UFPB - UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CCHLA - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PPGL - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO NO ROMANCE O REINO ENCANTADO (1878), DE ARARIPE JR. Por Débora Cavalcantes de Moura Clemente Orientadora Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa João Pessoa – PB Julho de 2012 DÉBORA CAVALCANTES DE MOURA CLEMENTE REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO NO ROMANCE O REINO ENCANTADO (1878), DE ARARIPE JR. Orientadora: Profª. Drª. SOCORRO DE FÁTIMA PACÍFICO BARBOSA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Letras. Linha de pesquisa: Literatura e Cultura. João Pessoa - PB Julho - 2012 C626r Clemente, Débora Cavalcantes de Moura. Representações da história da Pedra do Reino no romance O Reino Encantado (1878), de Araripe Jr. / Débora Cavalcantes de Moura Clemente.-- João Pessoa, 2012. 253. : il. Orientadora: Socorro de Fátima Pacífico Barbosa Tese (Doutorado) – UFPB/CCHLA 1. Literatura e Cultura. 2. História Cultural. 3. Folhetim do séc. XIX. 4. Araripe Jr., Tristão de Alencar. 5. História da Pedra do Reino. UFPB/BC CDU: 82(043) REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA PEDRA DO REINO NO ROMANCE O REINO ENCANTADO (1878), DE ARARIPE JR. Débora Cavalcantes de Moura Clemente Orientadora Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, como parte dos requisitos à obtenção do título Doutor em Letras. Linha de pesquisa: Literatura e Cultura. Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa _______________________________ Prof. Drª. Maria Ignez Novais Ayala –UFPB _______________________________ Prof. Drª.Claudia Engler Cury – UFPB _______________________________ Prof. Dr.Anco Márcio Tenório Vieira–UFPE _______________________________ Prof. Dr. Flávio José Gomes Cabral - UNICAP- PE _______________________________ Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano - UFPB - Suplente _______________________________ Fabiana Sena – UFPB - Suplente João Pessoa Julho de 2012 “Por onde eu andei cantei as coisas da minha terra”. (Luiz Gonzaga, “Rei do Baião”, em homenagem ao seu Centenário, 1912-2012). Agradecimentos AGRADECIMENTOS Agradeço à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora por terem colocado em minha vida pessoas tão especiais sem as quais a conclusão desta tese não teria sido possível. Em todas as fases da tessitura deste trabalho, fui afortunada com auxílios inestimáveis. Por isso sou grata: * a Júlia, filha amada, companheira e amiga nas mudanças do Tocantins para João Pessoa e Recife. Além de tudo, Júlia é leitora e crítica de O Reino Encantado e vem ensaiando seus primeiros passos como poeta. * a Marcos, com quem minha vida foi “andar por esse país, pra ver se um dia” a gente “descansa feliz”. Além de amor de minha vida, Marcos é um intelectual competente, incentivador de meu crescimento profissional e primeiro leitor e crítico entusiasmado desta tese. * ao amor e apoio incondicional de meus pais, Antônio Donato e Maria Cavalcantes, de meus irmãos Petrônio (in memorian) e Fred, de Nen, minha outra mãe; agradeço ainda a Michele, minha cunhada, e Felipe, sobrinho querido. * à dona Lourdes Clemente, aos meus cunhados e cunhadas, Chico e Eliane, Valter (in memorian) e Elite, Miguel e Nalva, Sandro e Ester, Elizeu e Jan, Marinho, Fábio e Jailma; e aos sobrinhos e sobrinhas Cris, Nayra, Sinara, Juninho, Eduardo, Rafael, Natália, Andrezinho (in memorian), Priscila, Vitor, Mariana e Fernanda agradeço pelo carinho com que nos abraçam nos encontros em Paulo Afonso. * à professora doutora Socorro de Fátima Pacífico Barbosa, minha orientadora, que guiou essa pesquisa com muita competência. * às pessoas que conheci e com quem convivi na UFPB – Universidade Federal da Paraíba: às professoras coordenadoras da Pós em Letras ao longo do meu curso Liane Schneider, Ana Marinho e Sandra Luna; aos professores Arturo Gouveia e Nadilza Moreira, ministrantes de cursos inesquecíveis; a Rose Mansarda, competente funcionária do PPGL, que sempre diz uma palavra de conforto quando lhe contamos nossas histórias; e aos colegas de turma Sávio Roberto, Luciana Fernandes (revisora desta tese), Rosário, Valter, Marcílio, Roberta, Ana Cristina Carvalho, Ana Carolina, e, especialmente a Giovana Casé, amiga querida, que, como eu, é egressa de uma das casas das Irmãs Franciscanas de N. S. do Bom Conselho, história que uniu nossas famílias. * aos professores doutores que aceitaram integrar a banca examinadora de minha defesa de doutorado: Maria Ignez Novais Ayala, Anco Márcio Tenório Vieira, Flávio José Gomes Cabral e Claudia Engler Cury. A esta última, também agradeço pelas valiosas sugestões no exame de qualificação da tese. * às professoras responsáveis pela minha educação básica. Nesse momento, em que se fecha um longo ciclo de estudos, faço questão de lembrar e de agradecer as minhas queridas professoras, responsáveis por me ensinar as primeiras letras: as tias Maridalva Rodrigues, Geni Pereira, Fili, Auri Pereira; à tia Socorro Campos, minha professora da 1ª a 4ª séries, na Escola Prof. Manoel de Queiroz; aos professores e freiras do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, em Bom Conselho – PE, minha segunda casa, onde fui acolhida como filha por Ir. Celina, Madre Cavalcanti, Ir. Mercês, Ir. Geralda, Ir. Petrúcia, Ir. Jesus, Ir. Sara, Ir. Penha, Ir. Salvador, Ir. Augusta e demais freiras, minhas mestras entre 1985-1989. * a Wandemberg Sobreira Machado a quem rendo sinceras homenagens em gratidão às benesses que me concedeu durante os anos que estudei em Bom Conselho. Sua dedicação, empenho e carinho para comigo foram fundamentais para tornar possível minha permanência no Colégio de Nossa Senhora do Bom Conselho. * aos conterrâneos belmontenses que residem em João Pessoa, amigos preciosos, que acolheram a mim e a Júlia em nossa permanência na Paraíba, com muita bondade, zelo e afeto. Agradeço especialmente a Ana Lúcia e Paulo Lopes, aos seus filhos Iury, Igor e Illo e aos demais membros de sua grande e feliz família. Registro minha eterna gratidão a Margarida, Abenildo e filhos pela deliciosa acolhida. Não posso me esquecer também de Deda Machado e filhos; Neuzinha e Mateus; das tias Gilda e Vilani Sobreira, e dos primos Paulo Aderson e Larissa por nosso reencontro e convivência na Paraíba; de Socorro, Luquinha e Sóstenes e das vizinhas e “sobrinhas” que ganhei: inicialmente Amanda Machado e Vanessa Martins e, depois, Raiane Severo, Aline Machado, Waléssia Martins, Sílvia e Shirley Rodrigues. * ao casal de belmontenses Raimunda e Nego Guimarães e suas meninas que, estando eu já morando em Recife, acolherem minha filha Júlia em seu lar quando de minhas viagens de pesquisa. * à tia Gracinha e a Glória pela acolhida como vizinhas e pela amizade. Agradecimentos * a tio Antônio e a Lindomar, e aos primos Silvino e Miroca, Saulo e Cláudia, Simone e Milton e aos filhos desses casais pelo nosso reencontro e feliz convivência aqui em Recife. * a tio João Cavalcante e ao meu primo Eraldo Gondim, imprescindíveis na minha mudança do Norte para o Nordeste. Agradeço às primas Elaine e a Edilaine, filhas de Eraldo e Maria José, por acolherem Júlia enquanto eu pesquisava. * às pessoas que viabilizaram minha vida profissional no Tocantins: Dr. Dorival Carvalho, Dr. Danilo de Melo e Souza, Jaldo Arruda, Luz’Dalma, Alcidália, Fernanda e Denise. * àqueles que reorganizaram minhas atividades profissionais em Pernambuco: professor Sinésio Monteiro e Pedro Moura, este último, coordenador do Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano, instituição onde tenho a honra de ser servidora. * aos funcionários das muitas instituições de pesquisa pelas quais passei: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, especialmente a Ana Naldi; Fundação Casa de Rui Barbosa, especialmente Laura Xavier; Fundação Casa de José Américo; Fundação Joaquim Nabuco, especialmente a Marcondes Oliveira; Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, especialmente a Hildo Leal da Rosa, responsável por a gente se encantar com o acervo do APEJE; IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto Histórico do Ceará, especialmente a Madalena Figueiredo; IAHGP - Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, especialmente o sócio Bruno Câmara; Setor de Obras Raras da Biblioteca Pública de Pernambuco; Setor de Obras Raras da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, especialmente a Renata Lucena, que também transcreveu alguns documentos utilizados nesta tese. * ao artista Oscar Araripe em nome de quem agradeço aos demais 57 descendentes de Araripe Jr. com que mantive contato por e-mail e fui prontamente atendida. * ao professor Sânzio Azevedo, o grande mestre em literatura cearense, por ter me recebido com presteza e ter viabilizado a aquisição de importantes documentos no Instituto Histórico de Ceará, em Fortaleza. * a Ariano Suassuna, por ter me presenteado com uma cópia de O Reino Encantado, na IV Cavalgada à Pedra do Reino, e ter despertando em mim o interesse pelo romance de Araripe Jr. durante a entrevista que me concedeu, em 1998. Todos esses contatos foram sempre intermediados por seu assessor Josafá, a quem estendo meu reconhecimento. * a Edízio Carvalho, por todas as vezes que disponibilizou seu acervo pessoal e/ou aquele em poder da Associação Cultural Pedra do Reino, necessários à pesquisa. * aos membros da Associação Cultural Pedra do Reino, formada por jovens belmontenses, defensores de nossa cultura. Todos, indistintamente, sempre me apoiaram desde as primeiras pesquisas, ainda no mestrado. * a Clécio Novaes, notável empreendedor cultural, idealizador do Castelo Armorial de São José do Belmonte-PE, por ter, gentilmente, disponibilizado o acervo do Castelo a minha pesquisa. * a Paulo Gastão, eterno presidente da SBEC, incansável incentivador de estudos sobre beatos e cangaceiros. * a Pe. João Carlos Ribeiro, diretor do Colégio Salesiano do Recife, e à família Salesiana, a quem confiei a educação formal de minha filha Júlia. Por fim, registro um agradecimento especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Qualificado – CAPES – pelo apoio financeiro. Resumo RESUMO Esta tese é um estudo do romance O Reino Encantado: crônica sebastianista. A obra foi escrita pelo literato cearense Tristão de Alencar Araripe Jr., publicada primeiramente em folhetim e, em seguida, em volume, ambas as edições de 1878. Nosso objetivo aqui é contribuir com os estudos da história do livro e da leitura no Brasil, à medida que analisamos a obra inédita O Reino Encantado, primeiro romance da literatura brasileira a tematizar o fanatismo religioso. Trata-se de uma obra esgotada há mais de cem anos e tanto ela como seu autor continuam no esquecimento. Araripe Jr. é acolhido apenas como crítico literário que - ladeado por Sílvio Romero e José Veríssimo-, integra a grande tríade da crítica brasileira do final do séc. XIX e início do séc. XX. O Reino Encantado é uma re-elaboração literária dos principais registros documentais e da crônica histórica sobre o movimento messiânico de Pedra do Reino, fato histórico ocorrido no sertão de Pernambuco entre 1836 e 1838. As análises fundamentam-se nos escritos do historiador francês Roger Chartier, bem como de seus principais interlocutores. Para tanto, foram adotados os conceitos de “representação”, “apropriação” e “práticas sociais”, tais como compreendidos pela história cultural. O problema é saber como Araripe Jr. representou a história da Pedra do Reino e suas personagens, crenças e “práticas sociais” no espaço ficcional de O Reino Encantado. Para tanto, recorremos a fontes de estudo como documentos manuscritos, periódicos e compêndios de literatura do século XIX, localizados em instituições de pesquisa de Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro. Concluímos que as “representações” da história da Pedra do Reino e das personagens presentes em O Reino Encantado são orientadas ora por arquétipos românticos, ora pela linguagem científica de fins do século XIX. As personagens sebastianistas são normalmente representadas a partir de arquétipos naturalistas, vistas sob a ótica da medicina psiquiátrica. Por sua vez, as personagens do grupo dos potentados são representadas a partir de arquétipos românticos. Situado nesse dilema em voga no Brasil na década de 1870, Araripe Jr. inscreve sua visão particular ante às escolas romântica e naturalista. Transitando entre preceitos de uma e de outra orientação literária, ele se serve- ainda das principais contribuições do cientificismo vindo da Europa, valendo-se das novas concepções acerca dos processos de criação literária, notadamente a imaginação, a observação e a comprovação. Palavras-chave: 1. Literatura e Cultura. 2. História Cultural. 3. Folhetim do séc. XIX. 4. Araripe Jr., Tristão de Alencar (1848-1911). 5. História da Pedra do Reino (1836-1838). Abstract ABSTRACT This thesis is a study of the novel O Reino Encantado: Brazilian chronical. It was written by Tristão de Alencar Araripe Junior, a literate from Ceará, Brazil, and published firstly in serial, and, after, in volume, both editions in 1878. This research aims to contribute to the studies about book’s history and the reading in Brazil as we analyzed the unpublished work of O Reino Encantado, the first Brazilian novel that talks about the religious fanaticism. It is a sold out book more than one hundred years ago and both it and its author remain in oblivion. Araripe Jr. is accepted only just as critical literary that - flanked by Sílvio Romero and José Veríssimo -, integrates the great Brazilian critic triad in the late XIX century and early XX century. O Reino Encantado is a literary reelaboration of the main documentary records and historical chronical about the Pedra do Reino messianic movement, a historical fact that happened in the Pernambuco state wilderness region between 1836 and 1838. The analyses are based in the French historian Roger Chartier writings, as well as their main interlocutors. In addition, the "representation", "appropriation" and "social practices" concepts were adopted, such as having understood for the cultural history. The problem is to know how Araripe Jr. represented the history of Pedra do Reino and their characters, belief and "social practices" in O Reino Encantado fictional space. For this, we fell back upon study sources as hand written documents, newspapers and summaries of XIX century literature, located in Pernambuco, Ceará and Rio de Janeiro research institutions. We conclude that Pedra do Reino’s history "representations" and the characters present in Reino Encantado are guided some times by romantic archetypes, other times by the scientific language in the late XIX century . The sebastianistas characters are usually represented from naturalistic archetypes, views under the psychiatric medicine optics. On the other hand, the potentates’ group characters are represented starting from romantic archetypes. In that dilemma rowing in Brazil in the 1870s, Araripe Jr. he enrolls his private vision before to the romantic and naturalistic schools. Transiting among precepts of one and another literary orientation, he is still the main contributions for the coming Europe scientism, being worth of the new conceptions concerning the literary creation processes, especially the imagination, observation and proof. Key words: O Reino Encantado (novel); Serial novel (Sec. XIX); Araripe Junior (1848-1911); Pedra do Reino story; Brazilian literature; book’s history and the reading in Brazil. Sumário SUMÁRIO Introdução 15 Capítulo 1: O itinerário da Pedra do Reino na historiografia literária brasileira: entre a paráfrase e o esquecimento 1.1. Pedra do Reino: a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite 1.2. Representações da história da Pedra do Reino 1.3. Antônio Áttico de Souza Leite e suas representações 1.3.1. Uma obra em três edições 1.3.2. A legitimação do Estado brasileiro 1.3.3. Elogio à Igreja Católica 1.3.4. O repúdio ao caboclismo 1.3.5. Representações do reino da Pedra do Reino, segundo os sebastianistas 1.3.6. As fontes utilizadas por Antônio Áttico de Souza Leite: limites e problemas 1.3.7. Representação e história: impasses na invenção de Pedra do Reino 1.3.7.1. O massacre do Paraíso terreal: o caso da serra do Rodeador 1.3.7.2. O massacre de Canudos 1.4. Uma versão unívoca de história: representações de Pedra do Reino em outros autores 1.4.1. Daniel Parish Kidder e suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil 1.4.2. Nina Rodrigues e A hecatombe de Pedra Bonita em Pernambuco 1.4.3. Francisco Augusto Pereira da Costa 1.4.4. Gustavo Barroso: Almas de lama e de aço (1928) 1.4.5. Câmara Cascudo em Dicionário do Folclore Brasileiro (1954) 1.4.6. Optato Gueiros e o depoimento de Seu João (1956) 1.4.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957) 1.4.8. Waldemar Valente em Misticismo e Região (1963) 1.4.9. Maria Isaura Pereira de Queiroz em dois tempos 25 28 37 38 38 44 46 47 48 53 56 57 64 67 67 72 73 80 81 81 83 85 86 Capítulo 2: Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 - 1878) 2.1. Notícia biográfica de Araripe Jr. (1848 - 1911) 2.2. Discursos em torno da “geração de 1870” 2.3. Romantismo e o Naturalismo no discurso crítico de Araripe Jr. (1868-1878) 2.4. Araripe Jr. e as Cartas a Cincinato 2.5. A “Academia Francesa do Ceará” 2.5.1. Soberania Popular 2.5.2. Liberdade Religiosa 2.5.3. A literatura brasileira contemporânea 2.5.4. O Papado 2.6. Argumentos científicos para analisar literatura 2.7. O sertanejo idealizado x sertanejo “real” 2.8.“Instinto” de nacionalidade: fio condutor da obra de Araripe Jr. 88 90 99 105 110 118 121 122 124 128 134 137 139 Capítulo 3: Representações romântico-naturalistas na composição de O Reino Encantado 3.1. Cativos e libertos na Pedra do Reino: resumo de O Reino Encantado 3.1.1. João, Maria e a profecia 3.1.2. O cenário da trama e o tempo do enunciado 3.1.3. Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio 3.1.4. A Família Vasconcelos 3.1.5. A chegada de Jaime à fazenda das Porteiras 145 146 148 150 151 153 154 Sumário 3.1.6. Invasão à fazenda das Porteiras e o rapto de Maria 3.1.7. A expedição à Pedra do Reino e João Pilé 3.1.8. A participação de João Antônio na expedição 3.1.9. Justina e Maria 3.1.10. Josefa e Manoel Velho 3.1.11. O pacto de desiguais contra um inimigo comum 3.1.12. A expedição chega à Pedra do Reino: a luta entre potentados e sebastianistas 3.2. História, ciência e observação na composição de O Reino Encantado 3.2.1. Imaginação e Observação 3.2.2. Fanatismo religioso, de Souza Leite: a fonte histórica 3.2.3. Meio, raça e momento 3.3. O carro de boi e a locomotiva: Representações do sertão e do litoral 3.4. Sentidos sociais da profecia 3.5. Personagens do romance 3.5.1. João Antônio: arauto e traidor 3.5.2. João Ferreira: o profeta “fanático” e “epilético” 3.5.3. Pedro Antônio e sua cobiça 3.6. Manoel Velho: o vaqueiro nobre, destemido e fiel 3.7. Maria: à imagem de Nossa Senhora 155 156 157 158 159 160 161 163 164 165 169 172 175 181 188 192 198 200 203 Notas finais 209 Referências bibliográficas 214 Anexos 228 Relação de figuras RELAÇÃO DE FIGURAS FIGURA 1 – Cópia digitalizada de manuscrito sobre D. Sebastião cujo título é "TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D. Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos os curiozos q. são verdadeiramente [Calholeiros]", sem data, localizador: I-13,01,044. Fonte: BN – Setor de Manuscritos. Páginas 30 a 34 FIGURA 2 – Capa da 2ª edição da obra Fanatismo Religioso, de Antônio Áttico de Souza Leite. Fonte: BN – Setor de Obras Raras. Página 39 FIGURA 3 -Cópia digitalizada do “Desenho da Pedra Encantada, e do mais que vi, indaguei, e fui testemunha ocular nos dias 19 e 20 de outubro de 1838”(desenho feito no local pelo padre Francisco José Correa de Albuquerque e notas de seu punho.) Autor: Pe. Francisco José Correia de Albuquerque. Fonte: IAHGP. Página 43 FIGURA 4 – Cópia digitalizada do ofício procedente do Palácio do Governo de Pernambuco, assinado por Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque dirigido ao Juiz do Crime de Flores, Manoel dos Passos Baptista pedindo celeridade no processo a que foram submetidos os sobreviventes de Pedra do Reino, em atenção ao Imperial Aviso de 08 de agosto de 1838, Parte 1, folha 39 (verso) e 40 (frente). Fonte: APEJE, Tomo RO-11/2: 39-40. Página 59 FIGURA 5 – Cópia digitalizada do ofício originado do Presidente da Província de Pernambuco cujo destinatário foi o Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos. Fonte: ANRJ- IJ1-823 – 1838 a 1843. Páginas 62 a 64 FIGURA 6 – Cópia digitalizada do ofício do Pe. Antônio Gonçalves Lima dirigida ao Pe. Francisco José Correia de Albuquerque, publicada no Diário de Pernambuco, em 18 de junho de 1838. Fonte: FUNDAJ – Setor de Microfilmagem. Páginas 70 e71 FIGURA 7 – Cópia digitalizada do ofício procedente do presidente da província de Pernambuco, dirigida ao prefeito da comarca de Flores comunicando a chegada de dois réus de Pedra do Reino. Fonte: APEJE/ Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II, 1838. Página 77 FIGURA 8 - Cópia digitalizada do ofício procedente do prefeito da comarca de Flores dirigido ao presidente da província de Pernambuco comunicando a prisão de dois integrantes da “facção” de Pedra do Reino. Fonte: APEJE, Pc 5, p. 267, 1838.Página 79 FIGURA 9 –Cópia digitalizada de foto de Tristão de Alencar Araripe Jr. Fonte: Sítio da Academia Cearense de Letras. Acesso em 22 de setembro de 2011. Página 91 FIGURA 10 –Capa da edição em volume do romance O Reino Encantado. Fonte: Biblioteca Brasiliana-USP Guita e José Midlin. Sítio:ttp://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00105700#page/7/mode/1up. Acesso em 26 de outubro de 2010. Página 147 FIGURA 11 – Cópia digitalizada do ofício procedente do prefeito de Flores e dirigido ao presidente da província de Pernambuco comunicando os sucessos de Pedra do Reino, datado de 25 de maio de 1838. Fonte: APEJE, Pc 5, p. 251 a 254. Páginas 183 a 186 Relação de abreviaturas e siglas RELAÇÃO DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABL - Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro - RJ AMLB/APEB/FCRB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros da Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro - RJ APEJE – Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emerenciano -– Recife - PE AN- Arquivo Nacional do Rio de Janeiro BBM - Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin BN – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro FCRB - Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro - RJ FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco – Recife - PE IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro - RJ IHAGP- Instituto Histórico, Arqueológico e Histórico Pernambucano - Recife - PE RE – O Reino Encantado Introdução INTRODUÇÃO Aquele reino era de muitas glórias e riquezas, mas como tudo era encantado só se desencantava com sangue, era necessário banhar-se as pedras e regar-se todo o campo vizinho com sangue dos velhos, dos moços, das crianças e de irracionais; que tudo isto, além de necessário para Dom Sebastião vir logo trazer as riquezas, era vantajoso para as pessoas que se prestavam a socorrê-lo assim porque, se pretas, voltavam alvas como a lua, imortais, ricas e poderosas; e se velhas, vinham moças, e da mesma forma, ricas, poderosas e imortais com todos os seus. Antônio Áttico de Souza Leite O trecho acima citado constitui uma das inúmeras formas de enunciar os múltiplos sentidos atribuídos ao Rei de Portugal Dom Sebastião, desaparecido em batalha contra os mouros, em Alcácer Quibir, África, em 1578. Os portugueses, órfãos do seu rei, diante de um Estado acéfalo, ou pelo menos enfraquecido, “inventaram” o mito do retorno de Dom Sebastião. Conforme a crença instituída, o rei retornaria para recuperar o poder e as glórias do reino português. O trecho em epígrafe, contudo, não se refere ao sebastianismo tal como fabricado em Portugal, no século XVI. Seu referente é o episódio histórico registrado na Serra do Reino, no sertão pernambucano. A presença de duas grandes pedras predispostas uma ao lado da outra foi apropriada por alguns sertanejos do lugar como um indício de que se tratava de um “reino encantado”, cujo desencantamento dar-se-ia com o retorno do rei português Dom Sebastião. Também enuncia essa espera messiânica do rei salvador enquanto que expressa uma crença em um novo tempo, um tempo de glória, de riqueza e de felicidade. Mas, há uma diferença fundamental: embora esse episódio possa ser classificado como uma manifestação do sebastianismo, ele aponta para algumas especificidades que o singularizam diante de outras tantas formas de crença no retorno do “Encoberto”. Esses eram os sonhos que norteavam a vida da comunidade que se formou em torno do monumento natural, conhecido a princípio como Pedra Bonita e mais comumente lembrado hoje como Pedra do Reino1. Trata-se de um movimento messiânico de cunho sebastianista, liderado inicialmente por João Antônio dos Santos e depois, pelo seu cunhado João Ferreira da Silva, ocorrido entre os anos de 1836 a 1838, nas imediações do sítio histórico, localizado onde hoje é o município pernambucano de São José do Belmonte. Os sucessos de Pedra do Reino foram temas de diversas obras ou parte delas. Obra pioneira são as reminiscências de viagem de um pastor metodista norte americano, Daniel P. Kidder, de 1845, intitulada Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias, fruto de sua viagem ao Brasil entre 1836 e 1840. 1Nesta tese, utilizaremos a expressão Pedra do Reino para nos referirmos ao movimento messiânico. Adotamos esse critério porque é essa a designação mais recorrentemente utilizada contemporaneamente pela memória coletiva sobre aquele fato histórico. Porém, alguns textos que citaremos, referem-se ao mesmo movimento messiânico como Pedra Bonita, Reino Encantado ou Serra Formosa. 15 Introdução Depois dele, Antônio Áttico de Sousa Leite, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Recife e membro do IAHGP – Instituto Histórico, Arqueológico e Geográfico Pernambucano, publicou Fanatismo Religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella(1875), que se transformou numa obra de referência sobre o tema. Tornou-se fonte para obras posteriores, servindo inclusive de pretexto na composição de três romances brasileiros cujos enredos têm como pano de fundo a história da Pedra do Reino. A saber: O Reino Encantado (1878), de Tristão de Alencar Araripe Jr., Pedra Bonita (1938), de José Lins do Rego e Pedra do Reino (1971)2, de Ariano Suassuna.Contudo, no campo das ciências sociais, a exemplo da história e da sociologia, não se registra estudos de destaque sobre a história da Pedra do Reino. Assim, as abordagens mais significativas sobre o tema ficaram mesmo a cargo dos literatos. Obra pioneira é a de Tristão de Alencar Araripe Júnior que publicou O Reino Encantado, em 1878. O romance é uma re-elaboração ficcional do memorial de Antônio Áttico de Souza Leite. Araripe Jr. escolhe os principais acontecimentos narrados por Leite e confere a eles uma versão ficcional. No centenário da história de Pedra do Reino, em 1938, José Lins do Rego publicou Pedra Bonita. Nesse romance, José Lins do Rego se distanciou da temática memorialista e da cana de açúcar, até então predominantes na vasta obra do paraibano, e voltou a atenção para uma temática e um ambiente nunca antes aproveitados pelo autor: o sertão seco, inebriado pelo misticismo, povoado por cangaceiros, religiosidade popular e literatura de folhetos de cordel. O autor de Pedra Bonita busca no estudo de Antônio Áttico de Souza Leite o pretexto para compor o drama vivido por Bentinho, personagem principal do romance. Por último, em 1971, a historiografia literária registra a publicação de mais um romance sobre o tema. Trata-se de Pedra do Reino, primeiro romance do escritor paraibano Ariano Suassuna, que depois de se consolidar como dramaturgo, apresentou-se como romancista. Assim como Araripe Jr. e José Lins do Rego, Suassuna elegeu o memorial de Leite como fonte na composição de sua obra. Em nossa dissertação de mestrado, analisamos esse aspecto de Pedra do Reino e concluímos que Suassuna utiliza-se amplamente da obra Fanatismo Religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado em favor da narração dos fatos históricos relacionados à Pedra do Reino. Vale salientar que ao fazê-lo, o romancista imprime sentido diferente daquele Embora o romance seja assim mencionado, a referência completa a ele é SUASSUNA, Ariano Vilar. O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai e volta, Romance Armorial Popular Brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. Importante informar que sempre que nos referirmos ao fato histórico, grafaremos Pedra do Reino; as referências ao romance de Ariano Suassuna serão sempre homógrafas, mas em itálico. 2 16 Introdução utilizado por Antônio Áttico de Sousa Leite. Entre ambos, historiador e romancista, há visível diferença de objetivo e de ponto de vista ao narrar um mesmo fato3. Além de ter sido pretexto para os romances aqui apresentados, o episódio de Pedra do Reino é mencionado em Os Sertões, obra magistral de Euclides da Cunha, publicada em 1901. Euclides da Cunha, na tentativa de explicar os fatores históricos da religião mestiça entre os sertanejos, bem como a adesão ao mito sebastianista em Canudos, faz referência ao caso de Pedra do Reino. Talvez o autor tenha se voltado para a história da Pedra do Reino depois de descobrir, através dos folhetos de cordel, a grande influência de D. Sebastião entre os seguidores de Antônio Conselheiro, conforme consta em suas anotações de campo: “um iluminado, ali congregou toda população dos sítios convizinhos e, engripando-se à pedra, anunciava convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião” (CUNHA, 1997, p. 107). Para a elaboração desta tese, optamos por pesquisar O Reino Encantado: crônica sebastianista, romance de Tristão de Alencar Araripe Jr. A escolha se justifica por razões afetivas, mas também acadêmicas. O Reino Encantado é uma das obras cujo tema principal, conforme mencionamos, é a história da Pedra do Reino, assunto que desde o mestrado elegemos como matéria de nossas pesquisas. Nascida no município de São José do Belmonte-PE, desde a infância convivemos com os registros da memória individual e coletiva acerca desse evento histórico. As marcas, os sinais e as evidências da ligação afetiva e histórica do município com os acontecimentos ocorridos no sítio Pedra do Reino podem ser percebidos no cotidiano de São José do Belmonte. Basta dizer que ali adotou-se uma memória iconográfica composta por imagens das pedras do reino, sobretudo nos símbolos oficiais do município, a exemplo do hino, do brasão e da bandeira municipal. Esta última idealizada e confeccionada pela artista plástica Maria Cavalcantes de Sousa Moura, minha mãe, autora da capa da tese. Memórias oficiais, mas em constante disputa. Entre os citadinos, é recorrente um conjunto de atividades, manifestações, espaços culturais, palestras e publicações de obras e de folhetos de cordel em torno da história da Pedra do Reino4. Entretanto, se a memória coletiva e individual foi uma referência na opção do 3Enquanto que Antônio Áttico de Souza Leite narra os fatos do ponto de vista do interesse dos poderosos da região, Ariano Suassuna, através da personagem Quaderna, transforma o romance numa espécie de libelo em defesa da comunidade de Pedra do Reino. No romance, redimem-se os sebastianistas das acusações e defende-se a justeza do pleito dos sebastianistas: o confisco dos bens de fortuna dos potentados, a fim de ser redistribuído entre os pobres. Sobre as fontes históricas utilizadas na composição de Pedra do Reino, de Ariano Suassuna,conf. CLEMENTE, Débora Cavalcantes de Moura. Entre duas pedras: catolé. (Dissertação de Mestrado) UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas/ IEL- Instituto de Estudos da Linguagem/ Departamento de História e Teoria da Literatura. 2002, o cap. III 4 O exemplo mais expressivo dessas manifestações é a realização da Cavalhada e da Cavalgada à Pedra do Reino que ocorrem no último final de semana do mês de maio. Em 2012, aconteceu a 20ª edição do evento que é organizado pela Associação Cultural Pedra do Reino, com sede em São José do Belmonte – PE. 17 Introdução tema, não será esta o foco da pesquisa. O objeto desta tese é um romance, O Reino Encantado: chrônica sebastianista. Necessário registrar que a historiografia literária brasileira reconhece o nome de Araripe Jr. apenas como crítico literário. No entanto, é preciso anotar a considerável produção literária de ficção do autor, totalizando algo em torno de 10 romances, tais como O ninho do beija-flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Um motim na aldeia (1877), O Reino Encantado (1878), Luizinha (1878) – publicado inicialmente em 1872 com o título A casinha de sapé -, O Retirante (1878) romance inconcluso, Xico Melindroso (1882), O Guaianás (1882), Quilombo dos Palmares (1882), Miss Kate (1909), além de um livro de contos intitulado Contos Brasileiros (1868). Com exceção de Luizinha e Jacina, a Marabá, todas as demais obras só conheceram as primeiras edições que estão esgotadas há mais de 100 anos5. Não obstante a volumosa produção de Araripe Jr., a obra aqui selecionada para análise, O Reino Encantado, não teve o acolhimento necessário por parte da crítica literária e também por parte dos historiadores da literatura. Basta dizer que selecionamos mais de 40 jornais e periódicos do Ceará6 e do Rio de Janeiro7, publicados em 1878. Consultamos todas as edições dessas publicações, página por página, de janeiro a dezembro daquele ano, mas nenhuma menção ao romance foi localizada por críticos contemporâneos a’O Reino Encantado. A recepção da crítica especializada limitou-se a um ou outro artigo que menciona O Reino Encantado, sobretudo aqueles escritos em 1911-12 e 1948, anos que correspondem, respectivamente, às memórias do 1º ano de falecimento do romancista,8 e à lembrança do centenário de seu nascimento9. 5O romance Jacina, a Marabá conheceu uma 2ª edição em 1973, um dos livros da Coleção Imortais da Nossa Literatura. Cf. ARARIPE JR. Tristão de Alencar. Jacina, a Marabá. 2ª ed. Rio de Janeiro: Três, 1973. Já Luizinha foi reeditada em 1980, fruto de um convênio entre a Academia Cearense de Letras e a José Olympio. Cf. ARARIPE JR. Luizinha. 2ª ed. Fortaleza/Rio de Janeiro: Academia Cearense de Letras/ José Olympio, 1980. 6 Jornais consultados que circulavam no Ceará em 1878: O Cearense, O Colossal, Caryry, O Cruzeiro, O Cacete, O Combate, Gazeta do Sertão, Fraternidade, Baturité,O Retirante, Pedro II. 7 Jornais consultados que circulavam no Rio de Janeiro em 1878: Gazeta de Notícias, Jornal do Comercio, O Vulgarizador, FonFon, Ilustração Brasileira, Revista Illustrada, Revista Brasileira, Diário do Rio de Janeiro, A Lanterna, O Torniquete, A Reforma, O Economista Brasileiro, Museu Literário, Gazeta da Tarde, Domingo, O Besouro, Iracema, O Telefone, Revista Instrutiva, O Original, Alvorada, Diário da Tarde, Amor ao Progresso, Zig-Zague, Fênix Literária, O Socialista, Skating-Rink, Renascença, Revista Americana, O Phonógrafo. 8 DÓRIA, Escragnolle. “Araripe Jr.” Em: Revista da Academia Cearense de Letras. Tomo XVIII, Nº 18,Fortaleza, nº 18, 1913,p. 100-107; ALMEIDA, Júlia Lopes. “Dois dedos de prosa”. Em: O Paiz, Rio de Janeiro, 31.10.1911, p. 01; A Notícia. Rio de Janeiro. “Araripe Júnior”. 30.10.1911, p. 03; O Estado de São Paulo. “Araripe Júnior”. 30.10.1911, p. 03; Gazeta de Notícias. “Morreu ontem Araripe Jr. Rio de Janeiro”, 30.10.1911, p. 1; Correio da Manhã. “Faleceu pela manhã o dr. Tristão de Alencar de Araripe Júnior”. Rio de Janeiro, 30.10.1911, p. 03; Correio da Manhã. O senhor Coelho Neto fez o penegyrico de Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 31.10.1911, p. 05 9BARROSO, Gustavo. “O centenário de Araripe Jr.”Em: Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 18 de julho de 1948, p. 03; BRAGA MONTENEGRO. Araripe Jr, subsídios para estudo. Em: Clã-Revista de Cultura. Nº 03, Ano I, Fortaleza,junho de 1948, p. 01-42; COLARES, Otacílio.“O centenário de Araripe Jr.”Em: Suplemento literário da Folha da Manhã, Ano XXIV, nº 7464, 3º Caderno, São Paulo, 1º de agosto de 1948, p. 01; CASTELO, José Aderaldo. Biografia literária de Araripe Jr.- O homem e a época- (A propósito do centenário de seu nascimento). Em: Revista do 18 Introdução Sobre O Reino Encantado, localizamos um ou outro parágrafo isolado em dicionários e compêndios de literatura. É o caso do Dicionário Bio-bibliográfico cearense (1ª ed. 1915), do Barão Guilherme de Studart; do Dicionário Bio-bibliográfico brasileiro (1937), de João Francisco Velho Sobrinho; da História da Literatura brasileira: prosa de ficção, de Lúcia Miguel Pereira (1950); da obra A literatura brasileira (1963), de Afrânio Coutinho; da Pequena bibliografia crítica de literatura brasileira (1964), de Otto Maria Carpeaux; da História da literatura brasileira (1964), de Nelson Werneck Sodré; do Pequeno dicionário de literatura brasileira. (1ª ed. 1967), de José Paulo Paes e Massaud Moisés; da obra Poetas e prosadores do Brasil (1968), de Agripino Grieco; do Dicionário de literatura cearense (1987), de Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa. Antes de todas essas, em 1900, foi publicada em Buenos Aires a obra El Brasil intectual, do uruguaio Martin Garcia Mérou, na qual ele dedica quatro capítulos a Araripe Jr., mas apenas um deles refere-se a sua ficção. Um traço recorrente em todos esses textos, no entanto, é que eles são uníssonos em afirmar que a obra crítica de Araripe Jr. é detentora de uma qualidade superior a sua produção ficcional. No percurso da nossa pesquisa, cujo objetivo era reunir documentos sobre a produção literária de ficção de Araripe Jr., sobretudo sobre O Reino Encantado, poucas informações foram obtidas. Apesar do volume de material consultado, infelizmente não conseguimos localizar pareceres críticos sobre O Reino Encantado. Mas tivemos a grata surpresa de localizar na Fundação Casa de Rui Barbosa um conjunto de 22 correspondências ativas de Araripe Jr., escritas entre 03 de julho de 1872 e 15 de outubro de 1876. Dessas missivas, seis foram endereçadas ao pai, o Conselheiro Tristão Alencar, e a sua mãe dona Argentina Alencar de Lima; as outras 15 formam destinadas exclusivamente a sua mãe, com que mantinha uma relação marcada por fortíssimo afeto. Na mesma instituição, encontramos um caderno de memórias, com 35 páginas escritas por Araripe Jr.; um caderno de recordações de sua filha Antonieta Alencar Araripe, no qual ela colou documentos esparsos referentes e/ou elaborados por membros da família, a exemplo de cartas, recortes de jornal que mencionasse seus parentes, sobretudo o seu pai; por fim, na Casa de Rui Barbosa descobrimos um caderno de citações em que Araripe Jr. transcreveu cerca de 1500 frases de diversos autores. Esse caderno é luxuoso, de capa dura em cuja capa as letras são douradas. Parte desse material, sobretudo as cartas a sua mãe, utilizamos na elaboração do capítulo 1, como Instituto do Ceará. Fortaleza: Instituto do Ceará, Tomo 62, Ano, 62, 1948, p. 221 a 242; Suplemento literário de A Manhã dedicado a Araripe Jr. Rio de Janeiro, Vol. 7, nº 1, 09 de julho de 1944. 19 Introdução se verá adiante. Dada a importância e ineditismo desses documentos, anexaremos parte deles ao final desta tese10. Ficamos radiantes com a riqueza documental localizada na Fundação Casa de Rui Barbosa. Mas, nessa trajetória não encontramos registro de nenhum estudo acadêmico em nível de mestrado ou doutorado sobre O Reino Encantado. Por isso que, do ponto de vista acadêmico, justificamos a pesquisa pelo seu pioneirismo. Conforme já anotamos, a historiografia literária brasileira acolheu Araripe Jr. apenas como crítico literário. Seu nome é lembrado tão somente pela produção crítica que integra - ladeado por Sílvio Romero e José Veríssimo- a grande tríade da crítica brasileira do final do séc. XIX e início do séc. XX11. O Reino Encantado como também o conjunto da obra de ficção do autor composta por, pelo menos, uma dezena de romances ficou relegada ao esquecimento. “A fim de dar nova vida a este mundo que, desabitado, corre o risco de se tornar inerte” (CHARTIER, 1999, p. 155), tomamos para nós o desafio de trazer à luz o viés ficcional de Araripe Jr. Discuti-lo como romancista, autor de O Reino Encantado: crônica sebastianista. Isso posto, partiremos da seguinte questão: como Araripe Jr. “representa” a história da Pedra do Reino e suas personagens, crenças e “práticas sociais” no espaço ficcional de O Reino Encantado? Para discutir essas demandas, partiremos dos escritos do historiador francês Roger Chartier e de algumas obras de seus principais interlocutores12. Serão particularmente úteis suas categorias de “representação”, “apropriação” e de “práticas sociais”. No caso de Roger Chartier, faremos uso aqui de sua obra A história cultural: Entre práticas e representações (1990) e “O mundo como representação” (1991)13 um dos primeiros textos do autor que foi publicado originalmente em 1989, na revista francesa Annales (1990). No fundamental partimos desse artigo para Cf. AMLB/APEB/ FCRB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros da Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – RJ. Documentos AMLB nºs2187 a 2207 e nº 1966. 11 A produção crítica de Araripe Jr. tem sido objeto de vários estudos. Destacamos aquia pesquisa de fôlego de Afrânio Coutinho(1958-1970) que compilou e publicou em cinco volumes a maior parte da obra crítica de Araripe Jr., pela Casa de Rui Barbosa. Do mesmo Afrânio Coutinho mencionemos ainda Euclides, Capistrano e Araripe (1959), Crítica e Críticos (1969) e A Literatura no Brasil (1986). Sublinhemos ainda as considerações de Antônio Cândido (1969), Alfredo Bosi (1978), Francisco Foot Hardman (1992), Luiz Cairo (1996), para citar apenas alguns. 12 Como, por exemplo, Michel de Certeau (2002; 2005), MICHEL Foucault (2004; 2010); Carlo Ginzburg (1987); Pierre Bourdieu (1982; 2008); Sandra Jatay Pesavento (1998); Jacques Leenhardt (1998). Naturalmente, estes não foram os únicos a refletir sobre a categoria representação. Por outro lado, é necessário sublinhar que a polêmica continua aberta e novas contribuições vêm sendo expostas a público. 13 Outras publicações do mesmo Chartier serão também utilizadas. A saber: CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios e propostas. Em: Revista de Estudos Históricos, Vol. 07, nº 13, 1994, pp. 100113http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1973;Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996; A aventura do livro: do leitor ao navegador. 5ª ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1999;Cultura escrita, literatura e história. Conversas de Roger Chartier com Carlos A. Anaya, Jesús A. Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: Artmed, 2001. 10 20 Introdução compreender o problema das “práticas” e das “representações sociais”, bem como para entender o conceito de “apropriação”. Roger Chartier integra a corrente historiográfica conhecida como nova história cultural. Não obstante as variações explicativas no interior dessa corrente, compreende-se como pressuposto que a realidade é construída culturalmente e as representações do mundo social é que são constitutivas da realidade social. Como afirma Chartier, “as próprias representações do mundo social é que são os elementos constitutivos da realidade social” (CHARTIER, 1985, p. 683). Realidade que de nenhum modo é isenta de conflitos, mas, ao contrário, segundo o autor, é uma construção permanentemente tensa, situada em diferentes campos de força: “representação é a forma através da qual, em diferentes espaços e situações, uma determinada realidade é construída, arrazoada, compreendida por diferentes grupos sociais” (CHARTIER, 1996, p. 16). Portanto, estes e outros pressupostos gerais direcionam o conceito de representação de Roger Chartier. Conceito que implica pelo menos três tipos de relação com o mundo. Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de decomposição, que dá origem aos diversos padrões intelectuais a partir dos quais a realidade é construída de maneiras contraditórias pelos vários grupos que formam a sociedade; em segundo lugar, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira específica de estar no mundo, significar simbolicamente um status e uma hierarquia; e, finalmente, as formas institucionalizadas, objetivadas, por meio das quais os ‘representantes’ (coletivos ou individuais) marcam a existência do grupo, comunidade ou classe de um modo visível e permanente”(CHARTIER, 1995, p. 552). Dessa forma, pela noção de “representação coletiva”, é possível compreender as formas contraditórias de construção da realidade, as práticas que representam esta realidade de modo simbólico e, por fim, as formas institucionalizadas pelas quais é construída a existência de grupos e ou de classes sociais. Em virtude dessas considerações, entendemos que tal conceito ajuda a entender como uma determinada realidade, no caso, a história da Pedra do Reino, é construída, mas também representada; seja no campo da prática social ou, dito de outra forma, na realidade vivida pelos sujeitos históricos; seja num discurso literário como O Reino Encantado, de Tristão de Alencar Araripe Jr. Ao longo da tese, tentaremos perceber como Araripe Jr. dá voz aos sujeitos envolvidos no conflito em Pedra do Reino, tanto aos representantes da “ordem”, ou da “legalidade”, os membros da elite dominante local; como os integrantes da comunidade sebastianista. Por sua 21 Introdução narrativa de ficção, Araripe Jr. nos proporciona um olhar sobre como aqueles segmentos da sociedade representavam o mundo ao seu redor, quais eram suas crenças, sua cosmovisão, bem como suas práticas sociais. Atrelada à noção de representação, a categoria “prática social” permite decifrar as sociedades a partir das relações e das tensões que as constituem, conferindo-lhes inteligibilidade. Chartier anuncia aqui uma alternativa, uma forma de análise das práticas sociais contraditórias, individuais ou coletivas, constituídas de sentidos para seus agentes. a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles (CHARTIER, 1991, p. 05). O trecho citado possibilita compreender traços da sociedade brasileira de 1878, ano de publicação de O Reino Encantado. Ela, a sociedade patriarcal, era composta de uma maioria de homens e de mulheres cativos, acrescida por um número menor de sujeitos livres e pobres, força de trabalho subjugada a uma minoria de senhores patriarcais, formando uma sociedade marcada pelas profundas desigualdades sociais. Por força da violência física e simbólica e do poder de mando, construía-se o consenso social pautado na submissão, no apadrinhamento, na subserviência cotidiana. Em Pedra do Reino esse lugar comum foi rompido. Pontos de tensão fomentados pelo desejo de melhoria de vida, de viver em um paraíso aqui mesmo na terra, moveram o grupo que se formou em torno das pedras a dar um sentido diferente ao mundo que era deles. Esta prática social é composta por sucessivas construções de sentidos. A liberdade criadora dos indivíduos, atuando criativamente em espaços regulados, caracteriza sempre um processo de apropriação. Chartier explica como entende a noção de apropriação: A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Assim, voltar a atenção para as condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as operações de produção do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também) (CHARTIER, 1991, p. 09). Por conseguinte, para Chartier representação, práticas e apropriações sociais constituem faces diferentes de um mesmo processo. Sabemos que, embora ele tenha recebido notáveis adesões no campo científico-acadêmico, seu legado vem sistematicamente sofrendo revisões, 22 Introdução sobretudo o conceito de representação. Seria uma forma renovada de relativismo? Uma maneira de reduzir a história aos condicionantes culturais? Um alargamento deste conceito a tal ponto de torná-lo ininteligível? As respostas a estas indagações são múltiplas, de acordo com a posição e interesse dos críticos. Parece, aos críticos, no entanto, tratar-se de uma forma de reducionismo cultural. Lynn Hunt, por exemplo, questiona o pressuposto segundo o qual qualquer prática, seja ela econômica, intelectual, social ou política venha a ser compreendida “como culturalmente condicionada” (apud CARDOSO, 2000, p. 19). Na mesma linha de pensamento, Ronaldo Vainfas entende que Chartier substituiu a antiga “tirania do social” por uma nova, a “tirania do cultural”, referindo-se ao fato de que “fica-se com a impressão de que a única história possível é a história cultural, (1997, p. 154-155). Peter Burke, por seu turno, reconhece a importância de Chartier ao propor novos questionamentos às explicações materialistas tradicionais. Mas, entende este historiador que “ainda parece útil considerar que tais fatores (materiais) estabelecem o tema, os problemas aos quais os indivíduos, os grupos e, falando metaforicamente, as culturas, procuram adaptar-se e reagir”( apud CARDOSO, 2000, p. 19). Não desconhecemos as críticas aos postulados de Roger Chartier, mas não fazemos coro a elas. Do contrário, entendemos que uma pesquisa sobre as diferentes representações dos agentes de Pedra do Reino cristalizadas nas narrativas históricas e narrativas literárias contribuirá para uma compreensão mais dinâmica do episódio porque traz à luz, vozes do passado até então silenciadas. Em virtude dessas considerações, segmentamos a tese em três capítulos. Embora o ponto de partida deste trabalho seja o romance O Reino Encantado, o primeiro capítulo não tratará da obra, mas exporá os fatos históricos que serviram de pano de fundo na composição do romance. Assim, recontaremos a história da Pedra do Reino, a partir dos registros que a historiografia brasileira anotou sobre o episódio. A despeito de o objeto de estudo desta tese ser o romance O Reino Encantado e a pesquisa se inscreva eminentemente nos domínios da literatura, consideramos importante compor um capítulo que rememorasse a história de Pedra do Reino. Justificamos a escolha porque compreendemos que os sucessos desse movimento messiânico não são de domínio público; é um fato histórico brasileiro pouco estudado no meio acadêmico e não há registros de menção a ele em nenhum livro didático. O outro intento do capítulo é identificar e analisar as representações do episódio da Pedra do Reino e dos seus principais atores em narrativas históricas e em outras obras sobre o tema. Destacamos aqui autores como Antônio 23 Introdução Áttico de Souza Leite (1898; 1903), Daniel Parish Kidder (1972), Pereira da Costa (1908; 19831985), Nina Rodrigues (2006), Câmara Cascudo (1984), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976; 1997), para citar apenas alguns. No segundo capítulo, abordamos a trajetória intelectual de Araripe Jr., a partir da sua produção crítica publicada entre 1868 e 1878. Consideramos que as “representações” que o romanista elaborou da história da Pedra do Reino e de suas personagens têm estreita ligação com sua formação, cujos vestígios estão também no discurso não-ficcional que Araripe Jr. produziu. Por isso, no capítulo 2 consta um apanhado das notícias biográficas sobre Araripe Jr. Depois, há uma análise da “geração de 1870”, da qual Araripe Jr. participou, compreendendo-a, a partir de Alonso (2000), como um “movimento reformista” de cunho político, cujos argumentos estavam centrados em elementos da tradição político-cultural brasileiras, confrontados com um “repertório” filosófico e científico europeu. E, para concluir o capítulo, elaboramos um exame do posicionamento de Araripe Jr. ante as tensões romântico-naturalistas em voga no Brasil, a partir do que ele escreveu entre 1868-1878. Convém anotar que a atividade crítica de Araripe Jr. se prolongará até 1911, ano de sua morte. Mas aqui só contemplaremos a crítica produzida por ele até a data da publicação de O Reino Encantado, 1878, uma vez que a compreensão do discurso crítico terá como objetivo apenas subsidiar as análises do romance, objeto de estudo desta tese. O 3º e último capítulo organiza-se em torno de dois objetivos. Primeiro, apresentar ao leitor um resumo detalhado do romance O Reino Encantado. Esmeramo-nos nas minudências porque o romance e romancista são praticamente desconhecidos. Em seguida, analisaremos as “representações” da história da Pedra do Reino e de suas personagens à luz de orientações romântico-naturalistas, bases teóricas sobre as quais o romance foi elaborado. 24 Capítulo 1 O itinerário da Pedra do Reino na historiografia literária brasileira: entre a paráfrase e o esquecimento Para Marcos e Júlia, com amor. Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 N este capítulo, pretendemos alcançar dois objetivos centrais. Primeiro: recontar a história de Pedra do Reino, em consonância com os registros da historiografia sobre o movimento messiânico de cunho sebastianista, ocorrido em São José do Belmonte – PE, entre 1836-1838. Depois, cumpre-nos revisar um conjunto de obras filiadas às ciências sociais e outras ciências que se dedicaram à história da Pedra do Reino. São pelo menos dez obras de sociólogos, médicos, militares e memorialistas a partir das quais analisaremos as “apropriações” e “representações” que tais obras demandam sobre as diferentes fases do movimento, desde a sua propalação, perpassando pelos fatos principais ocorridos em maio de 1838, até o sepultamento dos mortos, dado em julho daquele mesmo ano; assim como discutir nessas mesmas obras o lugar que a historiografia brasileira reservou à história de Pedra do Reino, caracterizado por um certo esquecimento ou apagamento. Qual a importância de relatar a história de Pedra do Reino? Por que destinar uma parte desta tese para recontar o episódio? Entendemos que o fato histórico de Pedra do Reino não é de domínio público; tem apenas relativa visibilidade; condição que nos impele a, antes de discuti-la, narrá-la de acordo com os apontamentos historiográficos. Cumpre registrar que tomaremos como fonte Fanatismo religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na comarca de Villa Bella província de Pernambuco, do autor pernambucano, Antônio Áttico de Souza Leite, cuja primeira publicação data de 1875. A opção também demanda justificativa. Por que não eleger como fonte, por exemplo, a obra pioneira Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias, de Daniel Parish Kidder(1972), uma publicação em dois volumes, cujos originais em inglês foram uma coedição de editoras de Londres e da Filadélfia, em 1845? Daniel Kidder era um pastor norte americano da Igreja Metodista que viajou ao Brasil entre os anos de 1836 e 1840. A obra é fruto de sua viagem e nela há um sucinto trecho dedicado à história de Pedra do Reino. A despeito de o texto do pastor Kidder ter o mérito do pioneirismo, optamos por Antônio Áttico de Souza Leite como fonte. Trata-se da obra de maior repercussão, quando o assunto é Pedra do Reino. Ao que tudo indica, o memorial foi eleito como uma espécie de fonte obrigatória dos estudos posteriores sobre o tema, como um texto matriz de todas as demais que se dedicaram à Pedra do Reino. Em sua maioria, ecos do texto de Leite, por reproduzirem boa parte dos pontos de vista que ele 26 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento adotou, a exemplo das representações dos sebastianistas14, de seus líderes, assim como dos potentados15. A adoção talvez se deva à riqueza de detalhes que o autor utilizou para narrar os fatos. Ou, talvez, por causa das características literárias que Leite incluiu no memorial, a exemplo dos diálogos e da inserção do elemento fantástico. Há de se considerar ainda a peculiaridade editorial da obra de Leite, que conheceu três publicações. Dificilmente ela teria a repercussão que tem, caso não tivesse sido incluída na Revista do Instituto Arqueológico e Histórico de Pernambuco. Afirmamos isso porque essa última edição foi a que sobreviveu até hoje. A primeira, de 1875, não foi encontrada, a segunda é de difícil acesso porque compõe o acervo de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O valor da obra de Antônio Áttico de Sousa Leite também se conta porque ela serviu como fonte na composição de três romances brasileiros: O Reino Encantado (1878), Pedra Bonita (1938) e Pedra do Reino (1971). São obras que têm como pano de fundo a história da Pedra do Reino. O Reino Encantado, de Tristão de Alencar Araripe Jr., conforme já indicamos na introdução, é objeto principal desse estudo. Posto o quê, reafirmamos que não há dúvida quanto à importância da obra de Antônio Áttico de Sousa Leite para os estudos da Pedra do Reino. Por isso recorreremos a ele para narrar como os sucessos daquele movimento messiânico passaram para a história, ainda que o memorial seja passível de problematizações. Encerrada a narrativa, passaremos à parte mais relevante do capítulo. Nela analisaremos as “apropriações” e “representações” que um conjunto de obras demandaram sobre a história de Pedra do Reino. São textos produzidos por diferentes autores, de formação intelectual variada, localizados em diversos espaços e tempos, oriundos de matrizes ideológicas diversas. A título de exemplo mencionemos as já citadas reminiscências do pastor Kidder e o memorial de Leite, assim como as obras As coletividades anormais (2006), do médico Nina Rodrigues, Folclore Pernambucano (1908), do historiador Francisco Augusto Pereira da Costa, Almas de lama e de aço (1928), de Gustavo Barroso, O messianismo no Brasil e no mundo (1976), da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre outras. As leituras dos textos produzidos em torno da história de Pedra do Reino suscitam questões importantes, tomadas de empréstimo a Chartier (1991). Como uma mesma realidade é construída, pensada e dada a ler por distintos grupos sociais? Ou seja, como os diferentes atores Chamaremos de “sebastianistas” os participantes do movimento messiânico de Pedra do Reino, ocorrido entre 1836-1838. 15 Denominaremos como “potentados” o grupo que se opôs, combateu e debelou o movimento messiânico de Pedra do Reino, formado por representantes da Igreja Católica, fazendeiros e militares. 27 14 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 de Pedra do Reino, oriundos de grupos sociais desiguais, apropriam-se e representam aquele movimento messiânico? Nesse capítulo, visamos discutir o leque de representações da história de Pedra do Reino e seus atores. Passemos à narrativa. 1.1. Pedra do Reino: a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite Segundo Antônio Áttico de Souza Leite, no século XIX, entre os anos de 1836 e 1838, o sítio de Pedra Bonita, no sertão do Pajeú de Flores (atual município de São José do Belmonte), Pernambuco, foi cenário de trágicos acontecimentos messiânicos de inspiração sebastianista. Findo o movimento, contabilizavam-se 53 mortos, entre os quais velhos, adultos e crianças, além de vários feridos. No começo de 1836, um “mameluco”16, chamado João Antônio dos Santos17, morador do termo de Vila Bela (atual Serra Talhada-PE), costumava reunir a população circunvizinha no sítio Pedra do Reino. Pregava João Antônio dos Santos que o monumento natural, até então conhecido como Pedra Bonita, era, na verdade, parte de duas belíssimas torres de um templo, parcialmente visível, e que seria, por certo, o castelo de um reino. João Antônio dos Santos propalava aos moradores a crença de que estava recebendo em sonho El-Rei Dom Sebastião, que este lhe revelou a existência de um tesouro. Esse tesouro estaria numa lagoa, próxima à Pedra do Reino, local de onde ele teria retirado duas pedrinhas brilhantes, supostamente diamantes, que, segundo João Antônio, seriam pequena amostra do maravilhoso tesouro do reino de D. Sebastião. Nessas ocasiões, portava um velho folheto português “de que nunca se apartava, e que encerrava um desses contos ou lendas, que andavam muito em voga acerca do misterioso desaparecimento d’ El- Rei- Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, e de sua esperada e quase infalível ressurreição” (LEITE, 1903, p. 221). As imagens que se seguem compõem um dos manuscritos sobre D. Sebastião que circularam no Brasil, localizado na Biblioteca Nacional. O título é “Tratado de vários discursos e alguns casos históricos acerca do Encoberto Rei de Portugal o Sr. Rei D. Sebastião acompanhado Mameluco é o nome que se dá ao mestiço de branco com índio. João Antônio dos Santos é personagem histórica e também foi aproveitado por Araripe Jr. como personagem de O Reino Encantado, conforme veremos ainda nesta tese. 28 16 17 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento de muitas mais coisas curiosas dignas de bastante atenção”. O texto é dividido em “discursos” e as imagens que trouxemos referem-se ao 1º deles18. [Figura 1] 18No 1° discurso, localizam-se os seguintes dizeres: “Discurso sobre as profecias de hum religioso de São Bento chamado Fr. João de Rosas Selça: “Huno religioso de São Bento do Aragão chamado Fr. João de Rosas Selça deichou uma profecia sobre a volta (?) do Encoberto em que mostra ser El Rey Dom Sebastião a qual diz assim: ‘Qual das três coroas por certo/(Da qual huma há só saído)/Hum coroado foi vencido/Estará o Encoberto/Por mostrar que era perdido/Este é pois quem eu digo/Este que chegado será/Seu partido como amigo/E mil vitórias fará.’”Esta profecia é uma das mais notáveis dignas de admiração das quais se tem visto e como está importante conferidas não deixa de causar admiração porque no mundo raras vezes a clamar hum povo de um Reino sem contradição(...)Foi El Rey D. Felipe jurado e aclamado rei de Portugal, El Rey D. João 4 – também jurado e aclamado e conduzido ao trono que era seu por herança e foi também Rey de Portugal, pois El Rey D. Sebastião também havia sido jurado e aclamado Rei de Portugal: aqui estão três reis jurados e aclamados de Portugal, todos vivos; nesta parte está a profecia cumprida e no mais quando diz: ‘Hum coroado foi vencido/Estará encoberto/Por mostrar que não era esquecido.’/Diz que um dos três foi vencido./Ficará encoberto por ser Imperador como dizem outras profecias vejam agora qual dos três Rey nomeado vencido e está encoberto que a parte da profecia estar por cumprir quando diz:‘ Este é pois quem eu digo/Este que chegado será/Este que outro lhe tirará/Seu partido como amigo/E mil vitórias fará.’/Vem a dizer que quando aquele rei encoberto digno se fala será chegado quando outro lhe tivesse partido como amigo o qual se entende como outro Rey coroado ou jurado como os outros parece que se podia acomodar os outros dois governos vivos de mãe e filho e com o Encoberto trez como se podo escolher de santo Isidoro quando diz: Vejo entrar uma dama/ Com armas assim carvalho/Em que ressuscita/saindo de uma campina/Damas sem armas só. 29 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 30 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 31 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 32 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 33 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 34 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento De acordo com Leite, João Antônio dos Santos era detentor de forte poder de persuasão: o mameluco era homem sagaz, astuto e manhoso, e sabia insinuar-se no ânimo das pessoas a quem comunicava os mistérios, de que se inculcava depositário. Falava a cada um numa gíria especial, e sempre em linguagem adaptada à capacidade, inteligência, e interesses daqueles em quem pretendia incutir suas doutrinas (LEITE, 1903, p. 221). João Antônio contava com a ajuda de seus familiares - pai, irmãos, tios. Todos “iam dar o testemunho das riquezas e fazer repercutir os seus engenhosos embustes no meio das populações ignorantes de Piancó, Cariri, Riacho do Navio, e margens do Rio São Francisco” (LEITE, 1903, p. 222). Logo conseguiu inúmeros seguidores. Veio gente da redondeza e também de terras distantes, por onde a história se espalhou, alimentada pela esperança de obter as maravilhas que o profeta não cansava de prometer com o retorno de D. Sebastião: as pessoas negras ficariam “alvas como a lua, imortais, ricas e poderosas; se eram velhas, vinham moças, e da mesma forma ricas, poderosas, e imortais, com todos os seus” (LEITE, 1903, p. 229). O mentor dos sebastianistas sertanejos também angariou entre os “fazendeiros do lugar bois, cavalos e dinheiro em porção não pequena com a onerosa condição de restituir-lhes logo que operasse o pretenso desencantamento do misterioso reino” (LEITE, 1903, p. 229). Conta Antônio Áttico de Sousa Leite que João Antônio se apaixonou por uma moça do lugar, chamada Maria. Porém, os familiares da pretendida não aceitavam o casamento dos dois. Para convencê-los, João utilizou-se mais uma vez dos versos contidos no folheto que diz: Quando João casasse com Maria, Aquele reino se desencantaria (LEITE, 1903, p. 221)19. As pregações do visionário João Antônio tanto conseguiam êxito ao arregimentar seguidores, como também foram decisivas para que ele conquistasse a família de Maria e se casasse com ela. Mas atraía também sobre si a reprovação da cúpula da igreja católica. Assim é que o padre Antônio Gonçalves de Lima, apoiado pelos fazendeiros da região, tratou de reclamar a presença do missionário Pe. Francisco Correa naquele distrito, a fim de abrir uma missão especial para combater a seita em seus fundamentos, desmascarar o impostor em suas pretensões e livrar o pobre povo das garras do falso profeta. A missão do Padre Francisco surtiu efeito. João Antônio, diante da presença do missionário, entregou-lhe as duas pedrinhas, “que estavam longe de ser brilhantes e depois de confessar publicamente seus embustes” (LEITE, 1903, p. 229), retirou-se para os sertões dos Inhamuns, no vizinho estado do Ceará, com Maria. Como veremos no último capítulo, Araripe Jr. utiliza esses versos para nortear a trama do romance O Reino Encantado. 35 19 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Porém, João Ferreira, um dos seguidores do profeta, assumiu a liderança do grupo, se autoproclamou rei e distribuiu os demais títulos de nobreza às pessoas do grupo. Foi instituído um clero. Por isso todos os casamentos e demais atos religiosos eram presididos por um padre escolhido entre eles, chamado Frei Simão. A poligamia era permitida e se instituiu uma antiga prática medieval: o rei acompanhava a noiva em sua primeira noite de núpcias. Sempre que os súditos pediam para ver D. Sebastião e as riquezas que ele lhes reservava, o suposto rei distribuía entre eles um composto de jurema e manacá, ervas de comprovado poder alucinógeno, facilmente encontradas na região, adicionadas a aguardente. Sob o efeito da mistura, todos eram capazes de ver D. Sebastião. Em certa ocasião, o rei chamou seus súditos para dizer-lhes que D. Sebastião estava triste e que era preciso lavar as pedras com sangue para que houvesse logo o desencantamento. Portanto, alguns deveriam ser sacrificados. Mas, logo que EL-Rei D. Sebastião voltasse, devolveria a vida a todas essas pessoas. Por essa causa, vários adultos se ofereceram para o sacrifício e ofereceram também seus filhos. A partir daí, muitos foram sacrificados. Vendo aquela carnificina, um dos membros do grupo, um vaqueiro chamado José Gomes Vieira, fugiu para a vila mais próxima, contatou o chefe político do lugar, Manoel Pereira da Silva, e narrou os fatos ocorridos no sítio Pedra Bonita. Este reuniu alguns homens e partiu em direção à Pedra do Reino, ainda meio descrente em toda aquela história contada pelo vaqueiro. Chegando lá, encontraram o rei João Ferreira, “O Execrável”, morto. Seu substituto, Pedro Antônio, irmão do primeiro profeta, João Antônio, juntamente com os seguidores sobreviventes estavam num lugar um pouco afastado das pedras, dado o estado de decomposição das vítimas, aguardando o desencantamento de D. Sebastião. Contudo, quem apareceu foi o grupo de Manoel Pereira da Silva. Promoveu-se uma batalha entre a tropa de Manoel Pereira da Silva e os adeptos da seita, resultando na morte da maioria dos homens sebastianistas e na prisão de todos os sobreviventes, que foram levados a Flores. Na sede do município, mulheres e crianças foram distribuídas entre as famílias do lugar e os homens foram levados a julgamento. O primeiro profeta, João Antônio, foi perseguido e morto pela polícia na Bahia, lugar para onde ele havia se mudado com Maria. 36 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 1.2. Representações da história da Pedra do Reino Em Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro afirma que o “segredo da verdade é o seguinte, não existem fatos, só existem histórias”. A assertiva nos lembra que o acesso direto aos fatos passados está irremediavelmente perdido; se entramos em contato com eles, será sempre mediado pelos textos. Desse modo, fazemos coro a Chartier que considera os discursos históricos como representações. Compreendemos que as histórias da Pedra do Reino, contadas por Antônio Áttico de Souza Leite e pelos demais autores, são algumas das muitas representações possíveis do fato histórico. Entretanto, observaremos que os autores que escreveram sobre Pedra do Reino depois de Leite tomam Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado como se fosse a verdade absoluta e definitiva. Já dissemos que o memorial de Leite é tomado como fonte das demais obras que se seguiram a ele. Isso se constitui um problema à medida que elas partem do princípio que a narrativa representa a totalidade dos fatos ocorridos em Pedra do Reino. Para uma compreensão mais criteriosa da obra de Leite, julgamos necessário reproduzir as noções de passeidade e de narrativa histórica defendidas por Leenhardt e Pesavento (1998, p. 1011). São conceitos bem distintos. O primeiro, refere-se ao “real acontecido”, a exemplo da história da Pedra do Reino. O segundo é o “discurso ou texto elaborado pelo autor sobre aquela passeidade”, caso da obra de Leite e tantas outras. O movimento messiânico de Pedra do Reino é a passeidade. É o que de real aconteceu nas imediações do sítio histórico, entre os anos de 1836 e 1838, e seus desdobramentos. Já a narrativa histórica compõe-se de parte dos ofícios, do memorial de Leite e das demais obras das ciências sociais que se ocuparam do tema. Leenhardt e Pesavento (1998, p. 06) entendem que “assumir este posicionamento implica em endossar a presença de tensões e/ou conflitos, tanto entre os horizontes de representação como aquele que se dá entre o caráter irredutível do fato e atribuição de sentido que lhe dá o historiado”. O postulado leciona que a narrativa histórica é um discurso que reelabora a passeidade, uma representação. Michel de Certeau (2002, p. 65-9) assegura que toda representação do passado, seja ela qual for, não parte de um não lugar social e temporal, muito pelo contrário, toda representação parte de um lugar social e temporal carregado de interesses, e influências. Toda a produção historiográfica sobre a Pedra do Reino marcou-se pelo "lugar social" do discurso: não se podendo esquecer quem falava e de onde falava. Se assim consideramos, é possível afirmar que é um equívoco perpetuar a ideia de que o memorial de Antônio Áttico de Souza Leite corresponde à passeidade. Ocorre que esta é a 37 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 compreensão corrente, desde os autores que sucederam Leite nos estudos de Pedra do Reino até hoje. A partir da compreensão da passeidade versus narrativa histórica, a leitura do memorial de Leite suscita questões importantes. A saber: quais os propósitos históricos de Antônio Áttico de Souza Leite ao trazer à luz a história de Pedra do Reino? Quais as representações do autor sobre o movimento de Pedra do Reino? E dos líderes? Dos rituais? Dos sebastianistas de Pedra do Reino? Que representações demandam a Igreja Católica e o Estado? Como Leite se apropria e representa os atores de Pedra do Reino e suas práticas? As mesmas interrogações servem para os demais autores que se apropriaram e representaram a história de Pedra do Reino, os romancistas, inclusive. 1.3. Antônio Áttico de Souza Leite e suas representações 1.3.1. Uma obra em três edições Houve três edições de Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino encantado na comarca de Villa Bella província de Pernambuco. A primeira data de 1875 e foi publicada pelo Instituto Tipográfico de Direito. Não localizamos nenhum exemplar da edição inaugural nas bibliotecas que consultamos, nem mesmo em acervos importantes como o da Biblioteca Nacional, Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, Biblioteca da Fundação Joaquim Nabuco, só para citar algumas. Melhor sorte tivemos ao localizar a 2ª edição, no setor de obras raras da Biblioteca Nacional. Publicada em 1898, 23 anos depois da primeira edição, há na contracapa a informação de que a obra inclui um “juízo crítico do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe”, pai de Araripe Jr.[Figura 2] O prefácio do Conselheiro Tristão, na verdade, era uma carta dirigida ao Monsenhor Joaquim Pinto de Campos, a quem o remetente se dirige como amigo. As palavras iniciais do Conselheiro Tristão se assemelham às de um parecerista: “Li o opúsculo que deu-me para examinar e conhecer seu valor histórico. Julgo digno de publicidade o fato extraordinário, de cuja narrativa ocupa-se o autor do mesmo opúsculo” (ARARIPE, 1875, 07). 38 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 39 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Convém realçar que, para boa parte do pensamento brasileiro do período, havia inequívoca autoridade no discurso do Conselheiro Tristão. Filho de família abastada do Ceará, desde que se tornou bacharel em Direito na Universidade de São Paulo, em 1845, prestou serviço à área jurídica, por 53 anos, precisamente até 1898, quando se aposentou. A trajetória de Tristão Alencar Araripe é um exemplo que se reproduziu para tantos outros brasileiros “bem nascidos” como ele. Para José Murilo de Carvalho, a elite se distinguia por possuir estudos superiores, sobretudo na área jurídica, o que acontecia com pouca gente fora dela: “a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos” (CARVALHO, 2007, p. 65). Ocupou cargos de destaque na Monarquia além de ser eleito conselheiro do rei, por decreto de 24 de janeiro de 1874, e agraciado com o oficialato da Ordem da Rosa; e na República, escolhido Ministro do Supremo Tribunal Federal, em 1890, cargo que ocupou até se aposentar, aos 72 anos. O Conselheiro Tristão ainda integrou agremiações culturais, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro20. No prefácio, o Conselheiro Tristão elenca razões para se compreender a Pedra do Reino. Uma delas é que “cumpre ao homem pensador estudá-lo para conhecer toda debilidade do espírito humano e cogitar os remédios de seus desvarios”. O Conselheiro Tristão dividiu os homens em ilustrados e, no que seria o contrário deles, os de espírito débil, os desvairados, a quem os primeiros deveriam socorrer com seus remédios. Outro aspecto questionado é o da veracidade dos fatos, tal qual eles foram recontados por Antônio Áttico de Souza Leite. O fato, nos dizeres do Conselheiro Tristão, se constitui em “tão singular desvio da razão e dos sentimentos do homem que desafiaria a incredulidade, se o sucesso não fosse dos nossos dias, se as provas não fossem tão autênticas e robustas, e se, agora mesmo, não estivesse presenciado aberrações do espiritismo” (ARARIPE, 1898, p. 7-8). 20O conselheiro Tristão de Alencar Araripe (1821-1908) tem uma vasta obra literária, histórica e jurídica publicada, as vezes com o pseudônimo de Philopoemen. Algumas de suas obras mais importantes são História da Província do Ceará (desde os tempos primitivos até 1850); A questão religiosa (1873); Como cumpre escrever a história pátria (1876); Patriarcas da Independência (1876); Consolidação do processo criminal do Império do Brasil (1876); Primeiras linhas sobre o processo orfanológico (1879); Pater-famílias no Brasil nos tempos coloniais (1880); Visconde do Rio Branco na Maçonaria (1880); Guerra civil no Rio Grande do Sul (1881); Notícias sobre a maioridade (1882); 25 de março. O Ceará no Rio de Janeiro (1884); Classificação das leis do processo criminal e civil (1884); Código Civil Brasileiro (1885); Neologia e Neografia Geográfica do Brasil (1885); Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão (1885); Independência do Maranhão (1885); Movimento colonial da América (1893); Primeiro navio francês no Brasil (1895); Cidades petrificadas e inscrições lapidares no Brasil (1896); Primazias do Ceará (1903). Traduções: Ataque e tomada da cidade do Rio de Janeiro pelos franceses em 1711, sob o comando de Duguay-Trouin; Vida do Padre Estanislau de Campos; História de uma viagem à terra do Brasil, por João de Leri; Relação verídica e sucinta dos usos e costumes dos Tupinambás, por Hans Staden; Comentários de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, por Pedro Fernandes; História do Ceará – 2ª Parte. 