UM PROBLEMA “DOMÉSTICO” Paulo Cezar Pinto Carvalho IMPA Uma das maiores deficiências do ensino de Matemática no curso secundário é a pouca ênfase dada ao seu uso cotidiano. Os alunos são expostos a pouquíssimas situações que ilustrem o processo de estabelecimento de modelos matemáticos. Este artigo relata uma aplicação de Matemática a um problema doméstico real. Alguns anos atrás, quando meus filhos eram pequenos, eu tinha o hábito de gravar filmes e desenhos animados para eles. Meu videocassete possuía um contador de voltas mecânico, que registrava o número de voltas efetuadas pelo carretel da direita e que eu utilizava para marcar o início de cada filme ou programa. Com a paciência própria de pais jovens, eu escrevia em cada fita o nome de cada programa e o número da volta em que ele começava e terminava. Em uma certa fita, por exemplo, eu tinha: 000 − 220 − 435 − ...... 1750 − Charlie Brown Especial Disney Smurfs (livre) Meu problema era o de saber quanto tempo ainda restava para o final da fita (para decidir se havia espaço para gravar um programa de, REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 32, 1996 1 digamos, 30 minutos de duração). Uma primeira idéia para estimar o tempo restante na volta 1750 é admitir que o tempo gasto é proporcional ao número de voltas. É fácil descobrir o número de voltas correspondente à fita inteira; no caso acima, ao final da fita (cujo tempo total de gravação era de 6 horas), o contador assinalava 1902. Se 1902 voltas correspondem a 6 horas, então 1750 voltas corresponderão a (1750/1902) × 6 = 5,52 horas = 5 horas e 31 minutos. Dessa forma, faltariam aproximadamente 29 minutos para o final da fita. Essa estimativa, no entanto, é incorreta. Na verdade, o tempo restante na volta 1750 era maior que o calculado acima. Isso ocorre porque o número registrado pelo contador, que corresponde ao número de voltas da fita no carretel da direita, não é proporcional ao comprimento da fita já utilizada. É fácil entender o porquê disso. O tempo necessário para o carretel da direita (que inicialmente está vazio) dar uma volta completa aumenta à medida que ele é preenchido. Assim, as voltas finais da fita consomem mais tempo que as iniciais e o uso de proporcionalidade para estimar o tempo restante é incorreto. Através de algumas medições podemos observar como evolui o tempo gasto em um certo número de voltas à medida que a fita se enrola no carretel da direita. A tabela e o gráfico abaixo mostram o tempo T(n) consumido nas primeiras n voltas: n = 100, 200, 300, 400 e 500 e comprovam a não-linearidade da lei que relaciona n e T. Observe que o tempo gasto em cada 100 voltas, indicado na última coluna, aumenta à medida que a fita é consumida. Voltas 100 200 300 400 500 Tempo (s) Diferença (s) 555 1176 1864 2617 3437 621 688 753 820 Para obter um modelo matemático que descreva esse comportamento, devemos examinar o processo de passagem da fita de um carretel para outro. Uma aproximação razoável é admitir que a fita, ao se enrolar no 2 SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA carretel da direita, o faz segundo círculos concêntricos (veja a figura a seguir). A cada nova volta um desses círculos é preenchido, sendo o seu raio maior que o da volta anterior. A diferença entre dois raios consecutivos é constante e igual à espessura d da fita. Assim, os raios formam uma progressão aritmética cuja razão é d. Como o tempo para enrolar a fita (que desliza com velocidade constante) em torno de um círculo é proporcional ao comprimento do círculo, que por sua vez é proporcional ao seu raio, os tempos t1, t2, t3, ... consumidos nas voltas 1, 2, 3 ... formam também uma progressão aritmética. Isto é, o modelo adotado estabelece que o tempo t n da n-ésima volta é dado por: t n = t1 + (n − 1) r , para n = 1, 2, 3, ... onde t1 é o tempo gasto na 1a volta e r é a diferença entre os tempos de duas voltas consecutivas. Note que, se os tempos correspondentes a voltas sucessivas formam uma PA, o mesmo deve ocorrer com os tempos para cada k voltas consecutivas. Os dados confirmam que a análise acima está correta. A partir da tabela anterior calculamos o aumento de tempo para cada 100 voltas consecutivas, obtendo a tabela a seguir, que mostra que o tempo gasto para avançar 100 voltas aumenta de aproximadamente 66 segundos a cada 100 voltas. Voltas Tempo (s) Aumento (s) 0-100 100-200 200-300 300-400 400-500 555 621 688 753 820 66 