns jovens israelitasoferecer holocaustos e imolar novilhoscomo sacrifíciospacíficos ao Senhor.6Moisés
tomou metade do sangue e o pôs em vasilhas,e derramou a outra metade sobreo altar.7Tomou depois o livro da
aliançae o leu em voz alta ao povo, que respondeu:'Faremos tudo o que oSenhor disse e lhe obedeceremos'.8Moisés,
197
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
sido observada pelo vaqueiro Manoel Velho que perguntou a Justina o que significava “tão
cruentas cerimônias”. A mucama não só esclarece a dúvida do vaqueiro como também elogia
João Ferreira: “Nhã Mariquinha está batizada, disse Justina comprimindo o braço do vaqueiro.
Nosso rei João Ferreira é um grande profeta!” (RE, p. 62).
Observemos as representações de Justina sobre o profeta João Ferreira. Para ela, uma
sebastianista convicta, João Ferreira é “rei” e “grande profeta”. Bem diferentes são as
representações que o narrador faz da mesma personagem, para quem João Ferreira não passava
de um “profeta epilético e louco” que, com o auxílio de Frei Simão, incentivou a prática dos
suicídios por causa de sua crença no reino encantado. Ele queria se casar com Maria e lavar o
“campo sagrado” com sangue de modo que D. Sebastião se desencantasse e, com ele, todas as
benesses do paraíso terreal.
Por último, o narrador recorre a argumentos do determinismo geográfico para
compreender as práticas sociais de Pedra do Reino. Segundo ele, ocorrências de explosões de
fanatismo como a de Pedra do Reino são recorrentes em clima quentes.
Não são raros fatos, semelhantes aos de Pedra Bonita e muito menos impossíveis em um
clima tórrido, equatorial, onde a muita luz e a intensidade do calor produzem a irritação
do sistema nervoso e na formação dos temperamentos propendem sempre para a
exageração das funções mentais.
Não. Os deslumbramentos contínuos; a demasiada dilatação da alma abisma aí o
homem no indefinível e maravilhoso. Surgem então o perdido viajante nas florestas
virgens as Manoas e os El Dourados, e ao pobre sertanejo, ao escravo oprimido, ao
mísero lavrador, desgraçadas atonias, desvairamentos cruéis que os perdem se não os
acode o influxo de uma crença sólida (RE, p. 85 – grifo nosso).
Mais uma vez, porém, encontramos no narrador um eco da postura de Araripe Jr. como
crítico literário. Como podemos inferir do trecho citado anteriormente, todos os desvairamentos
daqueles “sertanejos pobres”, daqueles “escravos oprimidos” e “míseros lavradores” não teriam
ocorrido se lhes acudisse “o influxo de uma crença sólida”. O que seria para o narrador uma
crença sólida? Provavelmente a crença na ciência e no progresso como chaves para minimizar os
determinismos mesológicos e raciais.
3.5.3. Pedro Antônio e sua cobiça
Pedro Antônio é a primeira personagem apresentada em O Reino Encantado. Para fazê-lo o
narrador anuncia a raça a que ele pertence e descreve-o da seguinte maneira:
então, com o sangue separado,aspergiu o povo, dizendo:'Este éo sangue da aliança, que o Senhor fez
convosco,segundo todas estas palavras'”.
198
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
visivelmente oriundo de mamelucos: sem suas faces espalmadas, nariz achamorrado 133 e
olhos gaseos, por baixo de uma carrapinha impenetrável; estampava-se a brutalidade
junta ao cinismo e ao mais desbragado. Trajava à moda dos vaqueiros do sertão: gibão
de couro, perneiras e chapéu de couro de jibóia; e trazia a tiracolo um bacamarte de
boca de sino mais horripilante na aparência que uma cascavel assanhada (RE, p. 05 –
grifo nosso).
Na nossa compreensão, Araripe Jr. caracterizou o profeta Pedro Antônio tomando mais
uma vez como fonte a literatura médica de matriz lombrosiana. No livro O homem criminoso (1887),
Lombroso reuniu textos publicados nas décadas de 1850-1870, nos quais considerava as
características de ordem física como determinantes nas “práticas sociais” do indivíduo, inclusive
na prática de crimes. De acordo com Cesare Lombroso, as relações sociais não produzem
criminosos; o fator preponderante para que o indivíduo praticasse um crime seriam os traços
físicos. Com base nesse princípio, Lombroso descreveu, classificou, estudou e diagnosticou os
vários tipos de criminosos. Sua teoria, sua voz autorizada de cientista, forneceu assim um
instrumento que legitimou práticas ordenadoras da sociedade. No interior do romance, Araripe
Jr. utilizou os conhecimentos médicos em voga para justificar os desvios de conduta de Pedro
Antônio.
Logo no início do romance há um diálogo entre ele e Tibúrcio. Na conversa, Pedro
Antônio declara seu ódio a João Ferreira e afirma categoricamente não acreditar em seus
“embustes”.
[Tibúrcio]- Fala-me então com franqueza. Odeias João Ferreira?
[Pedro Antônio]- Se odeio?... Abomino-o!...
[Tibúrcio]- E crês ainda nos seus embustes?
[Pedro Antônio]-Fingi sempre acreditar. Não entendo de livros como ele,
mas a alma é forte e não tem medos.
[Tibúrcio]- Pois então escarna-me o teu coração... o que é que ambicionas?
Bem o suspeitava! Fala... (RE, p. 06).
A resposta de Pedro Antônio é categórica: ele aspira às riquezas de Pedra do Reino; mas
não as riquezas submersas nas torres, nem as riquezas prescritas na profecia. O que, de fato, ele
queria eram os bens de fortuna furtados ou angariados pelos escravos nas fazendas
circunvizinhas ao arraial, sob a ordem e orientação de João Antônio, o primeiro profeta. Pedro
Antônio supunha que João Ferreira e Frei Simão seriam os guardiões desse tesouro. No entanto,
por ser irmão do primeiro profeta, o responsável pela obtenção daqueles bens de fortuna, Pedro
Antônio se considerava herdeiro do irmão e legítimo dono do tesouro.
133Achamorrado:
a.cha.mor.ra.do adj(a1+chamorro+ado3) 1. Mal aparado (o cabelo). 2. Achatado, chato, grosso (nariz).
3. Injuriado.
199
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Em O Reino Encantado,Pedro Antônio é representado como um profeta cujas práticas
eram movidas pela cobiça. Quando ele, Josefa e Tibúrcio conseguem destronar João Ferreira,
Pedro Antônio é coroado como profeta de Pedra do Reino. Durante a cerimônia de coroação,
Pedro Antônio recebeu o “caricato emblema” animado por um secreto júbilo. Segundo o
narrador:
Pedro Antônio não se cansava de olhar para o cenáculo aonde supunha existirem
acumulados em grande mealheiro todos os despojos de ouro e prata resultantes da
depredação das fazendas ou dos furtos cometidos pelos escravos; e imaginava se
apossar de todas essas riquezas, cogitando já nos meios que empregaria para, de
mansinho, continuar a indústria tão astuciosamente inaugurada pelo irmão (RE, p. 133).
As representações do profeta Pedro Antônio exemplificam que os potentados eram um
inimigo comum a ser combatido. Mas, os membros do grupo dos sebastianistas, a começar pelos
seus líderes, aderiram à crença por motivos de foro íntimo e com interesses muito particulares.
***
No início deste capítulo, afirmamos que as representações das personagens do romance
baseiam-se ora em elementos de matriz naturalista, ora em dados de matriz romântica. Até aqui
evidenciamos que as representações dos profetas de Pedra do Reino foram “calcadas” em
orientações naturalistas.A partir de agora, nos debruçaremos sobre as representações de duas
personagens em cujas composições se sobressai o viés romântico. Trata-se do vaqueiro Manoel
Velho e da sinhazinha Maria.
3.6. Manoel Velho: o vaqueiro nobre, destemido e fiel
Manoel Velho, conforme já sinalizamos no resumo, trabalhava como vaqueiro, na
fazenda Porteiras, de propriedade de Bernardo Vasconcelos e sua família. As representações
dessa personagem são de matriz flagrantemente romântica. Na trama de O Reino Encantado,
Manoel Velho cumpre duas funções distintas e complementares que corroboram nossa assertiva:
primeiro, o vaqueiro fazia as vezes de fiel guardião da família de Bernardo Vasconcelos e da
propriedade, sobretudo nas ocasiões em o fazendeiro se ausentava da Porteiras. Depois, quando
Maria e dona Clemência foram sequestradas, o vaqueiro Manoel Velho não se conformou por ter
falhado na nobre missão de guardar a família , por isso, tomou para si a responsabilidade de
reaver a esposa e a filha do patrão. Tarefa que o vaqueiro só é capaz de levar a cabo e lograr êxito
pela força de um heroísmo romântico que regula a construção da personagem. Em ambas as
200
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
situações, a composição da personagem Manoel Velho é calcada na imaginação e na idealização
românticas, diferentemente das personagens já discutidas que tiveram suas representações
alicerçadas na análise e observação.
Em O Reino Encantado, o narrador anota diversas passagens que revelam a disposição do
vaqueiro Manuel Velho em ser o fiel guardião dos Vasconcelos. Cumpria ao vaqueiro zelar pela
segurança de Maria e de dona Clemência, sobretudo, nas ocasiões em que Bernardo Vasconcelos
precisava se ausentar. O trecho que se segue, narra o momento em que o fazendeiro está se
ausentando da fazenda Porteiras e delega ao vaqueiro a responsabilidade pela sua família:
Manuel Velho, com a solicitude que lhe era peculiar, foi inspecionar a cavalgadura do
amo, e, achando que não havia faltas, aproximou-se para receber as suas últimas ordens.
O fazendeiro acordara taciturno como nunca. Poucas palavras de recomendação lhe
escaparam, apenas referindo-se à mulher e à filha, porém fortes e incisivas (RE, p. 22).
A confiança na fidelidade do vaqueiro estendia-se à dona Clemência. Para a esposa de
Bernardo Vasconcelos, além de leal, ele tinha o vigor físico: “o vaqueiro Manuel Velho é um tigre
de valor, e supre bem a falta de Vasconcelos”. Qualidade esta reafirmada pelo narrador: “Manuel
Velho era de feito corajoso e confiava nos seus recursos. Os malvados estavam, portanto, às
voltas com um adversário poderoso”. Os malvados em questão eram Tibúrcio e Pedro Antônio,
a quem Manuel Velho conseguiu impedir uma primeira tentativa de sequestro que Maria sofreria.
Nessa ocasião, Manuel Velho conseguiu trazer Maria de volta para casa, sã e salva. Feito
que lhe valeu um elogio e um pedido de dona Clemência: “Não te descuides de nós, Manuel.
Sede nosso amparo. Tu bem sabes quanto te estimamos” (RE, p. 25). A reação de Manuel Velho
ao ouvir tamanha prova de confiança é comentada pelo narrador: “Comovido, e ao mesmo
tempo ensoberbecido com aquela pequena vitória, o vaqueiro coçou a cabeça familiarmente, e
pôs-se a olhar a menina que gradualmente se restabelecia do choque que sofrera”. Com sua
resposta à dona Clemência, Manuel Velho deu todas as provas de que merecia a confiança que a
família Vasconcelos lhe devotava: “Assim Deus me ajude, senhora!... estes olhos são sagazes e
estas pernas tão ágeis como os gravetos do veado. Confie no vaqueiro... confie no vaqueiro...”
(RE, p. 25).
A despeito de toda dedicação de Manuel Velho, na noite daquele mesmo dia, a fazenda
das Porteiras foi assaltada, a sede foi completamente queimada. Além do que, Jaime foi
assassinado e Maria e dona Clemência foram sequestradas. No momento em que tudo isso
aconteceu, Manuel Velho não estava na fazenda; antes de se dirigirem para lá, Tibúrcio, Pedro
201
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Antônio e Frei Simão, imobilizaram o vaqueiro porque sabiam que se ele estivesse por perto, não
conseguiriam ter êxito no plano de raptar Maria.
No dia seguinte, Manoel Velho se desesperou ao saber que Maria e dona Clemência
haviam sido sequestradas. Sua reação à notícia é assinalada pelo narrador:
O efeito [da notícia dos acontecimentos em Porteiras] foi terrífico para o mísero
vaqueiro. Estava tudo perdido, tudo aniquilado e àquela hora a fazenda reduzida a
cinzas!...
Mil idéias em tumulto invadiram-lhe o espírito e do meio da voragem só uma coisa
transluzia: era a sua provável culpa, a sua desídia, a sua responsabilidade. O sertanejo
amava seriamente a família de Vasconcellos, e não podia conformar-se com a perda
daquela santa gente (RE, p. 58-59).
O trecho citado ressalta a matriz romântica sob a qual o sertanejo, o vaqueiro Manuel
Velho foi representado: o amor pela família a quem servia e o sentimento de culpa que se
apoderou dele ao saber que havia falhado em sua missão de zelador dos Vasconcelos.
Completando o quadro de composição romântica da personagem, Manoel Velho carreia para si a
responsabilidade de reaver as duas senhoras e entregá-las sãs e salvas ao patrão.
A partir desse trecho de O Reino Encantado, o traço romântico da caracterização de Manuel
Velho se acentua. Ele protagonizará peripécias inimagináveis até recuperar Maria e dona
Clemência. É longa, porém digna de nota a cena em que o vaqueiro Manoel Velho consegue
livrar Maria dos braços de Tibúrcio.
Sem refletir, despediu-se como um raio montanha a baixo e, avizinhando-se do cercado
que o separava da ocara, quis galgá-lo. Mas isto era impossível em razão da altura das
estacas; contornar esse cercado e penetrar pela porteira, mais difícil ainda seria, pois que
Frei Simão e os seus interceptariam a sua passagem. O vaqueiro angustiado seguiu pela
fila de estacas que ia nesta parte terminar na grota a que, mais de uma vez, nos temos
referido; aí parou e olhou para o precipício. Descer por ali a fim de salvar o embaraço e
subir adiante seria tentar a própria morte. Mas Manuel não pensou nisso. A idéia de
evitar uma desgraça dava-lhe forças para mais. Várias aderências de liquens e algumas
raízes descoberta pelas águas se mostravam em alguns pontos do despenhadeiro.