40 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento O Conselheiro Tristão considera Pedra do Reino como um movimento socialista. De todos os juízos críticos que ele faz, esse é que mais merece relevo. O Conselheiro Tristão entendeu que em Pedra Bonita, além de fanatismo, transparece um pensamento socialista: No acontecimento de Pedra Bonita não operou somente o fanatismo religioso; ali transparece também o pensamento socialista. Além do sacrifício de criaturas humanas, (...) havia o sacrifício de cães, verdadeiros molossos, que no dia do grande evento, levantar-se-iam como valentes e idômitos dragões para devorar os proprietários. Aqueles que pretendiam a destruição dos proprietários pelos seus dragões, não refletiam que seriam eles mesmos as vítimas porque, se lutavam obstinadamente, o faziam para ressurgir fortes, ricos e poderosos. Tal é a contradição do espírito humano! O sofrimento atual suscitava nesses visionários o ódio contra o poder e a propriedade, suprimindo-lhes a lógica (ARARIPE, 1898, p. 9). O prefaciador entendia que, em lugar de desvalorizar a propriedade e o proprietário, necessário era valorizar o trabalho. Este não destrói a riqueza: antes, cria novas fortunas, tirando da miséria e dando gozo a quem produz, e não a quem somente aniquila. No horrível drama de Pedra Bonita, revela-se claramente o proletarismo, que ergue-se contra o trabalho e a riqueza, bases da sociedade civilizada e fundamento da grandeza dos povos (ARARIPE, 1898, p. 10). O texto do Conselheiro Tristão é de 30 de junho de 1875. Saltam aos olhos as discussões envolvendo proletarismo, poder, luta de classe e destruição da propriedade, uma vez que demonstra que a difusão de ideais socialistas é de pelo menos 47 anos antes da fundação do Partido Comunista Brasileiro, em 25 de março de 1922. A formulação política seria, então, um pioneirismo? De que forma o Conselheiro Tristão tomou contato com essas ideias, uma vez que terminologias que ele adotou denotam uma leitura prévia sobre o tema? Para responder questões dessa natureza, seria necessário, por exemplo, consultar a biblioteca pessoal do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, doada à biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na tentativa de historiar seu percurso como leitor. Ou mesmo ler outras obras produzidas por ele, a fim de localizar novas incursões sobre o comunismo, dando especial atenção aos artigos que o Conselheiro Tristão publicou em jornais e outros periódicos do Rio de Janeiro, do Ceará e de outras províncias onde trabalhou. Acontece que as atividades desviariam o olhar do tema da nossa pesquisa e, por isso, consideramos um preciosismo desnecessário. Localiza-se ainda na 2ª edição um item intitulado “A quem lê”. É uma espécie de apresentação, escrita por Solidônio Leite (1898), filho de Antônio Áttico de Souza Leite, que já havia falecido. Solidônio justifica duplamente a publicação de uma segunda edição da obra do pai. Primeiro, para reparar a grave falta que o editor Monsenhor Joaquim Pinto de Campos cometeu 41 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento ao não publicar nela uma estampa explicativa, uma gravura cuja autoria é atribuída ao Pe. Manoel Correa. De fato, consideramos a lacuna relevante, uma vez que, no capítulo 12, Antônio Áttico de Souza Leite elabora uma sucessão de 17 legendas explicativas da estampa compreendida como uma síntese da história de Pedra do Reino. Segundo, desejava o autor da apresentação atender o desejo legítimo do pai de preencher tal lacuna e de corrigir a ortografia. Solidônio Leite descartou a segunda alternativa porque o manuscrito se perdeu, mas se propôs a satisfazer parte do desejo do pai, mesmo que em memória. Ainda na apresentação, Solidônio Leite informa que operou duas alterações naquela 2ª edição. Incluiu a estampa que um de seus irmãos localizou no IAHGP, cuja publicação muito dependeu do apoio do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, o prefaciador da obra; assim como, mudou o título original de Memória sobre Pedra Bonita ou Reino Encantado para Fanatismo religioso. Solidônio Leite conclui o texto assinando-o e especificando o local e a data de seu texto: Juiz de Fora, janeiro de 1898. Eis a estampa cuja autoria é atribuída ao Pe. Correia. O desenho serviu de inspiração para outras representações imagéticas das pedras do reino21. [Figura 3] 21 DESENHO DA PEDRA ENCANTADA, E DO MAIS QUE VI, INDAGUEI, E FUI TESTEMUNHA OCULAR NOS DIAS 19 E 20 DE OUTUBRO DE 1838 (desenho feito no local pelo padre Francisco José Correa de Albuquerque e notas de seu punho.) Nº 1- Formatura das duas pedras com a frente para o nascente sobre a serra do Catolé, que está em nove graus meridionais desta para o Piancó, para o Jardim e para o Pajeru. Nº 2- João Pilé tendo nos braços uma menina para subir ao céu em corpo e alma por ordem do Rei Santidade João Ferreira; e, dando um salto, veio do rochedo abaixo; morre a menina, e ele ficou maltratado. Gritavam as mulheres — viva! viva! quem dera que fosse eu. Nº 3- Os cadáveres de quatorze cachorros que deviam ressuscitar como feras para acabar os que não davam crédito. Nº 4- Vinte e oito cadáveres de meninos de um ano a oito arrumados como se vê. Nº 5- A pedra onde se fazia o sacrifício da matança. Nº 6-Dez cadáveres de mulheres e dois dos filhinhos que duas tinham no ventre. Nº 7- A sepultura em que enterrei esses cadáveres. Nº 8- O cadáver do rei João Ferreira morto pelo filho de Gonçalo José, que lhe tomou a coroa e ficou sendo D. Pedro I. Nº 9- A figura do Rei Santidade em fralda de camisa e uma coroa de cipó na cabeça. Nº 10- O algoz que dava a primeira pancada sobre a cabeça da vítima, e o rei dois talhos, depois degolava. Nº 11- Dez cadáveres dos que morreram, entre estes se achavam os cadáveres das duas rainhas D. Joana, senhora do rei, com a qual se casou, e D. Joaquina, filha desse Gonçalo José, com a qual se casou sua Santidade no mesmo dia. Nº 12- Dez cadáveres de dez homens que foram sacrificados de sua boa e livre vontade. Nº 13- Uma mulher de joelhos esperando a morte com a pancada e as duas cutiladas. Nº 14- Uma mulher entregando a filhinha ao sacrifício. 42 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Cabe destacar que a edição de 1898, publicada pela tipografia Matoso, de Juiz de ForaMG, é dedicada ao editor da obra: “Ao Exmo. Sr. Monsenhor Joaquim Pinto de Campos(...)DEDICA em sinal do respeito, amizade e gratidão que lhe vota. O AUTOR” (LEITE, 1898, p. 03). Já na última edição, de 1903, em que o texto passou a integrar o número 47, da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, o memorial é dedicado a Manoel Pereira da Silva, comandante da tropa que debelou o movimento de Pedra do Reino: AO COMENDADOR DA ORDEM DA ROSA MANUEL (sic) PEREIRA DA SILVA, seu amor às instituições era o mais ingênuo; sua lealdade política, um modelo; sua dedicação ao serviço público, uma abnegação dos próprios interesses. Em uma palavra, ninguém melhor do que ele compreendia os deveres do cidadão; e nenhum cidadão prestou ainda no interior de Pernambuco tão relevantes serviços no espaço de trinta anos de vida pública (LEITE, 1903, p. 249). As dedicatórias são sintomáticas. Ambas antecipam a tendência de Antônio Áttico de Souza Leite em atuar em duas frentes: a primeira tendia a repudiar o caboclismo, ao passo que a segunda se esmerava em exaltar representantes do Estado e da Igreja Católica, prática discursiva que vai ser reforçada ao longo do memorial. 43 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.3.2. A legitimação do Estado brasileiro Conforme já indicamos na introdução, Antônio Áttico de Souza Leite assevera que seu maior objetivo ao escrever o memorial era o de prestar serviço ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. A afirmação indica compromissos com orientações do IHGB- Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição cujos objetivos foram delineados ainda em 1838, ano de sua fundação. Herdeiro muito próximo de uma tradição iluminista por inspirar-se nas academias francesas - as academias provincianas, inclusive - o primeiro estatuto do IHGB rezava que deveria estabelecer relações com instituições congêneres internacionais e incentivar a criação de institutos históricos nas províncias. A intenção do IHGB era fomentar a composição historiográfica da recém fundada Nação brasileira. Assim como interessava concentrar no Instituto informações sobre as diversas regiões do Brasil e da capital do império, irradiasse as luzes do conhecimento para o restante do País. Nesse aspecto, é flagrante a filiação do Instituto às academias francesas, conforme assevera Manoel Salgado Guimarães, no artigo “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”: da mesma forma que as academias literárias e científicas provinciais francesas do século XVIII articulavam-se na teia mais ampla do processo de centralização levado a cabo pelo Estado, sediado em Paris, do Rio de Janeiro as luzes deveriam expandir-se para as províncias. Integrando-as ao projeto de centralização do Estado e criando os suportes necessários para a construção da Nação brasileira (GUIMARÃES, 1988, p. 08). O IHGB partiu da noção de que o Brasil representava a idéia de civilização do Novo Mundo. A definição também implicava em estabelecer os contrapontos externos e internos ao projeto de Nação brasileira. Os externos não eram a Europa como um todo nem Portugal em particular, mas sim as vizinhas repúblicas da América do Sul, por adotarem uma forma de governo diferente do Brasil, que continuou monárquico. Já o contraponto interno era o caboclismo, expressão que se referia a tudo aquilo que não representasse a cultura branca e europeizada. Na imagem de Nação que o Instituto se dispôs a compor, o Brasil devia, portanto, representar, do lado de cá do Atlântico, uma civilização branca e européia. Tarefa que, nos dizeres de Guimarães, exigiria “esforços imensos, devido à realidade social brasileira muito diversa daquela que se tem como modelo”. As dessemelhanças se constituíam, sobretudo, pelo amalgamento étnico dos brasileiros. Anos antes, ao discutir as dimensões políticas que culminaram em setembro de 1822, José Bonifácio antevia uma dificuldade em incluir num mesmo projeto tanta heterogeneidade: “amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal 44 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 heterogêneo como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. etc., em um corpo sólido e político"22. Os membros do IHGB integravam o que Bonifácio denominou de corpo “político sólido”. A maioria compunha o aparelho do Estado. Dos 27 membros iniciais, 12 eram conselheiros de Estado – deste grupo, 7 eram também senadores –, 1 era exclusivamente senador, 3 eram professores (2 do recémfundado Colégio Pedro II e 1 da Academia Militar); havia ainda outros membros ligados à burocracia estatal: desembargadores, funcionários públicos, militares, um pregador imperial (caso de Januário da Cunha Barbosa). Aparecem apenas 2 advogados (sem qualquer outro indicador de cargo público), 1 comerciante e 1 engenheiro(...)De maneira geral, pode-se afirmar que o perfil dos membros que engrossaram as fileiras do IHGB foi este: elementos oriundos da burocracia estatal, logo comprometidos com a ordem que representavam, apesar do Instituto se definir como instituição políticocultural – apartada, desse modo, dos debates políticos. A hegemonia estabelecida pelos membros do IHGB – que representavam também a elite pensante – era dupla, estendendo-se pelo Estado e pela sociedade civil, na qual possuíam ativa participação como clérigos, jornalistas e professores. Destacava-se aí o papel da escola, canal de formação dos filhos da elite – por conseguinte, de reforço do cimento ideológico – e, consequentemente, de difusão dos valores dominantes pela sociedade (CARALLI, 2001, p. 1). Antônio Áttico de Souza Leite, já sabemos, pertencia ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. O IAHGP foi o primeiro dos institutos provinciais, fundado em 1862. O memorial de Leite colocou em prática as premissas do IHGB: a de sublinhar os feitos de homens de ascendência branca e européia; ao mesmo tempo que repudiou elementos da cultura indígena e africana. O autor do memorial não esconde seus compromissos com as orientações do IAHGP. Nele há, por exemplo, o flagrante propósito de elogiar pelo menos dois potentados cujas participações em Pedra do Reino foram capitais. Um, o Padre Francisco Correa, representante da Igreja Católica; o outro, Manoel Pereira da Silva - além de fazendeiro abastado, representava o Estado, ocupando o posto de comissário de polícia, e ostentava a patente de major - foi o comandante da tropa que debelou o movimento. Leite não economizou elogios a Manoel Pereira da Silva. Segundo ele, era: fazendeiro rico e abastado por si e sua numerosa família, não era contudo o ouro que o considerava e distinguia entre seus concidadãos, mas sim um complexo de qualidades raras e de virtudes cívicas e moraes, que dificilmente se encontraram reunida no mesmo indivíduo (LEITE, 1903, p. 231). 22Citado por DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808- 1853). Em: MOTA, Carlos Guilherme (org.) 1822:Dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 174 45 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Nos parágrafos subsequentes, o autor continua a enaltecer Manoel Pereira da Silva: bom pai, bom filho, bom irmão; amava as instituições a quem prestou serviço por 30 anos. 1.3.3. Elogio à Igreja Católica Antônio Áttico de Souza Leite dedica parte de seu texto para exaltar a participação da Igreja Católica em Pedra do Reino. Em nome da Igreja, o Padre Manoel Correia de Albuquerque repudiou e colaborou significativamente para debelar o movimento. Por isso, Leite revela uma espécie de devoção pelo que o padre fez. Padre Correia é assim apresentado: um dos homens mais distintos e conceituados do país: como cidadão, tinha representado esta província na Assembléia provincial, e como sacerdote havia encarnecido no serviço das missões, que lhe conquistou o mais elevado conceito pela pureza de suas doutrinas, santidade de sua vida, e austeridade de suas virtudes (LEITE, 1903, p. 219-20). Padre Correia figurou em dois momentos importantes da história de Pedra do Reino: em 1836 e, depois, em 1838. Em 1836, liderou uma missão cujo intuito era o de se reunir com João Antônio dos Santos e dissuadir o movimento. O encontro aconteceu na fazenda Cachoeira, localizada nas imediações de Pedra do Reino, de propriedade de Simplício Pereira da Silva. No encontro, João Antônio entregou as pedrinhas brilhantes ao religioso, confessou publicamente o que Leite denomina embustes e prometeu retirar-se do lugar. Em julho de 1838, Padre Correia toma nova participação nos sucessos de Pedra do Reino. O missionário toma para si a responsabilidade de sepultar os sebastianistas mortos. O feito é narrado no memorial como prova de abnegação e santidade e Leite dedica a totalidade do capítulo IX para enaltecer Padre Correia. Segundo Leite, padre Correia não estava em Flores entre 14 e 16 de maio de 1838. O cronista sublinha o estado de aflição e espanto pelo qual o missionário sofreu “quando lhe informaram que, apesar da sua abnegação e esforços, as doutrinas do mameluco tinham produzido todos os seus efeitos naturais, atingindo resultados porventura mais trágicos e funestos” (LEITE, 1903, p. 241). Dois meses depois dos acontecimentos de Pedra do Reino, Pe. Correia foi ao sítio histórico para missionar e sepultar os mortos. Conta o cronista que o grande lago de sangue em volta das pedras “converteu o santo missionário em uma grande sepultura, na qual, com as próprias mãos e entre lágrimas, encerrou toda a ossada dos mortos, esparsos fragmentos escapos aos vermes e à rapacidade dos corvos, no curto espaço de dois meses” (LEITE, 1903, p. 241). 46 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Padre Correia ordenou que erguessem uma cruz por sobre a sepultura coletiva. “Mandou o caridoso missionário a colocar uma grande cruz de madeira tosca, que ainda hoje se conserva e testifica que ali jazem os restos mortais das vítimas da horripilante tragédia” (LEITE, 1903, p. 242). Segundo Alcir Lenharo, a simbologia da cruz é revestida de muitas significações. Dentre elas, a ordem sobre a desordem (LENHARO, 1986, p. 172). Por fim, o cronista menciona que Padre Correia desenhou uma estampa que, segundo o padre, retratava os acontecimentos em Pedra do Reino. “Com sua própria mão, para servir de lição aos vindouros, [desenhou] as pedras, o campo e a ossada das vítimas, tal qual encontrara, assim como alguns episódios mais trágicos ali sucedidos, que a estampa patenteia e ele tanto se esforçara por evitar” (LEITE, 1903, p. 241). O original do desenho encontra-se no IAHGP. Compõe-se do desenho das pedras, dos cadáveres e retrata cenas importantes como o rei pregando no púlpito; a morte de Isabel e seu parto depois de morta; João Pilé se precipitando de uma das pedras agarrado a seus netos. Antônio Áttico de Souza Leite criou uma legenda para o desenho e reservou o último capítulo do memorial para explicar a estampa. Caridoso, abnegado, santo missionário: sublinhemos aqui as designações elogiosas que Antônio Áttico de Souza Leite atribuiu ao religioso. Muito diferentes, porém, são os adjetivos que o mesmo autor destina aos sebastianistas. 1.3.4. O repúdio ao caboclismo O autor é verdadeiro devoto dos poderosos do lugar. Ao longo do memorial, Leite reafirma sucessivas vezes essa condição, porém o mesmo não se pode dizer de sua opinião a respeito dos sebastianistas. Em relação aos últimos, ao contrário, há uma clara repulsa aos líderes, à crença sebastianista, aos rituais, enfim, a tudo o que se refere ao movimento de Pedra do Reino. Ao que tudo indica, trata-se de um repúdio ao caboclismo. O caboclismo é um termo cunhado por Francisco Adolfo de Varnhagen, no texto “Notícia do Brasil”, de 1838, e desenvolvido por Carl Friedrich Philipp von Martius (1845), em Como se deve escrever a história do Brasil. A obra de Martius venceu um concurso de dissertação promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1842, que tinha como objetivo colher ideais de como escrever a história da recente nação brasileira. Com a dissertação, Martius lançou boa parte das bases que compuseram a historiografia brasileira. No que tange ao caldeamento étnico, a ideias que presidiu Como se deve escrever a história do Brasil foi a de que, ainda 47 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 que se faça referência “às raças Etiópica e Índia”, “nos pontos principais, a história do Brasil será sempre a história de um ramo de portugueses” (MARTIUS, 1845, p. 398-399). Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado alinha-se aos preceitos de Martius. Perpassa por toda obra um repúdio a tudo que se origina de indígenas e africanos. Sempre que Leite faz referência aos líderes dos sebastianistas, por exemplo, destaca sua origem étnica. João Antônio, o primeiro a propalar a crença entre os sebastianistas de Pedra do Reino, é sempre apresentado como mameluco. Somam-se a essa outras designações pejorativas, tais como embusteiro, sagaz, astuto, manhoso, ao passo que suas práticas são “engenhosos embustes” ou “patranhas” capazes de “embair os mais crédulos e ignorantes” (LEITE, 1903, p. 222). No memorial, Leite descreve a prática de rituais de origem indígena em Pedra do Reino, tal como a ingestão de mistura de ervas alucinógenas e o fumo de cachimbos como parte do que ele considerava embustes dos líderes sebastianistas: “eles fumavam cachimbos e bebiam o vinho encantado (...) certa composição de jurema e manacá muito usada pelos selvagens e pelos curandeiros de feitiço e de mordeduras de cobra; tem propriedade do álcool e ópio” ( LEITE, 1903, p. 228). A despeito do repúdio ao caboclismo, Antônio Áttico de Souza Leite descreve também parte dos sonhos apocalípticos dos sebastianistas. Eles desejavam viver um paraíso terrestre, em meio à fartura, liderados por D. Sebastião, um rei bom e justo, cuja vinda lhes traria ascensão social tanto pelas riquezas como também pelo branqueamento da pele. 1.3.5. Representações do reino da Pedra do Reino, segundo os sebastianistas É tarefa relativamente fácil identificar as apropriações e representações dos potentados frente aos sebastianistas. Dos primeiros, encontramos registros via documentos oficiais, crônicas, textos de viajantes. Da outra parte, ainda hoje não tivemos acesso a depoimentos ou qualquer outro registro dos próprios sebastianistas sobre o movimento de Pedra do Reino. Se há uma ou outra menção às representações dos sebastianistas ao fato histórico, são sempre mediadas pelo discurso dos potentados, a exemplo dos documentos oficiais e do memorial de Leite. Isso posto, só há duas maneiras de identificar e compreender as representações dos sebastianistas sobre o movimento messiânico de Pedra do Reino, sobre D. Sebastião, sobre si próprios e sobre seus líderes. Uma, é através dos discursos produzidos pela historiografia, costurados por compromissos políticos visivelmente contrários ao caboclismo; ou ainda, lançando mão dos conhecimentos sobre o não-dizer, termo cunhado por Eni Orlandi (2007). 48 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Para Orlandi, o silêncio indica que para dizer é preciso não-dizer, e que é a inserção dos sujeitos discursivos nas formações discursivas historicamente determinadas que dão sentidos ao dizer. O não-dizer, segundo ela, se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, [...] produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz [...] a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o nãodito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar um trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos [...] determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 2007, p. 73-74). Importante ressalvar que o silêncio não é o implícito, e sim o sentido apagado ou excluído (ORLANDI, 2007, p. 102). É esse silêncio constitutivo que trabalha os limites e a constituição das formações discursivas, determinando os limites do dizer. Isso mostra que o dizer e o silenciamento são inseparáveis. Na tentativa de reavivar os sentidos até então minimizados, apagados ou excluídos, que damos visibilidade às aspirações, crenças e práticas dos seguidores de Pedra do Reino. Antônio Áttico de Souza Leite menciona a liderança que João Antônio dos Santos exercia sobre os sebastianistas. Coube ao líder propalar a crença sebastianista, servindo-se de um conjunto de argumentos, inclusive de um bem cultural como a leitura. Segundo Leite, João Antônio dos Santos não só falava de D. Sebastião, como também lia e exibia aos seus liderados um antigo folheto português que assegurava o retorno de D. Sebastião. Esse aspecto da história de Pedra do Reino nos remete a Roger Chartier (1991), para quem é essencial compreender como um mesmo texto pode ser diversamente apreendido, manipulado e compreendido por uma comunidade de leitores. As apropriações dos textos, “a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) são processos historicamente determinados cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades”. Assim como “as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes)” (CHARTIER, 1991, p. 07). Embora não tenhamos bibliografia suficiente para afirmar que havia uma difusão ampla de folhetos dessa natureza, sabemos que viajantes europeus noticiam a existência de folhetos de igual conteúdo em outras localidades. Spix e Martius (1976), em passeio nos arredores de Vila Rica, hospedaram-se na fazenda do guarda-mor Inocêncio. Segundo eles, o hospedeiro era um dos muitos sebastianistas encontrados no Brasil, local onde havia mais crentes no monarca 49 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 português do que em Portugal. “De fato, ele era um dos adeptos do sebastianismo, os quais estão sempre à espera da volta do Rei D. Sebastião (...) Estes sebastianistas se distinguem por sua diligência, economia e caridade, são em maior número no Brasil, e, especialmente em Minas Gerais, do que na própria mãe pátria”(SPIX; MARTIUS, 1976, p. 218). Os viajantes afirmam que Sr. Inocêncio tentou persuadi-los ao sebastianismo, apresentando-lhes “grande número de profecias manuscritas, da futura sorte do Brasil” (Idem). No Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, localizamos meia dúzia de textos originais manuscritos sobre D. Sebastião. A saber: (1) Sinais físicos de D. Sebastião e profecias de Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha, sem data, localizador: II-30,24,035; (2) "Memoria das cousas del Rey Dom Sebastião", escrito em 1670, Localizador: I-11,02,013; (3)"MEMORIAS particulares Da Jornada que fez O Serenissimo Senhor Rey Dom Sebastião de Glorioza Memoria E Outras que purificão a Sempre Lamentável perda da sua pessoa E Exercito Nos Campos de Africa", escrito em 1722; (4)"CHRONICA de muy alto esclarecido Rey Dom Sebastiam", sem data, localizador I-13,03,018; (5)"Vida de El Rey D. Sebastião", escrito em 1602, localizador I-13,03,019; (6) "TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D. Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos os curiozos q. são verdadeiramente [Calholeiros]", sem data, localizador: I-13,01,044. Em páginas anteriores deste mesmo capítulo, incluímos cópia do “TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal”... Trata-se de um folheto longo, com mais de 200 páginas, sobre Dom Sebastião. É possível que este e os demais citados sejam exemplos dos textos que circulavam no Brasil, sobre os quais falaram Spix e Martius e Antônio Áttico de Sousa Leite. Voltando ao caso da Pedra do Reino, perguntamos: como João Antônio dos Santos adquiriu o folheto mencionado na obra de Antônio Áttico de Sousa Leite? Em que ocasião ele entrou em contato com a crença sebástica? A historiografia não registrou informações suficientes para respondermos a essas questões. O que se historia é que o poder de convencimento de João Antônio dos Santos e da força da leitura de um folheto culminou com a formação de uma comunidade em torno da Pedra do Reino. Famílias inteiras, oriundas de regiões vizinhas, como Piancó e Cariri, e de outras mais distantes, a exemplo do Riacho do Navio e margens do Rio São Francisco, compreenderam que o modus vivendi proposto pelo líder de Pedra do Reino tornaria suas vidas mais felizes. Sendo assim, é possível dizer que, aos olhos de seus liderados, João Antônio dos Santos congregava para si a condição de messias lecionada por Maria Isaura Pereira de Queiroz. 50 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento O messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se pois de um líder religioso e social. O líder tem tal status não porque possui uma posição dentro da ordem estabelecida, e sim porque suas qualidades pessoais extraordinárias, provadas por meio das faculdades mágicas ou estáticas, lhe dão autoridade; trata-se pois de um líder essencialmente carismático. Assim age graças ao seu dom pessoal apenas, colocando-se fora ou acima da hierarquia eclesiástica ou civil existente desautorizando-a ou subvertendo-a, a ruptura da ordem estabelecida podendo ser breve ou de longa duração (QUEIROZ, 1976, p. 27). Outra característica dos movimentos messiânicos é de se afirmar como uma força prática. As transformações desejadas, conforme anota Maria Isaura Pereira de Queiroz, não se operam exclusivamente pelo poder do líder nem mecanicamente. Não é uma crença passiva ou inerte de resignação e conformismo. Necessário se faz que os adeptos cumpram as ordens do mentor, já que, diante do espetáculo das injustiças, cabe ao homem trabalhar para “saná-las, pois sua é a responsabilidade pelas condições do mundo. E, desde que a crença se ativa, dá então lugar ao movimento messiânico, que se destina a consertar aquilo que de errado existe (...) Estes objetivos(...) devem sempre ser religiosamente alcançados, isto é, por meio de rituais especiais que um enviado divino revela aos homens” (QUEIROZ, 1976, p. 29). Em suas pregações, João Antônio dos Santos prometia muitas benesses tão logo se operasse o desencantamento de D. Sebastião. Aqueles que acreditassem e o seguissem: “se pretas, voltavam alvas como a lua, imortais, ricas e poderosas; e se velhas, vinham moças, e da mesma forma, ricas, poderosas e imortais com todos os seus. Isaura identificou como uma das características centrais dos movimentos messiânicos que almejam por fim a ordem presente das coisas (...) instituindo uma nova ordem de justiça e felicidade”. (LEITE, 1903, p. 229) Depreende-se que os sebastianistas entendiam que a felicidade perpassava necessariamente pela obtenção de poder e riqueza, assim como pelo pertencimento à etnia hegemônica. Essa última revela que a comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino compunha-se de homens pobres e, sobretudo, de escravos negros e índios. Maria Isaura Pereira de Queiroz cita Roger Bastide para informar que no Brasil não houve movimento messiânico negro. “Não houve entre nós, porém nem mesmo um messianismo que concentrasse as esperanças desta etnia reduzida à escravidão. As revoltas de escravos eram, em geral, leigas, e em sua fuga formavam comunidades que, ao que se sabe, não ofereciam características de Paraísos Terrestres” (QUEIROZ, 1976, p. 321-2). Cumpre questionar a informação e até mesmo considerá-la um equívoco, já que o movimento messiânico de Pedra do Reino era constituído, em sua maioria, de negros e índios cujas aspirações eram o paraíso 51 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 terrestre. Alcançá-lo correspondia, entre outros benefícios, o branqueamento da pele, tornaremse “alvas como a lua”23. Eis uma das justificativas para tantos aderirem o movimento. Não se sabe ao certo a quantidade de adeptos. Leite menciona que eram em torno de duzentas pessoas e que muitos estavam confiantes nessas promessas. Segundo Leite, os sebastianistas acreditavam que nas pedras havia um reino encantado. Conforme atesta Eliade (1990), há quem veja com certo mal-estar certas manifestações do sagrado. É-lhe difícil aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou em árvores, por exemplo. Mas (...) não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, são-no justamente porque são hierofanias, porque mostram qualquer coisa que já não é pedra nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere. (...) Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada a sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros termos, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revela-se como sacralidade cósmica. O Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania (ELIADE, 1990, p. 26). Avizinhar-se do sagrado significava para os sebastianistas aliar-se ao poder, perenidade e eficácia. É compreensível que, em nome da religião, os sebastianistas desejassem participar da realidade e saturar-se de poder. Câmara Cascudo (1984) afirma que europeus e africanos restabeleceram no Brasil elementos da litolatria, já praticamente desaparecidas nos países de origem. As pedras eram dotadas de predicativos divinos na Antiguidade, até que o Concílio de Arles, no séc. V, aboliu formalmente o culto às pedras. Mas para transformar esse culto gentio em culto cristão, sem abalos ou resistência, Cascudo leciona que a Igreja Católica conservou alguns de seus vestígios. “São Pedro, o príncipe dos apóstolos, é a pedra angular da Igreja Católica” (CASCUDO, 1984, p. 596). Ainda instituiu as invocações à Senhora da Pedra, da Penha, do Pilar, da Lapa, do Monte. Para além das considerações de Câmara Cascudo, relembremos aqui cultos a Nossa Senhora cujas aparições se deram em grutas, a exemplo de N. S. de Lourdes e N. S. das Graças. 23 Conforme veremos no último capítulo desta tese, no romance O Reino Encantado, Araripe Jr. re-atualiza ficcionalmente a história de Pedra do Reino, “representado” os sebastianistas como quilombolas e a comunidade que se formou em torno das pedras como um quilombo. 52 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.3.6. As fontes utilizadas por Antônio Áttico de Souza Leite: limites e problemas Na introdução do memorial, Leite informa ao leitor sua dupla intenção: “satisfazer a curiosidade própria e de prestar ao mesmo tempo ao Instituto Arqueológico e Geográfico desta província [de Pernambuco] do qual sou indigno sócio, algum serviço” (LEITE, 1898, p. 15). Neste caso, atuando com os recursos de sua época, num momento decisivo para a própria continuidade do estado imperial brasileiro e, por outro lado, inspirado nas orientações emanadas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro– IHGB – encontrava-se o autor diante do prazer da curiosidade e ao mesmo tempo diante do dever de ofício, vinculado a uma instituição da qual se dizia “sócio indigno”. Por outro lado, para compor seu enredo, Leite utilizou materiais diversos, agrupou algumas fontes de pesquisa e com um tanto de imaginação narrou o que ele chama de “memórias”. Cumpre destacar o aspecto seletivo da memória, seja ela individual ou coletiva. Sobre a memória atuam filtros que a caracterizam como uma versão dentre outras possíveis. Esta questão implica também em saber como o autor teve acesso às suas fontes de trabalho. Como foi desenvolvido o processo de localização, seleção, explicação e interpretação dos materiais disponíveis? Conforme suas próprias palavras: pude realizar em companhia de 34 pessoas (inclusive muitas senhoras) (...) uma viagem a antiga Serra Formosa, hoje Serra do Reino a fim de observar de perto a célebre Pedra Bonita (...) pude reunir ali, se bem que com dificuldade, mais duas testemunhas presencias, além de um dos emissários da polícia, que depois do combate e completa extinção do Reino, em dezoito de maio de 1838, seguiu e prendeu no centro da província de Minas o mameluco João Antônio dos Santos, primeiro rei da Pedra Bonita. (...) (LEITE, 1898, p. 15). Então, temos arroladas as testemunhas diretas, presenciais, em número de duas, mais as testemunhas indiretas, ou que não necessariamente foram testemunhas, mas que acompanharam o autor em sua ida a Serra do Reino, juntando-se ainda um emissário de polícia que participou do desmantelamento do reduto sebastianista. Neste caso, o que o autor chama de “memórias” são relatos de pessoas que tiveram acesso não ao fato acontecido, mas ao conjunto das versões construídas por aqueles agentes, testemunhas diretas ou indiretas. Trata-se de um olhar sobre o passado, literalmente sobre os mortos, uma representação depois de transcorridos 37 anos daqueles acontecimentos. Adiante, o autor complementa suas informações acerca das fontes de pesquisa produzidas em Pedra Bonita. Com minucioso exame que fiz sobre todo o local que serviu de teatro aos acontecimentos, com os documentos oficias que pude colher e, mais que tudo, com o auxílio de uma estampa que felizmente encontrei na qual foram esboçadas pelo padre Francisco José Correa de Albuquerque (...) creio poder assegurar aos leitores que os seguintes apontamentos, se não estão escritos em estilo elegante e linguagem castiça, 53 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 encerram, todavia a verdade histórica daqueles tristes e nefastos acontecimentos. Foi em que me esmerei e mais não se pode esperar de mim (LEITE, 1898, p. 17). Dessa forma, para concretizar suas pesquisas sobre Pedra do Reino, o memorialista lançou mão de distintos recursos. Do ponto da narratividade, a busca da aprovação do leitor pela via do estilo elegante e linguagem castiça, pura. Neste ponto fica a questão: o que seria uma linguagem pura? Objetiva? Neutra? Isenta? Não seria uma ilusão do tipo proclamado pela escola metódica, sobretudo por Leopoldo Von Ranke (1979, p. 49), na sua utopia da objetividade do conhecimento produzido? Não seria o compromisso, ainda rankeano, de narrar “os fatos como realmente aconteceram”, o que significa aceitar o que dizem as fontes tal como se apresentam, reconhecendo nelas a expressão da verdade? Acreditamos que tais compromissos do autor podem ser facilmente localizados ao longo da obra. Anotemos aqui outro exemplo das fontes utilizadas por Leite: a reprodução literal do que seria o depoimento de uma testemunha ocular da história. O capítulo V do memorial, intitulado a “Revelação do segredo e exposição das atrocidades praticadas na Pedra Bonita”, contém a narrativa do suposto suicídio coletivo. Para narrar as pretensas cenas de horror sublinhando os tons de veracidade, Antônio Áttico de Souza Leite lançou mão de um recurso linguístico, a fim de conferir maior legitimidade e veracidade à narrativa. O autor deu voz ao vaqueiro, em sua compreensão uma voz irrefutável, já que José Gomes teria sido testemunha ocular e agente histórico em Pedra do Reino. É um testemunho relativamente longo, de quase cinco páginas, todo aspeado; uma pretensa transcrição da fala do vaqueiro que em alguns trechos transforma-se em diálogos deste com o major Manoel Pereira da Silva. A título de ilustração, leiamos um trecho em que José Gomes narra para o major e aos demais presentes o suposto suicídio coletivo em Pedra do Reino. Na narrativa de Antônio Áttico de Souza Leite, o vaqueiro teria declarado que o rei ofereceu muito vinho aos súditos e revelhou-lhes que D. Sebastião estava muito desgostoso e triste com o seu povo. Os sebastianistas quiseram saber o motivo de tanto dissabor: “ ‘E por que? Perguntaram os homens muito aflitos e as mulheres todas muito chorosas.....’ ‘Porque são incrédulos!... porque são fracos,!...porque são falsos!... e finalmente, porque o perseguem não regando o campo encantado e não lavando as duas torres da catedral do seu reino com sangue necessário para quebrar de vez o cruel encantamento(...)’ ‘Ah! meu amo e senhores, o que depois disto se seguiu é horrível!...’ ‘O velho Juca foi o primeiro que correu, a abraçou-se com as pedras e entregou o pescoço a Carlos Vieira que o cortou cérceo, pois já estava com um facão afiado.’ ‘Como? (bradaram o comissário e todas as pessoas presentes horrorizadas); pois ele matou o velho deveras? Estás, sonhando, José?’ ‘Sim, meu amo, matou e não foi este só. Mataram ainda muitos homens, muitas mulheres, muitos meninos e creio que continuam matando’ 54 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento ‘Jesus, meu Deus, que horror! Exclamaram de novo as mesmas pessoas acrescentando: - E que matou essa gente toda, José? Estás doido ou estás mentindo! Gritou o comissário a, pegando-lhe do braço e sacudindo-o com força...’ ‘Antes tivesse doido ou mentido, meu amo’ ”(LEITE, 1903, p. 229-230). O texto em aspas simples é atribuído ao vaqueiro José Gomes. Compreendemos que, ao lançar mão do artifício de transcrever a fala de uma testemunha ocular, o efeito de sentido que o autor quer produzir é que seu texto expressa a “verdade” dos fatos. O vocativo “meu amo” é recorrente e foi utilizado no momento em que supostamente o vaqueiro fugiu e foi pedir a proteção do senhor patriarcal. Com a expressão, o narrador pode ter o propósito de representar uma forma simbólica de submissão, comumente revelada por meio de um gesto e/ou por uma linguagem respeitosa, sobre a qual Burke (2002, p. 104) discute. Para além dessas considerações, cumpre-nos questionar em qual fonte Antônio Áttico de Souza Leite se amparou para escrever com tanta riqueza de detalhes? Em depoimentos dos interlocutores? Anotados em que ocasião e circunstâncias? O autor não informa nem localizamos qualquer documento que faça menção ao depoimento. Com certeza, só não foi ao tempo de sua excursão à Pedra do Reino, já que naquele ano tanto o Major quanto o vaqueiro já haviam falecido, como o próprio Leite afirma no memorial. Observamos que, para o autor, o que ele escreve é a “verdade histórica”, empresa para a qual sinceramente mobilizou suas energias. E, a julgar pelos escritos dos seus sucessores, interessados nos episódios de Pedra do Reino, esta perspectiva manteve-se praticamente inalterada, salvo por insignificantes detalhes descritivos, como veremos ainda neste capítulo. Outras fontes foram utilizadas. O exame do local, alguns documentos oficiais e uma estampa, gravura onde aparecem ladeadas as duas pedras e algo do cenário natural do lugar. Há ainda a transcrição literal do que seria o bilhete de um fazendeiro das imediações comunicando ao Major Manoel Pereira da Silva uma “mortandade” em Pedra Bonita, contendo os dizeres: Hoje, muito cedo, mandei um portador à lagoa da formosa chamar o compadre Manoel Vieira e os filhos para virem me ajudar esta semana na desmancha da mandioca dos Poços. Muito antes de chegar na serra, encontrou ele com dois meninos, que vinham fugindo às carreiras da Pedra Bonita, aonde lhe disseram que estava havendo, há dois ou três dias, grande mortandade de gente para desencantar-se um reino. Creio, que isto será verdade, porque a família do compadre Manoel Vieira e outras por ali vivem, há muito, metidas por lá sem me aparecerem e acreditam que há nas pedras um grande reino, que só desencanta com sangue. A mim tem eles dito isto muitas vezes. Seu compadre e amigo, Manoel Ledo de Lima. Poços, 16 de maio de 1838 (LEITE, 1903, p. 231). Necessário destacar que, do ponto de vista dos documentos oficiais, de fato alguns aparecem citados ao longo de suas “memórias”. Porém, observamos nestas memórias, tanto 55 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 quanto em outros escritos sobre o tema, que tais documentos oficiais são muito mais proclamados e apenas levemente apresentados à apreciação do leitor. São lacunas não preenchidas pela narrativa de Leite. Este problema nos leva a refletir sobre as condições de produção do conhecimento histórico. Diante das fontes, monumentos produzidos intencionalmente, o pesquisador resignifica, confere inteligibilidade. São traços, restos, vestígios, discursos deixados pelas vozes do passado as quais possibilitam ao historiador pontos de acesso ao real acontecido. Como esclarece Pesavento sobre as fontes: Se são discursos, são representações discursivas sobre o que se passou; se são imagens, são também construções, gráficas ou pictóricas, por exemplo, sobre o real. Assim, os traços que chegam do passado suportam esta condição dupla: por um lado, são restos, marcas de historicidade; por outro, são representações de algo que teve lugar no tempo” (PESAVENTO, 1998, p. 19). Como historiadora, Pesavento analisa essa questão sublinhando a relação do historiador com as fontes de pesquisa e, no limite, com as representações daí construídas. 1.3.7. Representação e história: impasses na invenção de Pedra do Reino Tornar-se rica, imortal, poderosa e alva como a lua. Esses eram os sonhos que norteavam a vida da comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino. Entretanto, as aspirações dos sebastianistas não se coadunam com a prática dos supostos rituais de sacrifício narrados por Leite e por isso demandam novas questões. Por que o ritual dos sacrifícios? E, principalmente, até que ponto os sacrifícios correspondem à passeidade? Ou eles são discursos históricos, na verdade, justificativas para a dissolução sumária e violenta do movimento messiânico de Pedra do Reino, elaborados por aqueles que se sentiram prejudicados pela fuga de escravos e pela consequente escassez de mão de obra? A historiografia dá voz aos potentados enquanto silencia os sebastianistas de Pedra do Reino. A despeito disso, é possível tentar vislumbrar novas compreensões sobre o desfecho do movimento de Pedra do Reino comparando-o aos desfechos trágicos de dois outros movimentos messiânicos: o da Serra do Rodeador e o de Canudos. Isto porque fazemos coro a Maria Isaura Pereira de Queiroz, quando observou que uma das características comuns aos movimentos messiânicos: por serem sempre mal compreendidos pelos governos e pela Igreja, sofrem perseguições e são condenados ao desmonte “dada a inveja que despertavam em povoados vizinhos, ou entre os proprietários mais afortunados” (QUEIROZ, 1976, p. 348). 56 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.3.7.1. O massacre do Paraíso terreal: o caso da serra do Rodeador O primeiro, o da Serra do Rodeador - imediatamente anterior ao de Pedra do Reino, aconteceu na zona rural do município de Bonito, agreste de Pernambuco. O líder, Silvestre José dos Santos, propalou a crença sebastianista e anunciou um reino de paz e justiça aqui mesmo na terra. A força do movimento em torno da Pedra do Rodeador, que segundo Flávio Cabral (2004) atraiu para si um conjunto de represálias. Até que, numa madrugada de outubro de 1820, as forças legais orientadas pelo então presidente da Província Luiz do Rego Barreto expulsaram os sebastianistas do paraíso. Na verdade, os 950 soldados praticaram barbáries contra os sebastianistas, massacrando-os terrivelmente. Ao ingressarem no Rodeador, mataram, saquearam e cometeram toda sorte de crime. Muitos sebastianistas morreram; não se sabe quantos, há quem mencione que foram 300. Cabral (2004, p. 132-3) afirma que alguns dos sobreviventes foram trazidos para o Recife e julgados por um conselho de investigação nomeado pelo Governador. O conselho optou pela condenação dos adeptos de Rodeador. Entretanto, paralelo a esse julgamento, o governador designou o ouvidor Antero José da Maia e Silva para investigar os sebastianistas que permaneceram em Bonito. Este teve entendimento dissonante ao do conselho ao concluir que a crença em superstições e milagres, prestígios e encantamentos é fruto da ignorância, mas não podia ser considerada como crime. A Devassa contendo as duas investigações discordantes foi remetida à Corte. Hoje ela compõe o acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Tivemos acesso a ela, quando, em vão, buscamos a devassa sobre a Pedra do Reino. A sobrevivência da documentação permite aos pesquisadores afirmarem que o desfecho do Rodeador foi uma hecatombe. A conclusão do ouvidor Antero José da Maia e Silva sobre Rodeador não agradou ao governador. Afinal, Luiz do Rego Barreto havia empenhado todos os seus esforços na tarefa de condenar os sebastianistas de Rodeador: nomeou um conselho investigativo que produziu farta documentação condenando os sebastianistas de Rodeador, alegando formarem uma confederação contra o rei e contra o Estado. Essa versão sobre o movimento messiânico de Rodeador teria assim passado para história caso não existisse o libelo do ouvidor designado para Bonito. A manobra política de Luiz do Rego Barreto só não logrou êxito por causa da conclusão a que chegou Antero José da Maia e Silva. A versão do ouvidor, que embora tenha passado a ser alvo de desafeto e das críticas do Governador, possibilitou representações bem mais dinâmicas em relação ao movimento messiânico de Rodeador. Cumpre-nos ressalvar que, não obstante as duas versões, em documento oficial sobre Pedra do Reino elaborado em 1838, portanto em data 57 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 bem posterior ao holocausto de Rodeador, o então governador da Província avizinha os dois eventos e se refere ao Paraíso Terreal de Bonito como zizania24. O presidente da província inicia o anuário com os dizeres: Tendo dissipado a zizania perfidamente espalhada por entre os cidadãos ignorantes da extinta comarca de Bonito, de que os recrutas tinham que ser reduzidos à escravidão, poderia anunciar-vos hoje, Senhores, que a ordem e a segurança pública não foram alteradas em nossa província, (...) se um fato digno de figurar em outros séculos, filho da ignorância e do fanatismo, não viesse perturbar o plácido correr do ano de 1838. Um indivíduo, morador do sítio Pedra Bonita, (...) por efeito de sua maldade, lembrou-se de suadir ao povo ignorante daquele lugar, que ali existia um Reino encantado próximo a desencantar-se ( BARROS, 1839, p. 03). Os estudos de Flávio Cabral (2004) sobre o Rodeador impõem questões sobre o caso de Pedra do Reino. Quais as intenções de quem produziu os documentos sobre a Pedra do Reino? Estava a serviço de quem: dos fazendeiros ou dos seguidores de João Antônio dos Santos? A quem interessava que o episódio de Pedra do Reino passasse para a história nos termos em que conhecemos hoje? A história que nos é contada assemelha-se à passeidade ou o que faltou ao episódio de Pedra do Reino foi um Antero José da Maia e Silva? Ademais: os documentos primários são uníssonos em afirmar que os sebastianistas de Pedra do Reino foram submetidos a julgamento. Para citar apenas um exemplo, vejamos o que diz um ofício procedente do Palácio do Governo de Pernambuco, assinado por Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, dirigido ao Juiz do Crime de Flores, Manoel dos Passos Baptista, pedindo celeridade no processo a que foram submetidos os sobreviventes de Pedra do Reino, em atenção ao Imperial Aviso de 08 de agosto de 1838, Parte 1, folha 39 (verso) e 40 (frente)25: [Figura 4] 24S.f. Gramínia nosciva; joio. Fig. Desavença, discórdia, incompatibilidade. execução do Imperial Aviso de 8 de agosto do corrente ano expedido pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, recomendo a Vossa Mercê que acelere quanto for possível a acusação do facinoroso João Antônio e seus sequazes presos pelos horrorosos acontecimentos da Serra Talhada dessa Comarca e me participe o resultado de seus processos fazendo um circunstanciado relatório da acusação e defesa dos mesmos réus para ser tudo levado ao conhecimento do Governo de Sua Majestade Imperial como determina o citado Aviso. Deus guarde Vossa Mercê. Palácio do Governo de Pernambuco, 20 de setembro de 1838. Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque ao juiz Manoel dos Passos Batista, juiz de Direito do Crime da Comarca de Flores. (APEJE, Tomo RO-11/2: 39-40). 25Em 58 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 59 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 O ofício indica que a história da Pedra do Reino circulou nas instâncias de poder tanto da Província como da Corte. Como o fato despertou o interesse de ambos os poderes, o usual naquele período era elaborar cópias dos processos e remetê-los um para a Capital da Província e outro à Corte. Seguindo essa orientação, seguimos no encalço de uma cópia do processo ou devassa. Iniciamos pelo Arquivo Público de Pernambuco, onde localizamos a maioria das correspondências oficiais sobre Pedra do Reino. Como não logramos êxito, consultamos o Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco. O IAHGP guarda uma quantidade relevante de processos crimes do século XIX, com destaque para os processos do Tribunal da Justiça e do Tribunal da Relação. Ao consultarmos as caixas referentes aos anos de 1838 e 1839 de ambos os Tribunais, localizamos seis processos. Quatro de fiança, um de homicídio e outro de ferimento leve. Nenhum deles se relaciona aos sobreviventes de Pedra do Reino. De lá seguimos para o Memorial da Justiça que tem um acervo lapidar. Arquiva processos cíveis e criminais instaurados tanto em Recife como também em algumas comarcas do interior. Merece destaque a quantidade de processos do século XIX conservados naquela instituição. Localizamos um bom número de processos de crimes da Comarca de Flores e do distrito de Serra Talhada. Analisamos as caixas referentes aos anos de 1838 a 1848. Limitemo-nos aqui a referir os processos de 1838 a 1840, conforme as tabelas abaixo. COMARCA DE FLORES (1838-1848, Cx.338) ANO 1838 SUMÁRIO DO CRIME Ferimento Homicídio 1839 Tiros e ferimentos Vistoria 1840 Ordem de prisão por agressão física Corpo de delito Assentada de crime Facada Tiro Agressão DISTRITO DE SERRA TALHADA ou VILLA BELLA (1838-1848, Cx.999) ANO 1838 SUMÁRIO DO CRIME Homicídio Armas curtas 60 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Corpo de delito indireto Tiro 1839 Tiro Homicídio Pancadas Insulto Tomada de presos Surra 1840 Tentativa de homicídio Pancadas Ferimento (facadas) Fiança Embora não tenhamos localizado o processo dos sobreviventes da Pedra Bonita, o sumário dos crimes geradores dos processos acima citados nos deram ânimo para continuar no encalço da devassa dos sebastianistas de Pedra do Reino. Pois, se um crime de natureza comparativamente irrelevante como um ferimento leve foi levado a julgamento, quiçá os supostos crimes atribuídos aos ditos “facínoras” da Pedra Bonita. Serviu-nos de motivação para encontrá-lo o interesse da Corte pela conclusão do processo, porque, como já dissemos, processos importantes para o Império eram enviados para o Rio de Janeiro e, normalmente, alocados no Arquivo Nacional, tal qual a Devassa sobre o do massacre da Serra do Rodeador (ANRJ, Devassa, Série Interior, IJJ91-245, 1820-1821). No Arquivo Nacional, mais uma vez, a busca foi infrutífera. Consultamos os volumes IJJ9-251 e IJJ-252 da Série Interior, correspondentes aos anos de 1832-1838 e 1839-1845, respectivamente. Restou-nos, depois de tanto esforço, apenas questionar a lacuna. Dificilmente saberemos como o processo se perdeu; embora não tenhamos uma resposta, cabe aqui tão somente questionar se isto aconteceu de modo intencional e deliberado ou fortuito. O único documento localizado no Arquivo Nacional que versa sobre o episódio de Pedra do Reino é um ofício originado do Presidente da Província de Pernambuco cujo destinatário era o Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos.[Figura 5] 61 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 62 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 63 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Através do documento, o Presidente da Província de Pernambuco comunicou a Corte os sucessos de Pedra do Reino26. 1.3.7.2. O massacre de Canudos Talvez, a rememoração do massacre em Canudos também não nos ajude a encontrar a chave da questão, mas certamente fomentará novas dúvidas. Voltemo-nos agora para mais um outubro fatídico, o do remate de Canudos, em 1897. O império de Belo Monte ou o arraial de Canudos foi também um movimento messiânico sebastianista, liderado por Antônio Conselheiro. De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os sebastianistas de Canudos se dedicavam “à construção das casas, da igreja nova, ao plantio das roças, ao comércio, à feira, ao artesanato necessário à subsistência. Havia uma professora de primeiras letras também. Ao entardecer, tinham lugar as rezas por duas horas, que reuniam na igreja homens e mulheres rigorosamente separados” (QUEIROZ, 1976, p. 235-6). Depois que Antônio Conselheiro pregava, em companhia de seus apóstolos, rezavam-se ladainhas e cantavam-se benditos. A vida corria normal, até que fazendeiros se ressentiram da escassez de Ilmo. Sr. Obrigado pelo parágrafo 12, Art. 5º da Lei de 3 de outubro de 1834 a participar ao governo Imperial todos os acontecimentos que tiveram lugar na Província confiada a minha administração, levo ao conhecimento de V. Exª que o prefeito da comarca de Flores, uma das que ficam nas extremidades da Província e o Vigário da Freguesia de Ingazeira acabam de participar-me pelas cópias inclusas sob os números 1 e 2 que na parte da sobredita comarca confinada com a de Piancó, Província da Paraíba do Norte um certo João Antônio fizera persuadir nos povos daquele lugar que ali existia um rico e poderoso reino encantado e que este só desencantaria se o seu terreno fosse regado com o sangue de homens, mulheres e meninos e tanta foi a persuasão que pode incutir nos ânimos dos povos ignorantes por onde se espalhou e os próprios pais entregaram-lhe os filhos para serem vítimas dos horrendos sacrifícios, o qual teve princípio a 16 do passado mês de maio com a morte de 21 homens adultos e 21 meninos de ambos os sexos e em outras circunstâncias que deixo de referir ????? Ora, tendo tais desgraças chegado ao conhecimento do comissário de polícia daquele lugar, reuniu este uma força de vinte e seis pessoas e com ela foi dissolver tão criminoso ajuntamento e prender os que comungavam, do que resultou a morte de cinco pessoas e o ferimento de 4, todos da dita força e a morte de vinte e nove outros pertencentes aos contrários e a prisão de treze homens, nove mulheres e doze meninos. Consta-me por participação que o facinoroso João Antônio foi preso e que tanto ele como os seus sequazes foram entregues à justiça criminal a fim de que contra eles proceda na forma das leis. Depois da prisão de tais pessoas, a tranquilidade restabeleceu-se na Comarca e toda a Província se acha em paz. Deus Guarde V. Exª por muitos anos. Cidade da Província de Pernambuco, 30 de junho de 1838. Remetente: Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque. Destinatário: Bernardo Pereira de Vasconcelos. No verso do documento, diz que foi respondido em 08 de agosto de 1838. No despacho, diz-se: “Inteirado e recomenda-se que participe se tem mandado promover a acusação dos réus e qual o seu resultado.” Cf. IJ 1-823 – 1838 a 1843. 64 26 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento mão de obra e, principalmente, passaram a sofrer saques e depredações de seus bens, ações atribuídas aos conselheiristas. As queixas dos fazendeiros do em torno de Canudos são análogas às dos fazendeiros das imediações de Pedra do Reino. Ademais, Antônio Conselheiro carreou para si atritos com a administração pública ao enaltecer a extinta Monarquia e tecer críticas à recém implantada República do Brasil. Os conflitos culminaram com a mobilização da melhor inteligência brasileira, representada pelo Exército para combater Canudos. Foram quatro expedições. As duas últimas do Exército. Mas somente a quarta foi capaz de dar combate aos sebastianistas de Canudos, mesmo assim, somente após designarem para lá 8 mil soldados, renomados generais, além de contar com a presença in locu do próprio Ministro da Guerra - Carlos Machado Bittencourt. Várias batalhas ocorreram entre julho e outubro de 1897, até que a tropa conseguiu fechar o cerco contra Canudos. O que se viu a partir daí foi um espetáculo de horrores. Os conselheiristas foram vítimas de degolas e de toda sorte de vilanias, que passaram para a história como um dos maiores massacres ocorridos no Brasil. Vale sublinhar que as odiosas cenas foram testemunhadas pelo que de melhor havia na imprensa brasileira, uma vez que a Guerra de Canudos talvez tenha sido a primeira a contar com correspondente de guerra, que cobriam os sucessos, em tempo real. Foi o caso de Euclides da Cunha, em Canudos, a serviço do jornal O Estado de São Paulo. A despeito disso, o Exército não se intimidou em investir toda sanha contra os sebastianistas. Consideramos importante avizinhar o desfecho de Pedra do Reino ao de Canudos. Neste, os desmandos do Exército não se intimidaram nem mesmo com a presença dos correspondentes de guerra. Diante disso, pensemos no caso de Pedra do Reino, cujo desfecho, desde os supostos suicídios, autoflagelos e supostas cenas de fanatismo aconteceram em lugar ainda hoje ermo e inacessível. E ainda, a batalha que marcou o desfecho de Pedra do Reino aconteceu sem qualquer testemunha, quiçá com a presença de jornalistas. Nessas condições, como se comportou a expedição do Major Manoel Pereira da Silva que se propôs a debelar um movimento que lhes trazia sérias consequências econômicas, já que na região escasseou a mão de obra? Qual a intenção da tropa: debelar fanáticos suicidas ou zelar pelo próprio patrimônio? Antônio Áttico de Souza Leite tenta justificar a iniciativa do Major. Segundo o memorial, Manoel Pereira da Silva resolveu marchar à Pedra do Reino por causa de seu “amor à causa pública” e por outros dois motivos. Primeiro, porque conseguiu reunir “grande contingente de forças”, formado por 35 “paisanos bem montados, armados e dispostos”, sem contar com o comandante e seus irmãos (LEITE, 1903, p. 233). Além desses, ainda havia as forças de um 65 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento terceiro irmão do comandante, Simplício Pereira da Silva, e de outra força “que devia ter partido da fazenda Santa Rita e outros pontos” (LEITE, 1903, p. 233). Em segundo lugar, porque, com a ida à Pedra do Reino, o Major atendia “a tenaz insistência que seus dois irmãos Cypriano e Alexandre Pereira empregaram perante ele (sobretudo depois que souberam de um ataque que os sebastianistas se propunham a fazer em suas casas e fazendas), para que fossem imediatamente combater o inimigo” ( LEITE, 1903, p. 233). Necessário se faz comparar as armas dos sebastianistas com aquelas que portavam o Major Manoel Pereira da Silva e seus comandados. No dia da batalha final ou massacre, os sebastianistas estavam sob a liderança de Pedro Antônio dos Santos, “o qual estava acompanhado de um séquito numeroso de mulheres, meninos, e de homens, como ele, seminus e armados de facões e cacetes” (LEITE, 1903, p. 234). A julgar pela diferença das armas, a luta que se deu foi desigual. Ainda assim, Leite tenta representar uma pretensa fragilidade da tropa frente aos sebastianistas. Ora, se por um lado os sebastianistas estavam em maior número, por outro, estavam mal alimentados, a maioria eram mulheres, crianças e havia os idosos; além do que portavam apenas armas brancas. Já os potentados, embora estivessem em desvantagem quanto ao número de combatentes, estes eram todos homens adultos, sob o comando de um experimentado comandante e portavam armas de fogo. Tanto é que o saldo de mortos é bem maior entre os sebastianistas. 22 pessoas tombaram mortalmente no combate: o “rei com 16 dos seus sectários, inclusive 3 mulheres ” (LEITE, 1903, p. 239) e Cipriano e Alexandre, irmãos de Manoel Pereira da Silva mais 3 dos seus companheiros. Houve ainda um segundo combate, por ocasião da chegada da tropa de Simplício Pereira, em que morreram mais 8 pessoas que estavam em fuga, portanto já rendidas. Leite almeja comparar os dois grupos, tentando identificar uma possível fragilidade da tropa frente aos sebastianistas. Mas, nesse caso, a linguagem matemática destoa da intenção, conforme veremos adiante. As chacinas de Rodeador e de Canudos são experiências que ajudam a repensar o discurso sobre o desfecho de Pedra do Reino. No dizer sempre expressivo de Sandra Pesavento, os fragmentos ou testemunhos que temos do passado, a que chamamos de fontes, já se constituem numa representação, numa leitura daquilo que se passou (PESAVENTO, 1998, p. 21). Ou seja, os documentos são indícios do passado; não sua expressão inequívoca. A postura do memorialista Antônio Áttico de Souza Leite corrobora o que diz Bourdieu: “as representações dos agentes variam de acordo com a sua posição (e com interesse associados a ela) e com o seu habitus, como sistema de esquemas de percepção e de apreciação, como 66 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 estruturas cognitivas e avaliadoras, que eles adquirem através da experiência duradoura de uma posição no mundo social” (BOURDIEU, 2004, p. 158). 1.4. Uma versão unívoca de história: representações de Pedra do Reino em outros autores O episódio de Pedra do Reino foi o segundo e último movimento messiânico de caráter coletivo registrado na história de Pernambuco. Causa-nos admiração que um evento de natureza tão significativa, de tanta repercussão na literatura, não tenha recebido a atenção de historiadores; a estranheza se alarga, sobretudo, porque sabemos que os cursos de formação na área estabeleceram-se na capital e no interior do Estado há mais de trinta anos. As representações que se registram sobre a Pedra do Reino são de viajantes e cronistas, médicos e militares, folcloristas, antropólogos e sociólogos. Há ainda alguns leigos que se aventuram a discorrer sobre o tema. O ponto de convergência entre esse conjunto de obras é a filiação às memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Em mais de uma dezena de textos consultados, há recorrência na representação do episódio de Pedra do Reino e seus mais significativos agentes. Do mais remoto ao mais recente texto sobre o episódio, reitera-se a narrativa que lemos em Fanatismo Religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, como destacamos a partir de agora. 1.4.1. Daniel Parish Kidder e suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil De acordo com o mencionado na introdução, Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, de Daniel Parish Kidder (1972), é a obra mais remota que localizamos que se traz à baila representações da história da Pedra do Reino. Como o viajante norte americano travou conhecimento sobre o episódio? Segundo consta em suas memórias de viagem, cuja primeira edição em inglês é de 1845, ele utilizou documentos oficiais como fontes para narrar o que ele denominou de lamentáveis ocorrências de fanatismo. Em suas representações, o sebastianismo é uma seita, que os crentes esperam que o jovem monarca português D. Sebastião, desaparecido em África, “voltará, vivo ainda, sem jamais ter morrido. Os portugueses esperam o seu reaparecimento em Lisboa, mas os brasileiros acham mais natural que ele venha ter, em primeiro lugar, à sua cidade de São Sebastião” (KIDDER, 1972, p. 93). Sob seu olhar, João Antônio é um “espertalhão sem escrúpulos” que se instalou numa floresta onde havia duas cavernas. Denominadas por ele de reino encantado, desencantariam-se 67 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento tão logo as pedras fossem banhadas com o sangue de uma centena de crianças inocentes. Na falta destas, homens e mulheres deveriam ser imolados. Julgou o pastor Kidder, que faltou coragem a João Antônio “para levar a cabo seu plano sanguinário, mas delegou poderes a um de seus asseclas, chamado João Fernandes[sic]” (KIDDER, 1972, p. 94). Sob a orientação do novo líder, conta Daniel P. Kidder, aconteceram “numerosas cenas por demais horríveis para serem aqui reproduzidas, começou a matança de seres humanos. Cada chefe de família era obrigado a oferecer um ou dois de seus filhos. Em vão as crianças choravam e suplicavam que não as matassem. O pais desnaturados respondia-lhes: ‘não meu filho, não há remédio’(...)” Quando já haviam sido assassinadas 41 pessoas, conta ele que “alguém conseguiu fugir e comunicar às autoridades a horrível tragédia”( KIDDER, 1972, p. 94). Chamou também a atenção de Kidder a informação de que os sebastianistas não enterraram os corpos porque tinham certeza da breve ressurreição. “Verificou-se, depois, que as vítimas desse horrível fanatismo nem ao menos enterravam os corpos de seus filhos e parentes mortos, tão certos estavam de sua ressurreição” (KIDDER, 1972, p. 94). Quais os documentos oficiais a que Daniel P. Kidder teve acesso? O mais provável é que o contato tenha sido com os dois documentos publicados no Diário de Pernambuco: (1) ofício do prefeito de Flores dirigido ao presidente da província; (2) carta do vigário de Serra Talhada ao seu confrade Padre Correa, reproduzidos pelo jornal em 16 e 18 de junho de 1838, respectivamente.27[Figura 6] Conf. Diário de Pernambuco. 16 e 18 de maio de 1838. Vejamos a transcrição do ofício: “Artigos de ofício Ilmo. Revm. Sr. Francisco José Correia. Veja V. Rvm.No que veio dá a malvada ilusão dos diamantes e Reino Encantado de João Antônio. Tendo notícia o Major Manuel Pereira da Silva que os fanáticos daquele estavam congregando e iludindo os mais incautos para seu partido e juntos já bastantes no lugar de pedra bonita do sonhado reino, saiu no dia 18 com uma pequena tropa de 30 homens houve de parte a parte uma tão forte cruenta e cruel guerra que dentro de poucos instantes ficou o maldito reino arrasado e mortos da parte dos malvados 14 homens, 3 mulheres e os mais evadiram-se, sendo prisioneiros muitas mulheres; e dessa nossa tropa morreram e saíram 3 feridos; 2 levemente e um, muito mal; porém espera escapar; e entre os 5 mortos, 2 filhos do finado capitão José Pereira, que foram Alexandre e Cipriano. O rei João Antônio não está aí há muito tempo e de lá mandou um chamado João Ferreira fazer cá algumas vezes, e este estava coroado com uma coroa de cipó japiranga, com o título de Santidade que todos lhe beijam o pé e vivia pregando lá a seu modo de iludir e juntando gentes, rezando e casando com quantos quisesse, até com duas ou mais mulheres, e ele mesmo já estava casado com sete, e o seu casamento era dessa maneira: eu te caso pelo poder que Deus me deu- e todos aqueles que não lhe beijava o pé, no mesmo instante o matava, que ainda matou 19 crianças e 19 adultos de ambos os sexos, e idades. Dizia que o reino se desencantava e restaurava com o sangue dos inocentes e cada pai de família dava dois ou três filhos para serem assassinados e os pais terem maior parte na restauração; cujos pais entregavam seus filhinhos de muito livre vontade, e os filhinhos gritavam, choravam e pediam aos pais que não os deixasse matar e agarrados com eles diziam: não meus filhos, não há remédio, não há remédio. E o Santidade dizia que se viessem as tropas, não temessem nada e gritassem viva a nosso Rei João Antônio, viva a nossa liberdade, viva a nossa Religião, vivas e mais vivas que naquele mesmo instante do ataque era o reino restaurado e ressuscitariam os mortos e pareceriam ali as maiores grandezas do mundo e cairiam sobre os combatentes e os arrasariam e ficariam eles de posse daquela grandeza e seriam os primeiros do reino, sendo o reino na pedra bonita e a grande cidade na lagoa formosa, distante meia légua; e, por isso, quando sentiram a tropa 68 27 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento gritaram com maior entusiasmo do mundo, e fizeram uma gritaria de vivas e vivas que ninguém se entendia, batiam palmas, faziam a maior zoada, que dar a pode???. As mulheres vendo os maridos morrendo em seus pés, não corriam, só esperando o desencanto premeditado e só vieram desenganar depois de tudo consumado. Eles não enterravam os mortos, só esperando brevemente a restauração e gritavam na guerra, é tempo, é chegado o tempo, chegou o tempo, viva, viva. Dois ou três dias antes do ataque, um irmão de João Antônio chamado Pedro, matou o Santidade e coroou-se a si próprio, e com estes justos 39 que eles mataram. Ontem tivemos notícia de que nossa gente, que por lá ainda ficou, matou mais a 2 e já anda toda a mortandade daquela ilusão por 63 pessoas, sendo mortos lá entre eles 29, na guerra 22 e depois 2. Veja que desgraça meteu João Antônio naqueles miseráveis que nunca mais se quiseram apartar de semelhante superstição, fanatismo e ilusão. Forte infelicidade, forte desgraça. Deus nos acuda. Os 5 nosso que morreram era gente escolhida e boa, que foi um seu afilhado, Francisco Ferreira de São Paulo, Viríssimo, filho do finado José Antônio da Penha e um irmão de Antônio da Cruz, chamado João, primo legítimo dos mesmos Pereiras. Que gente boa se perdeu. Valha-nos Deus. Deus guarde V. Rvm. Em saúde, felicidade e paz, para a consolação, de quem protesta ser de V. Rvm. Patrício, apaixonado e amigo. Serra Talhada, 24 de maio de 1838. N.B. Neste instante soubemos que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”. 69 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 70 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 71 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.4.2. Nina Rodrigues e A hecatombe de Pedra Bonita em Pernambuco A obra As coletividades anormais, obra póstuma de 1939, é uma coletânea de textos do médico legista Nina Rodrigues, reunida por Artur Ramos28. “A hecatombe de Pedra Bonita em Pernambuco” é um desses textos, escrito provavelmente em 1898, segundo o prefácio da obra em volume. Nina Rodrigues dividiu-o em duas partes. Na primeira, reescreve a história de Pedra do Reino tomando como fonte as memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Na parte seguinte, há uma análise de Pedra do Reino como um exemplo de contágio vesânico29: Estamos em presença de um caso onde são tão manifestos e evidentes os caracteres da epidemia vesânica de fundo religioso, que só uma completa ignorância da psicologia mórbida pode justificar o rigor penal com que foram atingidos alguns dos sobreviventes, e a violência revelada pelos que se ocuparam do processo para estigmatizarem a suposta perversidade destes fanáticos. Aqui, mais do que em qualquer outra circunstância, o desenvolvimento do desvio mórbido desta população pode ser rigorosamente atribuído à exaltação do misticismo de uma reunião de mestiços psicologicamente mais equilibrados, pela evocação violenta dos sentimentos e das crenças atávicas das raças inferiores de onde haviam saído. A litolatria dos índios americanos e dos negros africanos, ainda em plena atividade entre nós, deve ser considerada como um legado transmitido diretamente por herança a seus descendentes, puros ou mestiços. A disposição insólita dessas pedras, cuja semelhança com os menhirs fere naturalmente o espírito, não solicitava apenas os sentimentos fetichistas do elemento indígena e negro; mas ligava-se admiravelmente ainda às tendências supersticiosas da raça branca que tem uma fé cega nos encantamentos e nas transformações em pedra. Não são somente, porém, as manifestações de um sentimento religioso ainda muito inferior que nesta população iam se encontrar tão superficiais, tão pouco cobertos e pouco dominados pelos sentimentos mais puros e delicados de uma civilização e de uma cultura superiores. É também a tendência sanguinária, são os instintos cruéis da mais selvagem ausência de piedade que possuem normalmente, ainda hoje, quando entregues a si mesmas, as raças inferiores ou seus descendentes diretos que constituem as populações misturadas (NINA RODRIGUES, 2006, p. 95). Importante anotar que no romance O Reino Encantado as “representações” das personagens sebastianistas são calcadas em concepções raciológicas e numa linguagem médico psiquiátrica. Dedicaremos parte do último capítulo desta tese às analises das representações dessas personagens. Artur Ramos é também o autor do prefácio e das notas de As coletividades anormais. No prefácio o médico, antropólogo e folclorista alagoano relata que a obra é fruto da reunião de textos esparsos publicados sobretudo em revistas estrangeiras, à época já fora de circulação. 29 Segundo Artur Ramos explica no referido prefácio, contágio vesânico era a denominação genérica que recebia as várias formas de contágio da loucura,“ desde a loucura a dois, as loucuras familiares até as loucuras epidêmicas, seguindo de perto as pegadas de Lasègue e Falret, de Régis, de Marandon de Montyel, de Sighele, de Tarde; esclarece as dúvidas sobre o conceito da palavra multidão, em psicologia coletiva; aborda o estudo da figura do meneure dos laços afetivos que o ligam à multidão; examina casos brasileiros de meneurs e de epidemias místicas, domésticas e coletivas” (RAMOS, 2006, p. 17). 72 28 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.4.3. Francisco Augusto Pereira da Costa Francisco Augusto Pereira da Costa é um dos principais cronistas a ocupar-se da história pernambucana. Suas valiosas contribuições estão registradas em mais de quarenta obras, a maioria publicada inicialmente na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, de onde era membro. Citemos aqui Os anais pernambucanos (1983-1985) e Folclore pernambucano (1908), em que Pereira da Costa dedica trechos à história de Pedra do Reino. A primeira, é uma obra em dez volumes, cada um contendo cerca de 500 páginas, em que o autor narra acontecimentos da história de Pernambuco de 1493 a 1850. São 357 anos de história em que se noticiam os feitos de nomes até hoje conhecidos como também fatos do cotidiano nos seus variados aspectos econômicos, políticos e religiosos. Dado o volume e extensão da obra, Pereira da Costa não conseguiu publicá-la em vida. Embora tenha sido escrita durante o século XIX, a primeira edição, uma empreitada do Arquivo Público de Pernambuco, só veio à luz em 1951, por ocasião do centenário natalício do autor que faleceu em 1923. Já Folclore pernambucano é uma obra cuja publicação inaugural é de 1908, na Revista do IHGB, tomo LXX, Parte 2. A segunda e a terceira edições datam de 1974 e de 2005, respectivamente. Nas duas obras, o autor se coloca como tributário das memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Pereira da Costa (1908) principia Folclore pernambucano com um capítulo intitulado “Superstições populares”. Depois de identificar e interpretar o culto que o povo brasileiro devota a diversos astros, ao mar, o cronista discute longamente o culto tributado às pedras. A litolatria é objeto de sua atenção começando por entendê-la entre os povos primitivos, seguidos pelos egípcios, pelos povos cristãos... até sua chegada aqui no Brasil. O autor de Folclore pernambucano encerra a discussão sobre o tema ao narrar dois episódios da história brasileira que se deram em torno de pedras: Rodeador e Pedra Bonita ou Pedra do Reino. No que tange à narrativa sobre a Pedra do Reino, dois aspetos merecem evidência. Primeiro, Pereira da Costa comunga com o Conselheiro Tristão de Alencar Araripe a idéia de que, além de “fanáticos,” os adeptos de Pedra do Reino também se caracterizavam pelo pensamento socialista: “Observa-se, porém, que além do fanatismo religioso transparecia também entre esses visionários, um como que pensamento socialista, porque no dia do grande evento levantar-se-iam eles como valentes e indômitos dragões para devorarem os proprietários” (COSTA, 1908, p. 41). Depois, Pereira da Costa afirma que seu texto consigna-se à Fanatismo religioso: memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, de Antônio Áttico de Souza Leite, a quem apresenta como o “escritor de uma interessante monografia a quem seguimos pari passu nesta narrativa...” 