67 65 67 REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 32, 1996 3 O tempo total T(n) consumido nas n primeiras voltas pode ser calculado, então, como a soma dos n primeiros termos da PA t1, t2, t3, .... Portanto, T ( n) = (t1 + t n ) n (t1 + t1 + (n − 1) r ) n r = = t1n + (n − 1) n. 2 2 2 Para o nosso modelo ficar completo basta, assim, obter os valores de t1 e r. Não é conveniente, no entanto, tentar medir diretamente esses valores. Como eles são de pequena magnitude, o erro relativo cometido ao medir o tempo gasto pela primeira e pela segunda voltas será grande. Em lugar disso, podemos utilizar medições já efetuadas, por exemplo T(100) e T(200), para calcular t1 e r. Trata-se de um problema simples de progressões aritméticas: determinar a progressão conhecendo a soma de seus primeiros 100 termos e de seus primeiros 200 termos. A expressão para T(n), dada acima, fornece duas equações (do 1o grau) de incógnitas t1 e r: T (100) = 100t 1 + 4 950r = 555 T (200) = 200t 1 + 19 900r = 1 176 Resolvendo o sistema, encontramos r = 0,0066 e t1 = 5,2233. Temos, então, a expressão que buscávamos para o tempo consumido em n voltas: T ( n) = 5,2233 n + 0,0033 ( n − 1) n . Podemos, finalmente, estimar o tempo já gravado: com 1750 voltas, já utilizamos 19 241 segundos, ou seja, aproximadamente 5 horas e 20 minutos. Assim, nos restam aproximadamente 40 minutos de gravação (e não os 29 minutos obtidos na hipótese de crescimento linear). Esse problema ilustra fatos simples, mas freqüentemente esquecidos por alunos (e professores) do 2o grau: • O termo de ordem n de uma PA é dado por uma função do 1o grau de n . Reciprocamente, os valores de uma função do 1o grau, calculados a intervalos regulares, formam uma PA. 4 SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA Muitas vezes o aluno não percebe que ao calcular os termos a1, a2, ... de uma PA está calculando os valores a(1), a(2), ... da função do 1o grau dada por a ( x ) = a1 + ( x − 1) r , ou seja, a ( x ) = rx + ( a1 − r ) . a(x) = rx + (a 1 - r) 1 a3 a2 a1 2 a5 a4 3 4 5 Note que a razão da PA é igual à inclinação da reta que representa o gráfico da função. Funções do 1o grau e progressões aritméticas servem ao mesmo propósito (embora raramente se faça a correlação entre elas na escola secundária): ambas são utilizadas para modelar crescimento linear. Progressões aritméticas são simplesmente funções do 1o grau cujo domínio é restrito ao conjunto dos inteiros positivos, úteis nos casos em que se deseja modelar uma função afim de uma variável discreta. • A expressão do termo de ordem n da seqüência obtida somandose os n primeiros termos de uma PA é dada por uma função do 2o grau (cujo termo independente é nulo). Reciprocamente, as diferenças entre os valores sucessivos de uma função do 2o grau, calculados a intervalos regulares, formam uma PA. De fato, a soma dos n primeiros termos da PA de razão r e 1o termo a1 é dada por: Sn = (a1 + a1 + (n − 1) r ) n = r n 2 + a 2 2 REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 32, 1996 1 r − n. 2 5 Logo, as sucessivas somas S1, S2, ... são os valores S(1), S(2), ... da função dada por S ( x) = r 2 r x + a1 − x 2 2 Note que o termo independente de x em S(x) é nulo, o que podemos interpretar como correspondendo ao valor da soma de zero termos da PA. Note também que as diferenças sucessivas S (1) − S (0), S (2) − S (1), ... reproduzem os termos a1, a2, ... da PA. Reciprocamente, dada a função do 2o grau, f ( x ) = ax 2 + bx + c , e os valores igualmente espaçados, x 0 , x 0 + h , x 0 + 2h , ..., é fácil verificar que a seqüência a1 = f ( x 0 + h) − f ( x 0 ), a 2 = f ( x 0 + 2h) − f ( x 0 + h), K a n = f ( x 0 + nh) − f ( x 0 + (n − 1) h) é uma PA cuja razão é 2ah2 . A figura a seguir ilustra esse fato. f(x0+3h) - f( x0+2 h) f(x0+2 h) - f(x0+h) f (x 0+h ) - f(x 0) x0 x0+h x0+2h x0+3h Poderíamos ter resolvido o problema de modelar o tempo de gravação de maneira mais rápida e direta utilizando essa relação entre somas de PAs e funções do 2o grau. A partir da constatação de que os tempos em cada 6 SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA volta formam uma PA, já sabemos que o tempo T(n) consumido em n voltas é da forma T ( n) = an 2 + bn . Duas observações — por exemplo, T(100) e T(200) — são suficientes para determinar a e b. Para tal, basta, novamente, resolver um sistema com duas equações e duas incógnitas: T (100) = 10 000 a + 100 b = 555 