Confiado no vigor do pulso, agarrou-se à raiz que mais à mão lhe ficava e deixou-se
escorregar procurando alcançar a imediata e assim foi descendo até conseguir chegar a
uma saliência da qual a queda já não seria mortal. O vaqueiro realizava um verdadeiro
prodígio de acrobata. Os músculos, entretanto, com o esforço operado se sentiram
enfraquecidos; e ele julgou não poder concluir a sua obra. Ajuize-se da aflição de
Manuel Velho ao ver o tempo se escoar; quis lhe parecer também que vinha desarmado;
felizmente, apalpando o quarto, encontrou ali a faca do uso de Josefa de que,
momentos antes, por cautela, tinha-se apoderado. Esse enleio não podia continuar.
Ficar ali como um estafermo é que não tinha razão de ser. Manuel deixou, outra vez,
escorregar. Faltando-lhe o apoio para modificar a queda, seu corpo foi rolando até
embaixo, onde o recebeu uma moita de mofumbos. Por mais rija que fosse a sua
têmpera, fazer um esforço daqueles, quando ainda não se tinham cicatrizado as feridas
produzidas pela espécie de suplício a que haviam sujeitado no Riachão, era abusar dos
dons da natureza. O vaqueiro, sofrendo esse último choque, tonteou e caiu de bruços.
Por momentos, julgou o esforçado rapaz que ia perder os sentidos; reagindo
poderosamente, porém, contra esse desfalecimento que o queria suplantar, pôs-se de pé
e, cambaleando, aproximou-se do rio que sussurrava embaixo. Inclinou-se, reunindo as
mãos em forma de cuia, meteu-as dentro d’água e banhou a cabeça três ou quatro
vezes. A impressão fria da água foi quanto bastou para lhe desanuviar o cérebro do
202
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
sangue que o invadia impetuoso. Manuel tornou a se erguer e apressou o passo no
intuito de tomar o carreiro nosso conhecido.
Muito tempo fora perdido. Tibúrcio, tendo com a presença de Vasconcelos se
recolhido à tenda, apoderara-se do corpo de Maria, precipitara-se em demanda da grota.
Vendo-o descer impávido e não se lhe ocultando que o enjeitado vinha armado, o
vaqueiro tinha uma inspiração. Nunca havia atacado pessoa alguma de emboscado, mas
o caso exigia. Uma luta naquelas circunstâncias poderia ser fatal à menina. Tibúrcio
inevitavelmente passaria por onde ele estava; Manuel Velho, portanto, antes que fosse
pressentido, agachou-se como um gato atrás de uma pedra e esperou. Não tardou que o
raptor atravessasse e desse-lhe as costas. Neste momento decisivo, levantou-lhe em um
bote e, com mão certeira, cravou a faca até o cabo nas costa do malvado. Varara-lhe o
coração. Tibúrcio vacilou e sentindo-lhe faltarem os pés, volveu-se sobre si.
Reconhecendo-o, em um assomo de ódio, empunhou uma das pistolas e pretendeu
despedaçar o crânio da inofensiva Maria. Os alentos vitais o haviam abandonado. O
tiro se perdeu ao acaso; o braço decaiu flácido e o corpo se estendeu num lago de
sangue (RE, p. 151-152).
Numa atitude que beira o fantástico, Manuel Velho conseguiu adentrar na tenda onde
estava Maria, o aposento mais vigiado do arraial, sem ser visto ou interceptado por nenhum dos
sebastianistas. Como se não bastasse, protagonizou uma sucessão de atos hercúleos: “confiado
no vigor do pulso”, desceu precipício, caiu, quase desmaiou, banhou a cabeça a fim de recobrar
os sentidos, planejou e executou uma emboscada contra Tibúrcio, para, por fim, reaver Maria dos
braços do inimigo e salvar sua vida. Importante registrar que toda a sequência se passou em
tempo recorde, informações que somadas são indicativas da matriz romântica com a qual Araripe
Jr. representou o vaqueiro Manoel Velho, aproximando-o de heróis como Peri, de O Guarani, de
José de Alencar, e Juca do Salto, do conto de Emílio Zaluar, ambos mencionados no capítulo
anterior.
3.7. Maria: à imagem de Nossa Senhora
Maria é personagem central no desenvolvimento do enredo de O Reino Encantado. Tal qual
o vaqueiro Manoel Velho, Araripe Jr. caracteriza Maria segundo orientações românticas: ela é
representada à imagem de Nossa Senhora, virgem, imaculada, mãe de Jesus e dos homens. É a
personagem Justina que explica a Maria o modo com que os sebastianistas se apropriam de sua
figura: “Olha... sinhazinha não acredita, mas é verdade... Toda a gente de Pedra Bonitapensa que
nhã Mariquinha é a imagem de Nossa Senhora...” (RE, p. 40). Em outro trecho Justina reafirma:
Se sinhazinha se afronta, é porque ainda não sabe de tudo; é porque não reparou que
aqui é rainha! Todos acreditam que é a imagem de Nossa Senhora: o nome é o mesmo,
as feições como são de um anjo, não há quem, vendo-a no altar, não caia de joelhos!
Pois não viu como o Santidade obedeceu logo e saiu percebendo que desagradava? As
mulheres do rei não a adoravam, não lhe beijavam os pés como os de uma santa? Sabe
o que significa tudo isto? É que d’agora em diante no reino só se fará o que nhãzinha
desejar. O profeta que fala com os espíritos disse que não há de desencantar a Pedra
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Bonita sem a vontade de uma Maria, e as visões da Casa Santa mostraram-lhe a
sinhazinha como a escolhida do céu. (RE, p. 75).
Ou seja, Maria seria a personificação do belo, da pureza, da castidade, da candura
angelical. Essa representação de Maria, personagem de O Reino Encantado, se coaduna com as
representações de Nossa Senhora desde os primeiros anos da colonização: “uma imagem muito
próxima dos pobres, uma mãe muito humana” (PARKER, 1995, p. 153). Conforme afirma
Parker, para os latino-americanos:
A Virgem é a Mãe que está perto, figura ligada e origem da vida de Deus-Homem e à
origem da vida de todos os homens; protetora diligente e maternal da vida dos homens,
especialmente dos “humildes e dos oprimidos”(...) isto é, de todos aqueles que têm a
vida mais ameaçada e incerta. (PARKER, 1995, p. 153 ).
Para os sebastianistas, a filha de Bernardo Vasconcelos e Clemência seria a protetora e
intercessora ideal, pois estava ali bem próxima deles, atenta às suas necessidades e capaz de sanálas de forma imediata. Diferentemente dos santos, santas e outros intercessores dos quais falavam
os padres católicos, cujas benesses só seriam alcançadas depois da morte, quando estivessem no
paraíso celeste. Ocorre que os sebastianistas buscavam um paraíso aqui mesmo na terra,
conforme afirma a escravizada Justina:
Justina tem tanta fé no que há de acontecer que nestes dias vai morrer, e isto porque
quer. Não morreu Jesus por nós?! o céu se abrirá, Deus Todo Poderoso se há de
mostrar com o Príncipe Encoberto a seu lado e todos nós ressuscitaremos como diz no
credo a Santa Madre Igreja. Que felicidade! Que felicidade! (...)Assim como o céu já se
abriu a outros para mostrar seus mistérios, permitiu Deus que o Encoberto fizesse ver a
mulata o seu reino por vir. Ai! Se sinhazinha pudesse ir agora espiar pela brecha da
pedra encantada! Mas só o rei... ninguém lá entra assim... é preciso estar em graça e ter
jejuado. Se fosse, veria... Ah! Se sinhazinha visse! Que coisa linda, meu Deus! São umas
riquezas! Uns tesouros, uns lagos de prata e ouro que te faz pensar que está sonhando.
Quando Justina olhou pela primeira vez por ali, quase que ficou louca! O que pensa?
Aquelas torres de pedra que estão ali são por dentro torres verdadeiras; tem seus sinos,
suas escadas, seu sineiros, e para baixo mais encontra-se o corpo da igreja, com altares,
tão cheios de brilhantes e pedrarias que doem nos olhos! Que maravilha! As paredes
são forradas de ouro, o chão de prata, tudo iluminado até o teto que parece um céu
aberto... que coisa! Nhãzinha! E os anjos andam por ali com os turíbulos a incensar os
santos, que vivos nos nichos resplandecem como o sol!... (RE, p. 75-76).
Vale anotar que a personagem Maria era devota de Nossa Senhora. Tanto é que, quando
Justina vai ao encontro de Maria, em meio às confusões que envolveram o cerco à fazenda das
Porteiras, encontrou a filha de Vasconcelos, diante de um oratório, rezando à Virgem Maria.
Conta o narrador que, logo que ouviu a aproximação dos assaltantes, Maria correu para o seu
quarto onde havia um pequeno templo dedicado a N. S. da Penha e pôs-se a rezar.
seus piedosos olhos pairaram sob uma imagem da Senhora da Penha, que pendia
encima do seu cândido leito.
204
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Fervorosa atirou-se para aquele lado, e, ajoelhando-se aos pés da rainha imaculada dos
céus, uniu os lábios rubros ao retábulo em uma oração ardente em que dir-se-ia irem
todos os alentos de sua alma angélica. Durou esta prece alguns momentos; por fim
como se o voto tivesse sido exalçado134 pela Virgem Santa, pareceu-lhe que seu coração
palpitava menos, e uma suave tranqüilidade foi aos poucos invadindo-lhe o casto seio
(RE, p. 13).
Por que Araripe Jr. escolheu Nossa Senhora da Penha como a santa da devoção de Maria?
Considerando que Maria ou “Nossa Senhora”, a mãe de Jesus Cristo, é detentora de vários
títulos, por que o romancista optou por ligá-la justamente a Nossa Senhora da Penha? Uma
hipótese é a seguinte: Maria, a filha de Vasconcelos, era considerada em Pedra do Reino como
uma santa, capaz de desencantar as pedras. Por sua vez, segundo o dogma da Igreja Católica,
Nossa Senhora da Penha recebeu esse título também em razão do topos no qual ela teria aparecido
pela primeira vez e obrado milagres, na região de Salamanca, ao norte da Espanha, em local
chamado Penha de França135. Maria, a filha de Vasconcelos, e Nossa Senhora seriam ambas as
“santas da pedra”.
Outra hipótese é que Araripe Jr. tinha a informação de que Nossa Senhora da Penha era
padroeira de Serra Talhada, freguesia a que pertencia o sítio histórico de Pedra do Reino, em
1838.
Conforme já anotamos no resumo, Justina convence Maria a dirigir-se à Pedra do Reino.
Mais uma vez é Justina que expõe à filha de Vasconcelos e de dona Clemência a sua importância
no desfecho do reino encantado de D. Sebastião: “por causa da beleza de sinhazinha é que
soldados do reino vêm a Porteiras. Apóstolo S. João, pela boca do Rei Santidade, disse que
encantamento só desapareceria se nhã Mariquinha fosse por a mão na pedra dos martírios. Ora
como a menina não iria até lá por sua vontade, será preciso matar gente e levá-la à força”(RE, p.
33).
Exaltar.
Existia no norte da Espanha uma serra muito alta e íngreme chamada Penha de França, na província de
Salamanca, na qual o Rei Carlos Magno teria lutado contra os mouros. Por volta de 1434, segundo algumas fontes
históricas, no dia 19 de maio, certo monge francês sonhou com uma imagem de Nossa Senhora que estava enterrada
no topo de escarpada montanha, em razão de uma guerra entre franceses e muçulmanos, na qual os católicos
escondiam suas imagens para não serem destruídas, cercada de luz e acenando para que ele fosse procurá-la. Simão
Vela, assim se chamava o monge, durante cinco anos andou procurando a mencionada serra, até que um dia teve
indicação de sua localização e para lá se dirigiu. Após três dias de intensa caminhada, pela razão de segundo ele
próprio, em seus êxtases ouvir sempre a advertência divina: "Simão, vela e não durma!" (pelo que passou a adotar o
sobrenome de Vela, como ficou conhecido), escalando penhas íngremes, o monge parou para descansar, quando viu
sentada perto dele uma formosa senhora com o filho ao colo que lhe indicou o lugar onde encontraria o que
procurava. Auxiliado por alguns pastores da região, conseguiu achar a imagem que avistara em sonho. Cf.
CONNELL, Janice T. Encontros com Maria: As Aparições de Nossa Senhora. Portugal: Planeta Editora, 2000; Cf. RUGGLES,
Robin. Os Santuários das Aparições. Prior Velho: Paulinas Editora.
205
134
135
Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
Logo depois dessa conversa, Justina conduz Maria à Pedra do Reino. O trajeto de Maria à
Pedra do Reino, sua chegada e permanência no arraial, tudo é representado de acordo com
orientações da estética romântica. É o que se depreende do trecho que se segue:
O seu rapto de Porteiras, o seu trânsito por caminhos lôbregos no meio de uma turba
sinistra, os clarões avistados de longe, a sua chegada a Pedra Bonita, a terrível cerimônia
do batismo, o medonho aspecto dos fanáticos, eram fatos estes que tinham corrido
como um pesadelo, e agora se esvaiam no fundo de sua imaginação, deixando de sua
passagem apenas os lineamentos, como de um quadro que, traçado sobre a lousa, fosse
apagado pela esponja (RE, 73).
Como se lê, a despeito de todas as dificuldades que Maria enfrentou no trajeto até o
arraial, o cenário que lá encontrou, os rituais a que foi submetida, o contato com os
sebastianistas, “figuras esquálidas e sinistras do arraial”, nada disso foi capaz de macular a imagem
“sacrossanta” de Maria. Com isso, o romancista Araripe Jr. inscreve Maria na galeria das heroínas
românticas, que, apesar de passar por todas as adversidades e por toda sorte de perigo, mantémse pura, intacta, virginal e incorruptível. Além do mais, sua vida é salva por meio de uma cena que
beira o “fantástico”, depois de uma luta corporal protagonizada por Tibúrcio e pelo vaqueiro
Manoel Velho, na qual este, a personificação do bem, logra êxito.