73 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 (COSTA, 1908, p. 38). De fato, o que se lê em Folclore pernambucano é uma paráfrase das memórias de Leite. Em Anais pernambucanos, Pereira da Costa (1983-1985) pouco registra de suas próprias representações sobre a Pedra do Reino. O autor justifica que considerava dispensável descer detalhes sobre o assunto porque a: história do reino encantado da Pedra Bonita é conveniente e desenvolvidamente conhecida, graças a uma interessante monografia sob o título Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, escrita por Antônio Áttico de Souza Leite (...). Sob seus moldes e adiantando um pouco, escrevemos artigo sob o título Reino encantado de D. Sebastião - que publicamos em junho de 1902 no Diário de Pernambuco, e depois o consignamos no nosso Folclore Pernambucano (1908) (COSTA, 1983-1985, p. 159). O tributo ao memorial de Leite é expresso e também se revela nas duas grandes citações de documentos sobre Pedra do Reino. Das oito páginas destinadas ao tema, o autor reserva quase sete delas para reproduzir trechos de dois documentos sobre a Pedra do Reino, cujos teores se coadunam com os princípios que nortearam a composição do memorial de Leite - elogiar o Estado e a Igreja e repudiar o caboclismo. Os documentos são: (1) o relatório anual apresentado pelo governador à Assembléia Legislativa de Pernambuco, em 1839 (BARROS, 1839); (2) e a transcrição de fragmento de uma carta do vigário de Serra Talhada, Pe. Antônio Gonçalves de Lima(1838), dirigida ao Pe. Francisco José Correa de Albuquerque. Sobre o relatório, cabe informar que, por força das Leis do Império, competia aos presidentes provinciais cientizar a Assembléia Legislativa dos principais acontecimentos ocorridos na Província confiada a sua administração no ano anterior. A leitura do relatório acontecia em reunião ordinária e há publicação em volume desses documentos dos anos de 1832 a 1840. A coleção completa pode ser consultada no Arquivo Público de Pernambuco e on line no sítio <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/654/000003.html>. No que tange à carta, temos poucas informações. Foi possível verificar que, de fato, o Diário de Pernambuco publicou a carta, em 18 de junho de 1838, embora não tenhamos localizado o documento original no Arquivo Público de Pernambuco. O que merece relevo são algumas passagens que Pereira da Costa transcreve sobre a missiva sobre os mortos e sobreviventes de Pedra do Reino. “Ontem tivemos notícia que a nossa gente, que por lá ainda ficou, matou mais a 2, e já anda toda mortandade daquela ilusão por 63 mortos, sendo mortos entre eles 29, na guerra 22 e depois 2” (LIMA, 1838 apud COSTA, 1983-1985, p. 161). Depois de se despedir formalmente do colega de batina, a quem deseja que Deus o guarde com saúde, felicidade e paz, Pe. Antônio Gonçalves de Lima acrescenta novas informações: “N.B. Neste instante soubemos 74 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”(LIMA, 1838 apud COSTA, 1983-1985, p. 161-2). O trecho reforça a imprecisão do número de mortos em Pedra do Reino. Até porque há notícias de perseguições àqueles que fugiram quando da chegada da tropa que debelou o movimento. Ao narrar o destino de personagens importantes da história de Pedra do Reino como Frei Simão, dois filhos de João Pilé e do próprio João Pilé, Antônio Áttico de Souza Leite afirma que os três primeiros foram assassinados. Aquele, perto da fazenda Lagoinha e estes, entre a serra Formosa e Conceição do Piancó, em ato de resistência, com outros companheiros, contra as forças perseguidoras do capitão Simplício Pereira da Silva. Finalmente, João Pilé ocultou-se no Cariri e nas imediações de Piancó, onde tempo depois morreu de moléstia natural ( LEITE, 1903, p. 243-4). A despeito de o memorial de Leite se prestar a defender os potentados, o autor deixa escapar parte das vinganças empreendidas pelo capitão Simplício Pereira da Silva, por causa das mortes de Alexandre e Cipriano, seus irmãos. Para além desses assassinatos é possível que outros tenham acontecido. O próprio Leite anuncia que o comissário de Serra Talhada designou doze agentes para perseguir os sebastianistas, sobretudo os líderes. “Roque e Antônio da Cruz, únicos dos doze que haviam sido expedidos que tinham se atrevido a chegar tão longe com a precatória respectiva” (LEITE, 1903, p. 242-3) foram os agentes que prenderam João Antônio dos Santos em Minas do Saruá, hoje região de Brumado e Caetité, parte da Bahia que faz fronteira com Minas Gerais. Os agentes do comissário deram cabo da vida daquele líder sebastianista em lugar de nome Lagoa Encantada, nas proximidades de Xique Xique, norte baiano30. Em outro trecho, Leite assegura que outros líderes de Pedra do Reino também morreram. José Joaquim, José Vieira, Manoel Vieira (Pai) -todos eles morreram no combate contra as forças do comissário (LEITE, 1903, p. 243). Diante das informações surge uma questão: quem foram os O memorialista justifica atitude dos agentes. Diz que só assassinaram João Antônio, o primeiro líder de Pedra do Reino, porque foram acometidos de febre palustre e “tão precário era o estado de saúde dos dois condutores, quando chegaram à Lagoa Encantada, três léguas abaixo da vila de Xique Xique, que resolveram matá-lo antes de serem vítimas da moléstia ou de algum novo ardil.” (LEITE, 1903, p. 243) O ardil ou estratagema a que se refere o memorialista foi narrada passagens antes, quando o autor Leite se reporta ao exato momento da prisão de João Antônio. Segundo as memórias de Leite, “quando João Antônio se viu em poder dos adversários, longe de maldizer a sua sorte e mostrar descontentamento, procurou, ao contrário, captar-lhes os ânimos e deslumbrá-los ao mesmo tempo com promessas de imensos tesouros, que podia, quando quisessem, por a sua disposição.”(LEITE, 1903, p. 243) Como os agentes não aceitaram a proposta de João Antônio e, no transcurso da viagem, quando os dois representantes do comissário passaram a sofrer de febre, conta Leite que João Antônio orientou a esposa a matá-los: “[João Antônio] começou a dirigir-se à mulher em gíria desconhecida por eles, na qual insinuava-lhe que os matasse, quando estivessem acometidos do mal, porque bastariam as riquezas que eles traziam nos macotes para tornarem-se riquíssimos.”(LEITE, 1903, p. 243) Com os dizeres, o autor insinua que o objetivo de João Antônio era adquirir bens, não importando os meios. 75 30 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento sebastianistas levados a julgamento se quase todos os líderes foram assassinados? De quem está falando o Presidente da Província, quando afirma no relatório anual à Assembléia Legislativa que, “consta-me, por participações oficiais, que os presos foram entregues ao Juiz Criminal para proceder contra eles na forma das Leis; e que o Tribunal do Júri os condenara a diversas penas para punição de seus horrendos crimes” (BARROS, 1839, p. 04)31. [Figura 7] Leiamos a transcrição do ofício APEJE/ Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II: Ao prefeito de Flores dizendo-lhe ter chegado desta cidade os réus condenados a galés perpétua Gonçalo José dos Santos e Antônio Thomás. Ilmo. Sr. Com seu ofício de 8 do corrente, chegaram a esta cidade os réus Gonçalo José dos Santos e Antônio Thomás condenados a galés perpétua pelo juiz dessa comarca os quais vão ser aplicados aos trabalhos das obras públicas. O que participo a V. S. para sua ciência e em resposta ao citado ofício. Deus guarde V. Exm. Palácio do Governo de Pernambuco, 27 de agosto de 1838. Francisco de Paula. 76 31 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 77 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Ocorre que a comunicação oficial até agora localizada atesta a condenação de apenas dois sebastianistas. Um deles, pai de João Antônio dos Santos. O documento que se segue é copia do ofício que procedeu do prefeito de Flores, Francisco Nogueira Barbosa Paes, e foi dirigido ao Presidente da Província de Pernambuco, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, comunicando a condenação a galés perpétua de Gonçalo José e Antônio Thomas, “desordeiros da facção que teve lugar na Pedra Bonita”, oriundos da Comarca de Flores32.[Figura 8] Isso posto, embora Pereira da Costa(1983-1985) se coloque como tributário da obra de Antônio Áttico de Souza Leite, sua menção à Pedra do Reino em Anais Pernambucanos permitiram-nos novos olhares sobre os discursos oficiais sobre os sebastianistas sobreviventes. Vejamos a transcrição do ofício: “No dia dois do corrente mês foram presos e recolhidos à cadeia Gonçalo José [dos Santos] e Antônio Thomás desordeiros da facção que tiveram lugar em Pedra Bonita e dos mesmos fiz entrega ao Juiz de Direito do Crime para lhes proceder na conformidade da Lei. Deus guardeV. Exª. Prefeitura da Comarca de Flores, 29 de junho de 1838. Exmo. Coronel Francisco de Paula Albuquerque, presidente da província de Pernambuco”. Cf. APEJE, Pc 5, p. 267. Como já vimos no ofício anterior, esses réus foram julgados em Flores, condenados a galés perpétua e encaminhados ao Recife, local em que os condenados de todas as comarcas do interior cumpriam suas sentenças. Na exaustiva coleta de documentos que fizemos, não encontramos notícia da condenação de que quaisquer outros sebastianistas de Pedra do Reino. No ofício do Pe. Antônio Gonçalves de Lima, de 24 de maio de 1838, localizamos a informação de que, até aquela data, todos os cabeças foram mortos, exceto três, conforme já citamos no ofício do padre: “N.B. Neste instante soubemos que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”(LIMA, 1838)”. 78 32 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 79 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.4.4. Gustavo Barroso: Almas de lama e de aço (1928) Da vasta obra do cearense Gustavo Barroso33, interessa-nos aqui uma de título bastante sugestivo: Almas de lama e de aço. Escrita em 1928, há entre as páginas 16 e 23 um capítulo chamado “D. Sebastião no Nordeste” onde o autor trata do episódio de Pedra do Reino. O capítulo de Gustavo Barroso, segundo ele anuncia, será um resumo “do livrinho” do historiador do episódio “que no-lo deixou descrito com todos os pormenores (...) Foi este o Sr. Antônio Áttico de Souza Leite e o seu pequeno livro se intitula Fanatismo religioso - memórias sobre o Reino encantado na comarca de Villa Bella”. Convém anotar que Gustavo Barroso também reforça o estatuto de “verdade” à história de Pedra do Reino narrada por Leite: “seria inacreditável isso, se os documentos coevos não o provassem de modo inilidível (...) De tudo há documentos oficiais: partes, relatórios, ofícios, bem como os processos dos principais chefes aprisionados que foram submetidos a júri”. (BARROSO, 1928, p. 21-23). Além de reproduzir a narrativa de Leite, Gustavo Barroso pontua algumas questões sobre o sebastianismo. Para ele, “a história do messianismo sertanejo ainda está para ser devidamente feita com as verdadeiras proporções do seu desenvolvimento no tempo e no espaço(...)” (BARROSO, 1928, p. 16), sobretudo compreender a raiz de um fenômeno tão recorrentemente anotado. De modo muito aligeirado, Gustavo Barroso levanta algumas justificativas de ordem geográfica, econômica e patológica. As hipóteses são ainda visivelmente comprometidas com ramos do determinismo do séc. XIX, quando afirma que “se verifica como entre aquela pobre gente e naquela terra batida de secas, a miséria e a ignorância, que de mãos dadas têm conseguido efeitos terríveis e sobretudo contagiosos” (BARROSO, 1928, p. 17). Gustavo Barroso ainda tratou de destino dos sebastianistas de Pedra do Reino. As informações que ele trouxe, no entanto, vão de encontro às da carta do vigário de Serra Talhada. Nesta, afirma-se que os principais líderes foram mortos pelas forças perseguidoras do Cap. Simplício Pereira. Em Almas de lama e de aço, diz-se: “Aos prisioneiros, que eram muitos, Manoel Pereira não consentiu que se fizesse mal e levou-os para as vilas próximas, onde lhes deu destino conveniente, entregando os chefetes e os menores às autoridades e arranjando trabalho para os adultos” (BARROSO, 1928, p. 23). Os desencontros nas informações, mais uma vez, suscitam Gustavo Barroso (1888-1959) - advogado, escritor e professor -, foi membro da Academia Brasileira de letras . Escreveu 128 obras sobre história, folclore, ficção, biografias, memórias, política, arqueologia, museologia, economia, crítica e ensaio, além de dicionário e poesia. 80 33 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 dúvidas sobre o destino dos sebastianistas: quem foi levado a julgamento, se todos os líderes foram mortos? 1.4.5. Câmara Cascudo em Dicionário do Folclore Brasileiro (1954) Em Dicionário do folclore brasileiro, obra de Luís da Câmara Cascudo publicada no ano de 1954, localiza-se o verbete Sebastianistas. Embora seja um texto curto, característica recorrente aos verbetes, é possível subdividi-lo em três partes. O surgimento do sebastianismo em Portugal; sua chegada e propalação no Brasil; descrição das manifestações coletivas do sebastianismo no Brasil em Canudos, Rodeador e Pedra do Reino. Para narrar e descrever o movimento de Pedra do Reino, Câmara Cascudo vale-se das memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Ainda que ao final do trecho cite outras fontes de pesquisa, tais como o romance O Reino Encantado (1878), de Araripe Jr., e Folclore pernambucano (1908), de Pereira da Costa. Cascudo reproduz os pontos de vista de Leite sobre os líderes de Pedra do Reino, sobre os adeptos do movimento - a quem Cascudo denomina de vassalos, enfim, ele é fiel, inclusive, à sequência narrativa do memorial. Por mais que isso fique evidente, é importante dizer que o olhar de Câmara Cascudo recaiu, entre outras, sobre a cena em que a tropa de Manoel Pereira da Silva e os sebastianistas supostamente se encontram e acontece a batalha final. Uma tropa policial, comandada por Manoel Pereira da Silva, apareceu para prender os assassinos e dissolver o reino da Pedra Bonita. Dizia-se que El-Rei D. Sebastião apareceria nesse momento, com seu exército. Armados de arma branca e de paus, os sebastianistas da Pedra Bonita enfrentaram as carabinas da força policial, gritando, entusiasmados: - Não os tememos! Acudam-nos a tropas do nosso reino! Viva El-Rei D. Sebastião! (CASCUDO, 1984, p. 701). No trecho, Câmara Cascudo evidencia a confiança dos sebastianistas no retorno de D. Sebastião. Por essa razão, mesmo portando apenas armas brancas, enfrentaram sem temor o arsenal bélico e de fogo da tropa de Manoel Pereira da Silva já que esperavam confiantes que seriam acudidos pelo exército real do monarca português. 1.4.6. Optato Gueiros e o depoimento de Seu João (1956) Na obra Lampião, Optato Gueiros transcreveu um depoimento de um morador da região de Pedra do Reino sobre o episódio de 1838. Embora seja um trecho curto, consideramos 81 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 importante trazê-lo à luz por ser uma das representações correntes, sessenta anos depois do término daquele arraial. O depoente, apresentado apenas pelo prenome, Seu João, conta a Gueiros detalhes de seu cotidiano. “Vivo muito bem, seu tenente. A minha ocupação aqui é tirar catolé e mandar vender nas feiras. As minhas andanças nunca passam desta encosta de Serra à Pedra do Reino” (GUEIROS, 1953, p. 71). Na sequência o entrevistador indaga seu João sobre a Pedra do Reino. Este, a princípio, responde que não se sente habilitado a falar sobre o tema e sugere que Gueiros procure outros moradores da Região, no seu entender, mais gabaritados para tal: “quem pode lhe contar tudo é o velho João Menino da ponta da Serra, e o major Quincas Leonel, da Oiticica34. Eles lhe ‘debulham’ tim tim por tim tim. Já os vi contar a homens de posição, de passagem em casa deles”(GUEIROS, 1953, p. 71). Gueiros insistiu e pediu para que Seu João lhe contasse o que gravou sobre as histórias que ouviu. A história é mais ou menos assim: a[sic] uns sessenta anos passados, um Sebastião Barbosa, juntou na Pedra do Reino, umas quatrocentas pessoas entre homens, mulheres e crianças, e botou na cabeça deles que São Sebastião iria surgir na Pedra do Reino, montado num cavalo branco, mas para isso, para que o santo aparecesse logo, seria necessário matar muitas crianças e mulheres e aspergir o sangue na pedra. O povo se deixou levar pelas pregações de Sebastião e os pais entregavam os filhos que eram logo sangrados em cima da pedra. E assim muitas crianças, em número elevadíssimo e mulheres, foram mortas com a maior indiferença e sangue frio. As forças do governo e civis armados, em número de quatrocentos mais ou menos, atacaram o Sebastião, na Pedra do Reino. Houve uma luta de um dia todo, até que, depois de muitas baixas, conseguiram tomar a Pedra do Reino e acabar com o fanatismo (GUEIROS, 1953, p. 72). Nas representações de Seu João, o líder dos sebastianistas não foi João Antônio dos Santos, nem João Ferreira, nem Pedro Antônio dos Santos. Estes, na ordem citada, são mencionados por Leite como guias do arraial de Pedra do Reino. Para Seu João, o condutor do movimento foi Sebastião Barbosa, nome jamais aludido nos textos a que tivemos acesso. Ademais, o esperado não era D. Sebastião, o monarca português, mas o próprio São Sebastião, santo católico. Chama ainda a atenção a controvertida linguagem matemática, no tocante ao episódio de Pedra do Reino. Seu João menciona 400 sebastianistas, como também igual era número de combatentes na tropa organizada por Manoel Pereira da Silva. 34A fazenda Oiticica é, ainda hoje, de propriedade dos descendentes de Quinca Leonel ou Joaquim Leonel Pires de Alencar. 82 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento 1.4.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957) O sertanejo e o sertão é um livro de memórias de Ulisses Lins de Albuquerque35. No capítulo – “A luta dos Pereiras e Carvalhos”, o autor se propõe a compreender a origem da contenda entre as duas famílias. Moradoras do sertão de Pernambuco há séculos, descendentes diretas ou indiretas de Manuel Lopes Diniz, arrendatário de larga faixa de terras sertanejas, cuja sede foi a fazenda Panela d’Água, hoje no município de Floresta - PE, Pereiras e Carvalhos protagonizam querelas com episódios memoráveis. No encalço dessas ocorrências, Ulisses Lins tenta relatar os eventos mais remotos tomando como fontes depoimentos de Deodato Nunes Pereira e, sobretudo, um caderno de Manuel Pereira Lins36 que “escrevera toda a história da tremenda luta em que se empenhara sua família” (LINS, 1957, p. 329). Qual a relação entre história da Pedra do Reino e Pereiras e Carvalhos? Segundo Ulisses Lins, o ponto de partida das rusgas entre as duas famílias, em 1836: “fora a séria divergência havida na então vila de Flores (...) entre o coronel Manoel Pereira da Silva (...) e Francisco Barbosa Nogueira Paes, que ao lado de Francisco Alves de Carvalho (ambos filiados ao Partido Liberal), se opuseram a empossar aquele e seus correligionários (do Partido Conservador) nos cargos de juiz de paz e vereadores” (LINS, 1957, p. 321). Já que seus objetivos políticos foram frustrados, Manoel Pereira da Silva sentiu-se no direito de deslocar-se até Flores para tomar satisfação, “acompanhado dos irmãos Simplício e Francisco Pereira (...) e muita gente armada para enfrentar Francisco Barbosa Nogueira Paes e Francisco Alves de Carvalho” (LINS, 1957, p. 323). À chegada dos Pereira e comandados, “houve luta renhida” entre eles e seus opositores que se encontravam entrincheirados num casarão, no centro de Flores. Conta Ulisses Lins que, ao final da batalha, Francisco Barbosa Nogueira Paes conseguiu fugir do local, e as marcas da luta ficaram nas grossas paredes, na porta nas seis janelas de frente do casarão que “estavam de alto a baixo perfuradas pelas balas dos velhos arcabuzes da época” (LINS, 1957, p. 323). Segundo Antônio Áttico de Souza Leite, as disputas de 1836 serenaram por obra de Padre Correa de Albuquerque que, em nome do Estado, dividiu a freguesia de Flores e criou as novas freguesias de Serra Talhada e Ingazeira (LEITE, p. 220). O autor foi membro da Academia Pernambucana de Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. 36 Manoel Pereira Lins, mais conhecido na região como Né da Carnaúba, referência à fazenda de sua propriedade de denominação homônima. A fazenda Carnaúba, Né da Carnaúba, suas esposa Pautila de Meneses assim como os filhos do casal Deósio, Leônidas e Argemiro Pereira são, respectivamente, ambiente e personagens do romance A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Conf. A Pedra do Reino, p. 81-101. 83 35 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 A missão apaziguadora de padre Correa surtiu efeito momentâneo. Segundo Ulisses Lins, Manoel Pereira Lins e seus irmãos voltaram a combater Francisco Barbosa Paes e seu grupo, na luta da Serra Negra, em 1848. Na ocasião, os Pereiras sagraram-se vencedores dadas as táticas de guerra do capitão Simplício Pereira que juntamente com seus 400 homens, conseguiram quebrar o cerco comandado por Nogueira Paes. Este, tal qual aconteceu em Flores, conseguiu mais uma vez evadir-se do local. Mas, “algum tempo depois foi encontrado nas caatingas um esqueleto humano, sendo reconhecido como o de Nogueira Paes que possuía um dente de ouro” (LINS, 1957, p. 324). Cabe aqui evidenciar como Ulisses Lins elabora suas representações de Manoel Pereira da Silva, seus irmãos e também os Carvalho. O que se depreende do discurso de Ulisses Lins é que, embora as duas prestigiosas famílias representassem a ordem por serem agentes do Estado ostentando notáveis patentes militares ou mesmo desempenhado funções políticas respeitáveis como a de prefeito, agiram como vingadores; apuseram-se à ação da justiça e fizeram-na com as próprias mãos, ao sabor da satisfação ou insatisfação de seus interesses políticos e econômicos. Se eles agiam entre si, quiçá o que fizeram com os sebastianistas da Pedra do Reino, que eram de classe inferior à deles e, conforme o pensamento da época, eram considerados de raça secundária. Dúvidas como essa só se avolumam quando Ulisses Lins rememora as reprováveis atitudes de Simplício Pereira para com os índios. Em O sertanejo e o sertão, lê-se que Simplício Pereira da Silva sustentou “uma luta tremenda com os índios que habitavam nas proximidades da sua fazenda (...) Mas que, no final da questão, havia eliminado inúmeros índios, até que estes se retiraram da região não suportando o incômodo vizinho” (LINS, 1957, p. 325). O massacre contra os índios ficou conhecido, tanto é que Simplício Pereira da Silva virou notícia em periódico cearense. Quando uma cópia do jornal chegou a suas mãos, conta Ulisses Lins que Simplício Pereira foi se queixar à esposa que o jornalista João Brígido apontava-o como autor de mais de 50 assassinatos, ocasião em que se deu o diálogo que transcrevemos: “Simplício, contando com os caboclos, é capaz de passar dos cinquenta. E ele diz enjoado: Ora, que besteira, mulher! Eu falo é em gente batizada” (LINS, 1957, p. 327). Acrescenta Ulisses Lins que foi por essa e outras histórias que Simplício Pereira da Silva ficou conhecido como “o demônio das selvas e era, de fato, uma espécie de gnomo das caatingas, pois, de pequena estatura- pelo que os sertanejos o crismaram com o apelido de ‘peinha de mão’(aludindo à pequena peia com que prendiam os animais, nas mãos) praticou diabruras tais que se tornou uma figura lendária no sertão” (LINS, 1957, p. 324-5). 84 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 Qual foi a participação de Simplício Pereira em Pedra do Reino? Ulisses Lins conta passagens do episódio resumindo o memorial de Leite em dois ou três parágrafos. Depois afirma que, “mais tarde, [Simplício Pereira] foi forçado a tomar parte no assalto ao arraial dos fanáticos de Pedra Bonita” porque “os fanáticos prometiam desalojar de suas propriedades os Pereiras e os Carvalhos que residiam nas imediações, para que as distribuíssem entre os seus [adeptos]” (LINS, 1957, p. 325-6). Não é demais lembrar uma das anotações de Antônio Áttico de Souza Leite sobre Simplício Pereira. Segundo o memorialista, as tropas de “peinha de mão” perseguiram os sebastianistas que conseguiram escapar do ataque das forças legais ao arraial de Pedra do Reino. 1.4.8. Waldemar Valente em Misticismo e região (1963) Waldemar Valente era médico, mas também cursou mestrado em antropologia. Em 1963, publicou a obra Misticismo e região, na qual há um capítulo sobre a história de Pedra do Reino. Das dez páginas reservadas ao tema, nove delas são uma longa paráfrase das memórias de Leite. No restante do capítulo, Waldemar Valente levanta algumas hipóteses na interpretação do episódio. Para ele, há entre as pessoas da Região uma disposição mística para a prática do crime e da autoagressão, sobretudo quando o estado de euforia é produzido pela bebida. A tendência ao assassínio ou ao suicídio, segundo ele, dependia tão somente do líder, de quem lhes orientasse. Quando para o assassínio, incutia-lhes “a condição de mandatários de ordens divinas ou sobrenaturais, cumpridoras de rituais, de estrito rigorismo místico.” Quando lhes orientavam para o suicídio, sentiam-se “criaturas privilegiadas, cuidadosamente escolhidas para, com o sacrifício da própria vida, salvarem ou redimirem um povo ou um grupo do sofrimento e da infelicidade em que vivia” (VALENTE, 1963, 59). Nos dizeres de Waldemar Valente, tais crenças só frutificavam, dado o baixo nível cultural, a tendência para a neurose e outras doenças mentais, a disposição psicológica para o fanatismo, favorecida pela preparação criminosa dirigida por reis e profetas “de mentira.” Os adeptos de Pedra do Reino são portadores de todas elas. A saber: os delírios arcaicos, de Wahl, ou histeria coletiva, segundo Afrânio Peixoto, são manifestações de psicoses epidêmicas, frequentes entre as chamadas populações ‘primitivas.’(...) No rol destas formas psicopáticas, de caráter místico coletivo, Artur Ramos inclui a epidemia de astasia-abasia-coreiforme ( VALENTE, 1953, p. 59). Por último, Waldemar Valente faz coro a Estêvão Pinto. Este, segundo Valente, inclui Pedra do Reino na causística das psicoses gregárias (VALENTE, 1953, p. 60). 85 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Capítulo 1 1.4.9. Maria Isaura Pereira de Queiroz em dois tempos A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz é uma das mais importantes referências nos estudos de movimentos messiânicos, sobretudo os brasileiros. Na obra O messianismo no Brasil e no mundo, publicada em 1963, a pesquisadora se propõe a identificar uma tipologia dos movimentos messiânicos ocorridos na América do Norte, África, Europa e Brasil. No que tange à Pedra do Reino, Queiroz (1976) o descreve na categoria dos movimentos messiânicos rústicos, tal qual Rodeador, Canudos, Juazeiro do Norte, para citar apenas alguns. Estes se caracterizavam, entre outros, pela presença de um líder, normalmente chefe religioso e profano dos grupos; o messias é um enviado ou a própria reencarnação de figuras cristãs ou de mitos pagãos; no interior desses grupos normalmente se instituía uma hierarquia, cujos adeptos, de modo geral, eram conjuntos de famílias de sitiantes, lavradores, vaqueiros, mas todos levando uma existência modesta. À descrição dos sucessos de Pedra do Reino, Maria Isaura Pereira de Queiroz intitula de O Reino Encantado. Todo o texto é uma compilação das memórias de Antônio Áttico de Souza Leite. Basta dizer que das quinze citações que ela faz, treze são de Leite. Duas décadas mais tarde, por ocasião das comemorações do centenário de Canudos, Queiroz traz à baila novamente discussões sobre o episódio de Pedra do Reino. No artigo “D. Sebastião no Brasil” a autora identifica limitações nas fontes documentais: “toda a documentação escrita provém normalmente de observadores exteriores aos acontecimentos e muito raramente dos próprios atores, o que deve ser levado em consideração” (QUEIROZ, 1997, p. 32). Além dos vícios na elaboração dos documentos oficiais, Queiroz aponta outros aspectos negativos no que tange os documentos de Pedra do Reino. O corpus documental é escasso e não foi suficientemente explorado. Para ela, uma forma de minimizar o problema é buscando “a maior quantidade possível de relatos para verificar, através de sua comparação, em que pontos concordam, onde encontravam diferenças (...) a comparação entre materiais de diferentes fontes [preceito fundamental das ciências sociais] para se poder chegar a discernir pontos de concordância que configurem a realidade” (QUEIROZ, 1997, p. 32). Embora nosso foco não seja o de identificar a realidade ou verdade do episódio de Pedra do Reino, entendemos que a comparação dos diferentes discursos sobre o tema nos interessaram já que eles demandam múltiplas representações. *** 86 Capítulo 1 Itinerário da Pedra do Reino na historiografia literário brasileiro: entre a paráfrase e o esquecimento Constatamos que a história de Pedra do Reino foi contada e repetida sob um olhar unívoco e a partir de uma única narrativa. Há uma única versão para as lutas ocorridas em torno das pedras encantadas, compreensão que consideramos limitada e passível de discussão. Isso porque nossa percepção dos conflitos se avizinha da do historiador inglês Peter Burke que pensa que, diante deles, é mais válido realçar a apresentação de pontos de vista opostos do que tentar, como Acton, articular um consenso. Como Burke, “nos deslocamos do ideal da Voz da História para aquele da heteroglossia, definida como ‘vozes variadas e opostas’” (BURKE, 1992, p. 15).37 Para além dessas considerações, a história da Pedra do Reino assenta-se em fontes igualmente refutáveis. Por isso, entendemos que os discursos sobre o movimento liderado por João Antônio dos Santos são exemplos daqueles que, na compreensão de Eni Orlandi, tiveram os sentidos repetidas vezes atravessados por paráfrases, em que o mesmo é dito de várias formas para garantir que a monossemia se naturalize (ORLANDI e RODRIGUES, 2010, p. 144). *** Neste capítulo, consideramos relevantes trazer à baila os registros da historiografia brasileira sobre a história de Pedra do Reino. A tarefa se justifica à medida que a compreensão do evento histórico contribuiu significativamente nas análises acerca do romance O Reino Encantado que se encontram no capítulo 3 desta tese. Com esse mesmo objetivo, elaboramos o capítulo seguinte, o capítulo 2. Nele, discutiremos a trajetória intelectual do romancista e crítico literário Araripe Jr. As informações que conseguimos reunir também foram muito caras às apreciações sobre O Reino Encantado, presentes no último capítulo da tese. Em nota, Peter Burke informa que tomou a expressão heteroglossia de empréstimo ao crítico russo Mikhail Bakthin, em seu Dialogic Imagination. Trad. De C. Emerson e M. Holquist, Austin, 1981, p. xix, 49, 55, 263, 273. Cf. M. de Certeau. Heterologies: discourse on the other. Trad.De B. Massumi, Minneapolis, 1986. 37 87 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 - 1878) Para Antônio e Maria, meus pais; e Nen, minha 2ª mãe. Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 E ste capítulo está centrado na abordagem do processo de transição pelo qual passou o projeto literário de Araripe Jr., a partir da sua produção crítica publicada entre 1868 e 1878. Tal abordagem é inevitavelmente colocada em contraste com os programas literários dos interlocutores com os quais Araripe Jr. dialogou, sobretudo, aqueles que se envolveram nas tensões sobre a crítica literária romântica. A princípio, fundamenta-se esta crítica em um discurso de caráter comparativo e antológico e em cursos de literatura elaborados de acordo com os métodos dos manuais de retórica e poética ainda vigentes no período; e, num segundo momento, nos debates político-literários que Araripe Jr. estabeleceu publicamente com a divulgação das Cartas a Cincinato. Nestas, José Feliciano de Castilho, cognominado Cincinato, e Franklin Távora, o Semprônio, escreveram e publicaram na imprensa da Corte, entre 1871-1872, missivas que traziam árduas críticas à obra de José de Alencar.38 Na nossa compreensão, as Cartas a Cincinato são um documento-monumento39 da literatura nacional que inaugurou uma interpretação do Brasil e da literatura, confrontando a tradição política e literária brasileiras a partir de novas ideias sobre filosofia e literatura oriundas da Europa. Elas contribuíram decisivamente para a formação, no Brasil, no decênio de setenta, de uma geração de tendência eminentemente política, animada do desejo de esquadrinhar a cultura nacional e dar-lhe orientação diversa.40 É na tensão das matrizes romântico-naturalistas que se localiza o discurso literário de Araripe Jr., escrito por ele entre 1868-1878, materializado nos textos “Contos da roça” e “Duas palavras”, ambos de 1868, “Carta sobre a literatura brasílica” e “Riachuelo”, escritos em 1869, “Falenas” (1870), “Juvenal Galeno” (1872), “O livro de Semprônio” (1872-3), “Escola popular. As Cartas a Cincinato foram publicadas originalmente no jornal Questões do dia, do Rio de Janeiro, entre agosto de 1871 e o primeiro semestre de 1872. Ainda em 1872, Franklin Távora publicou em Recife uma edição em volume das missivas, utilizada como fonte desta tese. Cf. TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato: estudos críticos de Semprônio sobre o Gaúcho e a Iracema, obras de Sênio (J. de Alencar), 2.ª edição, com extratos de cartas de Cincinato e notas do autor. Pernambuco: J.-W. de Medeiros, 1872. Em 2011, depois de quase 140 de publicação esgotada, as Cartas a Cincinato foram reeditadas sob a direção do professor Eduardo Martins. Cf. também: TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Campinas: Unicamp, 2011. 39 Para Le Goff, todo documento é também um monumento no sentido de que “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”. Cf. LE GOFF, Jacques. “Documento - monumento”. Em: ________. História e memória. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1996, p. 545. 40 Algumas justificativas adotadas por Franklin Távora para criticar José de Alencar, nas Cartas a Cincinato, lembram os argumentos tomados pelo próprio José de Alencar quando criticou Gonçalves de Magalhães, na Carta sobre "A confederação dos tamoios" (1856). Os pontos de interseção entre as críticas de Távora e as de Alencar foram anotados por Antonio Candido que observou nelas um "caráter simétrico": "o tipo de argumento é o mesmo, são paralelas as injustiças e os excessos" (CANDIDO, 1981, p. 367). 38 89 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 O papado” (1874), “Poesia sertaneja” (1875). Importante anotar que a produção crítica de Araripe Jr. se prolongará até 1911. Mas aqui só contemplaremos a crítica de Araripe Jr. escrita até a data da publicação de O Reino Encantado, 1878, uma vez que a compreensão do discurso crítico terá como função subsidiar as análises do romance, objeto de estudo desta tese. Com vistas a atingir as metas do capítulo, faremos, a princípio, um apanhado das notícias biográficas sobre Araripe Jr. Depois, examinaremos a “geração de 1870”, da qual Araripe Jr. participou, compreendendo-a, a partir de Alonso (2000), como um “movimento reformista” de cunho político, cujos argumentos estavam centrados em elementos da tradição político-cultural brasileira, confrontados com um “repertório” filosófico e científico europeu. E, por último, iremos analisar o posicionamento de Araripe Jr. ante as tensões romântico-deterministas em voga no Brasil, a partir do que ele escreveu entre 1868-1878. 2.1. Notícia biográfica de Araripe Jr. (1848 – 1911) As notícias biográficas sobre Araripe Jr., ao que tudo indica, são tributárias dos textos de Sacramento Blake (1883), Escragnole Dória (1913) e Arthur Motta (1929). Textos nos quais também nos fiaremos para traçar vestígios do percurso de Araripe Jr., entre 1848 e 1911. Tristão de Alencar Araripe Jr. nasceu em Fortaleza, Ceará, em 27 de junho de 1848 e faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1911.[Figura 9] Foi o primogênito do casal Tristão de Alencar Araripe e Argentina de Alencar Lima. Poucas notícias foram registradas sobre a infância de Araripe Jr, mas é possível afirmar que, naquela fase de sua vida, Araripe Jr. residiu em diversas províncias brasileiras, em razão das atividades profissionais de seu pai. Sabe-se que Araripe Jr., ainda uma criança de seis anos, despediu-se da terra natal quando seu pai foi nomeado para juiz de direito de Bragança- PA, em 1854.41 Dois anos mais tarde, a família se mudou novamente. Dessa vez para o Espírito Santo, província em que Tristão Alencar Araripe exerceu o cargo de Chefe de Polícia.42 Seus primeiros escritos datam dessa passagem por aquela província. O crítico Escragnole Dória localizou uma carta de Araripe Jr., destinada a sua avó Ana Porcina Ferreira de Lima, conhecida como Ana Triste. Cf. Coleção do IHGB. Carta de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para juiz de direito de Bragança- PA. Documento 5, Lata 315. 42 No Espírito Santo, Tristão de Alencar Araripe exerceu mais de um cargo. No arquivo do IHGB, há um documento muito pomposo assinado pelo Imperador D. Pedro II exonerando-o do cargo de Chefe de Polícia e nomeando-o para o cargo de juiz de direito daquela Província. Cf. Documento 6, Lata 315. 90 41 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Tristão de Alencar Araripe Jr. 1848-1911 Fonte: Sítio da Academia Cearense de Letras. Acesso em 22 de setembro de 2011 91 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Diz Dória que “há dele cartas de 1854 (tinha seis anos de idade) descrevendo com graça e precisão a cidade de Vitória”.43 Os escritos ainda na infância resultavam do desvelo da mãe, dona Argentina, que “ministrou-lhe o ensino das primeiras letras”44, como era comum à época. Não localizamos essa missiva do pequeno Araripe Jr., mas a menção à avó paterna de Araripe Jr., Ana Triste, sugere-nos trazer à luz informações sobre alguns de seus ascendentes. Os Alencar Araripe se estabeleceram no Cariri cearense e contam com uma tradição política de lutas pela independência do Brasil. A família se notabilizou, sobretudo, a partir de 03 de maio de 1817, data marco da chegada no Cariri, das aspirações nativistas e libertárias que culminaram com a Proclamação da República em 1817, no vizinho estado de Pernambuco. Seria interessante aproximar logo as duas famílias. No calor da Revolução Pernambucana, Pe. José Martiniano Pereira de Alencar (um dos cinco filhos de Bárbara Alencar, matriarca da família de Araripe)45, era estudante de retórica do seminário de Olinda. Desencadeada a Revolução em 6 de maio de 1817, seguindo-se a proclamação da República, o Governo Provisório sediado em Recife incumbiu o jovem cearense a propagar em sua terra as idéias libertárias e separatistas. Estas foram calorosamente recebidas pelos demais familiares de Bárbara Alencar. Mas, por causa da adesão à República de Pernambuco, a família Alencar Araripe foi presa e passou por inenarráveis humilhações. Apesar das severas sentenças, um ano depois de findo o movimento, todos os revoltosos da família Alencar Araripe receberam anistia. Nem mesmo a terrível memória do cárcere arrefeceu os ânimos dos Alencar Araripe. Desde o dia em que o jovem Pe. José Martiniano Pereira de Alencar subiu ao púlpito da Igreja Matriz do Crato e leu o manifesto do Governo Provisório de Recife, a família de Bárbara Alencar tomou para si a causa da emancipação política do Brasil. O movimento separatista incluiu em sua plataforma a extinção de impostos, uma política de preços favorável ao açúcar e ao algodão, um regime republicano, igualdades de direitos entre os cidadãos, mas não previa o fim da escravidão dos negros, aspecto este que contribuiu para fraturar a unidade do movimento. Contudo, a Revolta de 1817 influenciou, em 1824, a adesão dos Alencar Araripe ao movimento conhecido como Confederação do Equador, que contou apenas com o apoio de algumas vilas ao sul do Ceará e outras, da Paraíba. A Confederação do Equador foi movimento de cunho libertário, separatista e republicano, iniciado em Recife que, em linhas gerais, propunha unir as províncias do Norte (incluindo as que hoje pertencem à região Nordeste) a fim de se formar a Confederação do Equador. Um dos líderes convidou formalmente as províncias a DÓRIA, Escragnole. Em: Revista da Academia Cearense de Letras. Tomo XVIII, 1913, p. 105 BRAGA MONTENEGRO. Araripe Jr.: subsídios para estudo. Em: Revista Clã, nº 03, 1948, p.17. 45 Sobre Bárbara Alencar, a matriarca da família Cf. GASPAR, Roberto. Bárbara Alencar: a guerreira do Brasil. 3ª ed. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2001. 92 43 44 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 integrarem a nova república, mas todos os presidentes declinaram do convite, o que esvaziou o movimento. A adesão à Confederação do Equador restringiu-se a alguns partidários do Recife e do Cariri cearense, estes liderados pelos Alencar Araripe. Havia uma estreita ligação entre a região sul do Ceará e o Recife, mais estreita até mesmo do que com a capital Fortaleza. Justificadas tanto pela proximidade geográfica, já que o Cariri é mais próximo de Recife do que da capital cearense, como também porque “durante muito tempo permaneceu o Ceará sob a jurisdição de Pernambuco, estreitando ainda mais os contatos entre pernambucanos e caririenses” (ALVES, 2010, p. 15). Conforme ainda afirma Alves, uma das implicações dessa proximidade é que acontecimentos políticos de Pernambuco, como a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador – cujas ideais foram divulgadas naquela região pelos filhos da elite caririense que estudavam em colégios e seminários de Recife e Olinda tiveram repercussão primeiramente em cidades do Cariri cearense, como Jardim, Lavras, Icó e, principalmente, no Crato, para só depois se irradiar para as vilas do litoral do Ceará. A Confederação do Equador no Ceará, de 1824, é rememorada como uma continuação da Revolução de 1817 (Idem, p. 42). Ela também adentrou no Ceará por terras caririenses e contou praticamente com os mesmos participantes. Foi liderada por Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, um dos filhos de Bárbara Alencar e avô paterno de Araripe Jr. Assim como nos demais líderes sediciosos, exacerbou-se em Tristão Gonçalves de Alencar o sentimento nativista que o fez abandonar o sobrenome português e passar a adotar apelidos regionais. A partir da Confederação do Equador, Tristão passou a assinar o sobrenome Araripe, em referência à região em que ele e a família residiam.46 Para os Alencar Araripe, aquele movimento é rememorado pela tragédia familiar que se abateu sobre eles: no Ceará, a Confederação do Equador culminou com a morte em combate de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe. A partir de então, a avó de Araripe, Ana Porcina Ferreira de Lima, passou a se auto denominar Ana Triste. Mas voltemos ao itinerário de Araripe Jr. ainda na infância. Do Espírito Santo, a família mudou-se para o Recife, em 1859, local onde Tristão de Alencar Araripe, o pai, exerceu várias funções47. Em Recife, Araripe Jr. matriculou-se no Colégio Bom Conselho, de Barbosa Lima Outro exemplo de adoção de nome nativo é o do avô materno de Araripe Jr. Antes de 1824, ele assinava João Ferreira de Lima. Depois, dispensou o sobrenome português e passou a adotar o nome João Franklin de Lima. Talvez pela mesma razão, somada à confiança dos ideais da Confederação do Equador, João Franklin de Lima deu às filhas nascidas entre 1826 e 1830 os nomes das vizinhas repúblicas da América do Sul: Argentina, que foi a mãe de Araripe Jr., e Bolívia, sua tia; e a uma outra filha, o avô materno de Araripe Jr. nomeou de Liberalina. 47 Coleção do IHGB - Cópia de Decreto de Remoção de Tristão de Alencar Araripe do cargo de Chefe de Polícia da Província do Espírito Santo para a de Pernambuco, de 1859, e Documento designando o Juiz de Direito Tristão de Alencar Araripe para ser da Vara Especial do Comércio em Recife-PE, em 1861. 93 46 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Sobrinho (sobre quem procuramos e não localizamos novas informações), onde concluiu o curso de humanidades e o preparatório para ingressar na faculdade. Em 1869, com 21 anos, Araripe Jr. bacharelou-se na Faculdade de Direito do Recife, tendo Tobias Barreto e Luís Guimarães Jr. como seus colegas de turma. O período do curso foi de intensa produção intelectual, momento em que Araripe Jr. estreou tanto na literatura de ficção como na crítica literária, ao contribuir com jornais da capital de Pernambuco, a exemplo do Correio Pernambucano e Mosaico. Em 1866, ano de ingresso na Faculdade, Araripe Jr. fundou o jornal Mosaico - periódico scientífico, litterário e noticioso-, juntamente com outros dois acadêmicos de Direito, seus colegas de turma: Paulo de Amorim Salgado e Manoel Godofredo Alencastro Autran. Do periódico publicado pela Tipografia do Jornal do Recife, localizamos 8 números. O primeiro é de 1º de maio de 1866 e o último é de 10 de julho do mesmo ano. Em todos os números do jornal há publicações de Araripe Jr. São dois contos: “O barco e a tempestade”, iniciado e concluído no primeiro número do Mosaico e “Desvarios da sorte” (texto inconcluso), publicado em cinco partes, a partir da edição nº 02 do mesmo periódico. É, portanto, com a prosa de ficção que Araripe Jr. dá os primeiros passos nas suas contribuições à literatura brasileira. O Mosaico era um periódico de apenas quatro páginas e não tinha seções definidas, como era próprio dos periódicos da época (BARBOSA, 2007). Observa-se, no entanto, que seus redatores esmeravam-se em contemplar os aspectos “científico”, “literário” e “noticioso”, fazendo jus aos subtítulos do periódico. No primeiro número do Mosaico, por exemplo, constam cinco seções: Mosaico – Introdução; Parte Scientífica; Literatura (O barco e a tempestade); Poesias (Sós; Os corruptos; Fascinação); Parte Noticiosa. Ainda na fase de bacharelando em Direito da Faculdade de Recife, Araripe Jr. publicou a obra Contos brasileiros. Era nosso intento analisar e comentar o conjunto desses contos e, ao mesmo tempo, buscar uma conexão com a tessitura de O Reino Encantado. Tarefa inviabilizada por não termos conseguido localizar nenhum volume do referido livro de contos, nem os números do Correio Pernambucano em que os contos foram publicados esparsamente. Foi também na imprensa pernambucana que Araripe Jr. estreou como crítico literário. Em 1868 e 1869, publicou no Correio Pernambucano os textos “Contos da Roça. Impressões de leitura” e “Carta sobre a literatura brasílica”, assinadas sob o pseudônimo de Oscar Jagoanharo, obras sobre as quais discorreremos ainda neste capítulo. Em 1870, o recém formado bacharel em Direito Araripe Jr. foi nomeado “secretário do governo da antiga província de Santa Catarina”, local em que permaneceu por dois anos. Em 1872, finalmente voltou a residir na província natal, onde assumiu a função de juiz municipal, em 94 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Maranguape, “no Ceará, e eleito deputado provincial nos biênios de 1872 a 1875” (SACRAMENTO BLAKE, 1883, p. 324). Poucos meses depois de sua chegada ao Ceará, no exato dia de seu aniversário, 27 de junho, Araripe Jr. se casou com Antonieta Moreira, a quem ele chama carinhosamente de Totônia, com quem teve cinco filhos. Em carta do dia 03 de julho de 1872, Araripe Jr. noticiou à mãe o enlace, a felicidade conjugal, os predicativos da jovem esposa48: Minha adorada mãe, (...) Estou casado e desde o dia 27 que me julgo em um novo mundo. Sou feliz e espero que essa felicidade se prolongue indefinitivamente (...) Sintome viver e, livre do marasmo que me cercava, começo de novo as aspirar os prazeres santos da vida (...) Eu precisava além de tudo de uma companheira constante que me amparasse. Felizmente a Providência (...) coloca-me do meu lado uma mulher que parece ter sido talhada para minha esposa. Nesta, encontro todos os predicados que convêm a uma boa e virtuosa consorte e ainda mais todos os elementos necessários para quebrar as agruras de meio gênio selvagem. Alegre, jovial, expansiva e cândida estou certo de que ela terá força bastante para neutralizar a minha misantropia e os efeitos da reconcentração de espírito (...) À Totônia me entrego como a meu anjo tutelar, à substituta de minha mãe. Compreenda-me ela e serei o mais feliz dos homens (...) O que direi mais a V.m cês. que só ambiciono agora abraçá-la e mostrar-lhes a minha companheira? Adeus minha boa e adorada mãe (...) Abençoe a mim e a Totônia e receba o coração de seu filho obediente e amigo Tristão (APEB/FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA – grifo nosso). Nas correspondências seguintes, Araripe Jr. volta, repetidas vezes, a elogiar a jovem esposa. Em carta de 20 de julho de 1873, rememora a data do casamento e anuncia que Totônia espera seu primeiro filho, conforme se lê: Hoje completei doze meses de casado. A vida para mim vai agora tão suave! A minha Totônia dá-me todos os prazeres e satisfações de espírito. Deus ajude a concluir a obra que incumbiu-me. Como me sinto preso a vida! Vejo-lhe os primeiros sintomas de maternidade, e isto é o que basta para encher-me do mais vivo sentimento de humanidade. Quando o homem sente-a prolonga-se um ser antes que a deu a sua vida deseje residir a minha futura prole. E não há sentimento tão fecundo como este. Viver para os filhos. São estas as verdadeiras raízes que procederá na terra. Aqui termino por esta vez! Adeus minha boa mãe. Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioio, Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso. Tristão (APEB/FCRB). Araripe Jr. confiava que a felicidade no casamento, proporcionado pelos desvelos quase maternais de Totônia, o livrariam da “misantropia” e “reconcentração do espírito”. Com essas Localizamos na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma coleção de 21 cartas de Araripe Jr. cuja principal destinatária era sua mãe, um conjunto de 18 cartas com vários destinatários, além de um caderno de memórias com poucas folhas escritas. Há ainda um caderno em que Araripe Jr. manuscreveu pensamentos de vários autores, sem contar com um caderno em que uma das filhas de Araripe Jr., Antonieta Alencar, colou recortes de jornais que publicaram notícias de seu pai. Aqui na tese, citaremos trechos das cartas de Araripe Jr. a sua mãe e trecho de seu caderno de memórias. Sempre fizermos referência às cartas, mencionaremos a instituição que guarda os documentos e, sempre que for possível, colocaremos o número da carta em que localizamos a informação. 48 95 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) palavras e outras mais claras, o autor referia-se aos sérios problemas psicológicos e neurológicos que intermitentemente o abatiam. Na mesma carta, contou à dona Argentina Araripe sobre a gravidade de sua última crise. O problema de saúde tanto o afastou dos deveres profissionais como também culminou com uma tentativa de suicídio: Escrevo-lhe hoje como se houvesse acordado de um pesadelo horrível. V.m. bem me conhece para poder avaliar o que se deveria ter seguido a resolução de 20 de maio próximo passado. Passei por uma crise tão medonha que supus não resistisse a ela minha razão. Creia porém que jamais assim teria procedido se não fosse para arrancarme a uma obsessão cujos resultados não sei quais seriam enfim (...) Só o meu coração sabe verdadeiramente as torturas por que passei. Alivia que me casasse.49 Uma impressão fortíssima dominava-me profundamente; fiquei atordoado e impossibilitado de atender convenientemente os meus deveres de magistrado, vi que só com a morte dessa impressão poderia voltar ao estado normal (APEB/FCRB). Anos mais tarde, em um caderno de memórias escrito em 1906, Araripe Jr. dizia que a “fraqueza do espírito” sofrida por ele, ao longo dos anos, era consequência de uma “neurastenia”50. Para Araripe Jr., o seu problema de saúde o impediu de realizar sua “obra prima”, mas, ainda segundo suas palavras, foi a força que se seguiu aos longos períodos de reclusão, que o animaram a escrever sua obra. A despeito das debilidades de ordem neuropsicológicas, Araripe Jr. legou-nos extensa obra. Na sua passagem pelo Ceará, sublinhamos a intensa atuação no campo da literatura, período em que publicou sete romances, A casinha de sapé (1872), O ninho do beija-flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Um motim na aldeia (1877), O retirante (1877-1878), Luizinha (1878) e O Reino Encantado (1878), objeto de estudo desta tese. Destes, alguns são incompletos, mas todos estão à margem do cânone, com publicação esgotada há vários anos. Tanto é que não conseguimos Enquanto Araripe Jr. viveu, declarou seu amor à Totônia. Conta Escragnole Dória que Araripe Jr., embora tenha ficado viúvo muito jovem, aos 38 anos, e com filhos pequenos para cuidar, não se casou outra vez. 50 “Não saí porque amanheci hoje com a idéia de lançar no papel as minhas reminiscências. Talvez a leitura que ontem fiz de um livro sugestivo, escrito, com desusada verve, por um romancista parisiense em voga, tivesse concorrido para isso. Mas não. O que me sugeriu esse desejo foi a maldita neurastenia. Ah! A neurastenia! A essa devo ter perdido dois terços de atividades na minha vida. Não a maldigo definitivamente, porque a ressurreição do espírito após as crises tem sido causa do melhor que existe nos meus trabalhos. Ora, este o meu pretexto para as minhas delinqüências originou-se dos 58 anos completados a 27 de junho”. Cf. o Caderno de memórias de Araripe Jr. (APEB/FCRB). Segundo Rafaella Zorzanelli, neurastenia foi um termo cunhado no final do séc. XIX pelo médico psiquiatra George Beard. Zorzaneli mostra que Beard apresenta a neurastenia comparando-o a outra patologia mais conhecida, afirmando que “a anemia é para o sistema vascular, o que a neurastenia é para o sistema nervoso” (Beard, 1869 Apud Zorzanelli). Para a pesquisadora, a “ lógica foi a de comparar os dois casos, anemia e neurastenia, como uma decorrência da falta de algum substrato vitalizante. Se no caso de uma, tratava-se da necessidade de sangue, na outra, faltava energia nervosa (...) No centro do quadro sintomatológico estava a exaustão física e mental, ao que se somavam perturbações gástricas, sexuais e neuropsicológicas. Ao redor desse quadro, apresentavam-se outros sintomas como dores generalizadas, cefaleias, pressão e peso na cabeça, muscae volitantes, zumbidos no ouvido, dificuldade de concentração, medos mórbidos, inquietação, enrubescimento frequente, transtornos do sono, sensibilidade no couro cabeludo, pupilas dilatadas, sensibilidade da coluna (irritação espinhal), entre outros. Cf. ZORZANELLI, Rafaella Teixeira. Neurastenia. Em: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.17, supl.2, dez. 2010, p.431-433. 96 49 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 localizar exemplares de alguns desses títulos, nem pesquisas acadêmicas sobre eles. Como crítico literário, publicou textos nos periódicos O Constituição e Fraternidade, da imprensa cearense. Ainda em Fortaleza, participou ativamente da Escola Popular e da Academia Francesa do Ceará, sendo esta uma importante agremiação cultural, de cunho literário e filosófico que existiu, entre 1873 e 1878.51 No ano de 1880, Araripe Jr. passou a morar na Corte, com a esposa e os filhos52. Nos primeiros anos no Rio de Janeiro, além de atuar como advogado, participou da campanha abolicionista, ao lado de José do Patrocínio. Conforme afiança Arthur Motta, de 1882 a 1883, o autor de O Reino Encantado “devotou-se à causa do abolicionismo, trabalhando tenazmente ao lado de José do Patrocínio. A esposa [Totônia] coadjuva-o nessa propaganda, chegando a fundar um club infantil, para angariar donativos com que alforriavam escravos” (MOTTA, 1929, p. 487). Não encontramos registros sobre o local de funcionamento do “club infantil” nem sobre o número de escravos que foram alforriados mediante essa prática abolicionista. De todo modo, Araripe Jr. havia conhecido José do Patrocínio ainda quando morava no Ceará, para onde Patrocínio foi enviado como repórter da Gazeta de Notícias, a fim de fazer reportagens sobre a seca que, em 1878, assolou a província cearense. A despeito da atuação política, foi no campo literário que o desempenho de Araripe Jr. foi mais profícuo. Entre 1880 e 1887, Araripe Jr. escreveu pelo menos 27 textos de crítica literária para diversos periódicos do Rio de Janeiro como a Gazeta de Notícias, a mesma que publicou O Reino Encantado, e a Gazeta da Tarde. Este último periódico era de propriedade de José do Patrocínio, e nele Araripe Jr. tornou-se responsável pelo caderno “Semana Literária”, bem como para A Semana e a Gazeta Literária, uma revista fundada por Alfredo do Vale Cabral, conforme escreveu Sacramento Blake. (SACRAMENTO BLAKE, 1883, p. 324). No Rio de Janeiro, além de sua atuação como crítico literário, escreveu os romances Xico Melindroso (1882), O Guaianás (1882), Quilombo dos Palmares (1882), Miss Kate (1904). Este último com o pseudônimo de Cosme Velho. Por último, Araripe Jr., na qualidade de “distincto homem de lettras” que era, volta a fazer parte de agremiações culturais. Foi “sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de Ainda neste capítulo, analisaremos a produção crítica de Araripe Jr. entre 1868 e 1878, como um dos meios de adquirir subsídios para discutir o romance O Reino Encantado. 52 No ano anterior, Araripe Jr. viajou do Ceará para o Rio de Janeiro e lá buscou a proteção de Duque de Caxias para instalar-se profissionalmente na Corte. É o que Araripe escreve em carta do dia 15 de outubro de 1879. “A noite de ontem passada estive com o Duque de Caxias [que] recebeu-me muito atenciosamente (...) Falei-lhe sobre minha pretensão, que este acolheu, ficando certo de fazer na ausência de meu pai as suas partes. Gostei sumamente do homem. É um verdadeiro militar, franco e leal”. 51 97 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 189353 até 1911, ano de seu falecimento, do Centro Artístico do Rio de Janeiro, e membro fundador da Academia Brasileira de Letras” (SACRAMENTO BLAKE, Idem.). Na ABL – Academia Brasileira de Letras, escolheu como patrono o poeta Gregório de Matos. O site da Academia Brasileira de Letras informa sobre a trajetória profissional de Araripe Jr. no Rio de Janeiro. Segundo consta na página da ABL: Mudando-se para o Rio, em 1880, exerceu a advocacia até 1886 (...) Nomeado oficial de secretaria do Ministério dos Negócios do Império; proclamada a República e extinto aquele Ministério, passou para o da Justiça e Negócios Interiores. Em 1895, foi diretor geral da Instrução Pública. Em 1903, foi promovido ao cargo que então se criou de Consultor Geral da República e que ele exerceu até o fim da vida (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS). Ao concluir este esboço biográfico, evidenciamos o fato de que o nosso personagem pertenceu a uma tradicional família da elite da região do cariri cearense. Tradicional e poderosa, a ponto de intervir diretamente nos episódios políticos mais importantes entre a fase colonial e imperial. Família influente, portanto. A educação esmerada, a sensibilidade com as letras, o gosto pelo local e pelo regional, a defesa dos valores liberais, ora marcado pela defesa do abolicionismo; ora ligada aos ideais republicanos, consistiram não apenas em rupturas internas no seio da tradição familiar, mas também ajudam a explicar o inefável apego da família Araripe aos cargos públicos provinciais. Araripe Jr. não fugiu a essa tradição política que, como vimos, remonta de modo mais expressivo a 1817 e 1824. Essa é a sua face política, no sentido institucional e partidária, da qual jamais se desligou e com a qual se explica. Difícil segmentar esse aspecto biográfico da sua trajetória intelectual, especialmente no universo das letras. Não obstante, cremos que outro aspecto já apontado teve notória influência na carreira literária de Araripe Jr. Referimo-nos aos seus deslocamentos sucessivos. Do seu torrão para a Província do Pará; desta para o Espírito Santo; daí para o Paraná, deste para Pernambuco, retornando ao Ceará e finalmente para o Rio de Janeiro. De outro modo, podemos inferir que isto o colocou em contato direto com diferentes realidades do Brasil, do litoral ao interior, passando pelos sertões. Arriscamo-nos a dizer que desses deslocamentos restaram não apenas exercícios pontuais da profissão que abraçou – a magistratura – como também repercutiu na Araripe Jr. ingressou no IHGB, em 1893, mediante uma proposta apresentada à Comissão de História daquele Instituto. Nosso autor utilizou o romance O Reino Encantado como justificativa para integrar aquela agremiação e o pleito foi exitoso já que Comissão de História do IHGB de 1893, formada pelo Barão de Capanema, o Dr. César Augusto Marques, Dr. João Severiano da Fonseca e Augusto Victorino A. Sacramento Blake, sendo relator o primeiro deles, emitiu parecer favorável ao ingresso de Araripe Jr. no IHGB. 98 53 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 forma como lançou desde jovem um olhar sobre o outro, praticando uma forma de alteridade que viria a caracterizar sua fortuna crítica. Serão justamente estes aspectos, vistos de forma interdependentes, que passaremos a exame. A inter-relação entre a trajetória biográfica de Araripe Jr. com foco no seu envolvimento político institucional, o seu olhar sobre o horizonte pátrio, conformado pela república, além do desafio de interpretar as demandas nacionais com os recursos da literatura. 2.2. Discursos em torno da “geração de 1870” O Reino Encantado foi escrito no final dos anos 1870, uma das décadas de maior efervescência intelectual no Brasil, que se notabilizou pelo culto à ciência. De fato, uma das marcas principais do que, à época, ficou conhecida como “nova geração”, foi a adesão ao cientificismo e ao liberalismo vigentes na Europa, a exemplo do Positivismo de Auguste Comte54, do determinismo de Hipollyte Taine55, da sociologia, do mesologismo de Buckle56, do darwinismo social, spencerianismo57e seu corolário.Segundo Antonio Candido, O positivismo [...] se divulgou a partir de 1868 com um artigo de Tobias Barreto no jornal Regeneração; em seguida com os de Sílvio, Sousa Pinto, Franklin Távora, Celso de Magalhães, Lages Júnior, Rangel de S. Paio etc., nos periódicos: A Crença (1870), Americano e Movimento (1872), Trabalho (1873). Jerônimo Muniz foi dos primeiros a divulgar Spencer no Brasil, pela sua ‘Palestra Científica’(CANDIDO, 1988, p. 33-34). Auguste Comte (1798-1857) foi o criador do Positivismo. A característica essencial ao positivismo, tal qual o concebeu Comte, é a devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral e única religião possível. A partir da ciência - e de uma ciência social ou sociologia, da qual Comte é um fundador -, o filósofo propunha reformular a sociedade para que se obtivesse ordem e progresso. A obra fundamental de Comte é o "Curso de Filosofia Positiva", livro escrito entre 1830 e 1842, a partir de 60 aulas dadas publicamente pelo filósofo, a partir de 1826. É na primeira delas que Comte formulou a "lei dos três estados" da evolução humana: o 1º, o estado teológico, em que a humanidade vê o mundo e se organiza a partir dos mitos e das crenças religiosas; o 2º, o estado metafísico, baseado na descrença em um Deus todo-poderoso, mas também em conhecimentos sem fundamentação científica; o 3º e último, o estado positivo, marcado pelo triunfo da ciência, que seria capaz de compreender toda e qualquer manifestação natural e humana. 55 Hippolyte Adolphe Taine (1828 – 1893), crítico literário e historiador francês, aplicou o determinismo à arte e à história literária, as quais pretensamente equivaleriam à evolução intelectual e espiritual de cada sociedade. Teórico mais importante do naturalismo. O determinismo integral englobava os três fatores: raça, meio e momento histórico. Araripe Jr. adotará princípios do determinismo integral na composição de O Reino Encantado. Veja capítulo 3. 56 Henry Thomas Buckle (1821 – 1862), historiador inglês afiliado ao positivismo e determinismo, aplicou os métodos das ciências à história. Adotou a teoria climática, privilegiando o determinismo geográfico como fator preponderante na formação dos povos. “Buckle considerava a história um campo análogo às ciências naturais, que deveria examinar as leis pelas quais o meio físico age sobre o homem” (Ventura, 1991, p. 90-91). 57 Herbert Spencer (1820 – 1903), filósofo inglês, afiliado ao evolucionismo, organicismo e sociologia biológica; emais especificamente ao Evolucionismo aplicado à história e ao Darwinismo social. 99 54 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Ao lado do movimento iniciado na chamada Escola do Recife58, um movimento intelectual de viés positivista também se deu no Ceará, a partir de 1873. O grupo, conhecido como Academia Francesa do Ceará, interessava-se por filosofia, crítica e literatura, utilizou o jornal Fraternidade e as conferências da ‘Escola Popular’ para divulgar seus estudos. Conforme ainda explica Candido a “esse tempo, ‘o ideal moderno foi se infiltrando’ em São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul, Maranhão” (CANDIDO. Idem). Araripe Júnior, egresso da Faculdade de Direito de Recife e, depois, um dos integrantes da Academia Francesa do Ceará, foi participante ativo daquela geração denominada pela historiografia literária brasileira como a “geração 1870” (ALONSO, 2000). Antes de discutir a trajetória intelectual do crítico Araripe Jr. entre 1868-1878, analisaremos alguns discursos de intérpretes da geração de 1870, tomando como base as pesquisas de Ângela Alonso (2000). Nelas, a autora rejeita pesquisas anteriores que, no seu entendimento, desvirtuam a utilização do “repertório” cientificista europeu na obra da “geração de 1870”. Os dizeres esclarecedores de Ângela Alonso alertam o quão é cerceador analisar a “geração de 1870” apenas calculando em que medida os intelectuais brasileiros aderiram a determinados teóricos do cientificismo europeu da segunda metade século XIX. Para Alonso, ao avaliarem a “geração de 1870” por essas balizas, os intérpretes do período ora os apreenderam enquanto um “movimento intelectual”, ora como um “movimento imitativo”. Todavia, nos dois casos, as ponderações são limitadas porque nelas predominou a idéia segundo a qual o movimento não ultrapassou as formas sincréticas do repertório intelectual europeu. Conforme pensa Alonso “é por comparação a teorias européias e em acordo com as memórias e reconstruções dos próprios agentes que se forma o juízo do movimento da geração 1870 como intelectual e imitativo” (ALONSO, 2000, p. 41). Há, por exemplo, quem acuse a geração de 1870 de ter se interessado mais em edificar novos sistemas filosóficos do que em interpretar a realidade nacional. Tal acusação comporta o pressuposto de que aqueles intelectuais estavam envolvidos em debates infrutíferos, enquanto desprezavam solenemente os problemas sociais e históricos da sociedade brasileira. Afirma-se, ainda, que a geração de 1870 teria sido subserviente ao repertório científico europeu. Entre os que pensam dessa forma encontra-se Sérgio Buarque de Holanda. Em Raízes do Brasil, obra clássica da historiografia brasileira, ele afirma que os intelectuais brasileiros oitocentistas utilizaram o coquetel científico estrangeiro apenas como ornato discursivo, como formas de alheamento e evasão à realidade brasileira em razão de um “secreto horror a nossa realidade” Sobre a “Escola do Recife” confira: BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927; PAIM, Antonio. A Escola do Recife. Londrina: Editora UEL, 1999. 100 58 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 (HOLANDA, 1995, p. 159). Outro exemplo dessa visão pessimista sobre o legado da geração de 1870 é, segundo Alonso, a controvertida tese de Roberto Schwarz (1989). O fio condutor desse trabalho apreende a geração de 1870 enquanto mera imitação de teorias estrangeiras. Por outro lado, há quem reduza aquela geração de 1870 a um fenômeno de caráter exclusivamente intelectual, descolado da prática social. Assim sendo, de modo geral, as análises sobre a geração de 1870 sublinham os aspectos meramente “intelectuais” e “imitativos” de seus atores. Do mesmo modo ressaltam uma postura diletante sobre o repertório científico europeu, que, no entendimento desses intérpretes, seria marcado por uma discussão filosófica universal, com fim nela mesma, alheia à realidade política, social, econômica e artística-cultural brasileiras. Além do mais, acentuam seu viés teórico, desconhecendo ou subestimando as práticas sociais exercidas pelos intelectuais daquela geração. Uma perspectiva como essa, segundo a autora, limitaria a complexidade do movimento intelectual de 1870 a um campo de idéias descoladas da realidade. Por isto, o caminho seria compreender o movimento de acordo com o campo das idéias e, concomitantemente, com o campo das práticas sociais dos integrantes. Os estudos da autora tratam de inúmeros integrantes da geração intelectual de 1870, pelo menos 130 personagens de formação diversa, por conseguinte um bloco consideravelmente vasto com o intuito de formular conclusões gerais e comuns a este bloco. Naturalmente, por força do método aplicado, a autora conduz a interpretação a partir do semelhante, do fenômeno uniforme que caracterizaria o grupo, mesmo ela tendo consciência de que no interior do bloco expressava-se um campo de idéias e práticas sociais variadas e distintas. Segundo Alonso, um ponto de interseção entre os integrantes da “geração de 1870” é a “unidade de geração” que circunscreveria os indivíduos chegando à idade adulta e ao “mercado” de trabalho, ao longo dos anos 1870 e início dos anos 1880. Mas certos contemporâneos só criam laços concretos entre si, configurando uma ação coletiva, “ao serem expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de desestabilização dinâmica […] compartilhando um destino comum e idéias e conceitos os quais são de certo modo delimitados com seus desdobramentos” (ALONSO, 2000, p. 37-8). A idéia de geração dá a chave para entender por que o movimento surge em concomitância com a crise do Império. Seus membros vivenciaram uma mesma experiência social, compartilhavam uma comunidade de situação: a marginalização frente às instituições centrais da sociedade imperial (ALONSO, 2000, p. 43-44). Embora esse critério classificador não seja o único possível, ele é útil para explicarmos os traços fundamentais da geração da qual pertencia Araripe Jr. Ele e outros intelectuais protagonizaram discursos e práticas em torno de bandeiras, como a abolição do trabalho escravo, 101 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 a proclamação da República, a liberdade religiosa e a expansão da participação política, entre outras questões que mobilizaram o pensamento e a ação do grupo. Não obstante, a autora evita usar o critério econômico de classificação. Longe de situá-los enquanto classe, a autora entende que o grupo articulava-se em torno de uma “situação”, que era a crítica ao decadente império brasileiro. No intuito de sanar tal dificuldade, Alonso adota o campo político, as práticas políticas dos agentes para caracterizá-los e compreendê-los como reformadores sociais. Em última análise, a adesão a esse sincretismo científico europeu, longe de expressar um provincianismo ou subserviência intelectual dos brasileiros, teria sido utilizada para “ressignificar a “tradição nacional”, assim como orientar a “ação política”. Postura da qual se aproxima Nicolau Sevcenko, que também compreende a “geração de 1870” a partir do campo político. Segundo ele, da “nova geração” “eram todos abolicionistas, todos liberais democratas e praticamente todos republicanos59. Todos eles trazem como lastro para seus argumentos as novas ideias europeias e se pretendem os seus difusores no Brasil” (SEVCENKO, 1999, 79). A autora, portanto, entende que aquela geração protagonizou um “movimento intelectual reformista” cujo ponto de interseção seria a experiência compartilhada por seus membros. Por falta de um campo intelectual autônomo no século XIX, segundo ela, “a experiência da geração 1870 é diretamente política” e está cristalizada na produção textual de seus atores. Por isso, Alonso adota “a dinâmica política como ângulo de análise” dos discursos e dos exercícios, recusando-se a compreender e a organizar esses “textos e práticas conforme referências teorias estrangeiras”. Ou seja, a análise proposta rejeita uma prática recorrente entre aqueles que já se propuseram a estudar a geração de 1870, que costumam analisar os intelectuais desse período conforme o grau de adesão ou distanciamento a esta ou aquela corrente cientificista europeia. A autora prefere inscrever a produção da geração de 1870 “na conjuntura política local”. Para ela, a mudança de ponto de vista traz revelações importantes: revela que aquele movimento intelectual nem era alheio à realidade nacional, nem visava formular teorias universais. As teorias estrangeiras não eram adotadas aleatoriamente, sofriam um processo de triagem: havia um critério político de seleção. O sentido principal do movimento intelectual da geração 1870 foi a intervenção política. Argumento que grupos politicamente marginalizados pela ordem imperial recorreram ao repertório estrangeiro e à própria tradição nacional em busca de recursos para expressar seu descontentamento. Suas opções teóricas adquirem, assim, uma dimensão inusitada: auxiliaram na composição de uma crítica ao status quo imperial (ALONSO, 2000, p. 45). Conforme ressalva Nicolau Sevcenko, uma exceção foi Joaquim Nabuco, que não foi republicano, mas um liberal progressista. 59 102 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Portanto, Ângela Alonso analisa a geração de 1870 como um movimento intelectual político de contestação e reformista. Haja vista que seus atores expressavam “interpretações do Brasil” por trazerem críticas expressivas ao “status quo monárquico”, críticas essas que traziam em seu bojo propostas de reformas. Para tanto, os discursos do movimento intelectual adotaram tanto argumentos da tradição nacional como também recorreram às teorias estrangeiras. Estas, no entanto, não foram escolhidas ou tomadas aleatoriamente. Do contrário, optou-se por aquelas que serviam para interpretar a realidade brasileira, assim como dessem margem a programar reparos à sociedade, à economia ou às artes, como a literatura. A esse conjunto de argumentos, a autora nomeia “repertório político-intelectual”60 de fins dos oitocentos, recursos que permitiram àquele “movimento intelectual” exprimir sua crítica ao regime vigente numa forma distinta da tradição liberal-romântica “inventada pela elite imperial”(ALONSO, 2000, p. 46). No fundamental, a apropriação desse repertório político e intelectual de matriz positivista forneceu uma teoria da história sociologicamente formulada. uma explicação científica da sociedade brasileira. Uma lei de evolução universal organizaria todas as sociedades em graus de atraso e civilização conforme padrões sucessivos de produção, sociabilidade, instituições políticas e formas de pensar. Há uma teleologia, uma crença no progresso social: a história caminha no sentido de desenvolvimento econômico; complexificação social; secularização das instituições; expansão da participação política; racionalização do Estado. A correlação entre mudança econômica, social e política aparece como necessidade. Civilização significa modernização: a obsolescência das instituições e dos modos de pensar e agir das sociedades aristocráticas. (Idem). Por conseguinte, Alonso conclui que não houve uma importação aleatória de ideias europeias. O “repertório” do qual a geração de 1870 se serviu foi aquele com o qual se poderia estabelecer diálogo com a “tradição político-intelectual” do Império. Ou seja, o “movimento intelectual gerou parte de seu repertório a partir de uma apropriação e reinterpretação dos esquemas de pensamento e formas de ação cristalizadas como tradição político-intelectual nacional”. Esta reelaboração implicou no “manejo” do cânone dos “símbolos nacionais contra o status quo imperial”. Para explicar a categoria repertório, a pesquisadora Ângela Alonso lança mão de dois autores, Swidler e Tilly. O primeiro diz que “repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo: padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem; conceitos e metáforas” (Swidler Apud ALONSO, p. 46). Alonso complementa dizendo que o valor do repertório não está na “consistência teórica entre os elementos que o compõem. Seu arranjo é histórico e prático”. Em seguida, cita Tilly que entende que “repertórios são criações culturais aprendidas, mas elas não descendem de uma filosofia abstrata ou ganham forma como resultado de propaganda política; eles emergem da luta […] Repertórios de ação coletiva designam não performances individuais, mas meios de interação entre pares ou grandes conjuntos de atores […] um conjunto limitado de esquemas que são aprendidos, compartilhados e postos em prática através de um processo relativamente deliberado de escolha (TILLY Apud ALONSO p. 46). 