T (200) = 40 000 a + 200 b = 1176. A resolução do sistema fornece a = 0,0033, T ( n) = 0,0033 n 2 + 5,22 n . b = 5,22 e O exemplo acima procurou ilustrar o uso de funções quadráticas para modelos de crescimento mais complicados do que aqueles em que o crescimento é linear. Crescimento linear (modelado por uma função do 1o grau) ocorre quando incrementos iguais na variável independente x causam incrementos sempre iguais em f(x). Crescimento quadrático ocorre quando crescimentos iguais sucessivos na variável x fazem com que os incrementos em f(x) se sucedam segundo uma PA. Como vimos, é fácil verificar que funções quadráticas satisfazem essa condição. Bem mais sutil é a demonstração de que funções quadráticas são as únicas funções contínuas satisfazendo a condição. O modelo de crescimento quadrático mais conhecido pelos alunos do 2o grau ocorre no estudo do movimento uniformemente variado. A verificação experimental de que um movimento é uniformemente variado pode ser feita explorando exatamente a propriedade acima. Por exemplo, o movimento de um corpo em queda livre pode ser estudado através de fotografias estroboscópicas do movimento, que registram a posição do objeto a intervalos de tempo iguais. A verificação de que os espaçamentos entre as posições consecutivas formam uma PA permite afirmar que a função que descreve o deslocamento é da forma s = pt 2 + qt , onde t e s são medidos a partir do instante e posição, respectivamente, da primeira fotografia. Os coeficientes p e q estão relacionados com a aceleração a e a velocidade inicial v0 (p = 2a e q = v0), cuja definição rigorosa requer REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 32, 1996 7 noções de cálculo. Mas é possível formular problemas interessantes sobre movimento uniformemente variado que explorem apenas o fato de que deslocamentos em intervalos iguais e sucessivos formam uma PA. Comentários finais: • Ao criar modelos matemáticos como os que descrevemos, incorremos certamente em erros, que provêm de duas fontes. A primeira fonte de erros é o modelo matemático em si. No caso da fita, provavelmente o tempo de voltas sucessivas não é exatamente uma PA (ao se enrolar no carretel, é possível que algumas voltas fiquem mais “frouxas” que outras). O segundo tipo de erro é proveniente das medições. Em nosso exemplo, ajustamos o modelo com base somente nas observações T(100) e T(200). Utilizando nosso modelo para estimar o tempo correspondente a 500 voltas, obtemos T(500) = 3 434 segundos, que não é exatamente o valor medido. Podemos melhorar nossa precisão utilizando todas as observações. Nosso problema passa a ser não mais o de encontrar uma função quadrática de termo independente nulo cujo gráfico contém duas de nossas observações, e sim o de encontrar uma função nessas condições que melhor aproxime o nosso conjunto de observações. • A relação existente entre funções do 1o e 2o graus estabelecida acima pode ser generalizada para polinômios de qualquer grau. Incrementos de um polinômio de grau n em intervalos sucessivos de mesmo comprimento formam uma seqüência cujo termo geral é dado por um polinômio de grau n − 1. Reciprocamente, se o termo geral de uma seqüência é dado por um polinômio de grau n, então suas somas parciais formam uma seqüência cujo termo geral é dado por um polinômio de grau n + 1. • Embora todo o processo de modelagem tenha considerado que o número indicado pelo contador indica o número de voltas efetuadas pelo carretel da direita, isso não é necessariamente verdadeiro. O número indicado é apenas proporcional ao número de voltas do contador (provavelmente ele mede o número de voltas de uma roda ligada ao carretel por uma engrenagem). Isso não invalida em nada o nosso modelo: é como se medíssemos o número de voltas em uma outra unidade. A constante de proporcionalidade entre o número registrado pelo contador e o número real de voltas pode ser 8 SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA calculada levando em conta a geometria da fita. Fica aqui um problema para o leitor: O fabricante indica que o comprimento total da fita é 246 metros. Por outro lado, medindo-se o raio do carretel vazio encontra-se 1,2 cm. A partir desses dados e do modelo obtido acima, calcular a espessura da fita e o número real de voltas correspondentes ao número 1902 indicado pelo contador ao final da fita. REVISTA DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA 32, 1996 9