Aliás, na intenção de preservar Maria de suas aflições ante a saudade dos pais e de Jaime,
seu noivo, Justina sugere que Frei Simão ofereça o vinho sagrado à menina. De acordo com o
narrador de O Reino Encantado, o vinho sagrado era um composto de jurema, um narcótico
abundantemente encontrado na região, que provocava delírios e alucinações: “A jurema é o
hachich dos indígenas brasileiros; nessa droga residem propriedades admiráveis. Altera as funções
do cérebro e aquele que tem a ventura ou a desventura de ingeri-la no estômago em uma
embriaguez divina; e não era de outra qualidade o vinho sagrado com que o mandingueiro [Frei
Simão] realizava os seus prodígios” (RE, p. 115 – grifo nosso). Sob o efeito do alucinógeno,
Maria delirou como num sonho e todo o arraial de Pedra do Reino se revestiu.
Foi o que aconteceu ao céu:
O céu, de repente, se iluminara e riscos candentes atravessaram-o em várias direções.
Nisto uma listra de um fogo azulado desprendeu-se da imensa abóbada e precipitou-se
sobre os dois grandes monólitos que figuravam as torres da soterrada catedral e estes,
como se foram suscetíveis de inflamar, conflagaram-se instantaneamente, sacudindo de
si chispas metálicas de todas as cores de que se compõe o íris (...) Nuvens douradas,
mas de um dourado suave, como suaves devem ser as vistas das roupagens dos anjos,
circularam o arraial e encerraram em seio os rochedos do encantamento (RE, p. 115).
Como senão bastasse, o som “gutural” foi substituído por um “som divinal de uma
invisível orquestra” (RE, p. 116). Além dessa transmutação, aconteceram outras ainda mais
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
“fantásticas”: “As duas grandes pedras haviam sido substituídas por duas torres verdadeiras, cujos
sinos, a rodopiarem tangidos por mãos desconhecidas, lançavam aos ares sons alegres e festivos”
(RE, p.116). E o narrador continua “Não parou aí a maravilhosa transmutação. As torres se
moveram e, aos bocadinhos, impelidas pelo gênio que seguramente animava toda aquela região
de fadas, foram se alevantando de solo” (RE, p. 116). Desse local, “uma cruz surgiu de sob a
terra; logo depois do frontespício de uma igreja e, por fim, toda a nave de um templo grandioso”
(RE, p. 116).
Somente quando as luzes se acenderam, Maria percebeu que estava no centro de uma
imensa cidade. “Era uma cidade em festa. O povo entulhava as ruas e luzidas cavalgadas e
carruagens atravessavam-nas de um extremo ao outro no meio de inextinguíveis aclamações (...)
A cidade santa era bem o que lhe dizia a mucama. O reino ressurgia para a felicidade de todos e
maior esplendor da glória do príncipe anunciado” (RE, p. 116-117). Nesse momento do delírio,
Maria percebe que um rapaz a chamava:
Voltou-se e viu Jaime esplêndido de alegria, trajando um riquíssimo vestuário como os
antigos cavaleiros. O mancebo lhe pedia que o acompanhasse.
Confusa, Maria olhou para si suspeitando que os seus vestidos não condissessem com
as sedas e veludos que cobriam o noivo gentil... Qual não foi, porém, o seu espanto ao
encontrar-se ainda mais deslumbrante do que ele. Um trajo lindo e roçagante
despenhava-se de seus ombros delicados e, ao colo, pendia-lhe um colar de preço
inestimável.
Cada vez mais maravilhada, a menina que ainda não havia notado que fora arrebatada a
um palácio principesco, deixou-se conduzir pelo seu nobre cavaleiro e, descendo a
majestosa escadaria, entrou em um coche tirado por uma linda parelha de cavalos
luzidios ajaezados de ouro e prata (RE, p. 116).
Segundo os delírios de Maria, a carruagem conduziu Jaime e Maria para uma grande
catedral. “Jaime lhe deu a mão; desceram e entraram no templo com a majestade de dois
príncipes”. Diz o narrador, que não havia palavras com que se exprimisse “a ebriedade que as
riquezas acumuladas sob a abóbada dessa catedral causaram ao coração ingênuo da filha de
Vasconcelos”. Sob o efeito da jurema, Maria se sentia no céu.
Acompanhou o jovem casal, um cortejo de damas e cavaleiros. Depois, para “completar o
espanto”, Maria “viu Vasconcelos e D. Clemência descerem sorrindo no solio [sic] real, daremlhes a mão, fazendo-os subir até os suntuosos tronos” (RE, p. 117).
Maria estava em estado de graça, ao lado dos pais e do amado noivo. Além do que, no seu
delírio, todas as explicações que Justina havia lhe dado, tinham se materializado.
De repente sentiu-se viver naquele corpo esbelto de rainha e, procurando ao lado o
esposo, encontrou Jaime na pessoa do garboso cavaleiro (...) Ali estava toda a sua corte
de Pedra Bonita transformada, fulgente de galas. Justina, as mulheres de João Ferreira,
Frei Simão, todos enfim cujas feições pudera guardar após um contato tão ligeiro,
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Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado
Capítulo 3
haviam sido transportados para aquele mundo maravilhoso e necessariamente
ressurgidos mostravam-se limpos da fealdade anterior, alvos, formosos, como
prometera-lhes o Encoberto (RE, p. 117).
Neste capítulo vimos que a obra O Reino Encantado apresenta uma estrutura narrativa
fracionada entre representações românticas e naturalistas. Conforme procuramos explicar, isto se
deve ao fato de que o romancista Araripe Jr. experimentava uma escrita num momento de
transição, quando os fundamentos do romantismo passam a ser questionados, sobretudo a partir
das Cartas a Cincinato, e quando novos pressupostos da escrita literária, mas vale resssaltar, do
corpus teórico europeu, adotam procedimentos de imaginação, observação e comprovação,
consoante os novos créditos imputados à ciência. Adotar uma postura científica corresponderia a
legitimar novos conhecimentos. É pela ciência que se articulam os discursos jurídicos, médicos,
sanitaristas, mas também o histórico, tanto quanto o literário. É com esse aporte que Araripe Jr.
desenvolve sua crítica, mas também elabora seu romance. As tensões e as representações típicas
do momento em que vivia podem ser explicadas também pela compreensão do autor de que o
campo literário brasileiro deveria ser forjado de acordo com os desafios de formação dos valores
nacionais.
208
Notas Finais
NOTAS FINAIS
Tristão de Alencar Araripe Jr. é autor de mais de uma dezena de romances e foi um dos
fundadores da Academia Brasileira de Letras. A despeito disso, seu viés romancista é
praticamente desconhecido; a historiografia literária evidencia-o apenas como crítico literário.
Embora reconheçamos suas importantes contribuições no campo da crítica, nesta tese,
preferimos sair do lugar-comum e colaborar com a escrita da história do livro e da leitura de
nossas letras, à medida que trouxemos à luz romance e romancista que estão à margem do
cânone. Tomamos a tarefa de sublinhar a produção ficcional de Araripe Jr., elegendo como
objeto de estudo o romance O Reino Encantado: crônica sebastianista (1878). Trata-se de um
romance baseado em um movimento messiânico de cunho sebástico e que, por isso, boa parte de
sua composição é marcada pelo referente histórico.
Esse aspecto de O Reino Encantado sugeriu que, antes de nos debruçar sobre o romance
propriamente dito, cabia-nos recontar a história da Pedra do Reino, conforme os registros da
historiografia. Diante das fontes primárias e da bibliografia que conseguimos reunir, observamos
que as obras que se debruçaram sobre a história da Pedra do Reino são tributárias da obra
Fanatismo religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, de Antônio Áttico de
Sousa Leite. Ao que tudo indica, esta se tornou uma espécie de fonte obrigatória às obras
posteriores que elegeram como tema a história da Pedra do Reino, inclusive esta tese. Um
aspecto comum a essas obras, mas que nós preferimos não repetir, é que elas consideraram
Fanatismo Religioso,de Sousa Leite, como expressão inequívoca da verdade. Amparando-nos na
categoria “representação”, conforme entende Roger Chartier (1990), tentamos discutir ao longo
do primeiro capítulo, os limites e os problemas, bem como os compromissos ideológicos
firmados por Souza Leite, variantes que perpassaram pelas “representações” da história da Pedra
do Reino e de seus atores, quais sejam os potentados e os sebastianistas.
Observamos que as “representações” elaboradas por Antônio Áttico de Sousa Leite estão
grandemente marcadas pelas limitações das fontes utilizadas por ele na composição de sua obra.
Esta foi escrita em 1875, 37 anos depois dos acontecimentos, tendo como fontes o depoimento
prestado por um militar que combateu em Pedra do Reino, em 1874, e em uma visita feita ao
local, também um ano antes da publicação da obra. Outro aspecto que perpassa pelas
“representações” elaboradas por Souza Leite é o seu compromisso de prestar serviço ao IAHGP,
Instituto congênere ao IHGB, que conforme explica o professor Manoel Salgado Guimarães,
nasceu com o objetivo de erigir uma imagem da nação brasileira que, do lado de cá do Atlântico,
representasse uma civilização branca e européia. Tarefa, que nos dizeres de Guimarães, exigiria
209
Notas Finais
“esforços imensos, devido à realidade social brasileira” (1988; 08), cujas dessemelhanças com a
Europa se revelam, sobretudo, pelo amalgamento étnico dos brasileiros.
Imbuído dessa missão, Souza Leite teceu flagrantes elogios aos potentados, a exemplo do
comissário Manoel Pereira da Silva, oriundo de família abastada e detentora de poder político,
fazendeiro e major do Exército; bem como ao Pe. Francisco José Correia de Albuquerque,
representante não apenas da Igreja Católica como também do Estado, uma vez que vigia a
Constituição de 1824 em que estabelecia a lei do padroado.
As representações dos sebastianistas foram regidas pelas mesmas orientações. Aos
caboclos, mestiços e brancos pobres de Pedra do Reino, porém, não cabiam amabilidades; mas
suas “representações” perpassaram por designações nada elogiosas como “horda de “sicários,”
“embusteiros”, “fanáticos”, entre outras. Entretanto, esse ainda não é o ponto. O que chamou a
nossa atenção foram as razões e os critérios cientificistas embutidos nessas classificações.
Um último aspecto da obra de Souza Leite constantemente repetido pelas demais obras,
inclusive no interior de O Reino Encantado, é que os sebastianistas de Pedra do Reino foram
levados a julgamento. No entanto, os documentos primários localizados dão a dimensão da
fragilidade desse dado. O que os documentos deixam transparecer é que, depois da destruição do
arraial, pelas mãos da tropa de Manoel Pereira da Silva, os sebastianistas foram perseguidos e
mortos. O próprio Souza Leite informa que João Ferreira e Pedro Antônio foram mortos no
combate entre sebastianistas e a força comandada por Manoel Pereira da Silva, no sítio histórico
de Pedra do Reino. Já Frei Simão e dois filhos de João Pilé foram mortos entre a Serra Formosa e
Conceição do Piancó (LEITE, 1903, p. 243-4) e João Antônio dos Santos nas imediações de
Xique-Xique, Bahia. (Idem). Os três primeiros, pelas forças perseguidoras do Capitão Simplício
Pereira da Silva e o último, por Roque e Antônio da Cruz, dois dos doze agentes designados pelo
comissário Manoel Pereira da Silva para perseguir os sebastianistas de Pedra do Reino.
Somadas a essas informações, um ofício de Pe. Gonçalves de Lima, vigário de Serra
Talhada, pressupõe que a intenção dos potentados era dar cabo à vida dos sebastianistas: “Neste
instante soubemos que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são
João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”(LIMA, p. 1838).
Conforme já sabemos, por meio de Souza Leite, João Antônio foi assassinado pelos homens de
Manoel Pereira da Silva. De todos os sebastianistas, os documentos primários atestam que apenas
dois deles foram julgados e condenados: Antônio Gonçalo dos Santos, pai de João Antônio,
Pedro Antônio e Josefa; e Antônio Thomás, de quem não conseguimos localizar informações
adicionais.
210
Notas Finais
Enfim, diante das imprecisões que rodeiam a história de Pedra do Reino, concluímos que
ela continua a espera de um historiador que se proponha a peregrinar por arquivos a cata de
novos documentos que subsidiem a elaborar novas “representações” da história da Pedra do
Reino, levando em conta o ponto de vista dos silenciados sebastianistas.
Depois de analisar a obra Fanatismo Religioso, fonte de composição de O Reino Encantado,
passamos a discutir o romance propriamente dito. Para tanto, nos orientamos pelos dizeres de
Eduardo Martins o qual leciona que, uma das formas para se estudar uma obra relegada ao
ostracismo, é subtraí-la do campo das preferências, “inserindo-a no interessante debate literário
travado no momento da sua produção” (1998, p. 08). Foi o que tentamos fazer em relação ao
romance de Araripe Jr. Por isso, nos valemos de sua trajetória intelectual, entre 1868-1878, a fim
de compreender as fontes que Araripe Jr. utilizou para compor suas “representações” da história
da Pedra do Reino e de suas personagens, no discurso literário.
O Reino Encantado foi escrito no final de 1870, uma das décadas de maior efervescência
política, religiosa e cultural. No contexto brasileiro, essas questões eram intimamente vinculadas,
haja vista que discussões travadas na Câmara Legislativa pelo deputado José de Alencar em torno
da Lei do Ventre Livre desembocaram na publicação na imprensa das Cartas a Cincinato. Estas,
como vimos, são consideradas como marco do declínio do Romantismo brasileiro, do qual José
de Alencar é um dos mais eminentes representantes. Até aquele momento, a estética romântica
gozava de relevado prestígio e recebia a adesão e o elogio dos nossos mais ilustres homens de
letras. No entanto, o advento das Cartas a Cincinato mobilizou boa parte da inteligência brasileira
que não se furtou em emitir parecer sobre os “novos” princípios teóricos de composição
ficcional e de crítica literária, defendidas por Franklin Távora, o autor das cartas. A partir delas, os
representantes de nossas letras se dividiram entre os partidários do romantismo versus os adeptos
do realismo/naturalismo, na difícil missão de segmentar princípios, que em certos aspectos,
revelam-se tão tênues.