60 103 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Nesta parte da tese faremos um caminho diferente para analisar a trajetória de Araripe Jr., suas idéias e suas práticas, no contexto da geração de 1870. Ao invés de tomar o todo, o coletivo intelectual em suas práticas sociais, abordaremos o caso específico de Araripe Jr. Contudo, não significa dizer que seus discursos e práticas serão isolados do coletivo social, do seu tempo. Quer dizer, apenas, que veremos como nosso autor protagonizou ações intelectuais e práticas políticas, no interior do movimento social de 1870. Sobre suas próprias impressões dos acontecimentos, dizia ele: “A mudança das instituições, a adoção de novos costumes políticos, o abalo das idéias, as agitações dos espíritos criaram uma atmosfera intensa, onde se rebolcam não só ambições de poder e de fortuna, mas também de glórias olímpicas e literárias” (ARARIPE JR, 1896, p. 108). Impressões que captam um conjunto significativo envolvendo elementos da política, do exercício do poder e das formas literárias. Daí a necessidade de que se compreenda em que medida Araripe Jr. se vinculou às correntes européias e que tipo de uso fez das mesmas aqui no Brasil. Concordando com a premissa segundo a qual é necessário tomar o movimento em seus aspectos teórico e prático, veremos particularmente como Araripe Jr dialogou com o repertório cientificista europeu e como formulou ações para o caso brasileiro. Para tanto, no sentido de conferir especificidade à trajetória do nosso autor, entendemos que suas ações e suas reflexões devem ser esclarecidas mediante dois focos centrais. Primeiro, o problema da constituição da nacionalidade, os desafios que isto apresentava para a elite intelectual brasileira e suas dimensões de poder. Segundo, mas não desvinculado do primeiro, o problema da reatualização do campo literário nacional de acordo com a nova realidade estabelecida. Assim, num único movimento, nação e literatura serão os móveis da reflexão e das práticas sociais adotadas por Araripe Jr. Móveis que serão aplicados, por consequência, à forma pela qual o autor vai estabelecer o diálogo e a crítica ao conjunto das doutrinas européias, bem como a suas sucessivas influências no Brasil oitocentista. É justamente a partir desse impulso político transformador que Araripe Jr. tenta atualizar os parâmetros da literatura brasileira e problematizar a constituição da nacionalidade. Assim sendo, partimos do princípio que Araripe Jr. tinha um projeto político-literário de construção da nacionalidade, que o literato pôs em prática por meio da crítica e, como logo veremos, por meio da ficção. No que tange à crítica, a historiografia literária registra farta quantidade de pareceres críticos de Araripe Jr. direcionados a obra de autores brasileiros e estrangeiros. São inúmeros textos escritos entre 1868 e 1911, este último, ano do falecimento do autor de O Reino Encantado. Comumente, quando se analisa (BOSI, 1978; CAIRO, 1996; LIMA, 2004) o conjunto da obra crítica de Araripe Jr., registra-se que seu projeto literário passou por 104 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 duas fases distintas e complementares: uma de matriz romântica e a outra de matriz naturalista. Nesta parte da tese, o acento recairá sobre o projeto do crítico literário no período que compreende os anos de 1868 até 1878. A data inicial se justifica porque é deste ano a publicação de crítica literária mais remota de Araripe Jr. que conseguimos localizar; já o ano de 1878, conforme já explicamos, justifica-se porque foi o ano de publicação de O Reino Encantado. 2.3.Romantismo e o Naturalismo no discurso crítico de Araripe Jr. (1868-1878) No decênio 1868-1878, o discurso crítico de Araripe Jr. revela o início de uma transição pela qual ele passou em sua trajetória intelectual. Nos seus primeiros textos de crítica literária, Araripe Jr. analisava obras literárias a partir de critérios como “gosto”, assim como considerava de “bom tom” as obras literárias que tinham a capacidade distrair e moralizar. Por seu turno, em textos de 1872 a 1875, é possível não só sentir a repercussão do repertório cientificista no juízo crítico de Araripe Jr, como também identificar práticas sociais que ele exerceu a fim de defender e consolidar a literatura brasileira. A obra crítica de Araripe Jr. daquele decênio é um registro historiográfico não apenas das mudanças pelas quais passou o fazer crítico do nosso autor, em particular, como também das alterações operadas pela crítica literária brasileira de uma maneira geral. Nesse período, foram revisados critérios para se compor obras literárias consagrados durante o Romantismo. Tal revisão não foi pacífica nem consensual. Pelo contrário: a contenda literária divisou, de um lado, aqueles que defendiam a literatura de viés romântico; e, do outro, colocaram-se aqueles que defendiam uma literatura que primasse pela análise e pela observação. Algumas dessas batalhas foram iniciadas no campo da política e depois re-apropriadas no campo literário. Caso das querelas em torno das Cartas a Cincinato, que oportunamente trataremos. Evocamos aqui essas missivas apenas para assinalar que a historiografia literária brasileira considera as Cartas como o marco inicial do declínio do Romantismo brasileiro. Para Antonio Candido, as Cartas representam “verdadeiro manifesto contra os aspectos mais arbitrários do idealismo romântico, a favor da fidelidade documentária e da orientação social definida” (CANDIDO, 1975, p. 295). Isso não só porque José de Alencar, principal nome do Romantismo pátrio, foi o principal alvo das críticas ali formuladas, mas, sobretudo, pelas discussões que nelas se travaram em oposição ao status quo do Romantismo. Importante anotar que o locus privilegiado nos debates foi a imprensa da Corte, de Pernambuco e do Ceará (RIBEIRO, 2008; AUGUSTI, 2006; MARTINS, 2008). 105 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Balizas dessa transição e dessas querelas estão cristalizadas na crítica de Araripe Jr. Ele estava atento às questões que envolviam a literatura e emitiu seus pareceres sobre as contendas literárias em voga. Os registros estão em textos que circularam em periódicos de Recife e Fortaleza, sendo que alguns deles foram publicados posteriormente na Corte ou tiveram publicação em volume61. Anos mais tarde, a obra crítica de Araripe Jr. foi reunida em cinco volumes, num trabalho de fôlego dirigido por Afrânio Coutinho e editada pela Casa de Rui Barbosa, entre 1958 e 197062. Para analisar o percurso crítico de Araripe Jr. entre 1868-1878, utilizaremos os textos publicados por ele no período, compilados no volume I das obras completas intitulados “Contos da roça” e “Duas palavras”, ambos de 1868, “Carta sobre a literatura brasílica” (1869a), “Juvenal Galeno” (1872)63, “O livro de Semprônio” (1872-3), “Escola popular. O papado” (1874), “Poesia sertaneja”(1875). Assim como traremos para discussão os textos “Riachuelo” e “Falenas” que constam no volume V da obra completa, mas que foram publicados em 1869b e 1870, respectivamente. “Contos da roça. Impressões de leitura” é o texto de crítica literária escrito por Araripe Jr. mais remoto que localizamos. Foi publicado em 05 de outubro de 1868, no jornal Correio Pernambucano, na seção “Literatura”, e assinado com o pseudônimo de Oscar Jagoanharo, datado de 28 de setembro do mesmo ano. Nele o nosso crítico analisa a obra homônima de Emílio Zaluar,64 uma coletânea de contos, baseando-se em critérios de matriz romântica. Ao que tudo Este foi o caso, por exemplo, da uma conferência “A Escola popular. O papado.” Cf. ARARIPE JR. Tristão de Alencar. O Papado. Fortaleza: Typografia Brasileira, 1874. Disponível em.:http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00105600#page/4/mode/1up. Acesso em.: 05 de abril 2010. 62 A compilação dos textos contempla a maior parte da produção crítica de Araripe Jr., entre 1868 e 1911, ano de sua morte. Em 1958, publicou-se o volume I, com a compilação de textos críticos que circularam entre 1868-1887; em 1960, saiu o volume II, com os textos de 1888-1894; em 1963,volume III, 1895-1900; em 1966, o volume IV, 19011910; em 1970, o volume V 1911 e anexos. A coletânea está cronologicamente organizada. No entanto, no volume V há um texto de 1869 e outro de 1870, “Riachuelo” e “Falenas”, respectivamente, provavelmente localizados extemporaneamente. 63Juvenal Galeno (1836-1931) Poeta cearense que publicou em 1856 a obra Prelúdios poéticos, considerada como marco do romantismo no Ceará. Trata-se de um livro em que o autor reuniu poesias esparsas, inclusive aquelas que havia publicado na Marmota Fluminense, de propriedade de Paula Brito. Cf. BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense (1948). Fortaleza: Instituto do Ceará, 1986, p. 68-69 Juvenal Galeno ainda publicou o drama Quem com ferro fere (1861), o poemeto indígena A porangaba e sua obra mais saudada, Lendas e canções populares do Ceará (1865), objeto da crítica de Araripe Jr. Cf. Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. “Biografia de Juvenal Galeno”. Disponível em.:http://www.secult.ce.gov.br/equipamentos-culturais/casa-juvenal-galeno/biografia-juvenal-galeno. Acesso em.: 24. fev. 2012. 64 Segundo Edgar Smaniotto, “Augusto Emilio Zaluar nasceu em Lisboa em 14 de fevereiro de 1826, filho de José de Oliveira Zaluar, major graduado, que servira de comissário pagador da divisão dos Voluntários Reais de El-Rei, na campanha do Rio do Prata, antes da Independência do Brasil. Augusto Zaluar matriculou-se no 1º ano da EscolaMédico-cirúrgica de Lisboa, disposto a seguir esses estudos, mas acaba por descobrir-se mais apto à literatura. Ainda cursando a faculdade, alistou-se nas tropas populares que fizeram a revolução de 1844, sob as ordens da Junta do Porto. Nesta época decidiu abandonar a medicina e entrar para a literatura. Colaborou com diversos jornais de Lisboa e algumas revistas, entre elas Epoche, Jardim das Damas, Revista Popular e outras publicações daquele tempo, principalmente com poemas. Já em 1846 publica um folheto intitulado Poesias, primeira parte. Mas não encontrou nos 106 61 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) sugere, Araripe Jr. crítico partia de princípios como aqueles defendidos por Sotero do Reis, que via na literatura uma função bem definida. O fim da literatura é instruir deleitando ou tornar por um trabalho tão proveitoso como agradável o homem melhor e mais hábil a preencher seus deveres para com Deus, para com a sociedade e para consigo mesmo pondo-lhe constantemente diante dos olhos o protótipo do belo, do grandioso, do sublime, do justo e do honesto (REIS, 1862, 04). Deleitar. Instruir. Agradar. Eis alguns dos critérios que Araripe Jr. utiliza para julgar Contos da roça. Depois de enaltecer o estilo utilizado por Zaluar, assegura que quem se propor a ler aquele livro de contos terá na obra uma “breve” e “deliciosa” fonte de “distração”. Para atrair o leitor à coletânea de Zaluar, Araripe Jr. compara-a às mangabas do Ceará, sua terra natal. Existem nos tabuleiros e verdejantes várzeas da nossa terra umas frutinhas rubicundas e apetecíveis, que os indígenas denominam em sua rude linguagem – mangabas; estas galantes preciosidades dos prados formam as delícias das aves e tornam-se, nas horas calmosas do meio dia, o conforto dos sequiosos caçadores, que ávidos, procuram a sombra das árvores que as produzem. Delicadíssimas no paladar são essas frutinhas, mas apenas começam a ser apreciadas, dissolvem-se e desaparecem, deixando na boca tão somente mel e desejos de renovar o tão inocente prazer de devorá-las. As narrativas do Sr. Zaluar são como as mangabas da nossa terra. Doces como mel de abelhas, sedutoras à vista como fruto do paraíso, aromáticas como as flores das nossas selvas, na boca desfazem-se como um sorvete (ARARIPE JR., 1868a, p.11). Nas considerações que faz da coletânea de contos, Araripe Jr. ainda recorre a critérios subjetivos como “gosto” para qualificar a obra de Emílio Zaluar. Para ele, “todos os contos do Sr. Zaluar respiram tanta singeleza e graça que só quem não tiver absolutamente gosto literário poderão desagradar ou parecer monótonos” (ARARIPE JR., 1868a, p.14 - grifo nosso). Por último, registremos que na fase romântica de sua crítica, Araripe Jr. empregou argumentos teológicos para avaliar obras literárias. Na “Carta sobre a literatura brasílica”, também publicada no Correio Pernambucano, nos dias 16 de 17 de junho de 1869, Araripe Jr. analisa autores do “novo mundo” que escreveram tematizando a América. São contemplados os literatos nacionais Basílio da Gama, José de Santa Rita Durão, José de Alencar. Dentre os estrangeiros, a análise recai, entre outros, sobre Fenimore Cooper, romancista norte americano, cuja obra tem como principal matéria o meio físico, social e humano dos Estados Unidos. Cooper privilegia em meios literários rendimentos que lhe possibilitassem se sustentar. Decidiu, assim, vir para o Brasil, chegando no Rio de Janeiro a 3 de janeiro de 1850. Tratou logo de tentar viver de meios puramente literários e jornalísticos. Fez parte das redações do Correio Mercantil e do Diário do Rio de Janeiro; e em Santos, da Civilização. Em 1856 naturalizou-se brasileiro”. Ainda de acordo com o mesmo autor, além do livro de contos intitulado Contos da Roça, publicado no Rio de Janeiro, pelaTypographia do Diario do Rio de Janeiro, em 1868, Augusto Emílio Zaluar publicou oromance O Doutor Benignos” Zaluar publicou livros de poesias, fez apreciações críticas para outros autores, um poema em homenagem a Pedro II, uma peça de teatro. Cf. SMANIOTTO, Edgar Indalecio. A fantástica viagem imaginária de Augusto Emílio Zaluar: ensaio sobre a representação do outro na antropologia e na ficção científica brasileira. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007, p. 26-37. 107 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 sua ficção eventos históricos protagonizados pelo primitivo local e pelo branco europeu, caso de O último dos moicanos, opção temática que em muito agradava o literato Araripe Jr. Este avalia a obra de Cooper baseado em critérios como a adoção da “cor local”. Para qualificar a obra positivamente, Araripe Jr. classifica o lago Glimmerglass a partir de critérios do belo, prefigurando uma representação acerca daquele fenômeno natural enquanto criação divina, objeto sacralizado. March é a criação mais bela que pode sair da mente de Cooper para animar as solidões do Novo Mundo. Para ele, Glimmerglass é um perfeito escabelo donde se elevam até o Senhor as suas rústicas, porém férvidas orações. E, com efeito, que magnificências não se encerram neste sacrário augusto, em que apenas uma família ignorada do mundo vem quebrar a monotonia e o mutismo das águas cristalinas, onde se perde o frouxo clarão da pálida lua (ARARIPE JR., 1869a, p. 29). Para construir sua crítica romântica, Araripe Jr. apelou para uma linguagem que valorizasse a paisagem americana, de uma maneira geral, e a do Brasil, em particular. Da mesma forma, nosso autor seguiu a tradição romântica de reconhecer a figura do índio como símbolo da identidade nacional. Segundo ele, os primitivos habitantes do Brasil assemelhavam-se à “ferocidade dos francos” e à estrutura das “ideias religiosas dos gauleses”. Assim como eram implacáveis nas missões de vingança e “na defesa daqueles entes a quem estivessem presos pela rara dedicação”. Na visão do autor de O Reino Encantado, Peri, personagem de O Guarani, de José de Alencar, era protótipo do índio fiel e dedicado65. Porém, de todas as características do indígena brasileiro a de maior relevo seria o amor à liberdade. “O que os tornava, porém, verdadeiramente originais era o seu estoicismo descomunal em todos os atos da vida. Indiferentes para com o resto do mundo, só tinham um amor e culto perfeito; e este amor e este culto era o da liberdade, que constituía-lhe toda a vida e que era a sua alma e o seu paraíso”(ARARIPE JR., 1869a, p. 35). Para além do indígena, Araripe Jr. entendia que também o “popular”, especialmente o “sertanejo”, merecia ser identificado como símbolo da nação. Ele justifica sua opção dizendo que havia no Brasil uma população que, embora não fosse “puramente indígena”, tomou uma feição que lhe é peculiar porque, já muito longe, está do que chamamos propriamente do “núcleo Conforme anota Araripe Jr. sobre a personagem de José de Alencar: “Peri é a pérola do sul. O autor apraz-se em apresentá-lo no meio da floresta em luta com a fera indômita, que é logo por ele vencida e subjugada. O rei altivo das selvas só quer com isso satisfazer o capricho da criança que constitui-lhe toda a vida e que é para ele uma verdadeira religião. Esta religião é a encantadora e inocente Cecília, que, incônscia dos perigos que a cercam nos altos sertões do Brasil, corre afoita pelos prados e bosques que orlam a habitação onde todos a consideram o anjo do bem; e o selvagem, temendo que tudo a ofenda ou moleste, com seu arco e flechas estabelece um círculo impenetrável em roda da gentil menina, dentro do qual ninguém é dado penetrar. Tal é a sua solicitude fanática pelo objeto maravilhoso de seu culto, que nem uma folha, nem uma borboleta consegue roçar o rosto de Ceci impunemente; a transpassaria com a seta o próprio pensamento mau que para ela se dirigisse, se isto tivesse nas raias do possível. José de Alencar por esse modo quis apresentar o tipo do selvagem por um dos seus lados mais admiráveis e menos explorados até hoje, a rara dedicação; e sem dele ausentar todos os predicados que já tivemos ocasião de notar em Uncas, elevou-se ao maior grau de originalidade que é permitido imaginar ”(ARARIPE JR., 1869a, p. 40). 108 65 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 civilizado”. São os chamados sertanejos66, caboclos ou guascas, assim chamados dependendo da região do Brasil em que habitam. O autor explica quem eram os “sertanejos” e como eles se formaram: Todos nós sabemos que os colonos portugueses, quando se internaram pelos sertões, tiveram de lutar braço a braço com o selvagem, expelindo-o, aqui, das localidades mais adequadas ao estabelecimento de plantações, escravizando-o, ali, onde os seus trabalhos se faziam necessários; porém, afinal, veio a reação: cedendo ao influxo dos costumes encontrados no país, viram-se obrigados a abandonar grande parte dos seus e aceitar, por suas vez, alguns hábitos selvagens. Esta união dos costumes, no sul os guascas e caipiras e, norte, a classe de indivíduos conhecida vulgarmente pelo nome de sertanejos (ARARIPE JR., 1868a, p. 13-4). Para Araripe Jr., a literatura que descrevesse “essa gente” exploraria um “verdadeiro mundo novo para as descobertas dos engenhos imaginosos e das inteligências criadoras”. Nesse estágio de sua trajetória intelectual, Araripe Jr. considera autores como Juvenal Galeno e Emílio Zaluar como exploradores competentes desse mundo novo. Citemos aqui suas apreciações sobre Emílio Zaluar. O caráter do principal personagem deste pequeno romance está perfeitamente desenvolvido; nada lhe falta para ser completo. É um desses trovadores dos nossos sertões, populares, amáveis, simples, nobres em todas as suas ações e justamente apreciados pelos seus dotes naturais. O Juca do Salto, acostumado desde a infância a arrostar todos os perigos, a atravessar cachoeiras, a lutar com a correnteza dos rios e a caçar onças, apresenta um perfeito tipo de nobreza, reunindo em si valor, bondade e pureza. Inseparável de sua viola, sempre alegre e contente, procura ser amado por todos e nunca se negava a satisfazer os menores caprichos dos apologistas da sua veia musical (ARARIPE JR., 1868a, p. 14). Assim, deduzimos da nota acima que Araripe Jr. concebe Juca do Salto por um conjunto de representações acerca do caráter da personagem. Ele é descrito como um trovador sertanejo, nobre em suas ações, destemido diante dos perigos naturais, conhecido pela sua fama de caçador de onça, um ser puro, dedicado e talentoso. Portanto, Juca do Salto personifica o bem, o belo, o típico herói romântico nacional. Agora, vejamos que Araripe Jr. analisou “O vaqueiro”, de Juvenal Galeno, exaltando a “propriedade” com que o poeta desenhou esse “tipo original de nossos sertões”. Outra poesia de muito merecimento, por sua propriedade, linguagem, tecnologia e abundância de traços fiéis, é a do “Vaqueiro”. Aí descreve-se um tipo original de nossos sertões; é a vida do homem rústico por excelência, que não recua ante o perigo, ora saltando abismos, ora pulando por cima dos mais corpulentos galhos, contanto que nunca deixe de trazer o ginete escanchado em cima dos rastros da rês arisca, - objeto de todas as suas apreensões. Nada lhe falta para ser completo, nem mesmo o coração Em 1875, no texto “A poesia sertaneja”, Araripe Jr. continuará defendo que o sertanejo seja tema de obra literária. No entanto, desloca a percepção do sertanejo influenciado por teoria de matriz positivista, como veremos adiante. 109 66 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 sensível, que quase sempre se oculta debaixo desses grosseiros couros (ARARIPE JR., 1872, p. 48-49). O vaqueiro cantado por Juvenal Galeno encerra as qualidades do herói romântico. Embora vivendo em meio inóspito, distante da civilização, porta características cavalheirescas e tem um destino épico a cumprir. A despeito de todas as barreiras naturais, “não recua ante o perigo” e cumpre sua louvável missão: livrar de todo o perigo a “rês arisca”. Araripe Jr. considera sua disposição cavalheiresca análoga à de um Peri e à de um Uncas, heróis de O Guarani e O último dos moicanos, respectivamente escritos por José de Alencar e Fenimore Cooper. Assim como Peri, Uncas tinha como missão proteger e salvar a heroína. Ambas, Ceci e Alice, dependiam totalmente da coragem e da determinação de seus fiéis protetores a fim de continuarem incólumes ante às ameaças que a natureza e os inimigos apresentavam. 2.4. Araripe Jr. e as Cartas a Cincinato As impressões de leitura do crítico Araripe Jr., até aqui analisadas, de matriz romântica, sofreram nítidas reavaliações a partir do momento que ele travou conhecimento com Cartas a Cincinato.Os posicionamentos de Araripe Jr. em relação às Cartasa Cincinato representam um marco na renovação dos seus compromissos políticos e de sua postura crítica frente ao ideal de nação. A partir das Cartas, Araripe Jr. recorre a elementos da tradição literária nacional, somado a uma triagem do repertório das ciências européias como instrumentos de análise não só das obras literárias como também do quadro político e social brasileiro. É a partir de 1872 que localizamos nos registros de Araripe Jr. vestígios das tensões romântico-naturalista que serviram de orientação para se compor e criticar obras literárias daquele momento em diante. O advento das Cartas a Cincinato é um exemplo de como a crise do regime imperial, uma contenda de origem política, foi apropriada para discutir a tradição literária brasileira. As Cartas a Cincinato são um conjunto de correspondências trocadas entre José Feliciano de Castilho, sob o pseudônimo de Cincinato, e Franklin Távora, cognominado Semprônio, e publicadas no jornal Questões do dia, entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872, mesmo ano em que Franklin Távora publicou-as em volume. Conforme anota Eduardo Martins, o jornal Questões do dia, editado pelo portuguêsJosé Feliciano de Castilho surgiu: em agosto de 1871, no contexto dos debates travados sobre o projeto da lei do ventre livre, e tinha a finalidade de rebater os argumentos contrários à libertação dos filhos de escravos, levantados na câmara pelos membros da minoria do partido conservador, além de defender Dom Pedro II da acusação de interferir indevidamente nos negócios do Estado (...) Feliciano de Castilho indicava na sua segunda carta quais eram ‘as duas questões da ordem do dia: poder pessoal e elemento servil’ (CASTILHO, 1871, p. 30). 110 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Desde a primeira carta, Cincinato elegeu José de Alencar como seu principal interlocutor, convertendo as Questões do dia num verdadeiro libelo contra o escritor cearense (MARTINS, 2008, p. 1). As primeiras cartas são de teor majoritariamente político. Nelas José Feliciano de Castilho, um dos membros do gabinete do Barão do Rio Branco, responsável pela redação da Lei do ventre livre, fez ácidas críticas a José de Alencar político. Na época, Alencar era integrante do Parlamento e, além de votar contra a aprovação da referida Lei, aproveitava seus discursos na Câmara dos Deputados para denunciar D. Pedro II de intervir indevidamente nas questões do Estado67. Por exemplo, o Imperador foi a público defender a Lei do Ventre Livre, conforme se lê em uma das manchetes da edição comemorativa do Jornal do Senado, publicada em 14 de maio de 1888, cujo título é “Dom Pedro 2º defendeu a Lei do Ventre Livre”: Nasceu da vontade de Dom Pedro 2º o projeto da Lei do Ventre Livre, elaborado pelo gabinete conservador do Visconde do Rio Branco em 27 de maio de 1871. Em sua Fala do Trono, dias antes, na abertura do ano legislativo, o Imperador antecipara que “considerações da maior importância aconselham que a reforma da legislação sobre o estado servil não continue a ser uma aspiração nacional indefinida e incerta”. Por vários meses, deputados dos partidos Conservador e Liberal discutiram a proposta. Quatro meses depois, em 28 de setembro, transformou-se na Lei nº 2.040, assinada por Dona Isabel (JORNAL DO SENADO, p. 02). Mediante às contendas de José de Alencar com o Imperador, José Feliciano de Castilho colocou-se no campo de defesa de D. Pedro II. O debate migrou do campo político para o campo literário à medida que Franklin Távora se tornou um interlocutor de Castilho. De Recife, Távora, o Semprônio, enviou cartas a Cincinato afirmando que as posturas “retrógradas” de José de Alencar como político, como parlamentar, também se revelava nas suas produções literárias. Segundo Távora/Semprônio esse era o caso de alguns romances de Alencar, o Sênior. A partir de então, o debate girou em torno dos romances O gaúcho e Iracema. Nas Cartas, Távora/Semprônio confere a José de Alencar a alcunha de “escritor de gabinete”68 porque Alencar não teria observado in loco a região e os tipos humanos representados 67José de Alencar fez duras críticas à intervenção do Imperador nas decisões do Parlamento em seus discursos dos dias 9 de maio, 10 e 15 de julho e 08 de agosto de 1871. Cf. ALENCAR, José Martiniano de Alencar. Discursos proferidos na sessão de 1871 na Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Typografia Perseverança, 1871. Disponível em.:http://books.google.com.br/books?id=we5DAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em.: 22. set. 2011. 68 Em 1875, José de Alencar volta a ser alvo de novos ataques. Desta feita, seu oponente será Joaquim Nabuco que também apelida o autor de Iracema de “escritor de gabinete”. Nabuco define o escritor de gabinete como aquele que conhece o tema que se propõe a desenvolver apenas através de fontes bibliográficas: “A natureza americana ele estudou-a nos livros; as flores na botânica; o escritor não conhece a linguagem que fala a natureza, não tem o desenho, não tem as tintas para exprimir-lhe as formas e o relevo, e não tem o que supre muitas vezes a pintura e aarte, a análise de suas impressões diante do belo. Quem lê os romances do Sr.J. de Alencar, vê que ele nunca saiu do seu gabinete e nunca deixou os óculos. O homem que ele nos pinta nunca está em comunicação com o meio em que vive” (NABUCO em COUTINHO, 1978, p. 209). 111 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 em suas obras. Nesse ponto, Távora se refere especialmente a O Gaúcho, obra que José de Alencar teria cometido “inexatidões” por não conhecer a região. Por essa causa, Távora dirige uma pergunta a Alencar: “Por que não foi ao Rio Grande do Sul antes de haver escrito o Gaúcho?. (...) Isto o faz cair em frequentes inexatidões, quer se propunha a reproduzir, quer a divagar na tela” (TÁVORA, 1872, p. 15). Nesse aspecto, Távora considera a postura de Fenimore Cooper mais adequada do que a de José de Alencar: O grande merecimento de Cooper consiste em ser verdadeiro; porque não teve a quem imitar senão à natureza; é um paisagista completo e fidelíssimo. Não escrevia um livro sequer, talvez, fechado em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha todos os matizes da natureza, estuda as sensações do eu e do não eu, o estremecimento da folhagem, o ruído das águas, o colorido do todo; e tudo transmite com exatidão daguerreotípica. (Idem, p. 13). Como Távora chegou a essa conclusão sobre a obra de Fenimore Cooper? Ele foi aos Estados Unidos? A “exatidão daguerreotípica” simboliza a capacidade de reproduzir a cópia mais perfeita possível da natureza e do homem, ideal alcançado por Cooper. Daguerreotipia é “a imagem produzida pelo processo positivo criado em Paris, em 1839, pelo francês Louis-JacquesMandé Daguerre (1787-1851) (VASQUEZ, 2002). Necessário destacar que o processo de produzir imagens pelo daguerreótipo disseminou-se no Brasil nos oitocentos e a ele vinculou-se uma crença geral na sua capacidade de reproduzir o real tal e qual. Já o ambiente natural nos romances de Alencar seria uma imitação servil da realidade, não o seu retrato fiel, motivo que leva Távora a detratar os romances do brasileiro e exaltar os de Cooper. (...) Cooper daguerreotipa a natureza, Sênior, [Alencar] é força de querer passar por original, sacrifica a realidade ao sonho da caprichosa imaginação: despreza a fonte, onde muita gente tem bebido, mas que é inesgotável e onde há muito licor intacto. Para Sênior a verdade, dito por muitos, perde o encanto (Idem, p. 14). Desse modo, Távora estabelece um paralelo entre o ideário romântico versus o de matriz cientificista. De um lado, valoriza-se a observação científica da natureza e dos costumes populares com o objetivo de estabelecer a verdade objetiva, mais próxima possível do referente. Do outro, repele-se o “sonho da caprichosa imaginação” por ela encerrar a um tipo de realidade falsa, estéril e incoerente. Por guardarem tais características, O Gaúcho e Iracema, os romances de Alencar,materializariam um conglomerado de erros e dados inverossímeis, tanto no que se refere 112 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 ao tempo quanto ao espaço de que trata, sendo, portanto, inadequados àquela época caracterizada por tantos avanços literários69 . As Cartas a Cincinato têm valor capital na historiografia literária brasileira por representarem a entrada da crítica naturalista na literatura brasileira. Para Afrânio Coutinho, tratase de um documento “do mais alto valor intrínseco, sobre ser um precioso testemunho daquela fase de passagem do Romantismo para o Realismo, a década de 1870, uma brilhante encruzilhada das nossas letras” (COUTINHO, 1978, p. 9). Na verdade, o advento das Cartas a Cincinato desdobrou-se num “verdadeiro campo de reflexão e disputa acerca dos processos de produção e escrita do gênero” (AUGUSTI, 2006, 114). São discursos teórico-metolodológicos proferidos por partidários de Alencar e por partidários dos romances naturalistas, a maioria literatos. Grande parte desses documentos está espalhada nos jornais e periódicos que circulavam na Corte e nas províncias.70 O próprio José Alencar não se esquivou em defender suas obras e atacar o positivismo e seus adeptos. Si não me engano, o Vulgarisador71é destinado a propagar o espirito novo, ao qual talvez por falta de compreensão ainda não me converti. Reconhecendo e applaudindo os altivos commetimentos da seieneta moderna, todavia não sacrifico ao idolo de hontem todas as conquistas de uma civilisação millenaria. Em meu conceito isso que consideram a ultima palavra da sciencia, não é mais do que uma revolução na qual como em todas as revoluções da hummanidade vae de envolta com as vontades que surgem, muitas vezes, o erro, o absurdo e o fanatismo.[...] A sciencia positiva tem prestado grande serviço aos pensadores, fornecendo-lhes factos e observações importantes; mas este precioso cabedal, só poderá ser aproveitado, quando os sabios se desprenderem do materialismo que os invadio, e desistirem da pretenção de governar o mundo moral pelo microscopio (ALENCAR, 1877). Esse era um dos eixos do “método moderno” de crítica literária defendido por Távora. Provavelmente tributário dos ensinamentos do literato francês Emile Zola que afirmava: “O mais belo elogio que se podia fazer a um romancista, outrora, é dizer: “Ele tem imaginação”. Hoje, esse elogio seria visto quase como uma crítica. É que todas as condições do romance mudaram. A imaginação já não é qualidade mestra do romancista (...) Insisto nesse declínio da imaginação porque vejo nisso a própria caracterização do romance moderno. Enquanto o romance foi uma recreação do espírito, um divertimento ao qual não se pedia senão a graça e a verve, compreende-se que a grande qualidade era mostrar nele uma invenção abundante. Mesmo quando o romance histórico e o romance ilustrando uma tese apareceram, era a imaginação que reinava onipotente (...) Com o romance naturalista, o romance de observação e de análise, as condições mudam imediatamente. O romancista inventa ainda mais; inventa um plano, um drama; apenas, é uma ponta do drama, a primeira história surgida, e que a vida cotidiana sempre lhe fornece. Em seguida, na estruturação da obra, isto tem em pouca importância. Os fatos só estão lá como desenvolvimentos lógicos das personagens. O grande negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível. Todos os esforços do escritor tendem a ocultar o imaginário sobre o real. Cf. ZOLA, Emile. Do romance:Stendhal, Flaubert e Goncourt. São Paulo: Imaginário/ Edusp, 1995,p. 23-4. 70 Importantes discursos em torno das Cartas a Cincinato ereflexões a posteriori sobre as tensões romântico-naturalistas na literatura brasileira, na década de 1870, foram trazidas à baila no subtítulo “Às voltas com a representação da realidade nacional”, p. 106-117, da brilhante tese defendida por Valéria Augusti. Cf. AUGUSTI, Valéria. Trajetórias de consagração:discursos da crítica sobre o Romance no Brasil oitocentista. 2006. Tese (doutorado). Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, Campinas, 2003. 71 O Vulgarizador era um periódico da Corte que circulou irregularmente entre 1877 e 1879. Nele Araripe Jr. publicou cinco capítulos do folhetim inconcluso O retirante, entre 04/08/1877 e 05/12/1878. Importante anotar que a publicação é interrompida em 08/09/1877 e só é retomada em 20/06/1878. 113 69 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 A resposta de Alencar indica um texto polido, porém bastante expressivo na crítica. Por um lado, reconhece as demandas do “espírito novo”; por outro, denuncia as contradições da ciência positiva, à medida em que esta defenderia um materialismo no limite entre o “erro, o absurdo e o fanatismo”; o que ele aponta, é fundamentalmente a sacralização da ciência e suas consequências nefastas, seja para a sociedade, seja para a literatura. Além de publicações na imprensa, Alencar tentou proteger seus romances nos prefácios das obras que publicou posteriormente às Cartas. Éo caso do prefácio do romance Sonhos d’ Ouro, escrito em 1872, intitulado “Bênção paterna”72. Trilha seguida por Bernardo Guimarães no prefácio intitulado “Prólogo” que o romancista escreveu ao Folhas de outono. Outros romancistas também consagrados, a exemplo de Joaquim Manuel de Macedo, também participaram desse debate e saíram em defesa de suas obras que também passaram a ser alvejadas pelos mesmos argumentos que tentavam desbancar alguns dos romances alencarianos. Joaquim Manoel de Macedo tomou essa tensão poética, originada da política como tema do romance Nina73. Cf. SALLES, Germana Maria Araújo. Palavra e sedução: uma leitura dos prefácios oitocentistas (1826-1881). 2003. Tese (doutorado). Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, Campinas, 2003. 73 Cf. MACEDO, Joaquim Manoel de. Nina. Em: COSTA SERRA, Tania Rebelo. Antologia do romance-folhetim (1839 a 1870).Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997, p. 169-170. O romance Nina foi escrito em 1869 e nele Macedo, por meio das personagens Firmiano e Félix, qual o melhor critério para compor um romance: se a imaginação ou o real: “Almoçavam os dois amigos em uma bela e agradável manhã no hotel vizinho do Jardim Botânico, quando Félix, impacientando-se, perguntou a Firmiano o motivo do seu mau humor, que ainda ali o perseguia. O provinciano hesitou; mas acabando por ceder às instâncias do amigo, e também confiando muito no seu bom conselho, respondeu. - É que minha santa irmã, que me supõe dotado de raro talento e rica imaginação, impôsme a obrigação de compor um livro de poesias ou um romance... - Falas sério? - Do livro de poesias nem de leve me preocupo; porque fazer versos é para mim impossível; decoro facilmente os versos que leio; mas compô-los eu? ... tempo perdido. - Muito bem Firmiano, poeta à força é pintor que borra telas e cantor que desafina a música. - Mas o romance? Para o romance não há necessidade de metrificação, nem de consoantes... - Enganaste: é indispensável a metrificação das lições morais e a consonância da imaginação com a realidade, da forma com a matéria, dos quadros que se inventam com as paixões que neles são expostas. - Segue então que nunca poderei escrever um romance? Félix dominou-se para não rir. - Olha, Félix, tornou Firmiano, não tenho presunção, nem vaidade; daria porém metade da minha vida para compor um romance. - Com que fim? - Para satisfazer o inocente capricho de minha irmã (...) a idéia de que possuo luminosa inteligência é o seu encanto (...) - Em tal caso, mãos à obra! Disse Félix com os olhos úmidos de lágrimas. Firmiano abaixou confuso a cabeça, e prosseguiu dizendo: - Na província meu professor de retórica e poética, tratando do romance, disse-nos em uma de suas lições: “Predomina hoje a escola realista, que matou a romântica, que por seu turno tinha destruído a clássica: com essa nova escola não há quem não possa ser fecundo romancista; já não se imagina, copia-se, toma- e o chapéu e a bengala, passeia-se nas ruas, visitamse os amigos, espreita-se o que se passa na casa alheia, escreve-se o que se observou, e está feito o romance.” Sapientíssima lição! - Acreditei nela, e para aditar minha irmã, jurei-lhe escrever um romance; tenho porém embalde passeado, observado, estudado o mais vasto dos nossos teatros, a cidade do Rio de Janeiro, e ainda não encontrei o romance que tão fácil se afigurava ao meu professor. - É que o seu professor não conseguiria jamais ser o inventor da pólvora. - Dizeis pois... - Que ele te fez acreditar na extrema facilidade do empenho mais difícil. Em literatura, Firmiano, a escola realista ensina que o romancista deve ser o copista fiel da vida da sociedade, dos sentimentos, das paixões, dos costumes, por conseqüência o escrupuloso e sutil sondador dos corações, o revelador das tendências e do caráter da época, em uma palavra o daguerreótipo moral da sociedade e da família. Julgas que isto seja muito simples? - Creio que não. - Ah! Certamente não: ver é o menos, saber ver é o mais; observar não é tudo, sentir é que é o essencial; mas sentir não basta; dizer bem e artisticamente o que sentiu é indispensável; portanto, para se compor 114 72 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Qual a postura de Araripe Jr. frente a esse debate literário? Ele participou intensamente dessa disputa como partidário de José de Alencar, apoio que se materializou ao escrever “O livro de Semprônio”(1872-3), em cujo subtítulo se lê: “a propósito dos Sonhos d’Ouro de José de Alencar e publicações provocadas pelo roceiro Cincinato”. Trata-se de um conjunto de três cartas endereçadas ao “amigo Juvenal”, provavelmente o poeta Juvenal Galeno (1836-1931). As missivas foram publicadas originalmente no jornal O Constituição, de Fortaleza. A primeira, datada de 24 de outubro de 1872 e publicada em 29 de outubro; a segunda, datada de 05 de outubro de 1872 e publicada em 14 de novembro de 1872; a última, de 15 outubro de 1872 e publicada em 09 de março de 1873. Araripe Jr. escolhe como alvo de suas contestações apenas as críticas a José de Alencar desferidas por José Feliciano de Castilho, passando ao largo daquelas empreendidas por Franklin Távora; aspecto que logo retomaremos. Por enquanto, é preciso informar que ao longo dos três textos, Araripe Jr. anota o teor das críticas encetadas por José Feliciano de Castilho e rechaça uma a uma. Ele começa desqualificando a crítica de José Feliciano de Castilho por julgá-la como um “pretensioso desabafo de queixas particulares” e porque era uma fraca “reação odiosa” de quem queria apenas “galgar os degraus do Capitólio”74. Para o nosso autor, o único propósito daqueles dois críticos “despeitados”, desapiedados “iconoclastas de estátuas” era “atacar ou desfazer a nascente literatura brasileira”, utilizando como alvo José de Alencar, um de seus maiores expoentes, o “único busto” que a literatura brasileira havia erguido. Araripe Jr. diz que até aceitaria as críticas que Castilho fez a Alencar se ele fosse uma autoridade como literato, mas, continua, a atividade literária que Castilho apresentara até então revelavam seu “charlatanismo literário” sua “inércia” como escritor; que “José Feliciano de Castilho nunca foi poeta, nunca foi crítico, nunca foi coisa alguma” (ARARIPE JR., 1872-3, p. 61), sendo, portanto, um voto desautorizado. Além desse aspecto, Araripe rebate as censuras que José Feliciano de Castilho fez à linguagem de Iracema. Em que, porém, têm consistido os seus ataques à reputação do autor de Iracema? Na parte estética de seus trabalhos? Nos caracteres criadores? Na deficiência do ideal? Na parte artística? O que direi mais? No fundo das concepções do poeta ou em sua índole? Não. (...) Procurou as raseiras da obra, as jaças do diamante, certos defeitos de linguagem (admirabili dictu!), afoitezas de poeta, coisas que são baldas aos mais pintados, e excluindo tudo mais quanto eram qualidades apreciáveis, ei-lo a malhar um romance é preciso saber ver, saber sentir, saber dizer. - Lá vai minha esperança de escrever um romance para minha irmã!...”. 74 Araripe Jr. não faz referência às contendas políticas entre José de Alencar e o Imperador, muito provavelmente porque seu pai exercia cargo público, ordenado por D. Pedro II. 115 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 sobre a questão de vernaculidades, já por demais discutidas (...) censura no autor da Iracema descuidos de pena, excrescências inevitáveis em toda a obra do talento; quando excluindo todas as mais qualidades que concorrem no criticado, o condena aos limbos querendo retrogradar ao quinhentismo. (Idem, p. 62-63). Diante das exprobrações de José Feliciano de Castilho, Araripe Jr. rebateu acusando-o de ter “errado de vocação”, sugerindo-lhe como mais apropriada a profissão de mestre-escola. Como tal, prestaria um bom serviço aos lentes, a quem proporia exaustivos exercícios de ginástica gramatical e, ao mesmo tempo, pouparia as letras brasileiras de “assistir a exibição de uma crítica que faz consistir o mérito do livro na observância de regrinhas”. E Araripe Jr. conclui: “outrossim, desejaríamos de ver extinta a raça de censores retrógrados, daqueles críticos que arroubam-se em estudos arqueológicos da língua portuguesa, porque Camões dizia ‘mas porém’ querem que digamos com ele ‘mas porém’”. Sobre esse aspecto, Araripe Jr. contra-argumenta dizendo que “tudo quanto sob as vistas do Eterno floresce”, está à mercê da “força do progresso”. Esse seria o caso das línguas, seja ela portuguesa ou de qualquer outra nação, conforme Araripe Jr. anota: Entretanto, força é que o carro do progresso vá deixando o trilho de sua passagem em todas as regiões do possível. A despeito de todos os protestos dos antiquários [a exemplo de José Feliciano de Castilho], a teoria do progresso na linguagem há de passar. Além de ser um fato atestado pela história, onde vemos as línguas grega, latina e italiana e alemã formarem-se e passarem por todas as fases possíveis, vem em contrapeso o princípio do aperfeiçoamento, regra invariável em tudo quanto sob as vistas do Eterno floresce (Idem, p. 64 – grifo nosso). Percebamos que o crítico Araripe Jr. se esforça em mostrar que José de Alencar manejou a linguagem movido pela “força do progresso”. Para tanto, apropria-se de termos e idéias do repertório cientificista europeu. Ao que parece, Araripe Jr. tenta mostrar que a linguagem atualizada de José de Alencar não resultava de um desleixo com a modalidade culta da língua portuguesa, mas provinha do influxo do “progresso”75; emanava da lei da evolução a que a todos e a tudo submete. Por fim, nesse momento que evidenciamos o envolvimento de Araripe Jr. nas querelas em torno das Cartas a Cincinato, importa responder uma questão: Por que Araripe Jr. limita-se a contestar apenas às críticas a José de Alencar feitas por Castilho? O que o levava a tal defesa tão 75No dizer de Jacques Le Goff, a noção de progresso teve uma acepção especial durante o século XIX. Vincula-se o termo aos “progressos científicos e técnicos, os sucessos da revolução industrial, a melhoria, pelo menos para aselites ocidentais, do conforto, do bem estar e da segurança, mas também os progressos do liberalismo, da alfabetização, da instrução e da democracia”. Herdeiro do iluminismo e da revolução francesa, constituiu-se em expressão da ideologia da filosofia de Auguste Comte que afirmava: “uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao progresso”. Cf. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996, p. 256-258. 116 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) vigorosa de Alencar? Talvez porque compartilhasse com pelo menos parte da opinião de Távora sobre as limitações dos romances de José de Alencar. É o que se pode inferir do trecho que se segue: “Por mais pecados que José de Alencar tenha cometido em sua senectude literária, jamais seria digno de semelhantes impropérios. As suas primeiras produções o remirão dos descuidos de hoje”. (Idem, p. 63 – grifo nosso). Deduzimos que, por mais que Araripe Jr. reconhecesse as limitações artísticas das últimas obras de Alencar, por mais que concordasse que Alencar havia chegado à “senectude” literária, Araripe Jr., por outro lado, não abria mão de conferir a José de Alencar o posto de maior prosador brasileiro. Por isso, frisava e enaltecia o valor da obra de José de Alencar para a consolidação da literatura brasileira e rejeitava o modo desrespeitoso com que Alencar foi tratado nas Cartas a Cincinato. Outra hipótese é que, a partir das Cartas, Araripe Jr. passa a aceitar o repertório cientificista como base para julgar e escrever obras literárias. Os fragmentos sublinhados denotam traços dessa adesão; mostram um Araripe Jr. já tributário do princípio taineano de que todo autor de literatura passa por duas fases distintas ao longo de sua produção literária: a fase do “amadurecimento” intelectual em que apresenta produções artísticas mais consistentes e elaboradas; terminando com o declínio ou “senectude”, quando o autor passa a reapresentar o melhor de sua produção. Anos mais tarde, entre 1879 e 1882, Araripe Jr. escreveu O Perfil de José de Alencar seguindo o modelo taineano citado76. À primeira vista, parece contraditória a posição de Araripe Jr. diante de Alencar expostas nas Cartas a Cincinato. Mas, vendo por outro ângulo, trata-se de uma postura de valorização do que, para ele, de melhor havia sido construído no campo literário nacional, sendo Alencar um desses construtores. Veremos a seguir como a temporada de Araripe Jr. no Ceará77 será marcada por intensos debates em torno da “Escola Popular” e da “Academia Francesa do Ceará”. Em 1894, doze anos depois de publicar O Perfil de José de Alencar, Araripe Jr. publicou 2ª edição da obra e nela escreveu um prefácio no qual afirmava ter seguido o modelo taineano para analisar o autor de Iracema: “a evolução do espírito artístico de José de Alencar e, paralelamente, a morfologia, a filiação e a transformaçãoos caracteres dos personagens dos seus romances. Nisto residia essencialmente a alma do livro. E, relendo-o hoje, depois de doze anos, não renego, apesar das grandes modificações operadas no meu espírito posteriormente, por novos estudos e pela meditação das obras de arte atuais. Não o renego, não por esse motivo, mas também porque vejo que, sendo o perfil do primeiro trabalho sobre uma autor nacional que se escreveu no Brasil aplicando os métodos de H. Taine”. Como se vê, além de informar sobre o tributo a Taine, Araripe Jr. utiliza o prefácio para fazer uma espécie de balancete de sua trajetória intelectual entre 1882, ano em que o texto foi escrito, e 1894, ano da segunda edição da obra, e diz que, ao longo desses anos, seu pensamento evoluiu; nele operou-se “grandes modificações” promovidas por novos estudos e pela leitura de obras surgidas posteriormente. ARARIPE JR., Tristão de Alencar. “Perfil de José de Alencar”. Em: COUTINHO, Afrânio. Obras completas de Araripe Jr. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958, vol. I, p. 123. 77No dizer de Jacques Le Goff, a noção de progresso teve uma acepção especial durante o século XIX. Vincula-se o termo aos “progressos científicos e técnicos, os sucessos da revolução industrial, a melhoria, pelo menos para as elites ocidentais, do conforto, do bem estar e da segurança, mas também os progressos do liberalismo, da alfabetização, da instrução e da democracia”. Herdeiro do iluminismo e da revolução francesa, constituiu-se em expressão da ideologia da filosofia de Auguste Comte que afirmava: “uma sistematização real de todos os 117 76 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 2.5. A “Academia Francesa do Ceará” Em 1872, além de se envolver nas discussões sobre as Cartas a Cincinato, Araripe Jr. retorna ao Ceará. Logo depois de sua formatura, em 1869, na Faculdade de Direito do Recife, Araripe Jr. havia se mudado para a província de Santa Catarina, onde foi servidor público entre 1870 e 1871. Voltou ao Ceará para assumir a função de juiz de direito da pequena Maranguape, distante 30 km de Fortaleza, cidade onde permaneceu até sua mudança para a Corte, em 1880. A permanência no Ceará foi intelectualmente muito proveitosa. Na provinciana Fortaleza dos anos 1872-3, Araripe Jr., então com 24 anos, passou a reunir-se com outros jovens moços, que unidos pela “unidade geracional”, também iniciaram sua vida profissional no “limiar da década de 1870”. Raimundo Antônio Rocha Lima, Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Xilderico Araripe de Faria, Antônio José de Melo, Felino Barroso, pai de Gustavo Barroso, João Lopes (Ferreira) da Silva Filho, João Capistrano de Abreu, Frederico Severo, Amaro Soares Cavalcanti (professor de latim de Baturité), Manuel Quintiliano da Silva (juiz de Missão Velha), Henrique Théberge, José Castelões Filho, Francisco Borges da Silva eram os companheiros de jornada intelectual de Araripe Jr. Sobre os quais trataremos individualmente mais adiante. O grupo de “jovens estudiosos” (AZEVEDO, 1970, p. 06) passou para a historiografia literária brasileira com o nome de Academia Francesa do Ceará (que funcionou de 1873 até de 1876) e os intérpretes do período consideram-na como uma dos mais atuantes confrarias da chamada “geração de 1870”. As performances dos membros da Academia justificam as avaliações que fazem sobre ela. Os acadêmicos atuaram em três frentes distintas e complementares: uma de cunho intelectual, à medida que “ali repassaram todas as idéias do século estudando autores do dia como Taine, Comte, Littré, Spencer, Darwim, e ainda Stuart Mill, Vacherot, Quinet, Renan, Burnouf, Jacolliot, Renan e outros luminares do pensamento da época” (AZEVEDO, 1970, p. 06). A outra, de viés político, já que partiu para o enfrentamento de questões relacionadas à crise do Império, utilizando como libelo o jornal O Fraternidade. Embora o grupo seja sempre lembrado tão somente pelos embates religiosos em que se envolveu, os pleitos da “Academia Francesa do Ceará” eram o fim da monarquia e da mão de obra servil, assim como a emancipação da literatura brasileira, entre outras questões, a exemplo das demandas por educação, sobretudo a feminina. É o que se depreende de algumas conferências proferidas por membros da Academia Francesa do Ceará aos alunos da Escola Popular, como logo veremos. pensamentos humanos constitui portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao progresso”. Cf. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996, p. 256-258. 118 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 A terceira frente de atuação se materializou com o exercício de práticas sociais ao fundarem a “Escola Popular”. Uma escola noturna, gratuita, de inspiração comteana, destinada a trabalhadores e ponto alto das realizações dos acadêmicos, já que unia a teoria à prática. Na Escola Popular ensinavam-se matérias do currículo básico, como “língua nacional”, ministrada por Rocha Lima, Aritmética, por Benjamin, Francês, Geografia e História, ministradas por João Lopes; além das cinco turmas de “primeiras letras” (ROCHA LIMA, 1968, p. 355) 78. As ações efetivas da Academia Francesa do Ceará e da Escola Popular desbancam a tese (já mencionada anteriormente) segundo a qual a “geração de 1870” foi um fenômeno de caráter exclusivamente intelectual, descolado da “prática social”.Conforme anota João Rocha Ferreira Filho, secretário da Escola, “além desse curso, que constituiu o trabalho ordinário da escola, foi instalado o curso de conferências públicas. Durante o ano letivo a escola realizou 8 conferências”79(FERREIRA FILHO apud ROCHA LIMA, 1968, p. 355-6). Depois de citar os nomes dos oradores e os títulos de suas respectivas conferências, localiza-se um agradecimento “aos beneméritos cidadãos da ciência” pelos serviços prestados à Escola Popular. Seguem-se ainda explicações e informativos que passamos a citar, com o objetivo de apresentar os raros documentos que encontramos sobre a “Escola Popular”: A explicação e constituição do Império, revistas e jornais e ensino moral constituirão uma série de preleções às quintas-feiras. A matrícula subiu de 156 alunos e a frequência que em maio chegou apenas a 67, montava em novembro a 118 alunos. Eis, meus senhores, etc...’ Quem leu e assinou o relatório, na qualidade de secretário, foi um dos mais operosos e constantes amigos de Rocha Lima – João Lopes Ferreira Filho (FERREIRA FILHO apud ROCHA LIMA, 1968, p. 355-6). Como se vê, a atuação de Araripe Jr. e de seus companheiros na “Academia Francesa do Ceará” e “Escola Popular” tanto incorpora um trabalho sistemático de recepção, reflexão, e apropriação do conjunto das teorias cientificistas em voga na Europa, como prima pela aplicação prática dos ensinamentos na base social cearense, sobretudo entre trabalhadores da região de Fortaleza. O foco dessas atividades, portanto, foram as questões candentes da constituição do campo literário e, ao lado disso, os problemas típicos da fundação nacional. Sobre a importante experiência de montagem e funcionamento da Escola Popular dispomos de poucos documentos. Nossas buscas se revelaram infrutíferas em instituições como o Instituto Histórico do Ceará e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Tudo o que encontramos está nas obras Academia Francesa do Ceará, do professor Sânzio Azevedo, e Crítica e literatura, de Rocha Lima, mas que, ainda assim, nos forneceram uma noção de como esta 78 79 Texto publicado originalmente em 11 de dezembro de 1874, no jornal Fraternidade. Esse texto foi originalmente publicado jornal O Fraternidade, em 1874-1875. 119 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) entidade é reveladora da face política-reformadora que animava seus fundadores e colaboradores. Lacuna esta que, obviamente, nos levou a concentrar atenção para a “Academia Francesa do Ceará”. É comum analisar a “Academia Francesa do Ceará” por meio de depoimentos isolados e aposteriori dos integrantes da agremiação; ou ainda é recorrente localizar discussões, a nosso ver, inócuas que se prestam entender se “Academia Francesa do Ceará”se desenvolveu autonomamente ou se era um núcleo cearense da chamada “Escola do Recife”. De todo modo, diante dessa discussão, comungamos com o pensamento de Wilson Martins (1977-78, p. 44-45) que entende que a “Academia Francesa do Ceará” foi um movimento paralelo e independente da Escola do Recife, [que] embora resultasse das mesmas preocupações e de idênticos pontos de vista, não era, realmente, uma agremiação formalmente constituída (...), mas, antes, um ‘agrupamento de jovens estudiosos’ que se reuniam para colóquios intelectuais, sobretudo em casa de Rocha Lima” (Idem, p. 44-5). Ainda segundo Martins a referência francesa dada à academia cearense foi uma ironia afetuosa de Rocha Lima. Pelas palavras de Wilson Martins é possível observar uma diferença evidente entre as duas agremiações. A de Pernambuco era institucionalizada, governamental, organizou-se dentro dos domínios da Faculdade de Direito do Recife, um privilegiado centro de estudo de humanidades no Brasil; a do Ceará, por sua vez, foi fundada pela iniciativa particular, provavelmente sem recursos externos, uma espécie de sociedade das artes. A despeito dessa discussão, concordamos com o princípio segundo o qual esses grupos, de Pernambuco e de Fortaleza, se unem pela “unidade geracional”, por terem vivenciado uma mesma experiência social, na medida que compartilhavam uma comunidade de situação, ou seja, a marginalização frente às instituições centrais da sociedade imperial; e, por isso, surgem como um movimento contestador e reformista do status quo imperial. Sendo assim, no caso da “Academia Francesa do Ceará”, consideramos mais relevante esmiuçar as atividades de cunho intelectual e de cunho político de seus membros, privilegiando aqui os registros contemporâneos à vigência da Academia. Conseguimos localizar 80 um conjunto Assim que lemos as conferências de Araripe Jr. e Capistrano de Abreu, as primeiras que conseguimos localizar, entendemos a importância que os estudos compartilhados na Academia Francesa do Ceará tiveram na formação intelectual de Araripe Jr., na década de 1870, bem como identificamos sua influência na composição de O Reino Encantado. Por isso, fomos a campo tentar localizar as demais conferências. Nesse percurso, contamos com os importantes auxílios do professor Sânzio de Azevedo e de funcionários do Instituto Histórico do Ceará, sobretudo da bibliotecária Madalena Figueiredo, a quem somos muito gratos. A despeito de todos os esforços e dos impagáveis auxílios, conseguimos localizar apenas quatro, todas publicadas no jornal O Fraternidade: O Papado, de Araripe Jr., História Universal e Soberania Popular, de Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Liberdade religiosa, deXilderico Araripe de Faria, A literatura brasileira contemporânea, de João Capistrano de Abreu. As demais, até onde nossas pesquisas 120 80 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 de quatro conferências realizadas por Araripe Jr., Tomás Pompeu Souza Brasil Filho, Xilderico Araripe de Faria e João Capistrano de Abreu, em Fortaleza, no ano de 1874. São os poucos registros contemporâneos à agremiação que sobreviveram, talvez porque a “Academia Francesa do Ceará” não tinha sede, não tinha estatuto, nem presidente; as reuniões eram itinerantes, normalmente aconteciam na casa de um dos membros, e, recorrentemente, eram na de Rocha Lima. A leitura das conferências permitiram-nos identificar os postulados políticos da “Academia Francesa do Ceará”, identificar práticas de leitura de seus membros, sobretudo identificando os autores e os títulos lidos e discutidos no interior da agremiação. Sobre o último aspecto, não nos interessa aqui medir o nível de adesão dos “cavaqueiros intelectuais” a esta ou aquela corrente cientificista européia, mas identificar como eles se filiam a tal repertório como argumentos para defender pleitos que lhe eram caros e justificar ações políticas, ou seja, exercer práticas sociais. 2.5.1. Soberania popular As conferências sucediam na sede da Escola Popular. Coube a Tomás Pompeu Souza Brasil Filhoproferir a conferência inaugural, em 16 de agosto de 1874, sob o título de Soberania popular81. Pompeu Filho leciona que “o desenvolvimento social” e o “desenvolvimento humano” estão sujeitos às mesmas “leis gerais” que presidem a formação da natureza. Do mesmo modo, o “progresso e a civilização” são produtos dessas mesmas leis e, como tal, são inevitáveis e constantes na sucessão dos tempos. Baseando-se nesses princípios, o conferencista explica o que é a “soberania social”: A princípio, o homem luta com a natureza para haver a subsistência; depois para ter o conforto. Finalmente para domá-la e pô-la a seu serviço. Nessa luta, vence o elemento moral e inteligente (...) Daí a história das evoluções mentais, daí o desenvolvimento do poder do homem; daí a soberania social (POMPEU FILHO, 1874). A crença na evolução da sociedade, tal qual ela se processa na natureza, faz com que Pompeu Filho rejeite a história como uma “enumeração” das ações humanas, em determinada época e local. E adote para si o método defendido por Auguste Comte, na obra Curso de filosofia positiva, conforme o próprio Pompeu Filho justifica: Na classificação das idades históricas, há dois métodos: um que consiste na enumeração continuada das ações humanas em países e épocas limitadas; outro que deriva da conseguiram alcançar, estão irremediavelmente perdidas. São elas: A Escola, de Manuel Quintiliano da Silva (juiz de Missão Velha), Geognose da Terra, de Henrique Théberge, Religião, de Amaro Soares Cavalcanti (professor de latim de Baturité), Educação na família,deJosé Castelões Filho, Eletricidade e seus efeitos, de Francisco Borges da Silva e, por último, A Mulher, a família e a educação, de Frederico Severo. 81 Conferência posteriormente publicada no Fraternidade, nos dias 25 de agosto, 29 de setembro, 06, 16 e 27 de outubro e em 03 de novembro de 1874. 121 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 própria natureza e chama acontecimentos e fenômenos sociais em abono dos estados mentais do homem e da humanidade. É este que abraço porque dá conta, a um tempo, da psicologia dos povos, isto é, do estado moral ou mental das raças humanas, e dos fenômenos que determinam esses estados. Assim divido em três os períodos históricos porque há passado o gênero humano. Primeiro o que recebe o homem embebido em sonhos místicos (teológico); segundo o que o toma ainda nas concepções ontológicas (metafísico); e o ultimo que conduz até a realidade ou a concepção verdadeira e positiva do universo (positivo). (POMPEU FILHO, 1874) O autor utiliza a explicação dos três períodos históricos para defender que a soberania popular há de prevalecer. Na clara intenção de contestar o poder monárquico em voga no Brasil: “O povo marcha lentamente para os degraus da convenção e começa a balbuciar a condenação do despotismo. Enfim, rompem-se as cataratas da soberania popular; a onda de liberdade recua e avança impetuosamente para o futuro. As realezas do direito divino estremecem e precipitam-se”. E complementa: “De feito, não há soberania natural (hereditária), senão a que resulta da superioridade intelectual” (POMPEU FILHO, 1874). Em toda conferência, Pompeu Filho recorre ao repertório cientificista europeu. Ao longo de seu texto, ele cita trechos de Auguste Comte, Charles Darwin, Buckle; faz alusões a Spencer e a Alexander Bain e tantos outros. Mas, diferentemente do que pensava o autor de Raízes do Brasil, a intenção do conferencista não era “evadir-se” da realidade brasileira. Muito pelo contrário. Ele se lança na defesa de “uma constituição livre” e por um governo cuja “divisão de poderes” seja compartilhada pelos “diversos membros da nação”, como uma medida de “ordem e de progresso”. Essas e outras bandeiras correlatas serão defendidas pelos demais conferencistas. 2.5.2 Liberdade Religiosa A conferência de Xilderico Araripe de Faria intitulou-se Liberdade Religiosa82. Nela, o autor lança-se primeiramente na defesa de um Estado brasileiro laico. Por isso, repele veementemente o fato de a Constituição pátria ter adotado a religião católica como a oficial. Para ele, a justificativa que o Estado utilizou para fazê-lo, baseada no princípio da “maioria” é improcedente. Xilderico Araripe de Faria entendia que a função do Estado não era definir a religião a ser seguida pelos brasileiros, mas garantir-lhes o direito natural à liberdade. A liberdade religiosa, inclusive. Segundo seus argumentos: O texto da conferência “Liberdade religiosa”, de Xilderico Farias foi publicada no Fraternidade, nos dias 19 e 30 de junho de 1874. 122 82 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 O Estado, a sociedade política, não é mais do que a união, justaposição, a coexistência de indivíduos com os seus direitos e deveres. O Estado tem por fim a garantia dos direitos e das liberdades de cada um, salva as restrições que a liberdade de cada um faz a liberdade de todos; donde se vê que, em vez de comprimir, o dever do Estado é proteger, alargar e desenvolver esses direitos naturais que constituem a personalidade humana e entre as quais está o direito de adorar a Deus (FARIA, 1874). O pleito de Xilderico recaía, sobremaneira, pela liberdade de culto, especialmente as atividades da maçonaria, cerceadas pela Igreja Católica e pelas leis do Estado83. Como argumento último, o conferencista Xilderico Faria, afirma que a aliança natural do Estado não é a religião, mas a liberdade. Para ele, cumpria ao Estado primar pelo desenvolvimento e pelo progresso do Brasil, esplêndido de galas e riquezas. Em suas palavras, o País seria “mármore bruto” que só esperava as mãos hábeis de “Phidias para se transformar em estátua cintilante de vida” (FARIA, 1874). Ocorre que, para o conferencista, o “estatuário” seriam especialmente dois: o primeiro, a indústria; o outro, a mão de obra livre, em que o trabalho escravo deveria ser substituído por imigrantes europeus. O estatuário é a indústria. Venha ela arrancar das entranhas deste solo maravilhoso, o pão, a riqueza, o luxo. A indústria é o trabalho, mas o trabalho livre, espontâneo, vivificador, único que nobilita, enriquecendo. Mas faltam-nos braços. Nós estamos na contingência de ir pedir aos países onde a população regorgita e transborda, que nos mandem as suas demasias de população (FARIA, 1874). Na compreensão de Xilderico Faria, a imigração seria a saída para resolver problemas de escassez de mão de obra no País. Cabe destacar que, a década de 1870, conheceu o auge das discussões institucionais sobre a pretensa adoção do “imigrantismo”84. Esta, embora de viés eminentemente racial, era justificada pelos possíveis benefícios que traria à civilização nacional. É o que assevera Célia Azevedo, em Onda negra, medo branco: A reivindicação de imigrantes brancos tem claramente o objetivo de substituir o negro em todos os setores, não só rurais como também urbanos. Longe de pretender que o imigrante ocupasse lugares vazios, de atender enfim, ao problema da escassez de braços Sobre as querelas entre a maçonaria e a Igreja Católica em Fortaleza, confira. ABREU, Berenice. Intrépidos romeiros do progresso: maçons cearenses no império. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult, 2009. 84 Segundo Célia Azevedo, entre 1869 e 1878, os discursos dos deputados da Assembléia Legislativa de São Paulo sobre a abolição dos escravos demonstram que havia duas correntes distintas: uma pretendia incorporar a mão de obra do “ex-escravo” e do branco livre no mercado de trabalho; a outra corrente, defendia o “imigrantismo”. A pesquisadora tenta traçar o distintivo desses dois posicionamentos. “Trata-se do sentido racista que impregnava as proposições imigrantistas, muito diferentes das argumentações daqueles que pretendiam incorporar ex-escravos e pobres livres no mercado de trabalho. Enquanto estes últimos tendiam a considerar as dificuldades em se tratar com negros e mestiços em termos de igualdade jurídica à luz de explicações de cunho sócio-cultural, ou seja, mais nos moldes do ideário liberal, os imigrantistas, por seu turno, buscavam preferentemente as teorias raciais para embasar a defesa de seus projetos favoráveis à imigração estrangeira”. Cf. AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco:o negro no imaginário das elites século XIX. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004, p. 120. 123 83 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 (...) acalentava um sonho bem distante de deslocar os escravos como um todo e substituí-los pelos agentes da civilização, os trabalhadores brancos” (AZEVEDO, 1996, p. 57). No entendimento da autora, a prática do imigrantismo era, antes de tudo, uma atitude “civilizatória”. Uma tentativa de “branquear” a população brasileira, idéia que estava no centro das discussões sobre a nação. O desejo de “branquear” era uma intenção, que longe de ser velada ou sugerida com pruridos, era proclamada e defendida com vigor, como se fosse uma atitude “higienizante”. É o que ela conclui a partir da leitura dos discursos da Assembléia Legislativa de São Paulo, proferidos entre as décadas de 1860 e 1880, e de afirmações como essa de Tavares Bastos: “(...) a escravidão deveria ser condenada não tanto pelo mal inflingido aos negros, mas principalmente pelos males sociais resultantes da presença daquela raça inferior entre nós (BASTOS apud AZEVEDO, 2004,p. 57) Adotar a política do imigrantismo, por conseguinte, seria uma prestação de serviço em favor da civilização brasileira. O imigrantismo, no entanto, não abrangeu todo o território nacional; praticamente se restringiu às províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, que desde a década de 1870, instituíram e fomentaram a vinda de europeus, sobretudo, italianos para o Brasil. De todo modo e guardadas as proporções, o tema foi concomitantemente abordado tanto na “Academia Francesa do Ceará” e na “Assembléia Legislativa de São Paulo”85, conforme os dizeres de Xiderico Faria em sua conferência. No trecho, Faria condiciona o “progresso” e a “civilização” à abolição do trabalho escravo e à chegada do imigrante. Nós precisamos de imigração. Nós dizemos ao estrangeiro: ‘Vem. Aqui há vastos e feracíssimos campos, que para transformarem-se em riquíssimos celeiros precisam apenas de baga de suor que goteja na fronte de homem que trabalha. Aqui há florestas imensas que para transformarem-se em magníficas cidades precisam apenas do golpe do machado e da picareta’ (FARIA: 1874). 2.5.3.A literatura brasileira contemporânea Capistrano de Abreu proferiu uma palestra cujo título foi A literatura brasileira contemporânea. Logo no início do texto, o conferencista leciona que, naquele momento, havia “dois Os deputados que defendiam a adoção da política do imigrantismo justificavam também sua escolha baseados num suposto medo da “onda negra”. A onda negra foi o nome que recebeu os crimes de negros contra seus senhores e prepostos, ocorridos com mais frequência a partir da década de 1870. É o que se lê no Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. João Batista Pereira, Presidente da Província de São Paulo, passou à administração ao 2º vicepresidente, o Exmo. Barão de Três Rios, em 7 de dezembro de 1878. “A freqüência com que se reproduzem os crimes de que são vítimas os proprietários rurais ou seus prepostos é um fato gravíssimo e tem gerado sérias apreensões no ânimo público e trás sobressaltados os lavradores (...) O delinqüente não esconde-se e nem oculta as provas do seu crime; plácido e tranqüilo busca a autoridade e vem oferecer-se a vindita da lei, sonhando com a corrente do calceta, que é para ele uma redenção”. Cf. RELATÓRIO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE SÃO PAULO 1878, p. 27 e 57. Disponível em.:http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1022/ Acesso em 05. fev. 2010. Esse aspecto da política institucional do imigrantismo será recuperado por Araripe Jr. na composição de O Reino Encantado como forma de reatualizar a história de Pedra do Reino, conforme veremos no capítulo seguinte. 124 85 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 métodos” em literatura, o “método qualitativo” e “o método quantitativo”. Vejamos como ele explica o mérito de cada um: “o primeiro considera o produtoe fixa-lhe o valor, apelando para uma idealidade. O segundo considera o processo, o característico, os antecedentes da realidade. Um julga; outro define. Aquele procura a beleza e a perfeição; este procura o estado psíquico e social” (ABREU, 1875 – grifos do autor). A seu modo, Capistrano de Abreu familiariza o leitor sobre a tensão romântico-naturalista pela qual a literatura brasileira passava (conforme já anotamos nas discussões em torno das Cartas a Cincinato) e posiciona-se frente à questão. Capistrano opta por adotar o “método quantitativo”, já que declara sua crença no “determinismo sociológico” e na convicção de que sociedade brasileira é “regida por leis fatais”, leis estas que pretende descortinar, ao longo da conferência. Para levar sua intenção a termo, Capistrano primeiro conceitua a literatura como a “expressão da sociedade”, e a sociedade seria produto de “ações e reações” continuadas da “ação da Natureza sobre o Homem, de reações do Homem sobre a Natureza”86[Grifo nosso]. Depois, propõe tratar “influências físicas no Brasil”, para só então tratar “da sociedade que medrou sob essas influências e da literatura que exprime essa sociedade”. Com esses termos, o conferencista antecipa a metodologia que utilizará para compreender a literatura brasileira contemporânea. Lembremos que esse texto é de 1875. A proposta de Capistrano demandou uma digressão temporal de mais de 300 anos que contemplou a natureza brasileira antes e, sobretudo, depois da colonização portuguesa. Uma metodologia de análise de matriz declaradamente taineana de considerar o meio, ou “as influências da natureza”, a raça, representada pela “sociedade”, e o momento histórico, representado pelo atual estágio da literatura brasileira. Com a mesma intenção, Capistrano explicou a sociedade brasileira por meio da “lei sociológica do consensus”, tomada de empréstimo a Auguste Comte. “Pela lei sociológica do consensus, fatores e produto, órgãos e funções estão intimamente ligados, substancialmente unidos. Nada existe fortuito: tudo é regular, tudo é necessário, tudo concorre; modificar uma parcela é modificar o total” (ABREU, 1875). Ainda segundo Capistrano de Abreu, essa lei é originária da biologia, “mas desde 1850 Stuart Glennieaplicou-a às ciências inorgânicas”. Nesses termos, portanto, o processo de colonização brasileiro modificou não apenas uma parcela, mas a totalidade do meio físico brasileiro. 86O conceito de literatura defendido por Capistrano de Abreu remete ao conceito de “obnubilação brasílica”, formulado por Araripe Jr., Vol II, p. 472. É provável que a semelhança seja fruto da fonte comum, na qual tanto Araripe Jr. como Capistrano de Abreu buscaram inspiração: a obra História da civilização na Inglaterra, de Henry Thomas Buckle. Segundo Roberto Ventura, “Buckle considerava a história um campo análogo às ciências naturais que deveria examinar as leis pelas quais o meio físico age sobre o homem e a sociedade” (VENTURA, 1991, p. 9091). 