Exemplo disso foi a postura de Araripe Jr, um dos mais importantes expoentes da
chamada “geração de 1870”. Na qualidade de crítico literário, Araripe Jr. saiu em defesa de José
de Alencar e de suas obras por considerá-las como valorosa expressão de uma poética válida ao
tempo em que foram escritas. Na concepção de Araripe Jr., aguerrido defensor das letras
nacionais, José de Alencar e sua literatura eram o que de melhor se havia produzido pela nascente
literatura brasileira. A despeito de proteger Alencar, Araripe Jr. não desabonou os princípios
estéticos naturalistas defendidos por Franklin Távora, haja vista que, na condição de romancista,
autor de O Reino Encantado, adotou boa parte das orientações realistas/naturalistas na composição
do romance, sem, contudo, abandonar certos aspectos da estética romântica.
211
Notas Finais
Se as contendas em torno das Cartas a Cincinato serviram-lhe de iniciação ante às
novidades literárias, de matriz Positivista, foi na Academia Francesa do Ceará que Araripe Jr. se
familiarizou com elas. No interior daquela agremiação, formada por jovens intelectuais como
Capistrano de Abreu, Raimundo Antônio da Rocha Lima, entre outros, Araripe Jr. passou a
discutir e a acolher de forma muito exigente e criteriosa um “repertório” cientificista de origem
européia do qual se valeu para interpretar a nação e sua a literatura. Porém, entendemos que mais
importante do que a adesão de Araripe Jr. ao coquetel científico vindo do outro lado do
Atlântico, o elemento que preponderou na sua formação intelectual, materializada na sua vasta
produção no campo da literatura, foi seu profundo conhecimento da história pátria e da tradição
literária brasileira.
Assim sendo, fazemos coro a Alonso (2000) e afirmamos que a relação de Araripe Jr. com
o repertório científico europeu não teve caráter meramente “intelectual” ou “imitativo”.
Tampouco nosso autor teve postura diletante ou teórico-filosófica ante ao legado teórico vindo
da Europa. Não. Araripe Jr. se valeu desse repertório com a intenção de interpretar realidade
política, social, econômica e artística brasileiras, em meio à crise pela qual passava o decadente
império brasileiro.
Por último, vimos que as personagens sebastianistas são normalmente representadas a
partir de arquétipos naturalistas. Nessas caracterizações, o romancista Araripe Jr. baseia-se,
sobretudo, na linguagem da medicina psiquiátrica, ao amparar-se nos legados de Cesare
Lombroso. Por sua vez, as personagens do grupo dos potentados e seus prepostos são
representados a partir de arquétipos românticos, caso da inocente sinhazinha Maria e de seu fiel
protetor, o vaqueiro Manoel Velho.
Tensão às vezes revestida de contradição, conforme depreendemos da leitura do romance
O Reino Encantado. Vimos como Araripe Jr. transita entre os paradigmas romântico e naturalista.
Pela trama que envolve os personagens, percebemos que quando se trata do bloco dos
potentados, representantes da hierarquia católica, bem como representantes do Estado, a intriga é
composta por maior estabilidade, as tensões quase que desaparecem prenunciando uma forma de
“representação” da sociedade movida pela harmonia, pelo consenso e pelo apego à legalidade. O
contrário ocorre com os personagens sebastianistas. Aqui o imprevisível predomina. Os sujeitos
são movidos por contradições internas que emergem não apenas da psicologia de cada um, mas
também irrompem de visões de mundo específicas. Todos eles, entretanto, são marcados pelo
conflito, pelo dissenso, pela desarmonia.
A forma de resolução de tal “desordem mental” ou “loucura” entre os sebastianistas é a
violência ritualizada. Esta, por sua vez, é caracterizada como manifestação do mais obtuso
212
Notas Finais
arcaísmo, problema que tinha o clima tórrido como matriz determinante. A raça também seria
um fator degenerativo, sem bem que atenuado por Araripe Jr.
Situado nesse dilema Araripe Jr. inscreve sua visão particular ante as escolas romântica e
naturalista transitando entre preceitos de uma e de outra orientação literária. Ele se serve ainda
das principais contribuições do cientificismo vindos da Europa, valendo-se das novas concepções
acerca dos processos de criação literária, notadamente a imaginação, a observação e a
comprovação.
Enfim, vale reafirmar que o autor nunca esteve preso ao debate meramente estético. Suas
reflexões acerca das formas do romance, a maneira com que escreveu O Reino Encantado indicam
uma característica primordial no romancista. Qual seja o seu compromisso político diante da
missão civilizatória que, no Brasil, passava pela construção das bases nacionais. Para Araripe Jr., a
literatura e o campo literário seriam as formas privilegiadas para a constituição da nação brasileira.
213
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Dissertação de mestrado. UFPB, João Pessoa, 1978
PERIÓDICOS CONSULTADOS
Mosaico- periódico scientífico, litterário e noticioso- (1866)
Correio Pernambucano - (1868)
Gazeta de Notícias (1878)
Jornal do Comercio – Rio de Janeiro(1878)
O Vulgarizador(1878)
FonFon(1878)
Ilustração Brasileira(1878)
Revista Illustrada(1878)
Revista Brasileira(1878)
Diário do Rio de Janeiro(1878)
A Lanterna(1878)
O Torniquete(1878)
A Reforma(1878)
O Economista Brasileiro(1878)
Museu Literário(1878)
Gazeta da Tarde(1878)
223
Referências Bibliográficas
Domingo(1878)
O Besouro(1878)
Iracema(1878)
O Telefone(1878)
Revista Instrutiva(1878)
O Original(1878)
Alvorada(1878)
Diário da Tarde(1878)
Amor ao Progresso(1878)
Zig-Zague(1878)
Fênix Literária(1878)
O Socialista(1878)
Skating-Rink(1878)
Renascença(1878)
Revista Americana(1878)
O Phonógrafo(1878)
O Cearense(1878)
O Colossal(1878)
Caryry(1878)
O Cruzeiro(1878)
O Cacete(1878)
O Combate(1878)
Gazeta do Sertão(1878)
Baturité(1878)
O Retirante(1878)
Pedro II(1878)
DOCUMENTOS MANUSCRITOS
ANRJ- Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Seção de Manuscritos
Série Interior. Correspondências dos Presidentes das Províncias
IJJ9245- 1820 A 1821- Auto de Corpo de Delito- Processo sumário e inquirição sobre o
ajuntamento da Serra do Rodeador, Folhas 35 a 146; folhas 180 a 187; Folhas 252a e 252b e
Folhas 263 a 269.
IJJ9251- 1832 A 1838
IJJ9252- 1839 A 1845
APEJE- Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emereciano
Seção de Manuscritos
PM 04 – 1838 - Correspondência recebida pela Polícia Militar originada de diversos órgãos
públicos
PJ 01 -1838 - Correspondência recebida pelos promotores de Justiça oriunda de diversos órgãos
PC 02- 1835/1840- Correspondência recebida pela Polícia Civil oriunda de diversos órgãos
Pc – 05- 1838- Correspondência procedente das Comarcas destinada ao presidente do presidente
da Província de Pernambuco
JD 01- 1833/1835- Correspondência recebida pelo Presidente da Província de Pernambuco
oriunda dos juízes de direito das comarcas
JM 01- 1833/1836- Correspondência recebida pelo Presidente da Província de Pernambuco
oriunda dos juízes municipais e juízes de órfãos
224
Referências Bibliográficas
RO – 11/1- Jan. de 1838 a ago. de 1838- Correspondência procedente do Presidente da Província
de Pernambuco destinada à Adm. da Justiça, Prefeituras, Comarcas.
RO – 11/2- Ago. de 1838 a maio de 1839- Correspondência procedente do Presidente da
Província de Pernambuco destinada às Comarcas do interior.
RO – 11/3- Abr. de 1839 a nov. de 1839- Correspondência procedente do Presidente da
Província de Pernambuco destinada às Comarcas do interior.
RO – 4/1- 1835/1844- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco
destinada ao Ministro da Justiça
RO – 07/1- 1835/1844- Correspondência procedente do Presidente da Província de
Pernambuco destinada ao Ministro e Secretário dos Negócios
RO – 12/1- Set. de 1838 a fev. de 1839- Correspondência procedente do Presidente da Província
de Pernambuco destinada Repartições, Autoridades civis e militares (miscelânia)
TD – 13- 1822/1841- Correspondência procedente do Tribunal da Relação destinada ao
presidente do presidente da Província de Pernambuco
TD – 15- 1830/1841- Correspondência procedente do Tribunal da Relação destinada ao
presidente do presidente da Província de Pernambuco
Ofício do prefeito Francisco Barbosa Nogueira Paes de Flores, dirigida ao Presidente da
Província de Pernambuco Francisco do Rego Barros comunicando sobre Pedra Bonita. Data: 25
de maio de 1838. Tomo Pc-5, Folhas 251 e 252 , Partes I a IV
Ofício procedente do prefeito da comarca de Flores Francisco Barbosa Nogueira Paes dirigido
ao Presidente da Província Francisco do Rego Barros comunicando a prisão de Francisco José
do Nascimento, Manoel do Nascimento e Geraldo Francisco “desordeiros da Pedra Bonita”.
Data 29 de maio de 1838. Tomo Pc-5, Folha 256
Ofício procedente do prefeito da comarca de Flores Francisco Barbosa Nogueira Paes dirigido
ao Presidente da Província Francisco do Rego Barros comunicando a prisão de Gonçalo José e
Antônio Thomás “desordeiros da facção que teve lugar na Pedra Bonita”. Data 29 de junho de
1838. Tomo Pc-5, Folha 267
Ofício procedente de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque dirigido ao prefeito de
Recife comunicando a condenação a galés perpétua de Gonçalo José e Antônio Thomás
“desordeiros da facção que teve lugar na Pedra Bonita”, oriundos da Comarca de Flores. Data:
27 de agosto de 1838. Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II.
Ofício procedente de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque do dirigido ao prefeito de
Flores comunicando chegada dos ditos condenados a Recife. Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I
e II
Ofício procedente do Presidente da Província de Pernambuco comunicando ao Ministro Imperial
dos Negócios da Guerra os sucessos de Pedra Bonita. Tomo RO-7/1, Folhas 66 a 68, Partes I a
III
Ofício procedente do Palácio do Governo, assinado por Francisco de Paula Cavalcante de
Albuquerque dirigido ao Juiz do Crime de Flores, Manoel dos Passos Baptista pedindo celeridade
no processo, em atenção ao Imperial Aviso de 08 de agosto de 1838. Data: 20 de setembro de
1838. Tomo RO-11/2, Folhas 39 a 40, Partes I e II.
BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO
Castelo Branco, Camilo. Sinais físicos de D. Sebastião e profecias de Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha.
Portugal. S.D. II-30,24,035
CASTRO, João de. Vida de El Rey D. Sebastião. 1602. Lisboa, 151 p. Localizador: I-13,03,019
CARVALHO, Teixeira de. Memoria das cousas del Rey Dom Sebastião. 1670, 375 f., s.l., Localizador:
I-11,02,013
MEMORIAS particulares Da Jornada que fez O Serenissimo Senhor Rey Dom Sebastião de Glorioza
Memoria E Outras que purificão a Sempre Lamentavel perda da sua pessoa E Exercito Nos Campos de Africa.
1722, 235 f., s.a, s.l. Localizador: I-13,03,013
225
Referências Bibliográficas
TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D.
Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos os curiozos q.
são verdadeiramente [Calholeiros].206 f., s.l., s.a., s.d. Localizador: I-13,01,044
CÂMARA DE VEREADORES DO MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DO BELMONTE-PE
Livro de Atas da Câmara Municipal de São José do Belmonte – PE- 1966 e 1967
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA - RIO DE JANEIRO – RJ.
AMLB/APEB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores
Brasileiros.
Documentos AMLB nºs 2187 a 2207, referentes às cartas familiares destinadas ao pai e à mãe.
Documentos AMLB nº 1966: Caderno de Reminiscências
Documentos AMLB nº 1667: Caderno de Reminiscências de Antonieta Araripe, filha de Araripe
Jr. Obs: A primogênita de Araripe Jr. tinha o mesmo nome da esposa de Araripe Jr.
IHGB - INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Coleção Sócios do IHGB sobre Tristão de Alencar Araripe Jr.
Documentos 1 a 3. Pasta 37. Lata 51 D.
1- Proposta de Sócio ao IHGB. 12 de abril de 1893
2- Ofício de Dr. César Augusto Marques encaminhando ao IHGB O Reino Encantado e o Perfil de
José de Alencar,os livros de Araripe Jr. 12 de maio de 1893.
3- Parecer da Comissão de História do IHGB favorável ao ingresso de Araripe Jr. como sócio de
IHGB. 05 de maio de 1893.
Coleção Sócios do IHGB sobre Tristão de Alencar Araripe.
Documentos 1 a 54. Lata 315
1845- Carta de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo de Tristão de Alencar
Araripe.
1847- Documento designando Tristão de Alencar Araripe para Chefe Interino da Polícia de
Fortaleza-CE
1852- Título de nomeação do bacharel Tristão de Alencar Araripe para 2º oficial da Secretaria do
Estado de Negócios da Fazenda.
1852- Portaria designando o oficial Tristão de Alencar para Chefe de Seção.
1852- Documento de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para servir de procurador.
1854-Carta de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para juiz de direito de Bragança- PA.
1856- Nomeação para o cargo de Chefe de Polícia do Espírito Santo.
1859- Cópia de Decreto de Remoção de Tristão de Alencar Araripe do cargo de Chefe de Polícia
da Província do Espírito Santo para a de Pernambuco.
1859-1861- Cópias autênticas de quatro processos criminais instaurados em Pernambuco pelo
então Chefe de Polícia de Pernambuco Tristão de Alencar Araripe. 1861- Documento
designando o Juiz de Direito Tristão de Alencar Araripe para ser da Vara Especial do Comércio
em Recife-PE.
1885- Nesse ano, Tristão de Alencar Araripe é Presidente da Província do Pará.
1890-1891- Título de exoneração de Tristão de Alencar Araripe de ministro da Fazenda do
Interior e Relações Exteriores e nomeação para Membro do Supremo Tribunal Federal.