125 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Modificou as “forças da Natureza” (clima, solo, alimentação) como também as aparências ou “aspectos da Natureza”: as forças mentais do homem, sua capacidade intelectual87. O alimento e o solo são agregados ao clima brasileiro como fatores de grandeza e decadência. O clima quente induz a uma alimentação sóbria, farinosa; enquanto que o solo úmido performa uma “natureza exuberante”, “grandezas que nos esmagam” (ABREU, 1875, p. 67). Conclui o autor: “Esta situação, que faz do Brasil um dos mais belos países do mundo, faz de seus habitantes um dos povos mais fracos”. Importante essa tensão porque direciona o olhar de intelectuais da época. Esse é problema a ser enfrentado, a contradição entre a beleza “exuberante” do Brasil, de sua terra “fértil” e a fraqueza da população – fraqueza que será imputada ao fator racial, à miscigenação, mas também, como está claro aqui, ao clima tropical. “Indolente e exaltado, melancólico e nervoso, eis o povo brasileiro qual o fizeram as forças e aparências da Natureza. Por mais vários que sejam seus sentimentos, a todos sobrepuja o alumbramento, o desânimo, a consciência da escravidão às leis mesológicas”. Utilizando-se do “determinismo sociológico” ao qual se vincula, Capistrano de Abreu explica a premissa segundo a qual as reações do homem sobre a natureza modificam a sociedade. Numa atitude otimista, Capistrano, citando Burckle, disse que “a civilização é a vitória do homem contra a natureza”. E questiona como é possível lutar contra tão poderoso inimigo “sem ciência, sem indústria”. Ciência, como já sabemos, indicava a crença do autor nos valores cientificistas como processo de transformação; indústria é índice de modernidade, progresso, sendo necessário levar esses elementos ao mais recôndito espaço do Brasil, país jovem e pujante por natureza.88 O homem, portanto, seria o agente físico modificador. Mas, quem seria o ‘agente modificador” no caso brasileiro? Capistrano, citando Martius (1845), em “Como se deve escrever a história do Brasil”, diz que “constando de três raças diversas a nacionalidade brasileira deve ser estudada segundo a lei do paralelogramo das forças.” Mas Capistrano julga a tarefa inexequível por causa da miscigenação: “ainda não podemos determinar a intensidade dos agentes que cooperam, e ao Nesse trecho da conferência, Capistrano abre uma nota de rodapé remetendo suas afirmações a Glennie e Buckle. partir disso, o autor alinhava algumas considerações sobre o índio. Como este foi afetado pelo sistema físiconatural, que influências reteve. Para ele, apoiado na lição V da obra Filosofia positivista, de Auguste Comte, diz: “O característico da constituição mental dos Tupis era a hipertrofia da sensibilidade. A inteligência ficava sopitada sob a exuberância da Natureza e a facilidade da existência; a vontade sem impulsos vegetava mesquinha; tudo o que eles tinham de vivaz concentrava- se na emoção. E isto que em grande parte explica o seu estado: o subjectivismo era tão profundo que não podia desenvolver-se a cooperação, base de todo governo, segundo Comte” (ABREU, 1875). A explicação abaixo é impressionante: “O subjectivismo indígena mostra-se ainda no destino que davam aos prisioneiros. O sentimento da fraternidade, ou interesse de outra espécie não os levava a incorpora-los pela escravidão, lançando deste modo as bases da agricultura e do progresso: eis por que os devoravam ou matavam, e assim, a guerra que em outros climas foi um instrumento de civilização, em nossa pátria concorreu para perpetuar a barbaria” (ABREU, 1875). 126 87 88A Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 historiador do futuro compete fixar a resultante (ABREU, 1875). Por isso, nesses termos, justifica que se debruçará apenas sobre o português, “componente predominante”, já que o indígena sofria da “hipertrofia da sensibilidade”. Quanto ao negro africano, sua participação sequer é mencionada. Capistrano de Abreu faz referência à Introduction a la Science Sociale, de Spencer, para afirmar que as modificações operadas pelo “agente físico” não tem um resultado imediato. A raça pode considerar-se como um agente físico, porém é mais que um agente físico. A inteligência se manifesta pelo sistema nervoso e, si, com Spencer, admitirmos que as mudanças estruturais deste são o resultado pouco a pouco acumulado de suas mudanças funcionais; si admitirmos a realidade do atavismo, a raça implica predisposições, é um fator intelectual, super-orgânico (ABREU, 1875, p. 71-72). De igual modo, com base no Système de politique positive, de Comte, aplicou a “lei da transformação” para entender a sociedade brasileira. (...) toda ordem real se modifica espontaneamente pelo exercício, segundo diz Comte, e o exercício três vezes secular da civilização brasileira, transformara de fond en comble [tolamente]os elementos iniciais. A lei da transformação pôde formular-se assim: o órgão se desenvolve à medida que a função se estende; no Brasil as funções acanharamse e o organismo atrofiou-se. Para combater a atrofia, a revolução, como disse, era improfícua: natura non facit saltus [natureza não dá saltos]Por mais complexos, os fenômenos sociológicos são mais modificáveis; porém a intervenção quase sempre se limita a influir sobre a intensidade e velocidade do movimento. Pode tornar-se mais rápida a transição; não se pôde prescindir dela” (ABREU, 1875, p. 81). Capistrano aplica a “lei da transformação” a diversos aspectos da vida política e intelectual do Brasil. Segmenta-os entre aqueles mais “atrofiados” como o teatro, a imprensa, a educação, sobretudo a feminina89, e os que já foram mais exercitados e que, portanto, as funções se estenderam e progrediram, a exemplo da agricultura, comércio, pequenas indústrias. Nesse mesmo estágio, para Capistrano, encontra-se a literatura brasileira, que embora já tivesse conhecido certo “progresso”, pelas experiências literárias de Gregório de Matos, dos autores da Escola Mineira, ainda encontrava-se neste estado de fermentação, de empirismo, de aprendizagem. A solução que o crítico aponta para que a literatura saísse desse estágio, concentrase na adoção de partes das duas escolas em formação, o “indianismo” e o “cosmopolitismo”. 89Capistrano de Abreu aponta a falta de instrução feminina como um dos fatores de embargo ao “progresso” brasileiro: “a mulher é ignorante; não pode tomar na elaboração da sociedade o papel que lhe compete, de sorte que o progresso é unilateral e, por conseguinte, lento e de alguma sorte fictício”. E, em nota, cita Voyage au Brésil, p. 492, de Agassiz para reclamar a participaçãofeminina brasileira na força de trabalho: “Ascausas do progresso dos EstadosUnidos são muitas e variadas, mas entre todas avulta o cooperar a mulher, tanto como o homem, na obra coletiva. Com uma população igual à da França, pode dizer-se que o número dos operários do porvir é dobrado. Os yankeesreconhecem- na, e todos sabem o culto que votam à mulher. No Brasil, como diz profundamente o professor Agassiz, a única simpatia que pode existir entre o homem e a mulher é a simpatia doméstica; a simpatia intelectual e moral, a que resulta de sentirem-se colaboradores da mesma elaboração, é impossível (ABREU, 1875). 127 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Só com a palingêneses da sociedade é que a literatura nacional poderá renovar-se. Entretanto, vejo sintomas de renascimento literário nas duas escolas que se formam: o cosmopolitismoe o indianismo. Não obstante parecerem e até crerem-se antagônicas, elas são complementares, solidárias, encaram ambas o mesmo problema, ainda que sob ponto de vista diverso. No indianismo atual tão diferente do indianismo antigo, o que predomina é a concepção da arte, é a renovação do princípio artístico que se aspira. No cosmopolitismo o que predomina é a sociabilidade da arte; aspira-se a inoculá-la na vida coletiva. Já vimos que princípio íntimo e caráter social da arte são inseparáveis, e estão ambos viciados no Brasil; por conseguinte, como os que trabalham para melhorar, um concorre para elevar o outro; a empresa é a mesma: os operários não podem ser inimigos. Só estas duas escolas seriam importantes, mas prendem - e a um movimento de renovação de que me ocuparei depois. Podemos afirmar que se realizarão as suas aspirações; podemos prever que da união, do comércio das duas forças agora divergentes, nascerá a literatura esplendorosa do porvir (ABREU, 1875). Segundo compreendemos das análises de Capistrano, “indianismo” e “cosmopolitismo” são os termos que ele lança mão para fazer referência às discussões sobre um pretenso passadismo romântico em confronto com a vanguarda naturalista. Na visão de Capistrano, embora as duas “escolas” se queiram adversárias, na verdade, elas seriam “complementares”, “solidárias”, porque encaravam o mesmo problema, ainda que “sob pontos de vista diferentes”. Araripe Jr., no entanto, posicionou-se contrariamente sobre o último aspecto defendido por Capistrano de Abreu, de que a literatura brasileira ainda não havia nascido, que aconteceria num “porvir”. Posição que Araripe Jr. se contrapõe da seguinte forma: Estamos muito longe de concordar com a opinião daqueles que nos supões ainda distantes de sacudir o jugo de estrangeiras emoções. V. Exª, que naturalmente leu os trechos de uma conferência sobre a Literatura Contemporânea Brasileira que um dos nossos mais ilustrados e precoces talentos, Sr. João Capistrano, publicou neste jornal, saberá o alvo a que precisamente se dirigem minhas palavras (ARARIPE JR, 1875, 98). 2.5.4.O Papado Por último, trazemos à baila considerações sobre a conferência de Araripe Jr., sob o título de O Papado. Nela Araripe Jr. discorre sobre a questão religiosa instaurada desde que, no papado de Pio IX, foi publicada a encíclica Quanta Cura, em 1864, acompanhada do Syllabus90, A bula papal Syllabus: Contendo os Principais Erros da Nossa Época, Notados nas Alocuções Consistoriais, Encíclicas e Outras Letras Apostólicas do Nosso Santíssimo Padre, foi estabelecida pelo Papa Pio IX. Publicada em 1862, trata-se de uma lista dos 80 principais “erros modernos”, divididos em nove parágrafos: I. Panteísmo, Naturalismo e Racionalismo Absoluto; II. Racionalismo Moderado; III. Indiferentismo, Latitudinarismo; IV. Socialismo, Comunismo, Sociedades Secretas, Sociedades Bíblicas, Sociedades Clérico-Liberais; V. Erros Sobre a Igreja e os Seus Direitos; VI. Erros de Sociedade Civil, tanto Considerada em Si, Como nas Suas Relações com aIgreja; VII. Erros acerca da Moral Natural e a Moral Cristã; VIII. Erros Acerca do Matrimônio Cristão; IX. Erros acerca do Principado Civil do Pontífice Romano. A título de exemplo, um dos principais erros dos tempos modernos, segundo a bula Syllabus era a supremacia da razão sobre a religião, conforme se lê: “3º A razão humana, considerada sem relação alguma a Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, é a sua própria lei e suficiente, nelas suas forças naturais, para alcançar o bem dos homens e dos povos. Aloc. Maxima quidem, de 9 de Junho de 1862.” Cf. Syllabus. http://santamariadasvitorias.org/wordpress/syllabus-condenacao-dos-erros128 90 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) documentos emanados da hierarquia católica em Roma que se opunham à secularização dos costumes, tendo seus antagonistas representados pela Maçonaria e por qualquer aspecto de liberalismo, o progresso científico, inclusive. Em Fortaleza, como de resto, em todo Brasil, naquele momento, os embates entre maçons e católicos estava no seu auge. O nosso autor não era da maçonaria, por isso seus postulados não entraram no mérito religioso das contendas entre a Igreja Católica e os maçons. Suas bandeiras eram defender a laicização do Estado brasileiro91 e rebater o princípio da encíclica Quanta Cura, que repudiava o progresso da ciência. A conferência O papado, como a de Pompeu Filho, dialoga com Auguste Comte, à medida que defende o período histórico positivo, regido pela razão, em favor do progresso e da civilização.92 Araripe Jr. aborda o tema proposto sob ponto de vista da história, de sua vertente metódica e científica, nascida na Alemanha e divulgada na França, entre outros, por Hippolyte Taine e Fustel de Coulanges. Sua perspectiva é estabelecer a verdade, o que ele indica logo no início da palestra. Para ele, a verdade não está nos extremos – dogma religioso ou sectarismo partidário - mas está na história. “O móvel é a história, o espírito das sociedades em evolução, na civilização, nas tendências orgânicas da mesma e nas reais manifestações das leis que regem a sociedade” (ARARIPE JR., 1874, p. 71). Portanto, a perspectiva histórica por ele utilizada segue pressupostos do evolucionismo social, pois cada sociedade conhecerá os estágios atrasados e evoluirá em direção aos estágios adiantados, de progresso social. Esta sociedade avançada é a civilização, a modernidade, o que há de novo em termos de tecnologia, teoria e bens sociais à disposição da humanidade. Fica, ainda, implícito que cada sociedade funciona como uma espécie de organismo vivo, que evolui das formas primárias para as mais complexas, mas o faz segundo leis gerais que determinam o curso da história. O método que Araripe Jr. usa para análise social é o método histórico. Como ele diz, seleciona os fatos, circunscreve-os na direção dos seus interesses de pesquisa, produz uma síntese entre eles e depois, este é o objetivo final, formula as leis que os governam. Ressaltamos que, como esclarece o autor, ele busca compreender o fato social “papado” em sua origem e modernos-liberdade-dos-cultos-laicismo-socialismo-etc/ Acesso em: 26 de outubro de 2011. Em O Reino Encantado, Araripe Jr. faz referência à encíclica Quanta Cura e ao Syllabus ao apresentar a personagem Pe. Correia como um sacerdote digno de respeito por sua formação religiosa ter acontecido antes do advento dos Syllabus. 91 “A Constituição imperial de 1824 instaurou no Brasil o regime de padroado, unindo Igreja Católica e o Estado. Pelo regime, o imperador podia nomear bispos, controlar o clero e participar de outras atividades da Igreja. Em contrapartida, o Estado responsabilizar-se-ia pelo sustento dos religiosos, construção de igrejas e por outras despesas. Dessa forma, o clero brasileiro somente obedeceria às decisões do papa com a autorização imperial”. Cf. PEDROSA, José. Novos rumos. Março/abril de 2002. Disponível em.:http://www.obreirosdeiraja.com.br/o-nordestecontra-o-quilo/Acesso em.: 28. set. de 2010. 92Segundo Eric Hobsbawm (2007), o papa Pio IX adotou uma postura de extrema hostilidade à crescente tendência liberal do séc. XIX . A partir de 1864 e depois, com o Conílio Vaticano de 1870, o catolicismo se tornou totalmente intransigente, recusando qualquer acomodação com as forças do progresso, industrialização e liberalismo (...) mas ao custo de abandonar muito de seu terreno aos adversários (HOBSBAWM, 2007, p. 382). 129 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) constituição. Acompanhando sua exposição fica evidente que o autor analisa este “fato social”, marcando bem o seu caráter histórico e humano. Portanto, datado e falível em comparação com o cristianismo primitivo, original e puro. Quando ele compara a frase de Luís XIV – o estado sou eu – e diz a equivalente – o papado sou eu – ele pretende indicar como esta instituição social religiosa já não responde pelos antigos ideais cristãos. Portanto, ele analisa o papado em suas condições históricas, seus limites e suas contradições internas. Outro aspecto que destacamos no texto é a importância que o autor emprega para as superstições. Em O Reino Encantado, como veremos, ele também atribui o fato social de Pedra do Reino às superstições. Para ele, “a superstição é o germe de todas as nossas crenças e para o qual não devemos olhar unicamente para o seu lado ridículo” (ARARIPE JR, 1874, p. 82). Para aquilatar a importância deste fenômeno, ele invoca Benjamin Constant: “a filosofia que se obstina a tratar esse impulso misterioso com menosprezo não passará de uma filosofia superficial e presunçosa” (ARARIPE JR, 1874, p. 82). O que ele entende por superstição? Este aspecto tem uma importância crucial na composição ideológica do autor. Para ele, a superstição é o campo intocado da alma humana, domínio do coração que arrebata os sentimentos, as crenças, o misticismo e tudo o mais não explicado. Pensamos que ele queira se referir ao que chamamos hoje de crenças, imaginário e mentalidades. Perguntava Le Goff (2003) sobre a mentalidade dos navegantes no século XVI: como se comportam os reis, os comandantes dos navios e os marinheiros diante da morte, diante do desconhecido? Para ele, Le Goff, a resposta é que todos, indiferentemente de sua posição na hierarquia social, demonstram o mesmo sentimento de temor e respeito pela morte. Pensamos que Araripe Jr., ao falar de superstição, está falando nesse aspecto da vida sobrenatural diante do qual o homem não tem explicação e sobre a qual a razão não governa: “é incontestável, pois, a existência de uma linguagem universal que a razão não define nem compreende, mas que o coração aceita e sente repercutir no mais recôndito do seu refolho” (ARARIPE JR, 1874, p. 83). Portanto, a superstição é parte de uma linguagem universal. Le Goff explica suas formas de manifestação num plano interclassista, indiferenciada. Mas, o recôndito a que alude Araripe Jr. é que precisamos compreender com mais detalhes. Dado, assim, esse domínio que escapa a razão, há que se reconhecer, como o autor, que existem campos recônditos na “natureza virgem e selvática”, campo invulnerável à civilização. Este campo seria, inclusive, a religião professada nos seus excessos, nos desvios e no controle da mente do cidadão. O que Araripe Jr. prega é o domínio da razão, seguindo a filosofia das luzes. Não descarta a necessidade da religião, mas quer separar suas funções daquelas que devem estar na alçada do Estado. Para ele, um Estado laico seria propiciador de uma instrução universal, moderna e civilizadora. Pensamos que esta 130 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 perspectiva aparece em O Reino Encantado, tanto na configuração do campo “selvático e natural”, como é dito sobre o sítio histórico, quanto sobre o conjunto de crenças e superstições que ostentam, conforme ainda veremos. Aliás, o autor caracteriza este fenômeno ligando-o à Idade Média, condenada neste caso como a Idade das Trevas ante a qual dever-se-ia impor as luzes da civilização. Ao que tudo indica, uma forma de se contrapor a encíclica Quanta Cura, já que nesta se reforçavam paradigmas medievais e repudiava tudo que representasse o moderno.93 De todo modo, é possível estabelecer diálogos entre a encíclica papal e o texto de Araripe Jr. Ilustra isso a afirmação do parágrafo final da palestra em ele diz preferir se perder com Colombo nos mares tormentosos do que ficar à margem do progresso da ciência e da civilização, numa “hedionda estagnação” ou se render às superstições e às novas modalidades de “fogueira”, como o Sílabos, impostos pelo papado. Se por uma dessas anomalias que não tem nome voltarem as fogueiras como veio o Sílabos e a infalibilidade, as guerrearei de morte. Quero a âncora da Religião como repouso, mas nunca como hedionda estagnação. E se me privarem deste consolo, ou reduzirem de novo ao instrumento infernal das astúcias, declaro mil vezes preferirei perder-me, como Colombo, nos mares tormentosos e desconhecidos que os teólogos anatematizam. Ao menos descobrirei novos mundos! (ARARIPE JR.: 1874) Ao que tudo faz crer, com o trecho acima, Araripe Jr. se contrapunha à passagem da encíclica que afirma que os representantes da Igreja de tempos passados se opuseram às “iníquas tramas” de homens que se lançaram ao mar, “espumejando suas confusões como as ondas encapeladas do mar”, “prometendo liberdade”. Estes, segundo a encíclica, eram, “na realidade”, “escravos do mal” cujos objetivos eram destruir “os fundamentos da religião católica e da sociedade civil” (PIO IX, 2010, p. 1). É o que se lê no trecho da encíclica: “Quanta cura e vigilância pastoral os Romanos Pontífices, predecessores Nossos, dispensaram em todos os tempos em cumprir a missão a êles confiada pelo mesmo Cristo Nosso Senhor, na pessoa de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, de apascentar as ovelhas e os cordeiros, já nutrindo toda a grei do Senhor com os ensinamentos da fé, já embebendo-a dos pastos envenenados, de todos , mas mui especial a de vôs, Veneráveis Irmãos, é perfeitamente conhecido e sabido. Porque, em verdade, o que em seus corações mais profundamente gravaram Nossos predecessores, defensores e vindicadores de nossa sacrossanta religião católica, solícitos como eram de modo extraordinário pelo bem das almas, foi condenar e destruir todas as heresias e erros, que, combatendo nossa fé divina, a doutrina católica da Igreja, a honestidade dos costumes e a salvação eterna dos homens, suscitaram graves tormentas e acarretaram danos à sociedade civil e cristã, de maneira lamentável. Em virtude disso, Nossos predecessores, refertos da fortaleza apostólica, contrapuseram contínua resistência as iníquas tramas dos homens que espumejando suas confusões como as ondas encapeladas do mar e prometendo liberdade, quando na realidade eram escravos do mal, trataram de destruir, com suas opiniões capciosas e escritos perniciosos, os fundamentos da religião católica e da sociedade civil; de arrancar do seu meio toda a virtude e justiça; e depravar todos os corações; de separar da reta norma dos costumes sãos; prendê-los, desta forma, ao seio da Igreja católica”. PIO IX, Papa. Quanta Cura - sobre os principais erros da época. (1864), p. 1-2 Disponível em.:http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=enciclicas&artigo=quantacura&lang=br a. Acesso em: 18. Abr. 2010. 93 131 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 É importante frisar que foi a partir do texto O papado que Araripe Jr. passou a recorrer ao repertório cientificista europeu como esteio de sua atividade de analista da nacionalidade brasileira. Anos mais tarde, Araripe Jr. fez um breve balancete desse período e reconheceu essa inflexão, ao afirmar que seu primeiro contato com autores como Auguste Comte, Taine, Buckle e outros aconteceu em 1873, durante as atividades da “Academia Francesa do Ceará”. Dizemos isso baseados em informações do próprio Araripe Jr. de que seu contato com as idéias positivistas se deu naquele ano. O dado encontra-se no prefácio à 2ª edição da obra Perfil de José de Alencar, escrito em 189494. A reconstituição de minhas idéias data de 1873. Foi neste ano que li pela primeira vez as obras de Spencer, a História da Civilização da Inglaterra, de Buckle, e os trabalhos críticos de Taine. Residia eu então na província do Ceará, quando aí formou-se um círculo de moços estudiosos, do qual constituiu-se centro o falecido Raimundo Rocha Lima , discípulo fervoroso de Comte. Neste círculo passaram-se em revista, quanto permitiam as forças de cada um, todas as idéias do século. Como era de se esperar, não tardou que as conversações se fizessem jornal e o jornal, tribuna. A questão religiosa ia em seu auge. Organizaram-se conferências contra o clero (...) Ao lado de Capistrano de Abreu, de Tomás Pompeu e de outros fortes do círculo, entrei nesses ensaios. Sem estudos científicos, tão pouco acessíveis ainda hoje aos bacharéis em direito, depois disto, lenta foi, para mim, a ascensão na montanha filosófica. Eu não podia ser indiferente ao ingresso, no país, de novas idéias; mas era obrigado, por higiene, a sujeitar-me a processo de assimilação cauteloso. Se lenta foi, pois, a transformação mental, mais lenta ainda deveria ser a mutação dos bastidores literários, das engrenagens empregadas na composição, dos hábitos, enfim, adquiridos na primeira lição (ARARIPE JR. 1874). A “assimilação cautelosa”, a “transformação mental lenta” indicam que em momento algum Araripe Jr. foi subserviente ao sincretismo científico. Em sua prática intelectual, ele se apropriou de um apanhado do “repertório” científico europeu, que lhe proporcionou uma reinterpretação dos esquemas de pensamento e formas de ação cristalizados como tradição políticointelectual nacional. Tanto é que, em sua atividade de crítico literário, sempre primou por uma seleção muito criteriosa dos teóricos a que se filiou. Mesmo os escolhidos passavam sempre pelo seu crivo meticuloso e, mesmo os que eram assimilados, sofriam os devidos senões. No entanto, as mencionadas ressalvas não eram rabugices intelectuais tampouco perseguições pessoais 95. Originalmente, os primeiros capítulos do Perfil de José de Alencar haviam sido publicados em periódicos do Rio de Janeiro, a exemplo de O Vulgarizador, Revista Brasileira, Gazeta de Notícias, Gazetinha, entre outros. Em 1882, a obra conheceu a primeira edição em volume que reuniu os textos esparsos nos jornais e periódicos mencionados. Araripe Jr. escreveu um prefácio especialmente para a 2ª edição em que faz uma espécie de balancete de duas décadas (18731894) de intensa atividade intelectual. São memórias de dedicação à literatura brasileira e universal. 95 Durante mais de 40 anos de intensa atividade intelectual, profissional e política, o único desafeto declarado de Araripe Jr. foi Rui Barbosa. Isto porque Araripe Jr. e Rui Barbosa estiveram em lados opostos no advento da revolta da armada. Araripe Jr. tornou-se entusiasta de Floriano Peixoto, “quando dominou a revolta da armada de 1893,considerando-o o salvador da República. Chegou [Araripe Jr.] a se alistar como voluntário do batalhão acadêmico que guarnecia a praia do Flamengo. Daí lhe adveio a antipatia manifestada em relação a Rui Barbosa”. Cf. MOTTA, Arthur. Op. cit. p. 489. Desafeto que Araripe Jr. estampou no seu texto “Diálogo sobre as novas grandezas do Brasil”, compilado no volume IV, de sua obra completa, já citada, p. 341-449. Curiosamente, é a Fundação Casa 132 94 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Outrossim, amparavam-se em sólido conhecimento da poética clássica96, aliado a uma noção apurada do romantismo, além de uma perspicácia impressionante no olhar para novos conhecimentos, como aqueles que se apresentavam no nascente naturalismo97. É o que também se depreende do trecho que se segue. Devo logo dizer-vos que não fui acostumado a ler história com o espírito obliterado do fanatismo, prevenido pela intolerância, buscando a todo transe a confirmação do dogma, à feição de certos naturalistas, que, depois de haverem improvisado em seus gabinetes um sistema abstruso, empreendem longas viagens em cata de fenômenos que possam justificar os caprichos de suas imaginações exaltadas. Não; o método que recebi é totalmente inverso. Sempre busquei os fatos separados de toda e qualquer preocupação, e só depois de compendiados e formada a síntese foi-me lícito procurar as leis que porventura os regem. Deste modo a história não se me impôs pelos nomes de seus autores ou daquele que em nome de quem a escreveram; nela não enxerguei senão um campo vasto de explorações, um mundo desconhecido, onde se devia encontrar os dados certos de todas as tendências do homem em sua vida complexa e terrena (ARARIPE JR.: 1874 - grifo nosso). Subentende-se que Araripe Jr. reconhecia sua inflexão rumo ao cientificismo europeu. Porém não se reconhecia como um crítico “naturalista” fanático e intolerante, “em cata de fenômenos” que pudessem justificar suas “imaginações exaltadas”. Menos ainda, se reconhecia sectário acrítico de um autor; em sua atividade de crítico literário, afirmava ele, à escolha dos fatos a serem analisados, seguiam-se os necessários resumos e formação da “síntese”. Depois de vencidas essas etapas, é que ele buscava “as leis” que regiam aqueles fatos. *** A “Academia Francesa do Ceará” e a “Escola Popular” trouxeram a Fortaleza essa efervescência política, religiosa e intelectual. Conforme leciona Sânzio Azevedo, constituiu uma “associação que podemos chamar de lítero-filosófica, pois não tratou somente de Filosofia, como também não tratou só de literatura, mas de ambas as coisas” (AZEVEDO, 1971, p. 06-07). Por fim, um depoimento de Tomás Pompeu de Souza Brasil Filho resume a atividade intelectual da agremiação: Cada um de nós lia e tomava notas de uma obra de Comte, Darwin, Spencer ou Littré, e reunidos, expúnhamos os resultados dessa leitura, submetendo-a à critica ou análise dos demais. Nesses prélios intelectuais apurávamos a dialética, dilatando o espírito de observação e síntese; dir-se-ia que ali estavam universitários alemães a controverterem de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que abriga a maior parte dos documentos de Araripe Jr. É um conjunto expressivo de documentos formado por 21 cartas familiares, cuja destinatária é sua mãe Argentina Araripe; há ainda um caderno de memórias iniciado em 1906, mas com poucas páginas escritas, além outras cartas sem um destinatário regular. 96 Cf. MONTENEGRO, Pedro Paulo. A teoria literária na obra de Araripe Jr. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974. 97 Acima de qualquer coisa, Araripe Jr. era um crítico literário entusiasta e defensor da literatura brasileira e muito polido em suas críticas, com os novos autores, inclusive. 133 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 os mais árduos problemas científicos e filosóficos (BRASIL FILHO apud AZEVEDO, 1971, p. 30). A nota de Pompeu Filho atesta a intensa atividade intelectual promovida pela “Academia Francesa do Ceará”. Sobre esse aspecto, Araripe Jr. anota que um desembargador cearense “não receou dar a Fortaleza o nome de Tübingen brasileira” (ARARIPE JR. apud AZEVEDO. Idem), uma referência à cidade alemã reconhecida pela sua universidade e pela quantidade de estudantes na rua. 2.6. Argumentos científicos para analisar literatura O resultado dos estudos da tradição cultural brasileira e da nova filosofia se revelam no fazer literário de Araripe Jr. posterior ao ingresso na agremiação cearense. É o que podemos inferir da leitura do texto “A poesia sertaneja”, escrito em 1875. Se na conferência O papado Araripe Jr. se abastece da teoria cientificista para analisar questões de ordem religiosa e filosófica, no texto “A poesia sertaneja” (1875) passa a se servir de uma seleção das teorias cientificistas em análise literárias e, conforme veremos, na escrita de O Reino Encantado. Ao que tudo indica, porém, o interesse de Araripe Jr. não era mais em edificar novos sistemas filosóficos com fins neles mesmos, mas sim interpretar a realidade nacional. Conforme se lê no subtítulo, “cartas ao Exmo. Conselheiro José de Alencar”, “A poesia sertaneja” é uma série de duas cartas, publicadas no Constituição, em Fortaleza, e, posteriormente, publicadas em O Globo, no Rio de Janeiro. Esta última foi a fonte utilizada por Afrânio Coutinho na compilação da obra crítica de Araripe Jr. As cartas foram escritas à propósito da obra Nosso Cancioneiro, de José de Alencar. De início, Araripe Jr. admite que a literatura brasileira estava passando por uma “grande evolução”, traduzida por uma “extensa tendência” de criar novos “símbolos” que manifestassem a nossa “vida social”. E ele continua: Assim é que vemos objetos que outrora nos enfastiavam o espírito e apareciam-nos sob um aspecto repugnante ou com uma fisionomia alva e abtrusa, começaram a ferir-nos a imaginação de um modo diversíssimo, assumindo proporções simpáticas, transformando-se, pouco a pouco, em inesgotáveis fontes de misteriosas forças de produção. O fenômeno é real e não tarda que se propague, atingindo aqueles mesmos laços e situações, que há bem pouco eram reputados os mais ridículos deste mundo. Tal era o ponto de vista que tomávamos para observá-los (ARARIPE JR., 1875, p. 98-99). Para Araripe Jr., uma das “inesgotáveis fontes de misteriosas forças de produção” que deveriam ser utilizadas como símbolos nacionais era o sertão/sertanejo. Mas o aproveitamento estético do sertão inóspito e recôndito não podia ser justificado apenas por sua suposta 134 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 ambiência selvagem, ou mesmo por suas particularidades exóticas. Importante que se compreenda que Araripe Jr. propôs a adoção do espaço sertanejo como temática e problema literário, tendo como viés uma percepção reveladora do social ao desenvolver sua crítica e ao antecipar soluções inovadoras para a questão nacional. Do ponto de vista do espaço geográfico e do meio social, ele afirma o sertão como campo de possibilidades, repositório de símbolos para a representação literária da sociedade, a sertaneja em particular. O autor rebate uma prática social advinda “da vida carnavalesca das cortes” que via os tipos de vida societária no interior como desprezíveis. Para ele, ao contrário, trata-se de “um mundo completamente novo de emoções originais, que interessem tanto ao poeta, que o representa pela face mais sedutora, como ao filósofo, que em qualquer parte que seja vai buscar os germes da futura civilização de um povo ou de uma raça” (ARARIPE JR., 1875, 98). Sob esse ponto de vista, amparado numa perspectiva diferente do olhar imposto por teorias extemporâneas europeias, Araripe Jr. critica a representação do “campo” como portadora de uma cultura “grotesca”, ante a qual reina o silêncio e a “indiferença” de extratos da cultura dominante, sobretudo a dos letrados do litoral. Contudo, essa contradição, sertão x litoral, parece-nos, não é central para o nosso autor, pelo menos não é formulada nos termos euclidianos, em forma de antítese. Araripe Jr., ao contrário, esboça uma perspectiva da formação social brasileira com o objetivo de alcançar a síntese entre as raças formadoras da nacionalidade. A sua crítica é no sentido de afirmar a importância desses elementos étnicos e, dessa forma, reafirmar os valores éticos e estéticos, psicológicos e culturais do homem do campo, dos vastos sertões. Num processo evolutivo, acredita o autor que “não causaria surpresa se disséssemos que justamente dessa crisálida brotariam os fundamentos de onde terá um dia de derivar a transformação do Brasil” (ARARIPE JR., 1875, p. 99). Portanto, para Araripe Jr., o desafio era afirmar a nacionalidade e com isto inscrever os símbolos mais significativos da nação, que seriam o sertão e o sertanejo. Tarefa que, segundo ele, não seria concretizada com a aceitação mecânica e servil das idéias importadas do continente europeu. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de uma crítica ao colonialismo cultural e, além disso, de impor restrições frente a esse ideário, de cunho positivista. Não bastava aceitar as novas idéias que aqui chegavam, necessário antes que as mesmas sofressem um processo de crítica. Dizia ele que: as populações sem autonomia das capitais vivem uma verdadeira vida de empréstimos, vão subscrevendo as revoluções européias, sem fazer passar as conquistas da civilização pelo crivo da nossa índole social, expurgando o que absolutamente não pode adaptar-se à natureza tropical. (...) A força impulsiva do autóctone subordinará o influxo 135 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) civilizador vindo de fora, fa-lo-á entrar em circulação como meio de aperfeiçoamento, mas nunca como única condição de existência (ARARIPE JR., 1875 , p. 99). Dessa forma, para o crítico Araripe Jr., não se trata de evitar ou recusar as ideias vindas do exterior. A questão é depurar tais idéias pelo confronto meticuloso das mesmas com os dados da realidade socioambiental brasileira. Como já havia feito em O papado, de (1874), Araripe Jr. volta a defender a necessidade de não se viver “vida de empréstimos”; para ele, não era admissível que a intelectualidade brasileira saísse por aí subscrevendo “as revoluções europeias” sem antes “passar as conquistas da civilização pelo crivo da nossa índole social, expurgando o que absolutamente não pode adaptar-se à natureza tropical” (ARARIPE JR., 1875, p. 99). Ao que parece, Araripe Jr. alertava seus interlocutores para as teorias raciais em voga. Estas também compunham o conjunto dos modelos evolucionistas que, por sua vez, não só elogiava o progresso e a civilização, como concluía que a mistura de raças heterogêneas era sempre um erro e levava à degeneração tanto do indivíduo como de toda a coletividade (SCHWARCZ, 1994, p. 138). Ele logo percebeu que aderir às premissas científicas em sua totalidade significava, ao mesmo tempo, reconhecer a inviabilidade do País como nação, já que a miscigenação era um fato consumado. Por outro lado, o autor de O Reino Encantado também se recusou fechar os olhos para as inovações da ciência. E qual foi a solução para o impasse? Araripe Jr. acreditava que a saída estava nos efeitos saneadores da civilização, por perceber a marcha da história no horizonte do progresso e assim acreditava num sentido para a história. A julgar por suas próprias afirmações, este sentido parece ser menos filosófico e mais científico. A civilização, para o autor, descortinava-se e concretizava-se, na modernidade, no elemento tecnológico que caracterizava a novidade, como que marcando bem a diferença entre um passado que se quer preservar e um futuro como índice de superação. Disse ele: Prolonguem-se as estradas de ferro; ponham-se essas raças que povoam o interior em mais contato com a vida civilizada; cobrem energia, desenvolvam-se suas forças mentais e veremos se deste embate, na pujança das faculdades e tendências com que dotou-as o sol dos trópicos, não surgirá para este imenso país de maravilhas uma situação como nunca imaginaram aqueles colonos que primeiro puseram o pé em terras de Santa Cruz. A força impulsiva autóctone subordinará o influxo civilizador vindo de fora, fa-lo-á entrar em circulação como meio de aperfeiçoamento, mas nunca como única condição de existência (ARARIPE JR., 1875, p. 99 – grifo nosso). O autor busca assimilar a emergente sensibilidade moderna, sem abrir mão do diálogo com o repertório plural das tradições98. Para sermos mais exatos, o autor vai além ao propor que Sobre as formas que assumem esse diálogo entre tradição e modernidade nos oitocentos, entre a intelectualidade brasileira, ver VELOSO, Mônica Pimenta. Um folhetinista oral: representações e dramatizações da vida intelectual na 136 98 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 o elemento tradicional incorpore no seu cotidiano as conquistas modernas. Nesse sentido, Araripe Jr. via que a forma de transformar o Brasil num “país de maravilhas”, a solução para o impasse da miscigenação brasileira, seria o investimento na ciência, à medida que se proporcionasse às “raças do interior” o contato com “a vida civilizada”, a fim de desenvolverlhes as “forças mentais”. Mas o otimismo de Araripe Jr. foi uma rara exceção. Conforme anota Schwartz, no que tange ao temário racial do Brasil, no período, “a saída foi preconizar a adoção do ideário científico, porém, sem seu corolário teórico — aceitar a idéia da diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação — à medida que o país, a essas alturas, encontrava-se irremediavelmente miscigenado” (SCHWARCZ, 1994, p.138). Ou seja, boa parte da intelectualidade brasileira se serviu do discurso científico para corroborar a hierarquia entre as raças, a superioridade de umas sobre as outras. Atitude que, longe de ser um diletantismo filosófico, era, na verdade, um discurso racial do qual se lançava mão para defender uma hegemonia já consagrada e explicar as desigualdades sociais99. 2.7. O sertanejo idealizado x sertanejo “real” Nesse itinerário em que o objetivo é apresentar a transição pela qual passava o fazer crítico de Araripe Jr., um último aspecto merece ser relevado. Entre 1868-1878, suas produções críticas endossam duas representações distintas do sertanejo: uma, em 1868, de viés flagrantemente romântico e a outra de concepção positivista. Em algumas páginas atrás, trouxemos à baila um juízo crítico de Araripe Jr., intitulado “Contos da roça” (1868), acerca de alguns contos de Emílio Zaluar. No texto, Araripe Jr. sublinhou que a personagem sertaneja de virada do século XIX. Em: VELOSO, Mônica Pimenta; LOPES, Antonio Herculano & PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. 99 O darwinismo social, por exemplo, foi o argumento do qual se lançou mão para justificar hierarquias sociais já consolidadas; depois, serviu de justificativa para adoção de políticas públicas excludentes, uma vez que noções como a de cidadania eram suplantadas por argumentos de cunho racial, conforme as análises que realizamos sobre a política do imigrantismo. O fundamento para conclusões semelhantes a essa vinha dos homens de ciência. Para ilustrar o pensamento desses intelectuais, citemos João Batista Lacerda (1911), então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução" (LACERDA Apud SCHWARCZ, 1994, p. 137). Discursos como esse, proferidos por membro da elite científica brasileira, podem ter servido também para abonar políticas institucionais de branqueamento da nação. No interessante artigo “O Espetáculo da miscigenação” e na obra O Espetáculo das raças, a pesquisadora Lília Schwarcz mapeia os discursos sobre raça, urdidos nas diferentes instituições irradiadoras de saber e de pesquisa brasileiras. A saber: os museus etnográficos de Belém – PA, Rio de Janeiro e São Paulo; as faculdades de Direito de Recife e de São Paulo e as faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro dos institutos históricos de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Cf. SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo da miscigenação. Em: Estudos Avançados. Nº8, Vol. 20, 1994 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 137 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 nome Juca do Salto havia sido “perfeitamente desenvolvida”, uma vez que suas ações se pautavam em valores como amabilidade, simplicidade e destemor. Juca do Salto também foi aclamado pela sua capacidade de vencer as intempéries da natureza, valendo-se, para tanto, apenas de sua força física e de seu destemor, características das quais lançava mão para “arrostar” adversidades impostas pela natureza sertaneja. Por tudo isso, Araripe Jr. conduziu Juca do Salto à galeria “do mais perfeito tipo de nobreza” que reunia em si valores como bondade e pureza. Já no texto “A poesia sertaneja”, de 1875, Araripe Jr. passa a reconhecer que a “emoção épica” do homem sertanejo desapareceu e que, desse modo, já não era possível representá-la em literatura, esta uma “expressão da sociedade”. Vejamos como o crítico lamenta esse fato: Com pesar o digo: - a emoção épica que tanto devera exaltar a mente dos primeiros criadores, que resultaram do cruzamento da raça indígena com os portugueses, de todo desapareceu. Com muito custo hoje chegaríamos a descobrir, observando acuradamente os seus costumes e tradições, uma reminiscência dessa situação, para julgar a qual não encontramos símbolos artísticos de qualquer natureza que seja. O que é certo é que, antes de findar-se o século passado, a feição desse tipo primitivo foi substituída por um arremedo, que pouca coisa ou nada conservava das tendências daqueles que embrenharam-se, livres como o touro, pelos sertões, com a mente pejada de fantasmas e uma única confiança, a que residia em seu braço e em seu arrojo incomparável (ARARIPE JR., 1875, p. 100). Da feição do sertanejo de outrora pouco ou nada se conservou: já não era possível retratá-lo sob as mesmas bases que Emílio Zaluar utilizou em Juca do Salto. Aquela modalidade de sertanejo havia sucumbido, antes mesmo que registros sobre ele fossem cristalizados em qualquer símbolo artístico. Nem mesmo as canções populares e orais serviriam de fonte para retratar o sertanejo de outrora, porque as intenções com as quais foram escritas não passavam de “legendas”. E Araripe Jr. reforça: Cairemos, porém, em um equívoco lamentável toda vez que pretendermos aquilatar ou reconstruir esse estado emocional pelas canções populares ou pelos pseudo-poemas que encontramos na boca dos nossos atuais sertanejos, poemas estes que, sendo produto de uma situação completamente diversa daquela, só podem produzir emoções que porventura caracterizam a época durante a qual a musa popular o compôs (ARARIPE JR., 1875, 101– grifo nosso). De modo que restava ao poeta apenas a possibilidade de retratar o estado atual do sertanejo; não seria possível reconstituir o seu passado, já desvanecido. Dos vestígios do passado restavam reminiscências dos poetas populares sertanejos, mas, segundo Araripe, não retratavam o cotidiano do homem do sertão, visivelmente transfigurado. O sertanejo de então já não era livre, tampouco a força de seu braço podia ser sua única valença. De qualquer modo, era o sertanejo “real”, passível de observação e de ser tomado como tema de obras literárias. 138 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Nessa perspectiva, a situação do sertanejo era análoga à do vaqueiro: ambos achavam-se “escravizados” “pelos patronos ricos e fazendeiros notáveis que avassalavam as terras que o rei concedera-lhes em patrimônio”. É com feição de escravizado, oprimido e tarefeiro que Araripe Jr. representa o sertanejo e o vaqueiro, em 1875, um sertanejo e um vaqueiro completamente diversos do heróico e honrado Juca do Salto. Deste século, [século XVII] quando já o sertanejo ou o vaqueiro não era mais produto daquela indômita aspiração para o desconhecido, para o ameaçador, quando as terras pela maior parte viam-se desbravadas, quando o Brasil não era mais esse país encantado e misterioso, para onde o espírito descia como para um abismo insondável, quando, finalmente, essa raça semi-aborígine, com a gradual transformação das causas, achava-se escravizada pelos patronos ricos e fazendeiros notáveis que avassalavam as terras que o rei concedera-lhes em patrimônio, que talavam os campos por (onde) antes os centauros impavidamente atiravam-se tão livres como o selvagem das priscas eras; deste século, repito, desde que o sertanejo colocou-se na terrível contingência de servir ou ser esmagado, que poesia podia brotar? Que sentimento heróico encontrar-se-ia em indivíduos que, abocanhados em suas nobres aspirações, vivendo como escravos, oprimidos, eram obrigados a percorrer os campos atrás da rês fugitiva, não como o homem que luta pelo sentimento da própria vida, mas por uma obrigação e como tributo? (ARARIPE JR., 1875, p. 100 – grifo nosso). Antes de mais nada, o crítico ressalta que, do século XVIII para o século XIX, o sertão nordestino conheceu significativas mudanças em sua base econômica. A liberdade que caracterizava o vaqueiro “indômito” havia desaparecido no século XIX e novas relações de produção levaram-no a uma “escravização” diante de seus patrões. Daí porque, segundo Araripe Jr., a nova realidade não autorizava romantizações sobre a existência cotidiana dos vaqueiros. No limite, para ele, o sertão e o sertanejo deveriam ser caracterizados segundo essa nova realidade socioeconômica e cultural, cujo traço marcante era o trabalho escravo. 2.8.“Instinto”100 de nacionalidade: fio condutor da obra de Araripe Jr. O “instinto de nacionalidade” é o fio condutor da obra de Araripe Jr., ao longo dos 43 anos que dedicou à literatura, entre 1866-1911. A despeito das matrizes ideológicas a que tenha se filiado, seja romântica, seja naturalista; a despeito das revisões que porventura ele tenha operado nos critérios que utilizou para julgar obras literárias, Araripe Jr. esteve no campo de defesa do nacionalismo literário. Há em sua trajetória esse ponto de interseção, conforme anota Coutinho: Termo que tomamos de empréstimo a Machado de Assis que explica o que seria, para ele, o “instinto de nacionalidade” em literatura. “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro” Cf. MACHADO DE ASSIS. Instinto de nacionalidade.(1873) Em: www.domíniopublico.gov.br. Acesso em 02 de janeiro de 2012. 139 100 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) o caráter brasileiro constituiu o impulso da ideia central de sua obra e da sua atuação como escritor. Araripe Jr. pregou em toda oportunidade a nacionalização da cultura e da literatura brasileira (...) aplaudindo com entusiasmo os que mostravam, na sua obra, o predomínio do meio brasileiro, fosse físico, social ou humano (...) Assim, inspiração, tipos, costumes, paisagem, assuntos, tradições, tudo deveria conduzir o escritor brasileiro para essa meta de americanização e brasilidade (COUTINHO, 1970, p. XI). De fato, essa orientação presidiu todos os seus escritos, tanto nessa fase de transição que estamos nos propondo a discutir (1868-1878); como, de resto, em toda sua produção intelectual, atividade que só cerrará pouco antes de sua morte, em outubro de 1911. Araripe Jr. comungou da invenção de uma certa tradição literária, pós Independência política de 1822, comprometida com a fundação do Estado Nacional; ao passo que teceu duras críticas à literatura elaborada por brasileiros que se manteve fiel à herança estrangeira, fosse ela qual fosse. Na compreensão de Araripe Jr., os literatos brasileiros deveriam privilegiar temas pátrios. A poesia (...) não pode deixar de ceder, ou mais cedo ou mais tarde, à influência do clima, do aspecto do país e da índole de seus primitivos habitantes. Aí é onde existe a verdadeira fonte das inspirações, que não são filhas (deixa assim expressar-me) de uma mera convenção. Querer o contrário é querer sufocar no berço uma literatura que pode ter, para o futuro, um grandiosíssimo desenvolvimento (ARARIPE JR., 1869a, p. 26). ou Essas embastidas florestas, que ofereciam outrora ao selvagem um abrigo seguro e saudável contra os ardores do sol que abrasa a vasta região tórrida; esses magníficos asilos de verdura onde os raios do astro do dia nem sequer podem penetrar; essas selvas cheias de saborosos frutos, de ridentes festões e flores; esses matos povoados por animais de toda casta, de indômitas feras e infinidade de esquisitas aves e áureos insetos; esses gigantescos e faustosos rios, esses cristalinos regatos, essas tremendas cascatas que enchem as abóbadas de verdura de fragor imenso; todas as coisas, enfim, que soem dar ao nosso Brasil um aspecto sublimemente fantástico e cismador, tornaram-se objetos de nossa maior predileção (ARARIPE JR., 1868a, p. 20). Ou seja, o clima e outros aspectos da natureza brasileira, assim como o índio, deveriam ser a verdadeira fonte de inspiração para os poetas. Essa bandeira tinha um reverso. Araripe Jr. combatia com veemência as obras literárias que não tomassem por fonte os temas brasileiros, comportando-se como “enxertos literários” do “velho continente”. O crítico considerava essa atitude literária como um desfavor à nascente literatura nacional. (...) tive ocasião de manifestar os meus sentimentos a respeito dessa literatura ainda em germe, a qual os encarniçados apologistas dos enxertos literários tão obstinadamente têm procurado estigmatizar com o ridículo epíteto de cabocla. Com efeito, não será desprezando o que de mais belo e inspirador existe em nossos climas que havemos de sacudir com o jugo das impressões importadas do velho continente. Trilhando vereda tão diversa daquela que deveríamos seguir, nunca chegaremos a proclamar a nossa emancipação. (ARARIPE JR., 1869a, p. 25– grifo nosso). Desse modo, Araripe Jr. professou que a emancipação da literatura brasileira perpassava necessariamente pelo apreço ao que “de mais belo e inspirador existe em nossos climas”. Ao 140 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 mesmo tempo, rejeitava a postura de alguns analistas contemporâneos a ele. Para eles, a literatura brasileira não passava de mero “enxerto” da portuguesa e era ridicularizada sob a alcunha de “cabocla”. É possível que o protesto dele seja um diálogo com autores que comungavam da ideia defendida pelo cônego Fernandes Pinheiro, em sua obra Curso elementar de literatura nacional: (...) julgamos bem que pese ao nosso patriotismo, que nas faixas infantis ainda se acha envolta a litteratura brasileira. Tel-a-hemos brevemente,(...) numerosos são os elementos que se agglomeram para a sua constituição, e o movimento impresso em 1836 pelo Sr. Magalhães vai produzindo brilhantes resultados. Discordamos porém da opinião dos que pretendem enchergar uma nacionalidade, um cunho particular nos escriptos d’alguns illustres brasileiros, compostos durante o regimen colonial, ou ao crepúsculo d’aurora boreal da independencia, quando as preocupações políticas absorviam todas as attenções. Não passam de gloriosos precursores Durão, Basilio da Gama, os dois Caldas, S. Carlos, os dois Alvarengas, Claudio Manoel da Costa e alguns outros bellos engenhos que faziam ouvir seus cantos no meio da servidão da pátria. Não descobrimos porém em seus versos uma ideia verdadeiramente brasileira, um pensamento que não fosse commum aos poetas d’alem-mar. Para isso é certo que poderosamente contribuia a educação que então se dava á juventude, e para brasileiros e portuguezes era infallivel o oraculo de Coimbra. Impossivel é pedir originalidade a quem não tem ideias suas. Si [sic] por empregarem alguns nomes indigenas devem esses auctores serem classificados na litteratura brasileira injusto fôra excluir da indostanica [sic] Camões, Barros, Castanheda (PINHEIRO, 1862, p. 10 – grifos nossos). No entendimento do cônego Fernandes Pinheiro e dos seus contemporâneos, a literatura brasileira era um decalque da portuguesa. Para ele, não havia uma literatura genuinamente brasileira; o fato de um ou outro autor empregar “alguns nomes indígenas” não era suficiente para destacá-la da portuguesa, do mesmo modo que os autores que aqui despontavam, como Durão e os demais, tinham pensamentos comuns aos poetas portugueses. Enfim, tratava-se de um ponto de vista contrário ao de Araripe Jr. que, por seu turno, utilizava seus textos de crítica como peças de defesa da literatura nacional. Sotero dos Reis foi um de seus alvos a partir do momento em que anunciou no Curso de literatura portuguesa que o tema indianista não deveria mais ser utilizado em obras literárias. Diante disso, Araripe Jr. conclama os literatos brasileiros a repelirem tal princípio. Combatamos, repilamos com todas as nossas forças o princípio que o Sr. Sotero dos Reis (pessoa a quem, aliás, muito respeitamos, na qualidade de profundo literato e filólogo) intenta propagar como verdadeiro, de que já faz mister lançar de parte essa literatura cabocla dos nossos avós. Como assim, se agora é que começamos a desenvolvê-la?! Como assim, se agora apenas contamos cinco ou seis obras no gênero, que merecem classificação?! (...) Não obstante, é assuntos desta ordem que o autor do Curso de Literatura Portuguesa anatematiza como impróprios para formarem a base de nossos estudos e ensaios literários (ARARIPE JR., 1868, p. 12-13). Araripe Jr. não media esforços para se contrapor aqueles que não reconheciam as especificidades da literatura brasileira. Com o mesmo empenho, conclamou os nacionais a abandonar o culto à literatura estrangeira e privilegiar brasileira. 141 Capítulo 2 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Deixemos à antiga Grécia os seus risonhos bosques povoados por ninfas e sátiros, as suas musas e os seus deuses, os seus heróis e os seus pastores, as suas montanhas e as suas fontes; não passem da Índia as suas extraordinárias crenças, a sua ruidosa teogonia e as lutas estupendas de seus semideuses, de que são verdadeiros intérpretes os Vedas, o Mahabárata e o Sacuntala; fique a Alemanha com a sua atmosfera carregada e as inspirações sombrias que lhe produziram o Fausto e o Werther; permaneçam na Itália os pálidos gondoleiros, o seu azulado céu e a sua poesia cismadora; não transponha os montes da Escócia o eco dos misteriosos cantos do bardo de Morven; deixemos, afinal, à França a sua literatura multiforme porque novos e brilhantes mundos se patenteiam aos vôos da poesia, desde que Colombo, transpondo as balizas da velha navegação e atirando-se aos tenebrosos mares do ocidente, franqueou um imenso estado às imaginações ardentes e aos espíritos empreendedores. De impressões completamente estranhas, de uma natureza tão cheia de esplendores como a da América, dessas florestas seculares, desses rios colossais não deve portanto surgir uma literatura original, melancólica e, ao mesmo tempo, pasmosa. (ARARIPE JR., 1869a, p. 26). Com a inclusão do trecho acima, reafirmamos que Araripe Jr. pregou, em toda a oportunidade, a nacionalização da literatura. Em seus pareceres críticos, aplaudia com entusiasmo as obras que contemplavam o meio brasileiro. Foi emblemático o julgamento que Araripe Jr. fez, em 1869 e publicou no jornal Dezesseis de Julho, do Rio de Janeiro, sobre o poema épico Riachuelo. O poema, escrito em cinco atos pelo poeta L. J. Pereira da Silva, tinha como tema a Guerra do Paraguai. Na visão de Araripe Jr., o autor do poema se propôs a escrever um poema épico, mas não teria logrado êxito no seu intento porque havia desobedecido a vários aspectos da arte poética, teria cometido equívocos no que tange à elaboração do herói e de seu principal antagonista; além do que teria privilegiado eventos secundários, relegando a segundo plano eventos mais importantes; enfim, com seu poema, Pereira da Silva foi de encontro às principais lições da poética clássica. Contudo, uma das poucas características de Riachuelo que merecia relevo era o tema nacional escolhido pelo autor. Muitos são os defeitos, é verdade, que se notam em todo o poema; o que, porém, não é possível negar é que seu autor possui as mais pronunciadas disposições para o gênero épico. O Sr. Pereira da Silva já fez muito no seu trabalho. Mostrou que em seu peito só pode pulsar um coração generoso, entusiasta e capaz de uma empresa literária verdadeiramente patriótica. Se não conseguiu elevar um monumento eterno aos bravos do Prata, ao menos abriu caminho (...) a outras produções mais elevadas(ARARIPE JR., 1870, p. 201 – grifos nossos). Em Riachuelo, Araripe Jr. evidenciou os “defeitos de composição” (tanto formais quanto de conteúdo), porém salvaguardou o tema por ser de caráter nacional. No entanto, observamos que, ao criticar a obra Falenas, de Machado de Assis, Araripe Jr. faz movimento contrário: registra a destreza de Machado no que tange à construção dos aspectos formais dos poemas reunidos em Falenas, mas, com pesar, escreve que o poeta Machado privilegiou a paisagem grega em detrimento à brasileira, característica que denotaria certa falta de criatividade do poeta. É o que 142 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 Araripe Jr. anota em crítica publicada no jornal Dezesseis de Julho, da Corte, em 6 de fevereiro de 1870101. Justíssimas queixas deveria expor ao seu autor [ao autor de Falenas] pela ingratidão com que se tem havido para com este tão formoso Brasil, para com este tão prolífico solo ao qual deve a vigorosa imaginação que possui; longas increpações teria de fazer, pela manifesta preferência que vota ao grito da cigarra de Anacreonte 102 sobre o melodioso canto da sabiá (...)(ARARIPE JR, 1870, p. 223). A crítica de Araripe Jr. não passou despercebida a Machado de Assis. Embora não tenha se dirigido especialmente a ele, o autor de Falenas semanifestou contra à postura dos críticos, sobretudo os da “nova geração” que só reconheciam “o espírito nacional” nas obras que têm como tema um assunto local. Para Machado, esses pareceres são frutos de uma opinião ainda mal formada, “restrita em extremo” e “pouco solícita”. Os críticos da “juventude literária” conforme Machado se referiu à “geração de 1870” - citam e amam Basílio da Gama e Durão “como precursores da poesia brasileira” e rejeitam poetas que, a exemplo de Gonzaga e, podemos acrescentar o exemplo do próprio Machado, que “respirando os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo” (ARARIPE JR., 1870, p. 224). Portanto, segundo Machado, valorizar apenas as obras que desenvolvam temas locais seria uma opinião “errônea” e limitante aos “cabedais da nossa literatura”. Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e A citação foi localizada no volume 5 da obra crítica de Araripe Jr. reunida por Afrânio Coutinho. o que se registra no semanário pinturesco Archivo Popular, publicado em Lisboa, em 1843,sobre Anacreonte e sua preferência pelas cigarras: “Anacreonte nasceu em Téo (...) foi coevo de Pisistrato, de Solon, de Esopo e viveu 500 anos antes da era cristã. A exemplo de Píndaro e de Homero, teve a glória de transmitir seu nome ao gênero de poesia em que fora insigne; poesia que na nossa língua, mormente nas odes, conservou o nome original do progenitor e por isso foram elas chamadas “Odes anacreônticas”(...) As poesias de Anacreonte respiram a malícia e o bom humor, a delicadeza e a facecia[sic]. Não é possível dar um esboço do seu estilo; há em todas as composições um matiz tão suave, uma graça tão singela, que não se podem reproduzir tradução. La Fontaine imitou dois trechos de Anacreonte e pode imitá-los porque La Fontaine é um gênio que se pode reputar quase igual ao poeta grego (...) Eis aqui uma fraca tradução de uma das odes de Anacreonte feita à cigarra: ‘Quanto és feliz, inocente cigarra! Ainda mal sobre os ramos de uma árvore apagastes a sede com minguada gota do rocio da manhã e já teu canto celebra a aurora: o mundo é teu, inseto feliz! Todos os tesouros que vês no campo são teus, todos os que nos levam a tornar curtas as horas te pertencem. Amiga constante do lavrador, causa-lhe por ventura o menor dano! Todos te saúdam como correio precursor de amenos dias. Ariada pelas musas, querida de Apolo foi ele que te deu a tua voz harmoniosa. Nunca a pesada velhice fez murchar tua mocidade. Prudente filha da terra toda a tua felicidade cifra-se no teu canto; não temes as cruas enfermidades nem te assusta e desventura isenta das paixões. Inimiga do sangue a tua natureza corre parelhas com a dos deuses. Cigarra bondosa e cândida, eu te saúdo!’ Esta ode de Anacreonte lembra os entretenimentos de Sócrates em que alude à cigarra, cantada e venerada por muitos poetas da antiguidade. Muitos povos dessas eras tinham em particular veneração esta filha da terra; os atenienses, mormente, que se reputava filhos do sol, traziam nos cabelos como ornatos cigarras de oiro. Anacreonte dizendo que a cigarra não envelhece, quis, sem dúvida, aludir à fábula de Titão, que tendo desejado ser imortal, não se lembrou pedir aos deuses uma mocidade perpétua e, por fim, chegou a tal extremo de velhice, que a Aurora compadecendo-se dele o metamorfoseou em cigarra”. “A poesia de Anacreonte”. Em: Archivo Popular: leituras de instrução e recreio. Semanário pintoresco. Lisboa: Typografia A.J.C. da Cruz, 1843, Vol. VII, Nº 44, p. 348. 101 102Leiamos 143 Tensões romântico-naturalistas no discurso crítico de Araripe Jr. (1868 – 1878) Capítulo 2 do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (MACHADO DE ASSIS, 1873, p. 3). Esse ponto de vista não foi compartilhado por Araripe Jr. O cearense sublinhou o talento de Machado de Assis, mas não lhe perdoou “o cajado da pastora”, em outras palavras, a matriz clássica aplicada à poesia machadiana. Com essa postura, Araripe Jr. confirma que perpassa por toda sua obra crítica a exortação pelo emprego da vida brasileira e da natureza americana, não só como mananciais de inspiração, porém como temática e problema literário que lhe fornecesse elementos para discutir a questão nacional. É possível afirmar que Araripe Jr. foi um artífice da nacionalidade brasileira, um intérprete dos valores constituídos e a constituir dessa nação emergente nos trópicos. Entendemos que o seu anseio fundamental organiza-se em torno dos valores nacionais que deveriam consolidar-se na prática social em um futuro promissor, cuja fabulação dar-se-ia por meio do campo literário. É do crítico e do romancista de quem falamos, mas é também do brasileiro, originário de família sertaneja. Na qualidade de romancista, Araripe Jr. pôs em prática os princípios que pregou nos textos críticos. No que tange ao tema, por exemplo, no romance O Reino Encantado usou o sertão como ambiente e o sertanejo como personagem, tendência que se consolidou nos romances naturalistas de 1880 a 1890. Ainda quanto ao temário de O Reino Encantado, não é demais reafirmar que Araripe Jr. inaugurou na literatura de cunho regional o tema do misticismo religioso, com visíveis adesões posteriores: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Pedra Bonita (1938), de José Lins do Rego, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. No romance O Reino Encantado, de Araripe Jr., encontramos a tensão primordial que ora vincula a obra à matriz romântica, ora a inclina para representações de viés naturalista, conforme veremos no capítulo seguinte. 144 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d' O Reino Encantado Para meus irmãos, Fred e Petrônio (de saudosa memória); e para meu sobrinho Felipe. Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 “´Na pedra está escrito que quando João se casasse com Maria o reino se desencantaria”(RE, p. 77)103 3.1. Cativos e libertos na Pedra do Reino: resumo de O Reino Encantado T emos neste último capítulo duas metas a cumprir. Primeiro, traremos à luz um apanhado do enredo do romance O Reino Encantado. [Figura 10] Toda tese que tem uma obra literária como objeto de estudo, a elaboração de um resumo é uma praxe. Em nossa tese, a presença do apanhado do enredo, mais do que um costume, é uma necessidade, já que O Reino Encantado é um romance desconhecido, cuja única edição foi publicada em 1878. Depois, analisaremos o modo com que Araripe Jr. elaborou ficcionalmente as “representações” da história da Pedra do Reino e das personagens do romance. Conforme já antecipamos no capítulo 2, para compor o romance, Araripe Jr. serviu-se de orientações de matriz romântico-naturalista, de uma linguagem da medicina psiquiátrica e da obra Fanatismo religioso. Esta última foi utilizada como fonte histórica, documental, como “expressão da verdade” sobre a história de Pedra do Reino. *** Daqui por diante, anotaremos as passagens relevantes para o desenvolvimento do enredo de O Reino Encantado. Todas as ações do romance se desenrolam em torno das práticas sociais de dois grandes grupos que se opõem, mas que, entre si, apresentam divisões internas, conforme indicaremos ao longo deste capítulo. As referências ao romance O Reino Encantado serão feitas com as iniciais RE, seguida do número da página onde se localiza a citação. Cf. ARARIPE JR., Tristão de Alencar. O Reino Encantado. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878. 146 103 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado 147 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 De um lado, está o grupo que chamaremos de sebastianistas, composto pelas personagens integrantes da comunidade que se formou em torno da Pedra do Reino ou por aqueles que se aliaram aos líderes do movimento messiânico. Este grupo se compunha de mestiços, negros,índios, escravos e brancos pobres que, tanto na sociedade local como no romance O Reino Encantado, serviam de mão de obra destinada ao trato com a lavoura e com o gado. Eles não ocupavam nenhum cargo ou função de mando nas instâncias do poder constituído na região. Do outro lado, o grupo que denominamos de potentados, formado por personagens que representam os três setores dominantes naquela sociedade da província de Pernambuco: o Clero católico, os fazendeiros locais e os coronéis de patente.104 Convém informar que aqui utilizaremos os dados da edição em volume do romance, esta dividida em duas partes: 1) a primeira, intitula-se “A Fazenda das Porteiras”105 e é composta de 12 capítulos; 2) já a segunda parte chama-se “Os Sebastianistas”106 e é formada por mais 21 capítulos107. 3.1.1. João, Maria e a profecia Em O Reino Encantado, os sebastianistas acreditavam numa profecia escrita num “alfarrábio achado alhures” (RE, p. 83), segundo a qual D. Sebastião estaria encantado nas pedras do reino. De acordo com a mesma predição, assim que D. Sebastião fosse desencantado, distribuiria suas riquezas dentre aqueles que confiassem no seu breve regresso. Além dos bens de fortuna, a profecia garantia a mudança étnica dos sebastianistas, já que D. Sebastião torná-los-ia “alvos como a lua”. No entanto, para que se operasse o desencantamento e se cumprisse a Marcos Clemente, citando Eul- Soo Pang, havia diferentes tipos de coronéis: “aqueles ligados à economia nacional e internacional, caso verificado no recôncavo baiano e na zona da mata de Pernambuco. Estes, segundo o autor, estavam mais sujeitos ao controle do Estado”. Inversamente, acontecia “com os coronéis do sertão – sertão das três ribeiras – Pajeú, Moxotó e Navio - em Pernambuco; os sertões do São Francisco, entre Bahia, Alagoas e Sergipe e os sertões do vale do Cariri, no Ceará, houve menor controle do Estado”. Cf. CLEMENTE, Marcos Edílson de Araújo. Imagens do Cangaço: relações de poder e cultura política no tempo de Lampião (1916/1938). UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro - Tese de Doutorado em História Social. Rio de Janeiro, 2011, p. 98. Além dessa modalidade de coronel, o coronel fazendeiro, havia ainda o coronel de patente que além de ser proprietário de terras, recebia do governo central uma patente militar, passando a ser um representante das forças militares. Cf. LEITE, Glacyra. Pernambuco 1817: estruturas e comportamentos. Recife: Fundaj/Massangana, 1998, p. 102. Esse foi o caso de Manuel Pereira da Silva que era major do Exército e, depois da expedição que organizou à Pedra do Reino, logrou a patente de Coronel. 105 A saber: I. Abre-se o cenário; II. O carro; III. A fazenda das Porteiras; IV. Noite aziaga; V. Idílio interrompido; VI. O filtro; VII. O rastejador; VIII. A serpente e a rola; IX. Um coração partido; X. Tibúrcio; XI. Ergue-se a ponta do véu; XII. A batida. 106 São eles: I. Recordações históricas; II. Justina; III. Sombras; IV. A ex-rainha; V. Pedra Bonita; VI. Maria; VII. O Profeta; VII. A fanática; IX. Explicações; X. João Ferreira; XI. A crise; XII. O encontro; XIII. Entre os quilombolas; XIV. A Casa Santa; XV. O Segredo da jurema; XVI. O mortecínio; XVII. A revolta; XVIII. O novo rei; XIX. A desforra; XX. Desmoronamento; XXI. Conclusão. 107 Na edição em folhetim não há divisão do romance em duas partes e há a supressão de dois capítulos quais sejam, “Idílio interrompido” e “O novo rei”, perfazendo o total de 31 capítulos. Outra diferença mais aparente entre as duas edições é que no folhetim o capítulo “O mortecínio” tem como título “A victimação”. 148 104Segundo Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 profecia com todas as suas vantagens para os crentes no reino encantado, seria necessário que se realizassem alguns rituais, entre os quais o casamento de João com Maria. “Quando João se casasse com Maria,/ Aquele reino desencantaria” (LEITE, 1904, p. 221). Portanto, há uma espécie de mote, linha condutora para o romance, a profecia é o locus da trama, em torno dela, desenrola-se o enredo. Quem é João? Quem é Maria? Maria é uma sinhazinha, filha do casal de fazendeiros Bernardo Vasconcelos e dona Clemência Vasconcelos, brancos, proprietários de escravos e de duas grandes fazendas: Porteiras e Pau Ferro, ambas localizadas nas imediações do sítio Pedra do Reino. No romance O Reino Encantado, o João que deveria se casar com Maria era João Ferreira, mameluco, personagem importante entre os sebastianistas108. João Ferreira, personagem histórica e ficcional, tanto no romance como na historiografia da Pedra do Reino, foi o segundo rei do lugar, aquele que assumiu o trono, depois que João Antônio, primeiro rei dos sebastianistas, retirou-se para os sertões dos Inhamuns, no Ceará109, conforme anotamos no capítulo 1 desta tese110. João Ferreira também era cunhado de João Antônio, casado com Josefa, uma de suas irmãs, também personagem histórica e da ficção. Ocorre que o casamento de João com Maria era fato improvável por vários motivos. O primeiro é que João Ferreira era casado com Josefa na Igreja; e, de acordo com a religião católica seguida por Maria e seus pais, essa condição proibia João Ferreira de contrair novas núpcias. Depois, o casamento quebraria a rígida hierarquia social em vigor: ambos eram oriundos de “raças” diferentes, condição que, para os padrões do lugar, tornava-se uma barreira intransponível. Além do mais, Maria era a única herdeira de terras e outros bens de fortuna; ao passo que João Ferreira nada possuía. Eis, portanto, alguns dos sentidos sociais implícitos na conhecida profecia. Ela tensiona os principais códigos sociais vigentes, quais sejam o religioso, o racial e, por fim, o econômico. Nesse contexto, os sebastianistas decidem-se pelo rapto de Maria como forma de quebrar tais interdições socioculturais. Pressentimentos e superstições, pactos e intrigas, poder, honra e No memorial de Antônio Áttico de Souza Leite, o João que deveria se casar com Maria era João Antônio dos Santos, primeiro rei de Pedra do Reino, conforme se lê no subtítulo “Pedra do Reino, a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite”. 109 Embora tenha ido morar no Ceará, em O Reino Encantado, João Antônio continuará tendo influência na trama. No romance, Araripe Jr. vê que a saída dele não foi uma forma de retirá-lo do enredo, mas, ao contrário, compor sua tessitura. Por isso, voltaremos a falar sobre João Antônio ainda nesta parte do capítulo. 110 Sobre João Antônio, personagem histórica, cf. no capítulo 1 o subtítulo “Pedra do Reino, a história que se conta em Antônio Áttico de Souza Leite”. 149 108 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 violência: eis os elementos que matizam a composição da trama de O Reino Encantado, que se desenvolve em torno do sequestro de Maria. 3.1.2. O cenário da trama e o tempo do enunciado O narrador inicia o romance convidando o leitor a transportar-se para Pernambuco, “terra heróica, que foi berço desses esforçados paladinos, que expulsaram de suas praias os denodados batavos” (RE, p. 03). Segue com a descrição do cenário, sobretudo da paisagem sertaneja comparando-a à do litoral e à dos pampas gaúchos. Nesse aspecto, o romance de Araripe Jr. remete-nos à obra-prima de Euclides da Cunha, Os sertões. Esse parentesco se revela sobremaneira com “A terra”, no trecho em que o autor de Os sertões compara o sertanejo ao gaúcho. Além desse aspecto há o fato mais explícito em que Euclides afirma que sua obra é tributária de O Reino Encantado e cita-o textualmente. Com isso demonstra que este romance de Araripe Jr. serviu-lhe de inspiração, sendo uma de suas matrizes. No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na Serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, erguese um bloco solitário — a Pedra Bonita. Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto (CUNHA, 1997, p. 82). Outra semelhança entre O Reino Encantado e Os sertões está na divisão interna de ambas as obras, em cujo aspecto são tributárias dos “fatores taineanos” quais sejam raça, meio e momento histórico. Porém, tanto em O Reino Encantado (1878) como em Os sertões (1902) há uma releitura da ordem dos “fatores taineanos” já mencionados. Conforme observaram Luiz da Costa Lima (1997, p. 99) e Leopoldo Bernucci (1995, p. 53), Euclides da Cunha preferiu dividir sua obra em três partes A terra, O homem, A luta. Na nossa compreensão, essa maneira nova de ordenar os fatores de Taine pode ter tido como matriz à releitura dos mesmos fatores empreendida anos antes por Araripe Jr., em O Reino Encantado (1878). Neste, o romancista apresenta primeiro a paisagem sertaneja, depois os homens e mulheres envolvidos na trama, para, por fim, apresentar a luta que se deu entre potentados e sebastianistas, os dois grupos antagônicos. Ao que parece, a intenção de Araripe Jr., tanto quanto a de Euclides da Cunha ao alterar a sequência dos fatores de Taine, era secundarizar a ênfase em torno da questão racial. 150 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 O narrador afirma que o romance se ambienta “na circunscrição de Flores”, mais precisamente no povoado de Serra Talhada - PE (hoje município) e em suas proximidades. O dado é histórico. A Comarca de Flores é uma das mais antigas de Pernambuco, foi a primeira comarca do sertão daquela província e seu território abrangia vastíssima extensão de terras 111. É de igual maneira histórico o espaço romanesco de Pedra do Reino e imediações, hoje pertencente ao município de São José do Belmonte - PE. Por outra via, são exemplos de ambientes exclusivamente ficcionais as fazendas Porteiras e Pau Ferro. Embora aquelas cercanias sejam um conglomerado de fazendas e pequenos sítios, nenhuma delas se chamava Porteiras ou Pau Ferro. O tempo do enunciado é o ano de 1838. O narrador cientifica o leitor do cenário político local e do que seriam suas consequências para a população da região onde se localizam as pedras do reino. O narrador considera que os acontecimentos de Pedra do Reino são frutos de duas ordens de situação: as violentas lutas políticas112 e o quadro de superstições entre os sertanejos. Lutas políticas desapiedadas tinham posto em alarma os espíritos calmos e sensatos; e a superstição, a despeito dos esforços de um digno sacerdote, tendo erguido o colo como a hidra113 da Fábula, insinuava-se pelo ânimo dos míseros campônios, produzindo as mais assombrosas cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar (RE, p.04). 3.1.3. Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio Em cena, surgem duas personagens, dois andarilhos cujos destinos não se revelam de início. O leitor é informado apenas sobre a raça a que eles pertenciam. Essas definições raciais estão sempre latentes na obra e, mais que isso, são portadoras de tensões. Um era “mameluco”, o outro, um homem branco. Mais tarde, saberemos que o mameluco é Pedro Antônio e o homem branco é Tibúrcio que estão indo ao encontro de Frei Simão, que “pertencia à raça africana” (RE, p. 07), a fim de executarem o plano fundamental para o desencantamento do reino: o rapto e sacrifício de Maria. Notemos que, em O Reino Encantado,é notória a atenção que Araripe Jr. dispensa ao tema racial. Em outra parte desta tese, analisaremos aspectos das representações dos conflitos oriundos do caldeamento das três raças, a partir das personagens do romance. O território da antiga comarca de Flores pertencente hoje aos municípios de Tacaratu, Cabrobó, Floresta, Serra Talhada, São José do Belmonte, entre outros. Foi criada em 1833 por força da Resolução do Conselho da Província, que dividiu Pernambuco em nove comarcas, sendo uma delas a de Flores. Sua instalação ocorreu em maio de 1834. Antes dessa resolução, em virtude do alvará de 15 de janeiro de 1810, já havia sido criada a comarca do Sertão da Província de Pernambuco, da qual a Vila de Flores foi uma das sedes. Cf. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/pernambuco/flores.pdf. Acesso em.: 26. out. 2011. 112 Sobre as lutas políticas em Flores, Serra Talhada, confira o capítulo anterior no subtítulo Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957). 