IAHGP - INSTITUTO ARQUEOLÓGICO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE
PERNAMBUCO
Processos crimes 1838-1839
Estampa ou desenho atribuído ao Padre Francisco José Correia de Albuquerque
MEMORIAL DA JUSTIÇA
Processos cíveis e criminais Comarca de Flores 1838- 1848, Caixa nº 338
226
Referências Bibliográficas
Processos cíveis e criminais do Distrito de Serra Talhada , 1836-1854, Caixa nº 999
227
ANEXOS
TRANSCRIÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA ATIVA DE ARARIPE JR.
Coleção AMLB/APEB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros.
Documentos AMLB nºs 2187 a 2207136
DATA
LOCAL
DESTINATÁRIO
OBS
03/07/1872
Fortaleza
Argentina Alencar
Carta nº 04
15/08/1872
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 05
23/08/1872
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 06/ 07 FOLHAS
20/09/1872
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 07/06 FOLHAS
s/d
31/10/1872
s.l.
Fortaleza
Argentina Alencar
Argentina Alencar
Carta nº 08/ 02 FOLHAS
Carta nº 09/04 FOLHAS
13/11/1872
25/11/1872
17/12/1872
Fortaleza
Fortaleza
Fortaleza
Argentina Alencar
Carta nº 10/ 02 folhas
Carta nº 11/ 02 folhas
Carta nº 12 /04 folhas
08/06/1873
01/01/1873
Fortaleza
Argentina Alencar
04/02/1873
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 21
Carta nº 13/
03 folhas
Carta nº 15/5 folhas
24/04/1873
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 19/11 folhas
03/10/1873
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 27/03 folhas
05/11/1873
Maranguape
Argentina Alencar
Carta nº 30/01 folha
19/05/1874
Fortaleza
Tristão e Argentina Alencar
Carta s/n 03 folhas
30/06/1874
Fortaleza
Tristão e Argentina Alencar
08/10/1874
18/10/1874
Maranguape
Fortaleza
Argentina Alencar
Argentina Alencar e Tristão
de Alencar Araripe
Carta nº 45
/04 folhas
Carta Nº 53/ 03 folhas
Carta Nº 54/05 folhas
06/11/1874
Maranguape
Argentina Alencar e Tristão
de Alencar Araripe
Carta Nº 55/03 folhas
30/12/1874
Serra
de
Maranguape
Argentina Alencar e Tristão
de Alencar Araripe
Carta nº 58/02 folhas
15/10/1876
Rio de Janeiro
Argentina Alencar e Tristão
de Alencar Araripe
Carta s/n 02 folhas número/04 folhas
Argentina Alencar
Todas as cartas são enumeradas pelo próprio Araripe Jr. As cartas de número 08 10, 11, 12 e 21 estão ilegíveis.
Por essa razão, suas transcrições não foram incluídas no anexo.
229
136
CARTA Nº 04
Fortaleza, 03 de julho de 1872.
Carta nº IV
Minha adorada mãe.
Escrevo-lhe hoje como se houvesse acordado de um pesadelo horrível.
V.m. bem me conhece para poder avaliar o que se deveria ter seguido a resolução de 20
de maio próximo passado.
Passei por uma crise tão medonha que supus não resistisse a ela minha razão. Creia
porém que jamais assim teria procedido se não fosse para arrancar-me a uma obsessão cujos
resultados não sei quais seriam enfim.
Estou casado e desde o dia 27 que me julgo em um novo mundo.
Sou feliz e espero que essa felicidade se prolongue indefinitivamente.
Foi além de tudo a amizade que dedico a V.m cês. que me levou a tornar-me um tanto
ingrato. Só o meu coração sabe verdadeiramente as torturas por que passei.
Alivia que me cassasse. Uma impressão fortíssima dominava-me profundamente; fiquei
atordoado e impossibilitado de atender convenientemente os meus deveres de magistrado, vi que
só com a morte dessa impressão poderia de voltar ao estado normal.
E assim parece que foi.
Sinto-me viver e, livre do marasmo que me cercava, começo de novo as aspirar os
prazeres santos da vida.
Eu precisava além de tudo de uma companheira constante que me amparasse nessas
vertigens a que hoje, mais que nunca, reconheço sou sujeito.
Enquanto tive a sua companhia nada sofri. Há dois anos que a abandonei e quantos
desvarios tenho cometido???
Nem todos têm coragem para viver. Eu sentia isso. Felizmente a Providência poupou
V.m cês. ao maior dos desgostos. Por um empurrão desses que não se explicam, coloca-me do
meu lado uma mulher que parece ter sido talhada para minha esposa. Nesta encontro todos os
predicados que convêm a uma boa e virtuosa consorte e ainda mais todos os elementos
necessários para quebrar as agruras de meio gênio selvagem. Alegre, jovial, expansiva e cândida
estou certo de que ela terá força bastante para neutralizar a minha misantropia e os efeitos da
reconcentração de espírito.
À Totônia me entrego como a meu anjo tutelar, à substituta de minha mãe. Compreendame ela e serei o mais feliz dos homens.
O que direi mais a V.m cês. que só ambiciono agora abraçá-la e mostrar-lhes a minha
companheira?
Adeus minha boa e adorada mãe, espero que as lágrimas que derramou por mim sejam a
chuva precursora do mais belo outono.
Abençoe a mim e a Totônia e receba o coração de
Seu filho obediente e amigo
Tristão
230
CARTA Nº 05
Maranguape, 15 de agosto de 1872.
n° V
Minha adorada mãe
Há quanto tempo não falamos em família!
Hoje desejei ter coisas para viver até lá e derrama-lhe o coração a valiosa satisfação. Teria
tanto que a dizer, mil coisas a contar-lhe!
Escrevo-lhe da minha casinha de Maranguape onde estou desde o dia 18 com a Totônia e
uma irmã que a veio acompanhar.
Sinto que se me renovam os alentos. Depois que as vejo horas passadas no isolamento,
parece que vem a mim os prazeres que embriagaram-me durante os primeiros meses de
Maranguape.
Pensa a vm que o conhecimento não me é bastante para trazer-me por uma vez o
repouso e esta alma que em tempos estima se agitar com muito proceloio dos mares! talvez! O
futuro a Deus pertence. E se na vida doméstica não encontrar a cabeça que desejo, muito menos
na de solteiro, onde o vazio de minha alma esteve tão constantemente a subverter-me a razão.
Acompanhemos o curso dos acontecimentos.
Não me esquecerei de dizer-lhe que na minha mente se afasta o axioma antigo de que – o
homem nada é, e as circunstâncias tudo.
Felizes ou infelizes somos porque o tenhamos de ser. A fatalidade é tudo e este mundo
uma asneira.
Estou casado, e isto hoje é o essencial. Julgo-me feliz e não tendo ainda de que me
arrepender.
A Totônia é uma menina digna de todos os elogios. Espirituosa, constantemente alegre,
meiga, dócil, neste passar dias tem revelado tudo o que é e poderá ser.
Estou persuadido que o acaso me protegeu e que em parte nenhuma encontraria uma
companhia tão boa para abrandar a dor e a minha índole selvagem.
Se vm pudesse ver a apreciaria!
Não creia, entretanto, que isto não passa de arrufos meus de lua de mel. Quanto pedido a
Totônia fui apenas levado por uma impressão e muito por uma grande e incalculável necessidade.
Não a conhecia – apenas ouvia saber – vendo as qualidades, atirei-me, portanto a sorte esperando
pela felicidade do dado.
Parece-me que acertei. Era o que eu queria. Tomou-me este meu, logo que estivemos em
intimidade, o seu gênio tão exceto como o ideal que eu aspirei que não trepidei em ___ comigo
maior precipitação venturosa que determinou o passo de semelhante companheira.
A mudança que se apoderou de mim foi tão rápido que não houve quem não o
estranhasse. Tais não porque enchia igual n’alma ______ salutar, estima outras para dissipar os
maus negócios que escureceram a vista interior e fazer-me devolver ao antigo riso e alegria.
Ah! Minha mãe se remeter deveras o quanto sofri em que próximo estive de ___. Deus é
grande!! Hoje sinto a necessidade de ser religioso. As faltas são quase impossíveis de aceitar o
conforto da religião cristã tem de resolver _______.
Compreendo que vm. se aflija ________________________, afigurou e ________ e
quais sentidos _____. Principalmente quando vm sabe que não terei dado o passo que dei se não
exigir-me ___________ que mais provia __________________ negócios deste quilate.
Não foi _________________até dizer que foi para melhor servi-los
Documento ilegível !
E vm estará persuadida ___ que hoje em diante transformará a minha vida. Terei ali uma
forma de viver para inteira segurança.
E vm. não procurará do mesmo modo?
231
Nasceu o filhote que tanto precisava essa alma de tudo da eficaz aplicação da patologia
moral. E é o que procuro, e cautelosamente pretendo conservar sempre em mim.
Agora digo isso sem as suas paginas. Tem razão de saber? Contou-me por carta de
alguém que vm. vem por aqui com o ____ aprouver, o meu será muito o ___ coração o entregará
bastante.
Isto para mim aqui vivo pungente ____ a que me foi suficientemente confirmada.
Última pagina
Ao contrario ali entre no outro dia me o ___ são familiaridades como e para um parente
que entrara de uma curta amizade.
Nunca ambicionei! Talvez se os brasões se por ventura lá me casasse em ___ um dia a
oprimir os contratantes. Pena não ser mais jovem para os brasões nobiliárquicos, mas possuo o
que eu muito aprecio. Há suas mulheres honradas da raça.
Nasceu o filho que precisava, mas além de tudo da ____ aplicação da patologia moral. E é
o que procuro, e cautelosamente pretendo ____ sempre em ____. Agora digo tudo que as suas
lagrimas tem razão de sair? Contou-me por carta ___ (de alguém) que ameaça ____ vem aprovarme _______ revolução e amargura bastantes.
Dito por mim aqui uma pergunta ___ que me foi suficientemente confirmada pela
senhora, mas temia era desencontros de modo de pensar sobre _____;
---19 de agosto---Interrompi a prova por causa das eleições.
Parte noticiosa verá vm. em que papos de aranha me vou achar.
Noivo e com uma mulher muito_________ faca com como não estive eu quando no
Maranguape em sangue e a cidade em guerra.
Felizmente por esta em frio com a Senhora não estou com ele, como estaria por certo se
tal não houvesse.
E se assim fosse quem sabe se alguma pontoria não me enviasse?
Por esta vez nada mais lhe direi: até outro vapor.
Lembranças a todos e aos meninos um abraço. Abençoem vmcês ao filho obediente e
amoroso. Tristão.
232
CARTA Nº 06
Minha boa mãe
n° VI
Maranguape, 23 de agosto de 1872.
Não faz idéia que de incômodos não tenho tido no dia 15 (eleição) para ar.
Processando todos os desordeiros que aqui e na Pacatuba ocorreram as somas
lamentáveis, que já aqui terão chegado aos ouvidos, não tem me sobrado tempo para coçar-me se
quer.
Falando depois, no meio de todas as calúnias, mentiras e aleivosias que sempre surgem
nestas ocasiões, qual não deve ter sido a minha posição.
Reservado por gênio coloquei-me inacessível a todos quer de uma quer de outra
parcialidade. Como juiz (já o disse) pretendo seguir o alvitre do velho da fábula que seguiu o seu
caminho com o filho montado em um burro. Dê no que der, hei de fazer o que quiser e merecer
o que pretenderem outros que eu faça.
O interessante foi que não só um como outros ameaçaram a desconfiar de mim. Tudo
isso longe de inquizinhar-me – honrou-me. Prova era que ia em bom caminho.
Os meus correligionários entendiam que depois da ofensa ao chefe do parido a vingança
ser exemplar. Disse-lhes não; ódios particulares! Não se acastelam por detrás de autoridades: na
espera das minhas atribuições, protegendo a minha causa, o limite é esse. Se quiserem assim,
bem, se não, adeus, reações indignas houvera!
Ao passo que os meus assim aprovam, escreviam os Siberios e mindas em seus jornais
que o Marajainho concordando-se em _______________ de processos saberia desempenhar sua
missão com todo aquele entusiasmo que exige a candidatura de seu pai.
Ri-me de tudo isso e ____ para meu futuro que vale mais do que no espírito primeiros de
negulêteo exagerador.
Tenho consciência de que qualquer outro no meu caso se saiu melhor tendo aqui uso dos
meios das intrigas que polvilham. Minha índole tem permitido do que, entre J. Antunes, sobra ao
meus inimigos a ciminos em terra intranqüila.
Deus me queira proteger-me mais, como tem feito sempre – nisto!
-----5 de setembro----Minha vida tem sido nestes últimos dias uma perfeita correria. De Maranguape para
Pacatuba e de Pacatuba para Maranguape. Esteve a Totônia dois dias na Maranguape enquanto
tratava eu de quitar vila de um inventário.
Hoje chegando continuamos dispormos de doces enleios de paz.
Há mês e quase meio que somos casados e por isso não tenho visto os dias senão em meu
mar de rosas.
Conservo-me de novo a tranquilidade de espírito e será justo visto para honrá-la sem
deixar a glória que tanto almejo.
-----6 de setembro, as 9 da manha-----Passou o vapor antes de ficar esperando – e por isso deixou esta de seguir ao bem
sobredita correspondência de J. Siqueira a quem _____ corriqueira.
Depois de emitir o oficio ___ com singularidade. Já vai minha falta.
-------18 de setembro----Como não se engorgitar agora esse Tuncar morreu ______ estes que tenho sobre este?
233
Este de tal mau ____.
Voltando porem ao nono J. de AL. Não calcula o quanto ____.
Gastando duvidas: ____ guerra que o governo muito terá a recompensar.
234
CARTA Nº 07
Maranguape, 20 de setembro 1872
n° VII
Minha boa mãe,
A despeito de suas recomendações começo hoje por poesia:
Feliz eu, que alcancei das mãos da sorte a mulher o meu Baldo procurou!
Seu peito vou no mundo da fortuna.
Complacente sorrisos ____ caprichar
E grito qualquer bem alto louvaria
Feliz eu, o que alcancei das mãos da sorte
a mulher o meu Baldo procurou!
O que hei de fazer se acho que estas serras postas pintaram maravilhosamente a ventura
que vou gozando ao lado de minha Totônia.