113 Hidra: hi.dra1sf (gr hýdra) 1.Mit gr Serpente de sete cabeças que renasciam quando decepadas, a não ser que fossem todas cortadas de um só golpe. Foi morta por Hércules. 2.fig Mal muito alastrado, que aumenta apesar dos esforços feitos para extingui-lo. 151 111 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Frei Simão espera Pedro Antônio e Tibúrcio em um casebre nas imediações da fazenda Porteiras. O Frei reafirma aos recém chegados a importância daquela ação para desencantar o reino e esclarece que só seria possível raptar Maria com o auxílio da escrava Justina. Esta era a única dentre os sebastianistas que tinha acesso à casa dos Vasconcelos, por ser escrava da família, onde cumpria a função de mucama de Maria. Não é demais lembrar que os sebastianistas tinham o plano de sequestrar Maria e levá-la à Pedra do Reino para que se cumprisse a profecia do desencantamento. Consta que, assim que se consumasse o casamento de Maria com João Ferreira, o reino desencantaria. Conforme as palavras de Frei Simão, dirigindo-se para Tibúrcio e Pedro Antônio: “Os fiéis estiveram presentes às vozes da Casa Santa e todos ouviram o espírito exclamar que, quando João se casasse com Maria, o reino se desencantaria. É preciso assim que se faça a grande obra do encontro e o sangue dessa virgem vá lavar o altar dos mistérios” (RE, p. 08). Em O Reino Encantado, quem eram Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio? O que há de importante na composição dessas personagens que leve à compreensão do enredo do romance? Cabe dizer que as três personagens faziam parte do grupo dos sebastianistas, todavia apenas Frei Simão acreditava na profecia. Já os outros dois não tinham fé em D. Sebastião tampouco nas promessas de se tornarem “limpos da fealdade anterior, alvos, formosos” (RE, p. 117). Tibúrcio, na verdade, queria raptar Maria e casar-se com ela. O rapaz sabia que nunca contaria com o consentimento dos pais de Maria para contrair núpcias com a moça. Maria e o casal Vasconcelos repugnavam Tibúrcio pelas seguintes razões. Ele havia sido adotado por Bernardo e dona Clemência e criado como irmão de Maria. Depois de educar Tibúrcio com zelo e carinho os Vasconcelos escorraçaram-no de casa quando souberam que ele, já rapaz, havia tentado estuprar Maria, num ato violento e, pode-se dizer, incestuoso, já que Maria e Tibúrcio cresceram como irmãos. Tibúrcio se coligou com os sebastianistas quando soube da intenção deles de raptar sua pretendida. Viu naquela ação a única forma de possuir seu objeto de desejo. O plano pessoal de Tibúrcio era o de se antecipar à ação dos sebastianistas, raptar Maria e ir embora com ela para um lugar onde jamais fossem encontrados. Pedro Antônio, por seu turno, também não acreditava na profecia nem nas riquezas do reino encantado. Ele acreditava em outro tesouro. Pedro Antônio calculava que João Ferreira e Frei Simão guardavam muitos bens de fortuna, como joias e dinheiro (RE, p. 46) subtraídos das fazendas da região, por onde os líderes dos sebastianistas divulgaram a crença no reino encantado de D. Sebastião. Pedro Antônio se julgava merecedor dessas riquezas, pois atribuía a obtenção 152 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 desses bens ao poder de persuasão de João Antônio, seu irmão. O plano de Pedro Antônio era o de se fingir de crente em D. Sebastião, cumprir as tarefas que lhe fossem delegadas e, depois de ganhar a confiança dos líderes de Pedra do Reino, furtar o tesouro para si; fugir para lugar distante e viver uma vida financeiramente abastada. 3.1.4. A Família Vasconcelos Enquanto Frei Simão, Tibúrcio e Pedro Antônio tramavam o sequestro de Maria, ouviram, ao largo, os movimentos de um carro de boi. Bernardo Vasconcelos, dona Clemência e Maria eram os passageiros do carro e estavam em viagem de retorno à fazenda das Porteiras. De longe, a família era observada por Frei Simão, Pedro Antônio e Tibúrcio. No trajeto entre o povoado de Serra Talhada e a fazenda, a menina confidenciou aos pais que vinha sendo acometida de fortes pressentimentos em relação a Jaime, primo e noivo de Maria que há dias havia desaparecido. A mãe tentou, em vão, dissuadi-la daqueles pensamentos, lembrando-lhe que o rapaz tinha o costume de caçar e que não era a primeira vez que ele se ausentava sem deixar notícia. As aflições de Maria são reforçadas por Bernardo Vasconcelos. Embora ele afirme acreditar que Jaime esteja bem, diz que as preocupações da filha têm fundamento e são muito piores: Rumores estranhos soaram a meus ouvidos, e há quem fale vagamente em coisas inauditas. Olha esse desaparecimento por toda parte de negros e escravos que viviam até então na segurança do labor; esses roubos de crianças de que já acusam os quilombolas, impressionaram-me profundamente (...) embora se atribua tudo isso a vingança de adversários, dou-lhe origem bem diversa. (...) Devemos ir preparando o espírito para quaisquer emergências dolorosas, pois estamos cercados de invisíveis inimigos 114 (RE, p. 09 – grifo nosso). Os donos da fazenda chegam de viagem e são recebidos por Manoel Velho. Personagem importante, sobretudo, no desfecho do enredo, Manoel Velho não é escravo, é apresentado como um homem branco, fiel vaqueiro da fazenda das Porteiras e apaixonado pela mucama Justina. Embora soubesse que ia desagradar aos patrões, por força do dever, Manoel Velho, informa-lhes os últimos acontecimentos na fazenda das Porteiras: a fuga de escravos, o desgarramento de alguns animais e o retorno de Frei Simão às redondezas. Bernardo Vasconcelos detestava Frei Simão por considerá-lo feiticeiro: “O velho insoneiro voltou as nossas terras (...) O Veja que Bernardo Vasconcelos se refere a negros e a escravos. Denota-se que a condição de escravo reservava-se tanto aos negros, como também a descendentes de outras etnias, provavelmente índios. 114 153 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 mísero, quem sabe se não cogita contra nós algum horrendo malefício” (RE, p.10). As novidades deixam o fazendeiro furioso e mais preocupado. 3.1.5. A chegada de Jaime à fazenda das Porteiras Na noite daquele mesmo dia, parte dos pressentimentos de Maria também se materializou. Os Vasconcelos já haviam se recolhido, quando ouvem o tropel de um cavalo que transportava Jaime desfalecido. O rapaz estava fisicamente em estado lastimoso e visivelmente perturbado, já que tudo que dizia parecia desconexo. Maria perguntou a Jaime o que lhe aconteceu, por onde ele andava. Jaime respondeu como quem segredava e pede a discrição da noiva para o que ela vai ouvir: Não me fales... abaixa a voz.... por quem és? Disse ele fazendo menção de tapar-lhe a boca. De onde venho? Pois não sabes?! Venho do meio dos assassinos... dos antropófagos... do inferno... de um mundo de horrores... Ainda o ignoravas?...(...) Vamos... saiamos daqui... eles aí vêm... os infames... os perversos... Perseguem-me, e é bem possível que te assassinem, Maria. São capazes de aniquilar-nos todos para beber-nos o sangue (RE, p. 15). Jaime não expressou isso claramente, mas, nos capítulos seguintes, sabemos que ele chegava à fazenda das Porteiras voltando de Pedra do Reino. Lá, segundo o narrador, o noivo de Maria presenciou um mundo de horrores. Vasconcelos indaga Jaime sobre a participação de Frei Simão no que ele sofrera e o rapaz acena a cabeça afirmativamente. Vasconcelos então esbraveja: Não há mais dúvida! Bradou o fazendeiro com fúria. No meio de tudo isto só vejo as abusões de Frei Simão. Ele é letrado e foi acólito 115 de padre. Aí está em que dão seus feitiços. Bem me dizia o reverendo vigário que sempre andasse aprecatado contra esses adivinhos que entendem de ciência oculta (RE. p.15). “Dois dias são passados das cenas que acabamos de descrever” (RE, p. 16). Depois dos cuidados que Maria e sua mãe dedicaram a Jaime, ele recobrou boa parte da saúde. Enquanto o jovem casal tomava o sol da manhã, dona Clemência veio lhes dizer que Bernardo Vasconcelos tinha se ausentado da fazenda das Porteiras. Tinha ido atender a um chamado do feitor da fazenda Pau Ferro, também de propriedade da família, que mandou chamar o seu patrão e senhor, “em razão do levante de alguns negros e da mortandade estranha que está se observando no gado de toda espécie” (RE. p. 17). Acólito - na igreja católica, pessoa incumbida de ajudar o diácono em suas funções litúrgicas; sacristão, ajudante, assistente. 154 115 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Maria considerou a viagem uma atitude impensada do pai por dois motivos: a) a viagem era arriscada por causa dos salteadores que recorrentemente atacavam as estradas; b) por deixálos sós, a mercê da ação dos mesmos malfeitores que vinham surrupiando o gado das Porteiras. Mais uma vez, os maus pressentimentos de Maria se materializaram. 3.1.6. Invasão à fazenda das Porteiras e o rapto de Maria Naquela noite, os sebastianistas invadiram a fazenda das Porteiras. Conforme conta o narrador, o grupo de invasores era formado, sobretudo, pelos negros fugidos das fazendas de Vasconcelos, todos indignados com o tratamento desumano que recebiam do senhor. Os negros estavam sob o comando de Tibúrcio que gritava: “Machados à cima! Bradou ele com o ódio a fuzilar-lhe das pupilas sangrentas. Acabemos com isto! Poupem a quem devem poupar e quanto ao mais é cevarem os seus justos ódios como bem lhes parecer!” (RE, p. 39). O ataque dos sequestradores levou à completa destruição da vivenda dos Vasconcelos, assim como foram mortos aqueles que vigiavam o local. Menos Manoel Velho que teve a vida poupada por obra de Justina. O amor que o vaqueiro nutria pela mucama era recíproco e Justina deu provas do seu amor, ao livrar Manoel Velho da morte. É preciso que se diga ainda que Clemência e Maria sobreviveram à sanha dos assaltantes. Reportemo-nos exclusivamente ao caso de Maria, importante para a sucessão do enredo. Maria percebe que a fazenda será tomada por invasores. Diante do perigo, a moça entende que só lhe resta rezar e dirige-se ao quarto onde há um oratório com a imagem de N.S. da Penha, sua padroeira. Depara-se com Justina, sua mucama, que havia sumido da fazenda há dias. Justina diz que está ali a pedido de Frei Simão, roga o perdão à sinhazinha e explica-lhe que só retornou à fazenda com o objetivo de salvar Maria. A mucama conta-lhe que os homens que invadiram a fazenda são “soldados do reino” e estão ali por causa de Maria: Por causa da beleza da sinhazinha é que os soldados do reino vêm a Porteiras. Apóstolo São João, pela boca do Rei Santidade, disse que o encantamento só desapareceria se nhã Mariquinha fosse por a mão sobre a pedra dos martírios. Ora como a menina não ia lá por sua vontade, será preciso matar gente e levá-la a força. Mas sinhazinha, que sabe tudo agora pode livrar da morte nhô Bernardo e nhã Clemência... e também sinhozinho Jaime (...) (RE, p. 33). Por algum tempo, Maria se viu numa encruzilhada. Estava em suas mãos escolher “entre a salvação de seus pais e a repugnância em dar crédito às singulares revelações de Justina” (RE, p. 33). Pelas mãos de Justina, a menina decidiu ir para a Pedra do Reino. 155 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Pouco tempo depois dessa conversa entre Maria e Justina, Tibúrcio vai ao quarto de Maria para colocar em prática seu plano pessoal. Mas chega tarde. Justina já tinha levado Maria e colocado a menina em local seguro. Ao encontrar o quarto vazio, Tibúrcio despejou toda sua raiva em Jaime, o noivo de Maria, e o assassina cruelmente (RE, p. 40). Ainda não tinha amanhecido o dia, quando Bernardo Vasconcelos regressou da fazenda Pau Ferro e encontra a sede da Porteiras completamente queimada. Diante da cena, ele caminha pelos arredores da fazenda em busca de alguma pista sobre a esposa e a filha. Um dos escravos que conseguiu sobreviver à violência da noite anterior garantiu a Bernardo Vasconcelos que elas tiveram as vidas poupadas e haviam sido arrebatadas pela gente de Frei Simão (RE, p. 43). A notícia encheu o fazendeiro de esperança. Bernardo Vasconcelos resolveu ir à vila de Serra Talhada a fim de conseguir a ajuda que necessitava para resgatar Maria e dona Clemência. Em Serra Talhada, o fazendeiro consegue a adesão do comissário de polícia Manuel Pereira da Silva e do missionário Pe. Francisco José Correia de Albuquerque. Essas duas personagens são, também, simultaneamente históricas e ficcionais. Já nos referimos a eles no capítulo 1, na condição de personagens históricas. No espaço romanesco, as composições de ambas as personagens são equivalentes ao que se registrou na historiografia sobre a Pedra do Reino116. Ao chegar em Serra Talhada, Vasconcelos participa a Pe. Correia e ao comissário Manuel Pereira que Maria e dona Clemência tinham sobrevivido à catástrofe. Embora estivessem na condição de cativas e em local esmo, mãe e filha estavam vivas: “(...) chegara a descobrir alguns de seus escravos que se conservaram por perto do sítio da catástrofe. Um deles certificara-o do cativeiro da senhora, e criara-lhe no espírito as mais sérias suspeitas de que Maria fora arrebatada da mesma sorte” (RE, p. 43). 3.1.7. A expedição à Pedra do Reino e João Pilé Bernardo Vasconcelos, auxiliado por Manuel Pereira e Pe. Correia, lidera a expedição à Pedra do Reino, que tentará resgatar Maria e Clemência. Os três homens mobilizaram fazendeiros da região, que enviaram seus homens fortemente armados para compor a expedição. 116O narrador apresenta Pe. Correia: “um missionário denodado, conhecido em todo o centro de Pernambuco por suas virtudes e que por mais de uma vez fora ali chamado para a catequese e instrução do povo. Grato ainda hoje à memória dos habitantes de Villa Bela, o Pe. Correa, tornara-se um herói nesses impérvios sertões, é o seu nome bem dito por todos, simbolizou a mansidão e o apostolado evangélico.”(RE, p. 42). Já Manuel Pereira da Silva, era “Comissário do distrito de Serra Talhada, homem sisudo e honesto (...) que cogitava em um meio de livrar seus jurisdicionados do terrível flagelo que os perseguia”. (RE, p. 42). 156 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Das dificuldades encontradas, a maior delas era encontrar um rastejador, um guia ou “mateiro” de confiança, que conhecesse o caminho e estivesse disposto a conduzi-los até lá. O guia ou “mateiro” escolhido foi um rapaz que se identificou com o nome de João Vital. O narrador o apresenta ao leitor por meio da raça a que pertencia: caboclo, índio tapuio. A expedição se pôs a caminho de Pedra do Reino, seguindo o rumo indicado por João Vital. No trajeto, Padre Correia receou da idoneidade de João Vital, mas Manuel Pereira advogou a favor do índio. Padre Correia se aproxima de seus amigos e diz-lhes: “Não estou gostando das lérias deste súcio. Isto é gente boa quando fiel; mas logo que dão para sonseira, requintam-se os seus instintos na finura, e não há quem possa vencê-los na trapaça. Cuidado, comissário, muito cuidado” (RE, p. 46). Mas o comissário rechaça: “Permita, reverendíssimo, que ache infundadas as suas suspeitas. Este homem é conhecido e há quem o garanta. Por que havemos de criar suspeitas antes do tempo?” (RE, p. 46). As suspeitas de Padre Correia, no entanto, tinham fundamento. João Vital, na verdade era João Pilé, sebastianista convicto, que estava ali em missão orientada por Frei Simão: desviar do caminho de Pedra do Reino, todos aqueles que fossem opositores da crença sebastianista. Tão logo anoiteceu, o rastejador abandonou a tropa, deixando-a entregue a própria sorte. Com o inesperado, a caravana resolveu parar e montar acampamento, descansar, para no dia seguinte, tomar as medidas necessárias para que chegassem à Pedra do Reino. 3.1.8. A participação de João Antônio na expedição Enquanto os demais membros da expedição dormiam, Pe. Correia velava-lhes o sono. Nesse meio tempo, houve um acontecimento inesperado. João Antônio, o primeiro rei de Pedra do Reino, apareceu diante do padre, dizendo-lhe: “Meu santo padre, socorrei-me! Salvai esta alma das penas eternas! Estou perdido! Mas não tanto por minha culpa como pela infâmia de João Ferreira. Ouvi-me, ouvi-me, em confissão” (RE, p. 49). Pe. Correia quis saber o porquê de João Antônio ter voltado à região de Pedra do Reino. Queria entender o motivo de João Antônio descumprir o acordo firmado na missão de há dois anos atrás, quando Pe. Correia recomendou que ele esquecesse aquela história de desencantamento e se retirasse para os Inhamuns. João Antônio respondeu: tentou-me o demo outra vez... e como a vida que levava não me dava para comer, e aquele negócio, que sabeis, rendia-me alguma coisa, não querendo aparecer mais nesta amaldiçoada terra, enviei um discípulo, um companheiro a minha gente... O padre mestre sabe que eu especulava sem outras intenções... Contudo, João Ferreira traiu meu pensamento... Meteu-se-lhe o esconjurado nos cascos e está a matar gente de um modo atroz, no meu nome, e por causa dos santos que invoca! (RE, p. 50). 157 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Pe. Correia diz a João Antônio que dos arrependidos é o reino do céu. Depois da confissão, estabelece uma penitência: como forma de expiar seus pecados, João Antônio deveria conduzir a expedição à Pedra do Reino. “João Antônio, prepara-te para guiar-nos, redimindo com um ato meritório as tuas graves culpas. Esses miseráveis devem ser exterminados” (RE, p. 50). João Antônio aceita a proposta e conduz os expedicionários à Pedra do Reino (RE, p. 50). 3.1.9. Justina e Maria Inicia-se a Parte 2 do romance intitulada Os sebastianistas. O narrador retoma o enredo rememorando que Justina foi quem, de fato, raptou Maria. E continua explicando que Justina escondeu Maria em lugar seguro e foi ao encontro de Frei Simão. Ao ver a mucama diante de si, Frei Simão cobra a fidelidade de Justina ao Santidade117 e quer saber por que Justina não deu cabo à vida de Manuel Velho. Justina responde: “O Manuel percebeu tudo... Fingiu-se adormecido e; quando quis embeber-lhe o ferro, subjugou-me, prendeu-me e evadiu-se” (RE, p. 57). Ao ouvir a mulata, Frei Simão comunica-lhe que Manuel Velho está sob a guarda dos sebastianistas. Diante da informação, Justina propõe uma permuta: ela entrega Maria a Frei Simão e, em troca, o frade liberta Manuel Velho: “É um negócio. Diga-me o pai onde está o vaqueiro que entregarei nhã Mariquinha” apelido de Maria (RE, p. 57). E assim acontece. Maria fica em poder de Frei Simão e Justina se encontra com Manuel Velho (RE, p. 58). Este fica furioso ao saber da catástrofe nas Porteiras e, mais ainda, em saber que Maria e dona Clemência estavam em poder dos sebastianistas. Seu ódio foi tamanho que ele tentou contra a vida de Justina. Manoel Velho logo compreendeu que de nada lhe valia dar fim à vida de Justina. Para ele era mais importante elaborar um plano para salvar dona Clêmencia e Maria; para isso, sabia que precisava contar com o auxílio da mucama Justina. Tal qual fez Pe. Correia com João Antônio, Manoel Velho pede a Justina que expie seus pecados, conduzindo-o à Pedra do Reino. Embora relute em conduzir Manuel Velho à Pedra do Reino, Justina resolve fazê-lo, a fim de se redimir com o vaqueiro. Como já dissemos, a intenção do vaqueiro era resgatar Maria e dona Clemência. Justina e Manoel Velho chegam à Pedra do Reino. Não entram no arraial, mas se põem em um local onde é possível observar tudo o que se passa lá dentro. Segundo o narrador, Manuel Velho se impressiona com o que vê. No lugar havia cadáveres de vários animais misturados a 117 Em O Reino Encantado, Dom Sebastião recebe as seguintes designações: Santidade, Encoberto, Rei. 158 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 cadáveres humanos. Muito sangue espalhado pelo chão. E tudo isso exalava um mau cheiro insuportável. Ante essas e outras cenas, o narrador dá uma ideia das sensações do vaqueiro. Automaticamente deixou-se Manuel conduzir-se até a entrada do arraial, como dominado pelas mesmas sensações que experimenta um indivíduo deslocado de repente de onde vivia, para ser atirado no meio de um país completamente diverso do seu, onde a fantasia cria sonhos infernais. O passado varreu-se-lhe da memória, e só depois de mais ou menos prolongado espasmo, coordenaram-se as suas idéias e permitiram-lhe pensar. Foi então que o vaqueiro pôde melhor observar o que era em realidade o covil dos quilombolas (RE, p. 61). Manoel Velho observou que entre os sebastianistas havia muitos negros fugidos das fazendas Porteiras e Pau Ferro, de propriedade de Bernardo Vasconcelos. Mas nada comentou sobre isso com Justina, que ficou de seu lado durante o tempo em que o vaqueiro observou o povoamento construído em torno de Pedra do Reino. Justina tentou convencê-lo a crer em D. Sebastião e a participar dos rituais que eram praticados ali. Mas os objetivos de Manuel Velho eram outros. Depois de algum tempo, em que ambos espreitavam o arraial, começou uma terrível tempestade e um raio atingiu Justina. Ao ver que Justina estava desacordada, muito doente, Manoel Velho vai buscar socorro. O vaqueiro bateu à primeira porta que encontrou: a de uma cabana de palha, localizada não muito distante de onde eles estavam. Quem os recebeu foi Josefa, a dona da casa, que imediatamente auxiliou Manoel Velho nos cuidados para que a saúde de Justina se restabelecesse. 3.1.10. Josefa e Manoel Velho Josefa, conforme já dissemos nesse resumo, era a ex-esposa de João Ferreira e irmã de João Antônio e Pedro Antônio. Apesar da ligação afetiva e consanguínea com os líderes do movimento messiânico, havia sido escorraçada do arraial de Pedra do Reino e excomungada da crença em D. Sebastião. Josefa tornou-se persona non grata a partir do momento em que não aceitou as traições do marido. Conta o narrador que, em Pedra do Reino, “o chefe dos quilombolas exercia entre os seus o mesmo célebre direito de colher as primícias do noivado de que gozava os senhores feudais na Idade Média” (RE, p. 66). Ou seja, João Ferreira esposava as mulheres do arraial, depois de cerimônias de casamentos celebradas por Frei Simão. A ex-rainha não se conformou com a deslealdade do marido e, como revide, começou a fazer campanha contra João Ferreira e Frei Simão, no interior do arraial. Segundo o narrador, por essa causa, João Ferreira excomungou Josefa, “proibiu [aos sebastianistas - grifo nosso] toda a comunicação com 159 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 a excomungada, e declarou que todo aquele que infringisse este preceito seria vítima irremissível dos dragões destinados à destruição dos maus” (RE, p. 93)118. Justina despertou do desmaio e logo se desesperou porque, ao abrir os olhos, viu que estava deitada na casa de Josefa e diante da ex-rainha. Temeu ser excomungada e, por isso, implorou a Manoel Velho que saíssem imediatamente dali. O vaqueiro acalmou Justina. Convenceu-a de que, estando em casa de Josefa, ele estaria a salvo e a mucama poderia ir à Pedra do Reino fazer companhia e proteger Maria. Manoel Velho tinha suas razões para proferir essas palavras. Enquanto Justina permaneceu desacordada, Manoel Velho ouviu as longas histórias de Josefa sobre João Ferreira e a Pedra do Reino. Pelas mágoas que guardava do ex-marido, logo identificou que Josefa seria uma importante aliada no seu conhecido plano de resgatar Maria e dona Clemência das mãos dos sebastianistas. Justina obedeceu a Manoel Velho. Daquele momento em diante até o fim do romance, Justina permaneceu numa das tendas de Pedra do Reino, ao lado de Maria, protegendo-a. 3.1.11. O pacto dos desiguais contra um inimigo comum O vaqueiro ficou em companhia de Josefa. Algum tempo depois, Tibúrcio e Pedro Antônio chegam à casa da ex-rainha e contam a ela que romperam com Frei Simão e João Ferreira. Ambos se sentiram traídos por julgar que Frei Simão havia se aproveitado da força física e da capacidade dos dois de liderar os negros na invasão da fazenda das Porteiras, mas que, no exato momento do rapto de Maria, havia tomado a menina apenas para si, sem permitir, sequer, que eles a vissem. Tibúrcio e Pedro Antônio não sabiam que tinha sido Justina quem, na verdade, sequestrou Maria. Josefa esperou que a raiva dos dois homens diminuísse para lhes propor um pacto. No entendimento de Josefa, todos ali deveriam se aliar e tomar o poder de João Ferreira e Frei Simão. Ela antevia, no entanto, que eles não aceitariam que Manoel Velho integrasse o pacto, dada a conhecida fidelidade que o vaqueiro devotava a Bernardo Vasconcelos e família, situação frontalmente oposta aos interesses de Tibúrcio. Ainda assim, Josefa conseguiu convencê-los da importância de Manoel Velho para o êxito do pacto. Quando foi expulsa de Pedra do Reino, Josefa deixou o arraial prometendo revanche: “Ah! João Ferreira... tenho desejo de trincar-te o coração... Deixas-me estar aqui, porque tens medo... não é assim?.. Não hás de viver com vinte e trinta mulheres, sem vergonha, descarado, infame, abandonado aquela que recebeste à face da igreja! (RE, p. 67). 118 160 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 O narrador explicita o pensamento de Tibúrcio e Pedro Antônio, ao aceitar, ainda que a contragosto, a aliança com o vaqueiro: “melhor alvitre, portanto, seria conspirarem sem reservas contra o inimigo comum, e aguardarem o desfecho da tragédia para então entenderem-se mais em particular do ponto em diante em que seus desejos divergissem” (RE, p. 103). O narrador complementa expondo o pensamento de Manoel Velho sobre o mesmo pacto: “Auxiliado por uma perspicácia admirável, o vaqueiro percebeu tudo o que se passava na cabeça dos dois tratantes, e mentalmente acedeu à proposta” (RE, p. 103). As considerações do narrador revelam que as personagens tinham “um inimigo comum”, mas interesses particulares. A saber: Josefa desejava reaver o marido, ainda que ele estivesse morto; Tibúrcio, possuir Maria; Pedro Antônio queria tornar-se rei de Pedra do Reino e confiscar as riquezas que julgava estar sob a guarda de João Ferreira e Frei Simão; por último, Manoel Velho esperava resgatar Maria e dona Clemência e devolvê-las a Bernardo Vasconcelos. Josefa foi a primeira a ver seus objetivos pessoais realizados, mas somente com a leitura do romance o leitor saberá como ela atingiu sua meta. Do mesmo modo, Pedro Antônio depôs João Ferreira do trono e foi coroado rei de Pedra do Reino; e só aguardava o momento certo, para se apossar dos tesouros do reino e escapar dali. Enquanto isso tudo se passava, os expedicionários avançavam rumo à Pedra do Reino. 3.1.12. A expedição chega à Pedra do Reino: a luta entre potentados e sebastianistas A expedição liderada por Bernardo Vasconcelos irrompeu no centro do arraial. A primeira reação de Frei Simão foi achar que os expedicionários eram o “exército do grande reino”. Sobre isso, diz o narrador: A súbita aparição dos expedicionários (...) atordoou o mandingueiro [Frei Simão ] a ponto de fazê-lo acreditar que um milagre se operava, e que o Encoberto vinha em seu socorro. Esta ilusão foi tanto mais duradoura quanto a fumaça e a sua cegueira não lhe permitiam reconhecer a natureza dos recém-chegados. E como poderia ele supor que fossem inimigos, quando saíram precisamente do lugar onde, segundo a profecia, deviam ressurgir os exércitos do grande reino? (RE, p. 149). De igual maneira pensaram os escravos. De pronto, eles julgaram que a expedição representava “os dragões preditos pelo profeta deposto [João Ferreira] que vinham vingá-lo, talvez (...) instintivamente curvaram os joelhos e bradaram por misericórdia” (RE, p. 148). Quando a poeira assentou, é que foram capazes de reconhecer o engano e antever seu fim. Demos aqui voz ao narrador para compreendermos a reação dos escravos, ao reconhecer os componentes da tropa: 161 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Isto, porém, passou-lhes como uma nuvem, porque mal dissipou-se a fumaça, reconheceram o engano. Eram homens; nada tinham de demônios, nem de anjos exterminadores. À frente deles, vinha Vasconcelos, vinha o senhor, o fazendeiro de Porteiras, acompanhado de uma autoridade policial que bem conheciam. Seguiam-no soldados paisanos de Serra Talhada. Não restava, pois, a mínima dúvida do fim que os trazia ali. Eles, os escravos fugidos, rebeldes, assassinos, iam ser presos, trucidados, garroteados, arrastados ao tronco. Era impossível iludirem-se mais sobre o futuro que os aguardava (RE, p. 148). Diante da constatação, os escravos decidiram lutar até a morte, para não serem reconduzidos ao cativeiro. Conta-nos o narrador: Voltar ao cativeiro para sofrerem castigos indizíveis é que nunca suportariam. Perdidas, portanto, as últimas esperanças do desencantamento só o que lhes restava era derramarem a última gota de sangue por sua liberdade. Este movimento instinto acendeu toda a ferocidade bravia que o peso da superstição lhes tirará. O ódio contra o que eles chamavam de verdugo reviveu de uma maneira terrível e açulou o vigor amortecido de suas almas selvagens para impeli-los sobre a turba que se lhes mostrava com todas as cores negras da vida das senzalas (RE, p. 149). Para não voltar ao cativeiro, resolveram contra-atacar os expedicionários. Mas a luta era muito desigual. “A superioridade dos meios de destruição de que dispunham os expedicionários, deu-lhes logo vencimento de causa” (RE, p. 150). E, conforme atesta o narrador, o “ardor da gente de Vasconcelos era irresistível. Aquela onda de carne humana a fluir e refluir animada pelo instinto de conservação, afinal, estourou e os fanáticos desdobrando-se em sentido inverso buscaram asilo aonde pudessem escapar às armas inexoráveis” (RE, p. 149). O narrador conta que coube a Manuel Pereira e a um de seus irmãos a luta contra os “negros de Porteiras”: O major Manuel Pereira, por seu lado, e seu irmão 119, reagindo contra a fúria dos escravos, apertaram-nos em um círculo de fogo e, acutilando [golpear- Grifo nosso] os mais audazes, levando a coice das armas os inermes, que em desespero escarniçavam-se (SIC) na resistência como um bando de cães danados, colocaram-os em breve em termos de mais nada poderem fazer. Apertados sobre a aresta do precipício até onde tinham recuado, muitos preferiam despenhar-se no abismo a se entregarem; os que escaparam, sem forças para se oporem a vontade do mais forte, sujeitaram-se à sorte dos vencidos e, em um momento amarrados, foram reduzidos à impotência. (RE, p. 150). O narrador não nomeia o irmão de Manuel Pereira da Silva. No entanto, na historiografia sobre a Pedra do Reino, afirma-se que três irmãos de Manuel Pereira da Silva integraram a expedição à Pedra do Reino: Simplício Pereira da Silva, conhecido pelo seu destemor e agressividade, além de Alexandre e Cipriano Pereira da Silva, esses dois últimos, mortos no ataque aos sebastianistas de Pedra do Reino. Cf. o subtítulo 3.7. Ulisses Lins em O sertanejo e o sertão (1957), do primeiro capítulo desta tese. 119 162 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Depois que todos os sebastianistas são mortos ou rendidos, o narrador realça que “tudo isto se passou mais rápido do que descrevemos”. Em lugar de receber as esperadas riquezas do reino encantado de D. Sebastião, os crentes no breve retorno do jovem monarca português são vítimas de um massacre. O narrador ainda afirma que os sebastianistas sobreviventes “foram postos à disposição das autoridades judiciárias de Flores” (RE, p. 154). Três meses depois, Pe. Correia retornou à Pedra do Reino para sepultar os mortos e, no local, ergueu um cruzeiro. E Clemência? E Maria? O que lhes aconteceu? Clemência, que estava protegida na casa de Josefa, foi encontrada logo que os expedicionários chegaram ao arraial. Quanto à Maria, a chegada da expedição coincide também com um momento crucial de sua vida. A filha de Vasconcelos estava na tenda, aos cuidados da mucama Justina, quando Tibúrcio invadiu o local. Uma fração de segundo depois, Manoel Velho também chega à mesma tenda e num ato heróico consegue livrar Maria dos domínios de Tibúrcio, assassina-o e, tomando Maria em seus braços, entrega-a sã e salva a Bernardo Vasconcelos. 3.2. História, ciência e observação na composição de O Reino Encantado A leitura do resumo do romance permite observar que, na tessitura de O Reino Encantado, Araripe Jr. simultaneamente reatualiza a história da Pedra do Reino a partir do que ele designa de “crônica sebastianista”. O subtítulo indica que ele adotaria uma obra baseada em um evento histórico localizado, mas ao mesmo tempo romanceado segundo paradigmas literários disponíveis na época, quais sejam o romântico e o naturalista. De modo que, na impossibilidade de observar diretamente a trama do evento referido, confere a comunidade de Pedra do Reino um status de quilombo, narrando uma épica negra em confronto com uma memória histórica vencedora, composta e sancionada pelos brancos. Desse ponto de partida, serve-se Araripe Jr. no intuito de propor uma reflexão acerca do problema racial brasileiro, seus impasses e seus horizontes; bem como dialoga sobre outras questões centrais do momento, a exemplo da emergência da nação, e de como deveria ser concebido o campo literário nacional. Para tanto, nosso romancista se utiliza de três referentes para tecer O Reino Encantado. Primeiro, evoca o candente debate em torno dos pares realidade X imaginação e idealização X observação, debate que mobilizou o melhor da crítica literária sobre a passagem do romantismo para o realismo/naturalismo. Veremos como este episódio teve especial repercussão com a 163 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 publicação das Cartas a Cincinato, já aludidas no capítulo anterior, nas quais Franklin Távora critica José de Alencar. Segundo, Araripe Jr. retoma as memórias de Antonio Áttico de Souza Leite para recompor a história de Pedra do Reino e, terceiro, o autor busca suporte teórico científico europeu, sobretudo em Hippolyte Taine ao qual recorre para desenvolver suas premissas de raça, meio e tempo ou contexto histórico, no sentido de dar voz aos sebastianistas, repercutindo seu universo de crenças, sofrimentos e esperanças, bem como as representações da comunidade quilombola. Somadas a essas premissas taineanas, Araripe Jr. compõe as personagens sebastianistas por meio de uma linguagem médico-psiquiátrica, desenvolvida por Cesare Lombroso, segundo a qual toda prática criminosa era consequência de uma condição biológica. Ou seja, havia indivíduos “naturalmente” predispostos ao crime. Passaremos a examinar cada um destes aspectos. 3.2.1. Imaginação e Observação O primeiro aspecto trata dos debates em torno dos pares realidade X imaginação e observação X idealização. O momento é de encantamento x desencantamento, embates entre o velho e novo, se bem que nem sempre seja possível distingui-los assim tão facilmente. Conforme Martins, episódio marcante foram as Cartas a Cincinato, de Franklin Távora, consideradas pela historiografia literária como um marco inicial do declínio do romantismo no Brasil. Retomamos aqui alguns aspectos expostos nestas cartas, justificando que, embora as mesmas tenham sido publicadas por Franklin Távora e direcionadas criticamente a José de Alencar, foram elas um divisor de águas no fazer literário dos nossos homens de letras. As discussões em torno desses documentos mobilizaram a inteligência brasileira que passou a questionar o status quo da escola romântica em confronto com valores estéticos do naturalismo. Por isso, as discussões em torno das Cartas nos auxiliam a recompor a posição de Araripe Jr. neste tipo de debate e, mais ainda, esclarecem sobre a composição do romance O Reino Encantado. O que se critica e o que se propõe sobre o papel da “observação” e da “imaginação” no trabalho do romancista? Esta questão remete para a forma de compreensão do real, bem como remete para as formas de representações do mesmo. Aspectos relativos aos conceitos de “originalidade” e “genialidade” então consagrados ao artista romântico, serão severamente questionados. 164 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Voltando os olhos para as Cartas a Cincinato, o que vemos não é tanto o repúdio absoluto à natureza da imaginação, categoria estética inquestionavelmente aplicada no interior tanto dos processos românticos como dos realistas. A negação direciona-se para o preceito romântico segundo o qual o artista poderia e deveria criar sua arte, seu mundo literário, suas representações do real apenas confiando em sua própria capacidade de imaginar, fantasiar e, portanto, desvinculando-se do referente histórico ou literário ao seu redor. Assim, para Távora, a imaginação solta, o impulso criador individual e isolado não teria sentido. Ao contrário, para ele, os mecanismos de criação literária e artística deveriam seguir os padrões da imitação perfeita, do belo reproduzido, da fidelidade ao real. Imitar a natureza, mas também refazê-la com o auxílio da observação: "Logo, a natureza em primeiro lugar, e depois, complexa e completa observação – eis os dois elementos, as duas possantes asas do gênio”. (TÁVORA, 1872, p. 147). Agrega-se a esta fórmula a noção de verossimilhança uma vez que, ainda segundo Távora, esta seria o mecanismo de conformidade à realidade externa ou à informação histórica. É certo que Araripe Jr. saiu em defesa de José de Alencar no auge dos debates acerca das Cartas a Cincinato. Contudo, devemos notar que o autor de O Reino Encantado, diante das polêmicas, manifestou profunda divergência apenas frente às acusações de que Alencar não utilizava a norma culta da língua portuguesa na composição de seus romances. Não consta que o mesmo houvesse replicado as críticas de Franklin Távora, especialmente no que tange os aspectos formais da composição do romance. Fato que nos leva a acreditar que Araripe Jr. concordava com Távora, pelo menos nos lineamentos centrais de sua crítica, que era o problema da “imaginação” em confronto com o da “observação”. Nesse ponto, uma das explicações possíveis é que Araripe Jr. mostrava-se influenciado pela seguinte concepção de romance de Taine: “O romance não é um mero jogo de imaginação, capricho isolado a partir de uma cabeça quente, mas uma cópia dos costumes em torno do sinal e um estado de espírito” (TAINE, 1863, p. 01). Fiel a esta concepção, Araripe Jr. vai buscar em Antonio Áttico de Souza Leite o material para o seu romance. 3.2.2. Fanatismo religioso, de Souza Leite: a fonte histórica Há uma estreita relação entre as representações da história da Pedra do Reino em O Reino Encantado e o memorial de Souza Leite. Este aspecto nos leva ao seguinte questionamento: Por que Araripe Jr. reproduziu parte do memorial de Leite em seu romance? Que tipo de vinculação estabeleceu entre as duas narrativas? Nossa hipótese é que Araripe Jr. compreendeu que o 165 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 memorial de Leite era um documento expressivo acerca da “verdade histórica”. Afinal, esta busca pelo estabelecimento da verdade assume um caráter de missão nas obras de alguns escritores brasileiros, a partir da década de 1870. Ao que tudo indica, Araripe Jr. adotou essa maneira de representar a história de Pedra do Reino porque se alinhava aos ideais positivistas e seu corolário, questões amplamente discutidas entre os membros da Academia Francesa do Ceará, da qual Araripe Jr. fazia parte. Nesse período, a reflexão literária adotou a ideologia como aporte, especialmente a ideologia positivista. Araripe Jr., por exemplo, referia-se a “soberania do povo” num esforço por incluir este segmento social na reflexão literária. Temos, assim, um caso de solução estética que em absoluto não representava as reais condições de exclusão social da maioria das populações do Brasil. Analisando esse processo de construção literária, Cara afirma que “o instrumental teóricopositivista, no intuito de organizar uma sociedade democrática, aliando preocupações místicas e fé na ciência, ajudou a encapar a tosca realidade brasileira: de um modo geral, a utilização de um modelo sempre traz a ilusão de domínio do objeto” (CARA, 1995, p. 67). A este impasse referia-se Araripe Jr. na sua obra Silvio Romero polemista, na qual vaticina sobre os efeitos “entorpecentes” da ideologia positivista: “ O positivismo, como todos sabem, extinguiu todas as dúvidas e vacilações do espírito humano, fechou o inquérito às curiosidades do pensamento, deu solução a todas as questões e fez a alma ascender para regiões inacessíveis ao vulgo profano e vertiginosas para os espíritos intolerantes” (ARARIPE JR., 1900, p. 369). A literatura de fins de século XIX e início do século XX era vista como instância encarregada de documentar e/ou descrever o real. Conforme anota Mônica Veloso, a tradição brasileira de valorizar a literatura documental é de herança positivista que, em linhas gerais, concebia o fazer literário como apêndice ou epifenômeno da sociedade. Portanto, o fazer literário em voga perpassava necessariamente pela tarefa de se “debruçar sobre um objeto exterior, (...) dissecando-o e analisando-o como se fora um fato pronto a ser decodificado. (...) A realidade social era concebida como um fato a ser examinado pelas lentes da ciência” (VELOSO, 1988, p. 241). Isso posto, a obra Fanatismo religioso era a base adequada para se construir um romance: primeiro, porque trazia uma história “verídica”, ou seja, um acontecimento histórico. O termo verídico usado por Araripe Jr. remete para veracidade, veraz, ou seja, para aquilo que é considerado verdadeiro. Podemos aceitar isto no sentido de que os eventos históricos apreendidos por Araripe Jr. tenham realmente acontecido. Porém, é necessário ressaltar que a apreensão desse evento a posteriori é sempre muito problemática e, conforme já indicamos nos 166 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 capítulos anteriores ao apresentar os conceitos de monumento e documento, de autoria de Jacques Le Goff, um evento “verídico” não necessariamente aconteceu tal como narrado e/ou representado posteriormente. Em nosso entender não há dúvida que se trata de uma versão vencedora, permeada de lacunas e silêncios, constitutiva de uma violência oficial, mas também simbólica. Ademais, a história contada por Antônio Áttico de Sousa Leite trazia em seu bojo ingredientes necessários para discutir as questões em voga no contexto do decadente império brasileiro. Para citar apenas dois exemplos, a obra Fanatismo religioso discutia questões de religião, tema em destaque na década de 1870 no Brasil, conforme vimos no capítulo anterior. Cabe destacar que Souza Leite apresenta o sincretismo que orientava as práticas religiosas dos sebastianistas, de matriz concomitantemente católica e oficial, somada à de origem africana e indígena. Outro aspecto da obra de Antônio Áttico de Souza Leite em voga no Brasil, no período de composição de O Reino Encantado, é a questão racial. Não é demais lembrar que as aspirações da comunidade sebástica de Pedra do Reino perpassavam pela mudança de raça. Era desejo de todos serem “alvos como a lua”, condição primordial para, no contexto brasileiro de então, entre outros benefícios, ascender ao poder. Esses dois aspectos da obra Fanatismo religioso permitiram ao romancista Araripe Jr. utilizar O Reino Encantado para ampliar a discussão para temas corolários, carregados de tensões e atuais nos últimos 30 anos do século XIX, como atraso X civilização, escravidão X abolição, entre outros. Não há como negar as ressalvas que o crítico Araripe Jr. anotou ao influxo das teorias européias cientificistas, sua passiva e servil recepção em terras brasileiras. Por outro lado, no campo da ficção, como autor do romance O Reino Encantado,ele experimentou os regulamentos do positivismo sem os mesmos rigores do seu fazer crítico. Outras duas situações corroboram o compromisso positivista com a “verdade”. Uma no campo da ficção no qual, ao longo do romance, o narrador assegura ao leitor que está contando uma história verídica. “A noite se apresentou enevoada e feia; e não menos carregados que a natureza se mostrava os semblantes dos vários personagens desta muito verídica história” (RE, 130). E na última página do romance reafirma: “É possível que um dia nós resolvamos a relatar a sorte vária que tiveram alguns dos personagens desta verídica história” (RE, 155). A outra situação de compromisso com o “real” acontece também no campo da autoria, em que emerge o homem e intelectual Araripe Jr. Embora ele tenha produzido uma obra inquestionavelmente literária, é certo que incorpora em O Reino Encantado aspectos da ciência histórica. Tanto que buscou reconhecimento ante o IHGB, instituição responsável por oficializar a reflexão historiográfica. Diante disso resta a questão: por que Araripe Jr. escolheu O Reino 167 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Encantadopara apresentar e justificar à comissão de história do IHGB sua proposta de sócio para aquele instituto? Não há uma resposta definitiva para esta indagação. Entretanto, os compromissos do nosso autor com a filosofia positivista, herdeira de Taine e de Comte, desaguavam necessariamente nesta visão do social, sobretudo na ânsia de caracterizar o real e no interior deste localizar e propagar o núcleo de verdade. É a missão do literato em busca de uma pedagogia histórico-social, transmitida pelas páginas do romance. É o que deixa entrever o parecer da Comissão de História do IHGB que, em 1893, emitiu parecer favorável ao ingresso de Araripe Jr. como sócio daquela instituição. Assinaram o documento o Barão de Capanema, o Dr. César Augusto Marques, Dr. João Severiano da Fonseca e Augusto Victorino A. Sacramento Blake, sendo relator o primeiro deles. Para abonar a admissão de Araripe Jr. no Instituto, a comissão louva Araripe Jr. pelas contribuições que o postulante deu ao instruir o público sobre a história pátria por meio do romance O Reino Encantado. A comissão anota ainda que, ao atribuir função pedagógica ao romance, Araripe Jr. tanto segue um modelo da literatura praticada em “países cultos”, como também o faz por um caminho mais ameno, opção que atrai um número maior de leitores. De há muito que em todos os países cultos busca-se propagar os conhecimentos históricos e geográficos por meio do Romance que com forma mais amena atrai a atenção dos leitores e destrói a aridez própria dos estudos dessa ordem.O senhor Dr. Araripe Jr. veio colocar-se ao lado desses escritores e em boa hora o fez, pois escreveu o Reino Encantado onde nos conta as cenas sanguinolentas que em Pernambuco, com grande ofensa dos seus créditos representou o mais desenfreado fanatismo religioso, fazendo-se muitas vítimas, gastando-se muito dinheiro da fazenda pública, arruinandose muitas fortunas, cansando-se o exército e até indo a esses lugares um venerando sacerdote que foi nosso consórcio.120 O parecer da Comissão de História talvez tenha, equivocadamente, conferido a O Reino Encantado o status de romance histórico. E é possível que tenha balizado o parecer em orientações como as de Dutra e Mello de que o romance histórico pode achar voga entre nós [brasileiros]; [pois] tem uma actualidade que não deve desprezar. As investigações históricas a que deve proceder quiçá trarão luz sobre alguns pontos obscuros que homens devotados à história do paiz buscam hoje elucidar; pode tornar-se de envolta moralizador e poético se bem cair no preceito – Omne tulit punctun qui miscuit utile dulci”121 (DUTRA E MELLO, 1844, p. 746-751 – grifo nosso). Por fim, a atitude positivista de compor um romance que se pautasse na “verdade dos fatos” se traduz ainda no subtítulo da obra: O Reino Encantado: crônica sebastianista. A acepção da Cf. Documentos do Arquivo do IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pasta 37. Lata 51 D A expressão em latim é de Horácio, significa deleitar e instruir o leitor. Conferir: HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa: Livraria Clássica Editora, s.d., p. 106-107. 168 120 121 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 palavra crônica era análoga à definição de História. No dicionário de Antônio Silva Moraes (1755-1824, p. 350), crônica é “história escrita conforme a ordem dos tempos, referindo-se a eles as coisas que se narram”. Já o historiógrafo é “cronista”, “cronógrafo”(682); ao passo que cronista é aquele “que escreve crônica”122. Conforme ensina Massaud Moisés, o “vocábulo crônica mudou de sentido ao longo dos séculos” (MOISÉS, 1999, p. 131-2). No início da era cristã, designava uma lista ou relação de fatos acontecidos, ordenados conforme a sequência linear do tempo, “sem aprofundar-lhe as causas ou dar-lhes qualquer explicação”. Por volta do século XII, “acercou-se francamente do pólo histórico o que determinou uma distinção: as obras que narravam os acontecimentos com abundância de pormenores e algo de exegese, ou situavamse numa perspectiva individual da História, recebiam o tradicional apelativo “crônica”. A título de exemplo Moisés coloca as obras de Fernão Lopes, escritas no séc. XIV. Ainda conforme Massaud Moisés, somente no Renascimento o termo crônica começou a ser substituído por História. Seja como for, ainda é na sua interface com a História que o termo “crônica” é utilizado como subtítulo de O Reino Encantado. Elaborar um romance seguindo as premissas positivistas significava, pois, experimentar um tipo de escrita que não mais se baseava na intuição e no subjetivismo, tão caros ao Romantismo. Mas pautar-se por critérios mais consentâneos. Veremos agora o terceiro aspecto que é a relação de Araripe Jr. com a concepção social de Taine acerca do tripé meio, raça e momento. 3.2.3. Meio, raça e momento “Explicações”. Este é o título do capítulo IX de Reino Encantado, no qual Araripe Jr., por meio do narrador, esboça breve, mas solidamente a sua concepção de sociedade, de verdade, enfim, do fenômeno registrado em Pedra do Reino. Naturalmente, não é o único. Ocorre que se torna necessário comentá-lo. Para ser exato, de modo franco, vê-se ali apenas a página inicial em que o autor/narrador expõe de modo direto suas influências cientificistas. Assim por exemplo, afirma que “um fenômeno todo patológico se passava em Pedra Bonita. Só assim teriam explicado tais aberrações do espírito humano” (RE, p. 85). O fenômeno, portanto, caracterizaria um quadro coletivo patológico, uma aberração, uma doença. Descrição que se ajusta à definição do João Ferreira como um “epiléptico” com todas as consequências que esta “doença” acarreta, segundo o discurso médico científico da época. É SILVA, Antônio de Morais Silva. Diccionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Antônio Morais Silva, natural do Rio de Janeiro. (Vol. 1 A-K), p. 350 e 682. 169 122 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 certo que o narrador relativiza estes aspectos ao dizer que os adeptos do falso rei eram criaturas “broncas, sem instrução”. Mas, não será a epilepsia nem exatamente a falta de educação escolar os fatores centrais capazes de explicar as manifestações violentas naquela comunidade sertaneja. O “desvairamento” somente poderia ser provocado por “causas em grande parte físicas e capazes de perturbar as funções ordinárias do cérebro” (RE, p. 85). É que o cérebro perturbado, segundo o narrador, seria capaz de causar estranhas anomalias, inclusive a de entorpecer a verdade. Morbidez, contágio, despotismo, tudo agindo sob influências de disfunções cerebrais, levando aquela gente a aceitar “tão estupendos absurdos como verdade” (RE, p. 85). O diagnóstico que se segue é enfático. Tratava-se de uma espécie de “loucura epidêmica”. Porém, a loucura presenciada em Pedra do Reino teria condicionantes mais sólidos, talvez irremovíveis, determinantes da ação, bem assim da reação humana em seu meio sócio-geográfico. Para Araripe Jr., este condicionante poderoso seria o clima dos trópicos: “Não são raros fatos, semelhantes aos de Pedra Bonita e muito menos impossíveis em um clima tórrido, equatorial, onde a muita luz e a intensidade do calor produzem a irritação do sistema nervoso e na formação dos temperamentos propendem sempre para a exageração das funções mentais” (RE, p. 85). Eis aí toda importância que se concebe ao clima, ao meio de modo geral, na explicação de fenômenos sociais. O clima tanto quanto o meio explicariam as loucuras, as violências desmedidas, o fanatismo, o isolamento social. Entretanto, como bem escreve o narrador, estas manifestações atingem impiedosamente indivíduos submetidos à exploração do seu corpo e do seu trabalho. É o “pobre sertanejo”. É o “escravo oprimido”. É o “mísero lavrador”, todos expostos a “desvairamentos”, carentes de uma “crença sólida”. Novos horizontes viriam com a ciência, portadora desta crença sólida. Já vimos em outra parte desta tese qual seria esta base científica redentora. Agora, devemos verificar particularmente que tipo de influência levava o autor a assumir o determinismo geográfico. Primeiro, devemos esclarecer que no século XIX esta e outras formas de determinismo não eram estranhas, ao contrário, compunham o repertório intelectual nas universidades, instituições científicas e mesmo no seio da sociedade. Também não era exatamente um produto do século XIX. Ora, a compreensão da influência do meio – não apenas o clima, mas o relevo, o terreno, as formas da natureza, a base geográfica, enfim - sobre o comportamento humano vem de longa data123. Hipócrates, século V a.C, por exemplo, em seu Tratado dos ares, das águas e dos lugares distinguia os homens segundo a região em que viviam. Os habitantes de altitudes “onde sopra o vento e a água é abundante – são eles de alta estatura, doces e bravos e os habitantes das regiões descobertas e sem água, onde o clima está sujeito a bruscas 170 123 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 A França tanto quanto a Alemanha do século XIX criaram e expandiram poderosas escolas representantes do determinismo geográfico, nomeado enquanto uma “geografia humana”, ou uma “geografia histórica”, conceitos que mais confundiam que orientavam. Entre os alemães, Karl Ritter e Frederico Ratzel fundariam uma vigorosa escola “antropogeográfica”. Na França, Vidal de Le Blache igualmente produziu seguidores. Conforme Glenisson, com os estudos destes naturalistas, que foram também historiadores e jornalistas, “acentuaram-se as relações estreitas entre a ‘raça’ e o ‘meio’. O que um não explicava, tinha no outro a sua razão de ser” (GLENISSON, 1979, p. 67). Esta, portanto, é o assento sobre o qual repousa, não de modo tranquilo, o pensamento de Araripe Jr., na base teórica de O Reino Encantado. Os franceses de modo mais decisivo. Jules Michelet, por exemplo, afirmava que “sem uma forte base geográfica, o povo, o ator histórico, parece andar no ar, como nas pinturas chinesas em que não existe o chão. (...) E este solo não é apenas o teatro da ação. Pela alimentação, pelo clima, influi ele de uma centena de formas...”. Todavia, pensamos que em Michelet o cerne de suas indagações históricas não era propriamente o “chão”, o meio geográfico, mas sim o povo, as raízes populares da França em busca da identidade nacional. Neste ponto, as influências de Araripe Jr. são visíveis. A sua fabulação de Pedra do Reino, enquanto uma épica quilombola, muito informa sobre as buscas das raízes nacionais e toda uma discussão sobre o caráter do povo brasileiro. Por outro lado, é menos evidente a influência de Michelet sobre o autor cearense. Devemos buscar em Taine os traços mais influentes. Não tão expressivo e talentoso como Michelet, Taine escreverá linhas exprobatórias sobre a revolução francesa, sobre Robespierre especialmente124. Aspirava ele a elevar a história ao nível das ciências naturais: “permitir-se-á ao historiador comportar-se como um naturalista; eu estava diante do meu objeto de estudos como se estivesse diante da metamorfose de um inseto” (TAINE, 1863). Para além desta metáfora que indica a passagem de um ser inferior para um de estágio superior, uma espécie de darwinismo social, Taine organiza seu pensamento a partir da articulação do meio, da raça e do momento. Segundo Nelson Werneck Sodré, Taine foi precursor na tarefa de emancipar os estudos literários dos puros critérios individuais: “em resumo, Taine condicionava a manifestação literária ao meio, e conferia, na apreciação deste, um coeficiente muito importante ao fator clima; conferia igual importância, ainda, ao fator raça” (SODRÉ, 1984, p. 63). Dessa forma, meio e raça seriam os vetores principais na explicação da manifestação literária, condicionando-a. modificações – preferencialmente louros, nervosos, secos, arrogantes e indóceis”. Cf. GLENISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 3. ed. Difel: São Paulo – Rio de Janeiro, 1979, p. 64-65. 124 Cf. CAIRE-JABINET, Marie-Paule. Introdução à historiografia. Bauru: São Paulo, EDUSC, 2003, p. 98. 171 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 De fato, o meio, o ambiente, o território seriam definitivos na caracterização das raças. Opondo os povos germânicos e os povos latinos, Taine vislumbra diferenças marcantes e indeléveis entre eles: os germânicos devido ao clima frio, as vegetações densas, ao regime de pântanos seriam tristes, violentos, carnívoros, dados a embriagues; os latinos, bem como os helênicos porque submetidos a um ambiente recoberto de campos, na presença dos mares desenvolveram a arte da navegação e do comércio, as formas políticas mais acuradas, a abertura e o apego para desenvolver a fala, a invenção, a ciência, a literatura. Embora Araripe Júnior considere seriamente estes princípios do raciocínio determinista e os aceite como premissa geral, o que vemos dos seus escritos é um esforço impressionante na tentativa de atenuar tão severas sentenças. Daí o seu conceito de obnubilação brasílica: “Consiste este fenômeno na transformação por que passavam os colonos atravessando o Oceano Atlântico, e na sua posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo” (ARARIPE JR., 1960, p. 407). A inversão aqui anotada é no sentido da adaptação humana ao meio em que vive. Ora, podemos entender o termo adaptação de várias formas. Tanto podia significar a aceitação do entorno como algo inevitável, como poderia ser uma postura e uma prática criadoras diante dos desafios naturais. Esta segunda hipótese parece mais aceitável. Finalmente, podemos dizer que o determinismo esposado por Araripe Júnior representou uma influência marcante do seu tempo, indicando os influxos sofridos pela intelectualidade brasileira diante da inteligência europeia. Não obstante, não se esquivou de rejeitar aquilo que lhe parecia mais obtuso, irreal, quando confrontado com a nossa formação histórica e cultural. Diferentemente do seu contemporâneo, o crítico literário Sílvio Romero, que se apegou com notável veemência a concepção racial, tornando-se praticamente cético quanto às positividades do processo histórico brasileiro, Araripe Jr., ao contrário, entendia que se os fatores geográficos e raciais eram inevitáveis, não seriam necessariamente irredutíveis. É o que passamos a assinalar, confrontando com as representações que Araripe Jr. elabora do sertão, da história de Pedra do Reino e de suas personagens. 3.3. O carro de boi e a locomotiva: Representações do sertão e do litoral Araripe Jr. inicia o romance com o capítulo intitulado “Abre-se o cenário”, no qual apresenta ao leitor o cenário da trama. O romancista representa o ambiente sertanejo apoiado no determinismo mesológico, comparando o litoral X sertão como categorias paralelas à civilização X atraso. Os símbolos utilizados para marcar o litoral “civilizado” em oposição ao sertão “retrógrado” são a locomotiva como meio de transporte, o advento de cidades com alta 172 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado densidade demográfica e o aparecimento da indústria açucareira. É o que se pode depreender do trecho: Já o silvo da locomotiva retine ao longo das praias anunciando a atividade industrial; inúmeras cidades e povoados emergem dos mesmos lugares que serviram de abrigo aos santos piagas; grandes máquinas das oficinas açucareiras gemem sob o esforço do vapor, e imensas mandalas de gado manso tripudiam pelos prados, onde o rude fazendeiro cria o elemento da pública riqueza (RE, p. 03). A narrativa acima fala por si. Evidente o otimismo frente aos vapores do progresso, mas devemos ver que, pela lacuna textual, também é possível ler os limites do pensamento ou os compromissos ideológicos professados ou não. A locomotiva, um dos símbolos da civilização, que deveria ser também um dos símbolos da nação, retine, expande-se, desabriga velhos ídolos indígenas “piagas”, povoa e floresce semeando máquinas, oficinas e riqueza. O que não está dito, entretanto, é que também aliena, oprime, gera novos encantamentos em torno de deuses racionais, técnicos e individuais. Como anunciou Karl Marx (1856, p. 198-299) “todos os nossos inventos e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma força material bruta”. Lastima o narrador como o sertão, daquele momento histórico, em situação diametralmente oposta, ainda não havia sido alcançado pelo progresso. Por isso, o ambiente sertanejo é representado pelo “geral atraso em que relativamente as idéias, jazia a província” que mais se assemelhava a um fragmento do deserto, dada a “pequena população aí espalhada”. Símbolo emblemático é a diferença entre os meios de transporte utilizados em ambas as localidades. No espaço sertanejo de então, mesmo uma família abastada como a do fazendeiro Bernardo Vasconcelos, utilizava o carro de boi como meio condução. A estrada de rodagem que também causava admiração e simbolizava os ventos do progresso não existia naquele sertão recôndito. O que se via eram as sendas/trilhas por onde passavam com dificuldade os carros de boi, puxados pela força imprevisível dos animais aguilhoados pelo ferrão do “mulatinho”, que por sua vez era também fustigado como os escravos na sua faina diária. Sobre estes há a seguinte descrição do narrador. O veículo [o carro de boi] consistia em um desses carros enormes de madeira tosca, que ainda se conservam hoje nos nossos sertões para a condução de gêneros e lenha, e, uma vez por outra, prestam-se com improvisado toldo de couros ao transporte de famílias, na impossibilidade de melhores carruagens. Vinha puxado por três nédias juntas de bois, a cuja frente marchava um mulatinho armado de uma grande vara de ferrão; atrás, escoltava-o um pajem agaloado, montando um alazão tostado. Dentro viam-se três pessoas sentadas sobre um colchão. A primeira dessas pessoas era um indivíduo de seus quarenta para cinqüenta anos, cujo semblante denotava a importância de sua posição. [tratava-se de Bernardo Vasconcelos] Seguiam-se duas 173 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 mulheres em que fácil era descobrir-se logo mãe e filha, tal a semelhança fisionômica [ eram dona Clemência e Maria] . (RE, p. 08 – grifos nossos). O narrador apoia-se ainda em categorias mesológicas para indicar que a falta de civilização e de progresso que afetava o espaço sertanejo tinha como consequência a explosão de “intrigas e paixões clamorosíssimas”. Lutas políticas desapiedadas tinham posto em alarma os espíritos calmos e sensatos; e a superstição, a despeito dos esforços de um digno sacerdote, tendo erguido o colo como a hidra da Fábula, insinuava-se pelo ânimo dos míseros campônios, produzindo as mais assombrosas cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar (RE, p. 03). . Com o pequeno trecho, o narrador reporta-se a duas agitações concomitantes pelas quais passava o sertão, jurisdicionado à comarca de Flores. A primeira, “as lutas políticas desapiedadas” foram um outro acontecimento histórico cujo móvel foi a disputa pelo poder local, em que personalidades como Manoel Pereira da Silva entraram em rota de colisão com o então prefeito de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes e Francisco Alves de Carvalho (ambos filiados ao Partido Liberal). Estes se opuseram a empossar Manoel Pereira da Silva e seus correligionários (do Partido Conservador) nos cargos de juiz de paz e vereadores. Descontentes com a desfeita, Manoel Pereira da Silva, seus irmãos e aliados invadiram a sede de Flores a fim de assassinar o prefeito e seus partidários. O confronto entre os dois grupos culminou com a fuga do prefeito Nogueira Paes e com o desmembramento da freguesia de Flores nas de Ingazeira e de Serra Talhada. A criação das novas freguesias implicava na disponibilidade de uma quantidade maior de cargos e funções na administração pública no âmbito da comarca de Flores, de modo que partidários de ambos os grupos fossem contemplados com funções de mando. A despeito das medidas tomadas a fim de que os cargos públicos fossem distribuídos igualitariamente entre os grupos rivais, aquela disputa foi o marco inicial de uma contenda entre as famílias Pereira e Carvalho, que perdurou até meados do século XX, com inúmeras vítimas fatais de ambas as famílias. (LINS, 1957, p. 321-329). O registro das contendas políticas nos domínios da comarca de Flores, em que os potentados digladiavam-se entre si em busca de cargos públicos, símbolos de status e poder, fazem-nos concordar com a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz quando leciona que a maioria dos movimentos messiânicos são deflagrados em momentos em que a localidade vivia conflitos políticos. A autora reporta-se ao caso de Pedra do Reino dizendo que “na época dos sucessos de Pedra Bonita, a comarca de Flores era teatro de desordens e conflitos (...) em que dois grandes chefes políticos se afrontavam, numa rivalidade que mais tarde terminou de maneira trágica” (QUEIROZ, 1976, p. 318). 174 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 A outra agitação sobre a qual refere-se o romance foi a história da Pedra do Reino que, conforme diz o narrador, foi motivada pela superstição e culminou com as “mais assombrosas cenas que já foi dado a cérebro humano imaginar” (RE, p. 03). Nesse trecho do romance, o ponto de vista do narrador se coaduna com o da memória oficial sobre o movimento de Pedra do Reino que, conforme já vimos no capítulo 1 desta tese, caracteriza-o como expressão violenta da sociedade dita primitiva, arcaica, marcada pelo fanatismo. Os sebastianistas, porém, não compartilhavam com essa posição do narrador. Para eles, os sentidos sociais do movimento de Pedra do Reino e da profecia que o norteava eram completamente distintos. 3.4. Sentidos sociais da profecia Em O Reino Encantado, o arauto da profecia foi João Antônio dos Santos, primeiro “rei” ou “profeta” do “Encoberto” ou “D. Sebastião”. Conta o narrador que, na sua primeira pregação, João Antônio conduziu à Pedra Reino “dois ou três negros boçais” e, “munido de um caleidoscópio”, mostrou-lhes as maravilhas de um reino encantado. Explicou-lhes que, embaixo daquelas duas pedras, havia uma “imensa cidade enterrada de cuja catedral só as torres apareciam petrificadas. Depois dizia que nesta cidade reinava um príncipe encantado, desaparecido outrora em Portugal por maldade dos mouros” (RE, p. 87). Este rei havia aparecido a João Antônio “rogando-lhe que se constituísse o seu profeta para o fim de tentar por todo modo quebrar o encanto que privava a si e aos seus da vida terrestre e visível” (RE, p. 87). Além de prenunciar o regresso de D. Sebastião, a profecia ordenava que os sebastianistas praticassem alguns rituais; pois, caso os protocolos não fossem cumpridos, D. Sebastião não se desencantaria. De acordo com o testemunho do narrador, João Antônio prossegue na exposição dos rituais no afã de alcançar o desencantamento: Então o rei D. Sebastião lhe dissera que se fazia de mister juntar o maior número possível de crentes, formar um povo, orar, jejuar, regar todo o campo em torno dos grandes monólitos com sangue não só de toda espécie de quadrúpedes, como de crianças, adultos e velhos. Em sete semanas dever-se-ia consumar todos os sacrifícios necessários. As vitimas seriam voluntárias; os adultos só caíram sob o cutelo do algoz se assim o permitissem sua fé e fossem em graça, porquanto todo o sangue impuro derramado por violência votava o sacrificado às fúrias infernais. Finda que fosse a hecatombe e fortalecida a crença, todas aquelas pedras rebentariam, e o reino surgiria na terra cheio de esplendor, com exércitos poderosos, que, guiados, pelo príncipe glorioso, lançar-se-iam na conquista do país inteiro. Com ele então ressuscitaram os animais irracionais transformados em dragões e em serpentes monstruosas para devorarem todos os ricos, todos os poderosos e pedreiros livres, cujas riquezas seriam partilhadas pelos habitantes do reino; e os sacrificados voltariam a tomar as suas carnes e formas por instantes abandonadas para serem príncipes, princesas, fidalgos, nobres ou titulares, cercando o trono refulgente. Não haveria mais distinções, todos seriam brancos e formosos, ricos e bons, tomando-se a 175 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado vida no domínio desta nova ordem de coisas uma felicidade sem nuvem sequer de tristeza que perturbasse sua limpidez (RE, p. 87). É preciso anotar os sentidos sociais dos termos da profecia, segundo como elas foram compreendidas pelos sebastianistas. Para aquelas personagens, o vivido e o historicamente experienciado estão carregados de significações socialmente situadas, preservadas e re-atualizadas. O experienciado muitas vezes foi compreendido sob formas distintas, tanto quantos forem os olhares e as maneiras de dialogar com os diferentes autores que compreendem o acontecido sob seus prismas. Assim, é possível dizer que as percepções sobre o vivido tende a ser uma projeção do olhar alheio que se revela na fluidez das relações e associações feitas. Sob esta ótica, a história é construída pelas distintas maneiras de se ver, apreender e representar o passado e vislumbrar o futuro. Para os sebastianistas, quais os sentidos sociais contidos no ato de se “formar um povo”? A fim de compreendermos as representações da formação de um povo, da fundação de uma cidade ou de uma comunidade, recorremos à compreensão de Mircea Eliade (2002) sobre a “cosmogonia”. Esta, segundo o antropólogo, “constitui o modelo exemplar de toda situação criadora: tudo que o homem faz, repete, de certa forma, o ‘feito’ por excelência, o gesto arquetípico do Deus criador: a criação do mundo” (ELIADE, 2002, p. 34). Nesse sentido, é possível afirmar que, para os sebastianistas, a fundação da comunidade que se formou em torno da Pedra do Reino, que reuniu cerca de trezentas pessoas125, representava um recomeçar, um morar num mundo novo, livre de determinadas imperfeições. A cosmogonia, portanto, além de servir de arquétipo para toda criação, seu produto, o Cosmo representava o “sagrado”, já que o Cosmo “é uma obra divina, fértil, sendo, portanto, santificado em toda sua estrutura. Por extensão, tudo que é perfeito, ‘pleno’, harmonioso em suma: tudo o que é ‘cosmicizado’, tudo o que se assemelha a um Cosmo, é sagrado” (ELIADE, 2002, p. 34). O fato de o “arraial” de Pedra do Reino ser considerado um Cosmo, um arquétipo de “obra divina”, um espaço sagrado, é admiravelmente bem ilustrado pela personagem Justina, escrava, mucama de Maria. Ela se recusa a conduzir Manuel Velho à Pedra do Reino porque lá era “local sagrado”, reservado apenas aos que tinham “fé no reino encantado”, e diz ao vaqueiro Manoel Velho: “Em Pedra Bonita só entram os que têm fé, e tu não a possuis” (RE, p. 59). Por 125A comunidade que se formou em torno de Pedra do Reino recebe diversas designações, ao longo do romance, sendo arraial e quilombo as mais recorrentes. É o que se lê na descrição que o narrador faz da comunidade: “O arraial não tinha grandes dimensões; e as palhoças distribuídas a capricho poderiam dar guarida a uns trezentos moradores. Formavam uma espécie de arco de círculo, cuja corda seria a linha que passava pela base dos dois maiores monólitos. No centro levantava-se uma habitação maior que as outras, a qual por certos adornos externos parecia pertencer ao chefe da cabilda. 176 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 conseguinte, o arraial seria um “campo sagrado”, o espaço destinado a orações e jejuns, nos quais o foco era atingir o paraíso prometido126. Em O Reino Encantado, Justina transita tanto no grupo dos sebastianistas, já que aderiu a fé na profecia, como no dos potentados, por ser mucama de Maria e namorada do vaqueiro Manuel Velho. Importante sublinhar que nos diálogos em que Justina estabelece com essas duas personagens tem um caráter didático, à medida que ela explica aos seus interlocutores especificidades da profecia e os sentidos dos rituais. Mas de que maneira os sebastianistas se “apropriaram” dos ritos previstos na profecia? Segundo Bourdieu(BOURDIEU, 2008, p. 93-98), o rito tem a função social de separar aqueles que se identificam dos que se estranham. Mas isto somente é possível por existir duas realidades distintas que coexistem num mesmo espaço, caso dos sebastianistas e potentados de Pedra do Reino. Se o rito delineia fronteiras e institui diferenças, é necessário observar qual seu lugar dentro do campo social e mais especificamente onde se situa no contexto de Pedra do Reino, na encruzilhada de interesses e intenções conflituosas que polarizavam sebastianistas e potentados. A profecia prescrevia a prática do jejum e da oração. Orar e jejuar é uma prática comum em várias religiões, quais sejam o judaísmo, islamismo e cristianismo. Em O Reino Encantado, ao que parece, o referente é a Bíblia, livro sagrado dos cristãos, na qual há registros de personagens do Antigo e do Novo Testamentos que pregaram abstinência temporária de alimentos, ao mesmo tempo em que elevavam orações a Deus. O narrador de O Reino Encantado entende que parte dos rituais que João Antônio estabeleceu tem o mesmo referente, à medida que certas práticas religiosas em Pedra do Reino são a “concretização das sombras que o fetichismo, amalgamado com os mal compreendidos princípios da religião dos brancos depositara em suas almas” (RE, p. 87 – grifo nosso). Se em O Reino Encantado, para os sebastianistas, o arraial de Pedra do Reino era locus sagrado, para os potentados e seus prepostos, o arraial não passava de um “antro de quilombolas” e “cabilda de fanáticos”, de aspecto “pavoroso”, conforme se lê no trecho que passamos a citar em que o narrador expõe a visão do vaqueiro Manoel Velho sobre o local: “Havia em tudo o quanto circundava um aspecto pavoroso, que crescia à proporção que se avizinhava dos rochedos. Entre estes, no fundo da tela, suspendiam-se, destacando-se do resto, duas gigantescas rochas quase iguais na altura, retas, separadas entre si por mui pequeno interstício, que pela alvura assemelhavam-se a dois fantasmas envolvidos a amplas mortalhas. Por capricho do acaso acontecia que, ao tempo em que Manuel desembocava da esplanada, o globo prateado da lua, colocando-se por trás desses duendes de granito, cercava-os de uma espécie de auréola diáfana, esbranquiçada, projetando sua sombra imensa até onde estavam os nossos observadores. Na penumbra deixada por esta luz tíbia que envolvia o recinto moviam-se pequenos fogos, em torno dos quais se enfileiravam de promiscuidade com palhoças e casebres, grupos vários e simétricos de catolezeiros, cujas folhas revolvidas pelos ventos produziam não só chiados tristes, como traziam ao pensamento idéias de que ali se agitassem larvas e almas penadas” (RE, p. 60). A maneira que os potentados do romance representavam o arraial de Pedra do Reino era análoga à versão oficial sobre o movimento. 