Já lá vão aqui dois meses de casado; e cada vez me convenço que ela é o que me faltava
para completo gozo e satisfação.
Hoje todos os desgostos, todas as decepções (que não são poucas nesse quadro de
mesquinho partido onde estou metido a pesar-me) são impotentes diante das caricias da mulher,
quebram-se todas as amarguras da vida com sua bondade e a sua ternura.
Disse esta que quando tiver tempo hei de escrever um livro sobre a poesia da família.
Afianço-lhe que há de ser coisa mais positiva do que Thiné Martin e Paulo Janet.
Ao termo do dia 8 do corrente.
Acabo de receber neste momento a sua carta de 7 de setembro.
Não sabe que alivio me trouxe, e ao mesmo tempo a pena que tive pelos sofrimentos que
involuntariamente lhe causei.
Sempre esperei que assim sempre fora o seu pesar.
É verdade que o pesar dissipou se espero em Deus, que nunca mais se repita.
Agora tenho comigo toda a paz!
Sim minha mãe, aquela idéia triste, aquela terrível melancolia que tanto me afligiu não terá
mais guarida em minha causa a quero.
Direi de mim só quanto terei que horas de silencio e de _____. Devo-lhe está ____: ___ a
alegria estou certo! Portanto, que parte comprou-se ____________________as horas de
tristezas: não terei ocasião de encontrar esse vazio da alma que este capricho ______. Os meus
____ morreu enfim ____.
A Totônia incumbiu-me de __________!
Ela é tão contente. É tão simples que não me dá tempo a sucumbir.
Continua ela a inspirar-me as confianças que até hoje estive-me inspirado que me
compromete em meu trabalho, somos o mais feliz dos casais, _____.
Essas paginas, minha mãe, foram como ____ de ___.
Quantas não são as lagrimas de uma mãe!
Com certeza e quando pede a Deus por seu filho e nora, suas lagrimas são ______ para
transforma-se _______.
Deixe que aqui aquele poema que muito prazer tive em escrever sobre minhas lagrimas.
Quanto não há nele de melindre!
Vm. é inimiga da poesia: meus perdões, mas a poesia está em mim.
235
A história de Eloá é a seguinte:
Esperando Cristo na cruz pendeu-lhe nas pálpebras sovinas uma lágrima brilhante. Esta
lágrima ______. Os anjos que não puderam ficar-se _______ dos céus desceram ao Calvário.
Adoraram o senhor e depositaram a lagrima que despendia dos olhos do redentor no supremo
momento da angustia deste de uma a uma se perfazendo a arrebentação que para gloria toma.
Aquela lágrima não era digna de cair sobre os outros.
Desta lagrima gerou esse meu devaneio que chamou-se Eloá que em ______ (se não me
engano) significa – filho da angustia.
Eloá foi a mais perfeita das criaturas. Era, pois, o fruto da mais desonrosa das ____ volta
para o filho de Deus.
O seu devia está assinado.
Deus não choraria senão para desgraça do mais formoso dos anjos que se ____ Lúcifer!
A Eloá ___________. O ____ pelo mais desgraçado a dona da desgraça verdadeira invadiu o seu
coração!
Pensou que Divino _____ outro ___ apesar de enfermo para compartilhar de sua sorte. E
nem tanto enfim ficou de conquistar no profundo.
O gênio não mantém influxo falador. O amor começa sua fala de nenhuma ação.
Alegram-se os anjos! Elogios triunfantes!
Redime-se! Satanás e Deus assumem a sua primeira essência.
E a lágrima que se transformara em anjo volta à fonte de onde emanaram todas as graças
e perfeições.
Eis a história de Eloá!
A jus, pois, o que as ações conseguiram.
------ 21, às 8 da manhã---Enquanto não me chegam a parte e os trabalhos de conveniência.
Que falta irreparável cometi eu não antecedendo o recebimento da camisa bordada e mais
objetos que vieram pelo Trajano.
Perdoe. Se eu estava tão engolfado nos negócios do casamento!
Vinha a preciosa camisa para a abertura da Assembléia. Pois sabia que (por vontade de
Deus) a sorte que servisse para o ato mais importante. Serviu para o meu casamento, para a
abertura da minha felicidade.
Não é a primeira coincidência que se dá em meu casamento. Já foi no dia dos anos da
Totônia que desembarquei no Ceará; 16 de fevereiro, quando ela completava justamente 18 anos!
E então?
Não posso me
Letra ilegível
Os extraordinários serviram para ______ direto que contrair pouco tive que
desempenhar.
------- 22, às 10 da manhã (domingo)
Fala-me vm. em ir para o Rio quando estiver passado o quatriênio. E a propósito disto
____ a sua incrível repugnância pela magistratura. Mas eu não sei o que lhe diga: sinto-me mais
inclinado a essa correria do a qualquer outra.
Desde que for possível conseguir o juizado do direito capital; porque não o procurarei.
Enfim o tempo será o árbitro de todas essas coisas.
-----27, às oito da noite ----Hoje completei doze meses de casado.
236
A vida para mim vai agora tão suave! A minha Totônia dá-me todos os prazeres e
satisfações de espírito. Deus ajude a concluir a obra que incumbiu-me.
Como me sinto preso a vida! Vejo-lhe os primeiros sintomas de maternidade, e isto é o
que basta para encher-me do mais vivo sentimento de humanidade.
Quando o homem sente-a prolonga-se um ser antes que a deu a sua vida deseje residir a
minha futura prole.
E não há sentimento tão fecundo como este.
Viver para os filhos. São estas as verdadeiras raízes que procederá na terra.
Aqui termino por esta vez!
Adeus minha boa mãe. Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioio, Arthur,
Nininha e Dedé. Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso.
P.S.
Porque Tio Janjão não me escreveu?
237
CARTA Nº 09
Fortaleza, 31 de outubro de 1872
Foi engano. Não era o vapor do norte e sim o inglês. Continuemos na palestra do
costume.
Como vai Sinhazinha? Há tanto tempo que não me escreve. Estará também zangada
comigo?
Disse o F. Valino do Amaral que não só ele como vm. estavam maldito _______. Ao
menos isto!
O que é preciso agora é tratar de criá-la. Como o interesse público, é provável que muito
breve lhe apareça algum bacharel que deseje ser deputado ao tenha aspirações a ministro.
O grande Yoyo como vai? Qual será o seu destino? Arthur? Este creio que desprezará os
instrumentos de família.
----novembro – 2 -----Dobram-se os sinos. Grande dia triste é este de finados.
Não sei porque me punge hoje sina tão grande saudade!
Não é pelos mortos por certo senão pelos vivos doentes.
Sabe com que distrai a toda manhã? Escrevendo um folhetim fúnebre sobre o Pompeu,
no qual o apresenta a figura de um précito sendo mendigado pela sombra do infeliz sargento que
morreu no dia 7 de setembro.
O padre há de reconhecer que são ________ de parecer.
Os rendimentos vão dando até o dia 19.
A Totônia é muito econômica e isto é um grande consolo para a pobreza.
Quanto ao Ninho de beija-flor soube que me falha, para dizer-lhe que a parte ___.
O Moreira do Constituição está tirando um livro umas cartas núpcias ____ impediu de
mandar-lhe o dito volume para satisfazer a curiosidade dos leitores que atendo.
O vapor acaba de atingir e por isso que deixo de estender-me.
Lembranças ao Gomes Rosa e a Chiquinha. Outras tantas a Sinhazinha, Yôyo, Arthur,
Nininha e Desidéria.
Adeus minha boa mãe, abençoe-me o coração de seu filho obediente e amoroso.
Tristão.
P. S.
Porque razão não me tem escrito o tio Janjão, já não é meu amigo? Pergunte-lhe isso.
238
CARTA Nº 13
Fortaleza, 1 de janeiro de 1873
n° XIII
Minha boa mãe,
Eu – nos entrados do novo ano! O que será para nós este – 1873 – tão risonho e
prazenteiro?
Quanto a mim não almejo senão que reproduza os prazeres reais que me trouxe o finado
72, tão cheio de peripécias e profundas resoluções na minha vida.
Afugentada lembrança de rápidos eclipses que se me afigurou a desventura diante dos
olhos de uma imaginação truncada, posso dizer que foi o mês mais feliz da minha vida, porque
justamente nele conquistei a felicidade do ser.
A Totonia trouxe-me a quietude. Com ela sou verdadeiramente feliz.
Todos os dissabores que me causam as cenas do mundo exterior dissipam-se em um
instante a um simples aceno seu.
As caricias da mulher que estimamos não há pesar que possa resistir.
Queira Deus que corram-me os anos como me há corrido os últimos meses.
-----3----Agora mesmo remeto ao João Paulo um pacote contendo o vestido de casamento da
Totônia.
Mando-o para vês se é possível aproveitá-lo tingindo-se.
É por principio de economia que o faço.
Se achar que fica bom, mande-o fazer; se não, devolva-o.
-------7-------Sou obrigado a partir agora mesmo para Maranguape! Vou afinal reassumir o exercício de
juiz municipal.
Não levo Totônia; e só virei buscá-la depois da festa de S. Sebastião.
Combinamos isso por economia; porque estivemos certos de que a nova casinha seria o
alvo da filopensa.
Por via das dúvidas...
Não sei se hoje chegará o vapor; em todo caso aqui deixo essa para seguir, e ainda por
esta vez deixo de extender-me por ter andado metido em festas.
Peço-lhe que tenha toda atenção com o negocio de J. Antunes.
Adeus, minha boa mãe, Totônia muito se lhe recomenda.
Lembranças a Sinhazinha e meus meninos; e vm com meu pai queiram abençoar o filho
obediente e amoroso. Tristão.
239
CARTA Nº 15
Maranguape, 4 de fevereiro de 1873
n° XV
Minha mãe,
Escrevendo-lhe agora só Deus sabe que saltos são os meus.
Não cessam as folhas de repetir que o Rio está infectado pela bexiga e febre amarela. E é
em um foco de moléstia como este que se acham todos os meus!
Quando vir-me a consoladora notícia de que todos estes males tem cessado?
Como irá a Senhora dos seus incômodos? Naturalmente, se não se agravaram já terá
seguido para o Espírito Santo.
Por meu artigo transcrito aqui no Constituição vi que o J. Thomé não foi mal recebido na
história. Queira Deus que a sua administração não encontre tropeços e que os seus sonhos
d’ouro sejam coroados com o melhor êxito.
------16-----Só hoje recebi cartas e jornais; entretanto desde 12 que estavam no correio.
Graças a Providencia estão todos livres de perigo.
Senhora gorda e longe de ver realizadas as suposições destes médicos, que crêem em tudo
adivinhar.
Vm., porém, ainda sofre conseqüências de uma constipação. Como, porém, tem uma
organização de ferro estou tranquilo; e espero na sua próxima carta saber que tudo vai em paz,
dissipadas as mágoas que nos perseguem.
Nesta carta de meu pai vejo, o que pelos jornais daqui já sabia.
Afinal descobriu-se a hipoteca como diz a Reforma! Creio que já me aborrecia tanto
esperar.
Em todo o caso está meu pai com assento no Parlamento.
Pág 05
Me roubou aos seus carinhos maternais, ao seu extremo, mais foi ao contrário; a Totônia
restitui-me....
São passados sete meses casado; e para provar do alqueire de sal pode se dizer feita. O
coração não me iludiu nesta vez. Quanto mais se _____ os dias maiores encantos vou
encontrando no estado de casado.
Que prazer não encontro em vê-la dirigir a minha casinha de Maranguape! É uma menina:
ainda parece brincar com bonecas. Distrai-me, acaricia-me, estima-me muito.... muito, e eu a
razão porque sinto hoje a vida tão cheia.
Vm., repito, deve estimá-la muito. A minha Totônia é um anjo.
------1 de março----Chegou há três dia o vapor do sul, e ainda hoje não recebi cartas. Os meus
correspondentes da cidade tem se demorado a aborrecer.
Ignoro se vm recebeu o vestido, que remeti pelo J. Paulo Gomes de Mattos, para tingirse.
Até a presente data não soube que destino lhe terá dado o celebre ex juiz de Maranguape.
240
Entretanto devo dizer que em relação a certos negócios a respeito dos quais lhe falei em
cartas anteriores.
Ansioso tenho esperado por uma resposta sobre o negocio de João Antunes.
O mesmo sobre a melhora de reforma do major Phoreira, cujos papeis foram pelo
Paulino para serem entregues ao meu pai.
Aqui contou, por pessoa de lá chegada a pouco, que a questão já estava resolvida na
secretaria da guerra, e dito mesmo agora dou notícia para que, caso meu pai não tenha tratado
disto, se empenhe a fim de obter a solução desejada, escrevendo-me sobre esse ponto.
Se houver qualquer despesa a fazer, pede meu sogro que disto meu lhe venha uma nota,
para que ele mande as ordens necessárias a fim de ser essa despesa satisfeita.
-----5 -----Ainda estou sem carta e, portanto, não as respondo.
O vapor deve passar a qualquer dia deste, e como não desejo que de novo siga sem
noticias minhas, vou remeter a correspondência para a capital.
Por hoje aqui fico.
Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioiô, Arthur, Nininha e Dedé.
Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso.
Pagina aparentemente solta.
Não calcula o quanto os justos _________. Esta familiazinha, que aqui, por causa da
muita importância que o Cunha lhe prodigaliza, já ia-se levantando com pretensão a tudo querer e
a bater o pé, merecia um mimo; e este agora foi magnífico.
O que poderá fazer o Thel. Feru.?
Entretanto que o tal engenheiro direi muitos ares senhoris a esta gentezinha, cujas asas
deviam ser cortadas, a menos que não quisermos que para o futuro fossem o novo Cabrion.
Não posso esquecer-me do que fez o gentinha dos óculos na Assembléia provincial.
Minha avó só faltou a morrer de desgostos, vendo resolvido as custas do meu avô e os
próprios amigos aprovaram a sua pretensão como se se tratou de uma imoralidade.
Graças a Deus o Maciel tudo desmentiu.
Patife!
-------27 do mesmo mês-----Não seguiu está pelo vapor de 22 por descuido meu.
Quando dei acordo de mim já não era mais possível remetê-la a capital.