126 177 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Esse mesmo princípio serve para entender o trecho da profecia que fixa o “dia do desencantamento”. Como lemos anteriormente, “em sete semanas dever-se-ia consumar todos os sacrifícios necessários”. Sete semanas equivalem ao período de quarentas dias. Na Bíblia há duas quarentenas, duas quaresmas, uma no Antigo e a outra no Novo Testamento, que embora afastadas no tempo, ambas são períodos de dores, sacrifícios, privações, jejuns, orações e outros padecimentos com as quais se esperava alcançar uma “vida nova”, protagonizadas por Moisés e Jesus. Jesus Cristo também é grande arquétipo para os “sacrifícios voluntários” sobre os quais fala a profecia, à medida que se entregou à morte para fazer nascer um mundo novo. Um novo reino, em que “os ricos seriam humilhados e o pobres, exaltados”. Tal qual o referente, os sacrifícios dos sebastianistas deveriam ser voluntários. Além do que os adeptos de João Antônio se entregariam à morte contando com garantias análogas àquelas recebidas por Jesus. Este se submeteu aos flagelos e à morte já sabendo que aquele fenecer seria passageiro, pois em três dias aconteceria a ressurreição. A profecia previa um epílogo semelhante aos sebastianistas: “os sacrificados voltariam a tomar as suas carnes e formas por instantes abandonadas” (RE, p. 87). É essa a crença da mucama Justina, sebastianista convicta. No trecho que se segue, mais uma vez, Justina explica a Maria que irá se entregar à morte, na certeza de ter a vida restaurada. Justina tem tanta fé no que há de acontecer que nestes dias vai morrer, e isto porque quer. Não morreu Jesus por nós?! o céu se abrirá, Deus Todo Poderoso se há de mostrar com o Príncipe Encoberto a seu lado e todos nós ressuscitaremos como diz no credo a Santa Madre Igreja. Que felicidade! Que felicidade! (RE, p. 75). A ressurreição se estenderia aos “animais irracionais”, que retornariam à vida, mas não mais em suas formas de origem, e sim, transformados em seres míticos e bíblicos, como dragões e serpentes. Os dragões e as serpentes seriam utilizados como instrumentos de justiça e de punição contra o modelo de poder em vigor. Esses monstros teriam a função de “devorar todos os ricos, todos os poderosos e pedreiros livres”. Com a citação desse trecho de O Reino Encantado, faremos um contraponto com os dizeres de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1970, p. 324), segundo a qual os movimentos messiânicos normalmente não fazem queixas contra os ricos, tampouco seus integrantes pleiteiam uma mudança de posição social. Mas não era essa a postura dos sebastianistas do romance nem dos sebastianistas históricos. No espaço ficcional, Araripe Jr. re-atualiza a história de Pedra do Reino como um movimento messiânico que pretendia alterar a hierarquia social em voga e inaugurar um novo 178 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 modelo para se conduzir as funções de mando e de poder, haja vista que as “riquezas seriam partilhadas”. Ou seja, os bens de fortuna deixariam de se concentrar nas mãos de poucos e seriam distribuídas entre os sebastianistas; a riqueza deixaria de ser um privilégio de poucos para ser socialmente partilhada. Com o advento do reino de D. Sebastião, todos seriam agraciados com distintivos de nobreza, tornando-se “príncipes, princesas, fidalgos, nobres ou titulares”. Portanto, as atividades profissionais de vaqueiro, capataz, mucama, cozinheiro, zelador e outras, costumeiramente exercidas pelo sertanejo escravo ou branco pobre, seriam substituídas por outras mais condizentes com o status que D. Sebastião lhes conferiria. Um dos princípios mais importantes da profecia era que o ideal de igualdade perpassava pelo branqueamento. Tal aspecto, tanto aproxima o romance de uma de suas fontes de composição, as memórias de Antônio Áttico de Sousa Leite, como também colocavam o romance em diálogo com as teorias racistas debatidas exaustivamente pela intelectualidade brasileira, na década de 1870 e seguintes. Nesse aspecto, a profecia dos sebastianistas era um discurso racial do qual se lançava mão para defender valores étnicos do branco, uma hegemonia já consagrada, embora a maioria dos sebastianistas fosse de negros e mestiços. Na predição, predomina-se o que é estimado na sociedade brasileira contemporânea à publicação de O Reino Encantado, imbuída intelectual e politicamente em esforços pelo “branqueamento” da nação e pouco afeita aos valores étnicos e históricos dos negros e índios. Portanto, os valores étnicos dos sebastianistas alinham-se ao pensamento da maior parte dos “homens de ciência” de finais do século XIX e início do XX, sobre os quais nos falam Lília Schwartz (1994). Para ilustrar o pensamento desses intelectuais, a pesquisadora cita João Batista Lacerda (1911), então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução" (SCHWARTZ, 1994, p. 137). Por fim, tornar-se “alvo como a lua” representava ser nobre, rico, “limpo da feldade”, assumir cargos e funções de mando, alcançar a “felicidade sem nuvem”. O estado de felicidade permanente remete à ideia de jardim do éden previsto na Bíblia. Contudo, a visão de paraíso anunciada na profecia era diferente do paraíso prometido pela hieraquia católica, apalavrado “pela religião dos brancos”, na medida em que se concretiza não no céu, mas na terra. “A felicidade sem nuvem” emergiria das torres fincadas na terra, o paraíso terreal. É o que explica Justina a Maria, no trecho que se segue, em tom quase didático: Escute ainda, meu anjinho, continuou a astuta mulata adoçando a voz e dando-lhe um tom de quem embala uma criança. A cidade santa está sepultada aqui mesmo! A sinhazinha não quer vê-la? É lá, quem sabe, que há de encontrar o senhor e nhã Clemência... O rei Santidade diz que nhã Mariquinha seria levada para um palácio de 179 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 fadas que lá existe, grande como todo o povoado de Serra Talhada, rico como não é o do imperador, onde reinaria cercada de uma corte vinda com o Encoberto dos confins da terra (RE, p. 76 – grifo nosso). Esse é o único trecho do romance em que se menciona o imperador do Brasil. Nessa passagem, a escrava Justina, sebastianista convicta, estabelece uma comparação entre os dois monarcas, D. Pedro I e D. Sebastião de Pedra do Reino. Na sua visão, o monarca português era rico “como não é o imperador”. Ou seja, seu poder suplantava o de D. Pedro I, consequentemente, era mais vantajoso acreditar no rei que emergiria da terra e cujas práticas governamentais dariam fim a todos os flagelos a que ela e os demais sebastianistas viviam subjugados. Muito mais proveitoso do que acreditar em um rei que governava à distância, sem qualquer benefício para pessoas do seu grupo, formado por escravos, mestiços e brancos pobres127. De que maneira os sebastianistas se “apropriaram” da profecia? De que forma operacionalizaram a produção de sentidos dos enunciados na profecia? As perguntas são pertinentes à medida que, se por um lado, a profecia trazia em seu bojo inúmeros benefícios a um grupo social desassistido, por outro, cobrava que os sebastianistas pagassem de forma antecipada e com a própria vida as pretensas benesses. O narrador de O Reino Encantado elabora às questões uma resposta verossímil. Segundo ele, “para uma classe de oprimidos, de miseráveis, como são [eram] os escravos entre nós” os sacrifícios representavam uma “continuidade”, uma constante, um lugar comum. Por conseguinte, subjugar-se a atos violentos, expor-se a sessões de flagelo, a rituais de humilhação, de morte moral, de holocausto, não lhes parecia absolutamente recusável, haja vista que fazia parte do cotidiano dos escravos. A partir da profecia, o diferencial era o que se seguia ao flagelo: a esperança de saírem do jugo a que eram submetidos (RE, p. 87). Talvez por isso, os sebastianistas tenham se submetido voluntariamente aos sacrifícios. Se para o grupo social formado pelos potentados os rituais de flagelo significavam uma prova cabal Importante assinalar que o discurso do narrador do romance reproduzia a maior parte dos pontos de vista da versão oficial do movimento sobre Pedra do Reino. Um dos exemplos disso pode-se ler na interpretação que ele faz das apropriações que os sebastianistas têm sobre D. Sebastião. Para o narrador, o D. Sebastião imaginado pelos sebastianistas era fruto de um sincretismo entre a religião oficial com a mitologia indígena e africana. “O D. Sebastião imaginado por João Antônio de certo nada mais tinha de comum com o consolador, o Messias, engendrado pelo amor pátrio dos portugueses durante o reinado dos Felipes. Depois de zanzada pelo molde grosseiro da imaginação dos seus asseclas, essa figura não era mais do que uma correção ou aperfeiçoamento dos manipansos, sacis, caaporas e outras semelhantes crendices, que a gente ignorante vestia com as roupagens do rei legendário gravado em suas memórias pelos contos de Carocha e de Maria Borralheira. Se algum menos bronco elevava-se a concepção dos gênios e das fadas, pairando assim em mundos imaginários, de onde descia cheio de aspirações fantasiosas, a maior parte dos prosélitos não enxergava as pinturas, nas descrições de João Antônio, outra coisa além da concretização das sombras que o fetichismo amalgamado com os mal compreendidos princípios da religião dos brancos depositara em suas almas (RE, p. 87 ). 127 180 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 de fanatismo e superstição, para os sebastianistas representava a senha para um paraíso terreal, um céu aqui mesmo. Nesse sentido, fazemos coro a Bourdieu quando afirma que o rito deve ser compreendido como uma forma de linguagem que traduz e projeta maneiras de se identificar e de se estranhar dentro de uma comunidade (BOURDIEU, 2008, p. 93-94). 3.5. Personagens do romance Em O Reino Encantado, há uma flagrante amalgamação de personagens históricas e outras meramente ficcionais. Para relacionar as do primeiro caso, tomamos como fonte o memorial de Antônio Áttico de Sousa Leite e documentos primários, entre os quais os ofícios trocados entre as autoridades da Comarca de Flores, da Presidência da Província de Pernambuco e da Corte, no Rio de Janeiro, todos localizados no APEJE - Arquivo Público de Pernambuco e no Arquivo Nacional - RJ. Apresentamos a seguir um exemplo desse conjunto de fontes. Trata-se do primeiro documento que se produziu sobre os sucessos de Pedra do Reino128. Embora o texto tenha sido escrito nas primeiras décadas do século XIX, a escrita caligráfica permite até mesmo ao leitor que não tem conhecimento de paleografia, identificar os nomes de algumas das principais personagens históricas. O documento data de 25 de maio de 1838, portanto, sete dias depois dos principais sucessos da história de Pedra do Reino, acontecidos entre os dias 14 e 17 de maio daquele ano. Por meio dele, o prefeito da Comarca de Flores, Francisco Barbosa Nogueira Paes, comunica ao presidente da Província, Francisco do Rego Barros, sobre maio de 1838, na Serra do Reino. Conforme registrado a seguir, o ofício em questão contém quatro páginas129:[Figura 11] Nesta tese, convencionamos denominar como Pedra do Reino o fato histórico ocorrido entre 1836-1838, no sertão de Pernambuco. Nossa opção se justifica porque é com essa designação que hoje, de uma maneira geral, fazem referência àquele movimento messiânico. Entretanto, nos documentos oficiais de 1838, as autoridades designam o fato histórico como Pedra Bonita, conforme poderá ser observado na transcrição do ofício. Cf. nota 03. 129 Leiamos a transcrição do ofício. “Pela vez primeira que me dirijo a V. Exª participando o estado desta comarca, que apesar de se achar tranquila, todavia, tenho que levar ao conhecimento de V.Exª o caso mais extraordinário, mais terrível, cruel, nunca visto e quase incapaz de acreditar-se, eu deixaria de noticiar um semelhante acontecimento se não fosse obrigado pelo emprego que por V. Exª. me foi confiado, tal ____ desconhecer a incapacidade de meu critério. Permita-me V. Exª., que por um pouco, vá analisando os fatos e por juízos tais e quais tiveram lugar nesta comarca, nas imediações do Piancó. Há mais de dois anos, V.Exª., que um homem de nome João Antônio, morador do sítio Pedra Bonita, distante desta vila vinte e duas léguas, lugar este composto de bosques, junto dos quais se acham dois penedos acroceraunios, se lembrasse de apresentar uma zizania aos povos dizendo que naquele lugar existia um reino encantado e que estava a desencantar-se, em cuja ocasião apareceria El Rei Dom Sebastião com um grande exército, ricamente adornado e que todos que os seguissem seriam felizes e foi lidando nesta seita que em dias de novembro do ano próximo passado, aconselhado pelo missionário Francisco José Correia de Albuquerque, fizeram uma viagem para o sertão dos Inhamuns donde mandasse um enviado de nome João Antônio, homem hostil, péssimo e esquisito de sorte que este lobo assim chegado no lugar de Pedra Bonita e aclamando-se rei, tratou de trazer aos povos ____ sujeitos as umas ideias supersticiosas, dizendo-lhes que para a restauração do reino 181 128 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado tornava-se necessário que fossem imoladas as vítimas de homens, mulheres e meninos, que em breves dias, ressuscitariam todos e que ficariam imortais sendo estes sacrifícios____ para regar o campo encantado com sangue humano e dos inocentes, depois do que apareceriam as maiores riquezas do mundo e que todos os pardos do lugar ficariam mais alvos que a própria lua; de maneira que assim pode conduzir os povos ignorantes as suas falsas declamações e péssima doutrina e conseguiu que alguns pais entrassem seus filhos ao cutelo do sanguinário tigre e no dia 14 do corrente deu princípio as suas hostilidades assassinado até quarta feira, 18 deste mesmo mês, vinte e um adultos e vinte e um parvulos de ambos os sexos e casando cada homem com duas ou três mulheres sendo este contrato feito pelo mesmo idólatra, com superstições próprias de sua imoral conduta, porém o seu resultado foi tristíssimo porque Pedro Antônio, irmão do primeiro inventor João Antônio, já intolerante aos desmandos semelhantes canifrás ou talvez ambicioso de substituir-lhe no reino, determinou o assassiná-lo como o fez no dia de terça feira, 17, dia em que, correndo um dos moradores do lugar, pôs aviso ao Comissário Manuel Pereira da Silva e este, imediatamente foi reunir uma força composta de vinte seis guardas nacionais e paisanos e seguiram no dia sexta feira, 18, do supracitado mês, de seu sítio Belém, distante deste lugar da desordem oito léguas, já perto, encontraram a Pedro Antônio assassino do bárbaro João Ferreira, coroado com uma coroa de cipó, tomada ao seu antecessor, e acompanhado de um grupo de homens e mulheres que gritavam em altas vozes: “Cheguem que os não tememos, e acudam-nos as tropas do nosso reino”. E com tais alaridos principiaram a brigar-se e os desordeiros puderam logo /a cacetar e espadar com que brigavam/ matar seis homens da tropa e ferirem a quatro, entre os quais mortos foram os cidadãos Alexandre Pereira da Silva e Cipriano Pereira, irmãos do comissário/ ____ sensível, mas V. Exª. , debalde foi o plano dos desordeiros, que sendo fortemente atrasados, perderam, em um instante, vinte e nove pessoas, inclusive as mulheres, além dos feridos que pelos matos correram, sendo prisioneiros três homens, nove mulheres de doze meninos. Note, V. Exª. que naquele dia 18, às quatro horas da tarde, foi que me chegou a notícia das primeiras desordens, não por parte oficial do Comissário, mas sim por uma carta particular de uma pessoa de crédito, a vista da qual, a todo preço, reuni quarenta homens e logo marchei à frente deles para prender os desordeiros, mas foram malogrados os meus passos porque chegando perto de Pedra Bonita, já tudo estava destruído, como acima teve dito, Exª, esta minha asserção não foi baseada só na parte do comissário, mas sim na condição, contudo, que todos [os] presos fossem, mesmo as crianças de cinco a doze anos, de maneira que parecendo o caso um sonho, todavia é real, pelas razões que pondero a V. Exª., os presos de que faço menção foram pela minha tropa conduzidos para a cadeia desta vila, e deles fiz entrega ao Juiz Criminal, com parte, para conhecer sumariamente, e doze meninos entreguei ao Juiz do Cívil para as mandar distribuir por pessoas que os possam educar, lhe que V.Exª providencie a resposta. Deus guarde V. Exª. Prefeitura da Comarca de Flores, 25 de maio de 1838 [Dados do destinatário, Francisco do Rego Barros, Presidente da Província de Pernambuco] Francisco Barbosa Nogueira Paes”. 182 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado 183 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado 184 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado 185 Capítulo 3 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado 186 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Neste ofício, destacamos nomes das personagens ao mesmo tempo históricas e ficcionais, presentes na historiografia da Pedra do Reino como também no enredo de O Reino Encantado. São elas: (1) João Antônio [dos Santos]; (2) o Missionário Francisco José Correia de Albuquerque, chamado no romance de Pe. Correia; (3) João Ferreira; (4) por último, localizamos o nome da personagem Pedro Antônio que, tanto na ficção como na crônica histórica, era irmão de João Antônio e foi último rei de Pedra do Reino. Na tabela abaixo, enumeramos 11 personagens simultaneamente históricos e ficcionais. Por outro, localizamos 6 personagens meramente ficcionais. PERSONAGENS PERSONAGENS SIMULTANEAMENTE MERAMENTE HISTÓRICOS E FICCIONAIS FICCIONAIS João Antônio Bernardo Vasconcelos Maria Manuel Velho João Ferreira Tibúrcio Frei Simão Jaime Pedro Antônio Justina Pe. Correia Dona Clemência Vasconcelos Comissário Manuel Pereira Isabel Gonçalo José dos Santos João Pilé Josefa Desse conjunto de personagens, passamos a discutir a forma com que Araripe Jr. reelabora artisticamente algumas delas. Importante destacar que na galeria de personagens de O Reino Encantado parte delas é “representada” segundo orientações da estética romântica e outra parte “representada” sob orientação da estética naturalista. Os preceitos românticos são sempre utilizados para caracterizar as personagens do grupo dos potentados, como logo mais analisaremos os casos das personagens Maria e o vaqueiro Manuel Velho. 187 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Já as personagens sebastianistas são “representadas” segundo duas orientações distintas: a primeira, através de “o fator raça”, conforme Taine compreendia; depois, as “representações” perpassam pela adoção de uma linguagem da medicina psiquiátrica, em voga no Brasil da época, conforme indicamos no início deste capítulo. É o que se depreende das seguintes explicações formuladas pelo narrador: Um fenômeno todo patológico se passava em Pedra Bonita. Só assim teriam explicado tais aberrações do espírito humano. Embora fossem os adeptos de João Ferreira criaturas broncas, sem instrução, a quem nem por isso se pode negar o natural bom senso, não admitimos que o desvairamento chegasse a tamanhos despropósitos, a não ser por causas em grande parte físicas e capazes de perturbar as funções ordinárias do cérebro. Para que aquela gente aceitasse tão estupendos absurdos como verdade, e deixasse de perceber os contrastes da visão com a realidade da vida, seria preciso que sobre ela atuasse uma causa mórbida, valente, despótica, contagiosa. Não restava dúvida que existe uma corrente que, dadas certas condições, encadeia os espíritos enfermos uns aos outros e tem a força de corromper todos quantos se lhes põem em contato. Será acaso a primeira vez que se fala na loucura epidêmica? Se a epilepsia se transmite pela simples impressão, não será para admirar que a alucinação de um grupo de indivíduos, em constante comunicação, se possa propagar, reduzindo ao mais triste estado de uma multidão predisposta a receber influências mórbidas (RE, p. 85 – grifo nosso). Um “fenômeno patológico”, perturbações das “funções ordinárias do cérebro”, de “causa mórbida”, “contagiosa”, “espíritos enfermos”, “loucura epidêmica”: todas essas palavras e expressões são utilizadas para designar os sebastianistas de Pedra do Reino. Conforme analisaremos as “representações” de algumas dessas personagens, começando pelos “reis” ou “profetas” de Pedra do Reino. Em O Reino Encantado, o arraial de Pedra do Reino começou a se formar em 1836 e resistiu até maio de 1838. Nesse período, a comunidade foi liderada por três diferentes profetas: João Antônio dos Santos, João Ferreira e Pedro Antônio. 3.5.1. João Antônio: arauto e traidor Para os sebastianistas, João Antônio dos Santos é representado em O Reino Encantado como um mameluco, instituidor e arauto da profecia; como aquele que fundou o arraial de Pedra do Reino. É possível afirmar que ele foi apropriado pelos sebastianistas como uma autoridade legítima e reconhecida dentro da comunidade (BOURDIEU, 2008, p. 93). Levantamos aqui duas hipóteses para isso. A primeira é que as predições de João Antônio traziam no seu bojo soluções práticas e imediatas para os males que afligiam a maioria dos sebastianistas. A outra, é que João Antônio possuía predicativos que o distinguiam de seus liderados, quais sejam a inteligência, a astúcia e, sobretudo, o domínio de certos aspectos do universo letrado e intelectual. São exemplos destes as habilidades de ler e de escrever, além de demonstrar familiaridade com rudimentos da história. 188 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Lera o (...) em um alfarrábio achado alhures as profecias referentes ao malogrado D. Sebastião, e, persuadindo-se de que nada mais fácil havia do que fazer acreditar a certa gente em uma missão sobrenatural, empreendeu um dia tentar o proselitismo. Dizia a lenda que o santo rei apareceria pelas partes do oriente; nada mais simples, pensou ele, do que mudar o evento para um país do ocidente, e assim o fez. Em sua rústica linguagem procurou demonstrar aos que escutavam, como possível lhe foi, que nem em África, nem em Ásia, podia ter lugar esse milagre; e, acrescentando que só em terras da cruz o Esperado devia ressurgir, concluía que o sucesso veridicar-se-ia no Brasil, pois segundo ouvira aos entendidos fora este país pelos descobridores ao instrumento do martírio consagrado (RE, p. 86 – grifo nosso). É possível que os sebastianistas tenham vislumbrado na capacidade intelectual de João Antônio um critério para compreendê-lo como uma voz autorizada e representativa do mundo que era deles. Entretanto, essa visão sobre João Antônio se restringia aos sebastianistas, com exceção dos seus irmãos Pedro Antônio e Josefa, que não acreditavam na profecia. O narrador, no entanto, representava-o de outra forma. Para ele, João Antônio também era um profeta “impostor” e “embusteiro”, pois, embora divulgasse, não acreditava na profecia. Conforme anota o narrador, sua intenção era utilizar o conhecimento que tinha sobre o mito do jovem monarca português, D. Sebastião, com o único propósito de reunir bens de fortuna. Tanto é que uma de suas primeiras providências foi instruir alguns escravos a subtrair dos fazendeiros gado, ouro e outros bens de alto valor comercial. O que João Antônio fazia com esses bens? Segundo o narrador, “ouro e prata que [os escravos] puderam furtar ou haver por meios ilícitos, passaram para as mãos do impostor [João Antônio], que as fingia sepultar nas entranhas dos rochedos. Assim foi-lhe a indústria produzindo os desejados resultados (...)”. O movimento de Pedra do Reino seria para João Antônio “um meio de vida”. De acordo com a narrativa, João Antônio continuou a ludibriar seus liderados até o dia em que observou que era necessário recuar, pois alguns deles estavam, de fato, acreditando em “suas patranhas”. [João Antônio] reparou que o fervor da sua gente e daqueles em que o segredo o procuravam em Pedra Bonita, tomava proporções incômodas. Um dia mostrou-se-lhe uma pobre escrava fanatizada já ao ponto de rogar-lhe em brados a morte de um filhinho. João Antônio assustou-se com o efeito tão cedo denominado por suas patranhas, e imediatamente pensou em moderar esse ardor intempestivo. Retirou-se do esconderijo, proibiu que lá fossem ou falassem em Pedra Bonita, e transportou para os povoados o exercício do inculcado sacerdócio, arrependido sem dúvida da imprudência que cometera (RE, p. 88). Nesse meio tempo, Pe. Correia organizou uma missão, encontrou-se com João Antônio e pediu-lhe que se retirasse para os Inhamuns, região do Ceará. Para João Antônio, o pedido do padre foi álibi certo para arrefecer os ânimos dos sebastianistas cuja fé era mais fervorosa, conforme explica o narrador. 189 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Deixando Flores, mostrou ele como sabia ser esperto. Ficar ali seria arriscar a perder de vez aquilo que mais de espaço podia abrir-lhe minas tão férteis como as que em suas artimanhas fazia o povo acreditar. (...) cercara-o logo um pessoal por tal modo desvairado que, se não o arredasse do sombrio local onde exibira pela primeira vez os quadros criados por sua fantasia, era bem possível que ou chegasse aos excessos que dos escravos receiam, ou botasse o negócio a perder (RE, p. 89). Ele fechou o arraial, proibiu que as pessoas voltassem lá e retirou-se para os Inhamuns. Mas antes, instituiu um apostolado, a quem orientou a atrair novos fiéis, no Piancó, região da Paraíba e na região das margens do São Francisco, a fim de que eles continuassem arrecadando o seu sustento, seu “meio de vida”. Compunha-se esse pretenso apostolado de Pedro Antônio, irmão do embusteiro, conhecido dos nossos leitores, o qual era dotado de iguais astúcias, do pai do próprio impostor, Gonçalo José dos Santos, de uma família de visionários existente na localidade e designada pelo nome de Vieiras, de um denominado João Pilé, que diziam já ter por várias ocasiões falado com o diabo à meia noite, e finalmente do afamado João Ferreira que encontramos entrozinado em Pedra Bonita a dirigir os seus cruéis sacrifícios. Com exceção do primeiro, todos viam em João Antônio um inspirado verdadeiro, e no contato em que com ele viviam, consubstanciaram-se por tal forma com a engenhosa legenda, que esta por último merecia-lhes mais fé do que o pai nosso, o credo e as outras orações recebidas no ensino da igreja (RE, p. 89). João Ferreira não seguiu com o grupo porque havia sido acometido por uma “enfermidade nervosa desconhecida no lugar”. Poucos dias depois, quando este se recuperou, voltou ao arraial e soube que João Antônio havia ido embora para os Inhamuns. Por isso resolveu ir ao Ceará conversar com ele. Conforme anota o narrador, depois desse encontro entre os dois cunhados, João Ferreira tornou-se o novo líder de Pedra do Reino. Ignoramos o que houve entre os dois cunhados, e de que meios lançou mão o profeta para conseguir do primeiro rei a comissão que surgiu a desgraça de Serra Formosa. O que podemos afirmar é que logo depois, voltando de Inhamuns, João Ferreira passava por Porteiras e ligava-se estreitamente com o mandingueiro a quem os habitantes da Serra Talhada tinham batizado com o nome de Frei Simão por haver durante anos sido cargueiro de um religioso franciscano assim chamado. Desta ligação foi que se originou verdadeiramente o parto monstruoso. Longas noitadas levaram estes dois demônios a saturarem-se mutuamente das suas idéias despropositadas, e por fim, fundindo suas almas em um único pensamento, alaram-se em cata do desconhecido (RE, p.102). Conforme se depreende do trecho, o encontro entre João Antônio e João Ferreira simbolizou a passagem da liderança do movimento de Pedra do Reino, do 1º para o 2º profeta. Contudo, João Antônio retornou mais uma vez ao arraial quando soube que João Ferreira pôs em prática os sacrifícios humanos previstos na profecia. Daremos voz a personagem João Antônio que, em conversa com Pe. Correia, explica o modo com que tentou dissuadir João Ferreira de 190 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 presidir rituais de assassinato. Conta João Antônio que voltou à Pedra do Reino porque seus negócios nos Inhamuns não eram rentáveis como em Pedra do Reino. e como a vida que levava não me dava para comer, e aquele negócio, que sabeis, rendiame alguma coisa, não querendo aparecer mais nesta amaldiçoada terra, enviei um discípulo, um companheiro a minha gente... o padre mestre sabe que eu especulava sem outras intenções... contudo João Ferreira traiu meu pensamento... Meteu-se-lhe o esconjurado nos cascos e está a matar gente de um modo atroz, no meu nome, e por conta dos santos que invoca! (...) Ah! Logo que soube do que estava fazendo o malvado, corri à Pedra Bonita; mas já era tarde. Tinham todos enlouquecido e, embriagados, não houve mais palavra para eles. João Ferreira está possesso... desconheceu-me, e obrigou-me a fugir com receio de alguma violência (RE, p. 62). João Antônio foi praticamente escorraçado do arraial, conforme o trecho citado. Sua saída do arraial, às pressas, marcou o rompimento definitivo de João Antônio com João Ferreira. Ao ser praticamente expulso do arraial, João Antônio dirige-se a Serra Talhada. Mas antes de chegar ao povoado, encontra-se com a tropa de Manuel Pereira e Pe. Correia que, àquela altura, estava perdida por ter sido abandonada pelo rastejador João Pilé, conforme anotamos na primeira parte deste capítulo. O encontro com Pe. Correia simboliza uma nova fase das representações da personagem João Antônio. De arauto e idealizador da profecia do movimento de Pedra do Reino, João Antônio passa a ser uma espécie de traidor dos sebastianistas porque dispõe-se a conduzir a expedição ao arraial de Pedra do Reino. Se aos olhos dos sebastianistas, João Antônio transformou-se num traidor, para os potentados, João Antônio passou a ser visto como uma espécie de redentor. Afinal, foi João Antônio que lhes tirou da situação de desvantagem em que ficaram perante os sebastianistas; a tropa estava perdida e sem meios de seguir adiante. Somente por causa dos préstimos de João Antônio, que serviu de guia à expedição, que logo alcançou o arraial, resgatou Maria e dona Clemência, além de destruir o arraial e debelar o movimento. Como prêmio, Pe. Correia intermediou a fuga de João Antônio, antes que ele fosse entregue à justiça. Conforme anota o narrador, “na ocasião de serem os fanáticos conduzidos para o povoado [o sumiço de João Antônio] encheu a todos de espanto”. E continua: Tempos depois, confessou o missionário a seu amigo Manuel Pereira o pecado de havêlo subtraído a ação da justiça e, garantindo-lhe a tranquilidade das consciências em Flores, acrescentou que assim o fizera por evitar que o despeito não desviasse mais esta alma do bom caminho (RE, p. 15 – grifo nosso).130 As representações de João Antônio, segundo os potentados, modificam-se à medida que o primeiro profeta dispõe-se a conduzir os sebastianistas às pedras. Antes, quando isto não havia acontecido, Pe. Correia, em conversa com Manuel Pereira da Silva sobre a missão que havia realizado tempos antes junto aos sebastianistas, tinha a seguinte opinião sobre João Antônio: “Aqui chegando, encontrei esta gente completamente desvairada. Inquiri das 191 130 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Sendo assim, João Antônio foi poupado porque se arrependeu e aderiu à “verdadeira religião” e ao “bom caminho”. Ou seja, a personagem passou a repudiar as superstições que enformavam a profecia e, em sinal de progresso e de civilização, aderiu à religião oficial, ali personificada pelas orientações de Pe. Correia. Conforme explica o padre, “onde impera a superstição, afoga-se a religião e todos os sentimentos que elevam e embrandecem a bruteza animal desaparece” (RE, p. 42). A missão do padre, ali, era fundar e consagrar a “religião verdadeira”, que, segundo ele, seria a católica ou a “religião dos brancos”. Estamos, portanto, diante do que podemos chamar de discurso fundador. No caso, a constituição dos fundamentos cristãos, associados aos preceitos da vida civilizada. É, por outro lado, um discurso que prescreve a ordem, o ordenamento social, que não se restringe à esfera religiosa, mas enraiza-se concomitamente nas esferas política, econômica, social e judiciária. Em última instância, o estabelecimento da comunidade Pedra do Reino é representado como um risco à ordem estabelecida, tanto quanto é uma evidência de que a ordem não é um dado natural, mas uma construção sistemática do poder. Na verdade, esta fala somente compreende-se a partir do seu lugar específico. Trata-se, assim, de construção discursiva, de práticas e de estratégias a fim de atingir estes objetivos. 3.5.2. João Ferreira: o profeta “fanático” e “epilético” Como já dissemos, João Ferreira substituiu João Antônio. Conta o narrador que a passagem do posto se deu da seguinte forma. Logo que soube da partida do 1º profeta, João Ferreira ficou transtornado ao saber que João Antônio tinha deixado Pedra do Reino: “João Ferreira gritou, berrou, espumou, praticou atos em suma de um possesso, e, apesar da oposição dos que os cercavam, partiu em busca do fundador da seita” (RE, p. 92). Tão logo melhorou dessa crise nervosa, João Ferreira resolveu procurar João Antônio, nos Inhamuns. Chegando lá, entrou num acordo com o primeiro profeta que o orientou a se coligar a Frei Simão131 e reativarem o arraial em torno de Pedra do Reino. causas e não tardei em descobrir que aquele impostor, instruindo numas extravagantes legendas bebidas em um velho alfarrábio, andava a mostrar aos incautos e inocentes umas pedras falsas a que dava nome de brilhantes, inculcando possuir o segredo de uma portenhosa mina. Com estas e outras historietas, embaia o povo, que maravilhado chegou a convencer-se de que este homem tinha em si alguma coisa de extraordinário! O que é certo que não tardou que o miserável, a troco de promessas que se haviam de realizar muito breve, ia conseguindo o seu intento, que era fazer-se cercar de uma corte de idiotas que o admirassem. Com este prestígio, obteve então dos que tinham alguns bens de fortuna, dinheiro, bois e cavalos” (RE, p. 44). 131 Em O Reino Encantado, Frei Simão era morador de um sítio próximo à fazenda Porteiras e havia sido iniciado na comunidade de Pedra do Reino por João Antônio, que, a princípio, quis mostrar a Frei Simão que suas palavras não passavam de uma usurpação. Mas o frade, ao “observar as extraordinárias cenas em que o futuro profeta falava com os espíritos invisíveis, mostrando-lhe no céu letras de fogo a confirmarem o impulso sagrado que o levara a pôr de parte o criador do embuste, o mandingueiro acendeu ao plano de considerar o mameluco excluído da graça do 192 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Dentre os três profetas, um diferencial de João Ferreira é que ele era o único que acreditava no reino encantado. No romance, diferentemente de João Antônio, João Ferreira não é representado como ludibriador dos sebastianistas ou um embusteiro, mas sim como alguém que realmente confiava na profecia. É o que se depreende do diálogo entre ele e Frei Simão. Este lamenta o fato de os sacrifícios serem em número menor do que o necessário para o reino se desencantar. - [Frei Simão] o povo está cheio de medo e recusa entregar-se. O número dos sacrifícios anunciados não cresce, e nada de levantar-se a pedra do encantamento. O diabo é sujo, e, se consegue meter na cabeça dessa gente que o reino não desencanta, está tudo perdido. - [João Ferreira] Quem te disse, que possa alguém transtornar a obra do santo? É essa mesma pouca fé que há de argumentar a raiva de Deus e atirar as vítimas ao encontro do gume afiado da espada. O Encoberto renovou sua aparição dignando-se falar ao seu humilde servo. E sabeis o que me disse?... Tremem-me as carnes... mas a sua vontade será cumprida. O casamento do apóstolo com Maria realizará a profecia, e tanto sangue há de correr que nele se afogarão todos os vícios e maldades abomináveis desta gente miserável, que vê e não crê, tem a vida gloriosa ante os olhos e a despreza. Vamos; a esposa divina nos espera... Combatamos a cegueira que a escurece e tu não soubeste dissipar (RE, p. 71 – grifo nosso). João Ferreira acreditava que logo após seu casamento com Maria, os sacrifícios voluntários iriam acontecer em número suficiente para afogar todos os vícios e maldades. Por isso, pediu a Frei Simão que apressasse a cerimônia, de modo que todos os males fossem dissipados. Outro aspecto importante que diferencia João Ferreira dos demais reis de Pedra do Reino é que ele é representado por meio de uma linguagem própria da medicina psiquiátrica. Conforme o narrador expõe: De todos os sócios de João Antônio, nenhum apresentou desde logo sintomas tão graves de desordem mental como João Ferreira. Havia neste homem uma propensão singularíssima para a idéia fixa. Mal, portanto, se lhe encasquetaram no cérebro as idéias de um encantamento, tornou-se taciturno, selvagem, perdeu todo o apetite e entregouse a um gênero de vida que nem estava nos hábitos do sertanejo, nem continha-se nos limites prescritos pelo intérprete do rei desaparecido em Acacer-el-Kibir (RE, p. 89 – grifo nosso). Segundo Peres (2010, p. 18), em 1817, Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), médico psiquiatra francês e discípulo de Philipe Pinel (1745-1811), descreveu alguns sintomas para a melancolia. Dentre eles, a tristeza, o abatimento e o desgosto de viver e o delírio sobre uma idéia fixa. De acordo com o narrador, a ideia fixa de João Ferreira era a do desencantamento Encoberto. Deixaram ambos o casebre, chamaram João Pilé, os Vieiras, e o mesmo Gonçalo dos Santos; fundaram o reino visível de Pedra Bonita que tinha de ser percussor do verdadeiro reino, e o mistério das sete semanas encetou-se na sexta-feira da paixão” (RE, p. 92). 193 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 do reino que se apoderou dos seus pensamentos de um modo singular, que seus hábitos nem se assemelhavam ao do sertanejo comum, nem aos hábitos dos outros sebastianistas de Pedra do Reino. No capítulo do romance intitulado “João Ferreira”, o narrador anota que o 2º profeta de Pedra do Reino era oriundo do Piauí. Embora não fosse da região de Serra Talhada, todos sabiam de seu passado “sombrio”, uma vez que Josefa, sempre que se zangava com o marido gritava aos quatro ventos que ele não passava de um “monstro” e que suas esquisitices tiveram origem na infância. Sucedera o fato assim: entrou o malvado um dia em um cercado de criações que a mãe muito zelava, e deixando-se apoderar um ímpeto desordenado armou-se de uma faca e atirou-se como um louco sobre os inocentes animalejos talhando-os a direita e a esquerda. A destruição foi colossal; e a mãe de João Ferreira, vendo-o naquele estado deplorável, extenuado, coberto de sangue, a olhar contentíssimo para os destroços filhos de seu braço, correu assombrada em busca de socorro. Valeu-lhe este desbarato um furioso castigo, que, entretanto, de nada serviu-lhe, porque o menino crescendo em idade não perdeu a mania extravagante. Saindo de casa paterna, por não o puderem suportar atirou-se a uma vida aventurosa, e embrenhou-se na vereda de crimes (RE, p. 89). Pe. Correia já tinha ouvido Josefa e o próprio João Ferreira em confissão e, por esse meio, sabia das atrocidades que o marido de Josefa era capaz de cometer. Conta o narrador que o padre se desestruturou ao saber que João Ferreira havia herdado de João Antônio a liderança do movimento de Pedra do Reino. Tremeram-me as carnes, logo que me deram esta notícia, e convim que as cenas que presenciamos teriam de realizar-se. Esse homem, cujo caráter por meu ministério conheço a fundo, é a fera mais terrível, o espírito mais obcecado, o fanático de imaginação mais desvairada que percorre estes sertões. João Ferreira... sanguinário, louco mesmo pelo sangue como é, de posse do ânimo da gente do seu amigo, será capaz de coisas estupendas! E aí estão os fatos demonstrando o... não resta mais dúvida para mim... o monstro começou a sua obra... (RE, p. 44). No diagnóstico do narrador, João Ferreira era acometido por um quadro patológico de loucura. Compreensão esta que se coaduna com a de um grupo significativo de médicos brasileiros do século XIX, discípulos do médico italiano Cesare Lombroso, que acreditava numa concepção biológica do crime. Em suas teorias, Lombroso defendeu que o criminoso é portador de determinadas características biológicas, ou seja, o criminoso seria “anômico e naturalmente impelido ao crime”. Ao que tudo indica, é com essa concepção que o narrador caracteriza João Ferreira, já que, conforme se lê no trecho acima, “ele era “sanguinário, louco mesmo pelo sangue”. A ligação entre a concepção ficcional da personagem João Ferreira e o conhecimento médico-psiquiátrico difundido por Lombroso torna-se mais evidente à medida que constatamos 194 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 que o médico italiano e seus seguidores defendiam que, entre as causas da criminalidade inata, estaria o fato de que todo criminoso seria portador de epilepsia. E João Ferreira é qualificado como epilético: Havia de feito na figura do profeta um quer que fosse de epilético, que aterrava. Os olhos vidrados eram agitados por movimentos convulsivos, as pupilas erradias e desencontradas davam-lhe aspecto de um homem em quem a razão se transviara e com quem perigosíssimo seria tratar naquele instante; a respiração tornava-se custosa, a cabeça deixava-se de vez enquanto sacudir por pequenos estremecimentos, e os dedos recurvados contraíam-se como querendo apegar-se a um invisível objeto (RE, p. 71). Qual a concepção de epilepsia no período? De acordo com Lombroso, a “epilepsia (...) reúne e funde os loucos morais e os delinquentes natos em uma mesma família natural”. Por conseguinte, a epilepsia e a predisposição para o crime seriam as duas faces de uma mesma moeda, assim como a prática de crimes poderia ser considerada um sintoma de epilepsia. Tanto é que Lombroso é categórico ao afirmar que “o epilético normalmente é uma caricatura do crime” (LOMBROSO, 1887, p. 456). E explica que: Para os leigos, que só percebem na epilepsia o acesso convulsivo ou o equivalente psíquico, ou essas formas singulares a que se chama de ausências e vertigens etc., esta aproximação poderia parecer absurda; não é a partir do momento em que se considera, não somente os epifenômenos mais evidentes destes infelizes, mas também todas as características, cujo conjunto constitui [...] a história natural do epilético (LOMBROSO, 1887, p. 438). Antes de Lombroso, em 1857, o médico Benedict-Augustin Morel desenvolveu a “teoria da degenerescência”, publicado na obra Traité des Dégénérescences. Para ele, os “degenerados” seriam os indivíduos acometidos de patologias que tivessem uma origem oculta, dentre esses males figuraria a epilepsia. Ou seja, a classificação dos chamados degenerados teria como base fatores físicos e, sobretudo, fatores psíquicos. Com essa ordem de argumentos, o grupo dos degenerados seria formado não apenas pelos epiléticos, mas também por portadores de outras doenças como alcoólatras, alienados, sifílicos, todos considerados “um desvio doentio do tipo normal da humanidade (...) resultado de uma influência mórbida, seja de ordem física, seja de ordem moral” (MOREL, 1857 Apud. PORTOCARRERO, 2002, p. 49). Uma explicação dessa natureza pressupunha o epilético como um criminoso em potencial, conforme já defendido por Lombroso. Nesse caso, caberia ao médico cuidar tanto da parte física como também mental do “degenerado”. Considerando que a personagem João Ferreira foi concebida como epilético, é possível afirmar que ele guardava em si as características do doente, quais sejam a delinquência e a amoralidade. Ainda de acordo com o narrador, a epilepsia seria contagiosa e, por isso, acometia 195 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 os demais membros da seita. João Ferreira orquestrava um delírio coletivo. Diante da figura do “rei santidade”, os moradores do arraial se comportavam de maneira submissa: Uns ajoelhavam-se, outros beijavam a fímbria da camisola do profeta, e todos, batendo nos peitos em forma de submissão, bradavam com um ar aparvalhado, que bem revelava o estado de embrutecimento em que se achavam: - Rei Santidade! Rei Santidade! Era tristíssimo o espetáculo que apresentava essa gente semi-nua, imunda, esquálida, depauperada por excitações morais de toda ordem, vigílias e jejuns, impostos pela crença que seguiam. Pela maior parte eram escravos fugidos, entre os quais se mostravam alguns mestiços arrancados à pequena lavoura e um ou outro indivíduo de raça branca cujo contato com os africanos tornara tão boçais como eles. Em geral todos tinham no semblante uma expressão de bestialidade indefinível (...) Estes infelizes davam cópia perfeita do que é o gênero humano, e a que é capaz de reduzi-lo à ignorância, quando não o guia a razão forte do filósofo e uma superior individualidade (RE, p. 72 – grifo nosso). O determinismo racial somado à falta de instrução seriam, para o narrador, as justificativas para o “tristíssimo espetáculo” das “excitações morais”. Como se lê, a maioria dos sebastianistas do romance era formada por mestiços, alguns brancos, mas todos teriam se tornado “boçais” em razão do contato com os negros africanos. Boçal é uma qualificação pejorativa originária do italiano “bozzo” que significa “peça de pedra tosca”, “aquele que tem rudeza”, “que não foi cultivado”, “sem arte”, “sem engenho” (SILVA, 1789, p. 185). Ou indivíduo que não conheceu o progresso nem a civilização. A despeito de compreender as “práticas sociais” de Pedra do Reino por meio do determinismo racial, a postura do narrador, assemelha-se à de Araripe Jr., o crítico, à medida o que nos possibilita algumas inferências. Por exemplo, é possível deduzir que eventos como os de Pedra do Reino não voltariam mais a acontecer desde que se instrumentalizasse o sertanejo a fim de que ele superasse a ignorância e se guiasse pela “razão forte do filósofo”. Para o narrador, no entanto, o efeito da superstição teria atingido às mulheres de maneira mais devastadora. De todos os componentes do “séquito” de João Ferreira elas seriam as mais fervorosas fanáticas: As mulheres, estas ainda mais do que os homens pareciam degradadas pelos efeitos da superstição. Sem o mínimo vestígio de pudor, arrastando-se pelo chão em acessos de um histerismo repugnante, pairando-lhes nos olhos encovados uns visos de apatetamento, conduziam os filhos sem carinho, e, fora de si, não se satisfaziam em reverenciar o rei Santidade, queriam adorá-lo, queriam beijar-lhe as plantas e receber por qualquer modo um toque que as santificasse (RE, p. 72). Degradadas, histéricas, apatetadas: assim eram as mulheres que teriam acreditado na profecia. As reverências delas a João Ferreira, porém, baseavam-se na crença de que um simples “toque” nas vestes do “rei Santidade” era suficiente para santificá-las. Importante dizer que João 196 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Ferreira não circulava ordinariamente pelo arraial. Suas aparições eram cercadas de pompa e ritualizadas. Era justamente nessas ocasiões, que as mulheres buscavam pelo menos tocar nas vestes do “Santidade”, a fim de alcançar as glórias do reino encantado. Uma das ocasiões mais solenes do arraial de Pedra do Reino era o batismo de um novo membro da seita, ritual que sempre era presidido por João Ferreira. Em O Reino Encantado o único batismo narrado é o de Maria, que recebeu de João Ferreira um batismo de sangue, conforme o trecho que se segue. Os fanáticos encaminharam-se para o centro da praça, e os roucos búzios tornaram a troar. O poviléo se ergueu e os acompanhou; e em procissão dirigiram-se todos para o lado do sul, onde existia uma grande laje côncava. Neste sítio mugiam três touros amarrados a um mourão previamente disposto. Apenas aí chegados, o singular companheiro do negro velho subiu com ele a pedra levando a pobre menina inanimada, e levantaram o rosto para os céus em forma de quem orava. Depois se armou o primeiro de uma grande espada, e o mandingueiro arriando-se da pedra foi desprender um dos touros e fê-los encostar a uma das extremidades da laje. A lâmina tangida com a destreza sem igual desceu sobre a nuca da vitima subjugada, e uma jorro de sangue preto e espumante inundou essa espécie de pia engendrada por nunca vista superstição. Degolado por aquele modo o animal, o corpo foi cair para longe estrebuchando no meio de estertores horríveis. A mesma cena reproduziu-se com os dois restantes, então os celerados repletos de sangue, após ligeira ablução das mãos, profanações do sinal da cruz, e rezas do ritual cristão estropiadas por uma e mais vezes derramaram sobre a cabeça de Maria essa água lustral de nova espécie (RE, p. 62 – grifo nosso). O batismo é um rito de passagem. Segundo Parker (1995; 155), os ritos de passagem “ajudam o indivíduo a processar subjetivamente e a aceitar uma mudança de posição social. (...) Procura-se que o iniciado adquira um novo status para os demais e um novo modo de ser perante os outros”. Além disso, o rito de passagem teria relevada importância para a comunidade a que pertence o iniciado, uma vez que “cada ritual constitui-se um motivo para reunir-se, fortalecer os laços de solidariedade, festejar, e assim ritualizar a passagem dos “seus” de uma etapa de progressão para outra”(Idem). No caso de Maria, ser citada na profecia não era suficiente para que ela pertencesse àquela comunidade; era necessário, pois, que Maria fosse submetida ao rito de passagem aceito pelo grupo dos sebastianistas, o batismo de sangue. Qual o significado do batismo de sangue? O batismo de sangue é uma prática social e religiosa relatada por povos antigos, inclusive no Antigo Testamento da Bíblia 132. A cena do batismo de sangue de Maria teria 132 No livro do Êxodo, capítulo 24, versículos de 3 a 8, há a narração da aliança entre Deus e os homens intermediada por Moisés, cujo símbolo teria sido o batismo de sangue e sua aspersão no altar, conforme se lê: “Naqueles dias: 3Moisés veio e transmitiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os decretos. O povo respondeu em coro: 'Faremos tudo o que o Senhor nos disse'.4Então Moisés escreveu todas as palavras do Senhor.Levantando-se na manhã seguinte,ergueu ao pé da montanhaum altar e doze marcos de pedrapelas doze tribos de Israel.5Em seguida, mandou alguns jovens israelitasoferecer holocaustos e imolar novilhoscomo sacrifíciospacíficos ao Senhor.6Moisés tomou metade do sangue e o pôs em vasilhas,e derramou a outra metade sobreo altar.7Tomou depois o livro da aliançae o leu em voz alta ao povo, que respondeu:'Faremos tudo o que oSenhor disse e lhe obedeceremos'.8Moisés, 197 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 sido observada pelo vaqueiro Manoel Velho que perguntou a Justina o que significava “tão cruentas cerimônias”. A mucama não só esclarece a dúvida do vaqueiro como também elogia João Ferreira: “Nhã Mariquinha está batizada, disse Justina comprimindo o braço do vaqueiro. Nosso rei João Ferreira é um grande profeta!” (RE, p. 62). Observemos as representações de Justina sobre o profeta João Ferreira. Para ela, uma sebastianista convicta, João Ferreira é “rei” e “grande profeta”. Bem diferentes são as representações que o narrador faz da mesma personagem, para quem João Ferreira não passava de um “profeta epilético e louco” que, com o auxílio de Frei Simão, incentivou a prática dos suicídios por causa de sua crença no reino encantado. Ele queria se casar com Maria e lavar o “campo sagrado” com sangue de modo que D. Sebastião se desencantasse e, com ele, todas as benesses do paraíso terreal. Por último, o narrador recorre a argumentos do determinismo geográfico para compreender as práticas sociais de Pedra do Reino. Segundo ele, ocorrências de explosões de fanatismo como a de Pedra do Reino são recorrentes em clima quentes. Não são raros fatos, semelhantes aos de Pedra Bonita e muito menos impossíveis em um clima tórrido, equatorial, onde a muita luz e a intensidade do calor produzem a irritação do sistema nervoso e na formação dos temperamentos propendem sempre para a exageração das funções mentais. Não. Os deslumbramentos contínuos; a demasiada dilatação da alma abisma aí o homem no indefinível e maravilhoso. Surgem então o perdido viajante nas florestas virgens as Manoas e os El Dourados, e ao pobre sertanejo, ao escravo oprimido, ao mísero lavrador, desgraçadas atonias, desvairamentos cruéis que os perdem se não os acode o influxo de uma crença sólida (RE, p. 85 – grifo nosso). Mais uma vez, porém, encontramos no narrador um eco da postura de Araripe Jr. como crítico literário. Como podemos inferir do trecho citado anteriormente, todos os desvairamentos daqueles “sertanejos pobres”, daqueles “escravos oprimidos” e “míseros lavradores” não teriam ocorrido se lhes acudisse “o influxo de uma crença sólida”. O que seria para o narrador uma crença sólida? Provavelmente a crença na ciência e no progresso como chaves para minimizar os determinismos mesológicos e raciais. 3.5.3. Pedro Antônio e sua cobiça Pedro Antônio é a primeira personagem apresentada em O Reino Encantado. Para fazê-lo o narrador anuncia a raça a que ele pertence e descreve-o da seguinte maneira: então, com o sangue separado,aspergiu o povo, dizendo:'Este éo sangue da aliança, que o Senhor fez convosco,segundo todas estas palavras'”. 198 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 visivelmente oriundo de mamelucos: sem suas faces espalmadas, nariz achamorrado 133 e olhos gaseos, por baixo de uma carrapinha impenetrável; estampava-se a brutalidade junta ao cinismo e ao mais desbragado. Trajava à moda dos vaqueiros do sertão: gibão de couro, perneiras e chapéu de couro de jibóia; e trazia a tiracolo um bacamarte de boca de sino mais horripilante na aparência que uma cascavel assanhada (RE, p. 05 – grifo nosso). Na nossa compreensão, Araripe Jr. caracterizou o profeta Pedro Antônio tomando mais uma vez como fonte a literatura médica de matriz lombrosiana. No livro O homem criminoso (1887), Lombroso reuniu textos publicados nas décadas de 1850-1870, nos quais considerava as características de ordem física como determinantes nas “práticas sociais” do indivíduo, inclusive na prática de crimes. De acordo com Cesare Lombroso, as relações sociais não produzem criminosos; o fator preponderante para que o indivíduo praticasse um crime seriam os traços físicos. Com base nesse princípio, Lombroso descreveu, classificou, estudou e diagnosticou os vários tipos de criminosos. Sua teoria, sua voz autorizada de cientista, forneceu assim um instrumento que legitimou práticas ordenadoras da sociedade. No interior do romance, Araripe Jr. utilizou os conhecimentos médicos em voga para justificar os desvios de conduta de Pedro Antônio. Logo no início do romance há um diálogo entre ele e Tibúrcio. Na conversa, Pedro Antônio declara seu ódio a João Ferreira e afirma categoricamente não acreditar em seus “embustes”. [Tibúrcio]- Fala-me então com franqueza. Odeias João Ferreira? [Pedro Antônio]- Se odeio?... Abomino-o!... [Tibúrcio]- E crês ainda nos seus embustes? [Pedro Antônio]-Fingi sempre acreditar. Não entendo de livros como ele, mas a alma é forte e não tem medos. [Tibúrcio]- Pois então escarna-me o teu coração... o que é que ambicionas? Bem o suspeitava! Fala... (RE, p. 06). A resposta de Pedro Antônio é categórica: ele aspira às riquezas de Pedra do Reino; mas não as riquezas submersas nas torres, nem as riquezas prescritas na profecia. O que, de fato, ele queria eram os bens de fortuna furtados ou angariados pelos escravos nas fazendas circunvizinhas ao arraial, sob a ordem e orientação de João Antônio, o primeiro profeta. Pedro Antônio supunha que João Ferreira e Frei Simão seriam os guardiões desse tesouro. No entanto, por ser irmão do primeiro profeta, o responsável pela obtenção daqueles bens de fortuna, Pedro Antônio se considerava herdeiro do irmão e legítimo dono do tesouro. 133Achamorrado: a.cha.mor.ra.do adj(a1+chamorro+ado3) 1. Mal aparado (o cabelo). 2. Achatado, chato, grosso (nariz). 3. Injuriado. 199 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Em O Reino Encantado,Pedro Antônio é representado como um profeta cujas práticas eram movidas pela cobiça. Quando ele, Josefa e Tibúrcio conseguem destronar João Ferreira, Pedro Antônio é coroado como profeta de Pedra do Reino. Durante a cerimônia de coroação, Pedro Antônio recebeu o “caricato emblema” animado por um secreto júbilo. Segundo o narrador: Pedro Antônio não se cansava de olhar para o cenáculo aonde supunha existirem acumulados em grande mealheiro todos os despojos de ouro e prata resultantes da depredação das fazendas ou dos furtos cometidos pelos escravos; e imaginava se apossar de todas essas riquezas, cogitando já nos meios que empregaria para, de mansinho, continuar a indústria tão astuciosamente inaugurada pelo irmão (RE, p. 133). As representações do profeta Pedro Antônio exemplificam que os potentados eram um inimigo comum a ser combatido. Mas, os membros do grupo dos sebastianistas, a começar pelos seus líderes, aderiram à crença por motivos de foro íntimo e com interesses muito particulares. *** No início deste capítulo, afirmamos que as representações das personagens do romance baseiam-se ora em elementos de matriz naturalista, ora em dados de matriz romântica. Até aqui evidenciamos que as representações dos profetas de Pedra do Reino foram “calcadas” em orientações naturalistas.A partir de agora, nos debruçaremos sobre as representações de duas personagens em cujas composições se sobressai o viés romântico. Trata-se do vaqueiro Manoel Velho e da sinhazinha Maria. 3.6. Manoel Velho: o vaqueiro nobre, destemido e fiel Manoel Velho, conforme já sinalizamos no resumo, trabalhava como vaqueiro, na fazenda Porteiras, de propriedade de Bernardo Vasconcelos e sua família. As representações dessa personagem são de matriz flagrantemente romântica. Na trama de O Reino Encantado, Manoel Velho cumpre duas funções distintas e complementares que corroboram nossa assertiva: primeiro, o vaqueiro fazia as vezes de fiel guardião da família de Bernardo Vasconcelos e da propriedade, sobretudo nas ocasiões em o fazendeiro se ausentava da Porteiras. Depois, quando Maria e dona Clemência foram sequestradas, o vaqueiro Manoel Velho não se conformou por ter falhado na nobre missão de guardar a família , por isso, tomou para si a responsabilidade de reaver a esposa e a filha do patrão. Tarefa que o vaqueiro só é capaz de levar a cabo e lograr êxito pela força de um heroísmo romântico que regula a construção da personagem. Em ambas as 200 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 situações, a composição da personagem Manoel Velho é calcada na imaginação e na idealização românticas, diferentemente das personagens já discutidas que tiveram suas representações alicerçadas na análise e observação. Em O Reino Encantado, o narrador anota diversas passagens que revelam a disposição do vaqueiro Manuel Velho em ser o fiel guardião dos Vasconcelos. Cumpria ao vaqueiro zelar pela segurança de Maria e de dona Clemência, sobretudo, nas ocasiões em que Bernardo Vasconcelos precisava se ausentar. O trecho que se segue, narra o momento em que o fazendeiro está se ausentando da fazenda Porteiras e delega ao vaqueiro a responsabilidade pela sua família: Manuel Velho, com a solicitude que lhe era peculiar, foi inspecionar a cavalgadura do amo, e, achando que não havia faltas, aproximou-se para receber as suas últimas ordens. O fazendeiro acordara taciturno como nunca. Poucas palavras de recomendação lhe escaparam, apenas referindo-se à mulher e à filha, porém fortes e incisivas (RE, p. 22). A confiança na fidelidade do vaqueiro estendia-se à dona Clemência. Para a esposa de Bernardo Vasconcelos, além de leal, ele tinha o vigor físico: “o vaqueiro Manuel Velho é um tigre de valor, e supre bem a falta de Vasconcelos”. Qualidade esta reafirmada pelo narrador: “Manuel Velho era de feito corajoso e confiava nos seus recursos. Os malvados estavam, portanto, às voltas com um adversário poderoso”. Os malvados em questão eram Tibúrcio e Pedro Antônio, a quem Manuel Velho conseguiu impedir uma primeira tentativa de sequestro que Maria sofreria. Nessa ocasião, Manuel Velho conseguiu trazer Maria de volta para casa, sã e salva. Feito que lhe valeu um elogio e um pedido de dona Clemência: “Não te descuides de nós, Manuel. Sede nosso amparo. Tu bem sabes quanto te estimamos” (RE, p. 25). A reação de Manuel Velho ao ouvir tamanha prova de confiança é comentada pelo narrador: “Comovido, e ao mesmo tempo ensoberbecido com aquela pequena vitória, o vaqueiro coçou a cabeça familiarmente, e pôs-se a olhar a menina que gradualmente se restabelecia do choque que sofrera”. Com sua resposta à dona Clemência, Manuel Velho deu todas as provas de que merecia a confiança que a família Vasconcelos lhe devotava: “Assim Deus me ajude, senhora!... estes olhos são sagazes e estas pernas tão ágeis como os gravetos do veado. Confie no vaqueiro... confie no vaqueiro...” (RE, p. 25). A despeito de toda dedicação de Manuel Velho, na noite daquele mesmo dia, a fazenda das Porteiras foi assaltada, a sede foi completamente queimada. Além do que, Jaime foi assassinado e Maria e dona Clemência foram sequestradas. No momento em que tudo isso aconteceu, Manuel Velho não estava na fazenda; antes de se dirigirem para lá, Tibúrcio, Pedro 201 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Antônio e Frei Simão, imobilizaram o vaqueiro porque sabiam que se ele estivesse por perto, não conseguiriam ter êxito no plano de raptar Maria. No dia seguinte, Manoel Velho se desesperou ao saber que Maria e dona Clemência haviam sido sequestradas. Sua reação à notícia é assinalada pelo narrador: O efeito [da notícia dos acontecimentos em Porteiras] foi terrífico para o mísero vaqueiro. Estava tudo perdido, tudo aniquilado e àquela hora a fazenda reduzida a cinzas!... Mil idéias em tumulto invadiram-lhe o espírito e do meio da voragem só uma coisa transluzia: era a sua provável culpa, a sua desídia, a sua responsabilidade. O sertanejo amava seriamente a família de Vasconcellos, e não podia conformar-se com a perda daquela santa gente (RE, p. 58-59). O trecho citado ressalta a matriz romântica sob a qual o sertanejo, o vaqueiro Manuel Velho foi representado: o amor pela família a quem servia e o sentimento de culpa que se apoderou dele ao saber que havia falhado em sua missão de zelador dos Vasconcelos. Completando o quadro de composição romântica da personagem, Manoel Velho carreia para si a responsabilidade de reaver as duas senhoras e entregá-las sãs e salvas ao patrão. A partir desse trecho de O Reino Encantado, o traço romântico da caracterização de Manuel Velho se acentua. Ele protagonizará peripécias inimagináveis até recuperar Maria e dona Clemência. É longa, porém digna de nota a cena em que o vaqueiro Manoel Velho consegue livrar Maria dos braços de Tibúrcio. Sem refletir, despediu-se como um raio montanha a baixo e, avizinhando-se do cercado que o separava da ocara, quis galgá-lo. Mas isto era impossível em razão da altura das estacas; contornar esse cercado e penetrar pela porteira, mais difícil ainda seria, pois que Frei Simão e os seus interceptariam a sua passagem. O vaqueiro angustiado seguiu pela fila de estacas que ia nesta parte terminar na grota a que, mais de uma vez, nos temos referido; aí parou e olhou para o precipício. Descer por ali a fim de salvar o embaraço e subir adiante seria tentar a própria morte. Mas Manuel não pensou nisso. A idéia de evitar uma desgraça dava-lhe forças para mais. Várias aderências de liquens e algumas raízes descoberta pelas águas se mostravam em alguns pontos do despenhadeiro. Confiado no vigor do pulso, agarrou-se à raiz que mais à mão lhe ficava e deixou-se escorregar procurando alcançar a imediata e assim foi descendo até conseguir chegar a uma saliência da qual a queda já não seria mortal. O vaqueiro realizava um verdadeiro prodígio de acrobata. Os músculos, entretanto, com o esforço operado se sentiram enfraquecidos; e ele julgou não poder concluir a sua obra. Ajuize-se da aflição de Manuel Velho ao ver o tempo se escoar; quis lhe parecer também que vinha desarmado; felizmente, apalpando o quarto, encontrou ali a faca do uso de Josefa de que, momentos antes, por cautela, tinha-se apoderado. Esse enleio não podia continuar. Ficar ali como um estafermo é que não tinha razão de ser. Manuel deixou, outra vez, escorregar. Faltando-lhe o apoio para modificar a queda, seu corpo foi rolando até embaixo, onde o recebeu uma moita de mofumbos. Por mais rija que fosse a sua têmpera, fazer um esforço daqueles, quando ainda não se tinham cicatrizado as feridas produzidas pela espécie de suplício a que haviam sujeitado no Riachão, era abusar dos dons da natureza. O vaqueiro, sofrendo esse último choque, tonteou e caiu de bruços. Por momentos, julgou o esforçado rapaz que ia perder os sentidos; reagindo poderosamente, porém, contra esse desfalecimento que o queria suplantar, pôs-se de pé e, cambaleando, aproximou-se do rio que sussurrava embaixo. Inclinou-se, reunindo as mãos em forma de cuia, meteu-as dentro d’água e banhou a cabeça três ou quatro vezes. A impressão fria da água foi quanto bastou para lhe desanuviar o cérebro do 202 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 sangue que o invadia impetuoso. Manuel tornou a se erguer e apressou o passo no intuito de tomar o carreiro nosso conhecido. Muito tempo fora perdido. Tibúrcio, tendo com a presença de Vasconcelos se recolhido à tenda, apoderara-se do corpo de Maria, precipitara-se em demanda da grota. Vendo-o descer impávido e não se lhe ocultando que o enjeitado vinha armado, o vaqueiro tinha uma inspiração. Nunca havia atacado pessoa alguma de emboscado, mas o caso exigia. Uma luta naquelas circunstâncias poderia ser fatal à menina. Tibúrcio inevitavelmente passaria por onde ele estava; Manuel Velho, portanto, antes que fosse pressentido, agachou-se como um gato atrás de uma pedra e esperou. Não tardou que o raptor atravessasse e desse-lhe as costas. Neste momento decisivo, levantou-lhe em um bote e, com mão certeira, cravou a faca até o cabo nas costa do malvado. Varara-lhe o coração. Tibúrcio vacilou e sentindo-lhe faltarem os pés, volveu-se sobre si. Reconhecendo-o, em um assomo de ódio, empunhou uma das pistolas e pretendeu despedaçar o crânio da inofensiva Maria. Os alentos vitais o haviam abandonado. O tiro se perdeu ao acaso; o braço decaiu flácido e o corpo se estendeu num lago de sangue (RE, p. 151-152). Numa atitude que beira o fantástico, Manuel Velho conseguiu adentrar na tenda onde estava Maria, o aposento mais vigiado do arraial, sem ser visto ou interceptado por nenhum dos sebastianistas. Como se não bastasse, protagonizou uma sucessão de atos hercúleos: “confiado no vigor do pulso”, desceu precipício, caiu, quase desmaiou, banhou a cabeça a fim de recobrar os sentidos, planejou e executou uma emboscada contra Tibúrcio, para, por fim, reaver Maria dos braços do inimigo e salvar sua vida. Importante registrar que toda a sequência se passou em tempo recorde, informações que somadas são indicativas da matriz romântica com a qual Araripe Jr. representou o vaqueiro Manoel Velho, aproximando-o de heróis como Peri, de O Guarani, de José de Alencar, e Juca do Salto, do conto de Emílio Zaluar, ambos mencionados no capítulo anterior. 3.7. Maria: à imagem de Nossa Senhora Maria é personagem central no desenvolvimento do enredo de O Reino Encantado. Tal qual o vaqueiro Manoel Velho, Araripe Jr. caracteriza Maria segundo orientações românticas: ela é representada à imagem de Nossa Senhora, virgem, imaculada, mãe de Jesus e dos homens. É a personagem Justina que explica a Maria o modo com que os sebastianistas se apropriam de sua figura: “Olha... sinhazinha não acredita, mas é verdade... Toda a gente de Pedra Bonitapensa que nhã Mariquinha é a imagem de Nossa Senhora...” (RE, p. 40). Em outro trecho Justina reafirma: Se sinhazinha se afronta, é porque ainda não sabe de tudo; é porque não reparou que aqui é rainha! Todos acreditam que é a imagem de Nossa Senhora: o nome é o mesmo, as feições como são de um anjo, não há quem, vendo-a no altar, não caia de joelhos! Pois não viu como o Santidade obedeceu logo e saiu percebendo que desagradava? As mulheres do rei não a adoravam, não lhe beijavam os pés como os de uma santa? Sabe o que significa tudo isto? É que d’agora em diante no reino só se fará o que nhãzinha desejar. O profeta que fala com os espíritos disse que não há de desencantar a Pedra 203 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Bonita sem a vontade de uma Maria, e as visões da Casa Santa mostraram-lhe a sinhazinha como a escolhida do céu. (RE, p. 75). Ou seja, Maria seria a personificação do belo, da pureza, da castidade, da candura angelical. Essa representação de Maria, personagem de O Reino Encantado, se coaduna com as representações de Nossa Senhora desde os primeiros anos da colonização: “uma imagem muito próxima dos pobres, uma mãe muito humana” (PARKER, 1995, p. 153). Conforme afirma Parker, para os latino-americanos: A Virgem é a Mãe que está perto, figura ligada e origem da vida de Deus-Homem e à origem da vida de todos os homens; protetora diligente e maternal da vida dos homens, especialmente dos “humildes e dos oprimidos”(...) isto é, de todos aqueles que têm a vida mais ameaçada e incerta. (PARKER, 1995, p. 153 ). Para os sebastianistas, a filha de Bernardo Vasconcelos e Clemência seria a protetora e intercessora ideal, pois estava ali bem próxima deles, atenta às suas necessidades e capaz de sanálas de forma imediata. Diferentemente dos santos, santas e outros intercessores dos quais falavam os padres católicos, cujas benesses só seriam alcançadas depois da morte, quando estivessem no paraíso celeste. Ocorre que os sebastianistas buscavam um paraíso aqui mesmo na terra, conforme afirma a escravizada Justina: Justina tem tanta fé no que há de acontecer que nestes dias vai morrer, e isto porque quer. Não morreu Jesus por nós?! o céu se abrirá, Deus Todo Poderoso se há de mostrar com o Príncipe Encoberto a seu lado e todos nós ressuscitaremos como diz no credo a Santa Madre Igreja. Que felicidade! Que felicidade! (...)Assim como o céu já se abriu a outros para mostrar seus mistérios, permitiu Deus que o Encoberto fizesse ver a mulata o seu reino por vir. Ai! Se sinhazinha pudesse ir agora espiar pela brecha da pedra encantada! Mas só o rei... ninguém lá entra assim... é preciso estar em graça e ter jejuado. Se fosse, veria... Ah! Se sinhazinha visse! Que coisa linda, meu Deus! São umas riquezas! Uns tesouros, uns lagos de prata e ouro que te faz pensar que está sonhando. Quando Justina olhou pela primeira vez por ali, quase que ficou louca! O que pensa? Aquelas torres de pedra que estão ali são por dentro torres verdadeiras; tem seus sinos, suas escadas, seu sineiros, e para baixo mais encontra-se o corpo da igreja, com altares, tão cheios de brilhantes e pedrarias que doem nos olhos! Que maravilha! As paredes são forradas de ouro, o chão de prata, tudo iluminado até o teto que parece um céu aberto... que coisa! Nhãzinha! E os anjos andam por ali com os turíbulos a incensar os santos, que vivos nos nichos resplandecem como o sol!... (RE, p. 75-76). Vale anotar que a personagem Maria era devota de Nossa Senhora. Tanto é que, quando Justina vai ao encontro de Maria, em meio às confusões que envolveram o cerco à fazenda das Porteiras, encontrou a filha de Vasconcelos, diante de um oratório, rezando à Virgem Maria. Conta o narrador que, logo que ouviu a aproximação dos assaltantes, Maria correu para o seu quarto onde havia um pequeno templo dedicado a N. S. da Penha e pôs-se a rezar. seus piedosos olhos pairaram sob uma imagem da Senhora da Penha, que pendia encima do seu cândido leito. 204 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Fervorosa atirou-se para aquele lado, e, ajoelhando-se aos pés da rainha imaculada dos céus, uniu os lábios rubros ao retábulo em uma oração ardente em que dir-se-ia irem todos os alentos de sua alma angélica. Durou esta prece alguns momentos; por fim como se o voto tivesse sido exalçado134 pela Virgem Santa, pareceu-lhe que seu coração palpitava menos, e uma suave tranqüilidade foi aos poucos invadindo-lhe o casto seio (RE, p. 13). Por que Araripe Jr. escolheu Nossa Senhora da Penha como a santa da devoção de Maria? Considerando que Maria ou “Nossa Senhora”, a mãe de Jesus Cristo, é detentora de vários títulos, por que o romancista optou por ligá-la justamente a Nossa Senhora da Penha? Uma hipótese é a seguinte: Maria, a filha de Vasconcelos, era considerada em Pedra do Reino como uma santa, capaz de desencantar as pedras. Por sua vez, segundo o dogma da Igreja Católica, Nossa Senhora da Penha recebeu esse título também em razão do topos no qual ela teria aparecido pela primeira vez e obrado milagres, na região de Salamanca, ao norte da Espanha, em local chamado Penha de França135. Maria, a filha de Vasconcelos, e Nossa Senhora seriam ambas as “santas da pedra”. Outra hipótese é que Araripe Jr. tinha a informação de que Nossa Senhora da Penha era padroeira de Serra Talhada, freguesia a que pertencia o sítio histórico de Pedra do Reino, em 1838. Conforme já anotamos no resumo, Justina convence Maria a dirigir-se à Pedra do Reino. Mais uma vez é Justina que expõe à filha de Vasconcelos e de dona Clemência a sua importância no desfecho do reino encantado de D. Sebastião: “por causa da beleza de sinhazinha é que soldados do reino vêm a Porteiras. Apóstolo S. João, pela boca do Rei Santidade, disse que encantamento só desapareceria se nhã Mariquinha fosse por a mão na pedra dos martírios. Ora como a menina não iria até lá por sua vontade, será preciso matar gente e levá-la à força”(RE, p. 33). Exaltar. Existia no norte da Espanha uma serra muito alta e íngreme chamada Penha de França, na província de Salamanca, na qual o Rei Carlos Magno teria lutado contra os mouros. Por volta de 1434, segundo algumas fontes históricas, no dia 19 de maio, certo monge francês sonhou com uma imagem de Nossa Senhora que estava enterrada no topo de escarpada montanha, em razão de uma guerra entre franceses e muçulmanos, na qual os católicos escondiam suas imagens para não serem destruídas, cercada de luz e acenando para que ele fosse procurá-la. Simão Vela, assim se chamava o monge, durante cinco anos andou procurando a mencionada serra, até que um dia teve indicação de sua localização e para lá se dirigiu. Após três dias de intensa caminhada, pela razão de segundo ele próprio, em seus êxtases ouvir sempre a advertência divina: "Simão, vela e não durma!" (pelo que passou a adotar o sobrenome de Vela, como ficou conhecido), escalando penhas íngremes, o monge parou para descansar, quando viu sentada perto dele uma formosa senhora com o filho ao colo que lhe indicou o lugar onde encontraria o que procurava. Auxiliado por alguns pastores da região, conseguiu achar a imagem que avistara em sonho. Cf. CONNELL, Janice T. Encontros com Maria: As Aparições de Nossa Senhora. Portugal: Planeta Editora, 2000; Cf. RUGGLES, Robin. Os Santuários das Aparições. Prior Velho: Paulinas Editora. 205 134 135 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 Logo depois dessa conversa, Justina conduz Maria à Pedra do Reino. O trajeto de Maria à Pedra do Reino, sua chegada e permanência no arraial, tudo é representado de acordo com orientações da estética romântica. É o que se depreende do trecho que se segue: O seu rapto de Porteiras, o seu trânsito por caminhos lôbregos no meio de uma turba sinistra, os clarões avistados de longe, a sua chegada a Pedra Bonita, a terrível cerimônia do batismo, o medonho aspecto dos fanáticos, eram fatos estes que tinham corrido como um pesadelo, e agora se esvaiam no fundo de sua imaginação, deixando de sua passagem apenas os lineamentos, como de um quadro que, traçado sobre a lousa, fosse apagado pela esponja (RE, 73). Como se lê, a despeito de todas as dificuldades que Maria enfrentou no trajeto até o arraial, o cenário que lá encontrou, os rituais a que foi submetida, o contato com os sebastianistas, “figuras esquálidas e sinistras do arraial”, nada disso foi capaz de macular a imagem “sacrossanta” de Maria. Com isso, o romancista Araripe Jr. inscreve Maria na galeria das heroínas românticas, que, apesar de passar por todas as adversidades e por toda sorte de perigo, mantémse pura, intacta, virginal e incorruptível. Além do mais, sua vida é salva por meio de uma cena que beira o “fantástico”, depois de uma luta corporal protagonizada por Tibúrcio e pelo vaqueiro Manoel Velho, na qual este, a personificação do bem, logra êxito. Aliás, na intenção de preservar Maria de suas aflições ante a saudade dos pais e de Jaime, seu noivo, Justina sugere que Frei Simão ofereça o vinho sagrado à menina. De acordo com o narrador de O Reino Encantado, o vinho sagrado era um composto de jurema, um narcótico abundantemente encontrado na região, que provocava delírios e alucinações: “A jurema é o hachich dos indígenas brasileiros; nessa droga residem propriedades admiráveis. Altera as funções do cérebro e aquele que tem a ventura ou a desventura de ingeri-la no estômago em uma embriaguez divina; e não era de outra qualidade o vinho sagrado com que o mandingueiro [Frei Simão] realizava os seus prodígios” (RE, p. 115 – grifo nosso). Sob o efeito do alucinógeno, Maria delirou como num sonho e todo o arraial de Pedra do Reino se revestiu. Foi o que aconteceu ao céu: O céu, de repente, se iluminara e riscos candentes atravessaram-o em várias direções. Nisto uma listra de um fogo azulado desprendeu-se da imensa abóbada e precipitou-se sobre os dois grandes monólitos que figuravam as torres da soterrada catedral e estes, como se foram suscetíveis de inflamar, conflagaram-se instantaneamente, sacudindo de si chispas metálicas de todas as cores de que se compõe o íris (...) Nuvens douradas, mas de um dourado suave, como suaves devem ser as vistas das roupagens dos anjos, circularam o arraial e encerraram em seio os rochedos do encantamento (RE, p. 115). Como senão bastasse, o som “gutural” foi substituído por um “som divinal de uma invisível orquestra” (RE, p. 116). Além dessa transmutação, aconteceram outras ainda mais 206 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 “fantásticas”: “As duas grandes pedras haviam sido substituídas por duas torres verdadeiras, cujos sinos, a rodopiarem tangidos por mãos desconhecidas, lançavam aos ares sons alegres e festivos” (RE, p.116). E o narrador continua “Não parou aí a maravilhosa transmutação. As torres se moveram e, aos bocadinhos, impelidas pelo gênio que seguramente animava toda aquela região de fadas, foram se alevantando de solo” (RE, p. 116). Desse local, “uma cruz surgiu de sob a terra; logo depois do frontespício de uma igreja e, por fim, toda a nave de um templo grandioso” (RE, p. 116). Somente quando as luzes se acenderam, Maria percebeu que estava no centro de uma imensa cidade. “Era uma cidade em festa. O povo entulhava as ruas e luzidas cavalgadas e carruagens atravessavam-nas de um extremo ao outro no meio de inextinguíveis aclamações (...) A cidade santa era bem o que lhe dizia a mucama. O reino ressurgia para a felicidade de todos e maior esplendor da glória do príncipe anunciado” (RE, p. 116-117). Nesse momento do delírio, Maria percebe que um rapaz a chamava: Voltou-se e viu Jaime esplêndido de alegria, trajando um riquíssimo vestuário como os antigos cavaleiros. O mancebo lhe pedia que o acompanhasse. Confusa, Maria olhou para si suspeitando que os seus vestidos não condissessem com as sedas e veludos que cobriam o noivo gentil... Qual não foi, porém, o seu espanto ao encontrar-se ainda mais deslumbrante do que ele. Um trajo lindo e roçagante despenhava-se de seus ombros delicados e, ao colo, pendia-lhe um colar de preço inestimável. Cada vez mais maravilhada, a menina que ainda não havia notado que fora arrebatada a um palácio principesco, deixou-se conduzir pelo seu nobre cavaleiro e, descendo a majestosa escadaria, entrou em um coche tirado por uma linda parelha de cavalos luzidios ajaezados de ouro e prata (RE, p. 116). Segundo os delírios de Maria, a carruagem conduziu Jaime e Maria para uma grande catedral. “Jaime lhe deu a mão; desceram e entraram no templo com a majestade de dois príncipes”. Diz o narrador, que não havia palavras com que se exprimisse “a ebriedade que as riquezas acumuladas sob a abóbada dessa catedral causaram ao coração ingênuo da filha de Vasconcelos”. Sob o efeito da jurema, Maria se sentia no céu. Acompanhou o jovem casal, um cortejo de damas e cavaleiros. Depois, para “completar o espanto”, Maria “viu Vasconcelos e D. Clemência descerem sorrindo no solio [sic] real, daremlhes a mão, fazendo-os subir até os suntuosos tronos” (RE, p. 117). Maria estava em estado de graça, ao lado dos pais e do amado noivo. Além do que, no seu delírio, todas as explicações que Justina havia lhe dado, tinham se materializado. De repente sentiu-se viver naquele corpo esbelto de rainha e, procurando ao lado o esposo, encontrou Jaime na pessoa do garboso cavaleiro (...) Ali estava toda a sua corte de Pedra Bonita transformada, fulgente de galas. Justina, as mulheres de João Ferreira, Frei Simão, todos enfim cujas feições pudera guardar após um contato tão ligeiro, 207 Representações romântico-naturalistas na composição d’O Reino Encantado Capítulo 3 haviam sido transportados para aquele mundo maravilhoso e necessariamente ressurgidos mostravam-se limpos da fealdade anterior, alvos, formosos, como prometera-lhes o Encoberto (RE, p. 117). Neste capítulo vimos que a obra O Reino Encantado apresenta uma estrutura narrativa fracionada entre representações românticas e naturalistas. Conforme procuramos explicar, isto se deve ao fato de que o romancista Araripe Jr. experimentava uma escrita num momento de transição, quando os fundamentos do romantismo passam a ser questionados, sobretudo a partir das Cartas a Cincinato, e quando novos pressupostos da escrita literária, mas vale resssaltar, do corpus teórico europeu, adotam procedimentos de imaginação, observação e comprovação, consoante os novos créditos imputados à ciência. Adotar uma postura científica corresponderia a legitimar novos conhecimentos. É pela ciência que se articulam os discursos jurídicos, médicos, sanitaristas, mas também o histórico, tanto quanto o literário. É com esse aporte que Araripe Jr. desenvolve sua crítica, mas também elabora seu romance. As tensões e as representações típicas do momento em que vivia podem ser explicadas também pela compreensão do autor de que o campo literário brasileiro deveria ser forjado de acordo com os desafios de formação dos valores nacionais. 208 Notas Finais NOTAS FINAIS Tristão de Alencar Araripe Jr. é autor de mais de uma dezena de romances e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. A despeito disso, seu viés romancista é praticamente desconhecido; a historiografia literária evidencia-o apenas como crítico literário. Embora reconheçamos suas importantes contribuições no campo da crítica, nesta tese, preferimos sair do lugar-comum e colaborar com a escrita da história do livro e da leitura de nossas letras, à medida que trouxemos à luz romance e romancista que estão à margem do cânone. Tomamos a tarefa de sublinhar a produção ficcional de Araripe Jr., elegendo como objeto de estudo o romance O Reino Encantado: crônica sebastianista (1878). Trata-se de um romance baseado em um movimento messiânico de cunho sebástico e que, por isso, boa parte de sua composição é marcada pelo referente histórico. Esse aspecto de O Reino Encantado sugeriu que, antes de nos debruçar sobre o romance propriamente dito, cabia-nos recontar a história da Pedra do Reino, conforme os registros da historiografia. Diante das fontes primárias e da bibliografia que conseguimos reunir, observamos que as obras que se debruçaram sobre a história da Pedra do Reino são tributárias da obra Fanatismo religioso: Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, de Antônio Áttico de Sousa Leite. Ao que tudo indica, esta se tornou uma espécie de fonte obrigatória às obras posteriores que elegeram como tema a história da Pedra do Reino, inclusive esta tese. Um aspecto comum a essas obras, mas que nós preferimos não repetir, é que elas consideraram Fanatismo Religioso,de Sousa Leite, como expressão inequívoca da verdade. Amparando-nos na categoria “representação”, conforme entende Roger Chartier (1990), tentamos discutir ao longo do primeiro capítulo, os limites e os problemas, bem como os compromissos ideológicos firmados por Souza Leite, variantes que perpassaram pelas “representações” da história da Pedra do Reino e de seus atores, quais sejam os potentados e os sebastianistas. Observamos que as “representações” elaboradas por Antônio Áttico de Sousa Leite estão grandemente marcadas pelas limitações das fontes utilizadas por ele na composição de sua obra. Esta foi escrita em 1875, 37 anos depois dos acontecimentos, tendo como fontes o depoimento prestado por um militar que combateu em Pedra do Reino, em 1874, e em uma visita feita ao local, também um ano antes da publicação da obra. Outro aspecto que perpassa pelas “representações” elaboradas por Souza Leite é o seu compromisso de prestar serviço ao IAHGP, Instituto congênere ao IHGB, que conforme explica o professor Manoel Salgado Guimarães, nasceu com o objetivo de erigir uma imagem da nação brasileira que, do lado de cá do Atlântico, representasse uma civilização branca e européia. Tarefa, que nos dizeres de Guimarães, exigiria 209 Notas Finais “esforços imensos, devido à realidade social brasileira” (1988; 08), cujas dessemelhanças com a Europa se revelam, sobretudo, pelo amalgamento étnico dos brasileiros. Imbuído dessa missão, Souza Leite teceu flagrantes elogios aos potentados, a exemplo do comissário Manoel Pereira da Silva, oriundo de família abastada e detentora de poder político, fazendeiro e major do Exército; bem como ao Pe. Francisco José Correia de Albuquerque, representante não apenas da Igreja Católica como também do Estado, uma vez que vigia a Constituição de 1824 em que estabelecia a lei do padroado. As representações dos sebastianistas foram regidas pelas mesmas orientações. Aos caboclos, mestiços e brancos pobres de Pedra do Reino, porém, não cabiam amabilidades; mas suas “representações” perpassaram por designações nada elogiosas como “horda de “sicários,” “embusteiros”, “fanáticos”, entre outras. Entretanto, esse ainda não é o ponto. O que chamou a nossa atenção foram as razões e os critérios cientificistas embutidos nessas classificações. Um último aspecto da obra de Souza Leite constantemente repetido pelas demais obras, inclusive no interior de O Reino Encantado, é que os sebastianistas de Pedra do Reino foram levados a julgamento. No entanto, os documentos primários localizados dão a dimensão da fragilidade desse dado. O que os documentos deixam transparecer é que, depois da destruição do arraial, pelas mãos da tropa de Manoel Pereira da Silva, os sebastianistas foram perseguidos e mortos. O próprio Souza Leite informa que João Ferreira e Pedro Antônio foram mortos no combate entre sebastianistas e a força comandada por Manoel Pereira da Silva, no sítio histórico de Pedra do Reino. Já Frei Simão e dois filhos de João Pilé foram mortos entre a Serra Formosa e Conceição do Piancó (LEITE, 1903, p. 243-4) e João Antônio dos Santos nas imediações de Xique-Xique, Bahia. (Idem). Os três primeiros, pelas forças perseguidoras do Capitão Simplício Pereira da Silva e o último, por Roque e Antônio da Cruz, dois dos doze agentes designados pelo comissário Manoel Pereira da Silva para perseguir os sebastianistas de Pedra do Reino. Somadas a essas informações, um ofício de Pe. Gonçalves de Lima, vigário de Serra Talhada, pressupõe que a intenção dos potentados era dar cabo à vida dos sebastianistas: “Neste instante soubemos que já as tropas mataram mais 10 pessoas e só faltam dos cabeças 3, que são João Antônio, o pai e outros mais. O padre Antônio Gonçalves de Lima”(LIMA, p. 1838). Conforme já sabemos, por meio de Souza Leite, João Antônio foi assassinado pelos homens de Manoel Pereira da Silva. De todos os sebastianistas, os documentos primários atestam que apenas dois deles foram julgados e condenados: Antônio Gonçalo dos Santos, pai de João Antônio, Pedro Antônio e Josefa; e Antônio Thomás, de quem não conseguimos localizar informações adicionais. 210 Notas Finais Enfim, diante das imprecisões que rodeiam a história de Pedra do Reino, concluímos que ela continua a espera de um historiador que se proponha a peregrinar por arquivos a cata de novos documentos que subsidiem a elaborar novas “representações” da história da Pedra do Reino, levando em conta o ponto de vista dos silenciados sebastianistas. Depois de analisar a obra Fanatismo Religioso, fonte de composição de O Reino Encantado, passamos a discutir o romance propriamente dito. Para tanto, nos orientamos pelos dizeres de Eduardo Martins o qual leciona que, uma das formas para se estudar uma obra relegada ao ostracismo, é subtraí-la do campo das preferências, “inserindo-a no interessante debate literário travado no momento da sua produção” (1998, p. 08). Foi o que tentamos fazer em relação ao romance de Araripe Jr. Por isso, nos valemos de sua trajetória intelectual, entre 1868-1878, a fim de compreender as fontes que Araripe Jr. utilizou para compor suas “representações” da história da Pedra do Reino e de suas personagens, no discurso literário. O Reino Encantado foi escrito no final de 1870, uma das décadas de maior efervescência política, religiosa e cultural. No contexto brasileiro, essas questões eram intimamente vinculadas, haja vista que discussões travadas na Câmara Legislativa pelo deputado José de Alencar em torno da Lei do Ventre Livre desembocaram na publicação na imprensa das Cartas a Cincinato. Estas, como vimos, são consideradas como marco do declínio do Romantismo brasileiro, do qual José de Alencar é um dos mais eminentes representantes. Até aquele momento, a estética romântica gozava de relevado prestígio e recebia a adesão e o elogio dos nossos mais ilustres homens de letras. No entanto, o advento das Cartas a Cincinato mobilizou boa parte da inteligência brasileira que não se furtou em emitir parecer sobre os “novos” princípios teóricos de composição ficcional e de crítica literária, defendidas por Franklin Távora, o autor das cartas. A partir delas, os representantes de nossas letras se dividiram entre os partidários do romantismo versus os adeptos do realismo/naturalismo, na difícil missão de segmentar princípios, que em certos aspectos, revelam-se tão tênues. Exemplo disso foi a postura de Araripe Jr, um dos mais importantes expoentes da chamada “geração de 1870”. Na qualidade de crítico literário, Araripe Jr. saiu em defesa de José de Alencar e de suas obras por considerá-las como valorosa expressão de uma poética válida ao tempo em que foram escritas. Na concepção de Araripe Jr., aguerrido defensor das letras nacionais, José de Alencar e sua literatura eram o que de melhor se havia produzido pela nascente literatura brasileira. A despeito de proteger Alencar, Araripe Jr. não desabonou os princípios estéticos naturalistas defendidos por Franklin Távora, haja vista que, na condição de romancista, autor de O Reino Encantado, adotou boa parte das orientações realistas/naturalistas na composição do romance, sem, contudo, abandonar certos aspectos da estética romântica. 211 Notas Finais Se as contendas em torno das Cartas a Cincinato serviram-lhe de iniciação ante às novidades literárias, de matriz Positivista, foi na Academia Francesa do Ceará que Araripe Jr. se familiarizou com elas. No interior daquela agremiação, formada por jovens intelectuais como Capistrano de Abreu, Raimundo Antônio da Rocha Lima, entre outros, Araripe Jr. passou a discutir e a acolher de forma muito exigente e criteriosa um “repertório” cientificista de origem européia do qual se valeu para interpretar a nação e sua a literatura. Porém, entendemos que mais importante do que a adesão de Araripe Jr. ao coquetel científico vindo do outro lado do Atlântico, o elemento que preponderou na sua formação intelectual, materializada na sua vasta produção no campo da literatura, foi seu profundo conhecimento da história pátria e da tradição literária brasileira. Assim sendo, fazemos coro a Alonso (2000) e afirmamos que a relação de Araripe Jr. com o repertório científico europeu não teve caráter meramente “intelectual” ou “imitativo”. Tampouco nosso autor teve postura diletante ou teórico-filosófica ante ao legado teórico vindo da Europa. Não. Araripe Jr. se valeu desse repertório com a intenção de interpretar realidade política, social, econômica e artística brasileiras, em meio à crise pela qual passava o decadente império brasileiro. Por último, vimos que as personagens sebastianistas são normalmente representadas a partir de arquétipos naturalistas. Nessas caracterizações, o romancista Araripe Jr. baseia-se, sobretudo, na linguagem da medicina psiquiátrica, ao amparar-se nos legados de Cesare Lombroso. Por sua vez, as personagens do grupo dos potentados e seus prepostos são representados a partir de arquétipos românticos, caso da inocente sinhazinha Maria e de seu fiel protetor, o vaqueiro Manoel Velho. Tensão às vezes revestida de contradição, conforme depreendemos da leitura do romance O Reino Encantado. Vimos como Araripe Jr. transita entre os paradigmas romântico e naturalista. Pela trama que envolve os personagens, percebemos que quando se trata do bloco dos potentados, representantes da hierarquia católica, bem como representantes do Estado, a intriga é composta por maior estabilidade, as tensões quase que desaparecem prenunciando uma forma de “representação” da sociedade movida pela harmonia, pelo consenso e pelo apego à legalidade. O contrário ocorre com os personagens sebastianistas. Aqui o imprevisível predomina. Os sujeitos são movidos por contradições internas que emergem não apenas da psicologia de cada um, mas também irrompem de visões de mundo específicas. Todos eles, entretanto, são marcados pelo conflito, pelo dissenso, pela desarmonia. A forma de resolução de tal “desordem mental” ou “loucura” entre os sebastianistas é a violência ritualizada. Esta, por sua vez, é caracterizada como manifestação do mais obtuso 212 Notas Finais arcaísmo, problema que tinha o clima tórrido como matriz determinante. A raça também seria um fator degenerativo, sem bem que atenuado por Araripe Jr. Situado nesse dilema Araripe Jr. inscreve sua visão particular ante as escolas romântica e naturalista transitando entre preceitos de uma e de outra orientação literária. Ele se serve ainda das principais contribuições do cientificismo vindos da Europa, valendo-se das novas concepções acerca dos processos de criação literária, notadamente a imaginação, a observação e a comprovação. Enfim, vale reafirmar que o autor nunca esteve preso ao debate meramente estético. Suas reflexões acerca das formas do romance, a maneira com que escreveu O Reino Encantado indicam uma característica primordial no romancista. Qual seja o seu compromisso político diante da missão civilizatória que, no Brasil, passava pela construção das bases nacionais. Para Araripe Jr., a literatura e o campo literário seriam as formas privilegiadas para a constituição da nação brasileira. 213 Referências Bibliográficas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes primárias ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. A casinha de sapé. [S.l.: s.n.], 1872 ____________. O ninho do beija-flor.Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1874 ____________. Jacina, a Marabá. São Luís: Tipografia do Frias, 1875 ____________. Um motim na aldeia. [S.l.: s.n.], 1877 ____________. Reino Encantado. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878 ____________. Reino Encantado. Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1878 e no sítio http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00105700#page/1/mode/1up. Acesso: 16 de julho de 2011 ____________. Luizinha. Rio de Janeiro: Vulgarisador[Sic], 1878 ____________. O Retirante. Rio de Janeiro: Vulgarisador [Sic], 1878 ____________. Xico Melindroso. [S.l.: s.n.], 1882 ____________. O guaianás. [S.l.: s.n.], 1882 ____________. Quilombo dos Palmares. 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Correspondências dos Presidentes das Províncias IJJ9245- 1820 A 1821- Auto de Corpo de Delito- Processo sumário e inquirição sobre o ajuntamento da Serra do Rodeador, Folhas 35 a 146; folhas 180 a 187; Folhas 252a e 252b e Folhas 263 a 269. IJJ9251- 1832 A 1838 IJJ9252- 1839 A 1845 APEJE- Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emereciano Seção de Manuscritos PM 04 – 1838 - Correspondência recebida pela Polícia Militar originada de diversos órgãos públicos PJ 01 -1838 - Correspondência recebida pelos promotores de Justiça oriunda de diversos órgãos PC 02- 1835/1840- Correspondência recebida pela Polícia Civil oriunda de diversos órgãos Pc – 05- 1838- Correspondência procedente das Comarcas destinada ao presidente do presidente da Província de Pernambuco JD 01- 1833/1835- Correspondência recebida pelo Presidente da Província de Pernambuco oriunda dos juízes de direito das comarcas JM 01- 1833/1836- Correspondência recebida pelo Presidente da Província de Pernambuco oriunda dos juízes municipais e juízes de órfãos 224 Referências Bibliográficas RO – 11/1- Jan. de 1838 a ago. de 1838- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada à Adm. da Justiça, Prefeituras, Comarcas. RO – 11/2- Ago. de 1838 a maio de 1839- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada às Comarcas do interior. RO – 11/3- Abr. de 1839 a nov. de 1839- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada às Comarcas do interior. RO – 4/1- 1835/1844- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada ao Ministro da Justiça RO – 07/1- 1835/1844- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada ao Ministro e Secretário dos Negócios RO – 12/1- Set. de 1838 a fev. de 1839- Correspondência procedente do Presidente da Província de Pernambuco destinada Repartições, Autoridades civis e militares (miscelânia) TD – 13- 1822/1841- Correspondência procedente do Tribunal da Relação destinada ao presidente do presidente da Província de Pernambuco TD – 15- 1830/1841- Correspondência procedente do Tribunal da Relação destinada ao presidente do presidente da Província de Pernambuco Ofício do prefeito Francisco Barbosa Nogueira Paes de Flores, dirigida ao Presidente da Província de Pernambuco Francisco do Rego Barros comunicando sobre Pedra Bonita. Data: 25 de maio de 1838. Tomo Pc-5, Folhas 251 e 252 , Partes I a IV Ofício procedente do prefeito da comarca de Flores Francisco Barbosa Nogueira Paes dirigido ao Presidente da Província Francisco do Rego Barros comunicando a prisão de Francisco José do Nascimento, Manoel do Nascimento e Geraldo Francisco “desordeiros da Pedra Bonita”. Data 29 de maio de 1838. Tomo Pc-5, Folha 256 Ofício procedente do prefeito da comarca de Flores Francisco Barbosa Nogueira Paes dirigido ao Presidente da Província Francisco do Rego Barros comunicando a prisão de Gonçalo José e Antônio Thomás “desordeiros da facção que teve lugar na Pedra Bonita”. Data 29 de junho de 1838. Tomo Pc-5, Folha 267 Ofício procedente de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque dirigido ao prefeito de Recife comunicando a condenação a galés perpétua de Gonçalo José e Antônio Thomás “desordeiros da facção que teve lugar na Pedra Bonita”, oriundos da Comarca de Flores. Data: 27 de agosto de 1838. Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II. Ofício procedente de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque do dirigido ao prefeito de Flores comunicando chegada dos ditos condenados a Recife. Tomo RO-11/2, Folha 20, Parte I e II Ofício procedente do Presidente da Província de Pernambuco comunicando ao Ministro Imperial dos Negócios da Guerra os sucessos de Pedra Bonita. Tomo RO-7/1, Folhas 66 a 68, Partes I a III Ofício procedente do Palácio do Governo, assinado por Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque dirigido ao Juiz do Crime de Flores, Manoel dos Passos Baptista pedindo celeridade no processo, em atenção ao Imperial Aviso de 08 de agosto de 1838. Data: 20 de setembro de 1838. Tomo RO-11/2, Folhas 39 a 40, Partes I e II. BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO Castelo Branco, Camilo. Sinais físicos de D. Sebastião e profecias de Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha. Portugal. S.D. II-30,24,035 CASTRO, João de. Vida de El Rey D. Sebastião. 1602. Lisboa, 151 p. Localizador: I-13,03,019 CARVALHO, Teixeira de. Memoria das cousas del Rey Dom Sebastião. 1670, 375 f., s.l., Localizador: I-11,02,013 MEMORIAS particulares Da Jornada que fez O Serenissimo Senhor Rey Dom Sebastião de Glorioza Memoria E Outras que purificão a Sempre Lamentavel perda da sua pessoa E Exercito Nos Campos de Africa. 1722, 235 f., s.a, s.l. Localizador: I-13,03,013 225 Referências Bibliográficas TRACTADO de vários discursos e alguns cazos Históricos, á cêrca do Encoberto Rey de Portugal o Sur Rey D. Sebastião, acompanhado de muitas mais cauzas curiozas, dignas de bastante attenção [para] todos os curiozos q. são verdadeiramente [Calholeiros].206 f., s.l., s.a., s.d. Localizador: I-13,01,044 CÂMARA DE VEREADORES DO MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DO BELMONTE-PE Livro de Atas da Câmara Municipal de São José do Belmonte – PE- 1966 e 1967 FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA - RIO DE JANEIRO – RJ. AMLB/APEB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros. Documentos AMLB nºs 2187 a 2207, referentes às cartas familiares destinadas ao pai e à mãe. Documentos AMLB nº 1966: Caderno de Reminiscências Documentos AMLB nº 1667: Caderno de Reminiscências de Antonieta Araripe, filha de Araripe Jr. Obs: A primogênita de Araripe Jr. tinha o mesmo nome da esposa de Araripe Jr. IHGB - INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO Coleção Sócios do IHGB sobre Tristão de Alencar Araripe Jr. Documentos 1 a 3. Pasta 37. Lata 51 D. 1- Proposta de Sócio ao IHGB. 12 de abril de 1893 2- Ofício de Dr. César Augusto Marques encaminhando ao IHGB O Reino Encantado e o Perfil de José de Alencar,os livros de Araripe Jr. 12 de maio de 1893. 3- Parecer da Comissão de História do IHGB favorável ao ingresso de Araripe Jr. como sócio de IHGB. 05 de maio de 1893. Coleção Sócios do IHGB sobre Tristão de Alencar Araripe. Documentos 1 a 54. Lata 315 1845- Carta de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo de Tristão de Alencar Araripe. 1847- Documento designando Tristão de Alencar Araripe para Chefe Interino da Polícia de Fortaleza-CE 1852- Título de nomeação do bacharel Tristão de Alencar Araripe para 2º oficial da Secretaria do Estado de Negócios da Fazenda. 1852- Portaria designando o oficial Tristão de Alencar para Chefe de Seção. 1852- Documento de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para servir de procurador. 1854-Carta de nomeação de Tristão de Alencar Araripe para juiz de direito de Bragança- PA. 1856- Nomeação para o cargo de Chefe de Polícia do Espírito Santo. 1859- Cópia de Decreto de Remoção de Tristão de Alencar Araripe do cargo de Chefe de Polícia da Província do Espírito Santo para a de Pernambuco. 1859-1861- Cópias autênticas de quatro processos criminais instaurados em Pernambuco pelo então Chefe de Polícia de Pernambuco Tristão de Alencar Araripe. 1861- Documento designando o Juiz de Direito Tristão de Alencar Araripe para ser da Vara Especial do Comércio em Recife-PE. 1885- Nesse ano, Tristão de Alencar Araripe é Presidente da Província do Pará. 1890-1891- Título de exoneração de Tristão de Alencar Araripe de ministro da Fazenda do Interior e Relações Exteriores e nomeação para Membro do Supremo Tribunal Federal. IAHGP - INSTITUTO ARQUEOLÓGICO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE PERNAMBUCO Processos crimes 1838-1839 Estampa ou desenho atribuído ao Padre Francisco José Correia de Albuquerque MEMORIAL DA JUSTIÇA Processos cíveis e criminais Comarca de Flores 1838- 1848, Caixa nº 338 226 Referências Bibliográficas Processos cíveis e criminais do Distrito de Serra Talhada , 1836-1854, Caixa nº 999 227 ANEXOS TRANSCRIÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA ATIVA DE ARARIPE JR. Coleção AMLB/APEB – Arquivo Museu de Literatura Brasileira - Arquivo Pessoal de Escritores Brasileiros. Documentos AMLB nºs 2187 a 2207136 DATA LOCAL DESTINATÁRIO OBS 03/07/1872 Fortaleza Argentina Alencar Carta nº 04 15/08/1872 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 05 23/08/1872 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 06/ 07 FOLHAS 20/09/1872 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 07/06 FOLHAS s/d 31/10/1872 s.l. Fortaleza Argentina Alencar Argentina Alencar Carta nº 08/ 02 FOLHAS Carta nº 09/04 FOLHAS 13/11/1872 25/11/1872 17/12/1872 Fortaleza Fortaleza Fortaleza Argentina Alencar Carta nº 10/ 02 folhas Carta nº 11/ 02 folhas Carta nº 12 /04 folhas 08/06/1873 01/01/1873 Fortaleza Argentina Alencar 04/02/1873 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 21 Carta nº 13/ 03 folhas Carta nº 15/5 folhas 24/04/1873 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 19/11 folhas 03/10/1873 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 27/03 folhas 05/11/1873 Maranguape Argentina Alencar Carta nº 30/01 folha 19/05/1874 Fortaleza Tristão e Argentina Alencar Carta s/n 03 folhas 30/06/1874 Fortaleza Tristão e Argentina Alencar 08/10/1874 18/10/1874 Maranguape Fortaleza Argentina Alencar Argentina Alencar e Tristão de Alencar Araripe Carta nº 45 /04 folhas Carta Nº 53/ 03 folhas Carta Nº 54/05 folhas 06/11/1874 Maranguape Argentina Alencar e Tristão de Alencar Araripe Carta Nº 55/03 folhas 30/12/1874 Serra de Maranguape Argentina Alencar e Tristão de Alencar Araripe Carta nº 58/02 folhas 15/10/1876 Rio de Janeiro Argentina Alencar e Tristão de Alencar Araripe Carta s/n 02 folhas número/04 folhas Argentina Alencar Todas as cartas são enumeradas pelo próprio Araripe Jr. As cartas de número 08 10, 11, 12 e 21 estão ilegíveis. Por essa razão, suas transcrições não foram incluídas no anexo. 229 136 CARTA Nº 04 Fortaleza, 03 de julho de 1872. Carta nº IV Minha adorada mãe. Escrevo-lhe hoje como se houvesse acordado de um pesadelo horrível. V.m. bem me conhece para poder avaliar o que se deveria ter seguido a resolução de 20 de maio próximo passado. Passei por uma crise tão medonha que supus não resistisse a ela minha razão. Creia porém que jamais assim teria procedido se não fosse para arrancar-me a uma obsessão cujos resultados não sei quais seriam enfim. Estou casado e desde o dia 27 que me julgo em um novo mundo. Sou feliz e espero que essa felicidade se prolongue indefinitivamente. Foi além de tudo a amizade que dedico a V.m cês. que me levou a tornar-me um tanto ingrato. Só o meu coração sabe verdadeiramente as torturas por que passei. Alivia que me cassasse. Uma impressão fortíssima dominava-me profundamente; fiquei atordoado e impossibilitado de atender convenientemente os meus deveres de magistrado, vi que só com a morte dessa impressão poderia de voltar ao estado normal. E assim parece que foi. Sinto-me viver e, livre do marasmo que me cercava, começo de novo as aspirar os prazeres santos da vida. Eu precisava além de tudo de uma companheira constante que me amparasse nessas vertigens a que hoje, mais que nunca, reconheço sou sujeito. Enquanto tive a sua companhia nada sofri. Há dois anos que a abandonei e quantos desvarios tenho cometido??? Nem todos têm coragem para viver. Eu sentia isso. Felizmente a Providência poupou V.m cês. ao maior dos desgostos. Por um empurrão desses que não se explicam, coloca-me do meu lado uma mulher que parece ter sido talhada para minha esposa. Nesta encontro todos os predicados que convêm a uma boa e virtuosa consorte e ainda mais todos os elementos necessários para quebrar as agruras de meio gênio selvagem. Alegre, jovial, expansiva e cândida estou certo de que ela terá força bastante para neutralizar a minha misantropia e os efeitos da reconcentração de espírito. À Totônia me entrego como a meu anjo tutelar, à substituta de minha mãe. Compreendame ela e serei o mais feliz dos homens. O que direi mais a V.m cês. que só ambiciono agora abraçá-la e mostrar-lhes a minha companheira? Adeus minha boa e adorada mãe, espero que as lágrimas que derramou por mim sejam a chuva precursora do mais belo outono. Abençoe a mim e a Totônia e receba o coração de Seu filho obediente e amigo Tristão 230 CARTA Nº 05 Maranguape, 15 de agosto de 1872. n° V Minha adorada mãe Há quanto tempo não falamos em família! Hoje desejei ter coisas para viver até lá e derrama-lhe o coração a valiosa satisfação. Teria tanto que a dizer, mil coisas a contar-lhe! Escrevo-lhe da minha casinha de Maranguape onde estou desde o dia 18 com a Totônia e uma irmã que a veio acompanhar. Sinto que se me renovam os alentos. Depois que as vejo horas passadas no isolamento, parece que vem a mim os prazeres que embriagaram-me durante os primeiros meses de Maranguape. Pensa a vm que o conhecimento não me é bastante para trazer-me por uma vez o repouso e esta alma que em tempos estima se agitar com muito proceloio dos mares! talvez! O futuro a Deus pertence. E se na vida doméstica não encontrar a cabeça que desejo, muito menos na de solteiro, onde o vazio de minha alma esteve tão constantemente a subverter-me a razão. Acompanhemos o curso dos acontecimentos. Não me esquecerei de dizer-lhe que na minha mente se afasta o axioma antigo de que – o homem nada é, e as circunstâncias tudo. Felizes ou infelizes somos porque o tenhamos de ser. A fatalidade é tudo e este mundo uma asneira. Estou casado, e isto hoje é o essencial. Julgo-me feliz e não tendo ainda de que me arrepender. A Totônia é uma menina digna de todos os elogios. Espirituosa, constantemente alegre, meiga, dócil, neste passar dias tem revelado tudo o que é e poderá ser. Estou persuadido que o acaso me protegeu e que em parte nenhuma encontraria uma companhia tão boa para abrandar a dor e a minha índole selvagem. Se vm pudesse ver a apreciaria! Não creia, entretanto, que isto não passa de arrufos meus de lua de mel. Quanto pedido a Totônia fui apenas levado por uma impressão e muito por uma grande e incalculável necessidade. Não a conhecia – apenas ouvia saber – vendo as qualidades, atirei-me, portanto a sorte esperando pela felicidade do dado. Parece-me que acertei. Era o que eu queria. Tomou-me este meu, logo que estivemos em intimidade, o seu gênio tão exceto como o ideal que eu aspirei que não trepidei em ___ comigo maior precipitação venturosa que determinou o passo de semelhante companheira. A mudança que se apoderou de mim foi tão rápido que não houve quem não o estranhasse. Tais não porque enchia igual n’alma ______ salutar, estima outras para dissipar os maus negócios que escureceram a vista interior e fazer-me devolver ao antigo riso e alegria. Ah! Minha mãe se remeter deveras o quanto sofri em que próximo estive de ___. Deus é grande!! Hoje sinto a necessidade de ser religioso. As faltas são quase impossíveis de aceitar o conforto da religião cristã tem de resolver _______. Compreendo que vm. se aflija ________________________, afigurou e ________ e quais sentidos _____. Principalmente quando vm sabe que não terei dado o passo que dei se não exigir-me ___________ que mais provia __________________ negócios deste quilate. Não foi _________________até dizer que foi para melhor servi-los Documento ilegível ! E vm estará persuadida ___ que hoje em diante transformará a minha vida. Terei ali uma forma de viver para inteira segurança. E vm. não procurará do mesmo modo? 231 Nasceu o filhote que tanto precisava essa alma de tudo da eficaz aplicação da patologia moral. E é o que procuro, e cautelosamente pretendo conservar sempre em mim. Agora digo isso sem as suas paginas. Tem razão de saber? Contou-me por carta de alguém que vm. vem por aqui com o ____ aprouver, o meu será muito o ___ coração o entregará bastante. Isto para mim aqui vivo pungente ____ a que me foi suficientemente confirmada. Última pagina Ao contrario ali entre no outro dia me o ___ são familiaridades como e para um parente que entrara de uma curta amizade. Nunca ambicionei! Talvez se os brasões se por ventura lá me casasse em ___ um dia a oprimir os contratantes. Pena não ser mais jovem para os brasões nobiliárquicos, mas possuo o que eu muito aprecio. Há suas mulheres honradas da raça. Nasceu o filho que precisava, mas além de tudo da ____ aplicação da patologia moral. E é o que procuro, e cautelosamente pretendo ____ sempre em ____. Agora digo tudo que as suas lagrimas tem razão de sair? Contou-me por carta ___ (de alguém) que ameaça ____ vem aprovarme _______ revolução e amargura bastantes. Dito por mim aqui uma pergunta ___ que me foi suficientemente confirmada pela senhora, mas temia era desencontros de modo de pensar sobre _____; ---19 de agosto---Interrompi a prova por causa das eleições. Parte noticiosa verá vm. em que papos de aranha me vou achar. Noivo e com uma mulher muito_________ faca com como não estive eu quando no Maranguape em sangue e a cidade em guerra. Felizmente por esta em frio com a Senhora não estou com ele, como estaria por certo se tal não houvesse. E se assim fosse quem sabe se alguma pontoria não me enviasse? Por esta vez nada mais lhe direi: até outro vapor. Lembranças a todos e aos meninos um abraço. Abençoem vmcês ao filho obediente e amoroso. Tristão. 232 CARTA Nº 06 Minha boa mãe n° VI Maranguape, 23 de agosto de 1872. Não faz idéia que de incômodos não tenho tido no dia 15 (eleição) para ar. Processando todos os desordeiros que aqui e na Pacatuba ocorreram as somas lamentáveis, que já aqui terão chegado aos ouvidos, não tem me sobrado tempo para coçar-me se quer. Falando depois, no meio de todas as calúnias, mentiras e aleivosias que sempre surgem nestas ocasiões, qual não deve ter sido a minha posição. Reservado por gênio coloquei-me inacessível a todos quer de uma quer de outra parcialidade. Como juiz (já o disse) pretendo seguir o alvitre do velho da fábula que seguiu o seu caminho com o filho montado em um burro. Dê no que der, hei de fazer o que quiser e merecer o que pretenderem outros que eu faça. O interessante foi que não só um como outros ameaçaram a desconfiar de mim. Tudo isso longe de inquizinhar-me – honrou-me. Prova era que ia em bom caminho. Os meus correligionários entendiam que depois da ofensa ao chefe do parido a vingança ser exemplar. Disse-lhes não; ódios particulares! Não se acastelam por detrás de autoridades: na espera das minhas atribuições, protegendo a minha causa, o limite é esse. Se quiserem assim, bem, se não, adeus, reações indignas houvera! Ao passo que os meus assim aprovam, escreviam os Siberios e mindas em seus jornais que o Marajainho concordando-se em _______________ de processos saberia desempenhar sua missão com todo aquele entusiasmo que exige a candidatura de seu pai. Ri-me de tudo isso e ____ para meu futuro que vale mais do que no espírito primeiros de negulêteo exagerador. Tenho consciência de que qualquer outro no meu caso se saiu melhor tendo aqui uso dos meios das intrigas que polvilham. Minha índole tem permitido do que, entre J. Antunes, sobra ao meus inimigos a ciminos em terra intranqüila. Deus me queira proteger-me mais, como tem feito sempre – nisto! -----5 de setembro----Minha vida tem sido nestes últimos dias uma perfeita correria. De Maranguape para Pacatuba e de Pacatuba para Maranguape. Esteve a Totônia dois dias na Maranguape enquanto tratava eu de quitar vila de um inventário. Hoje chegando continuamos dispormos de doces enleios de paz. Há mês e quase meio que somos casados e por isso não tenho visto os dias senão em meu mar de rosas. Conservo-me de novo a tranquilidade de espírito e será justo visto para honrá-la sem deixar a glória que tanto almejo. -----6 de setembro, as 9 da manha-----Passou o vapor antes de ficar esperando – e por isso deixou esta de seguir ao bem sobredita correspondência de J. Siqueira a quem _____ corriqueira. Depois de emitir o oficio ___ com singularidade. Já vai minha falta. -------18 de setembro----Como não se engorgitar agora esse Tuncar morreu ______ estes que tenho sobre este? 233 Este de tal mau ____. Voltando porem ao nono J. de AL. Não calcula o quanto ____. Gastando duvidas: ____ guerra que o governo muito terá a recompensar. 234 CARTA Nº 07 Maranguape, 20 de setembro 1872 n° VII Minha boa mãe, A despeito de suas recomendações começo hoje por poesia: Feliz eu, que alcancei das mãos da sorte a mulher o meu Baldo procurou! Seu peito vou no mundo da fortuna. Complacente sorrisos ____ caprichar E grito qualquer bem alto louvaria Feliz eu, o que alcancei das mãos da sorte a mulher o meu Baldo procurou! O que hei de fazer se acho que estas serras postas pintaram maravilhosamente a ventura que vou gozando ao lado de minha Totônia. Já lá vão aqui dois meses de casado; e cada vez me convenço que ela é o que me faltava para completo gozo e satisfação. Hoje todos os desgostos, todas as decepções (que não são poucas nesse quadro de mesquinho partido onde estou metido a pesar-me) são impotentes diante das caricias da mulher, quebram-se todas as amarguras da vida com sua bondade e a sua ternura. Disse esta que quando tiver tempo hei de escrever um livro sobre a poesia da família. Afianço-lhe que há de ser coisa mais positiva do que Thiné Martin e Paulo Janet. Ao termo do dia 8 do corrente. Acabo de receber neste momento a sua carta de 7 de setembro. Não sabe que alivio me trouxe, e ao mesmo tempo a pena que tive pelos sofrimentos que involuntariamente lhe causei. Sempre esperei que assim sempre fora o seu pesar. É verdade que o pesar dissipou se espero em Deus, que nunca mais se repita. Agora tenho comigo toda a paz! Sim minha mãe, aquela idéia triste, aquela terrível melancolia que tanto me afligiu não terá mais guarida em minha causa a quero. Direi de mim só quanto terei que horas de silencio e de _____. Devo-lhe está ____: ___ a alegria estou certo! Portanto, que parte comprou-se ____________________as horas de tristezas: não terei ocasião de encontrar esse vazio da alma que este capricho ______. Os meus ____ morreu enfim ____. A Totônia incumbiu-me de __________! Ela é tão contente. É tão simples que não me dá tempo a sucumbir. Continua ela a inspirar-me as confianças que até hoje estive-me inspirado que me compromete em meu trabalho, somos o mais feliz dos casais, _____. Essas paginas, minha mãe, foram como ____ de ___. Quantas não são as lagrimas de uma mãe! Com certeza e quando pede a Deus por seu filho e nora, suas lagrimas são ______ para transforma-se _______. Deixe que aqui aquele poema que muito prazer tive em escrever sobre minhas lagrimas. Quanto não há nele de melindre! Vm. é inimiga da poesia: meus perdões, mas a poesia está em mim. 235 A história de Eloá é a seguinte: Esperando Cristo na cruz pendeu-lhe nas pálpebras sovinas uma lágrima brilhante. Esta lágrima ______. Os anjos que não puderam ficar-se _______ dos céus desceram ao Calvário. Adoraram o senhor e depositaram a lagrima que despendia dos olhos do redentor no supremo momento da angustia deste de uma a uma se perfazendo a arrebentação que para gloria toma. Aquela lágrima não era digna de cair sobre os outros. Desta lagrima gerou esse meu devaneio que chamou-se Eloá que em ______ (se não me engano) significa – filho da angustia. Eloá foi a mais perfeita das criaturas. Era, pois, o fruto da mais desonrosa das ____ volta para o filho de Deus. O seu devia está assinado. Deus não choraria senão para desgraça do mais formoso dos anjos que se ____ Lúcifer! A Eloá ___________. O ____ pelo mais desgraçado a dona da desgraça verdadeira invadiu o seu coração! Pensou que Divino _____ outro ___ apesar de enfermo para compartilhar de sua sorte. E nem tanto enfim ficou de conquistar no profundo. O gênio não mantém influxo falador. O amor começa sua fala de nenhuma ação. Alegram-se os anjos! Elogios triunfantes! Redime-se! Satanás e Deus assumem a sua primeira essência. E a lágrima que se transformara em anjo volta à fonte de onde emanaram todas as graças e perfeições. Eis a história de Eloá! A jus, pois, o que as ações conseguiram. ------ 21, às 8 da manhã---Enquanto não me chegam a parte e os trabalhos de conveniência. Que falta irreparável cometi eu não antecedendo o recebimento da camisa bordada e mais objetos que vieram pelo Trajano. Perdoe. Se eu estava tão engolfado nos negócios do casamento! Vinha a preciosa camisa para a abertura da Assembléia. Pois sabia que (por vontade de Deus) a sorte que servisse para o ato mais importante. Serviu para o meu casamento, para a abertura da minha felicidade. Não é a primeira coincidência que se dá em meu casamento. Já foi no dia dos anos da Totônia que desembarquei no Ceará; 16 de fevereiro, quando ela completava justamente 18 anos! E então? Não posso me Letra ilegível Os extraordinários serviram para ______ direto que contrair pouco tive que desempenhar. ------- 22, às 10 da manhã (domingo) Fala-me vm. em ir para o Rio quando estiver passado o quatriênio. E a propósito disto ____ a sua incrível repugnância pela magistratura. Mas eu não sei o que lhe diga: sinto-me mais inclinado a essa correria do a qualquer outra. Desde que for possível conseguir o juizado do direito capital; porque não o procurarei. Enfim o tempo será o árbitro de todas essas coisas. -----27, às oito da noite ----Hoje completei doze meses de casado. 236 A vida para mim vai agora tão suave! A minha Totônia dá-me todos os prazeres e satisfações de espírito. Deus ajude a concluir a obra que incumbiu-me. Como me sinto preso a vida! Vejo-lhe os primeiros sintomas de maternidade, e isto é o que basta para encher-me do mais vivo sentimento de humanidade. Quando o homem sente-a prolonga-se um ser antes que a deu a sua vida deseje residir a minha futura prole. E não há sentimento tão fecundo como este. Viver para os filhos. São estas as verdadeiras raízes que procederá na terra. Aqui termino por esta vez! Adeus minha boa mãe. Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioio, Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso. P.S. Porque Tio Janjão não me escreveu? 237 CARTA Nº 09 Fortaleza, 31 de outubro de 1872 Foi engano. Não era o vapor do norte e sim o inglês. Continuemos na palestra do costume. Como vai Sinhazinha? Há tanto tempo que não me escreve. Estará também zangada comigo? Disse o F. Valino do Amaral que não só ele como vm. estavam maldito _______. Ao menos isto! O que é preciso agora é tratar de criá-la. Como o interesse público, é provável que muito breve lhe apareça algum bacharel que deseje ser deputado ao tenha aspirações a ministro. O grande Yoyo como vai? Qual será o seu destino? Arthur? Este creio que desprezará os instrumentos de família. ----novembro – 2 -----Dobram-se os sinos. Grande dia triste é este de finados. Não sei porque me punge hoje sina tão grande saudade! Não é pelos mortos por certo senão pelos vivos doentes. Sabe com que distrai a toda manhã? Escrevendo um folhetim fúnebre sobre o Pompeu, no qual o apresenta a figura de um précito sendo mendigado pela sombra do infeliz sargento que morreu no dia 7 de setembro. O padre há de reconhecer que são ________ de parecer. Os rendimentos vão dando até o dia 19. A Totônia é muito econômica e isto é um grande consolo para a pobreza. Quanto ao Ninho de beija-flor soube que me falha, para dizer-lhe que a parte ___. O Moreira do Constituição está tirando um livro umas cartas núpcias ____ impediu de mandar-lhe o dito volume para satisfazer a curiosidade dos leitores que atendo. O vapor acaba de atingir e por isso que deixo de estender-me. Lembranças ao Gomes Rosa e a Chiquinha. Outras tantas a Sinhazinha, Yôyo, Arthur, Nininha e Desidéria. Adeus minha boa mãe, abençoe-me o coração de seu filho obediente e amoroso. Tristão. P. S. Porque razão não me tem escrito o tio Janjão, já não é meu amigo? Pergunte-lhe isso. 238 CARTA Nº 13 Fortaleza, 1 de janeiro de 1873 n° XIII Minha boa mãe, Eu – nos entrados do novo ano! O que será para nós este – 1873 – tão risonho e prazenteiro? Quanto a mim não almejo senão que reproduza os prazeres reais que me trouxe o finado 72, tão cheio de peripécias e profundas resoluções na minha vida. Afugentada lembrança de rápidos eclipses que se me afigurou a desventura diante dos olhos de uma imaginação truncada, posso dizer que foi o mês mais feliz da minha vida, porque justamente nele conquistei a felicidade do ser. A Totonia trouxe-me a quietude. Com ela sou verdadeiramente feliz. Todos os dissabores que me causam as cenas do mundo exterior dissipam-se em um instante a um simples aceno seu. As caricias da mulher que estimamos não há pesar que possa resistir. Queira Deus que corram-me os anos como me há corrido os últimos meses. -----3----Agora mesmo remeto ao João Paulo um pacote contendo o vestido de casamento da Totônia. Mando-o para vês se é possível aproveitá-lo tingindo-se. É por principio de economia que o faço. Se achar que fica bom, mande-o fazer; se não, devolva-o. -------7-------Sou obrigado a partir agora mesmo para Maranguape! Vou afinal reassumir o exercício de juiz municipal. Não levo Totônia; e só virei buscá-la depois da festa de S. Sebastião. Combinamos isso por economia; porque estivemos certos de que a nova casinha seria o alvo da filopensa. Por via das dúvidas... Não sei se hoje chegará o vapor; em todo caso aqui deixo essa para seguir, e ainda por esta vez deixo de extender-me por ter andado metido em festas. Peço-lhe que tenha toda atenção com o negocio de J. Antunes. Adeus, minha boa mãe, Totônia muito se lhe recomenda. Lembranças a Sinhazinha e meus meninos; e vm com meu pai queiram abençoar o filho obediente e amoroso. Tristão. 239 CARTA Nº 15 Maranguape, 4 de fevereiro de 1873 n° XV Minha mãe, Escrevendo-lhe agora só Deus sabe que saltos são os meus. Não cessam as folhas de repetir que o Rio está infectado pela bexiga e febre amarela. E é em um foco de moléstia como este que se acham todos os meus! Quando vir-me a consoladora notícia de que todos estes males tem cessado? Como irá a Senhora dos seus incômodos? Naturalmente, se não se agravaram já terá seguido para o Espírito Santo. Por meu artigo transcrito aqui no Constituição vi que o J. Thomé não foi mal recebido na história. Queira Deus que a sua administração não encontre tropeços e que os seus sonhos d’ouro sejam coroados com o melhor êxito. ------16-----Só hoje recebi cartas e jornais; entretanto desde 12 que estavam no correio. Graças a Providencia estão todos livres de perigo. Senhora gorda e longe de ver realizadas as suposições destes médicos, que crêem em tudo adivinhar. Vm., porém, ainda sofre conseqüências de uma constipação. Como, porém, tem uma organização de ferro estou tranquilo; e espero na sua próxima carta saber que tudo vai em paz, dissipadas as mágoas que nos perseguem. Nesta carta de meu pai vejo, o que pelos jornais daqui já sabia. Afinal descobriu-se a hipoteca como diz a Reforma! Creio que já me aborrecia tanto esperar. Em todo o caso está meu pai com assento no Parlamento. Pág 05 Me roubou aos seus carinhos maternais, ao seu extremo, mais foi ao contrário; a Totônia restitui-me.... São passados sete meses casado; e para provar do alqueire de sal pode se dizer feita. O coração não me iludiu nesta vez. Quanto mais se _____ os dias maiores encantos vou encontrando no estado de casado. Que prazer não encontro em vê-la dirigir a minha casinha de Maranguape! É uma menina: ainda parece brincar com bonecas. Distrai-me, acaricia-me, estima-me muito.... muito, e eu a razão porque sinto hoje a vida tão cheia. Vm., repito, deve estimá-la muito. A minha Totônia é um anjo. ------1 de março----Chegou há três dia o vapor do sul, e ainda hoje não recebi cartas. Os meus correspondentes da cidade tem se demorado a aborrecer. Ignoro se vm recebeu o vestido, que remeti pelo J. Paulo Gomes de Mattos, para tingirse. Até a presente data não soube que destino lhe terá dado o celebre ex juiz de Maranguape. 240 Entretanto devo dizer que em relação a certos negócios a respeito dos quais lhe falei em cartas anteriores. Ansioso tenho esperado por uma resposta sobre o negocio de João Antunes. O mesmo sobre a melhora de reforma do major Phoreira, cujos papeis foram pelo Paulino para serem entregues ao meu pai. Aqui contou, por pessoa de lá chegada a pouco, que a questão já estava resolvida na secretaria da guerra, e dito mesmo agora dou notícia para que, caso meu pai não tenha tratado disto, se empenhe a fim de obter a solução desejada, escrevendo-me sobre esse ponto. Se houver qualquer despesa a fazer, pede meu sogro que disto meu lhe venha uma nota, para que ele mande as ordens necessárias a fim de ser essa despesa satisfeita. -----5 -----Ainda estou sem carta e, portanto, não as respondo. O vapor deve passar a qualquer dia deste, e como não desejo que de novo siga sem noticias minhas, vou remeter a correspondência para a capital. Por hoje aqui fico. Saúde e felicidade mil. Lembranças à Sinhazinha, Ioiô, Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vm e meu pai ao filho obediente e amoroso. Pagina aparentemente solta. Não calcula o quanto os justos _________. Esta familiazinha, que aqui, por causa da muita importância que o Cunha lhe prodigaliza, já ia-se levantando com pretensão a tudo querer e a bater o pé, merecia um mimo; e este agora foi magnífico. O que poderá fazer o Thel. Feru.? Entretanto que o tal engenheiro direi muitos ares senhoris a esta gentezinha, cujas asas deviam ser cortadas, a menos que não quisermos que para o futuro fossem o novo Cabrion. Não posso esquecer-me do que fez o gentinha dos óculos na Assembléia provincial. Minha avó só faltou a morrer de desgostos, vendo resolvido as custas do meu avô e os próprios amigos aprovaram a sua pretensão como se se tratou de uma imoralidade. Graças a Deus o Maciel tudo desmentiu. Patife! -------27 do mesmo mês-----Não seguiu está pelo vapor de 22 por descuido meu. Quando dei acordo de mim já não era mais possível remetê-la a capital. Por aqui vamos sem novidade, a Totonia está muito pesada, mas felizmente sem incômodos que a faça sair do estado normal. Sempre alegre! Sempre jovial! Decididamente era a mulher carinhosa que convinha para abrandar os rigores do meu gênio. Foi Deus que a trouxe pela mão para arrancar-me ao triste estado, que tanto me acabrunhava. Vm. deverá querer-lhe muito bem. Dirá naturalmente que ela 241 CARTA Nº 19 Obs: documento incompleto. Maranguape, 24 de abril de 1873 n° XIX Minha boa mãe, Começo a escrever-lhe um pouco triste. A Totônia está na cidade, de rude a cada momento espero receber o chamado para assistir ao parto. Só e isolado hoje sinto a urgência tanto mais quanto sei que ela sofre. O ano passado, por esse tempo, bem diversos eram os meus pensamentos! Como de um momento para outro as coisas se mudam! Era justamente por essa época que pela primeira vez a via e começava a experimentar seus atrativos. Hoje casado e sobressaltado pelo destino de um filho que está a nascer! Já lá vão nove meses e tanto sempre só. A Totônia vai atravessando. Sábado pretendo ir abraçá-la. Todos os dias recebo queixas pela ingratidão com que procedo passando tantos dias ausentes. Que se há de fazer? Os atoleiros são diabólicos, e os cavalos mal suportam viagem assim. Para bater esse caminho de Maranguape todos os dias, também não é possível. De modo que não há remédio senão ir passando por ingrato; além de que já me fica bem representar o papel daquele celebre Leandro que atravessava a nado todas as noites o Heleponto para ver a sua idolatrada Hera. -----30----Recebi sua cartinha datada de 14 do corrente em resposta aos meus queixumes de outro dia. Tudo está passado: as suas suaves consolações dissiparam todas. Falta vm na remessa do vestido e meus objetos pelo José Mendes. Ainda não chegaram, mas espero tê-los até o dia 5 que é quando chega o carteiro. Diz-me também que o J. Thomé, Senhora e Sinhazinha vão sem novidades. Felizmente Deus nos ajuda. Por uma correspondência que li no Jornal do Comércio vejo que o novo presidente já toma suas descomposturas bem sofríveis. Eu quisera assistir as impressões primeiras comanda em sua animo impetuoso (como nós sabemos) por estes cânticos estúpidos. Quem nunca os experimentou há de sentir muito. Eu, como já estou quilombado, posso falar de cadeira. Entretanto descobri _____ de viver perfeitamente e como quero viver no meio da gente mais intrigante que o seu cobre. Descompõem-me, insultam-me pelos jornais por atos que nunca pratiquei (senão por ceder-vos quem sois), ridicularizam-me; mas tudo isso não passa para mim de objeto de distração. Eles sabem que eu não me importo; e, como convivo particularmente com todos, todos também pelo mesmo modo fazem-me justiça ao caráter. Só quem não me gosta e me destrata pelas calçadas é o Augusto Roy (feijão-careta) irmão do Cassiano. A história é geralmente engraçada e me bem dado como para umas boas gargalhadas. 242 Ainda ontem o biltre me abraçara! Mas como aconteceu ter de dar uma sentença contra seus interesses... aqui d’ el – rei! De um momento para outro declarou guerra a tudo quanto era Alencar e a tudo que era Moreira. Indo outro dia à capital, encontrei-me com essa farsa, o que muito me deu para rir. O muito engraçado, porém, é que o tal sujeito, armador dos papeis comprobatórios do seu direito, anda como um possesso por todas as lojas e roda calçadas vociferando contra mim e provando que sou venal. Note-se a estupidez: a sentença foi dada a favor de um pobre diabo! Mas vejamos as razões do _____. Diz ele que eu recebi uma carta intercedendo por sua causa, carta essa de pessoa a quem não devia faltar (era de minha Avó). Mas, continua o bruto, para mostrar a minha independência e que não fazia caso dos outros, julguei, por desaforo, contra todo o direito! Digo sou venal!!! Isto tem rendido bastante. E todos riem do bobo, o que ainda muito o desconserta e o enfurece contra mim. É preciso saber que não tive hoje ocasião de encontrá-lo. Não obstante, o Bruto tirou-se de seu cuidado e dirigiu à diretoria do Clube num oficio despedindo-se da sociedade, declarando na mesma peça que isto fazia para não se encontrar com o Dr. Percevejo. Ah! Ah! Ah! 243 CARTA Nº 27 Maranguape, 3 de outubro de 1873 n° XXVII Minha boa mãe, Tenho presente a carta de vm com data de 4 de setembro e a de meu pai com data de 14 do mesmo mês, e muito me alegrei sabendo que todos gozam saúde. Vejo todos quando dizem sobre os negócios políticos desta terra e especialmente da ---3---Nada de vapor que se esperava. A Totônia tem sofrido muito dos antigos. Não obstante antes sempre saímos, fomos tirar o retrato. O fotógrafo conclui até a saída do Paulinho, irão sem falta. ---5---Hoje tomou posse o Esmerino – 2ª vice presidente. É amigo do Jm. Ribeiro. O que surgirá dali? O Cunha, por certo, fez muito mal em não tomar as rédeas do governo... Rezo a Deus que não se arrependa. Sabe vm quem roga todos os dias na Assembléia? Não é capaz de adivinhar... É o meu amigo Miguel Xavier – aquele desavergonhado, que teve o arrojo de escrever para aqui, dizem do que é o ser um eleito deputado era um vilipêndio para a província. Estou _____. A primeira ocasião sigo-lhe o ____. Os noivos trarão muitas bênçãos! O proceder não parece ___ o rapaz o despeito das repugnâncias de certo sujeito. Ora lá vê a obra! TRECHO RECORTADO DE UM JORNAL QUE O AUTOR DA CARTA COLOU NO PAPEL Nem tudo que reluz é ouro. O sistema das falsificações está tão desenvolvido. que difícil é hoje distinguir o brilhante pingo de água. A fama com sua tuba e cem bocas havia apregoado urbe et orbi a inteligência transcendente, a ilustração consumada do juiz municipal de Maranguape. Um momento somente e tudo foi-se como o fumo que o vento leva, ao como bolha de sabão. Na sessão 25 do passado ilustre neto do ex-presidente da republica do Equador fez o seu debut. Pediu a palavra. Movimentos gerais de atenção. Ia falar o beija-flor do Sr. Sombra. Puxou do lenço, o suor corria-lhe em bicas, três vezes limpou o rosto, 4 endireitou o colarinho e outras tantas cumprimentou o auditório. Batendo naquele rotundo crânio, pareceu dizer com Andre Chanier – aqui por força há alguma coisa. E havia com certeza .... miolos .... Sr. Presidente – eu pedi a palavra não sei para que (signae de supreza). Sim é verdade, tratase dos grandes melhoramentos morais e materiais que podem trazer a esta casa a nomeação de um amanuense para sua secretaria (sinais pronunciados de desaprovação). Mas Sr. Presidente, o nobre deputado não compreendeu bem o sentido ampliado da palavra. Eu vou contar-vos uma história a propósito. Era no tempo em que os bichos falavam... Temos uma história de trancoso. (Basta, basta gritam da galeria, o padre Nogueira puxa pela aba do palitot até rompê-lo.) 244 Mas Sr. Presidente.... A minha perturbação é tamanha que não sei onde estou. - Aqui na assembléia, respondeu o Samuel, flauteando-o. Sim, como dizia, naquelas águas cristalinas da poética Pirapora... - o nobre deputado está divagando, diz-lhe o Soares. Os Srs me transtornam a cabeça. Como dizia, numa frondosa e assombreada oiticica apanhei um ninho de beija-flor... - Não queremos ouvir folhetins, viemos aqui legislar, grita-lhe de um lado o Theodoro. Mas Sr. Presidente... esta bem, estou enlanguecido, não posso continuar; peço desculpa a esta ilustre assembléia e desisto. - O termo não é parlamentar, exclama o Garcia. Quero dizer cedo da palavra e... sentou-se lavado em suores e com algidez do cadáver. - Morreu doudo o percevejo, gritou muito cheio de si o Coelho, que há muito anda despeitado com a menina dos olhos do Sr. Sombra, por causa desse ares de sapiência de que goza. FIM DO TECHO DO JORNAL É do cearense esta bela peça de literatura! Mas o Miguel Thomas Pompeu tem amargado bastante, tenho-lhe dito por sua causa. 245 CARTA Nº 30 Maranguape, 5 de novembro de 1873 n° XXX Minha adorada mãe, Tenho diante dos olhos a sua carta de 31 de setembro e muito me alegrei em saber que todos gozam saúde. Diz-me vm que supõe está a Totônia assim tão magra conseqüência da amamentação. Enganou-se; pois, tendo-lhe pouco leite, logo alugamos uma ama que muito tem ajudado na criação da Inhá. Não obstante hoje, não sei se devido aos ares da praia, onde estamos, acha-se ela um pouco melhor e espero que em breve tenha recuperado sua antiga robustez a despeito do filho que já lhe estremeceu nas suas entranhas. Com máximo prazer recebi a noticia do casamento de Sinhazinha. Não conheço o noivo, há menos que não seja um tal Mizael que se formou um ano depois de mim em Perúbio. O enlace seja por Deus falado. Por esta vez não peço int. estender-me por falta de tempo. Totônia muito lhe se recomenda a vm e pede a sua benção. Do filho amoroso e obediente. Tristão. 246 CARTA S/N Fortaleza, 19 de maio de 1874 n° S/N Meu pai e minha mãe, Acho-me hoje na capital para onde vim desde ontem com a Totônia, que espera a cada momento dar a luz. Veio isto em má ocasião; porquanto, estando o júri de Pacatuba marcado para breve, ao qual tinha de presidir em virtude do impedimento do Américo, que funciona na Relação, vem isso coincidir com a época do parto. Felizmente vamos todos sem novidades, e o mesmo desejamos que por lá aconteça. De minha mãe não ____(doc extravidado) alguma pelo vapor, que aqui chegou a 13 do corrente; de meu pai tenho presente uma de 25 de abril p. p. Fiquei muito alegre com o retrato do meu pai; não me escapando à apreciação o crescimento da barba e o suntuoso vestuário de desembargador, que lhe dá alguma semelhança com os antigos Doges de Veneza. De tudo, porém, o que muito me ______ foi a Consolidação das Leis do Proc. Crim. que não canso de apreciar. O trabalho inclina-me as medidas; principalmente na 1ª parte, cuja matéria dispensa em avisos e direito para mim, que tenha a mais desgraçada das memórias, um vert. cavalo de batalha. Sobre a sétima ___ (doc. Extraviado) nada direi por exceder todos os elogios a ___ (doc. Extraviado) estudarei esse trabalho e darei sobre esse meu inútil parecer. Minha mãe muito se deve gloriar com estes e outros triunfos. Esses chegaram tarde; mas chegaram seguros e esplendidos. Na minha conta passada mostrei a conveniência da vinda de meu pai a esta província; em sua carta sobneguei em voga desejo nesse sentido. Agora mais do que nunca insisti sobre esse ponto. Pelo Paulino remeto 18 ex. do Ninho de beija-flor para serem distribuídos por várias pessoas. Esqueci-me, entretanto, de designar um para ser ofertado a S. M. I. Aqui não há encadernador que preste, por isso não mandei preparar o exemplar para remetê-lo. Meu ___ (doc. Extraviado) se encarregará de mandar preparar em minhas condições para fazê-lo presente ao nosso Joi diant, ___ (doc extraviado) das letras. Junto encontraram uma tira de jornal contendo uma apreciação que aqui foi publicada sobre o meu livro. O autor é um caboclo bárbaro, selvagem na extensão da palavra. Meu pai o conheceu de Pernambuco, para onde o mesmo foi-lhe recomendado. Por viver num mundo aéreo não conseguiu formar-se; voltou para Maranguape e ali vive hoje a vender aguardente e a devora quantos livros encontrar. O físico desta criatura é monstruoso; quanto ao espírito, não ___ (doc. Extraviado) que em tão tenra idade siga em um ____ (doc extraviado) idéia tão elegido. Reputo-o um gênio, tendência tão pronunciada assim para as ciências abstratas ainda não vi. Em filosofia é positivista ______; em religião – ateu. Este rapaz é filho do João Honório de Alves, homem de têmpera antiga, que tem medo em formá-lo por não criar um inimigo da Santa Madre Igreja e do Santíssimo padre. Desejo que esse escrito seja transcrito ali na Corte em alguns jornais, e se for possível no Jornal do Comércio. Por esta vez, não me prolongarei mais. Falta de tempo. Reservo-me para o futuro vapor. Abençoem vmcês ao filho obediente e amoroso. Tristão. P.S. Soube pelo Pedrinho que Sinhazinha muito tem remetido a trilhar os meus romances. Peço-lhe, portanto, que me mande dizer onde formou-se o escrito da crítica. (doc. Extraviado). 247 CARTA Nº 45 Fortaleza, 30 de junho de 1874 n° XLV Meu pai e minha mãe, Admiro que vmcês, escrevendo-me com data de 19 do corrente só acusarem como recebida carta minha de 19 de maio (XLII), e se tenham esquecido da de 31 do mesmo mês (XLIII), na qual até remetia uma tira da Constituição, em que foi publicada uma apreciação sobre o Ninho de beija-flor. Será possível que essa carta se tenha desencaminhado? Acho bom, minha mãe, que vm. tenha sempre o cuidado de verificar a numeração. Se tudo quanto se publicou ali acerca do meu livro. Estas coisas muito me lisonjearam – até mesmo a lembrança do tal leitor mortificado, que se não for o Taunay, não atribuirei a outro senão ao Machado de Assis, que me vota simpatia mortal, desde que um dia, no 16 de julho [Jornal 16 de Julho. Grifo nosso] ousei dizer que as suas poesias não tinham originalidade. Seja como for, tudo é o mesmo. Que sua obra faça carreira – é o meu mais ardente desejo. O vapor do Sul acaba de chegar, e, apenas tenho lido as cartas a que respondo, atira-o da morte: de sorte que sou obrigado a escrever as carreiras. Os trabalhos de Au. Pror. começam amanhã; devo portanto demorar-me estes dois meses por aqui. A Totônia, que deve acabar nestes dias o resguardo, vai sem alteração, assim como o pequerrucho, cujo o nome ainda não sei qual seja. A Inhá cada vez mais esperta; - é a Maroquinha sem tirar nem pôr, não no tipo, mas nas travessuras e repenses. Não sei o que diga mais senão que desejo a vmcês muita saúde e felicidade. Lembranças à Sinhazinha, Arthur, Nininha e Dedé. Abençoem vmcês a Totônia e os netinhos e ao filho obediente e amoroso. Tristão. P.S. Peço a vmcês que leiam o incluso discurso, que pronunciei na Pacatuba. Se acharem valer a pena, façam-no publicar na Nação. Trabalhei na transcrição do artigo do João Capistrano, que de novo remeto, prevenindo o caso da perda da carta. Quando não seja no Jornal do Comercio ao menos na Nação. 248 CARTA Nº 53 Marang.e, 8 de outubro de 1874. n° LVIII Minha mãe, Pelo Paulino Nogueira soube que meu pai houvera desmanchado a viagem; entretanto vm. sobre isto não me disse coisa alguma nem pelo vapor atrasado, nem pelo passado. O que houvera de verdade em tudo isso? O menino não obstante não foi batizado, e não o farei enquanto estiver na indecisão. Resolvi botar-lhe o nome de Hugo. Os Tristões já são demais na família. Pela carta que escrevi com data de 2 do corrente mandei dizer qual o estado de saúde de minha avó; hoje felizmente posso tranqüilizar vm. quanto a sua vida. Aqui por casa vão todos sem alteração. A Totõnia presentemente passa o tempo menos insipidamente. Perto de nós está morando a família de meu tio Mattos; minha tia Florinda não se cansa de agradá-la, de sorte que é mais fácil deixarmos de dormir do que de ir passar a noite em tão agradável companhia. A Dondon é uma menina de mui estimável e só me recorda o gênio doce e cândida simpatia de Sinhazinha. Não sei mais o que lhe diga desta vez senão não que as saudades não se acabam. Adeus, minha querida mãe; lembranças à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desideria. A Totõnia e os seus netinhos lhe enviam os corações. Abençoe seu filho obediente e amoroso, amigo. Tristão. 249 CARTA Nº 54 Fortaleza, 18 de outubro de 1874. n° LIV É com mais profunda mágoa que participo a vmcês que no dia 15 do corrente deixou a pertencer ao mundo dos vivos minha avó D. Anna Tristão. Desde aquele dia que me acho nesta capital, tendo aqui chegado justamente quando de aproximaram seus últimos momentos. Morreu minha avó como uma santa e mártir que foi durante os 50 anos que se correram do anonimato do meu avô até hoje. Dizem-me as pessoas de casa que pudesse ainda ver o filho que tanto amava; e assim o conhecer. Todos os nossos amigos acompanharam o féretro até a morado dos mortos e presenciaram uma morte, que tantos recordações tristes devia trazer à família. Resta-nos agora o consolo de que as suas virtudes sejam devidamente remuneradas na mansão dos justos. Para ela o sono eterno não foi mais do que descanso. Na Constituição de hoje encontraram vmcês uma necrologia, que publiquei, fazendo sobressair as qualidades eminentes e padecimentos de minha finada avó. Sinto não ter outro meio de externar o que me vai pela alma com o seu falecimento. Minha tia Izabelinha pareceu-me muito abatida com está separação. Realmente depois de tantos anos de perfeita convivência, há de ser dificílimo superar as saudades da irmã. Não sei se meu pai aprovará a determinação que tomei com relação ao enterro. Sendo nenhuns os recursos de meu tio Aderaldo e Macedinho, achei prudente mandar fazer as despesas sob a responsabilidade de meu pai. Encarreguei ao Victoriano Borges de satisfazer as contas, as quais serão apresentadas para que meu pai resolva como entender, ou mandando indiciar-se pelo pequeno espolio deixado por minha avó, ou ordenando que as mesmas despesas sejam incluídas na sua conta. A Totõnia esteve também aqui no dia do enterro, retirando-se neste mesmo dia para Marang.e em companhia da minha tia Florinda por ter ali deixado a Inhazinha e o Hugo. Creio que amanhã, depois da visita de casa, regressarei para aquela cidade. Desta vez são estas as únicas noticias que possa dar a vmcês. Bem desagradáveis noticias. Lembranças minhas à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desidéria e queiram vmcês aceitar as minhas saudades e abençoar filho obediente e amoroso. Extremoso. Tristão. 250 CARTA Nº 55 Marang.e, 06 de novembro de 1874. n° LV Minha mãe e meu pai, Desejo a vmcês e a todos de casa saúde e mil venturas. A minha última carta foi com data de 13 de outubro, e nela participava a sentida partida de minha avó D. Anna Tristão que Deus terá em sua santa glória. Deixei de escrever pelo vapor de 2 porque, tendo chegado da Pacatuba, aonde tive que vir presidir a seção do ________, fui atacado ______ de modo tal que não me foi possível sentar a banca. Por falar em Pacatuba: não se terá meu pai requerido do que lhe pedi acerca da criação desse termo para o Dr. Galvão, atual promotor dessa câmara. Reitero agora o meu pedido, e faço da sua nomeação questão de gabinete. Os fatos logo que sentiram estas minhas intenções puseram-me em campo e hoje pretendo o lugar para um parente que se formou ano passado, e assim derrotando outro candidato. Será para mim uma decepção horrível se, com efeito, conseguir eles o que querem, e digo tanto: mais apreço ao êxito das pretensões do Galvão quando fui quem incitou-a a isso. Espero, portanto, que vmcês ______todos os meios para que eu não seja obrigado. O Dr. Galvão mereceu da minha parte estes esforços e eu confiei que sua estada até nos será proveitosa. As últimas cartas que tenho de vmcês são de 9 e 20 de outubro. Entristeceu-me muito o desengano da viagem de meu pai este ano ao Ceará a quem assim já esperava abraçar. Espero não ter remédio senão a paciência, Hugo ainda não foi batizado e não será enquanto a decisão não for completa. Como meu pai dá-me ainda esperanças para março, fica transferido o ato para esse tempo. Minha mãe manda-me perguntar se o vestidinho que veio para a Inhá serviu ou ficou de bom ______; devo dizer-lhe em resposta que ficou. Vai Vm como são para ela ficou expressamente feito nelas esta ação quer significa que viu-se ponha-me obrigação de estar se incomodando de vez em quando como ______. Junto encontrará meu pai em fragmento da Fraternidade, em que veio um pomposo elogio ao _____ só que proferiu ultimamente sobre os bispos da ordem que admiro é que os escritores da Fraternidade sejam os mesmo que acabam de insultar Vm. pelas ____ da diocese. Segundo informei em minha última tomei a deliberação de mandar pagar debaixo da responsabilidade de meu pai as contas resultantes do enterro de minha avo, as quais andaram (apesar da economia e simplicidade) em 278, 850 rs. Foi o Victoriano quem se encarregou desse pagamento. As contas estão em meu poder; Vm., portanto, dirá, na conformidade do que já lhe pedirei, o que se deve fazer. Por aqui nada há de novo, senão o estado lastimoso do Dr. Mello, que depois da vertiginosa discussão sobre as queimaduras da escrava Henriqueta, foi atacado de uma paralisia singular, que o obrigou a ausentar-se dessa terra. Adeus. Lembranças minhas e de Totônia à Sinhazinha, Ioiô Arthur, Nininha e Desidéria e queiram vmcês abençoar filho obediente e amoroso. Tristão. 251 CARTA Nº 58 Serra de Marang.e, 30 de dezembro de 1874. n° LVIII Minha mãe e meu pai, Ainda por essa vez escrevo a vmcês da serra. Tenho diante dos olhos cartas de vmcês com data de 9 do corrente. Muito estimei saber que todos por lá são sem alteração. Os números do Globo, que minha mãe diz ter-me remetido aqui não chegaram, o que muito senti por ficar na ignorância do que pensa atualmente o J. de Alencar sobre este assunto. Agora mesmo confeccionava eu umas cartas para a Constituição a propósito de uma conferência aqui proferida ultimamente no qual se nega a existência de uma literatura do Brasil. Tanto pior! Foi com o maior prazer que li o tópico relativo ao Dr. Ortiz. Por minha parte agradeço a vmcês as palavras de amizade com que sempre ele me distingue. Diga-lhe que o discípulo não se esquecerá jamais daquele bom mestre, que lhe incitou no espírito as primeiras regras de escrever. As novidades por esta terra são escassas. Apenas há dias houve em Marang. e um baile ao qual assistimos eu e Totônia. Foi muitíssimo concorrido. Na mesa tive a ocasião de verificar em diversas saudades a mim feitas quanto este povo (gregos e troianos) me estima. Saudaram-me com delírio; fiquei quase desconfiado: só faltou que carregassem aos ombros até em casa. São coisas estas espontâneas e que tanto mais me surpreendem quanto eu vivo reconcentrado visitando raramente um ou outro. Simpatias! Simpatias! Não sei se na minha última participei que já estava bom dos olhos. O clima da serra temme redobrado o vigor. Veio passar conosco estes dias de festa a Idalina, irmã da Totônia. Os dias correm serenos. Outro dia comi nunca menos, entre as 9 da manhã e 6 da tarde, de um kilo de carne, uma libra de castanhas portuguesas, 4 bananas, uma laranja, a quarta parte de uma jaca, meia lata de sardinha, passas, figas, e não sei o que mais. Quase me julguei oco por dentro. O Braga = S = creio que neste dia não me levaria as lâmpadas. A patente de meu sogro chegou a tempo. Não sei mais o que diga a vmcês. Adeus. A Totônia manda muitas lembranças a todos. Queiram vmcês abençoar aos netinhos e ao filho obediente e amoroso. P. S. O ano está acabando e = 1875= na ___ (doc. Extraviado); daqui a um ano pois estarei com o quatriênio concluído. Já é tempo portanto de pensar no meu regresso. Mandem vmcês dizer-me o que por lá se me pode arranjar. Não obstante não perca de vista em juizado de direito que se possa criar por perto desta capital. E a pretensão do Galvão? 252 CARTA S/N Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1876. Meu pai e minha mãe, Depois que aqui cheguei, já escrevi a vmcês. Recebi o telegrama de S e agora ansioso espero o Rio de Janeiro em que devem vir as cartas que pedi. Em conseqüência de um telegrama falso que aqui apareceu não sei como passei os dias 10 e 11 em uma verdadeira angustia. Dizia-se que em razão da prisão do Ijuhy, a província do Rio Grande pagara em armas e organizara o governo republicano, tendo a frente Ozório e Silveira Martins, acrescentando-se então que meu pai fora preso segundo uns, ou estava bordo de um vaso de guerra segundo outros. O que é mais engraçado é que já, continuaram os noveleiros, o novo governo entravou sua negociação oferecendo o refém em troca do Solimões, avaliando-se assim o presidente do Rio Grande em dois mil e tantos contos. Não é preso! Fosse como fosse sofri bastante, porque tudo era possível e o tal telegrama era da praça do comercio. Felizmente o Jornal do Comércio de ontem tudo desvaneceu. Respiro! À noite de ontem passada estive com o Duque de Caxias. Um pouco desapontado com o Diogo _____ que (ao menos) me pareceu ligar pouca importância ao pedido de vm., já tendo nomeado juiz de direito para São Francisco e Ipu, achei acertado visitar o velho Duque. Recebeume muito atenciosamente, e conversando acerca dos sucessos ali dados ultimamente demasiandose em elogios a meu pai dizendo que daria tudo para ter do presidente iguais as atual do Rio Grande. Falei-lhe sobre minha pretensão, que este acolheu, ficando certo de fazer na ausência de meu pai as suas partes. Gostei sumamente do homem. É um verdadeiro militar, franco e leal. Em minha última carta esqueci-me de dizer que surpreendendo esta viagem não pude deixar de utilizar-me das ordens que por vmcês. Foram dadas a Paulino com relação a qualquer necessidade do Dr. Não desejava causa-lhes transtornos, principalmente já me tendo sido, quando no Ceará, levada a quantia de 300 r.; a necessidade porem, e mesmo o bom andamento dos meus negócios, me obrigam a usar da benignidade de vmcês. Assim daqui sobre o Paulino por igual companhia, e não de a vmcês cuidado sobre o mais. Em Pernambuco, recebi obséquios de alguns amigos nossos e com especialidade do Lealzinho, o qual sabendo que eu vinha para a Corte procurou-me e deu-me uma carta de recomendação, que depois, com surpresa, reconheci ao abrir ser uma ordem de 2: 000$r. Fiqueilhe muito grato por esse ato de cavalheirismo, do qual só em extremo me servirei. 16, às 9 horas Pelo v. Pará acaba de chegar do norte o Jose Amâncio em busca de um cartório. Trás noticias frescas. Em Pernambuco e Ceará sobre todos os nossos vãos sem novidade. Acerca do último lugar, diz ele que os padres estão fazendo uma guerra de morte à candidatura de meu pai. Pelos jornais verão isto melhor. A propósito recomendo a leitura de um artigo que a esse respeito escrevi no Globo, de 13 do corrente, por lembrança de meu tio João. Adeus. Lembranças à Sinhazinha e aos meninos e queiram vmcês abençoar e receber as saudades do filho obediente e amoroso. Tristão. 253