Por aqui vamos sem novidade, a Totonia está muito pesada, mas felizmente sem
incômodos que a faça sair do estado normal. Sempre alegre! Sempre jovial!
Decididamente era a mulher carinhosa que convinha para abrandar os rigores do meu
gênio. Foi Deus que a trouxe pela mão para arrancar-me ao triste estado, que tanto me
acabrunhava.
Vm. deverá querer-lhe muito bem. Dirá naturalmente que ela
241
CARTA Nº 19
Obs: documento incompleto.
Maranguape, 24 de abril de 1873
n° XIX
Minha boa mãe,
Começo a escrever-lhe um pouco triste. A Totônia está na cidade, de rude a cada
momento espero receber o chamado para assistir ao parto.
Só e isolado hoje sinto a urgência tanto mais quanto sei que ela sofre.
O ano passado, por esse tempo, bem diversos eram os meus pensamentos!
Como de um momento para outro as coisas se mudam!
Era justamente por essa época que pela primeira vez a via e começava a experimentar
seus atrativos.
Hoje casado e sobressaltado pelo destino de um filho que está a nascer!
Já lá vão nove meses e tanto sempre só.
A Totônia vai atravessando. Sábado pretendo ir abraçá-la.
Todos os dias recebo queixas pela ingratidão com que procedo passando tantos dias
ausentes.
Que se há de fazer?
Os atoleiros são diabólicos, e os cavalos mal suportam viagem assim.
Para bater esse caminho de Maranguape todos os dias, também não é possível. De modo
que não há remédio senão ir passando por ingrato; além de que já me fica bem representar o
papel daquele celebre Leandro que atravessava a nado todas as noites o Heleponto para ver a sua
idolatrada Hera.
-----30----Recebi sua cartinha datada de 14 do corrente em resposta aos meus queixumes de outro
dia.
Tudo está passado: as suas suaves consolações dissiparam todas.
Falta vm na remessa do vestido e meus objetos pelo José Mendes. Ainda não chegaram,
mas espero tê-los até o dia 5 que é quando chega o carteiro.
Diz-me também que o J. Thomé, Senhora e Sinhazinha vão sem novidades.
Felizmente Deus nos ajuda.
Por uma correspondência que li no Jornal do Comércio vejo que o novo presidente já toma
suas descomposturas bem sofríveis.
Eu quisera assistir as impressões primeiras comanda em sua animo impetuoso (como nós
sabemos) por estes cânticos estúpidos.
Quem nunca os experimentou há de sentir muito.
Eu, como já estou quilombado, posso falar de cadeira.
Entretanto descobri _____ de viver perfeitamente e como quero viver no meio da gente
mais intrigante que o seu cobre.
Descompõem-me, insultam-me pelos jornais por atos que nunca pratiquei (senão por
ceder-vos quem sois), ridicularizam-me; mas tudo isso não passa para mim de objeto de distração.
Eles sabem que eu não me importo; e, como convivo particularmente com todos, todos também
pelo mesmo modo fazem-me justiça ao caráter.
Só quem não me gosta e me destrata pelas calçadas é o Augusto Roy (feijão-careta) irmão
do Cassiano. A história é geralmente engraçada e me bem dado como para umas boas
gargalhadas.
242
Ainda ontem o biltre me abraçara! Mas como aconteceu ter de dar uma sentença contra
seus interesses... aqui d’ el – rei! De um momento para outro declarou guerra a tudo quanto era
Alencar e a tudo que era Moreira.
Indo outro dia à capital, encontrei-me com essa farsa, o que muito me deu para rir.
O muito engraçado, porém, é que o tal sujeito, armador dos papeis comprobatórios do seu
direito, anda como um possesso por todas as lojas e roda calçadas vociferando contra mim e
provando que sou venal.
Note-se a estupidez: a sentença foi dada a favor de um pobre diabo! Mas vejamos as
razões do _____. Diz ele que eu recebi uma carta intercedendo por sua causa, carta essa de
pessoa a quem não devia faltar (era de minha Avó). Mas, continua o bruto, para mostrar a minha
independência e que não fazia caso dos outros, julguei, por desaforo, contra todo o direito! Digo
sou venal!!!
Isto tem rendido bastante.
E todos riem do bobo, o que ainda muito o desconserta e o enfurece contra mim.
É preciso saber que não tive hoje ocasião de encontrá-lo.
Não obstante, o Bruto tirou-se de seu cuidado e dirigiu à diretoria do Clube num oficio
despedindo-se da sociedade, declarando na mesma peça que isto fazia para não se encontrar com
o Dr. Percevejo.
Ah! Ah! Ah!
243
CARTA Nº 27
Maranguape, 3 de outubro de 1873
n° XXVII
Minha boa mãe,
Tenho presente a carta de vm com data de 4 de setembro e a de meu pai com data de 14
do mesmo mês, e muito me alegrei sabendo que todos gozam saúde.
Vejo todos quando dizem sobre os negócios políticos desta terra e especialmente da
---3---Nada de vapor que se esperava.
A Totônia tem sofrido muito dos antigos. Não obstante antes sempre saímos, fomos tirar
o retrato.
O fotógrafo conclui até a saída do Paulinho, irão sem falta.
---5---Hoje tomou posse o Esmerino – 2ª vice presidente.
É amigo do Jm. Ribeiro.
O que surgirá dali?
O Cunha, por certo, fez muito mal em não tomar as rédeas do governo...
Rezo a Deus que não se arrependa.
Sabe vm quem roga todos os dias na Assembléia? Não é capaz de adivinhar...
É o meu amigo Miguel Xavier – aquele desavergonhado, que teve o arrojo de escrever
para aqui, dizem do que é o ser um eleito deputado era um vilipêndio para a província.
Estou _____. A primeira ocasião sigo-lhe o ____.
Os noivos trarão muitas bênçãos!
O proceder não parece ___ o rapaz o despeito das repugnâncias de certo sujeito.
Ora lá vê a obra!
TRECHO RECORTADO DE UM JORNAL QUE O AUTOR DA CARTA COLOU
NO PAPEL
Nem tudo que reluz é ouro. O sistema das falsificações está tão desenvolvido. que difícil é
hoje distinguir o brilhante pingo de água.
A fama com sua tuba e cem bocas havia apregoado urbe et orbi a inteligência
transcendente, a ilustração consumada do juiz municipal de Maranguape. Um momento somente
e tudo foi-se como o fumo que o vento leva, ao como bolha de sabão.
Na sessão 25 do passado ilustre neto do ex-presidente da republica do Equador fez o seu
debut. Pediu a palavra. Movimentos gerais de atenção. Ia falar o beija-flor do Sr. Sombra.
Puxou do lenço, o suor corria-lhe em bicas, três vezes limpou o rosto, 4 endireitou o
colarinho e outras tantas cumprimentou o auditório. Batendo naquele rotundo crânio, pareceu
dizer com Andre Chanier – aqui por força há alguma coisa. E havia com certeza .... miolos ....
Sr. Presidente – eu pedi a palavra não sei para que (signae de supreza). Sim é verdade, tratase dos grandes melhoramentos morais e materiais que podem trazer a esta casa a nomeação de
um amanuense para sua secretaria (sinais pronunciados de desaprovação). Mas Sr. Presidente, o
nobre deputado não compreendeu bem o sentido ampliado da palavra. Eu vou contar-vos uma
história a propósito. Era no tempo em que os bichos falavam...
Temos uma história de trancoso.
(Basta, basta gritam da galeria, o padre Nogueira puxa pela aba do palitot até rompê-lo.)
244
Mas Sr. Presidente.... A minha perturbação é tamanha que não sei onde estou.
- Aqui na assembléia, respondeu o Samuel, flauteando-o.
Sim, como dizia, naquelas águas cristalinas da poética Pirapora...
- o nobre deputado está divagando, diz-lhe o Soares.
Os Srs me transtornam a cabeça. Como dizia, numa frondosa e assombreada oiticica
apanhei um ninho de beija-flor...
- Não queremos ouvir folhetins, viemos aqui legislar, grita-lhe de um lado o Theodoro.
Mas Sr. Presidente... esta bem, estou enlanguecido, não posso continuar; peço desculpa a
esta ilustre assembléia e desisto.
- O termo não é parlamentar, exclama o Garcia.
Quero dizer cedo da palavra e... sentou-se lavado em suores e com algidez do cadáver.
- Morreu doudo o percevejo, gritou muito cheio de si o Coelho, que há muito anda
despeitado com a menina dos olhos do Sr. Sombra, por causa desse ares de sapiência de que goza.
FIM DO TECHO DO JORNAL
É do cearense esta bela peça de literatura!
Mas o Miguel Thomas Pompeu tem amargado bastante, tenho-lhe dito por sua causa.
245
CARTA Nº 30
Maranguape, 5 de novembro de 1873
n° XXX
Minha adorada mãe,
Tenho diante dos olhos a sua carta de 31 de setembro e muito me alegrei em saber que
todos gozam saúde.
Diz-me vm que supõe está a Totônia assim tão magra conseqüência da amamentação.
Enganou-se; pois, tendo-lhe pouco leite, logo alugamos uma ama que muito tem ajudado na
criação da Inhá.
Não obstante hoje, não sei se devido aos ares da praia, onde estamos, acha-se ela um
pouco melhor e espero que em breve tenha recuperado sua antiga robustez a despeito do filho
que já lhe estremeceu nas suas entranhas.
Com máximo prazer recebi a noticia do casamento de Sinhazinha. Não conheço o noivo,
há menos que não seja um tal Mizael que se formou um ano depois de mim em Perúbio. O
enlace seja por Deus falado.
Por esta vez não peço int. estender-me por falta de tempo. Totônia muito lhe se
recomenda a vm e pede a sua benção. Do filho amoroso e obediente. Tristão.
246
CARTA S/N
Fortaleza, 19 de maio de 1874
n° S/N
Meu pai e minha mãe,
Acho-me hoje na capital para onde vim desde ontem com a Totônia, que espera a cada
momento dar a luz. Veio isto em má ocasião; porquanto, estando o júri de Pacatuba marcado
para breve, ao qual tinha de presidir em virtude do impedimento do Américo, que funciona na
Relação, vem isso coincidir com a época do parto.
Felizmente vamos todos sem novidades, e o mesmo desejamos que por lá aconteça.
De minha mãe não ____(doc extravidado) alguma pelo vapor, que aqui chegou a 13 do
corrente; de meu pai tenho presente uma de 25 de abril p. p.
Fiquei muito alegre com o retrato do meu pai; não me escapando à apreciação o
crescimento da barba e o suntuoso vestuário de desembargador, que lhe dá alguma semelhança
com os antigos Doges de Veneza. De tudo, porém, o que muito me ______ foi a Consolidação
das Leis do Proc. Crim. que não canso de apreciar. O trabalho inclina-me as medidas;
principalmente na 1ª parte, cuja matéria dispensa em avisos e direito para mim, que tenha a mais
desgraçada das memórias, um vert. cavalo de batalha.
Sobre a sétima ___ (doc. Extraviado) nada direi por exceder todos os elogios a ___ (doc.
Extraviado) estudarei esse trabalho e darei sobre esse meu inútil parecer.
Minha mãe muito se deve gloriar com estes e outros triunfos. Esses chegaram tarde; mas
chegaram seguros e esplendidos.
Na minha conta passada mostrei a conveniência da vinda de meu pai a esta província; em
sua carta sobneguei em voga desejo nesse sentido.
Agora mais do que nunca insisti sobre esse ponto.
Pelo Paulino remeto 18 ex. do Ninho de beija-flor para serem distribuídos por várias
pessoas. Esqueci-me, entretanto, de designar um para ser ofertado a S. M. I. Aqui não há
encadernador que preste, por isso não mandei preparar o exemplar para remetê-lo. Meu ___
(doc. Extraviado) se encarregará de mandar preparar em minhas condições para fazê-lo presente
ao nosso Joi diant, ___ (doc extraviado) das letras.
Junto encontraram uma tira de jornal contendo uma apreciação que aqui foi publicada
sobre o meu livro. O autor é um caboclo bárbaro, selvagem na extensão da palavra. Meu pai o
conheceu de Pernambuco, para onde o mesmo foi-lhe recomendado. Por viver num mundo
aéreo não conseguiu formar-se; voltou para Maranguape e ali vive hoje a vender aguardente e a
devora quantos livros encontrar.
O físico desta criatura é monstruoso; quanto ao espírito, não ___ (doc. Extraviado) que
em tão tenra idade siga em um ____ (doc extraviado) idéia tão elegido.
Reputo-o um gênio, tendência tão pronunciada assim para as ciências abstratas ainda não
vi.
Em filosofia é positivista ______; em religião – ateu.
Este rapaz é filho do João Honório de Alves, homem de têmpera antiga, que tem medo
em formá-lo por não criar um inimigo da Santa Madre Igreja e do Santíssimo padre.
Desejo que esse escrito seja transcrito ali na Corte em alguns jornais, e se for possível no
Jornal do Comércio.
Por esta vez, não me prolongarei mais. Falta de tempo. Reservo-me para o futuro vapor.
Abençoem vmcês ao filho obediente e amoroso. Tristão.
P.S.
Soube pelo Pedrinho que Sinhazinha muito tem remetido a trilhar os meus romances.
Peço-lhe, portanto, que me mande dizer onde formou-se o escrito da crítica. (doc. Extraviado).
247
CARTA Nº 45
Fortaleza, 30 de junho de 1874
n° XLV
Meu pai e minha mãe,
Admiro que vmcês, escrevendo-me com data de 19 do corrente só acusarem como
recebida carta minha de 19 de maio (XLII), e se tenham esquecido da de 31 do mesmo mês
(XLIII), na qual até remetia uma tira da Constituição, em que foi publicada uma apreciação sobre
o Ninho de beija-flor.
Será possível que essa carta se tenha desencaminhado?
Acho bom, minha mãe, que vm. tenha sempre o cuidado de verificar a numeração.
Se tudo quanto se publicou ali acerca do meu livro. Estas coisas muito me lisonjearam –
até mesmo a lembrança do tal leitor mortificado, que se não for o Taunay, não atribuirei a outro
senão ao Machado de Assis, que me vota simpatia mortal, desde que um dia, no 16 de julho [Jornal
16 de Julho. Grifo nosso] ousei dizer que as suas poesias não tinham originalidade.
Seja como for, tudo é o mesmo. Que sua obra faça carreira – é o meu mais ardente
desejo.
O vapor do Sul acaba de chegar, e, apenas tenho lido as cartas a que respondo, atira-o da
morte: de sorte que sou obrigado a escrever as carreiras.
Os trabalhos de Au. Pror. começam amanhã; devo portanto demorar-me estes dois meses
por aqui.
A Totônia, que deve acabar nestes dias o resguardo, vai sem alteração, assim como o
pequerrucho, cujo o nome ainda não sei qual seja.
A Inhá cada vez mais esperta; - é a Maroquinha sem tirar nem pôr, não no tipo, mas nas
travessuras e repenses.
Não sei o que diga mais senão que desejo a vmcês muita saúde e felicidade.
Lembranças à Sinhazinha, Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vmcês a Totônia e os
netinhos e ao filho obediente e amoroso.
Tristão.
P.S.
Peço a vmcês que leiam o incluso discurso, que pronunciei na Pacatuba. Se acharem valer
a pena, façam-no publicar na Nação. Trabalhei na transcrição do artigo do João Capistrano, que
de novo remeto, prevenindo o caso da perda da carta. Quando não seja no Jornal do Comercio
ao menos na Nação.
248
CARTA Nº 53
Marang.e, 8 de outubro de 1874.
n° LVIII
Minha mãe,
Pelo Paulino Nogueira soube que meu pai houvera desmanchado a viagem; entretanto
vm. sobre isto não me disse coisa alguma nem pelo vapor atrasado, nem pelo passado. O que
houvera de verdade em tudo isso? O menino não obstante não foi batizado, e não o farei
enquanto estiver na indecisão.
Resolvi botar-lhe o nome de Hugo. Os Tristões já são demais na família.
Pela carta que escrevi com data de 2 do corrente mandei dizer qual o estado de saúde de
minha avó; hoje felizmente posso tranqüilizar vm. quanto a sua vida.
Aqui por casa vão todos sem alteração. A Totõnia presentemente passa o tempo menos
insipidamente.
Perto de nós está morando a família de meu tio Mattos; minha tia Florinda não se cansa
de agradá-la, de sorte que é mais fácil deixarmos de dormir do que de ir passar a noite em tão
agradável companhia.
A Dondon é uma menina de mui estimável e só me recorda o gênio doce e cândida
simpatia de Sinhazinha.
Não sei mais o que lhe diga desta vez senão não que as saudades não se acabam.
Adeus, minha querida mãe; lembranças à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desideria. A
Totõnia e os seus netinhos lhe enviam os corações.
Abençoe seu filho obediente e amoroso, amigo.
Tristão.
249
CARTA Nº 54
Fortaleza, 18 de outubro de 1874.
n° LIV
É com mais profunda mágoa que participo a vmcês que no dia 15 do corrente deixou a
pertencer ao mundo dos vivos minha avó D. Anna Tristão.
Desde aquele dia que me acho nesta capital, tendo aqui chegado justamente quando de
aproximaram seus últimos momentos. Morreu minha avó como uma santa e mártir que foi
durante os 50 anos que se correram do anonimato do meu avô até hoje.
Dizem-me as pessoas de casa que pudesse ainda ver o filho que tanto amava; e assim o
conhecer.
Todos os nossos amigos acompanharam o féretro até a morado dos mortos e
presenciaram uma morte, que tantos recordações tristes devia trazer à família.
Resta-nos agora o consolo de que as suas virtudes sejam devidamente remuneradas na
mansão dos justos.
Para ela o sono eterno não foi mais do que descanso.
Na Constituição de hoje encontraram vmcês uma necrologia, que publiquei, fazendo
sobressair as qualidades eminentes e padecimentos de minha finada avó. Sinto não ter outro meio
de externar o que me vai pela alma com o seu falecimento.
Minha tia Izabelinha pareceu-me muito abatida com está separação. Realmente depois de
tantos anos de perfeita convivência, há de ser dificílimo superar as saudades da irmã.
Não sei se meu pai aprovará a determinação que tomei com relação ao enterro. Sendo
nenhuns os recursos de meu tio Aderaldo e Macedinho, achei prudente mandar fazer as despesas
sob a responsabilidade de meu pai. Encarreguei ao Victoriano Borges de satisfazer as contas, as
quais serão apresentadas para que meu pai resolva como entender, ou mandando indiciar-se pelo
pequeno espolio deixado por minha avó, ou ordenando que as mesmas despesas sejam incluídas
na sua conta.
A Totõnia esteve também aqui no dia do enterro, retirando-se neste mesmo dia para
Marang.e em companhia da minha tia Florinda por ter ali deixado a Inhazinha e o Hugo.
Creio que amanhã, depois da visita de casa, regressarei para aquela cidade.
Desta vez são estas as únicas noticias que possa dar a vmcês. Bem desagradáveis noticias.
Lembranças minhas à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desidéria e queiram vmcês
aceitar as minhas saudades e abençoar filho obediente e amoroso. Extremoso.
Tristão.
250
CARTA Nº 55
Marang.e, 06 de novembro de 1874.
n° LV
Minha mãe e meu pai,
Desejo a vmcês e a todos de casa saúde e mil venturas. A minha última carta foi com data
de 13 de outubro, e nela participava a sentida partida de minha avó D. Anna Tristão que Deus
terá em sua santa glória. Deixei de escrever pelo vapor de 2 porque, tendo chegado da Pacatuba,
aonde tive que vir presidir a seção do ________, fui atacado ______ de modo tal que não me foi
possível sentar a banca.
Por falar em Pacatuba: não se terá meu pai requerido do que lhe pedi acerca da criação
desse termo para o Dr. Galvão, atual promotor dessa câmara. Reitero agora o meu pedido, e faço
da sua nomeação questão de gabinete. Os fatos logo que sentiram estas minhas intenções
puseram-me em campo e hoje pretendo o lugar para um parente que se formou ano passado, e
assim derrotando outro candidato. Será para mim uma decepção horrível se, com efeito,
conseguir eles o que querem, e digo tanto: mais apreço ao êxito das pretensões do Galvão
quando fui quem incitou-a a isso. Espero, portanto, que vmcês ______todos os meios para que
eu não seja obrigado.
O Dr. Galvão mereceu da minha parte estes esforços e eu confiei que sua estada até nos
será proveitosa.
As últimas cartas que tenho de vmcês são de 9 e 20 de outubro. Entristeceu-me muito o
desengano da viagem de meu pai este ano ao Ceará a quem assim já esperava abraçar.
Espero não ter remédio senão a paciência, Hugo ainda não foi batizado e não será
enquanto a decisão não for completa. Como meu pai dá-me ainda esperanças para março, fica
transferido o ato para esse tempo.
Minha mãe manda-me perguntar se o vestidinho que veio para a Inhá serviu ou ficou de
bom ______; devo dizer-lhe em resposta que ficou. Vai Vm como são para ela ficou
expressamente feito nelas esta ação quer significa que viu-se ponha-me obrigação de estar se
incomodando de vez em quando como ______.
Junto encontrará meu pai em fragmento da Fraternidade, em que veio um pomposo
elogio ao _____ só que proferiu ultimamente sobre os bispos da ordem que admiro é que os
escritores da Fraternidade sejam os mesmo que acabam de insultar Vm. pelas ____ da diocese.
Segundo informei em minha última tomei a deliberação de mandar pagar debaixo da
responsabilidade de meu pai as contas resultantes do enterro de minha avo, as quais andaram
(apesar da economia e simplicidade) em 278, 850 rs. Foi o Victoriano quem se encarregou desse
pagamento. As contas estão em meu poder; Vm., portanto, dirá, na conformidade do que já lhe
pedirei, o que se deve fazer.
Por aqui nada há de novo, senão o estado lastimoso do Dr. Mello, que depois da
vertiginosa discussão sobre as queimaduras da escrava Henriqueta, foi atacado de uma paralisia
singular, que o obrigou a ausentar-se dessa terra.
Adeus. Lembranças minhas e de Totônia à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desidéria e
queiram vmcês abençoar filho obediente e amoroso.
Tristão.
251
CARTA Nº 58
Serra de Marang.e, 30 de dezembro de 1874.
n° LVIII
Minha mãe e meu pai,
Ainda por essa vez escrevo a vmcês da serra.
Tenho diante dos olhos cartas de vmcês com data de 9 do corrente. Muito estimei saber
que todos por lá são sem alteração. Os números do Globo, que minha mãe diz ter-me remetido
aqui não chegaram, o que muito senti por ficar na ignorância do que pensa atualmente o J. de
Alencar sobre este assunto. Agora mesmo confeccionava eu umas cartas para a Constituição a
propósito de uma conferência aqui proferida ultimamente no qual se nega a existência de uma
literatura do Brasil. Tanto pior!
Foi com o maior prazer que li o tópico relativo ao Dr. Ortiz. Por minha parte agradeço a
vmcês as palavras de amizade com que sempre ele me distingue. Diga-lhe que o discípulo não se
esquecerá jamais daquele bom mestre, que lhe incitou no espírito as primeiras regras de escrever.
As novidades por esta terra são escassas. Apenas há dias houve em Marang. e um baile ao
qual assistimos eu e Totônia. Foi muitíssimo concorrido. Na mesa tive a ocasião de verificar em
diversas saudades a mim feitas quanto este povo (gregos e troianos) me estima. Saudaram-me
com delírio; fiquei quase desconfiado: só faltou que carregassem aos ombros até em casa. São
coisas estas espontâneas e que tanto mais me surpreendem quanto eu vivo reconcentrado
visitando raramente um ou outro. Simpatias! Simpatias!
Não sei se na minha última participei que já estava bom dos olhos. O clima da serra temme redobrado o vigor.
Veio passar conosco estes dias de festa a Idalina, irmã da Totônia. Os dias correm
serenos. Outro dia comi nunca menos, entre as 9 da manhã e 6 da tarde, de um kilo de carne,
uma libra de castanhas portuguesas, 4 bananas, uma laranja, a quarta parte de uma jaca, meia lata
de sardinha, passas, figas, e não sei o que mais. Quase me julguei oco por dentro. O Braga = S =
creio que neste dia não me levaria as lâmpadas.
A patente de meu sogro chegou a tempo.
Não sei mais o que diga a vmcês. Adeus. A Totônia manda muitas lembranças a todos.
Queiram vmcês abençoar aos netinhos e ao filho obediente e amoroso.
P. S.
O ano está acabando e = 1875= na ___ (doc. Extraviado); daqui a um ano pois estarei
com o quatriênio concluído. Já é tempo portanto de pensar no meu regresso. Mandem vmcês
dizer-me o que por lá se me pode arranjar. Não obstante não perca de vista em juizado de direito
que se possa criar por perto desta capital. E a pretensão do Galvão?
252
CARTA S/N
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1876.
Meu pai e minha mãe,
Depois que aqui cheguei, já escrevi a vmcês. Recebi o telegrama de S e agora ansioso
espero o Rio de Janeiro em que devem vir as cartas que pedi.
Em conseqüência de um telegrama falso que aqui apareceu não sei como passei os dias 10
e 11 em uma verdadeira angustia. Dizia-se que em razão da prisão do Ijuhy, a província do Rio
Grande pagara em armas e organizara o governo republicano, tendo a frente Ozório e Silveira
Martins, acrescentando-se então que meu pai fora preso segundo uns, ou estava bordo de um
vaso de guerra segundo outros.
O que é mais engraçado é que já, continuaram os noveleiros, o novo governo entravou
sua negociação oferecendo o refém em troca do Solimões, avaliando-se assim o presidente do
Rio Grande em dois mil e tantos contos. Não é preso!
Fosse como fosse sofri bastante, porque tudo era possível e o tal telegrama era da praça
do comercio.
Felizmente o Jornal do Comércio de ontem tudo desvaneceu. Respiro!
À noite de ontem passada estive com o Duque de Caxias. Um pouco desapontado com o
Diogo _____ que (ao menos) me pareceu ligar pouca importância ao pedido de vm., já tendo
nomeado juiz de direito para São Francisco e Ipu, achei acertado visitar o velho Duque. Recebeume muito atenciosamente, e conversando acerca dos sucessos ali dados ultimamente demasiandose em elogios a meu pai dizendo que daria tudo para ter do presidente iguais as atual do Rio
Grande.
Falei-lhe sobre minha pretensão, que este acolheu, ficando certo de fazer na ausência de
meu pai as suas partes. Gostei sumamente do homem. É um verdadeiro militar, franco e leal.
Em minha última carta esqueci-me de dizer que surpreendendo esta viagem não pude
deixar de utilizar-me das ordens que por vmcês. Foram dadas a Paulino com relação a qualquer
necessidade do Dr. Não desejava causa-lhes transtornos, principalmente já me tendo sido,
quando no Ceará, levada a quantia de 300 r.; a necessidade porem, e mesmo o bom andamento
dos meus negócios, me obrigam a usar da benignidade de vmcês. Assim daqui sobre o Paulino
por igual companhia, e não de a vmcês cuidado sobre o mais.
Em Pernambuco, recebi obséquios de alguns amigos nossos e com especialidade do
Lealzinho, o qual sabendo que eu vinha para a Corte procurou-me e deu-me uma carta de
recomendação, que depois, com surpresa, reconheci ao abrir ser uma ordem de 2: 000$r. Fiqueilhe muito grato por esse ato de cavalheirismo, do qual só em extremo me servirei.
16, às 9 horas
Pelo v. Pará acaba de chegar do norte o Jose Amâncio em busca de um cartório.
Trás noticias frescas. Em Pernambuco e Ceará sobre todos os nossos vãos sem novidade.
Acerca do último lugar, diz ele que os padres estão fazendo uma guerra de morte à
candidatura de meu pai.
Pelos jornais verão isto melhor.
A propósito recomendo a leitura de um artigo que a esse respeito escrevi no Globo, de 13
do corrente, por lembrança de meu tio João.
Adeus. Lembranças à Sinhazinha e aos meninos e queiram vmcês abençoar e receber as saudades
do filho obediente e amoroso. Tristão.
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(1878), de araripe jr - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba