DEBATES PERTINENTES
para entender a sociedade contemporânea
Volume 1
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Dadeus Grings
Reitor:
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Vice-Reitor:
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial:
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Jorge Campos da Costa
Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
José Antônio Poli de Figueiredo
Jussara Maria Rosa Mendes
Lauro Kopper Filho
Maria Eunice Moreira
Maria Lúcia Tiellet Nunes
Marília Costa Morosini
Ney Laert Vilar Calazans
René Ernaini Gertz
Ricardo Timm de Souza
Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS:
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-chefe
Hermílio Santos
Organizador
DEBATES PERTINENTES
para entender a sociedade contemporânea
Volume 1
Porto Alegre
2009
© EDIPUCRS, 2009
Capa: Deborah Cattani
Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski
Revisão: Rafael Saraiva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D286 Debates pertinentes : para entender a sociedade
contemporânea [recurso eletrônico] / org. Hermílio
Santos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: EDIPUCRS,
2009.
v.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>
ISBN 978-85-7430-938-5
1. Ciências Sociais. 2. Sociologia. 3. Sociedade – Século
XXI. 4. Antropologia Social. I. Santos, Hermílio. II. Título.
CDD 301.24
Ficha Catalográfica elaborada pelo
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
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SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................ 6
Hermílio Santos
Justiça social e democracia na modernidade periférica .................................. 7
Emil Sobottka
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica .................. 25
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociedades complexas e políticas públicas .................................................... 41
Hermílio Santos
Propaganda Política, Partidos e Eleições ........................................................ 68
Marcia Ribeiro Dias
Política e integração na América do Sul .......................................................... 88
Maria Izabel Mallmann
Pentecostais
e
política
no
Brasil:
do
apolitismo
ao
ativismo
corporativista.................................................................................................... 112
Ricardo Mariano
Mercado Religioso e a Internet no Brasil ....................................................... 139
Airton Jungblut
Antropologia das instituições e organizações econômicas......................... 155
Lúcia Müller
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do
Conhecimento ” ? .............................................................................................. 176
Léo Peixoto Rodrigues
Apresentação
Com este volume iniciamos a publicação da série Debates Pertinentes. Um
conjunto de três livros dedicados a analisar, por um lado, temas importantes para
a compreensão das sociedades contemporâneas, por outro lado, a contribuição
de autores clássicos e contemporâneos, tanto da sociologia, da ciência política
quanto da antropologia, para a compreensão desses temas. Trata-se de uma
iniciativa do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da PUCRS em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre.
Os textos publicados neste primeiro volume, cujo subtítulo é “Para entender a
sociedade contemporânea”, foram apresentados em um seminário realizado entre
os dias 9 e 12 de junho de 2008 no auditório do Goethe-Institut de Porto Alegre,
espaço reconhecido por fomentar o debate público e por tornar a pesquisa
acadêmica acessível também à comunidade não acadêmica.
O Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, que
passa a contar com o Doutorado a partir de 2010, vem ocupando um espaço
importante na produção das ciências sociais no Brasil, expresso, dentre outros
indicadores, pela avaliação positiva que vem sendo conferida pela CAPES,
quanto pelo papel ocupado pela Civitas – Revista de Ciências Sociais, publicada
pelo PPGCS da PUCRS. Este primeiro volume da série Debates Pertinentes
pretende dar maior visibilidade à contribuição dos professores e pesquisadores do
PPGCS para o entendimento de problemas sociais contemporâneos, ao analisar
temas sociais relevantes e que constituem objeto de pesquisas conduzidas pelos
professores do PPGCS. Nesse sentido, a publicação da presente coleção tem
como objetivo consolidar a contribuição teórica e de estudos empíricos
conduzidos recentemente pelos autores. Além disso, a coleção visa oferecer
instrumental analítico para introduzir o leitor iniciante em temas e teorias de
sociologia, antropologia e ciência política. Trata-se de uma obra que poderá ser
utilizada tanto nos cursos de graduação, quanto ainda do ensino médio e em
certa medida também no ensino de pós-graduação, na medida em que alguns
autores que serão apresentados (sobretudo no Volume 2 desta coleção) possuem
poucas obras de referência publicadas no Brasil.
Hermílio Santos – Organizador
6
Hermílio Santos (Org.)
Justiça social e democracia na modernidade periférica
Sobre a distribuição da riqueza socialmente produzida
Emil A. Sobottka1
O título dado a esta apresentação, sugerido dentro da proposta de debates
pertinentes que ajudem a compreender a sociedade contemporânea, foi justiça
social e democracia na modernidade periférica. O subtítulo especifica a temática,
ao apontar para a questão sobre como se distribui a riqueza produzida em
sociedades modernas. Assim, os três grandes conceitos: justiça social,
democracia e modernidade periférica podem confluir para a questão da
distribuição da riqueza produzida socialmente.
A referência para refletir sobre a sociedade contemporânea é a
modernidade clássica, aquele modo de organizar a vida que surgiu em
substituição ao período medieval. Trata-se de uma forma de organizar as relações
sociais que tem entre seus traços mais característicos estar constantemente em
mudança. Alguns autores interpretam algumas mudanças particulares como se
elas indicassem a superação desse modelo de sociedade e o surgimento de um
novo tipo; isso tem permitido a esses autores propor que a atualidade seja uma
modernidade tardia, uma pós-modernidade, uma hiper-modernidade. Mas mesmo
esses autores retornam à modernidade clássica como sua referência para
dimensionar as transformações.
Na questão de como se distribui a riqueza socialmente produzida e como
se estruturam as relações sociais, também eu gostaria de começar com uma
reflexão sobre aquilo que, pelo menos classicamente, se reivindica como a
situação normal dentro da sociedade moderna. Começo analisando a ideia do
trabalho como a forma central tanto de alocar a riqueza produzida socialmente
como também o eixo constitutivo, estruturador central das relações dentro da
sociedade moderna.
1
Doutor em Sociologia e Ciência Política, pesquisador do CNPq e professor do PPG em Ciências
Sociais da PUCRS. O texto apresenta resultados parciais da pesquisa Reconhecimento, cidadania
e democracia: Direitos sociais e política social no Brasil e na Alemanha nas últimas duas décadas,
apoiada pelo CNPq e pelas Fundações Humboldt e Thyssen.
Trabalho e distribuição da riqueza socialmente produzida
Diferente de outros períodos históricos, na sociedade moderna, em
especial aquela que se fez modernidade capitalista, o trabalho foi transformado no
centro gerador e estruturador dessas duas dimensões da sociedade. Na obra
denominada Princípios de filosofia do direito, um escrito do período da
maturidade, Hegel reflete explicitamente sobre a questão de como a sociedade
moderna que se torna individualizada, que vai perdendo certos vínculos
tradicionais externos, pode encontrar novos fundamentos para se estruturar e
também novos critérios para que as pessoas possam construir nela sua
identidade. Hegel vê no trabalho o lugar social desses dois processos. O trabalho
é visto a partir do homem que se encontra face à natureza e, mediante sua
transformação, produz a partir dela meios para suprir as suas necessidades.
Nessa sociedade, porém, a base do trabalho não é mais o artesanato, como em
períodos históricos anteriores, e sim a divisão social e técnica: as pessoas não
fazem mais "de tudo um pouco", segundo as necessidades concretas, mas se
especializam em determinadas atividades. No conjunto tornou-se possível
produzir muito mais – diz-se que aumentou a produtividade –, mas as pessoas
individualmente passam a concentrar-se crescentemente sobre um número
restrito de procedimentos. Para diversos teóricos esse novo trabalho pareceu
muito centrípeto, dispersivo, individualizante, e colocou a pergunta pelo modo
adequado de manter unida a sociedade agora sem os vínculos tradicionais.
Quando Hegel dá ao trabalho esse lugar central nas relações sociais, ele
não se refere ao avanço técnico, ao aumento da produtividade. Se isso fosse a
característica central da nova forma de trabalho nessa sociedade moderna e
capitalista, ela seria extremamente pobre. Hegel, ao contrário, vê nessa nova
modalidade de transformar a natureza em satisfação das necessidades uma base
ética (Honneth, 2008). A pessoa que trabalha não produz mais o produto na sua
integridade e também não se apropria apenas da quantidade de produtos que ela
produziu para suprir as suas necessidades; agora ela está inserida em processos
através dos quais contribui para as necessidades dos outros e os outros
contribuem para as suas necessidades. Assim forma-se uma interdependência
que, segundo Hegel, deveria motivar os indivíduos a deixarem o seu ócio, a sua
8
Emil A. Sobottka
preguiça de lado e a trabalharem para que, com os frutos do seu trabalho,
pudessem contribuir para a satisfação das necessidades também dos outros.
Assim, esse autor constrói uma ponte ética que ele julga ser capaz superar o
comodismo, a eventual vontade de curtir o ócio indeterminadamente, para dar
uma contribuição social. Nessa visão, não são as necessidades como tais que
impelem o homem a trabalhar, num sentido mais animalesco, e sim o
compromisso ético com a coletividade. Mas o novo lugar que o trabalho ocupa na
sociedade não compromete eticamente de forma unilateral o indivíduo com a
coletividade. Segundo Hegel, a sociedade deve corresponder a essa disposição
do
indivíduo,
permitindo
que
ele
receba
o
suficiente
para
sustentar
adequadamente a si e a sua família. Ou seja, o indivíduo que renunciar à
liberdade de curtir o ócio e se dispor a contribuir com o trabalho para a satisfação
das necessidades de outros membros da sociedade tem direito à expectativa
fundada de ter supridas as suas necessidades – dele e de sua família, à altura
das práticas usuais no seu tempo e contexto. Dessa forma cria-se um sistema de
interdependência e se estabelece um critério, uma medida padrão para alocação
das riquezas em sociedade. Esse esquema de argumentação revela uma
proximidade com o contratualismo: ao invés de o indivíduo tentar viver o máximo
do ócio possível e apenas se contentar com alguma transformação da natureza
para as suas necessidades, ele cede parte de sua liberdade para receber em
troca um grau maior de satisfação das necessidades, suas e de sua família. Hegel
introduz aqui uma dimensão que será vista com muita frequência na discussão
das relações econômicas na sociedade moderna: a ideia de que, de alguma
forma, a família e não só o indivíduo ocupa um lugar importante nas relações de
trabalho.
Essa reflexão de Hegel foi apropriada por Marx de um modo muito
específico, colocando as relações de produção no centro da estruturação da
sociedade. A sociedade capitalista, que para ele eclipsa a sociedade moderna,
tem um modo peculiar de alocação da riqueza: os proprietários dos meios de
produção ficam com quase tudo e trabalhadores, que na visão dele são os
efetivos produtores da riqueza, ficam com tão pouco, que é insuficiente para viver
e sustentar a família. Mudanças no modo de produzir que, em linguagem atual,
podem ser chamados de avanços tecnológicos permitiram um aumento da
Justiça social e democracia na modernidade periférica
9
geração de valor, de riqueza. Mas o poder maior dos proprietários dos meios de
produção, dos donos da indústria, na hora de barganhar o preço da força de
trabalho, faz com que eles possam ficar com uma parcela muito maior da riqueza
e pagar uma parcela menor para aqueles que vendem sua força de trabalho. A
dificuldade que Marx tem nesse contexto é encontrar critérios aceitáveis para uma
distribuição diferente. Para ser aceitável, numa sociedade moderna, um critério
deve satisfazer várias condições – um dos principais é não ser aleatório. Para
diversos autores, como Axel Honneth (2008), os critérios precisam ser internos ao
próprio processo social em questão. Intuitivamente, com base no bom senso,
talvez seja possível argumentar em favor de uma distribuição mais equitativa. Mas
um critério aceitável precisa ser consistente em termos teóricos. E Marx tem
dificuldade em apresentar uma boa argumentação que fundamente como deveria
ser a distribuição da riqueza.
A argumentação feita por Hegel pode não ser convincente na atualidade,
mas ela tinha uma importância para a sociedade do seu tempo: era uma
fundamentação interna ao próprio processo. No momento em que o indivíduo
cede algo que ele não precisaria ceder – no caso, uma parte da sua liberdade – e
se dispõe a trabalhar e assim a cooperar com o bem coletivo, ele tem direito a ter
a expectativa de receber dessa coletividade algo em troca. Marx não levou
suficientemente a sério a necessidade de uma fundamentação, mas essa é hoje
uma exigência central em quase toda teoria social. A atividade teórica dele tem
sido muito mais produtiva em diagnosticar patologias sociais do que em
apresentar critérios aceitáveis com os quais pudessem ser fundamentadas
exigências de mudança social.
Um autor que trabalhou mais nessa argumentação hegeliana foi Emile
Durkheim (1984). Ele não foi muito explícito nesse sentido, mas não é difícil
encontrar nele o parentesco com Hegel através daquilo que Max Weber
denominou de afinidades eletivas. Durkheim retoma a ideia do trabalho como um
dos pontos centrais da sociedade moderna em seu estudo sobre a divisão do
trabalho social, e tenta demonstrar como o trabalho cria solidariedade mesmo na
sociedade moderna – individualizada e com divisão técnica do trabalho. Segundo
ele, o trabalho tradicional criava um tipo de solidariedade mecânica, por imitação,
que não correspondia mais aos tempos modernos. Mas ele, tal como Hegel,
10
Emil A. Sobottka
julgava infundado o temor de que a sociedade se decomporia em uma infinidade
de indivíduos isolados. Exatamente a interdependência da divisão técnica do
trabalho – na qual são necessárias muitas pessoas realizando tarefas parciais
para produzir determinado produto – e da divisão do trabalho social – na qual as
diversas funções necessárias ao bom andamento da sociedade estão
amplamente distribuídas, mas de algum modo coordenadas entre si – geraria um
tipo novo de solidariedade, especifico da modernidade: a solidariedade orgânica.
Tudo isso é bastante conhecido. Menos conhecido possivelmente seja que
na teoria de Durkheim há uma reflexão sobre a fundamentação ética que esse
novo processo de estruturação das relações sociais através do trabalho exigiria.
Em sintonia com a tradição liberal, ele coloca a igualdade de condições como
ponto de partida eticamente normativo. Nessa tradição, a igualdade da formação
para o desenvolvimento pleno das habilidades vocacionais profissionais permitiria
que todas as pessoas tivessem na sua juventude, no momento da definição da
sua carreira profissional, a oportunidade de ter uma formação que as habilitasse a
competir no mercado em condições de igualdade e, acima de tudo, a realizar
plenamente a sua vocação e não ser frustrado nela. Isso seria, a rigor já por
antecipação, um dever da sociedade para com o indivíduo, para que ele possa
contribuir com ela melhor depois. Seria quase como uma hipoteca que a
sociedade já coloca para o indivíduo e tem depois a expectativa fundada de
receber a sua contribuição de volta.
Um segundo ponto que, pelo menos na tradição das ciências sociais, se
enfatiza pouco na leitura de Durkheim, é sua defesa de uma remuneração do
trabalho segundo o seu valor para a sociedade. Quase lá no final da obra A
divisão do trabalho social (Durkheim, 1984, v. 2) há todo um subcapítulo que trata
dessa questão. Nele o autor defende que trabalho não pode ser remunerado
segundo os humores do mercado, de quem contrata o trabalho do assalariado,
mas deve ser recompensado segundo aquilo que esse trabalho contribui para a
sociedade. Portanto, o que deveria orientar a distribuição da riqueza não é o valor
de mercado, mas sim a importância da função que aquele trabalho tem dentro da
sociedade. Isso aproxima a argumentação de Durkheim da tese hegeliana do
direito a uma compensação adequada para a renúncia feita pelo indivíduo ao
deixar o ócio e contribuir para o bem de todos.
Justiça social e democracia na modernidade periférica
11
Um terceiro ponto que Durkheim coloca nesse contexto merece ser
enfatizado. Segundo ele, é necessário que o trabalhador possa sentir dentro do
próprio processo de trabalho que ele está dando uma contribuição para a
sociedade. O oposto aparece no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin
(1936), que mostra a pessoa sendo reduzida a um trabalho extremamente
rotineiro, no qual quase não precisa usar mais a sua cabeça para pensar; ela
apenas precisa cumprir a rotina com eficácia. Durkheim, ao contrário, reivindica
uma ética, segundo a qual as atividades devem ser divididas de tal modo que
quem as executa possa perceber dentro do próprio processo de trabalho que está
dando uma contribuição para a sociedade. Há também aqui a preocupação de
não buscar externamente, como na tradição, por exemplo, uma fundamentação
para os critérios de distribuição do fruto do trabalho. Comum a Hegel é aqui a
ideia de que quem trabalha consiga reconhecer dentro desse trabalho que está
dando uma contribuição para a sociedade. Talvez seja possível dizer que nas
reivindicações feitas por Durkheim há uma componente identitária.
Esses são apenas alguns exemplos de teóricos que têm colocado o
trabalho como central para a sociedade. Central não apenas para o
desenvolvimento da economia, para o aumento da produtividade, para a geração
de riquezas, mas também para a estruturação de relações sociais e para a
conformação de aspectos éticos da convivência em sociedade. Com essas
construções de critérios éticos, feitas a partir de dentro do próprio mundo de
trabalho, torna-se possível dar respostas bem fundamentadas para a questão de
como a riqueza deveria ser distribuída socialmente. Mas a observação de
situações históricas mostra que tem sido grande a dificuldade para cumprir esses
critérios. As razões para isso não podem ser analisadas aqui. Principalmente em
momentos de crise, quando tem ficado evidente que havia falhas na distribuição
da riqueza socialmente produzida, em muitas sociedades recorreu-se à política
para construir critérios que justificassem formas de distribuição da riqueza que
não fosse a via da renda salarial. Essa nova forma de distribuição da riqueza
socialmente criada é a política social.
12
Emil A. Sobottka
Política social e distribuição supletiva da riqueza
Quando políticas sociais começaram a ser instituídas, elas tiveram várias
vertentes teóricas ou políticas que buscavam justificá-las. Uma das razões mais
comumente alegadas é a necessidade de um complemento ou uma correção do
mercado em momentos ou situações em que este falha na alocação da riqueza.
Dentro dessa maneira de pensar, o mercado capitalista em geral, e o mercado de
trabalho em particular, seriam o melhor instrumento para distribuir a riqueza
socialmente produzida. Apenas quando houver algum distúrbio grave seria
eticamente justificável e, portanto, aceitável uma intervenção corretiva. Essa
intervenção em regra é delegada ao estado, para que ele faça algum
complemento
ou
que
ajude
a
superar
a
situação
que
o
mercado
momentaneamente não conseguiu gerir.
Além dos momentos de crise, outra área admitida como justificada para
políticas sociais é a cobertura de certos riscos do ciclo de vida. Um desses riscos
previsíveis é o período em que, em tese, cessarão as forças para o trabalho. Para
cada trabalhador é estatisticamente previsível o prazo normal, dentro de
determinada sociedade, até quando ele terá forças para trabalhar e se sustentar;
a questão que se coloca é: o que virá depois disso? Como ele sobreviverá depois
de findo seu ciclo de vida profissional, para não recair na dependência de
terceiros, que é um dos grandes temores do indivíduo emancipado na
modernidade? A seguridade social é uma instituição que permite ao indivíduo que
ele próprio seja previdente, que faça alguma contribuição a algum fundo, ou que a
coletividade reserve uma parte da riqueza social, e assim o trabalhador tenha
assegurado o direito a receber o seu sustento vitalício quando deixar a vida
laboral. Essa política é a aposentadoria – que muitas vezes é extensiva a
determinados membros da família na forma de pensão. Através dessa política
haverá uma alocação de uma parcela da riqueza social para que aquela pessoa
que contribuiu para o bem da sociedade com seu trabalho possa viver e
envelhecer dignamente.
Há outros riscos do ciclo da vida que são previsíveis no conjunto de uma
população, mas dificilmente podem ser individualizados – como enfermidade e
desemprego. Entre as primeiras políticas sociais em diversos países figuram
Justiça social e democracia na modernidade periférica
13
aquelas que buscavam responder à preocupação com a continuidade da renda, e,
com isso, a possibilidade de seguir dando sustento à família nos casos de
impossibilidade de trabalhar devido a uma enfermidade ou ao desemprego. Hoje
a preocupação com o custo do tratamento de saúde ocupa o lugar central, mas
nas primeiras políticas sociais de saúde a questão era a interrupção da
remuneração que afetava diretamente a satisfação das necessidades do
trabalhador e de sua família. Há razões históricas para que os custos do
tratamento de saúde passassem a esse lugar central, como maior valorização da
longevidade e o aumento do próprio custo dos tratamentos pela incorporação de
tecnologia, pela maior abrangência dos tratamentos possíveis e assim por diante.
Outro momento em que a política social pode cobrir riscos é o do
desemprego. Dentro de certo nível de flutuação macroeconômica, o desemprego
é considerado normal; ele faz parte da coordenação de oferta e procura pelo
mercado. Mas mesmo que na teoria econômica se considere normal uma
pequena oscilação nos níveis de emprego, quando o desemprego afeta o
indivíduo, ocorre uma interrupção na renda que pode ameaçar a sua
sobrevivência.
Para
assegurar
a
continuidade
na
satisfação
das
suas
necessidades e de sua família, mesmo a tradição liberal passou a aceitar alguma
forma de suprimento dessas necessidades via política social.
Mas há também outra reivindicação na política social, uma utopia mais
próxima da vertente socialista, de que a política social possa decomodificar as
relações de trabalho. Essa expressão, usada por Esping-Anderson (1990), talvez
fique mais compreensível se utilizada em outro contexto: o do mercado de grãos,
minérios ou petróleo. Dentro desse contexto, commodity se refere a um produto
com características genéricas, mais ou menos igual em qualquer lugar do mundo.
Ele tem pouca variação e, portanto, não apenas seu preço será relativamente
igual, mas pode ser trocado por outro sem maiores consequências. A commodity
força de trabalho num mercado capitalista pode chegar a este extremo – em que
as pessoas que trabalham são intercambiáveis porque aquilo que elas têm a
oferecer, a sua força de trabalho, passa a ser considerado como uma mercadoria
qualquer, que pode trocar por outra em qualquer momento. Isso valia por muito
tempo principalmente naquelas atividades em que a qualificação, a experiência ou
a habilidade técnica tinham uma importância menor. Hoje, cada vez ampliam-se
14
Emil A. Sobottka
mais as áreas de atuação em que a força de trabalho passa a ser tratada como
uma commodity. A consequência é que tão logo houver uma oferta um pouco
mais barata, ela é substituída. A utopia de uma política social que decomodifique
o trabalho seria associar não ao trabalho, mas à pessoa que o executa o direito
de participar da riqueza da sociedade de tal modo, que ela não dependa direta e
exclusivamente do mercado de trabalho para satisfazer as suas necessidades. A
proposta não é que o ócio fosse permanente, que a pessoa deixasse de trabalhar;
a ideia é que a pessoa tivesse condições de rejeitar ofertas de trabalho
consideradas atentatórias a sua dignidade enquanto pessoa ou indignificantes da
riqueza socialmente produzida porque a contrapartida proposta em forma de
remuneração é muito baixa. Portanto, uma política social decomodificadora do
trabalho criaria a situação na qual as pessoas poderiam ficar tanto tempo sem
trabalhar até que alguma oferta no mercado de trabalho estivesse à altura de sua
dignidade enquanto pessoa e enquanto produtoras de riqueza. Não é difícil
perceber que essa reivindicação tem um horizonte utópico, ainda relativamente
distante. Mas ao mesmo tempo é interessante observar que há países que se
aproximaram razoavelmente desse tipo de situação.
As políticas sociais na grande maioria dos países no ocidente capitalista –
seja na Europa, nos EUA ou no Brasil – estão vinculadas à condição de
trabalhador formal; no Brasil, inclusive, por décadas muitos direitos relativos à
política social beneficiavam apenas o trabalhador urbano. Alguns poucos países,
em especial os escandinavos, orientaram sua política social para o cidadão, sem
restringi-la ao vendedor da força de trabalho. Com isso eles criaram espaços mais
amplos de autonomia do cidadão para escolher onde ele se inserirá no mercado
de trabalho – modestos quando comparados aos ideais utópicos de uma
reumanização plena da mercadoria força de trabalho, mas uma valorização do
cidadão.
A política social coloca na pauta da discussão pública a questão da
distribuição da riqueza socialmente produzida e, assim, a pergunta pela justiça
social. Não se pode fazer política social sem confrontar-se com a questão sobre o
que é aceitável como socialmente justo, sobre como deve ser distribuída a
riqueza socialmente produzida e como devem ser supridas as necessidades das
pessoas dentro da situação biológica, cultural e social da sociedade específica.
Justiça social e democracia na modernidade periférica
15
Cada sociedade se confronta, ademais, com a questão sobre como agir nas
situações em que a pessoa não tem possibilidade de suprir suas necessidades
autonomamente.
Uma contribuição interessante para essa questão é feita por Claus Offe
(2005). Para esse autor existem três princípios de justiça social: ajuda,
previdência e direito de cidadania. O princípio da ajuda implica em que a pessoa
com necessidade tem direito a receber ajuda, e sua comunidade tem o dever
moral de ajudá-la. A tradição de ajuda aos pobres é milenar (Geremek, 1991), e
no
Ocidente
ela
esteve
fortemente
vinculada
à
tradição
cristã;
hoje
crescentemente esse dever moral de ajudar o próximo em necessidade é visto
como um compromisso humanitário. O princípio da ajuda ao necessitado, no
entanto, não serve como regra geral para a distribuição da riqueza na sociedade.
A riqueza na sociedade moderna não se distribui por sentimentos interindividuais;
para contrapor-se ao acúmulo privado são necessárias regras mais abrangentes e
bem fundamentadas, são necessárias instituições que deem suporte aos
princípios da igualdade e da fraternidade.
O princípio da previdência está amplamente presente na política social e se
refere a uma relação em que através de uma contribuição prévia o indivíduo
adquire o direito a receber dessa provisão uma remuneração. Exemplos são os
seguros sociais, os fundos mutualistas, a previdência social. Face ao fato que
certos riscos da vida têm um grau razoável de previsibilidade de virem a ocorrer,
pode-se instituir formas coletivas de contribuição para um fundo, e essa
participação gera o direito de receber do seguro social uma remuneração quando
for necessário. Todos contribuem enquanto podem e aqueles que necessitam
recebem segundo critérios previamente estabelecidos. Esse princípio tem sido
comum para antecipar-se ao desemprego, a situações de doença e ao período de
aposentadoria. Os seguros sociais geralmente são amparados por legislações
nas quais o estado define e zela pelo cumprimento das regras e também dá seu
aval como garantidor último para as situações em que as necessidades de
desencaixe forem maiores que os fundos acumulados. Eles diferem dos seguros
comerciais porque não se orientam por categorias definidoras de risco, mas
contêm uma dimensão redistributiva da riqueza na medida em que a contribuição
16
Emil A. Sobottka
se orienta pela renda e a definição do benefício se orienta principalmente pela
necessidade.
Dentro do princípio da previdência há uma variante impulsionada por
liberais que têm dificuldade em aceitar a socialização dos riscos e benefícios: é a
previdência individual que segue o cálculo atuarial. Essa forma de previdência
pode ter uma dimensão distributiva indireta, por exemplo, via incentivos fiscais
para a capitalização, mas se orienta fortemente pela relação entre contribuição e
benefício, deixando em plano secundário a necessidade do beneficiário.
Aposentadorias complementares e planos de saúde no Brasil têm esse caráter. A
contribuição independe da renda, mas se orienta pela expectativa do futuro
benefício, enquanto no seguro social, ao contrário, a dimensão redistributiva
prepondera.
O terceiro critério de justiça social mencionado por Offe é o direito de
cidadania.
A agregação de direitos sociais à cidadania ocorreu basicamente ao longo
do século 20. Uma de suas origens foi a responsabilidade que sociedades
europeias assumiram para com ex-combatentes que perderam a capacidade para
o trabalho e/ou familiares de combatentes mortos na guerra. Outra, sistematizada
por T. H. Marshall (1967) para o caso da Inglaterra, vê a política social como
ampliação da participação nas conquistas do processo civilizatório: os membros
da comunidade podiam esperar uma participação nas condições gerais de vida
por serem cidadãos daquela localidade ou região – uma noção que foi evoluindo
até tornar-se uma cidadania nacional. Segundo esse princípio, o direito a
participar da riqueza da sociedade é derivado da condição de ser membro dela.
A maioria dos sistemas de política social, na atualidade, mesclam em maior
ou menor grau esses três princípios, mas todos eles estão presentes. Contudo,
para os defensores do mercado capitalista moderno a pergunta prioritária que se
coloca não é pelo princípio de justiça social, mas, sim, se a política social
intervém indevidamente nas regras do mercado e assim desequilibra a lei da
oferta e da procura. Nas últimas décadas, os defensores radicais do mercado têm
conseguido força política capaz de desfazer algumas conquistas civilizatórias nas
relações sociais feitas no século 20 e tornar plausíveis para a esfera das relações
de trabalho ideais dos séculos anteriores.
Justiça social e democracia na modernidade periférica
17
Resistência à justiça social e processos de exclusão
Há diversas preocupações e temores que eram expressos já no século 19
e que ressurgiram mais persistentemente a partir de meados do século 20, na
esteira do renascimento do liberalismo conservador e que tem em Friedrich Hayek
(1987) um de seus expoentes. Um desses temores é que a política social seja um
sustentáculo da preguiça; não se fala em ócio, como Hegel, que é um direito do
indivíduo, mas em preguiça, que tem conotação moral negativa e indicaria que a
pessoa não quer cumprir com seu dever de trabalhar para descansar sobre os
benefícios da política social. Assim, surge a exigência de fortalecimento de
mecanismos que impeçam que as pessoas se acomodem à condição de
beneficiado de alguma política social e as forcem a voltar, pela força de seu
trabalho, a fazer jus à participação na riqueza socialmente produzida.
Há outro temor, antigo, mas ainda presente na atualidade, de que o
fortalecimento dos segmentos considerados dependentes do trabalho pudesse
criar uma força política que demandaria participar mais intensamente dos
assuntos públicos; como pela sua proporção no conjunto da população poderiam
se constituir em maiorias, eles em algum momento colocariam em risco a
estabilidade da sociedade. Os defensores desse temor não consideram que
essas maiorias tenham civilidade suficiente para poder decidir sobre os destinos
da nação. Esse preconceito elitista raramente admite, hoje expressamente, ser
avesso à democracia por considerá-la um risco; ele aparece antes na forma de
despolitização da política, como nos regimes militares da América Latina do final
do século 20, ou de transformação da política social em populismo clientelista,
como se os benefícios fossem devidos à generosidade do governante.
Nas últimas décadas também tem sido expresso com frequência o temor
de que a política social se tornaria como uma bola de neve: seus custos poderiam
até começar modestos e justificáveis, mas criariam vulto até exacerbar qualquer
limite e tornar inviável a produção de riqueza; chegaria o momento em que não
apenas haveria mais consumidores do que criadores de riqueza, mas a proporção
da riqueza apropriada privadamente seria tão pequena face àquela dada em
benefício da sociedade, que deixaria de haver estímulo econômico para seguir
trabalhando. Olhando a evolução estatística de alguns orçamentos públicos,
18
Emil A. Sobottka
pode-se perceber efetivamente um crescimento dos gastos considerados sociais.
Contudo, uma análise mais detalhada desses gastos pode revelar um panorama
bem mais diferenciado: nem tudo que é apresentado como gasto social tem
relação com distribuição da riqueza socialmente produzida nem está em sintonia
com os princípios de justiça social. No Brasil, por exemplo, a maioria dos gastos
declarados como sociais tem um efeito concentrador de riqueza; eles tiram mais
riqueza de quem tem pouco para dar mais a quem já tem muito. Quem afirma isso
é um relatório do Banco Mundial (World Bank, 2003); ele mostra, por exemplo,
como o sistema de aposentadorias no serviço público, em particular no judiciário,
é um forte concentrador de renda, que só fica atrás da política de juros.
Face a esses temores, principalmente temores de que os gastos sociais se
tornariam incontroláveis, foram lançadas diversas propostas de reformas.
Algumas pretendiam deslegitimar a reivindicação de maior participação dos
cidadãos na riqueza socialmente produzida para, depois, retirar das políticas
sociais suas dimensões redistributivas. Como consequência ocorreram cortes nos
orçamentos sociais e uma reorganização das prioridades de investimentos. O
montante total de impostos arrecadados e de gastos governamentais não caiu; o
que houve foi uma diminuição proporcional dos orçamentos sociais e uma
realocação maior de recursos em outros lugares. Em alguns países, como no
Brasil, pode-se observar uma migração da riqueza social arrecadada das políticas
que beneficiavam os cidadãos mais necessitados em direção ao que é chamado
de atração de investimento. Ou seja, a riqueza socialmente produzida é
canalizada na forma de subsídios ou de benefícios fiscais para empreendimentos
que
prometem
se
instalar
e
gerar
mais
emprego
e
riqueza,
assim
empreendedores forâneos se apropriam por antecipação de uma riqueza
socialmente produzida pela população local com a promessa de futuramente
produzir mais riqueza. Há duas distorções nesse modelo de alocação da riqueza
social. Primeiro, via de regra são concedidos a esses empreendimentos amplos
benefícios fiscais, isentando-os, portanto também no futuro de participarem da
mais importante forma de redistribuição da riqueza socialmente produzida em
sociedades capitalistas, que são os impostos. Segundo, nos contratos de atração
de investimento em regra não são previstas auditorias para conferir se essa
Justiça social e democracia na modernidade periférica
19
riqueza será realmente produzida tal como prometido, nem exigências de
restituição da riqueza social local em caso de descumprimento das promessas.
Nas discussões públicas sobre reformas se fazem reiteradamente
presentes propostas de maior mercantilização do trabalho. Sugestões de reforma
em políticas sociais, na legislação trabalhista, no sistema de ensino e em outras
áreas com frequência derivam da pretensão de que as pessoas sejam
impulsionadas a estarem no mercado de trabalho, a venderem sua força pelo
preço que o mercado quiser oferecer por ela. O resultado de muitas dessas
reformas
seria
uma
recomodificação
da
força
de
trabalho;
não
uma
decomodificação, como era a expectativa de defensores de políticas sociais, mas
uma reinserção do trabalho como commodity. Essa impulsão à maior presença
das pessoas no mercado de trabalho leva, segundo as leis da oferta e da procura,
a uma saturação do mercado de trabalho e a uma desvalorização da mercadoria
força de trabalho. A consequência é um achatamento do rendimento que o
mercado está disposto a pagar pela força de trabalho ofertada.
Um risco adicional é que haja uma redução das possibilidades de venda da
força de trabalho. Isso teria, para voltar a Hegel e Durkheim, a dramática
consequência de impedir que esses indivíduos contribuam para o bem-estar
social e assim pudessem ter a justificada expectativa de ter a recompensa de
poder suprir adequadamente as necessidades suas e de sua família. Talvez
nesse contexto se possa falar de riscos de exclusão social, um tema
extremamente controvertido e difícil de ser definido. Niklas Luhmann (1992),
quando confrontado com as limitações da teoria sistêmica por ele concebida para
interpretar a situação concreta de alguns países, como os da América Latina e
especialmente o Brasil, formulou a tese de que em determinadas circunstâncias
há uma anteposição de critérios que interferem no funcionamento dos sistemas
sociais. Essa anteposição pode provocar a exclusão social. A situação de
normalidade seria a inclusão social: quando a pessoa depende de um sistema
social e tem acesso aos benefícios de seu desempenho. Por exemplo: em dada
circunstância a pessoa depende de uma boa formação para participar do mercado
de trabalho e tem acesso ao sistema de formação que a prepara para o exercício
profissional. Essa pessoa estaria, na concepção de Luhmann, incluída. Ela
depende do desempenho de um sistema social e tem acesso a ele. E quando se
20
Emil A. Sobottka
daria a exclusão? Na concepção de Luhmann, exclusão social não ocorre porque
a pessoa está fora da sociedade, mas quando ela depende de algo dentro da
sociedade e não tem acesso àquele algo. A exclusão social seria a anteposição
de uma barreira ao acesso àquilo que dá plenitude à integração social; seria
quando o indivíduo não consegue se colocar adequadamente naquele lugar no
qual são definidas as relações sociais importantes para ele. Se for o mercado de
trabalho, não consegue uma qualificação para o emprego; se for a formação, não
consegue um local adequado para a formação; se forem as relações afetivas, por
alguma razão a discriminação não permite que estabeleça relações afetivas.
Quando essa situação se generaliza, quando desigualdade e exclusão
social transcendem as facetas da vida em que se originaram e se reproduzem em
outros âmbitos, então é possível que se esteja naquela situação que Marcelo
Neves (1992) descreve como modernidade periférica. Para esse autor,
modernidade periférica é a situação de um país, de uma sociedade que reivindica
ter criado relações sociais modernas, mas tem uma estruturação deficiente das
suas relações sociais concretas, porque há uma anteposição que restringe ou que
facilita desproporcionalmente o acesso a recursos vitais e torna assim as
perspectivas de vida muito desiguais.
Para além da proposição de Luhmann, na qual a exclusão foi definida a
partir da interdição do acesso a recursos vitais de um sistema social do qual o
indivíduo depende, com base em Marcelo Neves pode-se falar de uma situação
dupla: uma anteposição que restringe ou que facilita desproporcionalmente o
acesso àqueles recursos vitais. Além da possibilidade de deficiência na
organização da sociedade de modo a produzir exclusão, porque as pessoas não
conseguem acesso a recursos extremamente importantes para elas, pode haver
uma anteposição de privilégios para outras pessoas de tal modo que tenham
acesso a todos os recursos vitais dos sistemas sociais sem dependerem deles;
elas podem beneficiar-se da riqueza socialmente produzida, dos bens culturais,
sociais e econômicos, sem contribuir para eles. Essas pessoas ficam acima da
responsabilidade e das restrições que a sociedade moderna cria para coordenar
as relações sociais dentro dela.
Uma sociedade em que estão institucionalizadas formas tão díspares de
acesso aos recursos vitais e a validade das normas é tão seletiva – e, por
Justiça social e democracia na modernidade periférica
21
conseguinte, a desigualdade de uma esfera da vida se transmite também às
outras –, não corresponde a uma sociedade moderna e democrática, ainda que
gravite na periferia de sociedades modernas, pelas quais se orienta. Neves
designa as pessoas com facilidades desproporcionais de sobreintegradas e
aquelas que padecem com as restrições desproporcionais de subintegradas.
Pode-se dizer, então, que uma modernidade periférica tem três segmentos sociais
muito distintos: pessoas que contribuem e participam da riqueza socialmente
produzida e se submetem às normas; aquelas pessoas sobreintegradas, que se
beneficiam da riqueza, frequentemente pouco contribuem para ela e não se
submetem às normas que estruturam as relações sociais; e aquelas pessoas que
dependem dessa riqueza, mas têm acesso restrito ou até interditado a ela,
pessoas que experimentam muito mais as restrições e punições previstas nas
normas do que a proteção e garantia de seus direitos.
Quando a interdição de acesso se expande para as diversas áreas da vida
e se configura a pobreza extrema, a política social de cunho mais liberal se
propõe a oferecer um prêmio de consolação, denominado gestão social da
pobreza. Uma distribuição limitada da riqueza social é incentivada para assegurar
que essas pessoas sobrevivam, e não sejam gerados focos de insatisfação social.
Na modernidade periférica, um grande contingente de pessoas não consegue ser
participante pleno de uma sociedade que se estrutura fundamentalmente a partir
do mundo do trabalho. Então pode ocorrer que parte importante das políticas
sociais não tem como fundamento o princípio da previdência nem é expressão de
direitos de cidadania – os dois princípios centrais de justiça social em sociedades
modernas – e, sim, fruto da transferência unilateral de renda do estado para o
cidadão. Programas como o Bolsa Família são, no limite, a reedição em grande
escala do princípio da ajuda apontado por Offe. Ao ser estruturado como ajuda e
não como direito de cidadania, torna-se possível que essa política social, ao
repartir a riqueza social com cidadãos em situação de necessidade, não leve a
que o cidadão reconheça nela sua inclusão social numa sociedade que se orienta
por princípios modernos de justiça social, mas seja simbolicamente apropriada e
transferida como uma benesse do governante para aquelas pessoas para quem
alegadamente quer fazer algum bem. Com isso, a política de transferência de
riqueza social na forma de ajuda tira das pessoas a possibilidade de sentirem-se
22
Emil A. Sobottka
incluídos em sua sociedade, construtores de outras riquezas sociais, mesmo que
temporariamente estejam impossibilitados de gerarem riqueza econômica e
recriam dependência ao torná-las devedoras de favor.
Creio ser possível concluir dessas reflexões que em sociedades de
modernidade periférica há atualmente duas ameaças sérias à democracia. De um
lado, um conjunto pequeno de pessoas sobreintegradas, que podem participar da
riqueza socialmente produzida, apropriar-se, servir-se e abusar dela, transferi-la
inclusive para fora, sem terem uma vinculação orgânica com a produção e justa
distribuição dessa riqueza e sem assumirem como vinculantes para si as regras
que estruturam as relações sociais. E, no outro extremo, um conjunto crescente
de pessoas que não são plenamente reconhecidas como cidadãos, com acesso
restrito às possibilidades de produzir e usufruir da riqueza social, sendo
arregimentadas por favores; para essas pessoas é dificultado o acesso ao direito
de reivindicar aquilo que pelas leis lhes é assegurado e que, em tese, pelo
menos, é aceito como justo dentro da sociedade: que cada pessoa, na
eventualidade de alguma crise da vida, tenha supridas as suas necessidades pela
sociedade da qual participa. Em sociedades como a brasileira rompeu-se o
vínculo que a sociedade moderna estabelece entre aquilo que o indivíduo pode e
eticamente deve contribuir para o bem-estar de toda sociedade e aquilo que
justificadamente pode ter a expectativa de receber e de fato receber dela em
compensação. Restabelecer esse vínculo é uma necessidade e um desafio, não
apenas pela convicção de que seja uma exigência ética de justiça social, mas
porque essa seria uma contribuição para a estabilização e para o aprofundamento
da democracia.
Referências
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DURKHEIM, Emile. A divisão do trabalho social. 2 v. Lisboa: Presença, 1984.
ESPING-ANDERSEN, Gosta. The three worlds of welfare capitalism. Princeton:
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Justiça social e democracia na modernidade periférica
23
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HAYEK, Friedrich A. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,
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24
Emil A. Sobottka
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 1
1. O controle social e os processos de criminalização
O conceito de controle social já se encontra, pelo menos de forma indireta,
nas obras dos clássicos da filosofia política. Está presente, por exemplo, na teoria
do Estado de Hobbes, entendido como a limitação do agir individual exigida pela
vida em sociedade. Explicitamente, o conceito de controle social é formulado pela
primeira vez pelo sociólogo americano Edward A. Ross, no final do século XIX,
em uma série de artigos sob o título Social Control, publicada no American
Journal of Sociology, entre março e maio de 1898 (Ross, 1969, p. vii).
Embora já estivesse presente, portanto, desde os primórdios do
pensamento social moderno, o tema do controle social vai adquirir lugar de
destaque na teoria sociológica dentro da perspectiva do estrutural-funcionalismo.
Para Talcott Parsons, principal representante dessa corrente, continuidade e
consenso são as características mais evidentes das sociedades. Assim como um
corpo biológico consiste em várias partes especializadas, cada uma das quais
contribuindo para a sustentação da vida do organismo, Parsons, seguindo
Durkheim, considera que o mesmo ocorre na sociedade. Para que uma sociedade
tenha continuidade ao longo do tempo, ocorre uma especialização das instituições
(sistema político, religioso, familiar, educacional, econômico), que devem
trabalhar em harmonia. A continuidade da sociedade depende da cooperação,
que por sua vez presume um consenso geral entre seus membros a respeito de
certos valores fundamentais.
Parsons define a teoria do controle social como a análise dos processos do
sistema social que se confrontam com as tendências desviantes, e das condições
em que operam tais processos (Parsons, 1966, p. 305). O ponto de referência
teórico para essa análise é o equilíbrio estável do processo social interativo. Uma
vez que os fatores motivacionais desviantes estão atuando constantemente, os
1
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Ciências Criminais da
PUCRS.
mecanismos de controle social não têm por objeto sua eliminação, apenas a
limitação de suas consequências, impedindo que se propaguem além de certos
limites (Parsons, 1966, p. 306). Existe grande relação, para Parsons, entre os
processos de socialização e de controle social. Ambos consistem em processos
de ajustamento a tensões.
A partir da década de 60, o conceito de controle social foi reinterpretado
pelo pensamento sociológico, no interior das novas teorias do conflito, para as
quais a sociedade passa a ser compreendida como um campo de forças
conflitual, em que se enfrentam diferentes grupos, com diversas estratégias de
poder. Mas foi o interacionismo simbólico que, ao concentrar sua atenção sobre
os aspectos definicionais da conduta humana e sobre a reação que provocam os
distintos gestos significantes, produziu uma verdadeira “revolução científica” no
âmbito dos estudos sociocriminológicos, provocando o deslocando do paradigma
etiológico pelo paradigma do controle ou da reação social (Bergalli, 1991).
Assumindo a perspectiva interacionista, Dias e Andrade (1991) sustentam
que o estudo da seleção da criminalidade operada pelos mecanismos formais de
controle social, e em particular pelos tribunais, deve privilegiar os conceitos e
teorias de índole interacionista, permitindo captar a estrutura de uma ação
eminentemente subjetiva como é a ação jurisdicional. Segundo estes autores,
(...) não será, por isso, de estranhar que as teorias sociológicas
que mais recentemente têm ensaiado enquadrar a acção
jurisdicional - entre as mais credenciadas: teoria do papel, do
grupo, da interacção simbólica, do domínio, do sistema, da
organização, da decisão - sejam, todas elas, directa ou
indirectamente subsidiárias da aparelhagem conceitual básica do
interaccionismo. (Dias e Andrade, 1991, p. 519)
O interesse dos estudos criminológicos, e em especial da sociologia
criminal, se desloca da criminalidade para os processos de criminalização. O
direcionamento da questão criminal para os processos de criminalização é
reforçado pela análise materialista dialética, que lançou mão do instrumental
metodológico marxista para compreender até que ponto a velha criminologia
positivista e seus distintos objetos de conhecimento transmitiam uma visão
ideologizada da criminalidade, e como o direito penal era o principal irradiador de
ideologias sobre todo o sistema de controle penal.
26
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
A partir de uma perspectiva conflitual da ordem social, o controle social
passa a ser conceituado como o conjunto de mecanismos tendentes a naturalizar
e normalizar uma determinada ordem social, construída pelas forças sociais
dominantes (Pavarini e Pegoraro, 1995, p. 82).
Essa concepção foi assumida por diversas correntes criminológicas,
orientadas ora no sentido da erradicação do sistema penal tal como hoje se
conhece, para voltar a formas privadas de solução dos conflitos, ora para uma
restrição
do
sistema,
através
de
estratégias
de
descriminalização
e
informalização, e outras ainda voltadas para a utilização do sistema para a
proteção dos setores sociais vulneráveis. Essas orientações são representadas,
respectivamente, pelo abolicionismo escandinavo (Mathiesen, Christie, Hulsman),
pelo garantismo jurídico-penal (Baratta, Ferrajoli, Pavarini), e pelo realismo de
esquerda britânico (Young, Lea, Matthews), que são as posições mais destacadas
da criminologia crítica, e coincidem com uma sociologia do controle penal na
revalorização de todos os níveis do sistema.
2. Níveis de realização do sistema de controle penal
Os níveis de atuação das instâncias de controle social são dois: o ativo ou
preventivo, mediante o processo de socialização; e o reativo ou estrito, quando
atuam para coibir as formas de comportamento não desejado ou desviado. O
nível reativo constitui o terreno concreto da sociologia do controle social, e se
expressa por meios informais e formais. Os meios informais são de natureza
psíquica (desaprovação, perda de status, etc.), física (violência privada), ou
econômica (privação de emprego ou de salário). Nesse caso, as normas jurídicas
atuam como limite para excluir alguns em determinadas circunstâncias.
Já os meios formais de controle social reativo são constituídos por
instâncias ou instituições especialmente voltadas para este fim (a lei penal, a
polícia, os tribunais, as prisões, os manicômios, etc.), caracterizando o uso da
coerção por instâncias centralizadas para manter a ordem social, legitimado pelo
discurso do direito. Teoricamente sua atuação está prévia e estritamente
estabelecida pelo direito positivo, nos códigos penais e leis processuais.
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
27
Em sociedades que possuem uma organização jurídico-constitucional e um
Estado de Direito, o controle penal é baseado na institucionalização normativa. O
direito penal é constituído pelo conjunto de normas a partir das quais a conduta
das pessoas pode ser tipificada e valorada em relação a certas pautas de dever.
Nesse sentido, não há dúvida que as normas penais materiais e processuais
configuram
o
sistema
de
controle
jurídico-penal,
embora
sujeitas
a
descontinuidades, interrupções ou interferências quanto à sua aplicação.
Para o exame das normas penais, é necessário esclarecer em que
consistem e quais são os elementos que as compõem, bem como a inserção
desse sistema normativo no conjunto de normas que integram uma estrutura ou
ordenamento jurídico. Desde a positivação ou formalização do direito penal, esse
nível constitui a preocupação central dos juristas, dando origem à teoria das
normas penais.
A chamada “ciência do direito penal” dedicou-se à análise lógico-formal das
normas e do ordenamento, procurando tornar previsível a conduta do juiz que
aplicará a norma e com isso alcançar o máximo de segurança jurídica,
fundamento do Estado de Direito. Não logrou, no entanto, dar respostas decisivas
sobre a origem ou gênese das normas penais, na medida em que a presença de
uma norma penal em um momento concreto de uma sociedade dada deve ser
buscada na individualização dos interesses e representações sociais que
impulsionaram a criação da norma, e continuam sustentando sua presença no
ordenamento jurídico respectivo.
Uma compreensão metanormativa do direito que vá além da dogmática
penal deve, portanto, partir da investigação sobre a gênese da norma e seu
impacto nas relações sociais, desvelando o conteúdo de incerteza e
imprevisibilidade por trás do ideal de segurança jurídica.
O segundo nível de realização de um sistema de controle penal é o que
envolve os momentos de aplicação concreta da legislação penal, isto é, sua
eficácia. Enquanto a legitimidade de um sistema normativo diz respeito à
correspondência das normas com os valores socialmente reconhecidos como
justos em uma dada sociedade, e a legalidade corresponde ao juízo de fato que
se emite sobre a existência formal das normas, segundo as formas e os
procedimentos legalmente previstos, a eficácia é a capacidade das normas em
28
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
encontrar uma efetiva aplicação na realidade, em relação a comportamentos
concretos dos sujeitos a quem elas se dirigem.
Para a análise da eficácia de determinada norma ou ordenamento jurídico,
e em particular das normas penais, é preciso levar em conta o complexo de
momentos em que se fragmenta o controle penal, articulado através da
intervenção da polícia, do Ministério Público, dos juízes e tribunais e dos cárceres,
que receberam da perspectiva interacionista a denominação de processos de
criminalização.
A superação do paradigma estático do estrutural-funcionalismo, promovida
pelo labeling approach, abriu a possibilidade de uma visão e abordagem dinâmica
e contínua do sistema penal, no qual é possível individualizar segmentos que vão
desde o legislador até os órgãos judiciais e prisionais. Nessa perspectiva, os
processos de criminalização promovidos pelo sistema penal se integram na
mecânica de um sistema mais amplo de controle social e de seleção das
condutas consideradas desviantes (Andrade, 1997, p. 210).
Para a sociologia, a análise desse nível envolve não apenas o
comportamento dos indivíduos cuja conduta está sujeita à aplicação das normas
penais, mas fundamentalmente o comportamento daqueles que devem fazer
cumprir os mandamentos e proibições penais, os operadores do sistema. Assim,
uma sociologia jurídico-penal de caráter empírico deve levar em conta os aportes
da sociologia das profissões e da sociologia das organizações, investigando a
fundo as instâncias de aplicação das normas penais, desvelando os mecanismos
que se movem no interior do aparato policial, judicial e penitenciário,
democratizando o conhecimento a respeito do seu funcionamento para toda a
sociedade (Bergalli, 1991, p. 36).
3. Direito e Controle Social no Estado Moderno
O processo de formação do Estado moderno teve como elemento
constitutivo característico o modo abstrato e formal que assumiu o discurso
jurídico. O direito passa a ser considerado como um conjunto de regras gerais e
abstratas, emanadas de um poder soberano, formando um sistema ou
ordenamento jurídico, e não mais como um conjunto de pretensões e
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
29
reivindicações
particularistas,
baseadas
na
tradição
e
em
prerrogativas
específicas.
Durante o período que se estendeu da Baixa Idade Média até a Revolução
Francesa, em que o Estado Moderno se consolidou, desenvolveu-se uma disputa
política entre vários grupos sociais. No processo judicial, destacaram-se duas
tendências: de um lado, a manutenção de jurisdições particularistas, de caráter
local (as justiças das aldeias, vilas e cidades) e de caráter funcional (justiças
especializadas de certas corporações); de outro lado, a par das disputas entre
juízes letrados e juízes leigos, entre funcionários ou delegados reais e
representantes de outros poderes locais ou senhoriais, desenvolveu-se uma
definição crescente de regras procedimentais, relativas, inclusive, a provas e
procedimentos de recurso, com o objetivo de racionalizar e uniformizar de tal
modo o sistema judicial que os tribunais centrais pudessem exercer um poder
centralizador (Lima Lopes, 1996, p. 247-248).
O passo seguinte foi dado pelo estabelecimento do Estado liberal, no
século XIX. Entre os séculos XVI e XVIII firmam-se os Estados nacionais, mas a
vida social ainda se configura em torno de estamentos e categorias que impedem
a universalização do direito de julgar uniformemente. O triunfo do Estado liberal
traz consigo a promessa de universalização da cidadania: todos são iguais
perante a lei, e a lei será uma só para todos. A partir daí, todos os conflitos podem
ser universalmente submetidos a um único sistema de tribunais, com um único
sistema de regras procedimentais desenvolvidas pouco a pouco. Do ponto de
vista das instituições, o direito de julgar adquirido pelo Estado desenvolveu a
profissionalização do direito, pela organização da burocracia estatal e
especializada e pelo estabelecimento da força pública (polícia).
O moderno Estado constitucional pode então ser visualizado como um
conjunto legalmente constituído de órgãos para a criação, aplicação e
cumprimento das leis. Ocorre a despersonalização do poder do Estado, que
passa a fundar sua legitimidade não mais no carisma ou na tradição, mas em uma
racionalidade legal, isto é, na crença na legalidade de ordenações estatuídas e no
direito de mando dos chamados por essas ordenações a exercerem a autoridade
(Weber, 1996, p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva do fato de
terem as normas sido produzidas de modo formalmente válido, com a pretensão
30
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
de serem respeitadas por todos aqueles situados dentro do âmbito de poder
daquele Estado.
Entre as principais características desse tipo de Estado, está o controle
centralizado dos meios de coerção. O Estado moderno se apresenta, assim,
como um complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamente
erigido, que tem como característica estrutural mais destacada o monopólio da
violência legítima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo
(Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coerção é fortalecido
pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurídica, tornando a coerção
mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializado do Estado.
Essa característica constitui-se em um marco do que Elias denomina processo
civilizador, com a adoção de formas mais racionais e previsíveis de instauração
de processos e de punição pela prática de atos legalmente e previamente
previstos como crimes 2.
Embora reconheça que as relações de poder são sempre potenciais,
instáveis e moleculares, Foucault identifica, tal como Weber e Elias, os
mecanismos de racionalização que dão à máquina estatal a capacidade de
governo sobre a sociedade. Para ele, no entanto, esse processo se desenvolveu
através de dois polos interligados por um feixe intermediário de relações. O
primeiro deles é o que se concentra no adestramento do corpo como máquina, no
crescimento paralelo de sua docilidade e utilidade, na sua integração em sistemas
de controle eficazes e econômicos, através de procedimentos de poder que
caracterizam as disciplinas. O segundo centrou-se no corpo-espécie, na
natalidade e mortalidade, no nível de saúde, através de uma bio-política da
população, do seu controle demográfico e atuarial (Foucault, 1999, p. 285 e seg.).
Para Habermas, embora a compreensão formalista do direito, tomada
como base de orientação por Weber, nunca tenha expressado de forma exata a
realidade do fenômeno jurídico, a atualidade do diagnóstico weberiano não é fruto
do acaso, uma vez que
(...) a tese relativa à desformalização do direito comprovou-se
como enunciado comparativo sobre uma tendência existente na
2
Sobre este tema, vide o Vol. 2 da obra O Processo Civilizador, de Norbert Elias, sobre a
formação do Estado, em especial o capítulo II, “Sobre a sociogênese do Estado”, p. 87-190.
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
31
autocompreensão e na prática dos especialistas em direito.
(Habermas, 1997, p. 204)
Segundo ele, o debate atual sobre a "desformalização" do direito toma
Weber como ponto de partida,
(...) pois seu questionamento da racionalidade da forma do direito
visava medidas para um direito ao mesmo tempo correto e
funcional. Nesta medida, sua discussão ajuda a entender os
problemas que envolvem a legitimidade decorrente da legalidade.
(Habermas, 1997, p. 206).
Correspondendo, como paradigma teórico, aos modernos Estados liberais,
a doutrina do direito como conjunto orgânico e universalmente válido de normas
institucionalmente reconhecidas é progressivamente minada, com o avanço da
providência estatal, por tentativas de adequar a regulamentação legal e a sua
implementação pelas instâncias judiciais a um contexto no qual emergem
discursos normativos rivais e se exige do Estado a execução de funções
crescentemente político-administrativas.
A concentração de poder nas mãos do Estado, a complexificação da
sociedade e a regulamentação legal de setores cada vez mais amplos da vida
social, culminam, nas sociedades urbano-industriais contemporâneas, com a crise
de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurídico esvaziado,
paralela e simultaneamente à crise fiscal do Estado-Providência. Começam a
aparecer as fissuras nesse aparato que ainda sustenta sua legitimidade em uma
legalidade abstrata, constituída de acordo com normas gerais e apropriadamente
promulgadas.
Isso ocorre porque algumas premissas da racionalidade legal começam a
ser minadas ou desgastadas (a divisão de poderes, a supremacia e generalidade
da lei, etc.), frente à concentração de expectativas no polo do Poder Executivo, e
dos recursos limitados de que dispõe para garantir a estabilidade social e a
acumulação de capital.
Além disso, na medida em que se desgasta a crença na naturalidade das
hierarquias de poder ou de distribuição de riqueza existentes, a atividade
governamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suas
consequências em termos da satisfação de interesses fracionários, e a linha
32
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
divisória entre Estado e sociedade civil começa a se tornar cada vez mais difusa,
aumentando a influência e a pressão sobre as políticas governamentais e as
decisões judiciais por diferentes grupos sociais, que se rebelam contra a estrita
observância de normas processuais e legais.
A renovação das fontes de legitimidade do Estado é, então, buscada na
sua capacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento
econômico, vistos como padrão necessário e suficiente para o desempenho de
cada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controle
social para a manutenção da ordem, justificando com isso deslocamentos na linha
Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidade interna,
como um fim em si mesmo, e a manutenção da ordem pública, tornam-se as
principais justificações para a existência do Estado, e a sua fonte de legitimidade,
sobrepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.
Depois de uma fase ininterrupta de prosperidade econômica, desde o final
da Segunda Guerra, que consolida o keynesianismo como política econômica de
governo nas democracias liberais do Ocidente, o choque do petróleo, nos anos
70, e a crise fiscal da maioria dos Estados industrializados, aprofundou o
predomínio da racionalidade instrumental sobre o ideário iluminista. Num primeiro
momento, a partir do final da década de 70, o Estado passa a ser totalmente
dominado pela força e os interesses da globalização capitalista. É a fase áurea do
neoliberalismo, representada pelos governos de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, na qual foi implementada uma ampla reestruturação produtiva nos
principais centros industriais do mundo capitalista. A partir desse momento, em
termos de política criminal, se fortalecem e disseminam as tendências
paleorepressivas de criminalização e encarceramento, que nos E.U.A. resultaram
em um crescimento geométrico da população submetida ao sistema prisional, que
era de 200.000 presos na década de 70 e 30 anos depois chega a quase 2
milhões de pessoas, correspondendo a 800 presos para cada 100 mil habitantes.
4. A situação da Segurança Pública no Brasil
Historicamente no Brasil as Universidades têm tido muita dificuldade para
estabelecer uma agenda de pesquisa sobre a temática da segurança pública e do
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
33
controle de violência, por uma série de fatores que tem a ver com a distância que,
no Brasil, existe tanto entre os diferentes atores sociais que atuam nessa área –
policiais, integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público – , mas também
pelo fato de que a Universidade no Brasil, pela sua estrutura, pelos seus
objetivos, pelas suas finalidades, teve sempre uma dificuldade muito grande de
lidar com os problemas que afetam mais diretamente as populações de baixa
renda. Essa dificuldade vem sendo superada nos últimos anos pela iniciativa de
alguns pesquisadores da área da violência e da segurança pública, que ao
realizarem suas pesquisas não têm apenas uma preocupação acadêmica, têm
também uma preocupação em contribuir de alguma forma para o equacionamento
desse problema social, com o incremento de mecanismos de elaboração,
monitoramento e avaliação das políticas públicas de segurança.
Temos na área da segurança pública no Brasil uma situação bastante
paradoxal. Trata-se de uma combinação perversa entre elementos que vêm do
medievo – o sistema penitenciário – e elementos de pós-modernidade. Essa
combinação é perversa porque justamente o que caracteriza o que chamo de pósmodernidade no âmbito penal são algumas propostas que se vinculam às
políticas de “tolerância zero” contra a criminalidade, maior intervenção punitiva
contra pequenos delitos, a utilização do direito penal como remédio e solução
para todos os problemas sociais, com a ampliação dessa intervenção pelo
legislativo, abarcando todas as áreas nas quais se manifestam problemas sociais:
meio ambiente, trânsito, conflitos interpessoais, relações de consumo, etc.
Outro elemento desse contexto de pós-modernidade penal é o chamado
“direito penal do inimigo”, a ideia de que para aumentar a eficiência dos
mecanismos de controle penal é preciso reduzir garantias dentro do processo
penal. Vale lembrar a velha máxima de que a “polícia prende e o judiciário solta”,
uma forma de questionar a intervenção do judiciário, porque se pretende que o
judiciário também adote uma forma de atuação mais repressiva e menos
preocupada com a garantia de direitos fundamentais do acusado.
Observando as taxas de encarceramento no Brasil, verificamos o enorme
crescimento ocorrido na última década, que faz com que tenhamos hoje nos
cárceres brasileiros 460 mil presos (no final dos anos 90 a população carcerária
no Brasil estava em torno de 150 mil presos). Levando em conta os dados gerais
34
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
do sistema carcerário, o que mais cresce é a utilização da prisão preventiva, ou
seja, pessoas que estão presas sem uma condenação criminal, e que
representam hoje 43% do total de presos no país.
Outro elemento da pós-modernidade penal é o modelo RDD (Regime
Disciplinar Diferenciado), ou seja, a ideia de que como a ressocialização não
acontece, como não se consegue reintegrar socialmente, embora seja esse o
propósito do encarceramento do ponto de vista das disposições legais e
constitucionais, o papel da prisão seria simplesmente de contenção e não mais a
recuperação ou a reinserção do indivíduo na vida social.
Todas essas características são novas. Se formos pensar há 10 ou 20
anos atrás, na mentalidade social e na mentalidade dos operadores do direito,
mesmo durante o período autoritário, estava ainda distante dessas características
elencadas aqui.
No entanto, é possível afirmar também que o Estado brasileiro não é um
bloco monolítico. E também não são monolíticas as instituições policiais, o
Ministério Público, a Magistratura. Em todas as corporações existem diferentes
formas de intervenção. O discurso dos direitos humanos, reiteradamente
apresentado, há mais de 10 anos, desde a Constituição de 88, enquanto discurso
oficial, e o fato de que ano após ano, são elaborados planos, programas, projetos
de segurança pública e direitos humanos incorporando todo o ideário presente na
Constituição, nos remetem à pergunta: por que a maioria dessas questões fica no
papel? Por que ano após ano, apesar do discurso oficial, continuam as chacinas,
os homicídios, continuam todos os problemas que afetam o campo da segurança
pública?
É inquestionável que isso tem relação com a nossa estrutura social, com a
situação de desigualdade social que ainda marca a sociedade brasileira. Sem
dúvida que essas questões estruturais têm um peso importante, mas quando se
fala em segurança pública é possível sustentar também que as coisas poderiam
ser diferentes, mesmo se tudo o que acontece em termos de estrutura social e de
educação não avançasse, nós poderíamos avançar um pouco mais na área de
segurança pública se algumas coisas fossem encaminhadas, se os mecanismos
de gerenciamento das agências envolvidas com a segurança fossem melhor
utilizados.
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
35
Mas, em primeiro lugar, o aperfeiçoamento gerencial e institucional não é
tão simples, porque há diferenças entre os juízes, entre os promotores, entre os
policiais, entre as pessoas que atuam nessa área: diferenças de concepção. Há
no interior das instituições uma visão que é mais vinculada a ideia de que para
haver segurança é preciso abrir mão de direitos, é preciso reduzir a margem de
garantias individuais. Está presente nas pesquisas que tem sido feitas com
operadores do direito e é perceptível no contato com policiais civis e militares, nos
cursos de especialização em segurança pública promovidos por diversas
universidades brasileiras em parceria com a SENASP.
Há na verdade uma divisão no interior das instâncias de poder do Estado
brasileiro e no interior dessas diferentes corporações, sendo que de um lado está
o discurso republicano da garantia dos direitos humanos com segurança pública,
mas de outro há ainda uma concepção que se conecta com parcelas importantes
da opinião pública no Brasil, no sentido do endurecimento penal, de mais prisões,
de presos em condições precárias, sem garantias individuais básicas. Discurso
que se manifesta muitas vezes pela defesa da pena de morte, da redução da
idade penal, dos direitos humanos só para “humanos direitos”.
Para que se coloquem em prática as declarações programáticas e as
previsões legais, é preciso enfrentar essa questão de que estamos lidando com
diferentes concepções, diferentes paradigmas. E que o paradigma hoje dominante
é o do endurecimento penal como resposta ao problema da violência, do crime e
da insegurança pública. Nunca como hoje houve tanta gente presa. Nunca como
hoje, no mundo, o sistema penal teve o papel que ele tem no sentido de que o
Estado recua no campo dos direitos sociais, mas avança no campo da
criminalização e do encarceramento.
É preciso construir outro modelo de enfrentamento da violência e da
criminalidade tanto no plano do debate teórico e normativo, quanto no dia a dia,
no cotidiano. É preciso construir experiências concretas. A desconstrução do
paradigma dominante ainda é uma tarefa necessária. Ainda é necessário mostrar
a cada dia que prender não resolve. Pelo contrário, prender cria novos problemas
e, portanto, é preciso afirmar isso. Mas é preciso ir além. É preciso apresentar
soluções. Esse é o grande desafio. É preciso pensar sobre as polícias. Não há
democracia sem polícia democrática. É preciso continuar a construção de uma
36
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
polícia para a democracia, que seja técnica e gerencialmente preparada, voltada
para a resolução de problemas, capaz de combater a truculência policial, de
combater a corrupção interna, porque só dessa forma a polícia será respeitada
pelo cidadão.
Por outro lado, precisamos avançar na discussão sobre a prevenção ao
delito. É preciso construir os mecanismos adequados para uma prevenção eficaz
da criminalidade. Isso passa pela inclusão social para a juventude, programas de
melhorias do ambiente urbano, políticas de redução das oportunidades para o
crime, recolhimento e controle de armas, discussão sobre o controle da bebida
alcoólica, tema polêmico, porque na verdade a forma como isso vai ser colocado
em prática deve ser sempre bem pensada e feita de acordo com um debate, um
processo político com a participação da comunidade, não como uma
determinação que vem de cima para baixo, imposta.
Precisamos pensar algumas coisas que vão tocar diretamente o sistema de
justiça, porque muitos conflitos chegam ao poder judiciário, e dentro do poder
judiciário precisarão ser equacionadas. As reformas da justiça, especialmente da
justiça penal, tem que ser bem avaliadas, porque o sistema penal tem que se
colocar enquanto mecanismo de pacificação social, de melhoria das condições de
vida e segurança da população, coisa que até hoje ele não foi. Ao contrário, o
sistema penal brasileiro, até hoje, foi um sistema criminógeno e voltado à sujeição
criminal dos setores sociais mais vulneráveis e tidos como perigosos.
Por fim, temos que pensar sobre o problema do encarceramento no Brasil.
É preciso pensar a prisão a partir da perspectiva da redução de dano, porque a
prisão causa dano. Temos hoje 460 mil presos, e mesmo que boa parte deles
seja composta por presos provisórios, ou presos que já teriam o direito de
progredir de regime, ainda assim não temos o poder de esvaziar as prisões
brasileiras.
A
tendência
é,
pelo
contrário,
aumentar
a
demanda
de
encarceramento. Mas o Estado, caso pretenda exercer seu poder punitivo,
precisa garantir também as condições carcerárias estabelecidas em lei. Sem
dúvida é possível descartar a prisão como alternativa eficaz para o controle do
crime, na grande maioria dos casos. Mas no momento o que nós temos são 460
mil presos, e menos de 250 mil vagas no sistema. Isso não é aceitável. O Estado
Violência e segurança pública em uma perspectiva sociológica
37
Brasileiro precisa investir e garantir condições carcerárias até que se rediscuta o
modelo punitivo até hoje adotado.
Entra aí o debate da descarcerização. Quem está nas prisões brasileiras?
O sistema prisional brasileiro é composto por 40% de presos por tráfico e 40% por
roubo. Esta é a porta de entrada do sistema prisional: o pequeno vendedor de
drogas é que vai preso e a pessoa que está numa situação economicamente
vulnerável em meio urbano e que vai roubar e ser encarcerado. O pequeno
praticante desse tipo de delito vai preso e a primeira coisa que ele tem que fazer
na prisão é entrar para uma facção. Se até então ele não pertencia a facção
nenhuma, a partir dali passa a fazer parte de uma e vai estabelecer relações que
vão garantir sua verdadeira reinserção social, porque vão garantir uma renda e
uma aceitação que a sociedade não vai lhe oferecer. O pequeno traficante e o
assaltante eventual vão se tornar a mão de obra de que a criminalidade precisa
para a prática de crimes maiores.
Além disso, precisamos pensar num outro modelo para o tratamento das
questões que chegam ao sistema penal, como deveriam ser os Juizados
Especiais Criminais. Eles faliram, e a Lei Maria da Penha é a demonstração cabal
dessa falência. Os delitos contra a mulher e a violência doméstica, que chegavam
aos Juizados Especiais Criminais, agora não chegam mais. Na prática não se
conseguiu implantar, de fato, aquilo que era sustentado em 1995, quando a lei foi
criada. Essa falência se deu por problemas na lei e por problemas com os
operadores do direito, ao não se conseguir abrir espaço no âmbito do sistema de
justiça para a mediação de conflitos. A mediação não aconteceu porque os
operadores do direito não trabalharam no sentido de uma mediação penal. O que
poderia ter avançado não avançou e o que ocorre nos Juizados é um processo
muito mais formal do que real de enfrentamento dos conflitos sociais, o que
acabou levando ao descontentamento das vítimas, levando a uma série de
problemas que fizeram com que a experiência dos Juizados Especiais Criminais
esteja numa situação de impasse, a partir da entrada em vigor da lei Maria da
Penha.
Outra questão relevante diz respeito às penas alternativas, porque embora
nós estejamos no âmbito do sistema penal, é possível pensar nesses
mecanismos como mecanismos inclusivos e não de exclusão social. Incluir
38
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
dignamente pela prisão é um desafio na prática inalcançável. Incluir por meio de
uma pena alternativa sabemos que é possível, como demonstra a experiência da
Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, com
importantes resultados alcançados nessa perspectiva de incluir socialmente uma
população que é vulnerável e que tem dificuldade de se conectar socialmente.
Fato é que todos estes desafios dizem respeito a uma revolução
democrática da justiça no Brasil, que redirecione a estrutura e os esforços de
milhares de operadores do sistema de segurança pública e justiça criminal para
objetivos diversos do foco até agora direcionado para a “manutenção da ordem
pública”. Uma estrutura policial capaz de estabelecer vínculos com a comunidade
e atuar na resolução de conflitos cotidianos, e de realizar a repressão qualificada
da criminalidade violenta, e um sistema de justiça capaz de colocar-se perante a
sociedade enquanto um canal legítimo e adequado para a mediação dos conflitos
sociais são a exigência colocada para que possamos avançar no sentido da
redução da violência e da garantia de direitos no Brasil.
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40
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociedades complexas e políticas públicas
Hermílio Santos *
Introdução
As políticas públicas constituem um dos principais resultados da ação do
Estado. Contudo, algumas questões se impõem: por um lado, devemos nos
perguntar se o Estado possui a legitimidade necessária para produzir efeitos no
processo de políticas públicas. Com um mundo cada vez mais globalizado
economicamente, o que significa dizer com atores institucionais do mercado cada
vez mais potentes politicamente, e com uma sociedade civil que se diversifica
tanto na sua agenda quanto na quantidade de atores relevantes, é previsível que
esse cenário represente algum desafio adicional às tarefas estatais relacionadas
à formulação e implementação de políticas. Por outro lado, relacionado a esse
contexto, aumenta o interesse em saber como se dá a relação entre os agentes
estatais e demais atores não estatais, seja do mercado, seja da sociedade civil,
na produção dessas políticas. Assistimos, nas últimas décadas, em praticamente
todas as democracias contemporâneas, a um processo relativamente rápido de
transferência de ativos controlados pelo Estado para as mãos dos agentes do
mercado. Essa realidade deixou ainda mais evidente o fato de a autoridade
separar-se institucionalmente da propriedade, como já observou Przeworsky
(1995). Essa separação crescente provoca não apenas uma redução na
capacidade de intervenção do Estado, como também uma fonte adicional de
tensão entre as principais esferas da sociedade. Assim como o caminho não está
desimpedido para que os proprietários de capital definam os conteúdos das
políticas, tampouco o Estado está em condições de implementar as políticas que
mais lhe convém, sem qualquer pressão externa. A razão para isso, já bastante
explorada por Przeworky (op. cit.), é que, no capitalismo, a capacidade de
formular e implementar não necessariamente andam juntas, por dois motivos: por
um lado, os governantes podem contar com a capacidade institucional de
*
Doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin, professor do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da PUCRS.
estabelecer seus próprios objetivos, mas podem encontrar obstáculos na
implementação, devido à estrutura da economia, uma vez que a propriedade
privada do capital implica que o Estado não comanda sozinho o investimento. Por
outro lado, se o Estado possui a capacidade de intervir na economia, os agentes
econômicos têm motivos suficientes para tentar se envolver com as políticas do
Estado, já que serão afetados diretamente. Nesse sentido, quanto maior a
capacidade do Estado de implementar suas preferências, menor tende a ser sua
capacidade de formular políticas de forma independente.
Ao lado desse incremento da capacidade de atuação política dos atores
econômicos, tem-se verificado, no Brasil, a consolidação de atores sociais como
atores políticos relevantes, como bem expressam os trabalhos de Leonardo
Avritzer (1994) e Sérgio Costa (2002), dentre outros. Embora esses autores não
coloquem em primeiro plano a capacidade de atores da sociedade civil de intervir
diretamente na formulação de políticas públicas, as pesquisas empreendidas, por
ambos, ajudam a entender a pressão a que estão submetidos os agentes
estatais, de um lado para minimizar seu “insulamento”, de outro lado, para não se
tornarem reféns de interesses econômicos robustos. Não há dúvida, contudo, que
sempre haverá o risco desses interesses sociais se transformarem em mais um
“cliente” do orçamento público, por meio das políticas governamentais, quando
eles próprios se tornam objeto de tais políticas. O que importa aqui, no entanto, é
perceber que os atores governamentais estão expostos cada vez mais a variadas
frentes de negociação quando se trata de executar aquilo que, como foi dito,
constitui um dos principais resultados de sua ação, que são precisamente as
políticas públicas. A seguir, pretendo esboçar mais claramente os contornos
desse processo de complexificação e, em seguida, expor as implicações sociais
para a formulação e implementação de políticas públicas.
Contextos sociais complexos
Um dos aspectos centrais na interpretação das sociedades complexas
fornecida por Talcott Parsons (1959) é a importância que ocupa as instituições na
diferenciação dos contextos sociais, contribuindo assim para o equilíbrio e a
coesão sociais, o que, segundo Parsons, seria condição indispensável para o
42
Hermílio Santos
desenvolvimento das sociedades modernas. De acordo com Parsons, à medida
em que as sociedades se tornam mais complexas ocorre uma diferenciação e
especialização institucional, ou seja, as instituições existentes se tornam
responsáveis por determinadas “funções” necessárias à persistência de uma
determinada sociedade. Caso as instituições existentes em determinada
sociedade não sejam capazes de satisfazê-las verificar-se-ia o surgimento de
novas instituições, caso contrário, o equilíbrio e a sobrevivência dessa sociedade
estariam ameaçados. Essa abordagem sistêmica, bastante difundida e influente
até meados do século XX, está na origem de parte das abordagens
neoinstitucionalistas, que têm atraído a atenção de um número crescente de
estudiosos na sociologia, na ciência política e na economia.
Assim como na abordagem parsoniana (Parsons, 1967), a interpretação
neoinstitucionalista considera que as dinâmicas organizacionais não são
determinadas exclusivamente ou principalmente pelos processos internos ou por
sua estrutura formal. Ao lado dessas variáveis, o ambiente externo, ou seja, o
contexto social no qual está inserido uma organização, assim como as demais
organizações existentes, não importa quão distintas sejam, constitui um elemento
indispensável para se compreender o que ocorre no interior das organizações.
Isso explica, em parte, o isomorfismo institucional, que tem origem seja na
regulamentação do Estado (isomorfismo coercitivo), seja na imitação de modelos
de sucesso (isomorfismo mimético), seja ainda na profissionalização (isomorfismo
normativo) (DiMaggio e Powell, 1991). 1
Parsons (1974) concebe as sociedades complexas como sendo compostas
por quatro subsistemas (economia, político, socialização e comunidade
societária), sendo que cada um deles teria uma função a cumprir. A cada um dos
quatro subsistemas societários, Parsons (1959) identifica características e
funções específicas, assim como instituições correspondentes. A economia é
caracterizada pelas atividades de produção e circulação de bens de consumo;
dessa forma, sua função é precisamente a de dar à sociedade a capacidade de
adaptação, indispensável à sobrevivência e desenvolvimento de qualquer
coletividade. Ao mesmo tempo, as sociedades ocidentais fizeram com que a
1
O neoinstitucionalismo tem atraído cada vez mais a atenção também de pesquisadores
brasileiros. Para uma ótima interpretação do sistema de inovação brasileiro a partir dessa
abordagem teórica, ver Campos, 2003. Confira também Rocha, 2005.
Sociedades complexas e políticas públicas
43
complexificação dessa função se fizesse acompanhar pela consolidação, ou o
surgimento, de instituições próprias para o fim de realizar a adaptação exigida. É
o caso das empresas privadas e do surgimento das bolsas de valores, instituições
típicas do que se convencionou chamar “mercado”.
O mercado é uma esfera de socialização em que concorre uma pluralidade
de interessados na troca e nas possibilidades advindas dessa troca (Weber,
1999). Na formulação de Dahrendorf (1974), bastante próxima daquela de Weber,
o mercado é concebido como:
um lugar de troca e competição, onde todos os presentes fazem o
possível para aumentar sua própria fortuna. (...) As decisões são
tomadas, naturalmente, mas só com o propósito de salvaguardar
o funcionamento do mercado, isto é, a definição e a imposição das
regras do jogo (Dahrendorf, 1974, 247).
Convém fazer uma breve referência histórica à constituição desse espaço,
o mercado. Braudel (1987) resume o longo percurso evolutivo, entre os séculos
XV e XVIII, pelo qual passou a economia do Ocidente, em que as cidades
ganham maior destaque, as trocas de mercadorias no âmbito internacional vão
ocupando espaço, tomando um vulto ainda maior com a inclusão de produtos
vindos da América, até chegar ao século XVIII, o qual assiste a um
amadurecimento dos instrumentos de troca. A característica própria do mercado
seria estabelecer um vínculo estreito entre a produção e o consumo, não de um
único produtor ou de poucos que se conhecem e interagem a partir de seus
produtos, mas, sobretudo, entre produtores e consumidores que se localizam em
regiões distintas, produzindo bens distintos, estranhos uns aos outros. Essa
impessoalidade, própria da economia de mercado, ainda viria a se tornar a
maneira por excelência através da qual as pessoas interagem. Mas até o século
XVIII a economia de mercado, mesmo presente em várias regiões, ainda não
havia dominado toda a Europa; falta a ela, como afirma Braudel, espessura. Essa
espessura viria não apenas quando o mercado se alastrou geograficamente –
quando deixa de dominar apenas Cidades-Estado, criando mercados nacionais –,
mas, sobretudo, quando a elite daqueles que controlavam o mercado alcançou
visibilidade e poder político. Pela primeira vez, nos séculos XVIII e XIX, o mundo
44
Hermílio Santos
passou a estar integrado na coordenação e uso dos recursos existentes no
mundo.
Ao compreender o mercado como um local de encontro com o objetivo da
permuta ou da compra e venda, Polanyi (2000) afirma que as relações sociais
estão subordinadas ao sistema econômico de tal maneira que apenas numa
sociedade de mercado faz sentido a referência a uma economia de mercado. Mas
de que maneira as relações sociais estão subordinadas à economia de mercado?
É precisamente o mercado que propicia a socialização entre pessoas que antes
não estavam impelidas à interação. É precisamente essa a particularidade da
nossa época, ter no mercado o espaço de socialização entre estranhos em
sociedades que se tornaram mais complexas através da mobilidade social.
Se no mercado há uma incerteza baseada nas opções futuras dos
concorrentes, no planejamento, ao contrário, o funcionamento do processo de
alocação é previamente determinado. Para Hayek (1961), somente o mercado é
capaz de oferecer espaço à liberdade, entendendo a liberdade como a condição
do ser humano na qual a coerção de alguns sobre outros é reduzida tanto quanto
possível. A coerção seria aquilo que se sofre em função de outrem e implica não
apenas a possibilidade de provocar um dano, como também à intenção de induzir
uma determinada conduta. Um indivíduo sob coerção não é aquele desprovido de
suas faculdades mentais, mas sim aquele que se encontra privado da
possibilidade de utilizar seus conhecimentos e recursos para alcançar seus
próprios objetivos. Da mesma maneira, o controle dos elementos essenciais para
a ação de um indivíduo por outrem é demonstração clara da existência de
coerção. Hayek (1961) tem no sistema de mercado o ponto de partida para o
exercício da vida sem coerção. Porém, afirma Hayek,
em uma sociedade moderna, entretanto, o requisito essencial para
a proteção do indivíduo contra a coerção não é a posse de
propriedade, mas o fato de os meios materiais, que lhe permitem
seguir qualquer plano de ação, não devem estar totalmente sob o
controle exclusivo de outro agente (1961, 259).
Aqueles desprovidos de propriedade encontram no Estado o refúgio para a
garantia de sua vida; o Estado seria também proteção e alongamento do campo
de escolha livre do indivíduo. Porém, o Estado deve garantir tanto a propriedade
Sociedades complexas e políticas públicas
45
daqueles que a possuem quanto a vida e os bens básicos necessários à vida de
todos. O limite da coerção empregada pelo Estado estaria em manter esse
equilíbrio, de maneira a garantir aos indivíduos a possibilidade de desenvolver
suas atividades de forma “coerente e racional”. Hayek parece admitir com isso
que não existe uma sociedade ordenada pura e exclusivamente pela
racionalidade do mercado. Na mesma direção, Dahrendorf (1974) afirma que para
que as regras do jogo, próprias da racionalidade de mercado, sejam efetivamente
válidas, é fundamental a existência de algum mecanismo compensatório,
mecanismo este que não é outro senão as normas substantivas, próprias da
racionalidade do planejamento. Essa compensação pode ser ilustrada pela
introdução de direitos sociais como suplemento aos direitos civis e políticos.
Voltando à caracterização oferecida por Parsons, temos na socialização a
instância responsável pela interiorização da cultura, ou seja, todo e qualquer
espaço onde se processa atividades educadoras, como a família e a escola, mas
também os meios de comunicação. É nessa esfera que se dá a internalização dos
valores de uma determinada sociedade. Outra esfera (ou subsistema em termos
parsonianos), a comunidade societária, é responsável pela integração. Aqui
devem ser localizadas analiticamente as instituições que estabelecem e mantêm
as solidariedades, pois é “formada pelo conjunto dos laços que unem os atores de
uma sociedade, que os tornam solidários, dependentes uns dos outros e que
asseguram uma coesão pelo menos relativa do conjunto coletivo que eles
compõem” (Rocher, 1976: 30). Empiricamente, a comunidade societária deve ser
reconhecida nas “instituições, classes sociais, organizações, movimentos sociais,
grupos de pressão que reúnem e ligam os membros de uma sociedade e através
dos quais defendem seus interesses, satisfazem seus desejos, realizam seus
objetivos” (Rocher, 1976: idem). Por outro lado, o subsistema político procura
realizar os objetivos coletivos, bem como a mobilização de atores e recursos para
tais objetivos. As instituições próprias do Estado, como o governo, devem ser
entendidas como responsáveis por essa função, qual seja a consecução de
objetivos.
Segundo Parsons, os quatro subsistemas da sociedade economia, político,
socialização e comunidade societária estão vinculados por uma rede em que
circulam quatro meios de troca: moeda, poder, influência e compromisso. Para o
46
Hermílio Santos
equilíbrio de uma sociedade é imprescindível haver um fluxo contínuo nesse
sistema de trocas, em que todos os membros da sociedade possam contribuir,
mesmo que não necessariamente de maneira simétrica. O rompimento desse
fluxo ou seu mau funcionamento pode acarretar problemas sociais dos mais
graves. Por exemplo, comunidades locais marginalizadas, além de sofrer as já
conhecidas limitações de caráter material, estão igualmente afetadas por essa
limitação no processo do sistema de trocas. Uma consequência bastante
previsível é haver uma descontinuidade simbólica entre sociedade e comunidade,
em que os valores correntes na sociedade estão presentes na comunidade
apenas de maneira frágil, ou seja, sem que a própria comunidade possa contribuir
para seu desenvolvimento.
A partir dessa análise estrutural-funcionalista de Parsons, podemos agora
apresentar de maneira mais explícita o que corresponderia a um contexto social
complexo. Haveria aqui um equilíbrio entre os diferentes subsistemas, com
funções e instituições diferenciadas. Trata-se de um contexto bastante complexo,
caracterizado ao mesmo tempo pela diferenciação e integração de suas
estruturas e funções. Empiricamente, significa contar com um mercado
funcionando sem grandes restrições, ou pelo menos que tais restrições não
impliquem uma inaceitável intromissão do Estado. Esse equilíbrio implica, por
outro lado, que o papel do Estado não seja exercido com uma “contaminação”
excessiva por parte de interesses privados. Ao mesmo tempo, numa tal realidade
típico-ideal democrática, as instituições da comunidade societária e aquelas
responsáveis
pela
socialização
terão
liberdade
de
ação
sem
estarem
“colonizadas” nem pelo mercado nem pelo Estado. Como se vê, trata-se de um
equilíbrio improvável, mas que, para efeitos analíticos, pode ser útil para localizar
as sociedades existentes em algum ponto, seja se aproximando ou se
distanciando de tal equilíbrio.
A questão relevante que deve se colocar a essa altura é saber de que
maneira, diante de um contexto social tão diversificado, as políticas públicas são
formuladas e implementadas.
Sociedades complexas e políticas públicas
47
Políticas públicas em contextos sociais complexos
Diante da alta complexificação das sociedades contemporâneas, marcadas
por um contexto institucional cada vez mais diferenciado, ocorre não uma
dispersão ou fragmentação institucional. Ao contrário, tal diferenciação tem sido
acompanhada por um grau crescente de interação e intercâmbio entre as distintas
instituições. Essa interação tem provocado um novo tipo de atuação das
organizações, que tem sido conhecido como rede (Castells, 2000), que implica
numa flexibilização da organização vertical, combinando-a com uma atuação
horizontalizada, ou seja, em cooperação ou intercâmbio com outras organizações.
Alguns autores, como Marin e Mayntz (1991), ao analisarem um tipo
específico de rede, como as redes de políticas públicas, chamam a atenção para
o fato de que essas não podem ser definidas unicamente através de sua
interação interorganizacional, mas também pela sua função, a saber, a
formulação e implementação de medidas, na qual é identificada a presença de
redes – através da observação de atores que participam das negociações e
consultas antes que as decisões sejam tomadas –, essas se concentram em
temas setoriais ou específicos (como, por exemplo, no apoio ao desenvolvimento
de novas tecnologias), em que se observa uma relação de interdependência entre
elas. Por rede de políticas públicas entende-se a caracterização geral do
processo de formulação de políticas na qual membros de uma ou mais
comunidades de políticas estabelecem uma relação de interdependência.
Essa concepção do processo de formulação de políticas públicas tem como
pano de fundo uma compreensão da sociedade em que diferentes atores
interagem de uma maneira relativamente descentralizada. Isso significa que as
políticas públicas são o resultado de uma complexa interação entre agências
estatais e organizações não estatais. Rejeita-se com isso a abordagem que parte
do Estado como o único ator relevante nesse processo. A iniciativa para que um
tema seja objeto de política pública pode ser tomada não apenas pelo Estado,
mas também por agentes não estatais. Aqui se estabelece uma distinção
marcante entre a formulação de políticas através de rede de políticas públicas, de
um lado, e através de dirigismo estatal, por outro lado. A formulação via rede não
se baseia em comando e ordem, mas em negociação e intercâmbio. Esse
48
Hermílio Santos
intercâmbio não significa, contudo, que todos os atores se beneficiem igualmente
da relação daí decorrente ou que exista simetria quanto aos recursos (capital,
conhecimento, capilaridade social, legitimidade pública, etc.) acumulados por
cada um desses atores.
Ao contrário do que possa parecer, o Estado envolvido no processo de
políticas públicas através de rede não é um Estado prisioneiro e fragilizado em
sua ação. Trata-se de um Estado que perdeu suas pretensões de dirigismo, mas
que não abdicou de seu papel de formulador e implementador de políticas.
Entretanto, esse papel tradicional passa a ser combinado com uma nova maneira
de processar as demandas, a saber, quando atores não estatais passam a estar
incluídos, ex ante, na identificação de problemas e na proposição de soluções,
inclusive com alguns desses atores assumindo parcela da responsabilidade em
sua implementação.
A figura 1, abaixo, ilustra a constituição de redes de políticas públicas.
Note-se que a posição dos atores é determinada pela intensidade de contatos
estabelecidos por cada um deles. Aquelas instituições localizadas mais ao centro
são precisamente as que, nesse caso específico, ocuparam um papel mais
relevante (Schneider, 2005: 44). Cabe chamar a atenção para o fato de que o
posicionamento
dos
distintos
atores
relativamente
aos
demais
atores
representados na figura não é fixo. Ao contrário, esse posicionamento é dinâmico,
determinado em razão do envolvimento dos atores em torno de temas
específicos, como é o caso da reforma do setor de telecomunicações na
Alemanha. Esse tipo de representação é bastante útil para tornar visível
precisamente a estrutura sistêmica de articulação de atores institucionais
posicionados em distintas esferas da sociedade. Além disso, permite concluir que
a posição de um ator específico, na rede, não depende exclusivamente do seu
acúmulo de recursos financeiros, mas em grande medida do seu interesse sobre
um tema específico que seja objeto de articulação dos atores em rede. A posição
de cada um dos atores depende, também, da capacidade de estabelecer contatos
com os demais atores relevantes.
Sociedades complexas e políticas públicas
49
Governo e Administração
Partidos políticos
Sindicatos
Associações econômicas
Grandes empresas
Figura 1: A rede de políticas públicas na reforma das telecomunicações na Alemanha
Fonte: Schneider, 2005: 48
Quando se trata de otimizar os processos de inovação, por exemplo, os
arranjos institucionais em rede parecem cumprir um papel fundamental. Ao
contrário de Schumpeter, para quem o empreendedor exerce um papel decisivo
nos processos de inovação pelo fato de assumir riscos (Hämäläinen e
Schienstock, 2000:3), diversos autores têm sustentado a tese de que as redes de
inovação ocupariam, hoje, esse lugar central no processo de inovação (Rammert,
2005). O argumento principal é de que no contexto das economias modernas, a
inovação
dependeria,
sobretudo,
de
coordenação
e
cooperação
intraorganizacional, além de um fluxo intenso de comunicação entre as
instituições envolvidas (Hämäläinen e Schienstock, 2000:6). Mas por que razão as
instituições buscariam a cooperação com outras instituições? Não se trataria, por
certo, num mundo competitivo, de altruísmo. Uma resposta “calculadora”
fornecida pelo neoinstitucionalismo seria de que “elas [as instituições] afetam os
comportamentos (...) ao oferecerem aos atores uma certeza mais ou menos
grande quanto ao comportamento presente e vindouro dos outros atores” (Hall e
Taylor, 2003: 197). Com isso, a atuação em rede tende a reduzir as incertezas
envolvidas nos processos de inovação. Nesse novo cenário, marcado pela
50
Hermílio Santos
constituição de redes, a posição do Estado como impulsionador da inovação
passa por severas transformações.
Rammert (2005) sustenta a tese de que o Estado perde...seu papel central
na política de inovação. A pluralidade dos participantes no processo de
desenvolvimento técnico exige uma estrutura descentralizada de `governança`.
Ele se vê crescentemente compelido ao simples papel de intermediário e
moderador (Rammert, 2005: 10).
Nesse sentido, a participação na rede implica, por um lado, na aceitação,
implícita ou explícita, da ideia de heterarquia, ou seja, a existência de uma
diversidade de interesses, atores e recursos, sem que exista entre eles o
estabelecimento, ex ante, da relevância e da proeminência de cada um deles.
Isso não significa, por outro lado, que exista simetria entre os distintos atores
envolvidos, mas tão somente que nenhum deles é capaz de alcançar, sozinho,
seus objetivos e de que existe, aí, uma dependência mútua (Kasza, 2004: 1).
Convém chamar a atenção para o fato de que esse tipo de arranjo
pressupõe algumas pré-condições, dentre elas a de que o contexto político seja
suficientemente despolarizado a fim de permitir que se crie um ambiente de
confiança mútua entre os distintos tipos de instituições relevantes. Além disso,
onde se observam tais arranjos há um contexto institucional bem desenvolvido e
diversificado, em que os recursos necessários não estão centralizados em poucos
atores. Ao contrário, onde se apresenta um ambiente institucional precarizado,
ocorre a presença do que poderíamos denominar de oligopólio dos recursos
relevantes (capital, conhecimento, capilaridade, capacidade de formação, etc.),
impedindo assim a constituição de redes. Esse novo formato de processamento e
alocação de recursos oferece um ambiente promissor para a formulação e
implementação de políticas públicas, em especial àquelas voltadas à criação de
ambientes inovadores.
No Brasil, ainda são escassas as análises do processo de constituição de
redes de políticas públicas. Diferentemente da grande maioria da literatura que
trata da temática – que concentra a análise por um lado na capacidade do Estado
de se articular com outros atores e, por outro lado, na incapacidade do Estado de
prover todos os recursos necessários à formulação e implementação de políticas
públicas –, no Brasil, não se poderia analisar essa realidade desconsiderando o
Sociedades complexas e políticas públicas
51
desenvolvimento recente das organizações da sociedade civil, assim como a
atuação dos grupos de interesse. De acordo com Avritzer (1994), o surgimento da
sociedade civil no Brasil associa-se a três fenômenos fundamentais: a) ao
surgimento de atores sociais modernos e democráticos; b) à retomada da idéia,
realizada por esses autores, de constituição de um espaço intermediário entre
estado e sociedade e c) à constituição de estruturas legais apropriadas para a
institucionalização das reivindicações da sociedade civil.
Os dois primeiros fenômenos estão vinculados ao surgimento de novos
atores sociais, decorrência do rápido processo de modernização pelo qual passou
a sociedade brasileira durante o regime militar. Nesse processo verifica-se não
apenas um crescimento quantitativo de novos atores, mas também que esses
novos atores constituíram-se social, cultural e politicamente de maneira
diferenciada, na medida em que a urbanização crescente provocou a introdução
de novos hábitos. Ao lado da constituição de um associativismo civil urbano,
outros dois movimentos exerceram um papel fundamental nesse processo, tratase do novo sindicalismo e do associativismo profissional de classe média.
Diferentemente das abordagens correntes sobre as redes de políticas
públicas, que focam a análise na capacidade ou mesmo na incapacidade do
Estado em dar conta, sozinho, da formulação e da implementação das políticas, é
preciso que ampliemos a configuração da análise a fim de incluir também a
capacidade dos atores não estatais em contribuir nesse processo. Não se trata de
estabelecer condições normativas para a cooperação de atores diversos na
execução de atividades públicas, mas tão somente alargar o escopo analítico
para dar conta de uma realidade que, em alguns contextos, vai se tornando mais
complexa. A maior complexidade aqui se refere ao fato de responsabilidades no
ciclo de políticas públicas estarem sendo, em muitos casos, compartilhadas entre
atores públicos, privados e da sociedade civil. Nesse caso, se por um lado a
execução das políticas tem a capacidade de, potencialmente, ganhar em
eficiência, por outro lado, tem o efeito de introduzir novos elementos a desafiar a
legitimação democrática da autoridade pública.
Como afirmado anteriormente, o ciclo de políticas públicas em sociedades
mais complexas são igualmente um campo de atuação de grupos de interesse.
Clive Thomas (1993a) sustenta haver uma tendência à homogeneização da
52
Hermílio Santos
atividade de grupos de interesse no processo de formulação de política industrial,
pelo menos nos países altamente industrializados ou, como ele prefere “pósindustrializados”. Sua tese se baseia, sobretudo, na observação de grupos de
interesse econômicos, sem, no entanto, levar em consideração os grupos que
representam ramos da indústria, como a indústria automobilística ou têxtil, alguns
dos mais afetados pelo processo de globalização, dentre outros. É preciso que se
pergunte como os grupos de interesse setoriais agem e como eles contribuem
para o processo de formulação de políticas, quais os fatores específicos a
influenciar as formas de atuação dessas organizações e por quê. É preciso ir um
pouco adiante, colocando questões mais explícitas e investigar os canais de
acesso à disposição dos grupos setoriais para que possam exercer um papel
relevante na formulação de políticas. Quais são as estratégias e táticas dessas
organizações? Quais recursos estão à disposição delas? Há algum tipo de
interdependência entre os formuladores de políticas e os grupos de interesse
setoriais? Em uma abordagem comparativa, deve-se investigar as semelhanças e
diferenças entre grupos que representam setores industriais distintos em um
mesmo país.
Entre os cientistas políticos não há qualquer consenso em torno da
definição de grupos de interesse. Ao definir tais atores sociais, são empregadas
diferentes expressões para caracterizar as mesmas organizações, como grupos
de pressão e lobby. Mais que uma simples incompatibilidade de conceitos, tratase ou de uma apreensão diferenciada de um fenômeno sócio-político ou de uma
má-compreensão do problema investigado.
Grupos de interesse são organizações apartadas do governo – embora
muitas vezes em estreito contato ou parceria com órgãos governamentais –, cujo
objetivo é exercer influência sobre políticas públicas (Wilson 1990: 1; 1992: 80).
“Pressão” é empregada quando os canais de acesso para um grupo estiverem
obstruídos ou quando for ínfima a possibilidade do grupo ter seus interesses
levados em consideração pelos tomadores de decisão. O termo em inglês lobby é
uma metáfora do vestíbulo diante da sala de reunião dos parlamentares e referese a uma atividade particular dos grupos de interesse, a tentativa de influenciar a
deliberação de novas leis (Beyme 1980: 11). Pressão e lobby indicam, portanto,
Sociedades complexas e políticas públicas
53
possíveis técnicas que podem ser empregadas pelos grupos para influenciar as
decisões, não possuindo qualquer caráter de definição.
Apesar de alguns autores concederem aos partidos políticos o mesmo
status dos grupos de interesse, há na verdade uma série de diferenças entre
ambos. Os grupos de interesse se diferenciam dos partidos, sobretudo, pelo fato
dos primeiros não terem a pretensão de administrar diretamente o aparelho
estatal (Hartmann 1985; Wilson 1992: 80).
Os grupos de interesse podem ser classificados de diversas maneiras,
como, por exemplo, pelo tipo de interesse representado, a intensidade de
organização do grupo e o campo de ação prioritário (J. Weber 1977: 75; Heinze
1981: 57). No processo de formulação de política industrial o critério mais
relevante é o primeiro deles, ou seja, o tipo de interesse, que pode ser dividido
entre econômicos e não econômicos ou promocionais. Entre os primeiros,
encontram-se aquelas organizações que colocam em primeiro plano questões
econômicas, como associações de empresários ou industriais e sindicatos de
trabalhadores. Organizações não econômicas são aquelas que aspiram a
objetivos culturais, religiosos, humanitários ou políticos (J. Weber 1977: 75),
embora possam eventualmente lidar com problemas econômicos.
Por destinatários entende-se os possíveis interlocutores de um grupo de
interesse. Um grupo pode tentar ganhar os mais importantes destinatários como
interlocutores, como o congresso, o chefe do executivo, a burocracia estatal, os
partidos e a opinião pública (figura 2). Nem todos os interlocutores têm,
entretanto, a mesma importância para um mesmo grupo. A relevância de um
destinatário depende de muitos fatores, como, por exemplo, do tipo de grupo de
interesse, da estrutura e do papel do destinatário em um sistema político
determinado e os objetivos gerais e específicos perseguidos pelo grupo.
54
Hermílio Santos
Chefe do Executivo
Congresso Nacional
Burocracia
Ministerial
Destinatários
Partidos Políticos
Informações
Petições
Contato Pessoal
Pacote de Votos
Doações
Contato Pessoal
Opinião Pública
Petições
Apoio (ou
sabotagem)
de Medidas
Contato Pessoal
Conhecimento
especializado
Informações
Demonstrações
Declarações
Imprensa Própria
Instrumentos
Grupos de Interesse
Influência Imediata
Influência Intermediária
Figura 2: Destinatários e instrumentos dos grupos de interesse
Fonte: Traduzido e modificado a partir de Rudzio 1983: 245
De que maneira os grupos de interesse econômicos contribuem para o
processo de formulação de medidas de políticas públicas? Por um lado, a
presença de grupos de interesse é percebida em geral somente quando tentam
sabotar medidas deliberadas. Por outro lado, muitas medidas podem ser
implementadas de maneira mais barata e mais eficiente caso os grupos de
interesse, cujos interesses estejam diretamente em questão, cooperem (Wilson
1992: 82). Parto do princípio de que em cenários de alta competitividade
econômica as medidas setoriais têm maior chance de serem implementadas se,
primeiro, as medidas não forem implementadas à revelia ou contra os planos dos
setores correspondentes e, segundo, se o setor industrial – seja através de sua
associação representativa, seja através das companhias mais importantes do
setor –tiver a possibilidade de pelo menos aceitar as medidas antes de elas
serem implementadas. Com isso podem tanto o Estado quanto os setores
industriais realizar seus projetos de maneira mais transparente, já que sua
participação é garantida de antemão, sem que o acesso seja “comprado”.
Sociedades complexas e políticas públicas
55
Na tentativa de cumprir suas funções de maneira a mais eficiente possível,
os grupos de interesse procuram transformar seus recursos – finanças, quota de
filiação e informações – em poder político, de modo que possam desenvolver
relações interpessoais com os diferentes participantes do processo político
(Thomas 1993b: 28). Uma questão central para o grupo é saber distinguir em
cada momento qual tipo de informação poderá elevar suas possibilidades de
acesso aos formuladores. Trata-se assim de uma questão empírica cujos critérios
devem ser estabelecidos de acordo com as circunstâncias. Responder a essa
questão hoje significaria ser capaz de reconhecer a questão em que está
centrada a atual competitividade industrial. A partir daí o grupo articula seus
recursos de maneira a otimizar sua ação, tanto para os seus membros quanto
para os formuladores de políticas. Isso se aplica caso o grupo se recuse a seguir
o caminho mais “fácil”, que seria conseguir do governo vantagens de curto prazo,
via lobby.
Com poucas exceções, grande parte das pesquisas que lidam com os
efeitos e significado de grupos de interesse se dedicam a investigar a ação das
chamadas federações (umbrella organizations, ou associações que abrigam
outras associações) sobre temas macroeconômicos. Entretanto, cada vez com
maior frequência as questões econômicas são tratadas de maneira segmentada,
isto é, percebe-se que a competição global atua diferentemente sobre os setores
produtivos de um país. Com isso, os diversos setores são tratados de maneira
diferenciada, quando e se medidas são implementadas. Uma das consequências
da globalização é o surgimento de desafios para setores específicos e firmas e
menos para a economia de um país como um todo. Daí que cada setor deva ser
tratado e analisado separadamente.
Cawson (1986 e 1985) soube reconhecer isso. Ele foi um dos primeiros
autores a introduzir a investigação de arranjos de interesse que se dão ao nível
médio (meso level) para o tratamento de problemas de determinados setores
industriais. Embora Cawson tenha apenas se dedicado a analisar as
intermediações de tipo neocorporatista, ele apontou para novas perspectivas
quando afirmou que as organizações de interesse não agregam “interesses de
classe”, mas sim as mais específicas preocupações de tipos particulares de
interesse (Cawson 1985: 2). Essa afirmação significa um desestímulo para
56
Hermílio Santos
aquelas abordagens que veem o fantasma dos grupos de interesse por todos os
lados como controladores monolíticos das questões econômicas mais relevantes.
Estudos recentes apontam para a tendência de se estudar todo o processo
de formulação de políticas. A principal preocupação está na tentativa de oferecer
uma visão geral da participação dos diferentes atores ou da investigação das
relações entre eles. Essa linha de pesquisa tem se tornado mais frequente desde
meados da década de 80 e é caracterizada pela análise das comunidades de
políticas (policy communities) e das redes de políticas (policy networks). Ambas
as expressões são definidas e empregadas de maneiras distintas.
Na definição de Wilks e Wright (1987), uma comunidade de política pública
(policy community) é um grupo de atores – ou de atores potenciais – a partir de
um mesmo universo de políticas públicas (policy universe). Os componentes de
um universo de políticas compreendem todos os atores com interesse direto ou
indireto em um mesmo foco de políticas (por exemplo, um produto específico, um
tipo de serviço ou tecnologia, um mercado determinado ou ainda tamanho da
empresa – multinacional, média ou microempresa). Dessa maneira é possível
identificar, descrever e comparar um “universo de política industrial”, um “universo
de política educacional” ou um “universo de política de saúde”, entre outros
(Wright 1988: 605). Em cada um desses universos, por exemplo, de política
industrial,
podem
ser
identificados
alguns
setores,
como
químico,
telecomunicações, siderúrgico, etc. As medidas de política industrial, entretanto,
nem sempre são formuladas dentro ou para um único desses setores, mas
através da interação entre os atores de cada um desses campos. Em função
disso deve ser introduzido o conceito de redes de políticas públicas (policy
networks), para que possamos obter uma melhor compreensão desse processo.
Por rede de políticas públicas (policy network) entende-se a caracterização
geral do processo de formulação de políticas na qual membros de uma ou mais
comunidades de políticas estabelecem uma relação de interdependência (Wilks e
Wright 1987: 299; Wright 1988: 606 ss.; Coleman 1994: 276). Marin e Mayntz
chamam a atenção para o fato de que redes de políticas não podem ser definidas
unicamente através de sua interação interorganizacional, mas também através de
sua função, a saber, a formulação e implementação de medidas (Marin e Mayntz
1991: 16). Ambos os autores chamam igualmente a atenção para o fato de que
Sociedades complexas e políticas públicas
57
onde é identificada a presença de redes – através da observação de atores que
participam das negociações e consultas antes que as decisões sejam tomadas –,
essas se concentram em temas setoriais ou específicos (como, por exemplo, no
apoio ao desenvolvimento de novas tecnologias) e não em torno de controvérsias
macroeconômicas (Marin e Mayntz 1991: 19).
Quais seriam então as condições ideais para o surgimento de redes no
processo de formulação de políticas públicas ou mais precisamente de medidas
de política industrial? A condição mais evidente é a presença de questões de
políticas públicas (policy issues) (Wright 1988: 606), isto é, um tema deve se
tornar objeto de um tratamento diferenciado por parte do governo. Isso significa
que sua importância deve ser reconhecida e confirmada por diferentes atores. A
iniciativa para que um tema seja objeto de política pública pode ser tomada não
apenas pelo Estado, mas também por agentes não estatais. Aqui se estabelece
uma distinção marcante entre a formulação de políticas através de rede de
políticas, de um lado, e através de dirigismo estatal, por outro lado. A formulação
via rede de políticas não se baseia em comando e ordem, mas em negociação e
intercâmbio (Kenis 1991: 299). Esse intercâmbio não significa porém que todos os
atores se beneficiem igualmente da relação daí decorrente (Schneider 1990: 175)
ou que exista uma relação simétrica entre eles.
Três outros aspectos relevantes para a presença de rede de políticas
devem ser nomeados aqui. A saber, as variáveis gerais do país (country
variables), como, por exemplo, a orientação tradicional de política econômica, o
grau de politização de reestruturação industrial e o papel de agências estatais na
economia; as variáveis do setor em questão (como a interdependência e
integração pessoal e/ou organizacional numa indústria) assim como as condições
estruturais e conjunturais do setor (competição intraindustrial, existência e
atividade de associação de interesse) (Kenis 1991: 307). Isso deixa evidente que
na análise de redes de políticas os grupos de interesse são apenas um entre
possíveis participantes do processo de formulação de políticas públicas
(Lehmbruch 1991: 134).
Na literatura recente são identificados alguns tipos de redes de políticas. As
mais importantes dentre elas são as redes neopluralistas e as neocorporativistas.
58
Hermílio Santos
Rede de tipo neopluralista
Parte das definições disponíveis do processo neopluralista de formulação
de políticas é fornecida por seus críticos. O equívoco de leitura mais comum
dessa perspectiva, por parte dos seus críticos, é a afirmação de que no arranjo
neopluralista a possibilidade de influenciar o processo de formulação estaria
dividida entre diferentes grupos de forma equilibrada. Tal interpretação não é
dada pelos próprios neopluralistas. É possível que os autores neopluralistas não
sejam capazes de entender sempre a realidade a qual pretendem analisar, mas
não são ingênuos ao ponto de sustentar que as possibilidades estejam
igualmente distribuídas entre os diferentes atores envolvidos.
Para os neopluralistas, nem todos os grupos têm acesso semelhante ao
processo de formulação, em função, sobretudo, da qualidade e quantidade dos
recursos à disposição dos mesmos (Christiansen e Dowding 1994: 15). Além dos
recursos financeiros, de organização e de informação, um outro recurso ocupa um
lugar central, a saber, a legitimidade. Um grupo deve credenciar-se como legítimo
para que possa ganhar acesso ao processo de formulação. O fato de ser legítimo
concede ao grupo o status de insider. Essa legitimidade não é dada pelo Estado,
mas o grupo deve ser “amplamente aceito como tendo o direito de participar”
(Dahl 1986: 180, tradução minha). Dahl (1986), como ademais a maioria dos
pluralistas, não deixa evidente qual instância forneceria essa legitimidade.
Fundamental, contudo, não seria nomear uma instância legitimadora, mas
reconhecer que essa legitimidade não é dada apenas pelo Estado.
Na perspectiva neopluralista, o processo de formulação de políticas
públicas em uma sociedade democrática é caracterizado pela existência de uma
concorrência entre diferentes grupos (a analogia com a economia de mercado
não é coincidência). Nesse cenário competitivo disputam indivíduos, partidos
políticos e grupos de interesse antes que o governo formule e implemente suas
políticas (Thomas 1993a: 7). Grande parte dos autores neopluralistas concedem
aos grupos de interesse um papel central no processo político, pois esses
possuem um volume considerável de poder (Smith 1990: 302). Em função disso
os grupos de interesse assumem um papel relevante na definição de policy
outcomes. Diferentemente de algumas interpretações, os grupos de interesse são
Sociedades complexas e políticas públicas
59
encarados pelos neopluralistas enquanto um dentre outros atores importantes na
arena política. No fundo, coloca-se a concepção pluralista de divisão do poder na
sociedade, a saber, enquanto disperso entre distintos atores. Entretanto, os
atores que se filiam a essa corrente reconhecem que os empresários possuem
uma posição privilegiada nesse processo ou que pelo menos deveriam possuir
(Lindblom 1977: 175).
Dessa maneira de conceber a representação de interesse não se deve
concluir que não seja possível o surgimento de redes. Como poderia então ser
concebida uma rede de políticas de tipo neopluralista? Se lembrarmos da
legitimidade como elemento importante para a participação no processo de
formulação de políticas deveria ser concebida uma rede par excellence, ou seja,
uma estrutura em que distintos atores tomam parte sem que um deles exerça um
papel central. Isso significaria que mesmo quando os atores envolvidos não
possuam igualdade de acesso ao processo de formulação não haveria um ator
que assumiria o papel de legitimador da participação de atores interessados.
Essa maneira de conceber o processo de formulação de políticas provocou
e provoca ainda inúmeras críticas. A crítica mais frequente é que os pluralistas
fracassam em sua tentativa de análise em função de sua incompreensão do
processo político contemporâneo. Tais críticas são elaboradas, sobretudo, pela
abordagem neocorporatista.
Rede de tipo neocorporativista
A perspectiva neocorporatista surgiu quase como uma reação às
perspectivas “passadas”, em especial ao pluralismo e ao corporativismo estatal.
Embora o artigo de Schmitter Still the Century of Corporatism? (1979) seja um dos
artigos mais importantes para o debate neocorporativista, as contribuições de
Lehmbruch (1979a; 1979b) são mais apropriadas para representar a perspectiva
neocorporatista na discussão em torno do processo de formulação de políticas
públicas.
Schmitter
define
neocorporatismo
enquanto
um
sistema
de
representação de interesses. Para Lehmbruch, mais que uma simples articulação
de interesses, o neocorporativismo é:
60
Hermílio Santos
um modelo institucionalizado de formulação de políticas, no qual grandes
organizações de interesse cooperam umas com as outras e com autoridades
públicas não apenas na articulação (ou mesmo ‘intermediação’) de interesses,
mas – em suas formas desenvolvidas – na ‘alocação autorizada de valores’ e na
implementação de tais políticas (Lehmbruch 1979a: 150, tradução minha).
O desacordo entre ambos os autores está menos no aspecto conceitual,
como pode parecer num primeiro momento, mas fundamentalmente na realidade
observada. Enquanto Schmitter lida com os arranjos políticos em torno do Estado,
Lehmbruch tenta apreender o processo de surgimento de políticas públicas. A
diferença entre ambas as perspectivas é de fato bastante sutil, para alguns
inexistente. Porém, o resultado das articulações em torno da administração do
Estado nem sempre pode ser transposto automaticamente para o processo de
formulação de políticas. Isso significa que ambas as abordagens não
representariam interpretações contrapostas de uma mesma realidade.
Diferentemente dos neopluralistas, o papel do Estado é especialmente
salientado pelos adeptos da corrente neocorporatista. Entre os autores
neocorporatistas, o Estado não é definido de maneira uniforme, mas sua
autonomia em relação aos grupos de interesse é um ponto convergente entre
suas diferentes abordagens. O Estado não é concebido simplesmente como uma
arena na qual competem interesses divergentes, senão que o Estado teria sua
própria iniciativa, interesses e políticas (Meier e Nedelman 1979). Isso não quer
significar que o Estado seja totalmente independente e autônomo e que os grupos
de interesse lhe estejam subordinados, mas que o Estado possui a autoridade de
definir os canais de acesso, assim como quais atores podem e devem participar.
Para Meier e Nedelman (1979), o papel a ser exercido pelos grupos de
interesse não estariam de maneira alguma estabelecidos de antemão. Isso
dependeria de duas condições, a saber, a maneira predominante através da qual
os atores definem a interação entre eles (entre grupos de interesse e Estado) e a
maneira dominante através da qual os atores definem a situação na qual essa
interação ocorre. Em arranjos setoriais de tipo neocorporatista os grupos são
capazes de mediar a relação Estado/membros dos grupos (Young, 1990). Assim,
é possível conceber a rede de políticas de tipo neocorporatista como um arranjo
em que participam atores em quantidade limitada e tendo o Estado como ponto
Sociedades complexas e políticas públicas
61
de convergência, isto é, como elemento central no processo de formulação de
políticas.
Quando se trata de analisar o papel dos grupos de interesse organizados
em ambos os tipos de redes, não é simplesmente uma divergência de conceitos
quando as teorias pluralistas acentuam a atividade de representação dos grupos
de interesses, em oposição à intermediação, acentuada pelos autores
neocorporatistas. Intermediação incorpora em seu significado – muito mais que o
conceito de representação – um processo complexo e dinâmico. As teorias
neocorporatistas reconhecem, assim, uma contribuição mais ativa dos grupos de
interesse na formulação de políticas, pois para essa corrente os interesses
coletivos não são dados, mas são “definidos” por instituições sociais (Streeck
1994). Em função disso é determinado o significado dos grupos organizados tanto
para os membros quanto para o processo de surgimento de redes. Aquelas
associações que conseguem fortalecer seu campo de ação através do
intercâmbio político com o Estado podem “governar” o interesse dos seus
membros ao contrário de simplesmente representá-lo (Streeck 1994). É
improvável que uma organização de interesse goze de um status permanente e
estável, tanto diante dos seus membros quanto diante dos seus destinatários.
Com isso fica claro que a controvérsia entre intermediação e representação é um
problema empírico e dinâmico.
Intermediação ou representação de interesses pode ocorrer em níveis
distintos, por exemplo, nos níveis macro, meso (médio) ou micro. Para a análise
de setores industriais específicos é relevante que a análise se concentre ao nível
meso da representação ou intermediação de interesse.
Por um lado, a abordagem de redes de políticas oferece uma visão
razoável de todo o processo de formulação de políticas públicas, tanto no que se
refere ao papel exercido pelos participantes da rede de políticas quanto no que se
refere à maneira em que eles interagem. Por outro lado, raramente é possível
obter uma compreensão precisa do papel de cada ator relevante envolvido nesse
processo, já que essa abordagem se limita à descrição da participação de
possíveis atores em uma rede.
É bastante plausível afirmar que os grupos de interesse tornaram-se ativos
em novas áreas, mas é também fato que o sucesso de tais organizações está
62
Hermílio Santos
intimamente relacionado com a ausência de polos contrários organizados
(Petracca 1992). Resta saber, entretanto, até que ponto grupos de interesse
podem cumprir um papel relevante em um cenário cada vez mais competitivo –
inclusive entre os membros de cada grupo. Uma resposta satisfatória a esse tipo
de questão somente será possível a partir de investigação empírica da atividade
de associações setoriais e dos desafios contemporâneos com os quais
determinada indústria está confrontada.
Conclusão
Nosso empreendimento aqui foi oferecer uma análise da produção de
políticas
públicas
em
sociedades
consideradas
“complexas”.
O
Estado
contemporâneo – mais que antes – está envolvido em um processo intenso de
trocas com as demais instâncias da sociedade. E assim tem sido cada vez mais;
não exatamente, ou pelo menos não exclusivamente, pela incapacidade do
Estado de responder sozinho às demandas lançadas à autoridade pública. Ao
contrário, essa forte interação do Estado com a sociedade civil e o mercado se
dá, por outro lado, também e principalmente pela maturidade dessas últimas
instâncias, que têm acumulado nas democracias contemporâneas – no Brasil
inclusive – conhecimento e capilaridade suficientes para intervir nesse processo
de produção de políticas públicas. Além disso, essa maturidade tem-se
demonstrado pela complexificação, pluralidade e solidez institucional apresentada
tanto pelo mercado quanto pela sociedade civil. O cenário com o qual estamos
confrontados não é de falência do Estado – como fazem crer algumas
interpretações –, mas, ao contrário, de um cenário em que instituições das
distintas esferas da sociedade assumem crescentemente papéis relevantes na
produção de políticas públicas.
Em nossa análise acentuamos os aspectos institucionais no processo de
produção de conhecimento. Ainda que de forma preliminar, apontamos o papel
cada vez mais central que vai ocupando os arranjos institucionais em rede no
processo de inovação. Diferentemente do que defendem alguns autores, arranjos
institucionais em rede tornam-se cada vez mais determinantes no processo de
formulação e de implementação de políticas públicas em razão da sua
Sociedades complexas e políticas públicas
63
capacidade de, em um ambiente competitivo, reduzir as incertezas envolvidas
nesse processo. A redução das incertezas ocorre não apenas por propiciar uma
maior cooperação entre diferentes organizações, mas também por criar
constrangimentos para a ação das organizações engajadas no ciclo de políticas
públicas. Porém, esse processo não se dá sem a presença de desafios, para os
quais o debate em torno aos mecanismos democráticos de condução das
sociedades deve estar atento, tendo em vista que atores não estatais, embora
portadores de recursos relevantes e indispensáveis à solução de problemas
identificados como merecedores de atenção pública, não estão submetidos aos
mesmos mecanismos de legitimação democrática, como o é o caso de boa parte
das instituições estatais.
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Sociedades complexas e políticas públicas
67
Propaganda Política, Partidos e Eleições 1
Marcia Ribeiro Dias
Introdução
Nos últimos vinte anos, a Comunicação Política vem se consolidando como
um campo de investigação interdisciplinar no Brasil, reunindo cientistas políticos e
estudiosos da comunicação social (Rubim & Azevedo, 1998). A institucionalização
desse campo também é evidente e pode ser comprovada através da criação de
associações e grupos de pesquisa, cujos membros interagem em congressos e
encontros nacionais e internacionais.
Considerada sob diversas perspectivas, a propaganda política na televisão
vem se constituindo em tema central de diversos trabalhos nesse campo. Alguns
têm como objeto a evolução da legislação eleitoral e seu impacto sobre as formas
de propaganda política (Duarte, 1980; Albuquerque, 1995; Miguel, 1997 E 2002);
outros consideram o problema à luz da sua dimensão ética (Gomes, 1994a) ou
retórica (Gomes, 1994b; Figueiredo, Aldé, Dias e Jorge, 1998). Alguns trabalhos
têm procurado desenvolver categorias analíticas acerca da gramática da
propaganda política na televisão (Fausto Neto, 1990; Albuquerque, 1999), ao
passo que outros têm se concentrado na análise da atuação dos consultores
profissionais no processo de produção da propaganda política na televisão.
Finalmente, há aqueles que se ocupam da relação que se estabelece, no Brasil,
entre os partidos políticos e a propaganda política na televisão (Schmitt, Carneiro
e Kushnir, 1999; Albuquerque e Dias, 2002; Dias, 2005; Dias, 2007). A
importância de se estudar tal relação é evidente, particularmente quando se
considera que, no Brasil, a tarefa de gerir a propaganda política na televisão é
destinada aos partidos e não diretamente aos candidatos.
Entre estudiosos da área de comunicação política, tornou-se consensual o
uso do “argumento da substituição” a fim de definir a relação entre os partidos
políticos e os meios de comunicação de massa no mundo democrático
1
Este capítulo é uma releitura de um paper apresentado em parceria com Afonso de Albuquerque
no XXVIº Encontro Anual da Anpocs. Agradeço a Afonso as contribuições dadas na elaboração
original deste texto.
contemporâneo (Albuquerque e Dias, 2002). Esse seria um modelo explicativo
genérico cujo mote estaria no deslocamento de algumas das funções clássicas
dos partidos para a esfera de atuação dos meios de comunicação, especialmente
da televisão.
O “argumento da substituição” pode ser resumido como sendo o produto da
convergência de dois pressupostos distintos: o primeiro deles aponta para o
declínio do papel dos partidos políticos como protagonistas da representação
política, enquanto o segundo refere-se à crescente importância dos meios de
comunicação de massa como atores políticos. O principal problema que aqui se
identifica é o fato de que essa literatura tende a colocar esses dois pressupostos
em uma relação causal, isto é, atribui o declínio dos partidos políticos ao aumento
da importância dos meios de comunicação na dinâmica política. Entretanto,
partidos políticos e meios de comunicação não são instituições que se substituem
no tempo, mas que convivem, articulam e alteram dinamicamente seus padrões
de interação. Nesse sentido, argumentamos a favor da independência desses
dois pressupostos, eliminando a relação de causalidade entre ambos.
Acreditamos que as estratégias de cada um desses atores na construção de seus
padrões de interação irão variar de acordo com o contexto político-institucional, ou
seja, com o formato das regras que orientam suas ações. Sustentamos que,
embora útil para dar conta de alguns aspectos gerais da realidade política
contemporânea, o “argumento da substituição” perde em eficácia quando aplicado
à análise de fenômenos ou realidades políticas específicas, como seria o caso da
propaganda política televisiva no Brasil.
O caso brasileiro, especialmente no que se refere à propaganda política na
televisão, apresenta importantes limites à aplicação do “argumento da
substituição”. Por um lado, a solidez nunca foi um atributo do sistema partidário
brasileiro, porém, tampouco há evidências consistentes de um declínio da
importância dos partidos políticos nas últimas décadas. Por outro lado, no caso
específico da propaganda política na televisão, a legislação brasileira proporciona
aos partidos políticos acesso gratuito à mesma, espaço no qual, estes podem
construir suas estratégias livremente. Assim, apesar de se reconhecer a influência
crescente da televisão na vida política brasileira, não se pode considerá-la um
Propaganda Política, Partidos e Eleições
69
agente autônomo, uma vez que formatos e conteúdos da propaganda são
construídos por agentes partidários.
Desse modo, analisar a propaganda política que é veiculada no Brasil
exige uma análise de seus sistemas eleitoral e partidário, tendo em vista o modo
como se conciliam exigências contraditórias de caráter coletivista e individualista
durante a campanha eleitoral. Se, por um lado, o sistema eleitoral brasileiro,
“centrado no candidato” (Samuels, 1997), fornece um forte estímulo para as
estratégias individualistas de campanha, por outro lado, o modelo de propaganda
política na televisão vigente obriga a que os interesses individuais dos candidatos
se subordinem às estratégias coletivas dos partidos, uma vez que o tempo na
televisão é destinado a estes. Assim, é possível que o formato brasileiro de
propaganda política na televisão funcione antes como um instrumento de reforço
do que de declínio do papel que os partidos políticos desempenham no processo
eleitoral.
Na primeira parte do texto discutimos o “argumento da substituição” e seus
limites de aplicabilidade ao caso brasileiro. Nesse sentido serão discutidos os
trabalhos que, no Brasil, buscam reproduzir o caráter generalizante desse
argumento a fim de compreender e explicar sua atual dinâmica político-eleitoral.
Em seguida, a apropriação do “argumento da substituição” será
problematizado, considerando os sistemas partidário e eleitoral brasileiros, assim
como seu modelo de propaganda política na televisão, que garante ao partido
político o poder de definir o uso mais apropriado desse instrumento para a
captação de votos.
Sobre os limites de aplicabilidade do argumento da substituição
Nas duas últimas décadas, diversos pesquisadores têm abordado um
mesmo fenômeno: a importância crescente do papel desempenhado pelos meios
de comunicação de massa como intermediários da relação entre os cidadãos e o
Estado, em detrimento dos partidos políticos. Em geral, o diagnóstico desses
autores a respeito da relação que se estabelece entre a mídia e os partidos
aponta para uma dinâmica de substituição, ou seja, os partidos estariam sendo
substituídos, em muitas de suas prerrogativas clássicas, pelos meios de
70
Marcia Ribeiro Dias
comunicação. Assim, as tarefas de informação política, formação da opinião
pública, controle e fiscalização dos agentes políticos, entre outras, estariam sendo
incorporadas pela imprensa escrita e televisiva, especialmente em sua dimensão
jornalística. Partidos políticos, por sua vez, estariam em franco declínio como
intermediários na relação entre sociedade e Estado, como fiadores da ação de
representantes ou difusores de informação e formadores de opinião.
Um exemplo particularmente influente de generalização do argumento da
substituição, ao menos entre os pesquisadores brasileiros, é o estudo de Bernard
Manin (1995) sobre as metamorfoses do governo representativo, especialmente o
diagnóstico de transformação da “Democracia de Partidos” em uma “Democracia
de Público”.
O trabalho de Manin se esmera em construir uma tipologia das formas do
governo representativo. A fim de proceder a essa tarefa, o autor trata de
identificar quais seriam os princípios dessa forma de governo, percorrendo toda
uma literatura, produzida a partir do final do século XVIII, que se constituiria na
base ideológica de suas instituições. 2 Dessa literatura, Manin extrai quatro
princípios do governo representativo, ou seja, quatro condições para que um
governo seja considerado representativo: (1) a escolha dos governantes pelos
governados; (2) a independência parcial dos representantes com relação à
vontade dos representados; (3) a liberdade de opinião pública, seja ela favorável
ou contrária à condução do governo pelos representantes; (4) a utilização do
debate como mecanismo para a tomada de decisão coletiva.
A partir de então, Manin constrói um modelo no qual identifica três tipos de
governo representativo: o governo parlamentar, a democracia de partidos e a
democracia de público. Cada uma dessas modalidades do governo representativo
obedece a uma série de condições históricas, a partir de uma perspectiva
evolutiva do mundo ocidental, sendo que o aparecimento de cada nova
modalidade implica necessariamente no fim da anterior. Em outras palavras,
segundo Manin, assim como a “democracia de partidos” substituiu o “governo
parlamentar”, a “democracia de público” substituiu a “democracia de partidos”.
Manin observa que o fim da era do governo dos “notáveis” foi marcado pela
2
Os principais autores contemplados no estudo de Manin são: Edmund Burke, John Stuart Mill, os
Federalistas, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, e Emmanuel Siéyès.
Propaganda Política, Partidos e Eleições
71
crescente importância dos partidos na arena representativa. De modo
equivalente, notou que o fim da era dos partidos, caracterizado pelo declínio na
importância
dessas
instituições
como
intermediárias
da
relação
entre
representantes e representados, foi acompanhado pela ascensão da importância
dos meios de comunicação no exercício da mesma tarefa.
O “argumento da substituição”, discutido neste trabalho, apresenta-se no
texto de Manin em sua forma pura. O trabalho de Manin, sem dúvida alguma,
consiste em um esforço téorico-analítico importante e é capaz de explicar a
trajetória do formato do governo representativo em algumas realidades históricas
específicas; é o caso de boa parte dos países da Europa Ocidental e América do
Norte. Além disso, fornece uma agenda de discussões teóricas passíveis de
serem incorporadas, ao menos em parte, à investigação de outras realidades. O
que aqui se contesta é a aplicação integral do modelo para explicar as atuais
dinâmicas política e institucional brasileiras, como é o caso de Azevedo (2002) e
Veiga (2002), cujos trabalhos serão comentados a seguir.
Em sua análise da cobertura da imprensa paulistana sobre a campanha
eleitoral no município de São Paulo, Azevedo (2002) parte da premissa de que a
conjuntura brasileira atual pode ser descrita como uma “democracia de público”.
O autor menciona a debilidade histórica dos partidos políticos brasileiros
com muita propriedade, mas não explora a evidência de que essa debilidade não
é um fato novo e que, assim, não pode ser explicado pela centralidade da mídia
na dinâmica política atual. Além disso, ao analisar a propaganda eleitoral na
televisão, afirma que seu formato não favorece a imagem partidária e sim a
personalização da competição eleitoral, desconsiderando o fato de que a
legislação brasileira confere aos partidos políticos o espaço na TV e que estes,
portanto, têm autonomia para definir suas estratégias comunicativas: se
prioritariamente individualistas ou coletivistas. O tempo na TV pertence aos
partidos que, livres da “Lei Falcão”, podem conferir aos seus programas o formato
que sua criatividade e recursos financeiros permitirem. Não existe um formato
pré-estabelecido para a propaganda política no HGPE e os recursos audiovisuais
não se limitam a aproximar candidato e eleitor através de imagens “em close”: tais
recursos podem ser utilizados na propagação de ideias e programas de governo.
As campanhas presidenciais de 2002 e 2006 foram exemplares nesse sentido: os
72
Marcia Ribeiro Dias
três candidatos mais bem-sucedidos eleitoralmente, Lula (2002 e 2006), Serra
(2002) e Alckmin (2006), exploraram prioritariamente o conteúdo programático em
suas campanhas na televisão. Além do fato de que as campanhas para cargos
legislativos, distribuídos na proporção dos votos obtidos pelos partidos,
apresentam uma série de estratégias que nada tem a ver com personalismo
político, como o investimento nos votos de legenda e a vinculação entre as ideias
do candidato “proporcional” às propostas de governo do candidato “majoritário”.
No segundo caso, no qual se analisa o papel dos partidos na atual
democracia brasileira, Luciana Veiga também associa o conceito de “democracia
de público” à nossa conjuntura política recente, afirmando que nos encontramos
em um momento de transição entre a “democracia de partidos” e a “democracia
de público”, razão pela qual “os partidos ainda influenciam as decisões políticas”.
Segundo a autora, no período anterior à década de 80, ou seja, durante a ditadura
militar, vivíamos no Brasil uma democracia de partidos, sem apresentar
evidências nesse sentido. As circunstâncias políticas do período militar contrariam
os fundamentos de uma democracia partidária, acima de tudo, pelo fato de que
não era uma democracia. Mesmo se considerando a sobrevivência de um sistema
representativo na manutenção de eleições para cargos legislativos, o sistema
bipartidário compulsório, no qual a livre organização de interesses através de
partidos políticos com o fim de influenciar as decisões do Estado estava vetada ou
comprimida em uma lógica dual, é o inverso do que caracteriza uma democracia
de partidos. Finalmente, do ponto de vista do comportamento eleitoral, verificar
que alguns eleitores votavam fielmente no MDB e transmitiam essa preferência a
seus descendentes, não nos parece o bastante para configurar uma democracia
de partidos. Seria preciso demonstrar que outros eleitores se identificavam
igualmente com a ARENA, e mesmo assim seria uma associação precária dada a
imobilidade do sistema partidário, representada pela admissão exclusiva de dois
partidos.
Por outro lado, Veiga apresenta dados significativos da influência dos
partidos na conjuntura eleitoral recente e em nenhum momento revela que tal
influência encontre-se em declínio. Nesse sentido, não há evidência em seu
trabalho que aponte para um diagnóstico de transição para uma “democracia de
público”, na qual os partidos possam ser descartados.
Propaganda Política, Partidos e Eleições
73
O que pretendo com este capítulo é considerar as condições específicas
dos sistemas partidário e eleitoral brasileiros e de seu modelo de propaganda
política na televisão. A hipótese é de que é possível encontrar resultados
diferentes dos encontrados por Manin, na medida em que consideramos
circunstâncias históricas e institucionais distintas.
Considerações acerca dos sistemas partidário e eleitoral brasileiros
O sistema eleitoral brasileiro conjuga duas lógicas operacionais distintas: a
majoritária, que se aplica à disputa por cargos executivos (presidente,
governadores, prefeitos) e ao Senado; e a proporcional, que se aplica à disputa
aos cargos legislativos (deputados federais, deputados estaduais e vereadores).
Abordaremos as características gerais de cada uma dessas lógicas a fim de
discutir suas implicações sobre o sistema partidário brasileiro.
O sistema eleitoral majoritário funciona em dois turnos, com exceção para
as cidades com menos de 200 mil eleitores, operando, assim, em turno único. O
sistema de dois turnos tem como objetivo possibilitar a formação de uma maioria
absoluta (50% + 1) de preferências eleitorais em torno do candidato vitorioso.
Esse sistema tem como virtude maximizar a representação política, na medida em
que responde às preferências de mais da metade da população votante. Em um
sistema eleitoral de turno único, especialmente quando consideramos um sistema
multipartidário como o brasileiro, em que a maioria relativa (a maior das minorias)
garante a vitória a um dos candidatos, a representação política pode ficar
deficitária, pois um candidato vitorioso com 35% dos votos não corresponde à
vontade de 65% dos eleitores.
Maurice Duverger (1970) já demonstrou que um sistema majoritário de dois
turnos estimula a multiplicação do número de legendas partidárias, na medida em
que amplia as chances de vitória de uma candidatura inicialmente minoritária,
mas que em um segundo turno pode agregar as preferências destinadas a
candidaturas derrotadas no primeiro turno das eleições. Um sistema de dois
turnos, portanto, favorece a formação de alianças entre partidos, ampliando o
pluralismo de ideias e a representatividade dos eleitos.
74
Marcia Ribeiro Dias
Teoricamente, são dadas aos eleitores duas chances de manifestar suas
preferências: no primeiro turno, o eleitor manifestaria a sua preferência por um
determinado candidato; no segundo turno, escolheria entre os dois mais votados
aquele que mais se aproxima das suas preferências. O que se tem visto no Brasil
nos últimos anos, entretanto, é uma distorção dessa lógica através do chamado
“voto útil”. Muitos eleitores manifestam ter abdicado de sua preferência inicial
para, estrategicamente, impedir a ida de um candidato, nefasto aos seus olhos,
para o segundo turno ou para enviar outro candidato que tenha mais chances de
vencer o adversário majoritário indesejável. Isso se deve, fundamentalmente, ao
crescimento dos institutos de opinião pública e da multiplicação de pesquisas de
intenção de voto, que permitem ao eleitor conhecer as tendências gerais do voto
antes das eleições.
Quem se beneficia com essa lógica? As maiores legendas partidárias
brasileiras, que nas duas últimas eleições para governador e presidente da
república controlaram a maioria das disputas de segundo turno, concentrando o
sistema partidário brasileiro. Desde 1994, PT e PSDB vêm disputando os
primeiros lugares na corrida presidencial. Em 1998, 13 estados levaram a eleição
para governador ao segundo turno; desses casos, apenas no Amapá verificou-se
a presença de um partido pequeno na disputa, o PSB. Em 2002, as grandes
legendas controlaram 12 das 14 disputas programadas para o segundo turno nos
estados. Em 2006, das 10 disputas para governos estaduais ocorridas em
segundo turno, apenas uma contou com a participação de um partido pequeno, o
PPS no Rio de Janeiro.
Importa ressaltar a vitória de pequenos partidos ainda no primeiro turno das
eleições estaduais. Em 1998, o PSB venceu as eleições em Alagoas. Em 2002, o
PPS venceu no Amazonas e no Mato Grosso; o PSB venceu em Alagoas, Espírito
Santo e Rio de Janeiro. Em 2006, o PPS venceu duas disputas eleitorais ainda no
primeiro turno: Mato Grosso e Rondônia. Finalmente, o PSB e o PPS foram duas
das legendas que mais cresceram no período, estando na legislatura de 2006
entre as legendas com maiores bancadas na Câmara Federal. O que isso
significa? Que considerando as características específicas de um determinado
sistema político podemos encontrar resultados contrários aos previstos em uma
teoria abrangente, como a de Duverger. No caso brasileiro, o sistema eleitoral de
Propaganda Política, Partidos e Eleições
75
dois turnos tem concentrado o sistema partidário através do cálculo estratégico do
“voto útil”, favorecido pela valorização dos resultados de pesquisas de intenção de
voto nesse país.
O sistema majoritário que vigora para a constituição do Senado brasileiro
opera por maioria relativa, ou seja, não há segundo turno para o preenchimento
desses cargos. O mandato dos senadores é de oito anos, mas as eleições
ocorrem a cada quatro anos: um terço dos cargos é disputado em um ano e dois
terços nas eleições seguintes. Quando há duas vagas em disputa, o eleitor pode
escolher dois nomes para ocuparem essas vagas, estando vetada a possibilidade
de voto cumulativo, ou seja, de o eleitor votar duas vezes em um mesmo
candidato. O voto cumulativo tem a propriedade de mensurar a intensidade das
preferências eleitorais: um eleitor que prefere intensamente um candidato pode
destinar a ele seus dois votos, enquanto outro eleitor não tão intenso,
provavelmente, irá destinar seus votos a candidatos diferentes. O voto cumulativo
pode ser um instrumento para pequenos partidos que detenham poucos, mas
sinceros eleitores, podendo lançar apenas um candidato e nele concentrar seus
votos. Portanto, as eleições para o Senado brasileiro conjugam dois mecanismos
desfavoráveis à apresentação de candidatos pelos pequenos partidos: o sistema
de turno único e a impossibilidade de voto cumulativo.
Finalmente,
os
cargos
legislativos
são
ocupados
pela
regra
da
proporcionalidade, o que em linhas gerais significa dizer que cada partido ou
coligação obterá um número de cadeiras proporcional ao seu número de votos.
Isso, em linhas muito gerais, porque como bem apontou Jairo Nicolau, o sistema
representativo brasileiro apresenta distorções bastante significativas, como a
ocorrida nas eleições de 1994 em que PFL e PT obtiveram o mesmo percentual
de votos, mas o primeiro angariou 40 cadeiras a mais do que o segundo. 3
O resultado da eleição de 2002 trouxe um fato estarrecedor para grande
parte da opinião pública, motivação para o artigo de Nicolau: a eleição de cinco
deputados do PRONA de São Paulo que obtiveram votações ínfimas se
comparadas a de muitos candidatos não eleitos no mesmo estado. Por que isso
aconteceu? Em virtude de uma das poucas regras do sistema eleitoral brasileiro
que fortalece o sistema partidário e inibe o personalismo político. Calculado o
3
Artigo publicado no Jornal O Globo, de 11 de outubro de 2002.
76
Marcia Ribeiro Dias
quociente eleitoral, número de votos necessários para a obtenção de uma cadeira
no legislativo, os votos de cada partido ou coligação de partidos são somados a
fim de se calcular o número de cadeiras obtidas por cada um deles. Essas
cadeiras serão destinadas aos candidatos mais votados individualmente no
partido ou coligação, voltando a favorecer a lógica personalista. Enéas Carneiro
angariou sozinho mais de 1,6 milhões de votos do eleitorado paulistano,
quantidade suficiente para elegê-lo e a mais cinco candidatos. Em tese, não
houve qualquer distorção no sistema representativo nesse caso: os eleitores que
deram seus votos a Enéas e elegeram “ilustres desconhecidos” não teriam
perdido seus votos se imperasse a lógica partidária, ou seja, se todos os eleitos
agissem de forma concertada, seguindo a orientação do líder do partido e da
bancada: o próprio Enéas Carneiro.
É razoável pensar que, dados os distintos mecanismos eleitorais, as
estratégias comunicativas dos partidos políticos nos programas gratuitos na
televisão apresentem variações importantes entre as faixas destinadas a cada
cargo em disputa. Na próxima seção serão avaliadas as características do modelo
de propaganda política na televisão e suas implicações para a construção de um
modelo analítico da construção da imagem partidária na dinâmica eleitoral
brasileira.
A propaganda política na televisão brasileira
No Brasil, a concessão de horário gratuito para a propaganda política na
televisão teve sua origem ainda no início da década de 1960. Naquela época seu
impacto eleitoral não foi significativo, uma vez que a televisão ainda não se
encontrava disseminada na sociedade brasileira. A partir da instauração do
regime militar em 1964, teve início o processo de consolidação de uma
infraestrutura nacional de telecomunicações; entretanto, tal processo se deu em
um contexto de desvalorização das eleições na vida política nacional. Foi
somente a partir de 1985, com a redemocratização, que a propaganda política na
televisão passou a ser politicamente relevante.
Em linhas gerais, um conjunto de regras para a propaganda eleitoral na
televisão tem se mantido constante: o tempo para a propaganda política é
Propaganda Política, Partidos e Eleições
77
concedido gratuitamente aos partidos políticos, em blocos situados à parte da
programação normal (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral ou HGPE), em
quantidades proporcionais às dimensões de suas bancadas parlamentares
federal, estadual e municipal. Desde 1996, um novo formato foi acrescentado à
propaganda política na televisão (spots): inserções curtas, de 30 ou 60 segundos,
veiculadas nos intervalos comerciais ao longo da programação normal.
O modelo brasileiro de propaganda política na televisão combina a
gratuidade do acesso à televisão com uma considerável eficácia comunicativa,
favorecida pela ampla liberdade no uso dos recursos comunicativos da
comunicação que, com algumas exceções 4, tem sido contemplada pelas diversas
legislações eleitorais desde 1985. Tal eficácia comunicativa, entretanto, irá
depender da capacidade dos partidos de lidar com os desafios específicos
apresentados pelo HGPE e pelos spots políticos.
O primeiro desafio diz respeito à inserção da propaganda política no fluxo
da programação televisiva. Diferentemente dos spots de 30 e 60 segundos, que
se inserem com naturalidade nos intervalos comerciais da programação normal, o
HGPE é exibido em um bloco à parte, podendo ser percebido como uma
interrupção da programação normal; percepção esta que é reforçada pelo
discurso de alguns canais de televisão que a definem para o público como
“propaganda obrigatória” 5. O que está em questão, nesse caso, é o fato de que a
propaganda política na televisão deve assumir o formato de um programa
televisivo, incorporando a estrutura comunicativa que lhe é própria. Cabe ao
agente político e a sua assessoria de comunicação encontrar soluções criativas
para, sem evidenciar uma ruptura em relação a um fluxo de programação, já
legitimado pelo hábito, transformar o telespectador em eleitor, sem destituí-lo de
sua condição primeira. Além disso, o fato de os programas do HGPE agregarem
4
o
A Lei n 8.713, de 30 de setembro de 1993, proibiu o uso de trucagens, montagens, animações,
imagens externas e a presença de outras pessoas que não os próprios candidatos e seus vices
nos programas. A justificativa oficial para tais restrições foi que elas possibilitariam uma melhora
no nível dos programas do HGPE. Na prática, elas implicaram em uma marginalização do HGPE
na campanha eleitoral, o que favoreceu a candidatura de Fernando Henrique Cardoso,
apresentado pela imprensa como o grande responsável pelo sucesso do Plano Real. (cf.
Albuquerque; 1995 e Miguel, 1997).
5
Caracterizar a propaganda eleitoral na televisão como obrigatória é uma estratégia dos canais
para associá-la a um componente autoritário, tentando deslegitimá-la junto à opinião pública. Fato
é que a propaganda eleitoral é obrigatória para os canais de televisão aberta e não ao
telespectador, que poderá ocupar aquele tempo com outra atividade qualquer.
78
Marcia Ribeiro Dias
as alternativas eleitorais disponíveis em um bloco contínuo obriga cada uma delas
a lidar constantemente com a dimensão competitiva e a administrar problemas
relativos ao excesso de informação.
O segundo desafio que deve ser enfrentado na elaboração da propaganda
eleitoral refere-se ao fato de que seus quadros temporais são pré-definidos, assim
como a ordem de apresentação é determinada pela Justiça Eleitoral. Não se pode
esquecer ainda que a propaganda eleitoral deve ser dinâmica, observando e
incorporando pautas propostas por adversários ou pela própria mídia, e evoluir
em conformidade com a proximidade do pleito eleitoral. Nesse sentido, os
programas do HGPE desenvolveram uma gramática própria, baseada na
articulação de diversas mensagens em um mesmo programa. Geralmente, as
mensagens que compõem os programas do HGPE cumprem três funções
básicas,
denominadas
através
das
seguintes
categorias:
campanha,
metacampanha e auxiliar. As mensagens de campanha têm como objetivo
debater temas e apresentar a si próprio e aos candidatos positivamente e os
adversários negativamente. As mensagens de metacampanha têm como objetivo
fornecer relatos sobre a campanha eleitoral, bem como promover o engajamento
dos telespectadores no esforço de campanha. As mensagens auxiliares, por sua
vez, se destinam a estruturar a propaganda de partidos e candidatos como um
programa de televisão, bem como ajudam a fornecer uma unidade estilística a
esses programas (Albuquerque, 1999).
Para além desses desafios genéricos, os partidos políticos devem lidar
ainda com outros, relativos à natureza específica do pleito e dos cargos em
disputa. No primeiro caso, as condições de exposição dos candidatos são
melhores no caso de eleições “solteiras”, quando apenas um cargo está
disponível à concorrência entre candidatos. Entretanto, no Brasil, guardadas
algumas exceções pontuais 6, as eleições são “casadas”, ou seja, os cargos
executivos e legislativos correspondentes são disputados simultaneamente. O
problema apresenta maior complexidade no caso de eleições gerais, nas quais
têm lugar simultaneamente disputas para cargos executivos e legislativos em
âmbito nacional e estadual. Já no segundo turno das eleições ocorre uma
melhora significativa das condições de visibilidade dos candidatos, não apenas
6
Constituem-se exceções as eleições para prefeito em 1985 e para presidente em 1989.
Propaganda Política, Partidos e Eleições
79
porque a disputa se resume aos cargos executivos, mas também porque o
número de candidatos se vê reduzido a dois por cargo.
No segundo caso, as condições de exposição dos candidatos são muito
superiores nas eleições majoritárias, especialmente para cargos executivos, do
que nas proporcionais, uma vez que, nestas, não apenas o número de candidatos
é muito maior, mas cada candidato concorre com todos os demais, inclusive com
os do próprio partido.
Diante das questões acima colocadas, uma análise das estratégias dos
partidos políticos na construção de suas imagens no HGPE não pode
desconsiderá-las. É o que se pretende na seção conclusiva deste trabalho.
Estratégias dos partidos no uso da televisão
A fim de maximizar suas chances eleitorais e revelar suas posições para a
sociedade, os partidos políticos podem recorrer a variadas estratégias eleitorais,
com diferentes consequências no que concerne à propaganda política na
televisão. Uma das decisões relevantes, nesse sentido, diz respeito às coligações
partidárias. São várias as razões que podem levar um partido a ingressar em uma
coligação partidária: articular acordos que garantam a governabilidade, em caso
de vitória; formar uma frente ampla a fim de enfrentar adversários poderosos;
ultrapassar o quociente eleitoral e eleger representantes, no caso de partidos
pequenos; ou vincular-se à imagem de um candidato popular. Entretanto, a
principal razão, que importa aos objetivos deste capítulo, relaciona-se ao fato de
que a conquista de tempo para a propaganda política na televisão tem se
constituído em fator de estímulo às coligações partidárias.
A decisão de coligar-se, no entanto, deve levar em conta alguns problemas
a ela associados. Em primeiro lugar, elas podem se constituir como um fator de
diluição da identidade dos partidos coligados, seja porque eles apresentem perfis
ideológicos muito distintos, seja porque partidos minoritários tendem a ter a sua
identidade partidária apagada em benefício da identidade do partido líder da
coligação, quando há razoável afinidade ideológica.
Ainda assim, os benefícios advindos da coligação podem ser capazes de
superar os referidos problemas. Uma chapa majoritária que coligue dois ou três
80
Marcia Ribeiro Dias
grandes partidos, com diferenças ideológicas significativas, não necessariamente
assume a identidade do partido líder. A aliança PSDB – PFL foi exemplar nesse
sentido. Inicialmente os dois partidos posicionavam-se em campos opostos no
eixo ideológico, mas o conteúdo programático da aliança tendeu claramente para
a centro-direita, posição ocupada pelo PFL. Os benefícios deste último, em
termos de crescimento de bancada parlamentar, foram evidentes. Nesse caso
quem perdeu em identidade foi o PSDB; é possível dizer que esse partido é
identificado muito mais com a estabilidade econômica gerada pelo Plano Real,
pelas políticas implementadas durante a era FHC, do que com um conteúdo
programático específico ou com o tipo de interesses que representa. 7 Em
contrapartida, o PSDB manteve-se no poder central por oito anos consecutivos e
expandiu sua bancada parlamentar nesse período.
No caso dos pequenos partidos, algumas estratégias de preservação de
uma identidade própria frente ao partido líder da coligação podem ser adotadas.
O PC do B é um partido que pode ser citado como bem-sucedido na tarefa de
preservação da identidade e sobrevivência política. Há muitos anos esse partido
vem adotando estratégias de coligação nacional e regional, lançando um pequeno
número de candidatos e sempre os mesmos, ao ponto da imagem desses
candidatos se fundirem à imagem do próprio partido. Esse tipo de estratégia tem
sido eficaz na captação de votos, pois o PC do B, geralmente, concentra sua
votação em poucos candidatos com ampla visibilidade, colocando-os entre os
mais votados da coligação e, portanto, aptos a adquirirem cadeiras legislativas.
Podemos comparar esse caso ao do antigo PCB que primou, em suas
estratégias, em apresentar um amplo número de candidatos e não obteve
sucesso eleitoral. O PCB perdeu em identidade, mudou sua sigla para PPS e hoje
pouco resguarda da imagem do “partido mais antigo do Brasil”, slogan de antigas
campanhas.
Sendo assim, do ponto de vista da propaganda política na televisão, a
determinação do número de candidatos que comporão a chapa dos partidos para
as eleições proporcionais é uma das questões mais relevantes. Essa questão
assume uma relevância ainda maior no caso das coligações partidárias, uma vez
7
Ver Veiga (2002), sobre a dificuldade do eleitor em definir uma identidade para o PSDB e a
clareza com relação ao PFL.
Propaganda Política, Partidos e Eleições
81
que nesse caso, à competição intrapartidária soma-se a competição entre os
partidos que compõem a coligação. Desse modo, a atomização dos votos entre
os candidatos de um mesmo partido pode levar a que nenhum deles seja eleito,
em benefício de outros partidos que compõem a coligação e que utilizem
estratégias de concentração em um pequeno número de candidatos.
As
eleições
constituem,
nas
sociedades
democráticas,
momentos
privilegiados da disputa interpartidária: nelas, os partidos se confrontam tendo
como objetivo a conquista do eleitorado. As eleições, no entanto, são momentos
cruciais também do ponto de vista da dimensão intrapartidária. Tão importante
para os partidos quanto conquistar terreno é assegurar a manutenção da unidade
partidária. As eleições colocam em questão também o problema do equilíbrio de
poder entre as correntes que constituem cada partido político.
Independentemente do resultado das urnas, o modo de atuação dos
partidos políticos, durante o processo eleitoral, pode ter consequências
importantes do ponto de vista da política intrapartidária. Escolhidos os candidatos,
pode ocorrer que alguns deles sejam considerados candidatos preferenciais do
partido e sejam privilegiados na alocação dos seus recursos. O acesso à
propaganda política na televisão constitui um parâmetro privilegiado para a
avaliação de tal escolha já que os candidatos não podem obter acesso à
propaganda política na televisão senão através dos partidos políticos. As escolhas
dos partidos se tornam ainda mais visíveis quando se considera a quantidade de
tempo disponibilizada para cada candidato, os apoios políticos e os recursos
comunicativos a eles destinados.
Os modos de alocação dos recursos do partido, especialmente o tempo
para a propaganda política na televisão, e seus impactos sobre a vida política
intrapartidária podem variar significativamente entre os partidos. É possível
afirmar que os diferentes tipos de arranjos institucionais intrapartidários (Lacerda,
2002) constituem um elemento importante a ser considerado na explicação do
fenômeno.
Como foi dito acima, as eleições no Brasil são “casadas”, ou seja, os
cargos
Executivos
e
Legislativos
correspondentes
são
disputados
simultaneamente: Presidente da República e Congresso Nacional; Governadores
e Assembleias Legislativas; Prefeitos e Câmaras Municipais. As eleições
82
Marcia Ribeiro Dias
nacionais ocorrem simultaneamente às eleições estaduais, o que determina uma
mescla de estratégias nacionais e regionais que se influenciam mutuamente. As
eleições municipais têm uma natureza estritamente local, sendo que as
estratégias comunicativas regulam-se prioritariamente por atributos específicos de
cada localidade.
Nesse contexto, um primeiro aspeto deve ser ressaltado: o grau de fatores
nacionais e regionais que incidirão sobre a propaganda eleitoral para cada cargo
em disputa. Na faixa destinada ao cargo de Presidente da República, os fatores
utilizados pelos partidos em disputa terão caráter fundamentalmente nacional,
estando contemplados fatores regionais apenas na medida em que o candidato
ou partido menciona suas experiências governativas como exemplares do que
será feito em âmbito nacional. No outro extremo, localiza-se a faixa destinada ao
cargo de deputado estadual, sobre a qual incidirão quase que exclusivamente
fatores propriamente regionais. Nas faixas destinadas aos cargos de deputados
federais e senadores são encontrados os maiores índices de mescla entre fatores
nacionais e regionais: os fatores nacionais se justificam pela centralidade das
atribuições associadas a esses cargos; os fatores regionais pela representação
de interesses regionais no nível federal. A faixa destinada ao cargo de governador
é a que mais apresentará variação na utilização de fatores nacionais e regionais
de estado para estado; tudo dependerá da convergência ou divergência entre os
partidos que disputam o pleito regional e aqueles que disputam o pleito nacional.
Dificilmente uma campanha para governador deixará de mencionar em seus
programas o candidato nacional do mesmo partido, buscando afeiçoar suas
propostas em âmbito regional ao projeto nacional. Mas, quando o partido em
disputa pelo cargo de governador não possui candidato próprio para presidente,
mesmo que esteja na base de apoio de um candidato de outro partido, a
identificação entre as propostas nacional e regional será francamente atenuada.
O segundo aspecto que deve ser ressaltado em uma análise das
estratégias de propaganda dos partidos na televisão é o tipo de cargo em disputa
e a regra eleitoral a ele associada. A primeira diferença está entre os cargos
Executivos e Legislativos. A natureza do poder da Presidência da República e dos
Governos estaduais é individual, ou seja, as prerrogativas institucionais e a
responsabilidade política recaem exclusivamente sobre os ocupantes destes
Propaganda Política, Partidos e Eleições
83
cargos. São eles que escolhem ministros e secretários para auxiliá-los na tarefa
governativa, podendo substituí-los a qualquer descontentamento com seu
desempenho. A natureza do poder legislativo, ao contrário, é coletiva. A tomada
de decisões, nesse caso, depende da construção de consensos majoritários em
torno de determinadas propostas; sendo assim, a responsabilidade política pelas
decisões tomadas não pode ser atribuída a nenhum de seus membros
individualmente. Da mesma forma, poucos são os benefícios privados, em termos
de capitalização de votos, que podem ser extraídos pelos legisladores das
decisões que foram tomadas coletivamente. Nesse sentido, teoricamente, as
estratégias discursivas no HGPE para cargos Executivos seriam mais permeáveis
à valorização de atributos individuais do candidato, enquanto que para cargos
Legislativos primariam pelas “vocações” partidárias.
Quanto ao tipo de regra eleitoral atribuída a cada cargo em disputa, a
principal diferença está no fato de que em candidaturas majoritárias cada partido
apresenta apenas um candidato, enquanto que em candidaturas proporcionais o
partido ou coligação poderá apresentar tantos candidatos quanto forem as vagas
disponíveis. No caso de haver duas vagas em concorrência pela regra majoritária,
como ocorre periodicamente para o Senado, o partido poderá apresentar até dois
candidatos. No caso da regra majoritária, que se configura em um “jogo de soma
zero”, as chances de vitória de cada partido são reduzidas, inibindo, muitas vezes,
a apresentação de candidatos próprios por partidos pequenos. Isso quer dizer que
um significativo número de partidos optará por apresentar candidatos apenas para
os cargos proporcionais, podendo ou não apoiar o candidato majoritário de outro
partido. Nas candidaturas proporcionais, dependendo do tamanho do partido, das
alianças que estabelece, do grau de coesão ou dispersão intrapartidária, o partido
montará sua estratégia de campanha, seja na seleção do número de candidatos,
seja na construção de seu discurso no HGPE.
Finalmente, um último aspecto deve ser ressaltado na construção de uma
metodologia de análise para as campanhas eleitorais na televisão: as estratégias
dos partidos podem variar significativamente do primeiro para o segundo turno
das eleições. A modificação de estratégia irá ocorrer em função da redução do
número de candidatos em disputa para o mesmo cargo, fortalecendo, muitas
vezes, a identidade política de cada candidatura.
84
Marcia Ribeiro Dias
Vimos até aqui que o uso estratégico da televisão para a propaganda
política dos partidos é um problema complexo, que envolve um sem-número de
variáveis relativas às estratégias dos partidos políticos, aos problemas
decorrentes das características particulares do sistema eleitoral brasileiro e aos
desafios específicos que se apresentam no uso da televisão para a transmissão
de mensagens políticas. A tarefa que se apresenta à análise é identificar as
principais opções estratégicas que se apresentam aos partidos no tocante ao uso
da televisão, estabelecer parâmetros consistentes que permitam identificá-las e
relacioná-las de modo efetivo a essas variáveis.
As discussões empreendidas ao longo deste texto certamente não esgotam
a problemática do uso partidário da propaganda eleitoral na televisão. Colocaramse algumas questões como pontos de partida para a construção de uma
metodologia de análise adequada ao problema brasileiro. Menos do que delimitar
conclusões a respeito da temática referida, optou-se por discutir os critérios
analíticos que não podem ser descartados: uma análise da propaganda política
na televisão brasileira terá de se confrontar, necessariamente, com os desafios
impostos pelos seus sistemas partidário e eleitoral e, ainda, como o próprio
modelo de propaganda determinado pela legislação brasileira.
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Propaganda Política, Partidos e Eleições
87
Política e integração na América do Sul
Maria Izabel Mallmann ∗
Introdução
Até recentemente, mais precisamente até a última década do século XX, a
ideia de América do Sul como unidade identitária não existia. Essa região era
definida meramente em termos geográficos. A identidade regional era evocada a
partir da suposta latino-americanidade que uniria em torno de um destino comum
todos os países ao sul do Rio Grande com raízes históricas e culturais
semelhantes. A construção do discurso identitário sul-americano coincidiu, não
gratuitamente, com os desafios postos aos países da região, particularmente ao
Brasil, pelas transformações mundiais do pós Guerra Fria e pela globalização,
entre outros fatores.
Tratava-se, nos anos 90, de encontrar um modo de projeção internacional
que conciliasse desenvolvimento e abertura econômica, diferentemente do que
ocorrera
nas
décadas
precedentes,
quando
vigoraram
políticas
mais
protecionistas. A década de 90, pelo menos em sua primeira metade, foi marcada
pelo entusiasmo quanto às potencialidades da integração econômica e comercial.
Discutiam-se
as
novas
possíveis
clivagens
mundiais
que
não
seriam,
logicamente, de natureza política e ideológica, já que o capitalismo perdera seu
maior oponente, o socialismo soviético. Formavam-se os chamados blocos
econômicos. Nas Américas, duas novas frentes de integração surgiram: o
Mercado Comum do Sul (Mercosul) e o North Free Trade Agreement (Nafta).
O México, um dos mais importantes países latino-americanos aderiu ao
Nafta, com cujos países membro, Estados Unidos e Canadá, mantinha fluxos
comerciais relevantes. Ao Brasil, não interessava percorrer o mesmo caminho
nem eventualmente “perder” outros parceiros para arranjos de integração
semelhantes. Isso fez com que o país adotasse uma estratégia de projeção
∗
Doutora em Ciência Política pela Sorbonne, Paris III. Professora do Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Membro
do grupo de pesquisa Relações e Organizações Internacionais da PUCRS. E-mail:
[email protected]
regional mais ofensiva, buscando estabelecer e preservar seus interesses nos
países sul-americanos, formando uma espécie de anteparo para etapas futuras
de integração internacional. Em 1993, o Brasil propõe o alargamento do Mercosul
à Comunidade Andina (CAN), de forma a constituir um bloco sul-americano.
Embora essa proposta tenha sido assumida pelo Mercosul, em 1994, ela não
progrediu antes do final daquela década. Em 1998, quando se iniciavam as
negociações para a implantação da Associação de Livre Comércio das Américas
(ALCA), proposta pelos Estados Unidos alguns anos antes, foram retomadas pelo
Brasil as iniciativas para concretizar o projeto de integração sul-americana. Muito
foi realizado nesse sentido, como será visto no decorrer deste capítulo. Nos
últimos anos, não apenas as trocas comerciais, mas também projetos comuns de
infraestrutura e de exploração energética aprofundaram a interdependência entre
os países sul-americanos. Isso, contudo, não proscreveu o déficit interno de
integração social, econômica e política em cada um desses países, nem
tampouco suprimiu as desconfianças mútuas acerca das intenções de cada um,
particularmente das do Brasil em relação aos demais.
Hoje, transcorridos apenas alguns anos desde a opção sul-americanista do
Brasil e quando afloram preocupantes conflitos capazes de questionar seriamente
as relações regionais, cabe perguntar acerca da capacidade das políticas de
integração e de aprofundamento da interdependência para evitar os piores
desdobramentos de tais eventos. Neste capítulo, caracteriza-se a América do Sul,
tal como delimitada pela política externa brasileira; listam-se e classificam-se as
iniciativas de integração e os conflitos em curso, e, finalmente, recorre-se às
teorias liberais da integração regional e da interdependência para explorar a
potencialidade dos mecanismos de cooperação e de institucionalização das
relações para prevenir conflitos.
1. Projeto sul-americano
Como foi mencionado acima, a América do Sul como uma unidade de
referência,
com
algum
caráter
identitário,
começou
a
ser
esboçada
discursivamente pelo Brasil no início dos anos 90 e, em termos práticos, a partir
do final daquela década.
Política e integração na América do Sul
89
Os acontecimentos que marcam essa trajetória foram iniciados durante a
VII Cúpula do Grupo do Rio 1 realizada em Santiago, em 1993. Na ocasião,
Fernando Henrique Cardoso, então ministro do governo Itamar Franco, lançou a
ideia de uma área de livre comércio que abrangesse todos os países sulamericanos. Essa proposta, encampada pelo Mercosul no ano seguinte, passou a
materializar-se anos mais tarde em resposta a crescentes pressões externas,
especialmente advindas do processo de negociação da Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA).
O acordo quadro firmado entre Mercosul e CAN, em 1998, foi um esforço
no sentido de projetar uma via de integração atenta às características e
potencialidades sul-americanas.
A partir de 2000, inicia-se uma sequência de reuniões de presidentes sulamericanos com a intenção de constituir um espaço sul-americano que incluísse
Chile, Suriname e Guiana, além dos países membros do Mercosul e da CAN
(Almeida, 2002, p. 100). A I Cúpula de Presidentes Sul-Americanos foi realizada
naquele ano, em Brasília, por iniciativa do já então presidente do Brasil, Fernando
Henrique Cardoso, e aprovou, juntamente com o Comunicado de Brasília, um
Plano de Ação, base para a criação da Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) 2. Com isso, iniciava-se uma
ofensiva coordenada para superar problemas endêmicos regionais. Em julho de
2002, foi realizada em Guayaquil, Equador, a II Cúpula de Presidentes SulAmericanos. Na ocasião, já era possível identificar claramente, no discurso
diplomático do Brasil, o escopo da América do Sul. Ela incluía todos os países
com os quais o Brasil tem fronteiras, mais Chile e Equador (Santos, 2005, p. 102).
Com a mudança de governo no Brasil, em 2003, a via sul-americana de
integração foi confirmada e novos canais facilitadores foram criados. A III Cúpula
1
O Grupo do Rio é uma instância diplomática latino-americana que reúne atualmente Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai, Venezuela e
CARICOM (http//pt.wikipedia.og/wiki/Grupo- do-Rio). O Grupo do Rio originou-se do Grupo de
Contadora (México, Colômbia, Venezuela e Panamá) e do Grupo de Apoio a Contadora
(Argentina, Brasil, Peru e Uruguai) criados respectivamente em 1983 e 1985 para tratar da crise
centro-americana deflagrada pela situação política na Nicarágua. Sobre esse assunto, ver
MALLMANN, 2008.
2
A IIRSA é um programa de integração que busca viabilizar a comunicação e os fluxos intra e
extrarregionais. Conforme informações oficiais (www.iirsa.org), a Iniciativa contempla projetos em
infraestrutura, transportes, energia e comunicações. A Agenda de Implementação Consensuada
2005-2010 é constituída por 31 projetos de integração aprovados pelos países em 2004.
90
Maria Izabel Mallmann
que teve lugar em Cuzco, Peru, em 2004, respalda a Iniciativa para a Integração
da Infraestrutura Sul-americana (IIRSA), mas introduz modificações que tornam o
Estado mais presente na definição e no financiamento dos projetos. Naquela
ocasião, foi lançada a Comunidade de Nações Sul-americanas (CASA) com vistas
a dotar o processo de integração de um espaço político apropriado a sua
coordenação. Esse espaço teve, contudo, vida curta. Em abril de 2007, durante a
I Cúpula Energética da América Latina, realizada em Ilha Margarita, Venezuela,
foi criada a União de Nações Sul-americanas (UNASUL), em substituição a
CASA. Essa mudança reflete a correlação de forças regional de meados da desta
da década marcada pela ascensão da Venezuela de Hugo Chávez.
2. Assimetrias sul-americanas
Em termos agregados, os principais indicadores socioeconômicos da
região impressionam: os doze países 3 que constituem a América do Sul possuem
uma extensão de 17 milhões de Km2, população de mais 380 milhões de pessoas,
e PIB superior a 1 trilhão e meio de dólares. Contudo, se vistos mais de perto,
percebe-se que sua distribuição é muito assimétrica. Em conjunto, Argentina,
Brasil e Venezuela, detêm 70% da superfície total, 67% da população e 78% do
PIB. Sozinho, o Brasil detém 40% da superfície total, 50% população e 45% do
PIB. A quase totalidade dos países sul-americanos é agroexportadora, com
baixos índices de industrialização e diversificação econômica. De todos, o Brasil é
o único em que os manufaturados superam pouco mais de 50% do total das
exportações. Nos países andinos, em cujas exportações pesam significativamente
os bens energéticos e os minérios, o percentual de bens primários chega a atingir
entre 80 e 90% das exportações. Essas assimetrias são, em grande medida,
responsáveis pelas dificuldades interpostas ao processo de integração regional.
Assimetrias de recursos de poder constituem, por si mesmas, grandes
obstáculos à integração na medida em que interpõem aos típicos e complexos
processos de alienação de soberania, problemas adicionais relativos a desigual
geração e distribuição de benefícios. Cabe lembrar que acentuadas assimetrias
3
Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai
e Venezuela.
Política e integração na América do Sul
91
potencializam
as
já
esperadas
desconfianças
a
respeito
do
uso
que
eventualmente possa ser feito dos diferenciais de poder. A preocupação com a
maximização do poder de alguns pode inviabilizar processos que suponham
ampla distribuição de benefícios. No caso da América do Sul, a posição
privilegiada do Brasil em praticamente todas as rubricas de poder, leva a que
seus ganhos relativos se afigurem como desproporcionais e ameaçadores ao
equilíbrio regional. Para o progresso da integração, essa situação recomenda que
o Brasil exerça uma liderança branda, como, aliás, vem fazendo, contribuindo
para minimizar as disparidades mesmo que isso implique em sacrifício de
posições em termos absolutos. Além disso, seria desejável que instâncias
supranacionais fossem criadas de modo a diluir o peso das partes. Contudo,
antes disso, seria preciso vencer o sentimento soberanista que permeia as elites
nacionais de modo a que se formasse algum consenso em torno da ideia regional.
3. Situação política sul-americana
Como os demais países da América Latina, também os sul-americanos
apresentam um quadro político apenas recentemente estabilizado, pelo menos do
ponto de vista procedimental. Com muitas limitações no que diz respeito a
qualquer ideal de democracia, os países sul-americanos ingressaram na onda de
democratização iniciada nos anos 70 na Europa com as transições em Portugal,
Espanha e Grécia. Primeiro foi o caso do Equador com a eleição de Jaime Rodóz
em 1979; no ano seguinte, Jaime Balaúnde Terry foi eleito no Peru; em 1982,
Hernán Silez Suazo foi eleito na Bolívia; em 1983, após a Guerra das Malvinas,
Raúl Alfonsín foi eleito na Argentina; em 1985, Brasil e Uruguai elegeram
respectivamente José Sarney e Julio Maria Sanguinetti; em 1989, Patrício Aylwin
foi eleito no Chile e, no mesmo ano, Andrés Rodrigues chega ao poder no
Paraguai mediante um golpe de Estado. Isso não foi pouco tendo em vista um
passado regional dominado por regimes de exceção (Dabène, 2003, p. 208,
Coutinho, 2008, p. 75).
Na década de 60 ocorreram, em toda América Latina, os golpes de Estado
preventivos com o intuito de evitar a propagação da experiência cubana. Na
América do Sul, tais golpes iniciaram-se na Argentina e no Peru, em 1962, e se
92
Maria Izabel Mallmann
repetiram nesses países em 1966 e 1968 respectivamente; no Brasil e na Bolívia
os golpes ocorreram em 1964. Na década subsequente, ocorreram os golpes
terroristas, assim denominados pela excepcionalidade da repressão que
exerceram em nome de uma desejada purificação política (Dabène, 2003, p. 208).
A sequência de golpes de Estado foi a seguinte: na Bolívia em 1971, no Chile e
no Uruguai em 1973, no Peru em 1975, na Argentina e no Equador em 1976. O
recorrente apelo a esse expediente, para a resolução dos impasses políticos,
valoriza sua relativa ausência nos últimos anos apesar de, conforme salienta
Coutinho, ele ainda ser aparentemente operacional a certos interesses em alguns
países, notadamente no Paraguai e na Venezuela. Esse último país curiosamente
fora, juntamente com a Colômbia, o paradigma de estabilidade política nos
períodos de exceção acima evocados. Atualmente, os dois situam-se como os
mais instáveis segundo a classificação de Coutinho (2008, p. 75). Nota-se,
contudo, que desde as transições à democracia acima arroladas e apesar dos
percalços, as instituições democráticas têm sido sistematicamente confirmadas na
América do Sul4.
4. Os conflitos sul-americanos
A relativa estabilidade política é perturbada por conflitos historicamente mal
resolvidos, oriundos, em parte, da precária integração interna das sociedades sulamericanas, mas, também, das assimetrias regionais. Isso tem vindo fortemente à
tona devido à ascensão de forças políticas até então apenas marginalmente
integradas à vida política. Em alguns países, notadamente na Venezuela, na
Bolívia, no Equador e no Paraguai, essa mudança política gerou importantes
embates internos, em alguns casos devido à maneira como ocorre essa inclusão.
Em todos os casos, vigora a via eleitoral. Porém, o teor das políticas
emancipatórias assim como a forma com que são implementadas tem gerado
conflitos. Deixada de lado a discussão acerca do perfil ideológico desses
governos (Cruz Jr., 2008), o que convém reter é que eles expressam demandas
4
Aguarda-se para 2009-2010 uma rodada de quatorze pleitos eleitorais na região.
Política e integração na América do Sul
93
historicamente
reprimidas
que,
para
serem
contempladas,
mudam
significativamente as prioridades nacionais.
Os países mais assolados por crises institucionais, conforme identificados
acima, são também os que apresentam retórica mais à esquerda (socialismo do
século XXI na Venezuela) e também, em certa medida, de acordo com Cruz Jr.,
realizam mudanças mais coerentes com o que seria uma plataforma de esquerda
(Bolívia). Além disso, esses países têm apresentado as performances externas
mais hostis, notadamente em relação ao Brasil. Da perspectiva do Brasil, essas
performances colocam em xeque compromissos assumidos e estreitamente
vinculados à estratégia de integração regional do país.
A aposta havida em torno do aprofundamento da interdependência sulamericana nas áreas de infraestrutura e energética sofre limitações face às
mudanças políticas ocorridas na região. Governos fortemente nacionalistas e
dependentes de uma retórica e de formas de ação espetaculares inauguraram,
nesta primeira década do século XXI, um período de hostilidades nas relações
regionais cujos desfechos só não são mais catastróficos devido ao equilíbrio com
que a diplomacia dos demais países, notadamente a do Brasil e a do Chile, é
conduzida.
No que concerne os interesses diretos do Brasil, os focos de tensão
emanam das performances da Bolívia, do Paraguai, do Equador e da Venezuela.
Os esforços de projeção regional da Venezuela, combinados com o perfil político
do governo Chávez, introduziram uma clivagem política na América do Sul que,
na melhor das hipóteses, incidem negativamente sobre a política de integração do
Brasil, na medida em que a questionam como sendo essencialmente
comercialista, econômica e pouco solidária. Hugo Chávez propõe a Alternativa
Bolivariana para as Américas (ALBA), cujo teor é basicamente político e de ajuda
bilateral e, em torno desse projeto, reúne os governos da Bolívia e do Equador de
forma mais direta, mas também o do Paraguai. O governo boliviano de Evo
Morales, por sua vez, busca introduzir, além de mudanças políticas que
contemplem a inclusão dos povos indígenas daquele país, a reapropriação dos
recursos naturais por parte do Estado. Essa política incidiu diretamente sobre as
atividades da Petrobrás naquele país e a forma como a orientação governamental
foi implementada, com ocupação militar das instalações da empresa brasileira e
94
Maria Izabel Mallmann
com uma retórica hostil, maculou a confiança mútua necessária às parcerias
internacionais. Da mesma forma, o mau desempenho da empreiteira brasileira
Odebrecht no Equador foi tratado de forma exageradamente hostil, assim como
as atividades da Petrobrás naquele país. O Equador ameaçou suspender os
pagamentos ao BNDES contraídos para financiamento da obra realizada pela
Odebrecht. Finalmente, o Paraguai exige a renegociação do Tratado de Assunção
que estabelece os termos da exploração dos recursos da hidrelétrica de Itaipu
contrariamente ao que defende o Brasil que se dispõe a cooperar com o
desenvolvimento do Paraguai em outras frentes como ampliação das redes de
transmissão de energia, desenvolvimento agrícola, entre outras.
Face a esses contenciosos, o Brasil tem reconhecido o direito desses
países em reaver a propriedade sobre seus recursos naturais e tem manifestado
o entendimento de que o teor agressivo e hostil dos discursos e ações atende a
necessidades políticas internas relacionadas a momentos eleitorais. Por outro
lado, o governo brasileiro tem sido irredutível quanto a seus direitos juridicamente
respaldados tanto pelo Tratado de Assunção no que se refere às demandas do
Paraguai, como pelo Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) 5 no
que diz respeito ao contencioso com o Equador acerca do empréstimo do BNDES
aquele país 6. No entanto, as consequências desses episódios ultrapassam a
dimensão binacional e pontual em torno de questões específicas. Elas incidem
sobre a credibilidade dos países envolvidos, sobre sua capacidade para cumprir
compromissos e acordos, o que compromete a confiança regional necessária à
progressão da integração.
5
O CCR é um sistema de compensação de pagamentos criado em 1982 para contornar os
problemas de liquidez de divisas na região. Os Bancos Centrais são os signatários do Convênio
que reúne 12 países da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI): Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República
Dominicana (http://www.bcb.gov.br).
6
O Equador contraiu dívida junto ao BNDES para a construção da usina hidrelétrica de San
Francisco pela empresa brasileira Odebrecht. Houve graves problemas técnicos na obra entregue,
o governo Equatoriano ameaçou suspender os pagamentos ao banco brasileiro e recorreu à
arbitragem internacional.
Política e integração na América do Sul
95
5. A dimensão socioeconômica
Muito da instabilidade política que semeia incertezas quanto ao
desempenho externo dos países sul-americanos diz respeito aos históricos
índices de desigualdade presentes em todos os países da região. Observa-se que
ao longo dos anos 90, o desemprego, as desigualdades e a violência seguiram
aumentando ininterruptamente, apesar da recuperação econômica nos primeiros
anos da década, não tendo sido possível reaver os índices do final dos anos 70
(Dabène, 2003). Dados recentes da Cepal indicam que há países na América do
Sul em que mais de 30% (Bolívia) da população vive em situação de pobreza e
até 15% em situação de indigência. Nesses quesitos, Chile (6.3% e 1.7%) e
Uruguai (6.0% e 1.0%) são os que apresentam menores índices, Bolívia e
Paraguai (29.5% e 13.1%) são os casos mais preocupantes. O percentual de
pessoas cujo consumo energético alimentar situa-se abaixo dos níveis
internacionalmente aceitos é particularmente elevado na Bolívia (23%), Venezuela
(18%), Colômbia (13%), Paraguai (15%) e Peru (12%). Da mesma forma, o
analfabetismo urbano é muito elevado em todos os países, apresentando índices
medianamente aceitáveis apenas na Argentina (1.4%) e no Chile (2.8%).
Segundo a Cepal, quatriênio compreendido entre 2003 e 2006 foi o de melhor
desempenho econômico e social da América Latina nos últimos 25 anos, com isso
os índices sociais tendem a apresentar alguma recuperação. Mesmo assim, os
números absolutos são alarmantes. Tendencialmente, em 2006, o número de
pobres e indigentes deveria situar-se em torno de 205 e 79 milhões de pessoas,
respectivamente (Cepal, Anuário Estatístico 2006).
Frente a esses índices, entende-se que a agenda interna dos países seja
sobrecarregada por problemas de ordem social e política. Somam-se aos
problemas estruturais, as sucessivas crises internacionais e os efeitos perversos
dos modelos econômicos implantados, de modo que os esforços dos governos
para fazer frente às demandas sociais não têm sido suficientes sequer para
recuperar o padrão perdido nas últimas décadas. Essa pesada agenda interna
reduz a capacidade de proposição externa e de engajamento regional
comprometedor de autonomia por parte dos Estados para quem os ganhos
96
Maria Izabel Mallmann
imediatos, por menores que sejam, são mais importantes diante da possibilidade
de maiores ganhos futuros.
Acrescente-se a isso o fato de que, uma estrutura socioeconômica desigual
debilita as capacidades individuais, fragiliza os direitos políticos, propicia relações
autoritárias generalizadas e, com isso, distorce o exercício da cidadania e da
accountability, próprios de uma democracia estável (O’Donnell 2000, p. 359).
Diante disso, é compreensível o permanente estado de ebulição e instabilidade
política na maioria dos países da região, apesar da regularidade eleitoral. De
1979 a 1990, ocorreram treze transições para a democracia e entre meados de
2005 e final de 2006, quatorze processos eleitorais foram realizados na América
Latina, destes, nove ocorreram na América do Sul onde houve avanço
significativo de diferentes versões de esquerda em resposta às frustrantes
experiências liberais da década anterior. Mesmo assim, permanece como um dos
maiores
desafios
dos
países
sul-americanos,
a
consolidação
de
suas
democracias, o que supõe ir além das garantias institucionais formais e perpassar
a sociedade com políticas adequadas de inclusão social e econômica que habilite
os indivíduos ao exercício da cidadania.
Portanto, acompanham os desafios de natureza econômica e social
aqueles
propriamente
políticos
e
institucionais
que
repousam
sobre
a
necessidade de suprimir os chamados “campos negativos” (sociedade incivil e
sociedade política pouco submetida) que a redemocratização, por si só, não
consegue remover (Mendez, 2000, p. 12). Para tanto, é necessário “Um Estado
legal democrático forte que estenda seu poder regulatório sobre a totalidade de
seu território e por todos os setores sociais” (O’Donnell, 2000, p. 358).
Ocorre que os países sul-americanos carecem desse Estado legal
democrático forte, no sentido de que age através da sociedade e configura um
poder infraestrutural capaz de implementar decisões em todo o seu território,
independentemente de quem as tome, ou seja, um Estado eficiente (Mann, 2006).
Além disso, segundo Mann, aos problemas estruturais decorrentes do déficit
histórico de eficiência do Estado, refletido na carência de alcance e de
infraestrutura, sobrepõem-se os problemas de situação, tais como a produção de
drogas e a questão da dívida externa (Mann, 2006). Sobrepõem-se também
outros desafios como os oriundos da violência urbana, das transformações do
Política e integração na América do Sul
97
espaço público e significativamente, sobretudo na região andina, do novo
despertar das etnias7.
Esses fatores tornam o processo político mais instável e subtraem
garantias quanto à continuidade dos compromissos. Em alguns países da
América do Sul a inclusão política de segmentos historicamente excluídos dos
processos decisórios tem introduzido variáveis cujos desdobramentos são
bastante imprevisíveis ou, pelo menos, reorientam as expectativas quanto à
condução das relações regionais. Se isso, em si, não significa necessariamente o
total abandono dos compromissos assumidos, pelo menos, reduz a confiança
mútua regional, tão cara aos processos de integração e imprescindível para a
resolução não violenta de conflitos em situações de interdependência complexa.
Mais uma vez, sob certo ponto de vista, instituições regionais legítimas se fazem
desejar.
6. Teorias da integração
Os processos de integração regional podem ser analisados pelas principais
teorias das relações internacionais. Os enfoques realistas enfatizam o potencial
estratégico de tais iniciativas, ao passo que as abordagens liberais, cujas
contribuições são aqui privilegiadas, preocupam-se particularmente com as
condições e mecanismos institucionais que favorecem ou não a progressão de
arranjos cooperativos.
De modo geral, entre os analistas da integração regional, pertencentes à
matriz liberal, há uma difundida compreensão de que processos desse tipo
dependem da existência de alguns fatores identificados a partir de estudos
clássicos desenvolvidos sobre a realidade europeia. Como será visto neste tópico,
alguns desses fatores são a existência de interesses ou objetivos compartilhados,
7
O Panorama Social da América Latina 2006, produzido pela Cepal, destaca a irrupção dos povos
indígenas como ativos atores sociais e políticos e o processo de consolidação de normativa
internacional sobre seus direitos e suas conseqüências no que diz respeito a políticas públicas. O
documento aponta para a “complexidade e heterogeneidade das dinâmicas da população
indígena”, para a “persistente desigualdade que os afeta” e para o desafio das democracias do
século XXI “em matéria de reformas estatais e de políticas tendentes a superar as brechas de
aplicação dos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas” (Cepal, 2006). A
redemocratização favoreceu a ascensão política desses segmentos surgidos antes da
democratização da década de 1980 e da liberalização dos anos 1990 (Trejo, 2006, p. 265).
98
Maria Izabel Mallmann
a adesão a valores similares e o desenvolvimento de normas e regras comuns.
Ou ainda, de acordo com Karl Deutsch, maturidade institucional, disposição para
superar diferenças, percepção comum das ameaças externas, previsibilidade de
comportamento, responsabilização mútua e regulação política.
Tanto Ernest Haas como David Mitrany identificaram como importante para
a integração a existência de partidos políticos, grupos de interesse, elites políticas
e burocráticas interessadas em seu sucesso. Haas também alertou para a
necessidade de mecanismos legitimadores da transferência das lealdades do
plano nacional para o supranacional. Quanto aos mecanismos do processo
integrador, importante contribuição foi dada com o desenvolvimento por Mitrany e
Haas dos conceitos de “ramificação”, “respingamento” ou spillover. A partir dos
anos 70, foi desenvolvido por Joseph Nye e Robert Keohane o conceito de
interdependência complexa que daria sequência às reflexões acerca da
integração não apenas em âmbito regional, mas mundial. Abaixo, esses conceitos
serão brevemente abordados.
Os interesses e objetivos estratégicos da Europa após a II Guerra Mundial
estiveram voltados para a busca da paz e da segurança. Os entendimentos
iniciais que marcaram a primeira fase da integração europeia buscavam encontrar
um arranjo institucional que assegurasse o convívio pacífico entre os países e, ao
mesmo tempo, neutralizasse as ameaças externas vindas tanto do expansionismo
soviético quanto da hegemonia dos Estados Unidos. Com isso, foi possível
assegurar o longo período de estabilidade e prosperidade que se prolonga aos
dias de hoje.
Karl Deutsch, um dos pensadores mais proeminentes sobre o assunto,
defendeu a formação de uma comunidade de segurança, capaz simultaneamente
de assegurar, por meios diplomáticos, a paz entre seus membros e de debelar,
por meio militar, as ameaças externas. As condições necessárias para tanto,
seriam a existência de maturidade institucional, disposição dos membros para
superar diferenças e percepção comum das ameaças externas (Deutsch, 1984,
Griffitz, 2004, p. 260; Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 648). Embora nem a Europa
destroçada pela Guerra apresentasse as condições para tanto, haja vista a
derrota do projeto de constituição de uma Comunidade Europeia de Defesa, fica
claro que, dessa perspectiva, a adesão a valores similares, a percepção de
Política e integração na América do Sul
99
constrangimentos externos comuns e a superação de desconfianças mútuas
favorece o avanço da integração.
Os estudos de Deutsch levaram à identificação de dois tipos de
comunidades de segurança: as amalgamadas seriam aquelas nas quais houve a
supressão das unidades previamente independentes e a criação de um governo
comum, seriam os Estados-nação; as comunidades de segurança pluralistas
seriam aquelas em que as partes manteriam a independência jurídica (Dougherty
e Pfalzgraff, 2003, p. 660-1). A formação de comunidades de segurança
pluralistas exige, segundo ele, três condições essenciais: compatibilidade de
valores,
previsibilidade
mútua
dos
comportamentos
das
unidades
e
responsabilização mútua – capacidade de trabalhar em estreita colaboração de
forma a responder aos assuntos mais urgentes. Essas condições, como veremos,
se mostrarão relevantes para a análise das experiências atuais de integração.
Deutsch também teve a clara percepção, que a partir dos anos 70 se fará
presente no pensamento interdependentista, de que o mero aumento das trocas
não conduz obrigatoriamente à integração. Ao contrário, segundo ele, transações
mais intensas aumentam as possibilidades de conflito. Para Deutsch a regulação
política seria imprescindível na medida em que facilitaria a resolução de tais
conflitos. Ela decorreria do aumento das pressões oriundas do crescimento das
trocas entre populações de diferentes áreas geográficas sobre as instituições
existentes. Essas tenderiam a integrar-se na regulação das áreas de interesse
comum. Em outros termos, a intensificação das transações políticas, culturais e
econômicas aumentaria as pressões para que as instituições se adaptassem
(Griffitz, 2004, p. 259). Mais tarde, teóricos da interdependência retomarão essa
ideia para ressaltar a importância das instituições na conformação de uma ordem
internacional mutuamente confiável.
As teses de Deutsch quanto à necessidade de regulação política
avançaram em grande medida em reação ao que se propugnava para a Europa
nos anos 40. As teses funcionalistas de David Mitrany, desenvolvidas naqueles
anos, preconizavam a minimização da esfera política em benefício da esfera
técnica uma vez que aquele autor identificava as causas das guerras na ambição
dos Estados pelo poder. Isso, segundo ele, poderia ser contornado pela sujeição
da esfera política à esfera técnica. Mitrany considerava que havia no mundo mais
100
Maria Izabel Mallmann
assuntos técnicos do que políticos e que a solução dos mesmos seria
necessariamente cooperativa e superaria os limites das fronteiras estatais. Tais
assuntos seriam melhor resolvidos por funcionários técnicos especializados do
que por políticos. Para ele, a paz não seria assegurada por tratados ou acordos
que meramente definissem as relações entre os Estados; para assegurá-la, seria
necessário fundi-los, através da conexão de interesses comuns em diversos
domínios técnicos, ou áreas temáticas que teriam o mérito de, ao multiplicaremse, reduzir o poder do Estado. Desenvolvendo-se por etapas, as atividades
tecnicamente
organizadas
acabariam
por
constituir
instâncias
de
paz
crescentemente profundas e extensas que decorreriam não de alianças que
tornam a paz provisória, mas de atividades que tornariam os compromissos
irreversíveis 8. Para o autor, o processo integrador incluiria inicialmente tarefas
funcionais específicas e disporia de potencial para se expandir para outros
setores (ramificação) podendo conduzir à união política. Nesse processo, seria de
fundamental importância o papel dos partidos políticos e grupos de interesse e o
grau em que as elites políticas dariam ou não seu apoio à integração.
Segundo Dougherty e Pfaltzgraff, para Mitrany a cooperação seria o meio
adequado para atender a necessidades específicas e, através delas, estariam
criadas as bases para a formação e consolidação de regimes e instituições
internacionais. Haveria uma espécie de “aprendizado cooperativo”, no qual a
cooperação em uma determinada área levaria à cooperação em outra e diminuiria
a possibilidade de guerra. Em outros termos, “Da cooperação funcional resultaria
o fundamento para as instituições do tipo das organizações e regimes
internacionais baseados no multilateralismo e que deveriam reduzir a importância
do Estado” (Dougherty e Pfaltzgraff, 2003, p. 651).
Embora tivesse como horizonte os ideais da supranacionalidade, Ernest
Haas identificou na dimensão política o fator essencial da integração, uma vez
que, para ele, ela é “um processo pelo qual os atores políticos em diversos
cenários nacionais distintos são persuadidos a trocar suas lealdades, expectativas
e atividades políticas por um novo centro mais amplo, cujas instituições possuem
ou demandam jurisdição sobre os Estados nacionais pré-existentes” (Haas apud
8
A paz o e desenvolvimento funcional da organização internacional, originalmente publicado nos
números 5, 6 e 7 de L’avenir, em 1944. Trechos desse texto são reproduzidos em BRAILLARD,
Philippe. 1990, p. 566-584.
Política e integração na América do Sul
101
Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 648). Haas identificava na própria dinâmica da
integração os fatores que fragilizariam as resistências nacionalistas à integração.
Na medida em que o processo avançasse, através do “respingamento” ou
“ramificação”9 de um domínio a outro, geraria mais e mais interesses compartidos,
mais demandas por regulação e mais confiança nas novas estruturas
institucionais. Essas eram por ele consideradas fundamentais para mediar os
inevitáveis conflitos advindos da repartição dos benefícios. Tais instituições
deveriam gozar de relativa autonomia e repousariam sobre o compromisso mútuo
dos Estados de respeitar as regras consensualmente aceitas (Dougherty,
Pfaltzgraff, 2003). Essa preocupação de Haas remete à de Deutsch quanto á
dimensão regulatória necessária ao sucesso da integração.
Outro aspecto relevante ao estudo da integração foi apontado por Haas a
partir da análise do processo de criação da Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço (CECA). Ele identificou que a decisão de prosseguir ou não a integração a
partir daquela experiência dependeu em grande medida das expectativas de
grupos de interesse envolvidos. Haas, assim como Mitrany, deu importância às
elites e aos especialistas das burocracias nacionais para a execução da
integração. Segundo Dougherty e Pfaltzgraff, “Haas assumiu que a integração
prosseguia como resultado do trabalho das elites relevantes nos setores
governamentais e privado por razões pragmáticas como a expectativa de que a
eliminação das barreiras comerciais aumenta mercados e lucro” (Haas apud
Dougherty, Pfaltzgraff, 2003, p. 651-2), daí a importância dos bons resultados e
dos ganhos concretos para balisar as decisões quanto ao aprofundamento e à
ampliação ou não da integração. Esse aspecto ressalta a importância das críticas
quanto
à
condução
de
tais
processos
exclusivamente
por
segmentos
governamentais, como tem sido recorrente no Brasil.
Adicionalmente, Haas registrou que o interesse baseado em considerações
pragmáticas pode ser efêmero se não for acompanhado de empenho ideológico e
filosófico similar ao nacionalismo e à identidade nacional dentro dos Estados
(Dougherty,
Pfaltzgraff,
9
2003,
p.
654).
Também
essa
ideia
pode
ser
A partir do conceito de ramificação de Mitrany, Haas desenvolveu o de spillover querendo, com
ele, dizer que “as decisões iniciais ramificam para novos contextos funcionais, envolvem sempre
mais pessoas, exigem sempre mais contatos e consultas entre burocracias que procuram dar
solução aos novos problemas que derivam dos compromissos anteriores” (Dougherty, Pfaltzgraff,
2003, p. 653).
102
Maria Izabel Mallmann
especialmente útil para a análise do processo sul-americano de integração, uma
vez que algumas iniciativas podem ser arroladas como esforços nesse sentido.
Como foi mencionado acima, a partir dos anos 70, foram desenvolvidas
novas reflexões acerca da integração, dessa vez já com preocupações relativas
ao escopo internacional do fenômeno. Joseph Nye e Robert Keohane (1984)
desenvolveram o conceito de interdependência complexa para analisar as
situações então crescentemente perceptíveis em que “atores e acontecimentos
situados em diferentes partes de um sistema se afetam mutuamente” (Nye, 2002,
p. 225). A interdependência complexa é, segundo Nye, um tipo ideal que possui
três características básicas. Em primeiro lugar, as sociedades são conectadas por
múltiplos canais que podem ser agrupados em categorias de relações:
interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Em segundo lugar, a variada
agenda internacional que decorre das conexões acima citadas carece de uma
hierarquia definida a priori, que estipule prioridades em termos de assuntos
militares ou econômicos, por exemplo. Em terceiro lugar, a possibilidade do uso
da força militar é minimizada em tais situações justamente porque não só muda a
natureza do conflito como sua possibilidade de articulação sob a rubrica da
soberania nacional (Nye, 2002, p. 236-7).
Contrariamente
ao
que
se
poderia
supor,
em
situações
de
interdependência complexa, aumentam as possibilidades e a complexidade dos
conflitos, uma vez que envolvem variadas formas de poder. As situações de
interdependência complexa, por decorrerem da combinação de dependências
mútuas em diferentes áreas temáticas, dificilmente fazem coincidir as fragilidades
e as fortalezas em cada uma delas, gerando equilíbrios instáveis. Além disso,
segundo os autores, esse tipo de interdependência, por misturar questões
nacionais e estrangeiras, “dá origem a coligações muito mais complexas, padrões
de conflito mais intrincados e uma forma diferente de distribuição dos ganhos em
relação à que existia no passado” (Nye, 2002, p. 228). Aos Estados nessa
situação podem interessar os ganhos absolutos e relativos de seus pares. Esse é
o caso de Estados comprometidos com estratégias de integração regional, em
que desproporcionais ganhos individuais dificilmente redundam em benefícios
para o andamento do processo como um todo.
Política e integração na América do Sul
103
Portanto, o conceito alude a situações em que variados e mais numerosos
agentes atuam em diferentes contextos cuja relevância não é definida a priori,
mas em função dos interesses de tais agentes e, em que tal riqueza de conexões,
gera compromissos mútuos desautorizando crescentemente o uso da força para a
resolução dos conflitos. Isso por várias razões, entre elas pelo fato de os conflitos
serem de natureza específica, não agrupáveis sob a rubrica da soberania
nacional, e exigirem tratamento compatível. Nesses termos, o aumento da
interdependência favorece a integração na medida em que exige numerosos e
variados canais de comunicação aptos à gestão dos interesses e à resolução não
violenta dos conflitos.
O conceito de interdependência complexa permite apreender as situações
de interdependência em função de quatro atributos básicos: origem, benefícios,
custos relativos e simetria (Nye, 2002, p. 225). Quanto à origem, ela pode ser
ambiental econômica e militar, entre outras. A interdependência militar decorre da
competição que conta com a existência objetiva dos arsenais e com a
dependência mútua das políticas de segurança, armamento e defesa. Nesse
domínio, a interdependência pode ser danosa à paz se favorecer a escalada
armamentista. A dependência econômica é necessariamente mais diversificada
dado o variado número de agentes e interesses que envolve, mas incide também
sobre as escolhas de políticas internas de desenvolvimento. Ambas são
vulneráveis a fatores que influenciam a percepção dos agentes. Ou seja, a
percepção da diplomacia quanto às ameaças reais pode tanto aumentar quanto
reduzir a interdependência militar. Da mesma forma, a percepção dos decisores
quanto
às
ameaças
e
oportunidades
econômicas
afeta
o
grau
de
interdependência na medida em que pode induzi-los a providenciar ou não a
redução de suas vulnerabilidades, entre ouros fatores.
Esse aspecto da percepção é muito relevante em casos em que se iniciam
processos de aproximação e de aprofundamento da interdependência quando a
confiança mútua é importante para encorajar a troca dos ganhos certos das
estratégias individuais pelas incertezas de um cenário de maior interdependência
como é o da integração regional. É justamente sobre essa dimensão perceptiva
que incidem as estratégias de dissuasão implementadas por potenciais
perdedores
104
em
alguma
Maria Izabel Mallmann
situação
de
interdependência.
O
sucesso
nas
manipulações
de
assimetrias,
práticas
recorrentes
em
situações
de
interdependência, depende de percepções bem informadas a respeito das
possibilidades de sucesso de tais ações que, quando inseridas em uma estratégia
de integração, deverão ser balizadas por limites, cuja transgressão pode
comprometer de forma indesejada o processo.
Os benefícios da interdependência podem ser tanto de soma zero como de
soma não nula. No primeiro caso, a perda de uma parte é o ganho de outra. No
segundo, quando se trata de uma soma positiva, ambas as partes ganham e,
quando se trata de uma soma negativa, ambas perdem. A interdependência
engendra tanto situações competitivas de soma zero, como situações
cooperativas de soma positiva (Nye, 2002, p. 227-8), para cujo desfecho a
intenção dos agentes é decisiva. Em situações de integração regional, o
compromisso das partes em relação aos objetivos e metas comuns deveria, em
princípio, balizar as decisões dos agentes levando em consideração os resultados
desejados em uma perspectiva de longo prazo, uma vez que, conforme Nye
(2002, p. 226), é nesse prazo dilatado que os efeitos das escolhas sociais se
fazem sentir. Nesses termos, pode-se estimar as dificuldades que países menos
favorecidos enfrentam para realizar suas escolhas, uma vez que as necessidades
presentes podem fazer com que os menores ganhos imediatos imponham-se às
vantagens futuras.
É importante observar que as situações de interdependência não geram
necessariamente benefícios de modo a melhorar a posição de todos os
envolvidos. Os aspectos políticos da interdependência consistem justamente na
incerteza acerca de sua distribuição. “O não prestar atenção à desigualdade dos
benefícios e dos conflitos que surgem acerca da distribuição de ganhos relativos,
leva a que (se omitam) os aspectos políticos da interdependência” (Nye, 2002, p.
227). Tais aspectos são relevantes precisamente porque os benefícios gerados
conjuntamente tendem a desencorajar os conflitos, embora não necessariamente
o façam. O conflito pode advir do fato de que nem sempre os Estados estão mais
interessados nos ganhos absolutos da interdependência. Com frequência,
preocupa-os mais a sua vulnerabilidade em relação ao uso que os rivais farão de
seus ganhos relativamente mais elevados. Porém, mesmo que seja impossível
suprimir essa desconfiança, quando há adesão das partes a um projeto comum
Política e integração na América do Sul
105
de integração, ela tende a ser minimizada face a garantias mútuas quanto ao uso
das vantagens relativas.
Quanto aos custos da interdependência, eles estão relacionados à
sensibilidade a curto prazo e à vulnerabilidade a longo prazo dos envolvidos. A
sensibilidade diz respeito à importância e à rapidez com que se propagam os
efeitos da dependência. A vulnerabilidade está relacionada aos custos relativos
de um país para alterar a estrutura de um sistema de interdependência, saindo do
sistema ou alterando as regras do jogo. O mais vulnerável é o que incorreria em
custos mais elevados nessa operação. O mais sensível não é necessariamente o
mais vulnerável e vice-versa. A vulnerabilidade é uma questão de grau, depende
da capacidade de uma sociedade para responder rapidamente à mudança e
também da disponibilidade de substitutos e/ou de fontes alternativas de
abastecimento (Nye, 2002, p. 229). Uma situação de interdependência desejável
para o sucesso de um processo de integração seria a que combina alto grau de
sensibilidade, com baixa vulnerabilidade das partes. A alta sensibilidade
generalizada, decorrente de elevados índices de interdependência, tenderia a
aumentar a responsabilidade de cada um em relação aos demais. Por sua vez, a
baixa vulnerabilidade de cada um suporia a existência de importantes
capacidades
individuais
o
que
tornaria
sustentável
a
situação
de
interdependência.
Quanto à simetria da interdependência, diz respeito aos graus de
dependência mútua. Quanto mais simétrica a interdependência, mais raras são as
ocorrências de extremos, características das situações assimétricas. Segundo
Nye, a dimensão política da interdependência supõe a prática frequente de
manipulação das assimetrias o que se constitui em fonte de poder. Em casos de
interdependência envolvendo várias áreas, a manipulação é comumente realizada
relacionando as questões, o que pode produzir efeitos significativos dependendo
da intensidade do conflito. Nesse âmbito, as instituições internacionais são
frequentemente usadas pelos Estados para estabelecer regras que influenciem o
relacionamento das questões (Nye, 2002). Havendo regimes diferenciados para o
tratamento das principais questões – capital, comércio, meio ambiente, etc – as
partes militarmente mais fortes podem atuar no sentido de prejudicar as
negociações nesses regimes caso venham a ser derrotadas contundentemente
106
Maria Izabel Mallmann
em um deles. Contudo, a rede de interdependência também pode contê-las.
Portanto, a manipulação da interdependência econômica nem sempre é vencida
pelo maior Estado. Esse é o caso, por exemplo, de quando um Estado menor
possui interesse maior em relação a uma questão que o dispõe a ir até as últimas
consequências na negociação (Nye, 2000,). Uma iniciativa de integração que
envolva importantes e numerosas assimetrias desigualmente distribuídas entre as
partes é de difícil consecução, sendo necessário, nesses casos, que as normas e
regras sejam estabelecidas de modo a minimizar tais disparidades. Se poucos
delas se beneficiam e se são mínimas as vantagens de reverter esse quadro, a
tendência é que a integração não ocorra.
Os
estudos
relativos
à
interdependência
complexa
levaram
ao
desenvolvimento de um conceito correlato extremamente relevante para a análise
de processos de integração, o de regime internacional. Esse conceito foi
consolidado nos anos 80 a partir da definição formulada por Krasner para quem
um regime internacional consiste num conjunto de princípios, normas e regras, e
procedimentos de tomada de decisões em torno dos quais convergem as
expectativas dos atores em determinada área das relações internacionais. O autor
define os princípios como sendo as crenças, convicções que orientam a ação; as
normas como alusivas aos direitos e obrigações que conformam os padrões de
comportamento; as regras como prescrições ou proscrições específicas para a
ação, e os procedimentos de tomada de decisões como práticas de fazer e
implementar escolhas coletivas (Krasner, 1983, p. 2).
O conceito foi desenvolvido como recurso analítico para explicar os
mecanismos responsáveis pela convergência das expectativas dos agentes em
áreas específicas das relações internacionais em um momento histórico em que
as condições técnicas permitem a multiplicação de agentes e temas e o
aprofundamento da interdependência. Para cada área temática (comércio, meio
ambiente, finanças, entre outras) há agentes, normas, regras e procedimentos
específicos que vinculam as realidades interna e internacional. Os regimes
contribuiriam para entender a operacionalização da interdependência, ou seja,
para “analisar a extensão e o modo como são aproximadas ocorrências internas e
externas e como (o fenômeno) contribui para ampliar a porosidade das fronteiras
no atual contexto internacional” (Rocha, 2006, p. 88 e 91). Por isso, é útil trabalhar
Política e integração na América do Sul
107
com o conceito de regimes internacionais do ângulo da intermediação, senão da
síntese, entre o ambiente externo e o doméstico de um país. O conceito se presta
também para entender os atuais processos de integração regional extraeuropeus
que respondem mais a estímulos descentralizados do que a comandos políticos
centrais.
Através de processos sociais, culturais e econômicos as normas, regras e
procedimentos emanadas dos regimes são internalizadas e, com isso, generalizase a expectativa de que os agentes tenderão a reproduzi-las dotando o processo
como um todo de estabilidade e previsibilidade (Rocha, 2006, p. 90). Contudo,
essa relação não é estática, entre agente e estrutura existem determinações
mútuas. Conforme Rocha, as normas não são apenas variáveis intervenientes,
elas são constitutivas de estruturas e também de agentes internacionais. Com
isso, “... as estruturas vão se transformando para acomodar interesses da maioria
dos agentes [...] e os agentes também são forçados a redefinir o modo como eles
se inserem na comunidade internacional” (Rocha, 2006, p. 84). Por isso, estimase que o envolvimento de um número crescente de agentes em áreas temáticas
variadas (comércio, meio ambiente, infraestrutura, energia, entre outros) tende a
institucionalizar situações de interdependência conformando espaços que
demandam regulação no âmbito propriamente político, ou seja, na esfera de
estruturação dos Estados. Essa situação tenderia, em tese, a impelir os agentes
políticos – Estados – a aderirem, por sua vez, a regimes políticos regionais
crescentemente alienantes de soberania, ou seja, a aprofundarem a integração.
Na América do Sul, esse movimento rumo à criação e consolidação de estruturas
mutuamente comprometedoras da soberania encontra importantes obstáculos. À
frágil identidade regional, às históricas desconfianças mútuas somam-se fatores
de ordem interna aos Estados e comuns à região e também fatores dissuasivos
externos que retardam a criação de instituições supranacionais.
Considerações finais
O período que se estende de 1993, quando o Brasil lança a ideia de uma
integração sul-americana, a 2007, quando a iniciativa brasileira sofre alguns
reveses, é relevante para entender o processo de integração a partir das
108
Maria Izabel Mallmann
vicissitudes do cenário político regional. Ao lado de importantes condicionantes
externos, aspectos da realidade regional, em maior ou menor grau comuns a
todos os Estados, sobrecarregam as agendas nacionais e dificultam os processos
de
regionalização.
As
assimetrias
regionais
que
revelam
significativas
disparidades na distribuição de recursos de poder, o déficit democrático
responsável pela permanente instabilidade política e a fragilidade infraestrutural
dos Estados que deixa à deriva importantes segmentos sociais são ordens de
problemas que dificultam a formação e consensos nacionais a favor da integração
regional.
Nesse contexto, as condições necessárias para o sucesso da integração
encontram-se debilitadas na América do Sul. Em decorrência das assimetrias
regionais, da competição por liderança e das agendas sociais internas
multiplicam-se e diversificam-se os focos de conflito e os obstáculos à integração.
Os fatores acima evocados como sendo fundamentais a um processo de
integração como a existência de interesses ou objetivos compartilhados, a adesão
a valores similares, o desenvolvimento de normas e regras comuns, a maturidade
institucional, a disposição para superar diferenças, a percepção comum das
ameaças externas, a previsibilidade de comportamento, a responsabilização
mútua e a regulação política, se encontram severamente ameaçados pelas crises
políticas e rivalidades regionais. A crise que se abateu sobre as finanças e a
economia mundial pode, por um lado, subtrair recursos a estratégias políticas
aventureiras, mas, por outro lado, tende a exacerbar os já agudos problemas
sociais da região. Nesses termos, apesar de ser forçoso reconhecer que a
integração sul-americana progrediu muito nas últimas décadas e que a política
externa do Brasil parece irreversivelmente propensa a manter a região como
prioridade, deve-se admitir que é possível que se ingresse em um período de
estagnação desse processo.
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Política e integração na América do Sul
111
Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista
Ricardo Mariano (PUCRS) 1
O capítulo aborda o ativismo político dos pentecostais no Brasil, conferindo
destaque à sua inserção e participação na política partidária no Congresso
Nacional, a atuação corporativista das igrejas Assembleia de Deus e Universal do
Reino de Deus, a criação e atuação da Frente Parlamentar Evangélica e a nova
bancada evangélica, fragilizada pelo escândalo das sanguessugas. Antes disso,
discorre sumariamente sobre esse movimento religioso no país, realçando sua
expansão demográfica e sua diversidade interna.
Nascido nos Estados Unidos no começo do século XX, o pentecostalismo
distingue-se teologicamente do protestantismo histórico por seu firme propósito de
resgatar e reviver crenças e práticas do cristianismo primitivo relatadas na Bíblia.
Para tanto, prega a contemporaneidade da manifestação dos dons do Espírito
Santo, entre os quais destaca os dons de línguas, cura e discernimento de
espíritos. Avessos à erudição e ao liberalismo teológico, os pentecostais creem
que Deus continua curando enfermos, expulsando demônios, realizando milagres,
concedendo bênçãos e dons espirituais a seus leais servos.
De cunho popular, taumatúrgico e mágico, essa religião cristã encontrou
solo fértil no Brasil, em que completará um século de existência em 2010 e no
qual cresce aceleradamente desde os anos 50. Sua expansão acelera-se mais
ainda a partir da década de 80, momento em que esses religiosos passaram a
conquistar, em parte como efeito do próprio recrudescimento de seu avanço
demográfico, crescente visibilidade pública, espaço na mídia eletrônica e, para
surpresa geral, poder político e partidário.
Os pentecostais somavam 3,9 milhões em 1980; 8,8 milhões em 1991 e 18
milhões em 2000, conforme os Censos Demográficos do IBGE. Desde 1980,
dobram de tamanho a cada década. Em 2007, o Instituto Datafolha divulgou os
seguintes dados de um survey que realizou sobre religião no Brasil com
brasileiros acima de 16 anos: os católicos caíram para 64% da população; os
1
Doutor em sociologia pela USP e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da PUCRS.
evangélicos 2 subiram para 22%, dos quais 17% eram pentecostais e 5%
protestantes. Atualmente, portanto, são mais de 40 milhões de evangélicos no
país, sendo quase 80% deles pentecostais. 17% da população brasileira
representam cerca de 32 milhões de pessoas, o que faz do Brasil o maior país
pentecostal do planeta em números absolutos. A título de comparação, segundo
pesquisa do Pew Research Center, os EUA, berço desse movimento religioso,
tinham apenas 5,8 milhões de pentecostais em 2006.
Presente em todo o território nacional, o pentecostalismo cresce
majoritariamente nos bairros e periferias pobres das regiões metropolitanas.
Cresce na pobreza, mas nem por isso deixa de dispor de uma parcela de
seguidores de classe média e mesmo média alta. Comparados à média da
população brasileira, os pentecostais congregam mais mulheres que homens,
mais crianças e adolescentes que adultos, mais negros, pardos e indígenas do
que brancos, detêm maior proporção de pessoas com cursos de alfabetização de
adultos, antigo primário e primeiro grau; ocupam mais empregos domésticos com
e sem carteira de trabalho e, em sua maioria, auferem até três salários mínimos
de renda mensal (Jacob, 2003: 39-69).
Existem centenas de igrejas pentecostais no país. Contudo, não obstante a
fragmentação institucional, seus adeptos não estão dispersos, pulverizados por
uma infinidade de igrejas. Conforme o Censo Demográfico de 2000, cinco
denominações pentecostais concentram aproximadamente 85% de seus fiéis:
Assembleia de Deus (8.418.154 adeptos), Congregação Cristã no Brasil,
(2.489.079), Universal do Reino de Deus (2.101.884), Evangelho Quadrangular
(1.318.812) e Deus é Amor (774.827). Tal concentração, porém, não resulta em
qualquer tipo de homogeneidade, dado que esse movimento religioso apresenta
elevada
diversidade
comportamental.
Isso,
interna
nos
por sua
planos
vez,
doutrinário,
resulta em
organizacional
variegadas
e
estratégias
proselitistas, diferentes públicos-alvo, distintas relações com os poderes públicos,
com a política partidária e com os meios de comunicação de massa.
2
Na América Latina, o termo evangélico abrange as igrejas cristãs oriundas da Reforma
Protestante europeia do século XVI e de suas cisões e correntes posteriores. No Brasil, o termo
designa, conjuntamente, as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana,
Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) e todas as pentecostais, destacando-se
Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor e
Universal do Reino de Deus.
Pentecostais e política no Brasil
113
Atuação política
O declínio católico, a expansão evangélica, a relação distinta que esses
grupos religiosos mantiveram com a ditadura militar e a política de segurança
nacional e, em seguida, com o movimento pela redemocratização do país
contribuíram para alterar as relações destes grupos religiosos entre si e com o
Estado. Nesse período, a Igreja Católica, ao opor-se à ditadura militar e defender
os direitos humanos a partir de 1968, perdeu, como ator religioso, a exclusividade
na relação e no estabelecimento de diálogo e negociação com os dirigentes
políticos e estatais. Os militares aproximaram-se dos evangélicos, sendo que
muitos de seus pastores realizaram cursos na Escola Superior de Guerra. Mesmo
no auge da repressão, os governos militares, já privados do apoio católico,
continuaram logrando manter o apoio – com exceção da cúpula luterana – de
líderes protestantes e pentecostais. Em parte, isso ocorreu em razão de que
esses religiosos, em sua maioria, eram visceralmente anticomunistas e, na
condição de minoria discriminada, almejavam reconhecimento social, apoio
governamental e recursos públicos.
Até o final dos anos 70, os espaços legítimos de atuação dos crentes,
segundo a visão predominante nesse meio religioso, restringiam-se, em boa
medida, à igreja, à casa e ao trabalho (Brandão, 1980). Para combater a
corrupção mundana e manter-se passo a passo no caminho estreito da salvação,
apregoava o lema “crente não se mete em política”, já que percebia a política
como diabólica e corruptora. Em suma, o pentecostalismo mantinha um
comportamento já tradicional de não participação na política partidária. Em razão
disso, a literatura acadêmica da época considerava-o passivo, alienado, alienante
e conservador no campo político (D’Epinay, 1970; Camargo, 1973). Classificação
que levava em conta igualmente sua oposição religiosa ao comunismo (por receio
de perseguição religiosa), seu apoio ao regime militar e sua tendência a votar nos
candidatos do governo. E, em contraste, muitos pesquisadores consideravam a
resistência da esquerda católica à ditadura como modelo exemplar de atuação
política para os demais grupos religiosos, os quais, cumpre observar, naquele
contexto detinham menor condição de opor-se ao regime militar por não contar
com a tradição, com o poder eclesiástico, com o peso demográfico, com a
114
Ricardo Mariano
legitimidade institucional e religiosa da Igreja Católica e nem muito menos com o
apoio que esta angariava no exterior.
Algumas iniciativas individuais, avulsas e isoladas, dão início à participação
de pentecostais na política partidária nas eleições de 1978, momento em que
ainda prevaleciam análises e avaliações acadêmicas enfatizando sua alienação
política (Alves, 1978). Aos poucos esse grupo religioso foi abrindo-se à
participação política. Em maio de 1981, o Mensageiro da Paz, jornal oficial da
Assembleia de Deus, por exemplo, permitiu aos pastores candidatarem-se desde
que se licenciassem do pastorado (Baptista, 2009). Nas eleições municipais de
1982, observa-se a ampliação do número de candidaturas de pentecostais,
fenômeno registrado pontualmente por pesquisas empíricas realizadas por
Soares (1983; 1985), Stoll (1983) e Kliewer (1982), que contestaram a pecha de
alienados atribuída preconceituosamente a esses religiosos pela literatura
acadêmica anterior. Até o início dos anos 80, portanto, os pentecostais brasileiros
se autoexcluíram deliberada e majoritariamente da política partidária. Foram
poucas as exceções, sendo a principal delas a eleição de dois parlamentares
apoiados oficialmente pela Igreja O Brasil para Cristo nos anos 60. No pleito de
1982, a participação política pentecostal não foi dirigida por lideranças
denominacionais e nem contou com seu apoio oficial.
Surpreendentemente, em meados da década de 80 grandes igrejas
pentecostais brasileiras romperam com sua tradição quietista, ingressando de
modo organizado no jogo político partidário nacional em defesa de seus
interesses corporativos e de seus ideais e valores religiosos. Adotaram um novo
lema para mobilizar os fiéis: “irmão vota em irmão”. Lema que intitulou livro do
evangélico Josué Sylvestre (1986), escrito com o objetivo de propor e defender a
guinada ideológica e política de seus irmãos de fé na Constituinte. O marco dessa
mudança ocorreu justamente na Assembleia Constituinte, quando a cúpula
eclesiástica da Assembleia de Deus, temendo que a nova Carta Magna
restringisse sua liberdade religiosa e restabelecesse a Igreja Católica como
religião oficial do Estado – boatos alarmistas e persecutórios que seus próprios
dirigentes e membros contribuíram para disseminar por todo o país –, mobilizou
suas bases pastorais para apoiar o lançamento de candidaturas oficiais na
maioria dos estados brasileiros, estratégia que conseguiu eleger 13 deputados
Pentecostais e política no Brasil
115
federais (Mariano e Pierucci, 1992). Em razão do esforço eleitoral da Assembleia
de Deus e de outras denominações, da legislatura de 1982 para a de 1986 o
número de deputados federais pentecostais saltou de dois para 18, crescimento
de 900% de sua representação no Congresso Nacional, que, somados aos 14
deputados protestantes eleitos, resultou numa bancada de 32 evangélicos,
fenômeno que chamou a atenção da imprensa e de sociólogos da religião
(Pierucci, 1989).
Para dimensionar o sucesso pentecostal no pleito de 1986, cumpre
observar que, entre 1910 e 1982, esses religiosos haviam eleito apenas cinco
deputados federais. A representação política dos evangélicos no Congresso
Nacional até então fora efetuada por presbiterianos (36 deputados federais),
batistas (25), luteranos (15), congregacionais (9) e metodistas (9), concentrados
nas regiões Sudeste e Sul, em especial nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro
e Rio Grande do Sul (Freston, 1994, p. 30). Na legislatura de 1987 a 1990,
ocorreu, portanto, uma mudança radical na representação política dos
evangélicos na Câmara Federal: os parlamentares pentecostais tornaram-se
maioria, assumindo, de forma inédita e inesperada, o protagonismo político no
campo evangélico. Protagonismo que se manteve nas legislaturas seguintes, sob
a liderança das igrejas Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus.
Mudança tão brusca demandou, por parte de seus responsáveis,
considerável esforço para justificá-la. Pastores e parlamentares pentecostais
justificaram o ingresso na política partidária por ocasião da Constituinte, alegando,
além do propósito de assegurar sua liberdade religiosa e de impedir que a Igreja
Católica voltasse à condição de religião oficial do Estado, que grupos adversários,
como homossexuais, feministas, macumbeiros e católicos entre outros,
defenderiam seus interesses por ocasião da elaboração da nova Carta Magna do
país (Sylvestre, 1986). Por isso, sua presença e participação na Constituinte era
crucial, para combater, sobretudo, a descriminalização do aborto e do consumo
de drogas, a união civil de homossexuais e a imoralidade, defender a moral cristã,
a família, os bons costumes, a liberdade religiosa e de culto e inserir símbolos
religiosos (Bíblia) na nova Constituição. Tratava-se, portanto, de ingressar na
política partidária para defender sua liberdade religiosa e a moralidade cristã
tradicional e para fazer oposição direta a seus adversários religiosos e laicos.
116
Ricardo Mariano
Apesar de sua ênfase discursiva na moralização da política, vários
parlamentares evangélicos, unidos ao bloco conservador denominado Centrão,
protagonizaram escândalos variados de fisiologismo e malversação de recursos
públicos, entre os quais a venda de votos para assegurar mandato de cinco anos
a José Sarney, em troca de emissoras de rádio e recursos financeiros a fundo
perdido (Pierucci, 1989). Apesar de majoritariamente associada ao Centrão, a
bancada evangélica contava com uma minoria de parlamentares politicamente
progressista, vinculada, em sua maior parte, a denominações protestantes
tradicionais.
Quanto ao perfil dos políticos pentecostais no Congresso Nacional nas
últimas duas décadas, observa-se que parte considerável deles é composta por
proprietários de veículos de comunicação, pastores e bispos, filhos e genros de
pastores, cantores gospel, radialistas, televangelistas e empresários (Freston,
1994; Baptista, 2007). Cerca de metade deles é candidato oficial das igrejas, a
maioria dos quais da Assembleia de Deus, da Universal do Reino de Deus e da
Evangelho Quadrangular, cujos candidatos são escolhidos e apoiados pela
denominação. Isto contribui para reforçar o caráter corporativista de sua atuação
parlamentar e para diminuir sua autonomia política em relação às lideranças
eclesiásticas, que, assim, podem exigir a defesa de seus interesses institucionais
e exercer influência e tutela sobre seus mandatos.
Apesar do crescente empenho eleitoral desses religiosos, cabe observar
que a Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor, duas das maiores
denominações pentecostais do país, mantêm-se afastadas da política partidária.
Não apoiam candidaturas ao legislativo e aos cargos do executivo nem permitem
que seus adeptos se lancem como candidatos. De modo semelhante, muitos
pastores e fiéis da Assembleia de Deus e de outras igrejas pentecostais mantêmse avessos à mobilização política de suas cúpulas eclesiásticas, seja por princípio
religioso ou ético, seja por opção política, seja por temerem eventuais efeitos
deletérios da participação na política partidária sobre sua denominação (Burity,
2005). Os vários casos de corrupção denunciados nas últimas duas décadas
envolvendo parlamentares evangélicos, majoritariamente pentecostais, reforçam,
para muitos crentes, o acerto da posição pentecostal tradicional de separar
rigorosamente as fronteiras entre igreja e política. Por essas razões, revela-se
Pentecostais e política no Brasil
117
superestimada a suposta obediência eleitoral do rebanho pentecostal. Isto é, há
muito de mistificação na ideia de que o rebanho pentecostal converte-se
automaticamente a cada eleição em rebanho eleitoral. Ideia disseminada por
líderes pentecostais quando negociam o apoio eleitoral de suas denominações a
políticos e partidos diversos, e reproduzida frequentemente por órgãos da
imprensa. Mas o fato é que muitos fiéis e pastores continuam resistindo a aderir
às orientações eleitorais das lideranças pastorais. Tanto que, vinte anos depois
do ingresso da Assembleia de Deus na política partidária, uma das tarefas
principais do Conselho Político Nacional da Convenção Geral das Assembleias de
Deus no Brasil (CGADB) continua sendo a de “promover a conscientização
política dos membros das Assembleias de Deus” sobre a necessidade de eleger
parlamentares assembleianos.
Não obstante o apolitismo de certas igrejas e da resistência de muitos
pastores e fiéis de acatar as orientações políticas e eleitorais de suas lideranças,
a acentuada expansão demográfica dos pentecostais, seu recente ativismo
político, seu relativo sucesso eleitoral e sua notória disposição de participar nos
poderes públicos acabaram por tornar esses religiosos atores relevantes no jogo
político local e nacional nas últimas duas décadas. De modo que já não é mais
possível compreender a vida política e a democracia brasileira sem considerar a
atuação política dos evangélicos, especialmente dos pentecostais, não somente
por seu peso demográfico e eleitoral, mas, sobretudo, porque algumas grandes
igrejas pentecostais, como Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus,
participam ativamente das eleições majoritárias desde a redemocratização do
país. Para tanto, apoiam ou rejeitam candidatos e, às vezes, com candidaturas
próprias, caso, por exemplo, de Marcelo Crivella (PRB/RJ) ao governo do Estado
e à prefeitura do Rio de Janeiro. A atuação na esfera legislativa se dá inclusive
por meio da constituição de frentes parlamentares e de partidos políticos
evangélicos, como o Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado e liderado por
membros e políticos da Igreja Universal e o Partido Social Cristão (PSC), que,
desde 2005, estabeleceu parceria com as Assembleias de Deus no Brasil.
Diverso do que ocorreu nas eleições para a Constituinte duas décadas
atrás, hoje não causam maiores surpresas a quem quer que seja a mobilização
política pentecostal, os invariáveis apoios eleitorais que concedem a candidatos à
118
Ricardo Mariano
presidência da República e a governos estaduais e municipais, nem suas alianças
e barganhas com autoridades governamentais. A cada pleito, sua atividade
eleitoral é tida como certa, evidente, inescapável. Por sua onipresença e
crescente relevância, tornou-se pauta obrigatória da grande imprensa. No
conjunto, não é mais vista necessariamente como algo insólito, surpreendente,
“folclórico”, inócuo, ilegítimo. Embora seja objeto de preconceitos, cause certos
temores (de irrupção deletéria, por exemplo, de um fundamentalismo evangélico
na democracia brasileira) e desagrade abertamente a muitos, especialmente aos
defensores mais radicais da laicidade estatal, para os quais toda e qualquer
religião deve ficar confinada à vida privada ou à particularidade das consciências
individuais, a participação pentecostal na política partidária já foi, pode-se dizer,
“naturalizada” na opinião pública. É cada vez mais encarada, portanto, como algo
que faz parte da dinâmica da democracia brasileira e como recurso que compõe
parte da ação estratégica desse grupo religioso minoritário em solo nacional em
busca de poder, recursos, privilégios, reconhecimento e legitimidade, frente a um
mercado religioso competitivo e dominado por uma religião hegemônica.
A cultura política brasileira tem contribuído decisivamente para naturalizar
e, o que é ainda mais importante, reforçar o ativismo político pentecostal. Basta
observar a enorme receptividade que esses religiosos, em seus distintos
desígnios e projetos políticos, encontram por parte dos candidatos, partidos e
governantes de todas as colorações ideológicas. A cada eleição, o apoio eleitoral
do rebanho evangélico é disputado avidamente por candidatos a cargos
legislativos e executivos, incluindo, invariavelmente, a maioria dos que concorrem
à
presidência
da
República,
fenômeno
notório
desde
o
início
da
redemocratização, isto é, desde as eleições presidenciais de 1989 (Mariano e
Pierucci, 1992). Os governantes, por sua vez, cobram apoio político a seus
mandatos em troca da concessão de recursos públicos para emendas de
parlamentares evangélicos, da implementação de políticas públicas em parceria
com igrejas, da modificação da legislação para beneficiá-las, como no caso do
novo Código Civil. Assim, o crescente ativismo político pentecostal não enfrenta
maiores obstáculos no cotidiano da democracia nacional. Pelo contrário, é
sistematicamente requerido, estimulado, cobrado e barganhado por considerável
parte da classe política brasileira, o que tem como efeito imediato reforçar,
Pentecostais e política no Brasil
119
incrementar e legitimar a presença, a participação, a influência, o poder de
pressão e de barganha desses religiosos na esfera pública, espaço no qual
também atuam intensamente por meio de suas emissoras e redes de rádio e tevê,
de jornais, revistas, gravadoras e mercado editorial. A desprivatização política
desse movimento religioso, portanto, não conta tão somente com a forte
disposição de líderes eclesiásticos pentecostais para participar da política. Valese também do denodado empenho de candidatos, partidos e governantes para
enredá-los no jogo político-partidário, nas relações de clientelismo, enfim, no
sistema de representação político brasileiro.
Um exemplo disso foi a campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores à
presidência da República em 2006 estabelecer como uma de suas “prioridades” a
conquista do voto evangélico, eleitorado religioso que foi assediado também por
outros candidatos, como Geraldo Alckmin (PSDB/SP), mas com pouca eficácia
(Mariano, Hoff, Dantas, 2006). Empenhada na realização de tal objetivo, a
campanha petista não poupou esforços: Luiz Inácio Lula da Silva participou de
reuniões e eventos públicos com evangélicos, contou com comitês de campanha
destinados exclusivamente a esse segmento religioso, pediu votos e orações
desses religiosos e prometeu estabelecer um “canal direto” com a comunidade
evangélica. Em carta enviada aos evangélicos, Lula prometeu ampliar ainda as
parcerias na área social do governo federal com suas denominações. 3 Durante
encontro com 30 cantores evangélicos no Palácio Alvorada já no segundo turno –
evento organizado pelo bispo e senador Marcello Crivella (PRB/RJ), sobrinho do
líder da Igreja Universal do Reino de Deus, para manifestar apoio à sua reeleição
–, Lula afirmou: “Quis Deus que fosse esse, que era chamado de demônio, que
fosse lá sancionar o Código Civil que permite total liberdade de religião neste
país”. 4 Conforme a propaganda eleitoral do site do Partido dos Trabalhadores, o
Governo Lula “sancionou a lei que garante a liberdade de culto no país”, em
referência direta à alteração do Código Civil – proposta e defendida pela Frente
Parlamentar Evangélica –, que alterou a personalidade jurídica das organizações
religiosas, deixando de classificá-las como associações e, assim, livrando-as da
3
4
http://politica.dgabc.com.br/materia.asp?materia=546212
Folha de S. Paulo, 10/10/2006.
120
Ricardo Mariano
imposição de novas exigências legais 5 (Mariano, 2006). Ao longo da campanha
eleitoral de 2006, a sanção presidencial do Projeto de Lei que alterou o Código
Civil foi acionada sistematicamente por Lula para persuadir lideranças
evangélicas sobre os benefícios que auferiram em seu primeiro mandato e, com
isso, convencê-las do potencial proveito de seu segundo mandato para elas.
Entre tais benefícios auferidos, reportagem do jornal Folha de S. Paulo, de 18 de
junho de 2006, revela que o Governo Lula, tal como vários governos anteriores,
concedeu emissoras de rádio e tevê para igrejas e parlamentares evangélicos.
A campanha petista visava igualmente superar de vez as resistências e
forte oposição manifestas pelos pentecostais ao PT e a seu “eterno” candidato
presidencial em eleições passadas, sobretudo nos pleitos de 1989, 1994 e 1998,
ocasiões em que o Partido dos Trabalhadores e Lula foram severamente
demonizados e objeto de preconceitos, discriminações e temores diversos por
parte desse grupo religioso. Em 2006, a campanha petista surtiu efeito e venceu
tais resistências, ampliando sua base de apoio político nos meios pentecostais. O
percentual de evangélicos com intenção de votar no petista no primeiro turno
cresceu 59% entre setembro de 2002 e julho de 2006, segundo o Datafolha. 6
Entre os pentecostais, a intenção de voto em Lula saltou de 27% para 43%,
subindo para 52% com o início do horário eleitoral gratuito no rádio e na tevê 7
(Mariano, Hoff, Dantas, 2006).
Num Estado democrático de direito, uma das formas de resolver problemas
legais e mediar conflitos consiste em apelar para o judiciário. No Brasil, os cultos
afro-brasileiros, por exemplo, recorrem cada vez com mais frequência ao
judiciário para denunciar pessoas e igrejas pentecostais que os caluniam,
demonizam e, em certos casos, invadem seus terreiros. Além de recorrer ao
judiciário, num contexto pluralista e de acirrada concorrência, os grupos religiosos
dependem, muitas vezes, de sua atuação política – seja por meio da pressão e do
lobby, seja mediante a realização de alianças, de compromissos, da participação
direta na política partidária e até de confrontos com representantes do legislativo
5
http://www.lulapresidente.org.br/noticia.php?codico=504
Folha de S. Paulo, 18/8/2006.
7
http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/primeirocaderno/politica/Orfaos+de+Garotinho
+evangelicos+dividem-se+entre+Lula+e+Alckmin, 60,3891265.html
6
Pentecostais e política no Brasil
121
e do executivo – para defender seus interesses institucionais e religiosos, seus
valores morais, suas práticas rituais, seus direitos e sua liberdade religiosa.
Para os grupos evangélicos, a atuação política se torna mais premente à
medida que a regulação jurídico-política ou estatal tem avançado célere sobre
áreas da esfera privada, áreas sobre as quais pretendem evangelizar e
homogeneizar moralmente segundo os ditames bíblicos, mas que, à sua revelia e
contra sua vontade, podem assumir configurações completamente distintas de
suas doutrinas. Isso ocorre toda vez que o executivo e o legislativo propõem a
adoção de políticas públicas ou a alteração da legislação referente, por exemplo,
à distribuição de métodos anticoncepcionais (inclusive nas escolas), ao controle
da natalidade, à descriminalização e legalização do aborto, à união civil de
pessoas do mesmo sexo, ao combate à homofobia, à permissão do uso de
células embrionárias em pesquisas científicas, à aprovação da pena de morte etc.
Atualmente, grande parte dos dirigentes evangélicos parece ter adquirido plena
consciência da importância do uso do poder político como instrumento na defesa
de seus interesses, valores e moralidade. Tal compreensão de como se
processam as relações de poder numa democracia tem servido igualmente para
induzir e justificar seu paulatino enraizamento, sua permanência e seu ativismo no
jogo político e na vida pública. Daí que, a despeito do desgaste de imagem das
igrejas pentecostais decorrente de denúncias e escândalos8 envolvendo seus
representantes políticos desde a Constituinte, é improvável que propostas
apolíticas, quietistas e de privatização do religioso readquiram a supremacia
ideológica nas cúpulas das denominações pentecostais e revertam seu crescente
ativismo político.
Avanços e tropeços
Nas duas décadas seguintes à Constituinte, o conjunto dos evangélicos,
sob a liderança dos pentecostais, ampliou sua representação política no
Congresso Nacional, mas não de forma linear, já que tiveram altos e baixos no
8
Ocorreram escândalos envolvendo parlamentares evangélicos na Constituinte, na CPI dos
Anões do Orçamento e, mais recentemente, na CPMI das Sanguessugas, que denunciou 26
deputados e um senador evangélicos como participantes da máfia das sanguessugas, atingindo
quase a metade da bancada evangélica no Congresso Nacional.
122
Ricardo Mariano
período, em razão principalmente da irrupção de casos de corrupção. Em 1990,
por conta dos escândalos de fisiologismo e corrupção envolvendo diversos
parlamentares evangélicos durante a Constituinte e pela menor arregimentação e
mobilização pré-eleitoral da Assembleia de Deus, a bancada evangélica caiu para
23 deputados federais. Em 1994, elegeram-se 30, sendo 26 deputados e 4
senadores. Em 1998, foram 49 parlamentares. Em 2002, alcançaram 59
deputados federais e quatro senadores, a maior bancada evangélica formada até
então, dobrando o número de parlamentares eleitos na Constituinte de 1988.
Em 2006, a expectativa geral dos evangélicos era a de ampliar ainda mais
o número de seus representantes na Câmara dos Deputados. Mas o escândalo
das sanguessugas – denúncias de superfaturamento e distribuição de propinas na
compra de ambulâncias por prefeituras –, eclodido em plena campanha política,
prejudicou fortemente seu desempenho eleitoral. Em 10 de agosto de 2006, a
CPMI das Sanguessugas aprovou o relatório recomendando a abertura de
processo de cassação de 26 deputados e um senador evangélicos, o que
representava quase a metade da Frente Parlamentar Evangélica (Mariano, Hoff e
Dantas, 2006a). Para dilapidar ainda mais sua reputação política e religiosa nesse
episódio, alguns parlamentares evangélicos foram denunciados como os
principais artífices da máfia das sanguessugas.
Esse grave incidente feriu o elevado orgulho moral desse grupo religioso
minoritário no país, que se julga detentor de uma ética superior porque derivada,
a seu ver, de sua união exclusiva ou monopólica com o Deus verdadeiro. Tal
autoavaliação moral sempre constituiu poderosa bandeira eleitoral brandida por
candidatos evangélicos para legitimar seu ingresso e participação na política
partidária e para conquistar a preferência eleitoral de seus irmãos de fé, uma vez
que seu projeto político consiste justamente em evangelizar e moralizar a política
partidária mediante a eleição de seus “homens de Deus”. Diante do escândalo,
tamanha autoestima sectária resultou numa espécie de ressaca moral nesse meio
religioso e, no plano eleitoral, num impacto negativo para as pretensões políticas
de candidatos e algumas cúpulas eclesiásticas nas eleições de 2006.
Os fiéis não perdoaram seus representantes políticos denunciados. Dos 60
membros da Frente Parlamentar Evangélica, somente 15 foram reeleitos.
Nenhum dos acusados pela CPMI conseguiu reeleger-se. As igrejas mais
Pentecostais e política no Brasil
123
atingidas pelo escândalo foram justamente aquelas dotadas de ativismo político
mais destacado e maior êxito eleitoral: Assembleia de Deus e Universal do Reino
de Deus. Dos 22 deputados federais da Assembleia de Deus, 10 foram acusados
de participar da máfia das sanguessugas. Dos 16 deputados da Universal, 14
foram denunciados. Como resultado, a Assembleia caiu de 22 para 16 deputados.
A Universal declinou de 16 para 7 deputados. 9 No cômputo final, o tamanho da
bancada caiu de 60 para 49 deputados federais, número que inclui os suplentes
que posteriormente assumiram mandatos. Com isso, foram eleitos 16 deputados
da Assembleia de Deus, 11 batistas, sete da Universal, três luteranos (um dos
quais, o gaúcho Júlio Redecker, morreu num acidente aéreo), dois da Maranata,
dois da Sara Nossa Terra, dois da Internacional da Graça de Deus, um da
Comunidade do Carisma, um da Renascer em Cristo, um presbiteriano e um da
Cristã Evangélica. Nesta legislatura, ao todo a bancada evangélica no Congresso
Nacional é composta por 34 parlamentares pentecostais e 14 protestantes,
vinculados a 13 denominações e a 12 partidos políticos, sendo maior a
participação do PMDB, com nove integrantes, seguido pelo PR, com sete, pelo
DEM, com seis, pelo PSC, com cinco, e pelo PT, PRB e PTB, com três cada,
entre outras agremiações partidárias. Dos 49 eleitos, cinco são do sexo feminino.
Quanto a seu perfil social e profissional, cerca de 80% deles possuem curso
superior completo e seis superior incompleto, sendo que 12 formaram-se em
teologia e nove efetuaram mais de um curso superior. Quinze são empresários e
doze trabalham com mídia eletrônica como apresentadores de programas de
rádio e televisão, cantores e compositores e funcionários de emissoras
evangélicas.
Universal do Reino de Deus e Assembleia de Deus reagiram de formas
distintas para lidar com a crise desencadeada pelas denúncias. A Universal,
escaldada por vasta série de escândalos políticos, empresariais e religiosos
pregressos, afastou imediatamente os parlamentares denunciados e retirou-lhes
seu apoio eleitoral. Já a Assembleia de Deus, apesar de instaurar sindicância
interna para apurar os fatos, insistiu em apoiar oficialmente vários políticos
9
A derrocada eleitoral da Universal em 2006 sob o impacto do escândalo das sanguessugas
constitui forte inflexão em sua meteórica ascensão política. Em 1986, elegeu um deputado federal.
Em 1990, foram três. Quatro anos depois, seis. Em 1998, 17 deputados federais, sendo 14 da
própria igreja. Em 2002, elegeu 16 deputados federais e um senador (Oro, 2003, p. 53-54).
124
Ricardo Mariano
acusados pela CPMI. O presidente do Conselho Político Nacional da CGADB,
pastor Ronaldo Fonseca, afirmou que sete denunciados da igreja eram inocentes
e julgou que sua acusação constituía uma jogada de seus adversários políticos,
visando reduzir o tamanho da bancada evangélica para facilitar a aprovação de
projetos polêmicos, como a descriminalização do aborto. 10 A solução adotada
pelo comando político assembleiano, portanto, foi lançar mão de uma tese
conspiratória e persecutória para lidar com o problema e tentar abafar o caso no
interior da denominação. A decisão tomada, além de pôr sob suspeita a própria
autoridade moral da liderança política da denominação e de demonstrar sua
inabilidade para atuar como relações públicas e proteger a imagem da igreja, não
surtiu os efeitos desejados, uma vez que o eleitorado assembleiano decidiu punir
nas urnas os candidatos da igreja denunciados pela CMPI. Coube aos fiéis e
eleitores assembleianos estabelecerem uma barreira ética aos candidatos
denunciados da denominação.
O escândalo suscitou críticas atrozes nos meios evangélicos, como as do
pastor Ricardo Gondim, líder da Assembleia de Deus Betesda, segundo o qual “o
Brasil descobriu que tem lobos vestidos de pastores”. 11 No artigo, Gondim
defendeu ser preciso realizar uma “reforma ética entre os evangélicos”. Nesse
intento, admoestou os líderes evangélicos a não “permanecerem de braços
cruzados, corporativamente defendendo meliantes fantasiados de sacerdotes”.
Frente Parlamentar Evangélica
Como estratégia para minimizar os efeitos deletérios sobre seus
representantes parlamentares e suas denominações em decorrência das
gravíssimas denúncias da CPMI contra metade da bancada evangélica, bispo
Robson Rodovalho (DEM/DF), líder da Sara Nossa Terra, logo após sua eleição a
deputado federal em 2006 ventilou a proposta de substituir a Frente Parlamentar
Evangélica pela criação de uma frente parlamentar cristã, incluindo os políticos
católicos, proposta que não vingou. 12 A Frente Parlamentar Evangélica foi
10
http://www.congressoemfoco.com.br/Noticia.aspx?id=10539
http://www.alcnoticias.org/articulo.asp?artCode=4669&lanCode=3
12
http://congressoemfoco.ig.com.br/Noticia.aspx?id=10542
11
Pentecostais e política no Brasil
125
mantida na atual legislatura, sendo sua diretoria substituída completamente, já
que seu presidente anterior (Adelor Vieira) e três vice-presidentes não
conseguiram se reeleger, sugados ralo abaixo pelas acusações da CPMI. A
Frente Parlamentar saiu fragilizada do escândalo das sanguessugas. Para sua
presidência no biênio 2007/2008, foi eleito, por unanimidade, o bispo Manoel
Ferreira, líder da Convenção Nacional de Madureira das Assembleias de Deus
(Conamad), em 14 de março de 2007. Na gestão seguinte, o vice de Manoel
Ferreira, o deputado assembleiano João Campos (PSDB/GO), assumiu a
presidência da Frente.
Manoel Ferreira (PTB/RJ) e João Campos (PSDB/GO) não perderam
tempo na defesa dos interesses institucionais e corporativos das igrejas
evangélicas. Já no início do mandato afirmaram ter conseguido “junto ao líder do
Governo na Câmara dos Deputados, deputado José Múcio Monteiro (PTB/PE),
negociar acordo para inclusão do Artigo 24 na MPV 335/2006, possibilitando a
regularização dos templos religiosos edificados em áreas públicas da União”. 13
A Frente Parlamentar Evangélica, criada em 18 de setembro de 2003, de
caráter suprapartidário e supradenominacional e presente nos estados, celebra
um culto semanal às quartas-feiras e realiza reuniões mensais, nas quais parte de
seus membros discute temas de interesse de suas igrejas, recebe orientação e
articula estratégias coletivas de ação. Para assessorá-la e monitorar os assuntos
do interesse das denominações, a Frente Parlamentar Evangélica criou o Grupo
de Assessoria Parlamentar Evangélica (GAPE), composto por assessores de
deputados evangélicos. 14 Na legislatura passada, o GAPE, que deixou de
funcionar posteriormente, monitorava propostas do governo e projetos de lei, por
exemplo, sobre a união civil de pessoas de mesmo sexo, a descriminalização do
aborto, a lei da biossegurança, o Estatuto da Cidade, os meios de comunicação,
visando orientar a reação e atuação parlamentar dos deputados evangélicos.
Como afirma o deputado João Campos, a Frente tem “como missão influenciar as
políticas públicas do governo, defendendo a sociedade e a família no que diz
respeito à moral e aos bons costumes”. 15 Em entrevista 16, o Deputado Federal
13
http://joaocampos.com.br/site?pg=materia.php&id=130.
Sobre a Frente Parlamentar Evangélica e o GAPE, ver Baptista (2007).
15
http://www.joaocampos.com.br/site?pg=materia.php&id=111
16
Concedida a meu ex-bolsista de iniciação científica Toty Ypiranga de Souza Dantas.
14
126
Ricardo Mariano
Adelor Vieira (PMDB/SC), ex-presidente da Frente, enfatiza o papel da entidade:
“Hoje, nenhum projeto de maior envergadura que tenha qualquer indício de
polêmica é levado ao Plenário sem que a Frente Parlamentar Evangélica também
passe a discutir o projeto com as próprias lideranças (partidárias) e com a própria
Mesa Diretora”.
A Frente Parlamentar Evangélica constituía a terceira maior frente
parlamentar do Congresso Nacional na legislatura passada, situação que lhe
conferiu o privilégio até de sabatinar os sete candidatos à presidência da Câmara
dos Deputados, em 27 de setembro de 2005, véspera da eleição de Aldo Rebelo,
sobre temas do aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo e o Estatuto das
Cidades. 17 Tamanho poder da Frente Parlamentar facilitou à sua liderança
também o acesso a ministros e ao próprio presidente da República.
A Frente Parlamentar Evangélica, contudo, não detém o poder de obrigar
seus membros a votar uniformemente e nem se propõe a isso. Na verdade, os
deputados evangélicos tendem a votar de forma relativamente homogênea,
superando sua diversidade partidária e concorrência denominacional, apenas em
votações relativas à defesa da moral cristã e aos interesses corporativos de suas
igrejas. Nos demais casos, seus membros seguem prioritariamente orientação
partidária, as dinâmicas do processo legislativo e acordos políticos, ou razões de
foro íntimo. Apesar de não serem tolhidos pela Frente a votar uniformemente, os
deputados evangélicos são monitorados pelos coordenadores políticos das
denominações (em especial, Assembleia de Deus, Igreja Universal e Evangelho
Quadrangular) e pelas lideranças da Frente Parlamentar. Os que foram eleitos
como representantes oficiais de igrejas, sofrem pressão de suas lideranças
eclesiásticas para exercer mandatos em estrita fidelidade às crenças e aos
valores religiosos e interesses institucionais de suas denominações. Eles,
portanto, não seguem apenas seus princípios religiosos quando está em pauta a
votação de projetos que envolvam a moralidade cristã tradicional e os interesses
corporativos de suas igrejas. Nesses casos, além da orientação de seus partidos,
das injunções do Governo Federal e da pressão de grupos rivais (como
feministas, homossexuais, das áreas da saúde, ciência, educação, que se
17
http://www.adelorvieira.com.br/index.php?pag=ver_noticia&codigo=220. Em 21 de março de
2007, o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, participou de culto da
Frente Parlamentar Evangélica.
Pentecostais e política no Brasil
127
orientam por argumentos e valores laicistas), eles são invariavelmente
submetidos a forte monitoramento e controle por parte dos dirigentes eclesiásticos
que os selecionaram e apoiaram como candidatos oficiais e dos membros da
Frente Parlamentar Evangélica ou dos que compartilham de sua identidade
religiosa no parlamento. Mais que isso. Para tentar reassegurar futuramente o
apoio oficial da denominação e a própria reeleição, precisam fazer jus à confiança
neles depositada e à autoridade que lhes foi delegada, necessitando, portanto,
mostrar serviço a seus padrinhos políticos e cabos eleitorais e comprovar sua
intransigência na defesa do Evangelho, da família, da moral e dos bons costumes.
Decorre disso, em parte, o elevado conservadorismo moral e a radicalidade de
alguns deputados evangélicos na defesa de certas bandeiras corporativas.
Seguem, abaixo, os dois principais exemplos denominacionais de atuação política
corporativista.
Corporativismo
É conhecida a disciplina eleitoral e política dos pastores da Igreja
Universal. A denominação realiza campanha para que seus membros jovens
obtenham título de eleitor a partir dos 16 anos; faz recenseamento eleitoral de
seus membros; a partir desses dados e da avaliação do quociente eleitoral dos
partidos, os dirigentes políticos regionais e nacionais estabelecem quantos
candidatos ao legislativo a denominação pode lançar em cada município ou
estado; distribui seus candidatos por mais de um partido; publiciza os candidatos
escolhidos nos cultos, nos meios de comunicação da igreja, em seus eventos de
massa e também por meio da distribuição de “santinhos” e da fixação de banners
nos templos; treina os fiéis a votarem em seus candidatos durante os cultos por
meio do uso de urnas eletrônicas disponibilizadas pelo Tribunal Regional Eleitoral
(Oro, 2003). Além disso, emprega artifícios discursivos, santificando os
candidatos oficiais da igreja e demonizando os adversários políticos. Durante
culto ocorrido na sede da Igreja Universal, em Porto Alegre, em 26 de julho de
2006, por exemplo, um pastor, que realizava campanha eleitoral para o bispo
Paulo Roberto (PTB/RS), alertou os fiéis: “Se derem votos aos incrédulos, um
deputado endemoniado vai prejudicar você”. O alerta maniqueísta não dá margem
128
Ricardo Mariano
a dúvidas: votar no candidato da igreja significa apoiar Deus na luta contra o
Diabo. Caso contrário, os fiéis colaboram com o Diabo, o que implica que eles
terão de arcar com o ônus de contribuir com a eleição de um endemoniado.
A férrea e eficaz disciplina político-partidária da Universal vigorou incólume
enquanto sua coordenação política esteve sob o comando do bispo e deputado
federal Carlos Rodrigues (PL/RJ). Rodrigues mandava e desmandava. Detinha
enorme poder sobre a escolha dos candidatos e sobre os deputados da igreja,
chegando a definir seus partidos, sua votação no parlamento, suas posições
políticas e até os funcionários de seus gabinetes (Baptista, 2009). Ele coordenava
e liderava a bancada com mão de ferro. Dificilmente algo do gênero será
reproduzido por outra igreja pentecostal, e mesmo pela própria Universal depois
da exclusão de Rodrigues da denominação.
De todo modo, a criação, em agosto de 2001, do projeto Cidadania AD
Brasil pela Comissão Política Nacional da CGADB demonstra cabalmente a
tentativa das lideranças eclesiásticas e políticas da denominação de controlar a
atividade parlamentar de seus representantes políticos, medida que tende a
reforçar ainda mais seu corporativismo. 18 A tentativa de exercer tal controle e
tutela sobre o mandato de seus representantes políticos não se dá de forma
personalizada, como ocorria na Universal, mas por meio da institucionalização de
um projeto político corporativo. O projeto Cidadania AD Brasil foi criado com o
propósito de ampliar, monitorar e controlar a bancada parlamentar da
denominação. Sua estrutura organizacional é composta pelo Conselho Político
Nacional, pelos Conselhos Políticos das Convenções e Ministérios estaduais e do
Distrito Federal ligados à CGADB, gradação de instâncias que, de certa forma,
dilui um pouco o poder político do Conselho Nacional.
O documento do projeto Cidadania AD Brasil apresenta justificativas para
sua criação, entre elas, “a crise moral porque passa a nação brasileira,
evidenciada principalmente na programação, quase sempre de baixo nível, da tv
brasileira e demais meios de comunicação”; e a necessidade de “manter a
vigilância na defesa da liberdade religiosa” e a de “neutralizar, enquanto
evangélicos, leis nocivas que venham agredir essa liberdade”. Entre suas
competências, o Conselho Político Nacional trata de: “fornecer uma estrutura de
18
Sobre o projeto Cidadania AD Brasil, ver Soares Filho (2006).
Pentecostais e política no Brasil
129
campanha para os candidatos” (oficiais da denominação), “assessorar o
candidato eleito durante o desempenho do seu mandato”, “organizar o Fórum
Nacional de Políticos das Assembleias de Deus”, “coordenar a escolha de um
líder da bancada na Câmara Federal”.
O documento estabelece os “critérios de escolha dos candidatos”. O
candidato oficial da igreja deve “assinar o Termo de Compromisso em que se
explicitarão as obrigações e direitos do interessado”, deve declarar o
“compromisso de posicionar-se intransigentemente contra a prática do aborto, a
legalização da união dita conjugal de pessoas do mesmo sexo e a corrupção de
qualquer natureza” e declarar que “defenderá, constantemente, a liberdade de
culto e outros interesses das Assembleias de Deus e demais igrejas”. O “manual
de orientação para candidatos” é peremptório quanto ao objetivo corporativista do
mandato parlamentar dos políticos assembleianos também, ao estabelecer que
eles devem “defender a igreja e os evangélicos, prioritariamente, tendo em mente
a discriminação com que sempre foram tratados pelos governantes”.
O processo de escolha dos candidatos, reza o documento, deve ser
conduzido da seguinte forma. O pastor deve criar uma comissão local
representativa da igreja, com a incumbência de ouvir os candidatos e, em
seguida, indicar os de sua preferência ao pastor, a quem, por sua vez, cabe
encaminhar os nomes selecionados à Comissão Política Municipal ou à Comissão
Política Estadual. Na prática, as bases de fiéis e pastores detêm pouco poder
decisório, não somente em razão do caciquismo assembleiano, mas também
porque os políticos da denominação levam vantagem sobre os candidatos sem
experiência parlamentar, por conta do critério que considera “candidato nato o
político detentor de mandato” cuja atuação estiver em conformidade com os
critérios de escolha definidos pelos conselhos políticos da CGADB. Da mesma
forma, os filhos e genros de pastores presidentes de ministérios da Assembleia de
Deus, bem como cantores, radialistas, televangelistas e empresários, costumam
ter a preferência para receber a bênção hierárquica da candidatura oficial.
Na campanha eleitoral, os pastores devem seguir as orientações das
comissões políticas estadual e municipal, que, em princípio, os proíbem de usar o
púlpito e os cultos para apresentar propostas eleitorais e os ameaçam de punição
pela Convenção Estadual e pela CGADB em caso de desonrarem o compromisso
130
Ricardo Mariano
com o candidato oficial. Isso significa que os pastores estão proibidos de apoiar
candidaturas avulsas, não oficiais. Nesse quesito, a Assembleia de Deus procura
seguir os passos da Universal, visando reservar, embora com eficácia muito
inferior, o apoio eleitoral de seus pastores exclusivamente aos candidatos oficiais
da igreja.
Seguem, abaixo, alguns exemplos da atuação política corporativista de
parlamentares pentecostais no Congresso Nacional. Antes, porém, cumpre
observar que corporativismo e clientelismo (para não dizer patrimonialismo e
fisiologismo) são práticas políticas tradicionais na cultura política brasileira, e não
prerrogativas dos políticos pentecostais (Machado, 2006, p. 46). Contudo,
corporativismo e clientelismo tendem a ser reforçados pela adoção, por parte da
Assembleia de Deus, da Universal e de outras igrejas, de representação política
acentuadamente corporativista no campo político partidário. Modelo de atuação
política que, como vimos, não é consensual e enfrenta certa rejeição nesse meio
religioso.
O pastor assembleiano e deputado federal Milton Cardias
(PTB/RS) apresentou o Projeto de Lei 1794/03, estabelecendo a
obrigatoriedade das redes abertas de televisão de veicularem
programas religiosos cristãos em horário nobre, por no mínimo
três horas diárias. 19 Em 5 de maio de 2005, Cardias apresentou a
indicação 5078/2005 sugerindo ao Ministério da Educação a
inclusão da teoria do criacionismo no currículo (nas aulas de
ciências e de história) das escolas de ensino fundamental e
médio. Já o deputado pastor Reinaldo (PTB/RS), em 9 de maio de
2006, sugeriu ao Poder Executivo, através da indicação
8897/2006, a distribuição de obras do Novo Testamento nas
escolas públicas.
Em entrevista, o ex-deputado federal assembleiano Neuton Lima
(PTB/SP), asseverou: “Nós alteramos a lei (do silêncio). O projeto
já foi aprovado na Câmara e está (em tramitação) no Senado,
incluído aí a permissão do uso da corneta externa para divulgação
das atividades religiosas de todas as denominações. Aqui na
Câmara já foi aprovada a alteração da lei do silêncio, e eu sou o
autor do projeto.”
O senador Marcelo Crivella (PRB/RJ) propôs projeto, aprovado no
Senado, que dispensa a exigência prévia de Estudo de Impacto
de Vizinhança para imóveis destinados a igrejas e templos
religiosos, visando mudar a Lei nº 10.257, de 2001, do Estatuto da
Cidade. O projeto nº 7.649 de 2006, em tramitação na Câmara
19
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp270120049993.htm
Pentecostais e política no Brasil
131
dos Deputados, foi rejeitado na Comissão de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável.
O projeto Cidadania AD Brasil, além de demonstrar o corporativismo
denominacional e o empenho assembleiano para controlar o mandato de seus
representantes políticos, revela que as motivações e justificativas apresentadas
pela liderança da Assembleia de Deus para participar na política partidária
continuam praticamente as mesmas da época da Constituinte. Isto é,
permanecem insistindo na necessidade de irmão votar em irmão para proteger os
interesses corporativos da igreja, defendê-la das ameaças à liberdade religiosa, à
família e à moral cristã e para moralizar a vida pública. Nos últimos anos, porém,
a ênfase sobre os perigos à sua liberdade cada vez mais tem recaído sobre a
ação do Estado ou sobre mudanças provenientes do ordenamento jurídico e
político. Exemplo emblemático disso foi a reação assembleiana e evangélica à
entrada em vigor do novo Código Civil em janeiro de 2003.
Liberdade religiosa e laicidade
As observações do advogado batista Gilberto Garcia, conselheiro estadual
da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, nos permitem
compreender, em parte, os insistentes reclamos pentecostais sobre as ameaças à
sua liberdade religiosa levadas a cabo pelo próprio Estado brasileiro:
Há um grande número de líderes evangélicos que gostaria que a
Igreja fosse totalmente imune a qualquer interferência do Estado,
não estando a organização religiosa submissa a qualquer
regramento legal, numa perspectiva de que o Estado não deveria
intervir em questões envolvendo a Igreja. Mas também existe um
número expressivo de igrejas que não têm conhecimento sobre as
questões organizacionais que atinem a Instituição de Fé, e, por
isso, necessitamos atuar na conscientização de que, nas questões
associativas, tributárias, trabalhistas, criminais, civis, patrimoniais,
administrativas, financeiras etc., a Igreja está submissa ao Estado
devendo cumprir as regras legais. 20
Os pentecostais frequentemente percebem sua liberdade religiosa sob
constante ameaça por parte de iniciativas políticas oriundas dos agentes estatais,
20
http://www.institutojetro.com.br/lendoentrevista.asp
132
Ricardo Mariano
entre outras razões, de um lado, por certo desconhecimento das relações
jurídicas e hierárquicas entre igreja e Estado e suas implicações, de outro, pela
tendência
irrefreável
de
absolutizar
o
princípio
da
liberdade
religiosa
desconsiderando que toda liberdade numa democracia é necessariamente
regrada pelo direito positivo e, portanto, juridicamente limitada (Blancarte, 2003).
Em parte, por conta de certo desconhecimento jurídico, da absolutização da
liberdade religiosa (uma vez que é ela que permite à igreja realizar os desígnios
divinos) e por colocar seus interesses institucionais acima de quaisquer medidas
estatais e políticas públicas, muitos desses religiosos interpretam como ameaça
direta à sua liberdade religiosa o Estatuto das Cidades (no caso, a lei de Estudo
de Impacto de Vizinhança), o novo Código Civil, a Lei do Silêncio, as políticas de
direitos humanos do Governo Federal para criminalizar a homofobia e certos
dispositivos contidos nas leis de edificação dos templos.
O temor mais recente dos evangélicos em relação à perda de sua liberdade
religiosa – e, no caso em questão, à ampliação de privilégios estatais à Igreja
Católica, o que significa discriminação estatal – envolveu o acordo (contendo 20
artigos) entre a República brasileira e a Santa Sé, assinado pelo presidente Lula
em 13 de novembro de 2008 em audiência no palácio apostólico do Vaticano e,
posteriormente, submetido à tramitação no Congresso Nacional. O texto atende à
velha demanda da CNBB e, mais recentemente, do papa Bento XVI. Entre outros
tópicos, trata do estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, do ensino religioso
nas escolas públicas e da destinação de espaços para templos no território, da
proteção estatal de lugares de culto católicos. Deputados da Frente Parlamentar
Evangélica, contando com o apoio de militantes e grupos laicistas nessa batalha,
manifestaram franca oposição ao acordo. O pastor assembleiano e deputado
Pedro Ribeiro (PMDB-CE), membro da Frente Parlamentar Evangélica, defende
que “o acordo fere a laicidade, a isonomia e a soberania nacional, além da
liberdade religiosa. Com ele, se explicita o reconhecimento do ensino católico nas
salas de aula”, denuncia Ribeiro. 21
Apesar de ser vinculado à Frente Parlamentar Evangélica e membro de
uma denominação cuja atuação política corporativista parece ter por objetivos
confessionalizar a política partidária e conquistar o Estado para Cristo, o deputado
21
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/31/e310329131.asp
Pentecostais e política no Brasil
133
pentecostal defende a laicidade estatal. Diante do caso específico em pauta, a
razão de sua manifestação em prol da laicidade é óbvia: impedir o acordo entre
Estado brasileiro e Vaticano em benefício da Igreja Católica. A oportuna
conversão laicista do referido deputado não causa maiores surpresas, já que a
laicidade estatal apregoa o tratamento isonômico do Estado aos diferentes grupos
religiosos sob sua jurisdição, preceito que interessa sobremaneira às religiões
minoritárias, que tentam por todos os meios evitar sua discriminação, sobretudo
recorrendo aos recursos legais à disposição. Por outro lado, porém, o ideal do
Estado laico, oriundo do velho liberalismo político que tanto mobilizou e ainda
mobiliza diversos grupos laicistas, especialmente acadêmicos, não é neutro em
relação a outros valores e interesses, uma vez que a laicidade estatal está ligada
“aos valores da República, da democracia, da tolerância, da liberdade e da
pluralidade” (Blancarte, 2000). De modo que a defesa e afirmação da laicidade
estatal e de seu corolário volta e meia opõe-se frontalmente a diversos valores,
princípios e interesses dos grupos religiosos, sobretudo daqueles agressivamente
proselitistas, antiecumênicos e dotados de pretensões universalistas. Com efeito,
opõe-se radicalmente à confessionalização da política partidária e da esfera
pública. O caráter agonístico do processo de secularização e, em particular da
laicização jurídico-política, em diferentes contextos históricos por si só demonstra
a inexistência de neutralidade axiológica na constituição do Estado laico e na
implementação de políticas públicas laicistas, que ocorrem geralmente às custas
do declínio do poder eclesiástico na esfera pública e, em especial, no ensino
público.
Num Estado democrático de direito, as diferentes agremiações religiosas
detêm, formalmente, o pleno direito a divulgar suas doutrinas religiosas e seus
valores morais, a defender seus interesses institucionais, a vocalizar suas
preferências políticas e a desempenhar certos papéis na esfera pública, entre os
quais sobressai o tradicional papel assistencial. A separação jurídica entre Estado
e Igreja, portanto, não implica necessariamente a privatização do religioso ou a
sua circunscrição à particularidade das consciências privadas nem resulta
automaticamente no impedimento de que ambos colaborem no interesse do bem
comum. Por outro lado, porém, cabe aos agentes do Estado democrático zelar
pelo respeito à tolerância, à liberdade, ao pluralismo, à isonomia no tratamento
134
Ricardo Mariano
governamental concedido aos diferentes grupos religiosos. Para tanto, muitas
vezes ao Estado cumpre evitar que a religião dominante em especial, mas não
somente ela, abuse de seu poder religioso, econômico, midiático e político para
discriminar e perseguir seus concorrentes religiosos ou minorias sexuais, ou,
como ocorre de forma atávica com grupos dotados de pendores fundamentalistas,
integristas e sectários, para tentar impor suas práticas particulares e sua
moralidade estrita e restritiva ao conjunto dos cidadãos. A laicidade estatal visa,
portanto, assegurar a efetividade de práticas e valores democráticos, como a
liberdade, a tolerância e a isonomia no tratamento dos diferentes grupos
religiosos, sem interferir em suas disputas por mercado religioso, a não ser
quando suas ações ultrapassam os limites legais. De modo que o zelo estatal
pelo respeito à tolerância, à liberdade e ao pluralismo – quando exercido
legitimamente em conformidade com os instrumentos jurídico-políticos à sua
disposição – constitui o instrumento central dos Estados democráticos de direito
para assegurar a própria efetividade dessas práticas, valores e preceitos
democráticos.
Na prática, nenhum Estado nacional é neutro em matéria religiosa, muito
menos o brasileiro. Como se sabe, o Estado brasileiro tradicionalmente
apresentou uma série de vínculos com a Igreja Católica, que foi braço religioso e
ideológico do colonialismo português nas terras do Pau-Brasil e religião oficial do
Império, antes de sua separação do Estado com o advento da República. Mesmo
com a separação laicista, nosso Estado jamais promoveu a privatização do
religioso, e ainda perseguiu e discriminou religiões minoritárias, especialmente as
afro-brasileiras.
A
Constituição
de
1934,
expressando
o
fortalecimento
institucional e político da Igreja Católica na República velha e a fragilidade política
do governo Vargas, estabeleceu a “colaboração de interesse público” entre igreja
e Estado no país. Tal dispositivo jurídico fez retroceder a laicidade estatal e
fortaleceu os laços do Estado com a Igreja no período republicano, laço que se
esgarçou somente com o recrudescimento da ditadura militar em 1968.
As relações entre política e religião, da mesma forma, grassaram em
diferentes fases e contextos da vida política nacional. Com o avanço numérico
dos pentecostais e seu ingresso no jogo político partidário, eles, além de
formarem sua própria representação parlamentar, tornaram-se interlocutores,
Pentecostais e política no Brasil
135
aliados, parceiros e cabos eleitorais de políticos profissionais e de governantes de
plantão. A partir da Constituinte de 1988, as alianças e disputas dos
representantes parlamentares desse movimento religioso com os agentes
públicos estatais passaram a ocorrer no próprio interior das instituições políticas
brasileiras, sobretudo legislativas. Eles se unem volta e meia aos representantes
católicos no Congresso Nacional contra projetos de lei que contrariam a moral
cristã tradicional. Frequentemente, ambos enfrentam juntos os grupos, bandeiras,
projetos e políticas públicas laicistas na esfera pública.
O Acordo bilateral e internacional do governo Lula com o Vaticano
assinado em 13 de novembro de 2008, porém, colocou evangélicos e católicos
em lados diametralmente opostos no parlamento. Num primeiro momento, para
tentar impedir a aprovação do Acordo no Congresso Nacional, parlamentares
pentecostais, ironicamente, se lançaram como ardorosos defensores da laicidade.
Laicidade que, várias décadas atrás foi defendida genuinamente por seus
antepassados protestantes em solo nacional, tanto em razão de seu liberalismo
político como, estrategicamente, por seu diminuto tamanho numérico numa nação
então quase inteiramente católica. Em seguida, diante da força política do pleito
católico e de sua provável aprovação no Congresso Nacional, surgiu a iniciativa,
tomada por um parlamentar da Igreja Universal, de recorrer a outro expediente:
lançar um projeto de lei copiando o teor do Acordo católico com o Estado para
beneficiar os evangélicos e, de quebra, demais grupos religiosos. Nomeado Lei
Geral das Religiões, o projeto fia-se na defesa de tratamento isonômico que o
Estado brasileiro, por ser laico, deve conceder aos diferentes grupos religiosos e
na crença de que deputados federais e senadores não teriam coragem política de
discriminar negativamente evangélicos e demais grupos religiosos, opondo-se à
aprovação de seu projeto de lei, cujo conteúdo assemelha-se ao acordado pela
Santa Sé com o governo brasileiro.
Nesta matéria não é a liberdade religiosa dos evangélicos que está sendo
colocada em xeque. A aprovação do Acordo somente com a Igreja Católica
representa uma discriminação estatal, isto é, a concessão de um tratamento
privilegiado pelo Estado ao grupo religioso hegemônico em detrimento dos
demais. O que se verifica neste episódio é que a consolidada situação de
pluralismo religioso no país, de um lado, e a crescente representação política dos
136
Ricardo Mariano
evangélicos, de outro, colocam sérios obstáculos à continuidade e à consecução
de tratamento discriminatório por parte dos agentes públicos. Pressionados, eles
se vêem constrangidos a rejeitá-lo ou, em caso de aprová-lo, a efetuar medidas
compensatórias. Portanto, é ao princípio da laicidade que recorrem os grupos
religiosos minoritários no Brasil, incluídos os que procuram confessinalizar a
política e a esfera pública, quando se vêem discriminados pelo Estado ou na
iminência de sê-lo. Assim, por vias tortas, colaboram para fortalecer a laicidade
estatal. Por outro lado, seus pleitos (e seu projeto político corporativista) e os da
religião hegemônica neste caso específico contribuem para minimizar a laicidade
estatal ao proporem, por exemplo, a confessionalização da disciplina de ensino
religioso (disciplina que já confronta a laicidade do ensino público). A atuação
política dos pentecostais pode contribuir tanto para favorecer como para
prejudicar a laicidade estatal no Brasil. De modo geral, porém, as igrejas e
políticos pentecostais (ao lado da Igreja Católica), por conta de suas orientações
e propostas tradicionalistas em questões de ordem moral, estão entre os
principais adversários dos grupos laicistas do país.
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138
Ricardo Mariano
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
Airton Luiz Jungblut
No Brasil só é possível notar a configuração daquilo que antropólogos e
sociólogos da religião chamam de uma “situação de mercado” ou de “situação
pluralista e concorrencial” da religião em meados do século XX (Mariano,
2003:115). Com a modernização tecnológica dos meios de comunicação de
massa, esse processo visivelmente se acelerou e ganhou novas dinâmicas. Já
está bem documentado na literatura especializada o uso que diversos grupos
religiosos fizeram nas últimas décadas dos meios de comunicação de massa para
posicionarem-se mercadologicamente nesse novo nicho que surgiu. Contudo, em
relação ao impacto mercadológico que o uso religioso da comunicação mediada
por computador (Internet), ainda se nota uma grande carência de pesquisas e
análises. A intenção neste capítulo é abordar esse tema a luz de algumas
reflexões preliminares sobre a noção de “mercado religioso” proposta por Peter
Berger e de análises das lógicas que animam os usos da Internet, em geral, e o
uso que indivíduos e grupos religiosos vêm fazendo dessa mídia, em particular.
1. Secularização, mercado religioso e individualismo
Segundo Berger, um dos autores que mais se notabilizou por postular que
a secularização e o desencantamento do mundo têm explicações no próprio
processo de desenvolvimento da religião ocidental, seria a tradição judaico-cristã
que traria consigo o gérmem desencadeador desses processos. Isso teria
ocorrido em parte pela “transcendentalização de Deus” operada por essa tradição
desde o Antigo Testamento. Ao propor um Deus que “está fora do cosmos”, o
Antigo Testamento teria criado condições para o desencantamento do mundo e
isso traria consequências para a valorização do indivíduo como sujeito histórico.
Conforme diz Berger:
Pode-se dizer que a transcendentalização de Deus e o
concomitante ”desencantamento do mundo” abriram um “espaço”
para a história, como arena das ações divinas e humanas.
Aquelas são realizadas por um Deus que está inteiramente fora do
mundo; estas pressupõem uma considerável individuação na
concepção do homem. O homem aparece como ator histórico
diante da face de Deus (o que é muito diferente, diga-se de
passagem, do homem como ator diante do destino, como na
tragédia grega). Assim, os homens são vistos cada vez menos
como
representantes
de
coletividades
concebidas
mitologicamente, como era típico do pensamento arcaico. Mas,
são vistos como indivíduos únicos e distintos que desempenham
atos importantes como indivíduos. (Berger, 1985:131)
O autor, no entanto, ressalva que não se trata de afirmar que o Antigo
Testamento
manifeste
antecipadamente
aquilo
que
conhecemos
como
individualismo moderno, mas, antes sim, que com ele “cria-se um quadro de
referência religioso para a concepção do indivíduo, sua dignidade e sua liberdade
de ação” e que isso tem inegável importância para a “história do mundo” (op. cit.
p. 131/2).
Além da “transcendentalização de Deus” e da consequente “historicização”
da ação individual no mundo a ela associada, Berger também vê no Antigo
Testamento um “traço de racionalização ética”. Esses escritos sagrados trariam
em si ensinamentos éticos capazes de impor racionalidade à vida e isso, junto
com os fatores anteriores, seria como que o tripé que permitiria afirmar que o
desencantamento e a secularização do mundo encontram-se em estado germinal
na própria tradição judaico-cristã. Falando desse terceiro traço, Berger afirma:
Um elemento de racionalização estava presente desde o início,
sobretudo por causa do caráter antimágico do javismo. Esse
elemento foi ‘mantido’ tanto pelo grupo sacerdotal quanto pelo
profético. A ética sacerdotal (como se vê no Deuteronômio, na sua
expressão monumental) era racionalizante ao excluir do culto
qualquer elemento mágico ou orgiástico e também ao desenvolver
a lei religiosa (torah) como a disciplina fundamental da vida
cotidiana. A ética profética era racionalizante ao insistir na
totalidade da vida como serviço de Deus, impondo, assim, uma
estrutura coesa e, ipso facto, racional a todo o espectro das
atividades cotidianas. (Berger, 1985:132/3)
Berger sugere, então, que esse traço de racionalização da vida cotidiana
do qual o Antigo Testamento teria fornecido os princípios tenha se tornado “eficaz
na formação do Ocidente moderno por meio de sua transmissão pelo
cristianismo” (op. cit. p. 133). Contudo, adverte para o fato de que o catolicismo
140
Airton Luiz Jungblut
durante o período que dominou monopolisticamente a cristandade ocidental teria
representado “um passo atrás em termos de secularização da religião do Antigo
Testamento”. Isso teria ocorrido porque o catolicismo com sua doutrina trinitarista
e com seu “encarnacionismo” teria repovoado o espaço entre o homem e Deus
por uma série de mediadores (anjos, santos, Maria, etc.) que teriam alterado
significativamente o modelo judaico de transcendentalização de Deus e com isso
“reencantado” ou “remitologizado” o mundo (op. cit. p. 134). Além disso, segundo
esse autor, o catolicismo teria barrado o processo de racionalização ética
presente no judaísmo:
Na verdade, o catolicismo latino absorveu um legalismo altamente
racional herdado de Roma, mas seu penetrante sistema
sacramental
proporcionou
inúmeras
”saídas”
da
total
racionalização da vida postulada pelo profetismo do Antigo
Testamento ou pelo judaísmo rabínico. O absolutismo ético do tipo
profético foi segregado de modo mais ou menos seguro nas
instituições monásticas e, assim, evitou-se que ”contaminasse” o
corpo da cristandade como um todo. Novamente, modificou-se e
abrandou-se a rigidez das concepções religiosas israelitas, exceto
para aqueles poucos que escolheram a vida ascética. A nível
teórico, pode-se dizer que a visão católica da lei natural
representa uma ”renaturalização” da ética; num certo sentido,
seria um retorno à continuidade divino-humana do ma’at egípcio
do qual Israel saiu para o deserto de Iahweh. A nível prático, a
piedade e a moral católicas proporcionavam um tipo de vida que
tornava desnecessária qualquer racionalização radical do mundo.
(Berger, 1985:135)
Por outro lado, o catolicismo, conforme coloca o autor, teria permanecido
“inteiramente histórico em sua visão de mundo” ao manter operante a teodiceia
bíblica, o que teria contribuído para conservar, ao menos de forma latente, seu
“ímpeto revolucionário” potencialmente secularizante, permitindo, ao menos
teoricamente, a ação transformadora na história (op. cit. p. 135). Além disso,
segundo Berger, o catolicismo contribuiu involuntariamente com a secularização
ao instituir-se – e isso de forma inédita na história da religião – segundo um
modelo de “especialização institucional de religião”, ou seja, estruturando-se
como “uma instituição especificamente relacionada à religião em contraposição a
todas as outras instituições da sociedade” (op. cit. p. 135-6).
Mas, segundo Berger, é com a Reforma protestante que efetivamente o
cristianismo, ou uma parte importante dele, retoma “aquelas forças secularizantes
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
141
que tinham sido ‘contidas’ pelo catolicismo, não apenas voltando ao Antigo
Testamento nesse processo, mas indo além dele” (op. cit. p. 137). Se Berger não
chega a explicar detalhadamente, no texto que aqui está se utilizando, como isso
veio a ocorrer, muito provavelmente é porque deve ter tido em mente todo o
quadro construído por Weber, no qual o protestantismo aparece como o instituidor
de uma ética religiosa de relacionamento com o mundo que teria contribuído
profundamente para a instituição da racionalidade moderna, particularmente
aquela requerida pela empresa capitalista.
O que Berger acrescenta de original à compreensão do papel do
protestantismo no processo de secularização está relacionado fundamentalmente
à importância do pluralismo provocado pela emergência desse movimento no seio
da religião ocidental. Segundo Berger, existiria na tradição cristã ocidental um
“potencial pluralístico” que só encontra sua possibilidade de emergência quando
se rompe o monopólio religioso da Igreja Católica sobre o cristianismo e quebrase a sua unidade com o advento da Reforma protestante. Essa situação irrompe,
segundo o autor, a partir das Guerras de Religião. Estas, apesar de serem
guerras pelo “controle monopolístico sobre seus territórios”, entre protestantes e
católicos, têm o mérito histórico de romper definitivamente com a unidade da
cristandade ocidental. Assim, houve condições para que tivesse início “um
processo que facilitou muito futuras fragmentações e que, mais por razões
práticas que por razões ideológicas, levou a uma crescente tolerância a grupos
religiosos divergentes, quer entre os católicos, quer entre os protestantes” (op. cit.
p. 148).
Esse pluralismo surgido com a Reforma protestante desenvolve-se,
contudo, mais eficientemente nos Estados Unidos, resultando, segundo Berger,
“no estabelecimento de um sistema de denominações mutuamente tolerantes que
persistiu até hoje” e, dado o sucesso deste sistema em organizar a pluralidade
religiosa, acabou por virar “um produto de exportação com atração internacional”
(op. cit. p. 148-9). Mas, o que torna o sistema denominacionalista de interesse
para se compreender a secularização é a natureza competitiva que o caracteriza:
No tipo americano de denominacionalismo (…), diferentes grupos
religiosos, todos com o mesmo status legal, competem uns com
os outros. O pluralismo, todavia, não se limita a esse tipo de
142
Airton Luiz Jungblut
competição intra-religiosa. Como resultado da secularização, os
grupos religiosos também são levados a competir com vários
rivais não-religiosos na tarefa de definir o mundo, alguns dos
quais altamente organizados (como os sistemas de valores
modernos do ‘individualismo’ ou da emancipação sexual). (Berger,
1985:149)
Mas essa situação tendeu a se consolidar, segundo Berger, para além das
sociedades cujo denominacionalismo é o sistema de relacionamento entre os
diversos grupos religiosos existentes. Ela seria operante em qualquer lugar onde
“ex-monopólios religiosos são forçados a lidar na definição da realidade com rivais
socialmente poderosos e legalmente tolerados” (op. cit. p. 149). O que, em outras
palavras, significa dizer que ocorre onde tenha se consolidado um Estado laico,
ou seja, onde a religião tenha se transformado numa esfera social autônoma em
relação a outras que compõem a sociedade. O importante dessa situação em que
o pluralismo torna-se uma realidade a ser administrada pelos diversos grupos
religiosos é que ela passa a se fundamentar numa lógica de mercado como
demonstra Berger:
A característica-chave de todas as situações pluralistas, quaisquer
que sejam os detalhes de seu pano de fundo histórico, é que os
ex-monopólios religiosos não podem mais contar com a
submissão de suas populações. A submissão é voluntária e,
assim, por definição, não é segura. Resulta daí que a tradição
religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade,
agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser
“vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a
“comprar”. A situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de
mercado. Nela, as instituições religiosas tornam-se agências de
mercado e as tradições religiosas tornam-se comodidades de
consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade
religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da
economia de mercado. (Berger, 1985:149)
Essa situação, segundo o que mostra Berger, torna a existência dos grupos
religiosos sujeita a uma série de cálculos mercadológicos. Uma vez que é preciso
disputar fiéis, torna-se necessário, entre outras coisas, uma certa racionalização
burocrática para fazer frente às necessidades de manutenção e expansão dos
grupos religiosos. É preciso, por exemplo, estar atento às tendências do mercado
e, nesse exercício, até mesmo as influências mundanas tendem a modificar os
conteúdos dos apelos dos grupos religiosos, pois, em última análise, o que está
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
143
em jogo é “a dinâmica da preferência do consumidor” (op. cit. p. 156). Outrossim,
nesse processo em que os conteúdos religiosos passam a ser relativizados como
meros produtos de consumo, a religião parece efetivamente ter sua existência
orientada para a interioridade do indivíduo:
A situação pluralista multiplica o número de estruturas de
plausibilidade concorrentes. Ipso facto, relativisa seus conteúdos
religiosos. Mais especificamente, os conteúdos religiosos são
”desobjetivados”, isto é, são desprovidos de seu status como
realidade objetiva e evidente na consciência. Tornaram-se
‘subjetivados’ num duplo sentido: sua ‘realidade’ torna-se um
assunto ‘privado’ dos indivíduos, isto é, perde a qualidade de
plausibilidade intersubjetiva evidente por si mesma (‘não se pode
mais conversar’ sobre religião, portanto); por outro lado, na
medida em que ela ainda é mantida pelo indivíduo, ela é
apreendida como sendo enraizada na consciência deste e não em
facticidades do mundo exterior – a religião não se refere mais ao
cosmos ou à história, mas à Existenz individual ou à psicologia.
(Berger, 1985:162)
Retomando os pontos levantados até aqui, tem-se, então, um quadro que
mostra que em escala considerável a tradição judaico-cristã a partir de certos
aspectos contidos em sua cosmovisão, e dentro dela, mais efetivamente o
protestantismo, contribuíram com processos que direta ou indiretamente
favoreceram o desenvolvimento do individualismo ocidental. Como se viu, o
Antigo Testamento carrega em si os gérmens da uma visão de mundo que
postula que o indivíduo é concebido como sujeito ativo na história, já que Deus
estaria fora do Mundo (transcendentalizado) e que não existiria nenhum tipo de
mediações entre ele e os homens, nem práticas rituais que pudessem interferir
magicamente nos destinos humanos. Além disso, o conteúdo ético dessas
escrituras sagradas postula uma ação racionalizante na vida cotidiana, o que em
si favorece a secularização e o desencantamento do mundo e, além disso, como
demonstra
Weber
no
caso
específico
do
protestantismo,
conduz
ao
individualismo, já que ao racionalizar a ação do homem no mundo este tende a
privilegiar relações do tipo individualistas-empresariais em detrimento as de tipo
familiar comunal.
Embora, como demonstra Berger, o catolicismo tenha, durante os vários
séculos em que monopolizou a cristandade no ocidente, agido como um inibidor
dessas tendências secularizantes, desencantadoras e individualizantes na
144
Airton Luiz Jungblut
tradição judaico-cristã ocidental, elas irromperam com toda a energia com a
Reforma protestante. Esse movimento, além de ter retomado e desencadeado a
efetiva
consolidação
dessas
tendências,
fez
ainda
quebrar
a
unidade
monopolística da cristandade ocidental da qual o catolicismo era o gerenciador.
Com isso emergiu o pluralismo na religião ocidental o que levou posteriormente a
que os diversos grupos dispersos na pluralidade tivessem que se valer de uma
lógica de mercado. Ocorre, então, que mais uma vez o individualismo moderno se
beneficia dessa transformação, pois como demonstra Berger, o pluralismo, ao
transformar as pessoas em consumidores de “produtos” religiosos oferecidos
pelas diversas agências do sagrado disponíveis no mercado, multiplica as
“estruturas de plausibilidade”, as possibilidades de crença a partir de conteúdos
religiosos variados, ao gosto do consumidor. Por consequência, a religião se
transforma numa crença experimentada muito mais individualmente do que
coletivamente, já que é o indivíduo que, em última instância, é que detém o poder
de arbitrar o que é ou não passível de ser aceito como plausível em relação à
religião. Mesmo fazendo parte de coletividades religiosas – o que, diga-se de
passagem, para muitos não é nem mais necessário – é o indivíduo quem decide
quais traços religiosos expressos na coletividade são os que devem ser
enfatizados, relegados em segundo plano ou ignorados. O indivíduo, em última
instância, transforma-se no gestor quase absoluto da cosmovisão de que se diz
crente. Trata-se, portanto, de um poder adquirido pelo indivíduo, de autonomia
individual frente às tradições religiosas.
2. Comunicação mediada por computador e mercado religioso
Religião e comunicação costumam andar juntas. A história da humanidade
está repleta de exemplos dessa articulação, principalmente quando resulta bem
sucedida. As grandes religiões que mais se disseminaram pelo planeta são casos
exemplares a atestar os benefícios do uso de estratégias comunicativas na
difusão de mensagens salvacionistas. Basta lembrar o sucesso que “religiões do
livro” como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo tiveram. No cristianismo,
impossível não lembrar também dos proveitos que o protestantismo soube tirar no
século XVI da Revolução Gutemberguiana – fato que Lutero considerou “a maior
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
145
graça de Deus” (Briggs & Burke, 2004:38) – e também da expansão do
pentecostalismo norte-americano através do televangelismo (rádio e televisão) no
século XX (Cf. Gurtwirth, 1998).
Nos dias atuais, quando assistimos aos Meios de Comunicação de Massa
(MCM) cederem espaço à Comunicação Mediada por Computador (CMC) tornase bastante pertinente indagar do uso que os grupos religiosos estão fazendo,
principalmente, da Internet.
Análises realizadas anteriormente (Jungblut, 2002 e 2008), dos usos que
os grupos religiosos têm feito da Internet no Brasil, apontam para uma utilização
desajeitada e pouco eficiente dos recursos possibilitados pela Internet, por parte
de grupos religiosos institucionalizados e tradicionais, ao passo que é visível uma
utilização mais eficiente desses recursos por parte de indivíduos autônomos,
sejam eles vinculados ou não a grupos e tradições consolidadas. Até onde nos é
possível verificar essa é uma realidade internacional. O que se quer dizer com
isso é que o uso religioso eficiente da Internet tem sido mundialmente muito mais
individual do que institucional. Mais do que isso, se desconfia que essa mídia não
se presta a “grandes eventos” religiosos que congreguem, apesar das facilidades
tecnológicas favoráveis, um número elevado de participantes simultâneos. Por
essa razão, não se prestando a realizar aquilo que Durkheim considerava de
fundamental importância para a existência da religião: o culto público que permite
a sociedade sentir seus efeitos quando indivíduos que a compõem estão reunidos
e agem em comum (Durkheim 1989:495). Até alguns meses atrás, não se tinha
notícia de nenhum evento religioso na Internet de grande procura e repercussão
que pudéssemos enquadrar nessa categoria. Quando se indaga sobre as razões
dessa situação, torna-se oportuno atentar para algumas lógicas que imperam
nesse novo território criado pela CMC, o chamado “ciberespaço”.
3. Algumas das lógicas do ciberespaço que devem ser lembradas aqui
Nos últimos anos, têm se acumulado uma série de diagnósticos
sociológicos e antropológicos a respeito das lógicas culturais, sociais e
comunicacionais que imperam nesse ambiente denominado ciberespaço surgido
através da emergente comunicação mediada por computador. Alguns desses
146
Airton Luiz Jungblut
diagnósticos, de lembrança oportuna para a análise aqui pretendida, apontam
para o fato de que o ciberespaço tornou-se um território livre para manifestações com uma radicalidade nunca antes experimentada - de todas as alteridades
existentes no mundo globalizado; um espaço em que qualquer pessoa dotada de
um mínimo de recursos consegue disponibilizar a centenas de milhões de
pessoas informações que considera relevantes a qualquer causa ou finalidade.
Isso ocorre devido ao fato de que todo o indivíduo na Internet tem o poder de se
transformar facilmente em publicador eficiente de textos seus ou de outras
pessoas. Para alguns analistas, isso torna finalmente realizável uma antiga
ambição das democracias modernas de tornar todo indivíduo efetivamente livre
para manifestar suas ideias, sejam lá quais forem. Essa característica do
ciberespaço deve-se ao fato de que, ao contrário dos MCM (Meios de
Comunicação de Massa), que possui uma arquitetura unidirecional um-paramuitos (um emissor / muitos receptores), a CMC (Comunicação Mediada por
Computador) possui uma arquitetura preponderantemente bidirecional muitospara-muitos (quase sempre todos são, simultaneamente, emissores e receptores).
A consequência mais notável disso, conforme observa W. Daniel Hillis, é o
surgimento de uma energética e democratizante polifonia comunicacional:
… ao contrário do que acontece nos meios de transmissão [Meios
de Comunicação de Massa], talvez haja mais bocas do que
orelhas na Internet. Isso é possível porque a Internet reduz o
limiar de publicação, o limiar de extração de informações. As
pessoas desconfiam das instituições. Não gostam de ter sua voz
limitada pelas instituições. A idéia de que podem ter o poder nas
próprias mãos e divulgar algo na Net se adapta ao clima desses
tempos, que exige autoconfiança. A energia da Web não vem das
pessoas que estão buscando informações. Vem das pessoas que
têm informações que desejam enviar ou que oferecem
mecanismos para fornecer essas informações a outras pessoas.
(Hillis, 1997:109)
Por ser, então, o ciberespaço um território tão favorecedor dessa polifonia
democratizante de que se fala, há, também, quem o perceba como recurso
tecnológico a serviço das intensas reflexividades identitárias que seriam
experimentadas pelo indivíduo contemporâneo. Verdadeira “tecnologia do eu”, o
ciberespaço, ao disponibilizar uma interminável fonte de material de confrontação
identitária, onde qualquer posicionamento pode ser defendido e/ou contestado,
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
147
seria o espaço mais apropriado possível na atualidade para as permanentes
experiências construções e reconstruções do eu contemporâneo. Esses
exercícios acabam por potencializar, em função do meio, atitudes reflexivas que
tendem para arranjos identitários conjuntivos “idiossinscréticos” (Sanchis,
1997:104-105) e permanentemente provisórios. Segundo Luis Baggioline:
O nomadismo da rede e o modo de construir subjetividades no
ciberespaço, se parecem mais a uma identidade baseada na
possibilidade, no poder ser, que na diferença e no dever ser. A
‘construção de si’ deixa de ser opositiva e disjuntiva (este ou
aquele), e se funda nas possíveis conjunções (este e aquele), o
que permite a constituição de identidades simultâneas, em
contínuo movimento de reconstrução.” (Baggiolini, 1997)
É preciso lembrar, contudo, que um território com essas características
favorece muito mais os cotejamentos identitários individuais do que as
formulações identitárias mais tradicionais e sancionadas por consensos
coletivamente institucionalizados. O ciberespaço, paraíso da permanente
reformulação identitária individual, seria, assim, lugar fecundo para processos
destradicionalizantes e desinstitucionalizantes como aqueles que assistimos no
global mercado religioso dos dias atuais.
Vejamos agora, então, como indivíduos e grupos religiosos brasileiros têm
se servido dessas lógicas ciberespaciais para ostentarem mercadologicamente
suas identidades.
4. O uso religioso da Internet no Brasil
O propósito, mais específico, neste subitem, é socializar algumas
observações e análises produzidas nestes últimos dez anos a respeito da
utilização que indivíduos, grupos e instituições têm feito da Internet para tornar
públicas no Brasil suas crenças e traços identitários religiosos. Com isso
pretende-se contribuir para a compreensão do, até certo ponto, recente mercado
religioso brasileiro, observando mais atentamente o impacto dessa nova mídia
nesse processo.
É oportuno, inicialmente, apresentar o cenário observado há dez anos,
quando a Internet começa a se popularizar no Brasil. O conhecimento desse
148
Airton Luiz Jungblut
cenário permite compreender melhor o processo de utilização religiosa dessa
mídia até os dias atuais.
Naquele momento a maioria dos neófitos em Internet que estavam a se
apropriar dessa tecnologia o faziam quase que exclusivamente através de uma
utilização simplificada da Web. Assim, além da consulta e/ou publicação de
informações apropriadas às interfaces fornecidas pelas páginas da Web, também
os recursos de interação comunicativa síncrona (chats) ou assíncronas (listas de
discussão ou grupos de notícias) – que possuem desde o início da internet
plataformas próprias – ganhavam suas versões adaptadas e simplificadas na
Web: os “web-chats” e os “web-fóruns”, respectivamente. Estes se mostravam
mais amigáveis e populares.
Naquele período a utilização de espaços evangélicos de publicação e a
presença de seus representantes em interação na Internet brasileira eram bem
mais visíveis do que a de qualquer outro grupo religioso. Vinham depois, nesse
ranking, distantes, os espíritas e, bem mais longínquos ainda, os católicos e
grupos esotéricos. Grupos afro-brasileiros eram praticamente invisíveis nesse
momento. Nas páginas da Web a forma de visibilidade mais comum das
identidades religiosas ocorria através de páginas institucionais e, em menor grau,
páginas pessoais. No caso dos espíritas eram, quase sempre, páginas
institucionais. Nos web-chats religiosos, que não eram até então segmentados
confessionalmente e estavam alojados em portais de grandes provedores, a
presença evangélica era, de longe, a mais marcante. Na maior parte do tempo, o
debate era entre crentes evangélicos, de um lado e descrentes, ateus, agnósticos,
etc., de outro. A mesma situação se repetia em relação aos chamados “fóruns de
debate” alojados em portais da web. Além disso, outros recursos que não a web –
tais como canais de chat do tipo IRC, grupos de notícia e listas de discussão via
e-mail – também eram, de longe, nesse período, mais eficazmente utilizados por
grupos ou indivíduos evangélicos, sendo seguidos, também nesse caso, por
grupos e indivíduos espíritas. Note-se que se interessavam mais pela Internet, um
ambiente comunicativo baseado principalmente em mensagens escritas, grupos
religiosos – evangélicos e espíritas – que possuem uma tradição de valorização
da cultura escrita e, eis ai talvez o porquê de se sentirem tão mais vontade nesse
ambiente.
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
149
Eram eles que mais avidamente se lançavam à exploração do ciberespaço
brasileiro. Passado cerca de dez anos tem-se uma situação um tanto distinta. Em
primeiro lugar assiste-se ao ingresso cada vez mais perceptível de uma infinidade
de outros grupos religiosos antes invisíveis. Páginas católicas, esotéricas e,
também, afro-brasileiras, gradativamente, vão se disseminando por todos os
lados desse ciberespaço brasileiro ao ponto de ser bastante temerário na
atualidade afirmar quem, entre indivíduos e grupos religiosos em questão,
demonstra estar melhor se utilizando das possibilidades de publicação da web no
Brasil.
É preciso destacar também que nestes dez anos – em que houve um
substancial crescimento do ciberespaço brasileiro e do número de seus
frequentadores – nota-se também um crescente interesse dos chamados portais
comerciais de acesso a conteúdos pelo que poderíamos chamar de “filão
religioso”. De um primeiro momento em que uns pouquíssimos portais
disponibilizavam uma ou duas salas de chat ou algum fórum para assuntos
religiosos (geralmente genérico, não segmentado confessionalmente) se passou
para uma situação na qual é dada especial e privilegiada atenção a esse tipo de
interesse. Isso pode ser notado principalmente pela proliferação de chats e fóruns
de debates de assuntos religiosos em vários portais de conteúdo que antes não
atendiam a essa demanda e pela crescente oferta segmentada aos públicos
interessados nesse assunto (antes uma única opção genérica tal como “religião”;
agora cada vez mais uma segmentação confessional no qual “evangélicos”,
“católicos”, “espíritas”, etc. têm seus próprios espaços).
Bastante interessante também é o repentino uso que as casas de religião
afro-brasileiras passaram a fazer da Web. De uma situação de quase que total
invisibilidade, há cerca de dez anos atrás, o número de páginas pessoais ou
institucionais deste segmento religioso cresceu surpreendentemente. Observando
as características dessas páginas (que, geralmente, são muito simples e têm
como intenção básica a mera publicidade dos serviços oferecidos nessas casas
de religião) percebe-se que se trata de uma utilização ainda bastante acanhada
dessa mídia. A impressão que passam muitas dessas páginas é que foram
criadas apenas para satisfazer os fetiches tecnológicos que o uso da Internet
150
Airton Luiz Jungblut
parece provocar na subcultura afro-brasileira como item atribuidor de prestigio
social para quem dela faz uso.
Mas algumas coisas também se mantiveram substancialmente inalteradas
nestes últimos dez anos. Para citar apenas aquilo que considero mais importante
menciono a forma com que espíritas e evangélicos – os dois grupos religiosos
que, muito provavelmente, mais se utilizam da Internet no Brasil – utilizam-se dos
recursos virtuais-comunitários possibilitados no ciberespaço. Refiro-me a
formação das chamadas “comunidades virtuais” através de comunicação mediada
por computador de características síncronas (chats, second life, etc.) ou
assíncronas (grupos de notícia, listas de discussão via e-mail, web-fóruns e sites
de relacionamentos tipo Orkut). Esses tipos de utilização da Internet são, de
longe, melhor potencializados por grupos ou indivíduos pertencentes a esses dois
segmentos religiosos. Através desses recursos de interatividade e sociabilidade
no ciberespaço lida-se com uma forma – bem mais dinâmica e atraente do que a
mera publicação de textos em páginas da Web – de ostentação e de negociação
identitária de cunho religioso. Mas é preciso dizer que embora façam uma
utilização muito parecida desses recursos, evangélicos e espíritas têm padrões de
comportamento diferentes em suas respectivas comunidades virtuais.
Em se tratando de evangélicos, tenho notado que aqueles indivíduos e
grupos próximos às modalidades pentecostais ou renovadas e que estão numa
faixa etária que vai dos 15 aos 25 anos, demonstram maior interesse por
comunidades
virtuais
possibilitadas
através
de
recursos
síncronos
de
comunicação (chats). Já os evangélicos ligados a modalidades mais tradicionais e
de faixas etárias mais elevadas do que a anterior tendem a preferir as
comunidades que se formam através de formas assíncronas de comunicação
(grupos de notícias e listas de discussão, web-fóruns e sites de relacionamentos
tipo Orkut). No primeiro caso, tratam-se de interações comunicativas muito mais
extramuros (debates e interlocuções com intenções proselitistas com indivíduos
de outras crenças ou descrentes) e, no segundo, interações intramuros (debates
entre evangélicos a cerca de questões doutrinárias, principalmente). Em termos
de visibilidade é o primeiro tipo de atitude interativa que mais se destaca no
ciberespaço brasileiro. Cabe comentar que a imensa maioria dos evangélicos que
se tornam visíveis na internet, quer seja em suas próprias comunidades virtuais,
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
151
quer seja em espaços alheio, parecem fazê-lo com o intuito muito mais de
divulgarem sua fé do que de discutirem intramuros seus fundamentos teológicos,
litúrgicos, etc.
Os espíritas, por sua vez, que aparentemente se situam numa faixa etária
que vai dos 20 aos 40 anos, normalmente não manifestam comportamentos
distintos entre o uso que fazem de chats, listas de discussão e sites de
relacionamento (ou, também, web-fóruns e grupos de notícias). Procuram manter
debates disciplinados com alto nível de exigência intelectual dos participantes.
São, mormente, debates orientados, quase que exclusivamente, para questões
referentes às interpretações dos livros espíritas. É comum não demonstrarem
interesse por polêmicas com integrantes de outras religiões ou cosmovisões
(ateus, por exemplo). Nos poucos casos em que é possível vê-los utilizando-se de
chats – veículo em que, em princípio, é mais difícil manter debates disciplinados –
o fazem usando plataformas que permitem a imposição de atos disciplinadores
(Messenger Groups, por exemplo).
Se fossemos classificar e/ou qualificar de maneira esquemática as formas
como as principais modalidades religiosas aparecem na Internet brasileira
teríamos algo como: Católicos: presença preponderantemente institucional
(páginas de dioceses, organizações católicas, serviços de acesso a Internet, etc.);
pouca interatividade individual e de relacionamentos extramuros (é difícil
encontrar pessoas identificadas com o catolicismo em chats ou listas de
discussão, por exemplo). Afro-brasileiros: visibilidade publicitária (a maioria das
páginas na web têm como intenção, por exemplo, informar local e horário de
atendimento dos médiuns, mostrar fotos dos estabelecimentos e dos médiuns,
etc.); comercial (há um bom número de páginas de lojas de artigos religiosos afrobrasileiros, também editoras e livrarias); praticamente nenhuma interatividade
individual (não se notou nenhuma lista de discussão nem chat importante deste
segmento; a presença de indivíduos identificados com essas religiões de um
modo geral é bastante rara); Espíritas: presença institucional bastante marcante
(possuem uma considerável rede de páginas, algumas entre as quais bastante
complexas onde se disponibilizam, por exemplo, livros espíritas completos em
formato
digitalizado);
muita
interatividade
individual
de
relacionamentos
preponderantemente intramuros (os espíritas tem um bom número de listas de
152
Airton Luiz Jungblut
discussão e chats e mostram-se bastante apaixonados por debates mediados por
redes de computares); Evangélicos: formas bastante diversificadas de
visibilidade; institucional (muitas páginas de igrejas locais, regionais, nacionais ou
mesmos internacionais; um grande número também de páginas de organizações
ecumênicas, para-eclesiásticas, interdenominacionais, etc.); publicitária e/ou
comercial (um número considerável de páginas na web com publicidade de
livrarias e lojas de discos evangélicos, por exemplo); pessoal (um grande número
de páginas pessoais visando a divulgação da fé evangélica); intensa
interatividade individual de relacionamentos extra e intramuros (grupo religioso
que, seguramente, mais se lança a interatividade comunicativa via internet,
buscando não só a formação de comunidades de crentes como também o
trabalho conversionista); Esotérica: oracular (um número cada vez maior de
sites, oferecendo serviços de oráculo tais como, tarô, astrologia, numerologia,
etc.); pessoal (as páginas divulgando assuntos esotéricos na web são geralmente
pessoais); média interatividade individual intra e extramuros (possuem listas de
discussão e chats que não chegam a atrair muita atenção e são, muitas vezes,
vedadas a estranhos).
***
A título de conclusão cabem aqui algumas rápidas considerações. O
monitoramento que o autor vem fazendo, há cerca de dez anos, do uso da
Internet por indivíduos e grupos religiosos brasileiros tem levado a percepção de
que são mais eficientes no uso dessa mídia aquelas modalidades que,
primeiramente, têm uma tradição de uso da cultura escrita na forma de
vivenciarem sua fé (caso dos espíritas, evangélicos e, mais recentemente,
esotéricos). Em segundo lugar, destacam-se aqueles grupos e indivíduos que
tomam como obrigação religiosa o proselitismo militante. Nesse caso, os
evangélicos estão sozinhos na dianteira, pois, no Brasil atual, empenham-se,
como ninguém mais, numa gigantesca mobilização pela expansão de seu
rebanho e a Internet, como já havia acontecido com o rádio e a TV, se tornou um
front no qual esses religiosos gastam muito de sua energia conversionista.
Diferentemente de outros grupos, eles agem escancaradamente segundo a lógica
do mercado, fazendo com que cada grupo ou indivíduo evangélico potencialize,
Mercado Religioso e a Internet no Brasil
153
ao máximo, na Internet, os apelos salvacionistas dessa modalidade de
cristianismo.
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154
Airton Luiz Jungblut
Antropologia das instituições e organizações econômicas
Lúcia Helena Alves Müller
Atualmente, podemos encontrar um número cada vez maior de
pesquisadores, grupos de trabalho, livros e artigos dedicados à abordagem
antropológica de temas relacionados com o mundo empresarial, com os
mercados, com o dinheiro em suas mais diversas formas, com o consumo e com
as diversas modalidades de crédito. Mas o que uma disciplina como a
antropologia, tradicionalmente associada ao estudo das sociedades tribais, das
sociedades tradicionais, dos grupos sociais situados à margem do sistema
econômico global; uma disciplina que costuma tratar das diferenças culturais e
dos processos identitários, tem a dizer sobre temas como esses, que conformam
o que costumamos identificar como sendo “a economia”?
Na verdade, são assuntos tão importantes que não deveriam ser deixados
ao cargo exclusivo de economistas e administradores. Mas, com certeza, o
interesse dos antropólogos por esses temas está relacionado com mudanças que
ocorreram no âmbito da própria antropologia, bem como com transformações
sofridas pelos objetos de estudo que tradicionalmente definiam essa disciplina.
Paradoxal parece ser o fato da maior parte dos grupos de pesquisadores
que hoje trabalha sobre as temáticas citadas não localizar seus estudos como
integrantes do campo nomeado pela expressão “antropologia econômica”. Além
disso, embora a temática econômica tenha sido objeto de reflexão por parte de
autores considerados clássicos da antropologia (Malinowski, 1984; Mauss, 1974)
e, ao menos no Brasil, tenha sido um conteúdo obrigatório na formação dos
antropólogos até o final dos anos 70, ao longo das últimas décadas, ela
praticamente sumiu dos currículos acadêmicos.
Este texto tem com objetivo refletir sobre essas mudanças e seus
aparentes paradoxos, além de traçar um rápido panorama do que a antropologia
contemporânea vem produzindo sobre as instituições, organizações, práticas e
representações relacionadas ao que a nossa sociedade classifica como
“economia”.
A antropologia econômica
Na antropologia, a constituição da temática econômica como um campo de
estudos específico se deu através de um debate historicamente situado, que teve
seu momento mais intenso na década de 60. A expressão “antropologia
econômica” ficou de tal modo associada a esse debate, a ponto de Puillon
(1978:12) poder mesmo afirmar: “falar seriamente de Antropologia Econômica é,
pois, em nossa opinião, analisar um momento de uma investigação em Ciência
Social que se desenvolveu nos anos sessenta (...)”.
Analisar a investigação em Ciência Social que se desenvolveu nos anos 60
é deparar-se inevitavelmente com o debate formalistas X substantivistas.
Podemos deduzir, portanto, que a expressão antropologia econômica nomeia o
debate que colocou frente a frente diferentes perspectivas teóricas, embora as
trajetórias
dessas
perspectivas
não
estejam
circunscritas
a
ele.
Para
compreendermos plenamente esse debate seria necessário localizar as questões
que lhe deram forma e relacioná-las com as perspectivas teóricas que nele
estiveram envolvidas. Sendo essa uma tarefa ambiciosa demais para um ensaio
como esse, limitar-me-ei a considerar as questões gerais que o animaram a fim
de refletir sobre sua pertinência para a abordagem da "economia" na sociedade
contemporânea.
O que pode nos surpreender na leitura da bibliografia referente ao período
áureo dos debates formadores desse campo é que ela nos induz a pensar que, no
âmbito da antropologia, o embate envolvendo a perspectiva formalista e a
substantivista deu-se, na realidade, a partir de polêmicas desenvolvidas entre
antropólogos de orientação teórica marxista (em geral, franceses) e antropólogos
anglo-saxões (ingleses e norte-americanos), inspirados pela teoria dominante na
ciência econômica (chamada de neoclássica ou liberal), os quais, a partir da
década de 50, passaram a dirigir suas atenções para temas classificados como
econômicos na vida das sociedades ditas primitivas e tradicionais.
Os antropólogos chamados de formalistas (talvez devêssemos dizer
“acusados de”) eram aqueles que definiram seu tema de estudo baseados nos
pressupostos teóricos estabelecidos pela ciência econômica, como fez Raymond
Firth, ao definir a tarefa do antropólogo como sendo a de “(...) dar assistência na
156
Lúcia Helena Alves Müller
tradução de proposições gerais da teoria econômica em termos que se apliquem
aos tipos particulares de sociedade por que se interessa e que comumente não
aparecem na observação do economista.” E como premissas fundamentais da
teoria econômica, “a natureza variada e extensível de objetivos da conduta
humana  a multiplicidade de fins; a limitação de meios para satisfazê-los  o fato
da escassez; e a necessidade de escolher entre eles  o exercício da
preferência.” (Firth, 1974)
Em suas críticas aos antropólogos formalistas, os antropólogos de
orientação marxistas lançaram mão de proposições substantivistas. A perspectiva
substantivista não se confunde, no entanto, com a marxista. O que elas têm em
comum é o questionamento das premissas teóricas da economia neoclássica, ou
seja, a crítica à naturalização dos princípios que regem a sociedade capitalista
ocidental. Para ambas, a relativização histórica e cultural desses princípios é o
passo inicial e fundamental, tanto para a compreensão de outras sociedades,
quanto para o questionamento da própria organização social capitalista.
Os substantivistas, ou institucionalistas, são assim chamados por
questionarem a definição "formal" de economia, vendo nela uma generalização
imprópria de princípios que regem apenas um tipo específico de sociedade: a
sociedade de mercado capitalista. Em contrapartida, eles propõem uma definição
"substantiva" de economia: “(...) um processo institucionalizado de interações
entre o homem e seu meio, que se traduzem pelo fornecimento contínuo dos
meios materiais que permitem a satisfação das suas necessidades.” (Polanyi
apud Pouillon, 1978:53).
A principal diferença entre essas perspectivas está na abordagem que os
marxistas dão aos fenômenos econômicos das sociedades não capitalistas. O
conceito fundamental da teoria marxista, que é o de "modo de produção",
condicionou os estudos empreendidos por esses antropólogos a concentrarem
seu foco em fenômenos diretamente ligados à esfera da produção material, por
considerá-la a esfera determinante, em última instância, da vida social. Assim,
sua preocupação fundamental foi a de identificar os mecanismos de reprodução e
de transformação dos diferentes modos de produção:
É este conceito de modo de produção que constitui o conceito
maior da antropologia econômica. A missão desta é determinar os
Antropologia das instituições e organizações econômicas
157
tipos de modo de produção que subsistem nas sociedades que
estuda e que se transformam ao contacto e sob a dominação da
economia mundial capitalista. Mas o conceito de modo de
produção implica mais do que um estudo da economia dessas
sociedades. Na sua ambição teórica última, a antropologia visa a
descoberta das leis de determinação da vida social pela
economia. (Godelier, 1974:245)
A aplicação de conceitos que foram produzidos a partir do estudo da
sociedade capitalista ao estudo das chamadas sociedades primitivas, cujos
resultados teóricos não nos cabe aqui avaliar, não deixou de provocar, também, a
relativização dos próprios conceitos marxistas. Assim, por exemplo, o conceito de
infraestrutura teve de ser alargado para incluir as relações de parentesco,
fundamentais para a ordenação da produção nas sociedades tribais (Godelier).
Os conceitos de classe social e de exploração tiveram que ser adaptados para
dar conta de fenômenos tais como os das chamadas sociedades de linhagem
(Meillasoux).
A perspectiva substantivista desenvolveu-se a partir das obras de Karl
Polanyi, que não era economista nem antropólogo. Essas foram publicadas a
partir da década de 40, tendo como base seus estudos de história econômica e
sua ferrenha crítica ao pensamento econômico liberal, dominante na Europa até a
primeira guerra mundial. Apesar de também privilegiar o estudo de temas
econômicos, Polanyi não o fez a partir do que seria uma lógica econômica e sim,
social. Dessa forma, sua abordagem opõe-se claramente à perspectiva formalista,
por negar os princípios postulados pela teoria econômica neoclássica:
A economia do homem está submersa em suas relações sociais.
Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse
individual na posse dos bens materiais. Ele age assim para
salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu
patrimônio social. (Polanyi, 1980:61).
Por outro lado, a ênfase na dimensão institucional da sociedade, também a
distingue claramente da perspectiva marxista:
Existe a doutrina igualmente equívoca da natureza
essencialmente econômica dos interesses de classe. Embora a
sociedade humana seja naturalmente condicionada por fatores
econômicos, as motivações dos indivíduos humanos só
excepcionalmente são determinadas pelas necessidades do
158
Lúcia Helena Alves Müller
desejo de auto-satisfação material. O fato da sociedade do século
dezenove ser organizada a partir do pressuposto de que tal
motivação poderia tornar-se universal foi uma peculiaridade da
época. (Polanyi, 1980:157)
Segundo Polanyi, as práticas de mercado sempre existiram, mas quase
sempre de forma marginal, e submetidas a outros tipos de relações sociais.
Sendo assim, para esse autor, os princípios da economia condensados na noção
de homo economicus, não podem ser tomados como princípios universais. Por
outro lado, o autor questiona a teoria marxista por centrar-se exclusivamente em
fenômenos ligados aos processos de produção. Contrapondo-se a essas
perspectivas, ele propõe a concepção substantiva de economia, que englobaria
todos os fenômenos sociais que dizem respeito à produção, à distribuição e ao
consumo de bens, e que, em cada sociedade, são organizados de formas
institucionalmente diversas. A partir dessa concepção “institucionalista”, Polanyi
propôs uma tipologia das formas de integração social que informam os sistemas
econômicos em diferentes sociedades: reciprocidade, distribuição e mercado.
Assim, o debate que envolveu as diferentes perspectivas que conformaram
o campo de estudos que ficou conhecido como “antropologia econômica” girou
em torno das divergências quanto à própria definição do objeto "fenômenos
econômicos". Essas divergências não impediram, no entanto, que as pesquisas
levadas a cabo pelos antropólogos, a partir das diferentes correntes teóricas
envolvidas no debate, produzissem um grande volume de estudos que, ao nível
empírico, foram produzidos a partir dos mesmos campos de pesquisa e trataram
dos mesmos temas, isto é: a produção, a distribuição e o consumo de bens
materiais, em sociedades não capitalistas.
O fato de vivermos em uma sociedade cada vez mais interconectada, em
que não há mais grupos sociais isolados, uma vez que estamos, todos, de alguma
forma, vinculados à sociedade de mercado ou, ao menos, sob sua influência,
torna compreensível a perda de espaço que a antropologia econômica sofreu no
campo acadêmico ao longo dos anos, na medida em que seu campo de estudos,
as sociedades ditas primitivas e tradicionais, deixaram de ser percebidas como
tal. Temáticas relacionadas a práticas e instituições econômicas continuaram a
ser abordadas pelos antropólogos, mas deixaram de ser o foco principal de suas
Antropologia das instituições e organizações econômicas
159
análises, à exceção, talvez única, dos estudos sobre comunidades camponesas,
sobretudo aquelas envolvidas em processos identitários de caráter étnico.
O fato de não se poder mais definir e classificar as sociedades
contemporâneas
com
base
na
oposição
primitivas/simples/tradicionais
X
modernas/complexas/dinâmicas fez com que os antropólogos passassem a
considerar todas as sociedades, inclusiva a sua própria, como campo de
pesquisa. Essas mudanças colocaram em xeque as formas tradicionais de se
fazer antropologia e impedem que se pense a relação com as outras ciências
sociais em termos de fronteiras absolutas, na medida em que não há mais tema
ou campo de estudos específicos.
O que continua, com certeza, a definir a abordagem antropológica é a
hipótese da “alteridade”, elemento constituinte de todos os objetos de pesquisa
dessa área do conhecimento, o que, em termos de abordagem, se traduz em
compromisso do pesquisador com o exercício da relativização e com a busca de
formas de compreensão que englobem o ponto de vista do “outro” (Oliveira,
1996). Assim, mesmo quando estudam a sua própria sociedade, os antropólogos
procuram colocá-la em perspectiva, através da comparação, caso contrário, não
estarão fazendo antropologia.
O processo de mudanças na definição do campo e nas práticas de
pesquisa antropológica não abarcou de forma homogênea todos os campos
temáticos. Além disso, a hegemonia das novas correntes teóricas, como o
estruturalismo e a antropologia interpretativa ou hermenêutica, que colocavam o
foco na dimensão simbólica da vida social, e o crescimento do interesse por
temas definidos a partir de outras problemáticas sociais, como o processo de
urbanização e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, por
exemplo, também contribuíram para que, ao longo das últimas décadas do século
XX, as temáticas pertencentes ao campo da antropologia econômica perdessem
espaço na pesquisa acadêmica. Não por acaso, foi ao longo desse período, que
os cursos de ciências sociais excluíram de seus currículos a obrigatoriedade das
disciplinas dedicadas a conteúdos relativos à ciência econômica.
160
Lúcia Helena Alves Müller
A “nova” sociologia econômica
Enquanto o interesse por temas econômicos saia da cena principal da
antropologia, na sociologia, iniciava-se o processo de retomada desse interesse.
Uma das vertentes desse processo teve origem nos Estados Unidos na década
de 80, e acabou por conformar o campo de estudos que hoje é conhecido como
“nova sociologia econômica”.
A “nova sociologia econômica” também se desenvolveu a partir da crítica
ao predomínio de premissas e concepções teóricas de inspiração neoclássica
(individualismo metodológico, teoria da escolha racional), que vinham se tornando
dominantes não apenas na análise de fenômenos tradicionalmente considerados
como pertencentes à esfera econômica (os mercados), mas também na
abordagem de temas tradicionalmente vistos como objetos específicos das
ciências sociais: política, religião, relações matrimoniais, etc.
Os estudos que são identificados como pertencentes à “nova sociologia
econômica” são bastante diversificados em termos de temas, objetos e
abordagens. O que eles têm em comum é o fato de atribuírem às sociedades
capitalistas a mesma característica que Polanyi atribuiu às sociedades ditas
primitivas ou tradicionais, isto é, a de que, nelas, a economia está “imersa”
(embebedness) na vida social (Granovetter, 2007).
O crescimento dessa corrente e sua capacidade de revalorizar temáticas
econômicas no âmbito da sociologia acabou por interpelar pesquisadores que,
embora também tivessem um grande interesse por temas econômicos e já
tivessem formulado teorias sociológicas que contemplassem esses temas, não se
identificavam como pertencentes a um campo de estudos dessa forma definido.
Foi o que aconteceu com Pierre Bourdieu (2000; 2005), com sua teoria dos
campos, e com Luc Boltanski (1991; 2002), em seus trabalhos sobre os princípios
de coordenação constitutivos da sociedade capitalista na história recente. Sem
falar na corrente que se formou em torno do M.A.U.S.S. (Moviment Anti-utilitariste
dans les Sciences Sociales), cuja principal proposta é a construção do “paradigma
do dom”, em oposição aos paradigmas classificados como utilitaristas, que
estariam dominando o senso comum e as ciências sociais. Desde 1988, a Revue
du MAUS publica trabalhos que buscam valorizar as contribuições de Mauss e
Antropologia das instituições e organizações econômicas
161
Polanyi, que criticam a noção de desenvolvimento e que tratam de formas
alternativas de organização da economia (renda mínima, economia solidária,
etc.).
Não se pode dizer que essas diferentes correntes dialoguem aberta e
diretamente entre si, mas seus integrantes se interpelam mutuamente e já se
reconhecem como participantes de um campo comum, voltado para o estudo
sociológico dos fenômenos, instituições, práticas e representações econômicos,
vividos na sociedade contemporânea. Como apontaram Kirchner e Monteiro
(2002), citando Lévesque et al. (1997), a principal diferença entre a corrente
norte-americana e as correntes francesas está no fato de que a “nova sociologia
econômica” está mais próxima da ciência econômica, disciplina da qual ela busca
se distinguir e com a qual procura, ao mesmo tempo, dialogar. Já as correntes
sociológicas francesas que abordam temas econômicos têm como principal
interlocutor a própria sociologia em suas vertentes teóricas estruturalistas e
marxistas, e como projeto, a crítica ou, até mesmo, substituição da ciência
econômica por uma “economia sociológica”, segundo a leitura que Raud (2007)
faz de Lebaron (2001).
Na área da sociologia, da década de 80 para cá, houve um claro processo
de institucionalização da sociologia econômica como campo de pesquisa. Isso
aconteceu de forma mais intensa nos Estados Unidos (Swedberg, 2004), mas
também está acontecendo em outros países, como no Brasil, onde a sociologia
econômica vem se tornando um campo de estudos cada vez mais importante e
renovador em termos de temáticas e abordagens. Não nos cabe fazer uma
revisão ou avaliação dessa produção, apenas ressaltar que esse processo está
acontecendo sem excluir o intercâmbio com outros campos de pesquisa, como o
da sociologia do trabalho, o da sociologia de empresas (Kirchner e Monteiro
2002), mas também com outras disciplinas, como a antropologia e a própria
ciência econômica.
Entre os autores tidos como pertencentes ao campo da “nova sociologia
econômica” norte-americana, Viviana Zelizer é uma das que mais tem inspirado
os pesquisadores brasileiros. Seus trabalhos também estão desempenhando um
papel muito importante na interlocução entre esse campo de pesquisa e a
antropologia.
162
Lúcia Helena Alves Müller
Conhecendo um pouco da obra dessa pesquisadora, torna-se fácil
identificar as razões dessa aproximação. Em seu livro intitulado The social
meaning of money, Zelizer (1994) aborda a economia doméstica dos norteamericanos, e demonstra como, em uma sociedade capitalista totalmente
monetarizada, o dinheiro é pensado, nomeado, valorizado e usado de formas
muito distintas. As pessoas atribuem diferentes sentidos e valores ao dinheiro,
dependendo de como ele é obtido e em quê vai ser gasto (comida, doações,
poupança, etc.)
Zelizer critica radicalmente a separação a apriori entre o que seria o
“mundo econômico” e as outras dimensões da vida social. Ela questiona,
inclusive, certas concepções vigentes na antropologia que percebem as práticas
econômicas como subordinadas a lógicas culturais. Para essa pesquisadora, é
preciso levar a ideia de que “a economia” é socialmente construída até suas
últimas consequências, o que significa supor que os mercados são tão
diferenciados quanto as sociedades que os constituem. Zelizer realizou diversos
estudos voltados para essas questões. Em um deles (Zelizer 1992), a autora
mostra como, ao longo da história norte-americana, ocorreram mudanças nas
concepções e práticas relacionadas à adoção de crianças, práticas essas que
acabaram por conformar um mercado em que é negociado algo que, segundo
nosso senso comum, não pode ser tratado como mercadoria: os bebês. O
trabalho demonstra que, no final do século XIX, os pais biológicos é que tinham
que pagar para que outras pessoas cuidassem de seus filhos. E a quantia paga
era menor, caso se tratasse de meninos, já que eles poderiam ser mais facilmente
utilizados como mão de obra. Pela mesma razão, os mais velhos eram os
preferidos pelos candidatos a pais adotivos. Ao longo do século XX, aconteceram
diversas transformações nas formas de se perceber o papel das crianças na
família e, consequentemente, no sentido atribuído à adoção. Hoje, quem paga
pelas crianças são aqueles que querem adotá-las, para poderem usufruir
afetivamente de sua companhia. Nesse caso, quanto mais jovens forem elas,
maior o valor a ser pago. Além disso, as meninas são mais desejadas em função
das representações dominantes a respeito de sua maior adaptabilidade e
docilidade.
Antropologia das instituições e organizações econômicas
163
Mais recentemente, Zelizer (2005) produziu uma interessante reflexão
sobre como são construídas e negociadas as fronteiras entre as relações
monetarizadas e as relações consideradas como pertencentes ao plano da
intimidade. Para desenvolver suas ideias, a autora acompanhou o andamento das
negociações relativas a um fundo, que foi criado pelo governo norte-americano
com o objetivo de indenizar os familiares das vítimas do atentado ao World Trade
Center, ocorrido em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001. Zelizer analisou as
reivindicações feitas a esse fundo, por pessoas que se viam como possíveis
contemplados, e mostra que as demandas eram denominadas e legitimadas de
forma diversas, conforme eram concebidos os laços pessoais sobre os quais se
apoiavam. A mesma coisa acontecia com as formas de nomear as próprias
indenizações e de calcular o seu valor. Por exemplo, uma mulher que perdera o
marido no atentado, demandava uma compensação relativa à participação que o
salário do marido falecido tinha nos gastos domésticos; alguém que tinha um filho
com uma pessoa que morreu, reivindicava um valor que cobrisse os gastos
necessários à educação da criança até a sua formatura. Entre as demandas,
também havia quem reivindicasse o custeio do cuidado de um parente idoso ou
doente que estava aos cuidados da pessoa falecida; outros que reivindicavam
uma compensação pelo sofrimento gerado pela perda de uma pessoa com quem
tinha uma relação afetivamente importante. Enfim, os candidatos apresentavam
diferentes concepções de dano, às quais correspondiam diferentes concepções
de demandas, diferentes formas de cálculo e diferentes meios de pagamento, a
adequação entre esses elementos é o que podia, ou não, tornar legítimas as
reivindicações feitas.
As análises de Zelizer problematizam a ideia dominante, tanto no senso
comum quanto no pensamento acadêmico, da existência de uma fronteira fixa
entre as relações sociais e as relações econômicas, sobretudo aquelas mediadas
pelo dinheiro, sendo que as ultrapassagens dessa fronteira seriam, por princípio,
ilegítimas porque deturpadoras dos processos econômicos, ou profanadoras das
relações de caráter íntimo. Assim, Zelizer nos faz ver que essas fronteiras são
socialmente
construídas
contextualizados.
164
Lúcia Helena Alves Müller
em
processos
simbólicos
historicamente
A “nova sociologia econômica” trouxe para o centro do debate
contemporâneo temas, conceitos e instrumentos analíticos que, até pouco tempo
atrás, eram de uso quase que exclusivos dos antropólogos (a dimensão simbólica
da vida social, as relações informais, as redes, o parentesco, a reciprocidade, a
abordagem etnográfica). Mas onde ficaram eles ao longo desse processo?
A antropologia e a sociedade contemporânea
Como já foi dito anteriormente, ao tomar a sociedade contemporânea como
campo de estudos, a antropologia organizou-se em novas áreas temáticas nas
quais os fenômenos econômicos estavam certamente presentes, mas não
constituíam mais a problemática principal. Só mais recentemente os antropólogos
começaram perceber que, assim como aconteceu com outros campos temáticos
clássicos (Monteiro, 1991), os conceitos, instrumentos e dados produzidos a partir
do estudo das sociedades “primitivas” ou tradicionais também podiam ser muito
úteis na abordagem dos fenômenos que, em nossa sociedade, são classificados
como econômicos, e que estão no centro da vida social contemporânea.
Mas para compreendermos até que ponto a “antropologia econômica”, isto
é, as questões envolvidas no debate que constituiu esse campo de pesquisa nas
décadas de 50-60 (formalistas X substantivistas e marxistas) podem contribuir
para
a
abordagem
antropológica
de
temas
econômicos
da
sociedade
contemporânea, temos que refletir sobre qual o significado de se propor essa
sociedade como objeto de estudos antropológicos, para cada uma das
perspectivas envolvidas.
Se ao falarmos em "sociedade contemporânea" estamos nos referindo a
uma multiplicidade de formações sociais articuladas fundamentalmente por
relações de caráter econômico – o chamado sistema capitalista global – para a
perspectiva formalista, a proposta não faria sentido, já que a ciência econômica,
disciplina na qual se originaram os pressupostos teóricos que orientam essa
perspectiva, seria o campo científico apropriado para o estudo dos fenômenos
econômicos que se desenvolvem nessa sociedade.
Apesar das diferenças radicais que a opõe à corrente formalista, a
perspectiva marxista também definiria a especificidade do estudo antropológico a
Antropologia das instituições e organizações econômicas
165
partir de seu campo de estudo: as sociedades “primitivas”. Sendo assim, um
estudo sobre fenômenos econômicos da sociedade contemporânea não se
distinguiria por ser, ou não, antropológico, mas por ter, ou não, uma orientação
teórica marxista.
Não há dúvidas de que essa teoria produziu um instrumental muito
eficiente para a compreensão do processo de expansão e reprodução do sistema
capitalista, o qual não pode, de maneira alguma, ser ignorado se quisermos
compreender a formação do que chamamos de sociedade contemporânea,
sobretudo em relação à incorporação e articulação de sociedades ao sistema
global 1. Por outro lado, para abordarmos os fenômenos econômicos que definem
a especificidade dessa sociedade, temos, necessariamente, que considerar os
conhecimentos produzidos a partir dos pressupostos teóricos que fundamentam a
ciência econômica, na medida em que eles dão conta de aspectos importantes de
seu funcionamento (Godelier, s.d. p.40), mesmo se interpretarmos esses
conhecimentos como a auto-concepção do sistema capitalista (Sahlins, 1979).
Entretanto, se partirmos do princípio de que a especificidade da
antropologia não está no fato dela se dedicar a um determinado campo de estudo
(sociedades “primitivas” ou grupos periféricos em relação à sociedade capitalista),
mas na ótica através da qual os antropólogos constroem seus objetos de
pesquisa em qualquer tipo de sociedade (inclusive a nossa); se tivermos sempre
em mente que a especificidade da abordagem antropológica está no exercício de
colocar diferentes sociedades ou universos simbólicos em perspectiva recíproca,
podemos dizer que, entre as correntes participantes do debate chamado de
“antropologia econômica”, a chamada substantivista seria a mais claramente
afinada com a abordagem antropológica, pois, não tendo como pressuposto o
primado universal da economia (seja como esfera social específica e/ou
determinante, seja como princípio universal das práticas: o chamado homo
economicus) para a compreensão da sociedade, ela encaminha necessariamente
à relativização das próprias categorias e noções com as quais se pode abordar os
fenômenos que classificamos como econômicos.
Na antropologia, essa perspectiva inspirou abordagens que colocaram o
foco da análise sobre a dimensão social do que chamamos de "fenômenos
1
Sobre esse tema, ver entrevista com Eric Wolf, em Ribeiro (1985).
166
Lúcia Helena Alves Müller
econômicos". De forma mais radical, ela está na base das abordagens que veem
a noção de economia, ela própria, como sistema de representações, como em
Dumont (2000) ou, ainda, como conformando um sistema cultural passível de
uma análise simbólica, como em Sahlins (1979).
Levada às últimas consequências, a perspectiva substantivista colocou em
xeque a possibilidade de se pensar em "antropologia econômica" como um
campo específico, na medida em que dilui o seu objeto em problemáticas mais
amplas e diversificadas, mesmo que esses objetos se situem numa sociedade
que se estrutura material e simbolicamente a partir do que chamamos de
“economia”.
Antropologia da economia
A partir do que foi exposto até aqui, torna-se mais compreensível que os
cada vez mais numerosos antropólogos que estudam instituições, organizações,
práticas e representações relacionadas com o que chamamos de “economia”
tenham certa dificuldade ou, até mesmo, resistência em identificar seu campo de
pesquisa através da expressão “antropologia econômica”. Em geral, eles buscam
definir suas temáticas de forma mais restrita, utilizando expressões como: “os
usos do dinheiro” (Bloch, 1994), “temas econômicos” (Bazin 2001), “etnografia
econômica” (Dufy e Weber, 2007). Não é à toa que essa temática só reapareceu
de forma mais autônoma nos eventos acadêmicos brasileiros da área da
antropologia muito recentemente e, mesmo assim, definida através de expressões
tais como “etnografias do capitalismo” ou “antropologia da economia”.
E
sobre
o
que
tratam
os
trabalhos
desses
antropólogos,
independentemente dos termos utilizados para nomear seu campo temático?
Tratam de temas como os mercados, a vida empresarial, questões relativas à
propriedade, ao trabalho, ao dinheiro, ao crédito, ao consumo, enfim, tudo àquilo
que também interessa aos economistas, aos pesquisadores filiados à sociologia
econômica, sem falar nas outras disciplinas, como a psicologia, a administração,
a comunicação e, porque não?, a ciência econômica.
As diferenças, que não são absolutas, podem ser identificadas, como já foi
dito, na definição do objeto e nas formas de abordagem de cada área do
Antropologia das instituições e organizações econômicas
167
conhecimento. Embora as publicações ainda não sejam muito numerosas, os
anais dos principais eventos acadêmicos de antropologia ocorridos no Brasil e em
outros países da América Latina estão cada vez mais repletos de trabalhos sobre
mercados formais e informais, legais e ilegais; locais e globais, mercados ou
outros tipos de transações em que se troca aquilo que, de acordo com o senso
comum, “não tem preço” (sexo, confiança, cuidados pessoais, poderes mágicos,
etc.); práticas e representações acerca do dinheiro; dimensões simbólicas da vida
empresarial (conflitos, processos de construção e desconstrução de identidades,
de ideologias, etc.), práticas de consumo, as relações entre economia e religião,
entre economia e parentesco, entre economia e concepções da natureza,
economia e gênero, economia e identidade étnica, etc.
Não sendo possível descrever todos esses temas num texto como esse,
limito-me a exemplificar algumas possibilidades de abordagem de temas
econômicos a partir da antropologia, através da exposição de alguns resultados
de um projeto de pesquisa que se encontra em andamento. O tema geral desse
projeto é o processo, que teve início recentemente no Brasil, de crescimento da
oferta de crédito ao consumidor de baixa renda. O objetivo é buscar compreender
de que maneira determinados grupos da sociedade brasileira estão sendo
incorporados ao mercado de consumo, via a oferta de crédito, sendo que esse
processo é acompanhado de uma incorporação desses grupos ao chamado
sistema financeiro, isto é, do crescimento do uso de instrumentos como contas
bancárias, cartões de crédito, etc. 2.
Esse processo foi estimulado por uma política de governo que visava
alavancar o crescimento econômico, via estímulo ao consumo de massa e,
também, promover a chamada “inclusão financeira”, que agentes internacionais
de fomento ao desenvolvimento veem como um indicador de avaliação do grau de
inclusão social. Essas políticas, aliadas ao interesse comercial de instituições
financeiras e de empresas de varejo pelo público de baixa renda, produziram uma
mudança no perfil dos consumidores e induziram a financeirização da vida
econômica de grupos sociais que não estavam, até então, habituados ao uso
desses instrumentos para geri-la.
2
O projeto tem o título de “Me dá um dinheiro ai? Crédito e inclusão financeira sob a ótica de
grupos populares”. Essa pesquisa contou com financiamento do CNPq.
168
Lúcia Helena Alves Müller
Para a realização dessa pesquisa, escolhemos enfocar primeiramente
algumas das diversas formas de crédito que se encontravam disponíveis para os
grupos de baixa renda. Uma dessas formas foi o penhor, modalidade de crédito
muito tradicional, mas cujo uso vem crescendo enormemente no Brasil, tendo
batido recordes em termos número de usuários e de volume de empréstimos nos
anos de 2007 e 2008 (Müller e Vicente, 2007). O penhor pode cobrar juros mais
baixos do que outras modalidades de crédito porque garante o valor fornecido
com ouro e pedras preciosas que ficam sob sua custódia. Já foi possível penhorar
objetos e eletrodomésticos, mas essa modalidade de penhor foi desativada em
função do ritmo cada vez mais veloz da obsolescência tecnológica, que fazia com
que os aparelhos penhorados se desvalorizem muito rapidamente.
Por pressupor a posse de joias, tendemos a pensar que o penhor está
disponível somente para quem tem alto poder aquisitivo. No entanto, a média do
valor dos empréstimos realizados através dessa modalidade de crédito é bastante
baixa, sendo que, em algumas agências da Caixa Econômica Federal, instituição
financeira que tem exclusividade na prestação desse serviço, ela não
ultrapassava R$ 150,00, no ano de 2007. Já na modalidade chamada de “micropenhor”, o valor máximo emprestado era de R$ 600,00, e esse tipo de
empréstimo só estava disponível para quem possuísse conta bancária com saldo
inferior a R$ 1.000,00. Trata-se, portanto, de pessoas com pouca renda e que,
eventualmente, só têm uma aliança ou anel para penhorar. Ou, então, de pessoas
pertencentes a certos segmentos da classe média que se encontram em claro
processo de perda de poder aquisitivo ou, mesmo, de franco empobrecimento
(funcionários públicos, aposentados, desempregados). O fato da grande maioria
dos contratos do penhor (70%) ser feita para o pagamento de dívidas, e não para
a aquisição de bens ou para responder a outro tipo de necessidade de crédito,
também reforça essas ideias.
O estudo do penhor nos obrigou a ver como as questões relacionadas com
as fronteiras entre o espaço das relações monetarizadas e o espaço da intimidade
(Zelizer, 2005) podem estar inseridas no centro da economia capitalista. Trata-se
de um instrumento de crédito que faz parte dos instrumentos financeiros, e que
está sendo valorizado pelo governo como uma forma de diminuir os juros e de
fornecer mais crédito à população. Seu funcionamento está vinculado à dinâmica
Antropologia das instituições e organizações econômicas
169
de circuitos globais, como o do mercado de ouro e de pedras preciosas, que são
produtos negociados e cotados em bolsas de commodities.
O funcionamento do penhor também está ligado à dinâmica de sistemas
mundializados, como o que dita os modelos das joias, num processo que inicia
junto aos grandes designers, as grandes marcas, passando pela reprodução legal
ou ilegalmente feitas pelas griffes locais, por pequenos joalheiros e por
vendedores ambulantes que oferecem joias e “semi-joias” aos funcionários de
empresas e repartições públicas, chegando aos compradores de “ouro usado”
(muitas vezes frutos de roubos e extorsão) que circulam pelas nas esquinas das
grandes cidades.
Outro dado muito importante que esse estudo traz para a reflexão é o de
que, segundo a própria Caixa, 80% das pessoas que frequentam o penhor são
mulheres. Estamos falando, portanto, de uma instituição cujo funcionamento tem
um viés de gênero muito marcado. São quase sempre as mulheres que ganham,
compram ou detêm as joias. Elas formam um patrimônio que passa de geração
em geração, através das mulheres. Assim, as mulheres não podem ser vistas
necessariamente como proprietárias das joias, mas como suas guardiãs, pois não
se pode simplesmente vender o anel de casamento “da vovó” sem correr o risco
de sofrer cobranças dos demais membros da família. A herança das joias também
é um assunto de âmbito familiar. As joias “da vovó” não passam para qualquer
mulher e, sobretudo, não ultrapassam as fronteiras da consanguinidade (se não
há filhas ou irmãs, as joias passam diretamente para as netas ou até para
sobrinhas, mas dificilmente vão ser transferidas para noras ou cunhadas).
Os homens compram as joias para ofertar às mulheres. Nessas
circunstâncias, as joias podem simbolizar seus sentimentos e o valor que eles
atribuem às mulheres e à sua relação com elas. Ao usar a joia, as mulheres
exibem publicamente essas avaliações. Quando uma mulher mostra um anel que
ganhou do namorado, na verdade, ela está querendo demonstrar o valor que ele
lhe atribui. Esse tipo de compreensão gera discordâncias e decepções nas
ocasiões em que as pessoas vão ao penhor pensando que suas joias têm muito
valor e o avaliador da Caixa conclui que ela tem pouca ou nenhuma quantidade
de ouro ou, ainda, que a pedra incrustada na joia não é um diamante.
170
Lúcia Helena Alves Müller
Como modalidade de crédito, o penhor só existe porque as pessoas
compram joias. E, como vimos, as pessoas não compram, presenteiam, vendem
ou penhoram joias pautadas pela lógica financeira ou pela dinâmica do mercado,
mas por outros códigos. Como exemplo, podemos tomar o caso de mulheres que
penhoram suas joias quando se separam dos maridos, e não as resgatam,
deixando que elas sejam leiloadas por falta de pagamento. Através desse ato,
essas mulheres transformam em “apenas” dinheiro aquilo que simbolizava uma
relação que afetivamente não vale mais nada. Outro exemplo são as mulheres
que penhoram joias que, segundo elas, lhes foram ofertadas justamente porque
seus maridos não as amam mais. Elas aceitam trocar sua tolerância em relação
às infidelidades do marido por joias que são penhoradas para que elas possam
usar o dinheiro, sem culpa.
Vemos, então, que as operações de crédito através do penhor envolvem
questões muito complexas: Quem tem o direito de levar as joias da família para o
penhor? Quem é o herdeiro natural das joias da família? Sabemos que não é
qualquer um, que é preciso respeitar as linhagens, as hierarquias, e que esse tipo
de herança está submetido a um controle coletivo, familiar. Quem não respeitar os
códigos estará criando um problema, pois, a longo prazo, alguém pode
legitimamente perguntar: – Onde foi parar aquelas joias que eram “da vovó”?
Assim, através do caso do penhor, é possível levantar alguns exemplos de
como as lógicas afetivas, os papéis sociais de gênero e de natureza familiar, os
códigos de honra e outros que são comumente pensados como separados ou
totalmente subordinados às leis da economia, podem estar intimamente
imbricados nas práticas relativas à compra, à circulação, à posse, ao uso, à
avaliação e à penhora de joias. Não é à toa que os avaliadores do penhor da
Caixa têm um grande conhecimento sobre a vida social. Eles lidam diariamente
com a negociação entre os códigos que entram em jogo na hora da avaliação, um
momento em que as pessoas costumam se encontrar em crise ou em conflito,
não sendo incomum que os usuários do penhor expliquem detalhadamente aos
avaliadores as razões para estarem procurando penhorar as joias de família ou
alianças de noivado, por exemplo. Trata-se de assuntos muito sérios e, por vezes,
traumáticos.
Antropologia das instituições e organizações econômicas
171
Outra forma de crédito mapeada no âmbito do projeto foi a do crédito
consignado (Candido, 2007). O estudo enfocou especificamente a categoria dos
aposentados, e demonstrou que, embora as instituições levem em conta as
condições financeiras individuais de seus clientes para avaliar sua capacidade de
endividamento, o mecanismo do crédito consignado é acionado para responder a
necessidades de diversos membros do grupo familiar. O fato desses aposentados
(em geral, idosos), não raro os únicos membros das famílias a terem renda fixa,
disporem, também, de acesso privilegiado ao crédito pode resultar no aumento de
seu poder no espaço doméstico. Também pode ter como efeito a diminuição da
autonomia do aposentado, em função do comprometimento de sua renda no
abatimento dos empréstimos feitos para cobrir a necessidade dos demais
familiares, que são assumidas como obrigações suas e avalizadoras de seu
desempenho no papel de pai, mãe, avós, etc.
Nesse projeto também estamos enfocando os jovens universitários, que
vêm sendo alvo de uma investida massiva por parte das instituições financeiras,
que os veem como clientes muito interessantes3. Os universitários recebem
constantes propostas de abertura de contas bancárias que incluem um
determinado valor em crédito pré-aprovado, o acesso ao uso de cartão de crédito,
etc. Com o crescimento das vagas nas universidades públicas e com a
implementação de programas de bolsas em universidades privadas (Prouni), são
numerosos os casos de jovens que representam a primeira geração de seu grupo
familiar a ter acesso ao ensino superior, o que significa que pertencem a grupos
em plena trajetória de ascensão social.
O acesso aos mecanismos financeiros e o crédito que lhes é oferecido pela
simples razão de estarem na universidade fazem com que esses jovens ganhem
um grau de autonomia financeira que não corresponde necessariamente ao grau
de autonomia que eles dispõem em termos econômicos, na medida em que
grande parte dos estudantes não é capaz de se autossustentar, embora muitos
trabalhem e tenham uma parcela considerável de sua renda comprometida com o
orçamento familiar. Nossas investigações procuram compreender como esses
3
Essa pesquisa está sendo desenvolvida com o auxílio da bolsista de iniciação científica da
FAPERGS, Eleonora França Teixeira.
172
Lúcia Helena Alves Müller
jovens são percebidos pelas instituições financeiras e como eles incorporam os
instrumentos e conhecimentos financeiros em sua vida cotidiana.
Conclusão
O objetivo desse texto foi o de localizar o espaço da antropologia no atual
movimento de revalorização das temáticas econômicas por parte das ciências
sociais. Tendo presente que uma leitura como essa é sempre parcial e traz
marcas da inserção do autor no campo abordado, espero que ele tenha sido
capaz de mostrar como essa disciplina vem participando da construção, que se
encontra em pleno andamento, de um novo campo de estudos. Se o que move os
participantes desse novo campo é continuar no esforço de compreensão da
economia como dimensão social e simbolicamente construída da sociedade, a
antropologia terá sempre muito a contribuir, independentemente do nome que se
dê a esse esforço, que interessa a todos nós.
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Antropologia das instituições e organizações econômicas
175
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do
Conhecimento”?
Léo Peixoto Rodrigues1
1. Introdução
O presente capítulo tem por finalidade contribuir teoricamente para o
debate que tem se construído nas últimas décadas, e que faz parte de reflexões
no âmbito das ciências sociais brasileira e internacional, no que diz respeito à
chamada sociedade do conhecimento, modernidade, pós-modernidade, ciência e
racionalidade. A partir de contribuições substanciais, já vistas como clássicas,
como as de Daniel Bell, Jean-François Lyotard, Michel Foucault e Thomas Kuhn,
examinam-se aspectos teóricos, sejam de natureza preditiva, como no caso de
Bell e Lyotard, sejam de natureza essencialmente teórica – Kuhn e Foucault –,
buscando-se pontuar alguns aspectos do debate que, de certa forma, fujam da
tônica mais comum, cujos posicionamentos colocam-se ao lado ou de uma
perspectiva que privilegia a chamada modernidade ou, antagonicamente, de uma
perspectiva pós-modernidade.
Argumenta-se que a noção de sociedade do conhecimento está presente
em distintos conceitos que se esforçam por caracterizar as drásticas e aceleradas
transformações ocorridas, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX.
Conceitos tais como: pós-fordismo, pós-industrialismo, neomodernidade, alta
modernidade, contemporaneidade, pós-modernidade e outros, mesmos que
apresentem certas diferenças entre si, de algum modo, são utilizados com o
mesmo objetivo de distinguir estados de ordem social, cultural, política,
econômica e tecnológica distintas. Essa necessidade de apontar as diferenças
entre os diferentes momentos da organização social, bem como a dificuldade de
se construir consensos teóricos, busca-se aqui explorar.
1
Licenciado em Ciências Físicas e Biológicas pela Faculdade Porto Alegrense de Ciência e Letras
(FAPA); Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS); Mestre e Doutor em Sociologia (UFRGS). Atualmente é Professor da Universidade
Federal de Pelotas - UFPel.
Destaca-se a necessidade de que sejam examinadas as razões que
motivaram a chamada descontinuidade, o fim dos metarrelatos, ou crise da
modernidade, como possibilidade de representação dos ideais humanos em suas
diferentes formas de conhecimento. Nesse aspecto, aponta-se a própria Ciência,
como forma hegemônica de produção de conhecimento durante toda a
modernidade, que através de um processo analítico de diferenciação e de
produção de novos conhecimentos, tem propiciado, cada vez mais o
desenvolvimento de dissensos, gerando a atual teia de complexidade.
Por fim, argumenta-se sobre a necessidade de o conhecimento moderno,
através de seus principais eixos, ir em busca de determinadas sínteses (junções),
contrariamente ao processo de análise (separação) gerado pela Ciência, para que
a modernidade retome determinados consensos fundamenteis para a consecução
de seu principal objetivo: emancipação/reconhecimento..
A partir dessa perspectiva, é necessário que tais questões sejam
enfrentadas, partindo de uma sociologia do conhecimento. Em nenhum outro
momento da era moderna o conhecimento teve uma centralidade tão importante;
a revitalização de uma sociologia que se detenha sobre o conhecimento, no
sentido lato, nessa contemporaneidade, é de fundamental importância para o
maior entendimento de questões que têm transbordado os diferentes campos
disciplinares.
Muito já se tem dito sobre o fato de a sociedade contemporânea constituirse numa sociedade do conhecimento. Entretanto, a noção de sociedade do
conhecimento suscita, de imediato, um questionamento central: qual sociedade e
em que momento se tornou uma sociedade do conhecimento, visto que a espécie
humana, de alguma forma, muito antes da polis grega já teria produzido algum
tipo de conhecimento. O marco referencial da discussão de uma sociedade de
conhecimento, porém, tem sido aquilo que se passou a denominar de
conhecimento moderno, isto é, o conhecimento que emerge a partir da crise do
sistema feudal e da retomada do logos grego, com as releituras de Platão e
Aristóteles, propiciando a emergência de uma episteme renascentista que vai
assentar as bases da Ciência Moderna.
Quando falamos em sociedade do conhecimento, então, a discussão que
se coloca está vinculada ao conhecimento chamado de conhecimento científico,
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
177
desenvolvido a partir de uma intrincada confluência de novos saberes que fazem
vir à tona importantes noções como: razão, indivíduo, natureza, verdade,
regularidade, certeza, etc; noções, estas, quase que completamente inexistentes
antes do século XVII e, quando existente, como as de natureza e verdade,
estavam regidas por uma episteme distinta daquela que passa a viger na
chamada
modernidade
e,
portanto,
com
um
sistema
de
significação
completamente distinto.
Assim, o termo “sociedade do conhecimento” traz em si a necessidade de
maior reflexão – e de diferenciação – tanto das noções de sociedade, como de
conhecimento e de ciência, além de várias outras noções colorarias, forjadas em
diferentes momentos da modernidade, tais como: capital/trabalho, sociedade
industrial, sociedade patriarcal, sociedade burguesa, industrialismo, etc. Nesse
sentido, é a própria “modernidade” do século XX, principalmente a partir da
segunda metade, quem passa a travar um diálogo – melhor seria dizer debate –
com a sua tradição. Tal diálogo passa a não se constituir como meramente crítico,
numa costura permeada por teses e antíteses, sempre mediada pela razão, nos
termos da construção de quase todo o conhecimento Iluminista. O debate que se
tem feito nas últimas décadas – na chamada contemporaneidade – parece
constituir-se mais propriamente numa ruptura de diversos pressupostos
modernos, que num diálogo crítico. Essa ruptura, essa descontinuidade, ou esse
dissenso que se disseminou por diferentes áreas do conhecimento moderno, tem
sido amplamente debatido em diferentes setores da sociedade, por diferentes
mídias e recebido, por parte dos intelectuais, diferentes conceituações. É nesse
sentido que se busca, a seguir, identificar a emergências contemporâneas desse
debate, propondo alguns elementos de natureza epistemológica e sociológica à
sua reflexão.
2. Sociologia e conhecimento, episteme e paradigma
O agora clássico livro de Daniel Bell, The Coming of Post-industrial Society,
publicado em 1973 2, é um importante marco no debate entre a chamada
2
Neste artigo utilizaremos a tradução brasileira intitulada O Advento da Sociedade Pós-industrial:
uma tentativa de previsão social, de 1977.
178
Léo Peixoto Rodrigues
contemporaneidade e os diferentes momentos da tradição moderna 3, ao anunciar
alguns indicadores de descontinuidade na forma como o conhecimento e a
sociedade estavam sendo produzidos. Segundo Bell,
O conceito de sociedade pós-industrial é uma generalização muito
ampla. Seu significado será mais facilmente compreendido se
especificarmos cinco dimensões ou componente do termo: 1.
Setor Econômico: a mudança de uma economia de bens para
uma economia de serviços; 2. Distribuição ocupacional: a
preeminência da classe ocupacional e técnica; 3. Princípio axial: a
centralidade do conhecimento teórico como fonte de inovação e
de formulação política para a sociedade; 4. Orientação futura:
controle da tecnologia e a distribuição tecnológica; 5. Tomada de
decisão: a criação de uma nova “tecnologia intelectual” (Bell,
1977, p.27-28).
Daniel Bell antevê com bastante acuidade aquilo que anos mais tarde
passaria a ser chamado de sociedade do conhecimento, por diferentes autores. É
importante levar em conta que a sua predição é anterior à massificação da
utilização do computador pessoal, o chamado PC (personal computer), mesmo
nos Estados Unidos 4. As tecnologias informacionais desenvolvidas a partir de
1970 aceleraram de forma surpreendente a mudança de uma economia de bens
para uma economia de serviços, embora essa mudança já acontecesse,
principalmente nos Estados Unidos, mesmo antes da década de 50. Esse
deslocamento da economia de bens exigiu, igualmente, o deslocamento
ocupacional, mudando de forma estrutural o mundo do trabalho, tornando-o mais
complexo, menos repetitivo (no caso do humano), exigindo, por consequência,
maior qualificação dos trabalhadores. De fato, com o desenvolvimento da
cibernética, que deu origem a uma bem formalizada teoria da informação e da
comunicação, cuja informática é apenas uma de suas variantes, as possibilidades
de interconexões teóricas e práticas, isto é, o desenvolvimento de tecnologias –
tecnologia como “o uso do conhecimento científico para especificar as maneiras
3
Quando falamos em diferentes momentos da tradição moderna, é porque estamos contemplando
as diferenciações que existiram nos saberes e fazeres ao longo da modernidade; por exemplo: os
diferentes momentos do modo de produção capitalista; as diferentes etapas do industrialismo; o
deslocamento da mão de obra dos setores – classicamente criados por Colin Clark – primário,
secundário e terciário, ao longo dos séculos XIX e XX; os diferentes sistemas de produção gestão
e processos de trabalho. Entretanto, tais diferenciações, na minha opinião, não chegaram a se
constituir numa ruptura epistêmica ou paradigmática.
4
Sobre o tema ver Castells, 1999.
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
179
de fazer as coisas de um modo reprodutível” 5 – deslocaram boa parte do saberfazer de uma dimensão meramente prática, para uma dimensão teórica, de
inovação, de criatividade. Essa é a centralidade do conhecimento teórico como
fonte (stock), de inovação e de formulação política para a sociedade a que se
refere Bell (1977, p. 31-32), quando afirma que a “sociedade industrial representa
a coordenação das máquinas e dos homens para a produção dos bens. A
Sociedade pós-industrial organiza-se em torno do conhecimento, a fim de exercer
o controle social e a direção das inovações e mudanças.”
As transformações apresentadas por Bell, em 1973 – e que de certa forma
têm se confirmado e em muitos aspectos surpreendido, dada a sua radicalidade –
, quando vistas de uma perspectiva do debate moderno/contemporâneo, não
parece tratar-se simplesmente da adoção de um ou de outro enfoque crítico sobre
teorias concorrentes, métodos de abordagens, ou da escolha ou não de um
determinado objeto empírico. Trata-se, mais adequadamente, de esgotamento de
uma epistèmê, no sentido foucaultiano, ou da mudança de um paradigma no
sentido kuhniano. Com essa mudança paradigmática, assiste-se a impossibilidade
de teorias universalizantes em darem conta in totum da realidade social, como
aquelas propostas pelos clássicos da sociologia – com Marx, a possibilidade
emancipatória, via proletariado, e o fim do sistema capitalista; com Durkheim, a
coalescência, pela via do consenso; e, com Weber, a igualdade e racionalidade
organizacional e social, através do processo de burocratização.
A noção de sociedade do conhecimento está presente em diferentes
nomenclaturas que se esforçam por caracterizar as marcantes e aceleradas
transformações que se seguiram principalmente a partir dos anos 60 do século
XX.
Essas
nomenclaturas,
tais
como
pós-fordismo,
pós-industrialismo,
neomodernidade, alta modernidade, contemporaneidade, pós-modernidade, como
já mencionamos, embora possam ter sutilezas ou buscarem focar aspectos
diferentes de uma mesma realidade, todas têm em comum um mesmo fio
condutor, qual seja: a necessidade de distinguir alguma faceta de transformação
de um estado de ordem anterior – com um certo nível de consenso – para um
novo e singular estado, cujas percepções, olhares, focos e decorrentes esforços
5
Nesse sentido reproduzo a definição de tecnologia proposta por Harvey Brooks (1971), utilizada
e citada tanto por Daniel Bell (1977, p. 44), como por Manuel Castells (1999, p.49).
180
Léo Peixoto Rodrigues
explicativos não apresentam suficiente consenso. Portanto, é essa necessidade
de pautar as distinções, bem como a dificuldade – mesmo numa perspectiva
crítica – de consenso, ou pelo menos de pontuar os elementos constitutivos do
dissenso que caracteriza o que se pode chamar de descontinuidade.
Na chamada modernidade, principalmente no Iluminismo, o conhecimento
parecia avançar, tendo como mola propulsora a crítica que se colocava de forma
dialógica (dialogal) e quase sempre dual. O conhecimento também parecia
avançar, desenvolver-se numa dimensão dialética, com teses, antíteses e
decorrentes
sínteses
suficientemente
bem
caracterizadas.
Os
diferentes
momentos do debate filosófico e científico, na modernidade, pareciam apresentar
estruturas argumentativas que ofereciam, na maior parte das vezes, a
possibilidade de identificação de consenso ou de dissenso, quando à
plausibilidade de teses e de antíteses e consequentes sínteses.
A ideia de crise ou de descontinuidade do conhecimento, que tem dado
sustentação à noção de pós-moderno, passa necessariamente pela dificuldade ou
impossibilidade de realização de sínteses a partir de diferenciações duais.
Contemporaneamente, os objetos do mundo 6 – pertencentes a diferentes
categorias da cognição, isto é, sejam eles reais, virtuais ou simbólicos, passíveis
de abordagens teóricas ou empíricas – são resultados de um acelerado processo
de diferenciação, cujas sínteses, quando possíveis, não geram necessariamente
“um novo”, um “resultado”, uma “solução”, senão mais e mais diferenciações.
É a diferenciação dos modos de ser, saber, fazer e estar, que perpassa os
diferentes
planos
(social,
político,
econômico,
cultural)
das
sociedades
contemporâneas, sejam elas ocidentais ou orientais, provocando, uma ruptura de
caráter epistemológico com relação ao conhecimento desenvolvido nas
sociedades
modernas.
Isso
coloca
em
questão
aspectos
fundamentais
relacionados ao conhecimento: aspectos de caráter epistemológico, isto é, sobre
os próprios fundamentos do que é verdadeiro e falso; aspectos de caráter
heurísticos, ou seja, a partir de que conjunto de regras podemos conhecer com
segurança os fenômenos em contínua transformação; e aspectos de caráter
6
Chamamos aqui de “objetos do mundo” tudo aquilo que é produzido pelo conhecimento, seja ele
de que natureza for: filosófico, científico, literário, artístico, tecnológico, religioso, ou de senso
comum. A natureza desses objetos também pode ser real concreta, real abstrata, real virtual.
Chamo, aqui, de “real” toda e qualquer experiência compartilhada por grupos sociais,
independentes do tempo e do espaço.
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
181
teórico: de que forma é possível construir um modelo – teorias são modelos
descritivos e/ou explicativos do real – que descreva, represente, ilumine a
realidade fática se, por um lado, esse modelo carece de uma fundamentação, de
um conjunto de regras e de métodos que lhe permita acessar o “objeto” a ser
conhecido e, por outro lado, como construir um modelo que explique uma
realidade que se diferencia a todo instante. Nessa mesma direção, Stein, afirma
que:
O fim da modernidade é o momento em que não foi mais possível
sustentarmos que é possível, através de um único sistema
filosófico, dar explicação que tenha eficácia em todos os domínios
do saber humano: em nível cognitivo, em nível de conhecimento,
em nível prático, em nível moral e também em nível subjetivo, em
nível artístico, etc.(Stein, 2001, p. 21).
As vozes que se colocam contrárias ao argumento do “fim da
modernidade”, oriundas de diferentes correntes, fundamenta-se basicamente em
três pontos corolários, quais sejam: a) a modernidade não se constituiu num
processo linear e tem apresentado diversos momentos de importantes
transformações,
portanto,
essa
contemporaneidade,
é mais
um
desses
momentos; b) a modernidade ainda não se realizou na plenitude de seus ideais
basilares, e as transformações contemporâneas constituem-se no contínuo
esforço para a consecução desses ideais; e, c) a existência de uma “nova ordem”
é um produto da modernidade, representa a continuidade de algo pré-existente e,
portanto, não é um “pós”; não pode ser vista como uma ruptura, tampouco como
um fim.
Os pontos elencados e defendidos por correntes de pensamento, quer
sejam filosóficas, sociológicas ou históricas não deixam de ter alguma razão. De
fato, na superfície dos acontecimentos, no desenrolar das transformações
cotidianas, é possível o estabelecimento de uma linearidade de acontecimentos
que levam a outros acontecimentos, sucessivamente, sem que se perceba
qualquer corte, ruptura ou fim. Entretanto, a partir de um olhar menos horizontal e
mais verticalizado, no que diz respeito às transformações contemporâneas, e que
busque comparar os fundamentos que dão sustentação ao estado de ordem
moderna e as transformações (diferenciações) das últimas décadas, é possível
182
Léo Peixoto Rodrigues
perceber as descontinuidades, rupturas ou finalizações no que diz respeito aos
fundamentos epistêmicos, heurísticos e teóricos entre um estado de ordem e
outro. Esse mergulho aos fundamentos e a descontinuidade dos mesmos foi o
que Foucault chamou epistèmê, em As Palavras e as Coisas, publicado em 1966.
Para Foucault a epistèmê de uma determinada época pode ser vista pelos
condicionantes de uma ordem intrínseca, por uma espécie de logos, que constitui
um substrato fértil que permite e limita, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de
um determinado tipo de conhecimentos e saberes em detrimento de outros. Na
suas palavras, epistèmê significa a identificação,
Segundo qual o espaço de ordem se constitui o saber; na base de
qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam
aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em
filosofias, formar-se racionalidades (...) Não se tratará, portanto de
conhecimento descritos no seu progresso em direção a uma
objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse, em fim se
reconhecer (...) trata-se de trazer à luz o campo epistemológico, a
epistèmê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer
critério referente a seu valor racional ou suas formas objetivas,
enraízam sua positividade (Foucault, 1999, p.xviii).
Epistèmê, em Foucault, não quer dizer sinônimo de conhecimento ou de
saber, significa, sim, a existência, de um princípio de ordenação histórica dos
saberes e daquilo que se entende por conhecimento anterior à ordenação do
discurso estabelecida pelos critérios de cientificidade e dela independente. A
epistèmê é a ordem específica do saber; é a configuração, a disposição que o
saber assume em determinada época e que lhe confere uma positividade
enquanto saber (Foucault, 1990). Em outras palavras, a epistèmê é constituída
pelo conjunto de pressupostos, preceitos e possibilidades que estruturam o
pensamento e as práticas – discurso, nos termos de Foucault – de uma
determinada época. Isso significa que seria a própria epistèmê quem determinaria
as fronteiras, os limites de possibilidade de conhecimento e de experiência de um
determinado momento histórico, controlando, inclusive os graus, os níveis e as
formas do próprio processo de diferenciação de uma sociedade.
Como já mencionei em outro lugar (Rodrigues, 2005), as teses levantadas
por Thomas Kuhn, principalmente com os seus conceitos de ciência normal,
revolução científica e paradigma, publicadas em A Estrutura das Revoluções
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
183
Científicas, em 1962, reacendeu o debate epistemológico clássico sobre a
positividade da Ciência moderna, no sentido do consenso, da certeza, da
verdade, da previsibilidade e, principalmente, da linearidade e da acumulatividade
da Ciência e de suas descobertas. É interessante salientar que aquilo que Kuhn
(1996, p. 45) definia como paradigma, para ciência, isto é: “toda a constelação de
crenças, valores, técnica, etc..., partilhadas pelos membros de uma determinada
comunidade”, Foucault empregava ao termo epistèmê, um sentido muito mais
abrangente,
de
forma
que
abarcasse
toda
a
dimensão
cultural
e
consequentemente seus diferentes tipos de conhecimento e saberes, de uma
determinada sociedade.
Para que se possa conhecer como se compõe esse substrato que se
constitui na chamada epistèmê, isto é, o subsolo que possibilita a sua
emergência, restringindo e incentivando, conhecimentos e práticas (discursos),
Michel Foucault (1997) propõe mais que um método, uma heurística, mas, sim,
uma arqueologia do saber. Na realidade, come diz Strathern (2003, p 36) ele
propõe “a exumação das estruturas de conhecimento ocultas que dizem respeito
a um período histórico particular. Isto consiste dos pressupostos e preconceitos,
em geral inconscientes, que organizam e delimitam objetivamente o pensamento
de qualquer época”. A noção de paradigma, proposta por Kuhn, embora
circunscrita à Ciência, não tem outra finalidade senão chamar a atenção para o
fato de que a ciência que se faz, a sua inflorescência, o seu resultado, estão
condicionados às regras de um determinado consenso (paradigma) que se forjou
historicamente. Da mesma forma, a noção de episteme, proposta por Foucault, de
modo muito mais abrangente que a noção de paradigma que fora proposta
exclusivamente para o discurso científico, indica que as práticas sociais, culturais
e mesmo históricas emergem a partir de determinadas regras (um princípio
ordenador). Em ambos os termos, paradigma e epistèmê, está implícita – e por
vezes suficientemente explicita em diferentes momentos do trabalho desses
autores – a ideia de que é necessário transcender a superfície das práticas para
de fato conhecê-las. Em outras palavras, tanto a noção de paradigma como de
epistèmê, reivindicam pela necessidade de uma arqueologia do saber, seja ele
científico ou cultural. Entretanto, por que não uma sociologia do Conhecimento,
184
Léo Peixoto Rodrigues
uma vez que as fronteiras entre cultura, ciência e tecnologia e sociedade
encontram-se totalmente borradas?
3. A perda da unidade de um sistema
A indicação de uma crise – por vezes mais que isso, um fim – para a
modernidade, nos termos em que tem sido proposta por alguns teóricos, não
pode nem deve ser buscada na superfície dos acontecimentos sociais, culturais,
ou científicos, no olhar de “senso comum”. A noção de crise, descontinuidade ou
até mesmo fim, deve ser buscada, centralmente, em nível de uma episteme, ou
axiomático, ou paradigmático; em níveis que dão sustentação às diferentes
práticas discursivas dessa contemporaneidade. Mesmo porque as próprias
práticas
discursivas
emergentes
nessa
contemporaneidade
indicam
que
importantes transformações estão ocorrendo no substrato que lhe dão
sustentação.
A pressuposição de uma crise, de uma transformação nos fundamentos da
modernidade, entretanto, não pode acarretar o ônus imediato em demonstrar,
esquadrinhar
qual
é
a
episteme
que
está
se
constituindo
nessa
contemporaneidade, como desejam alguns críticos da pós-modernidade. Isso
seria impossível, uma vez que não há perspectiva, distanciamento temporal,
tempo suficiente para que se vislumbre a composição a formação dessa nova
ordem; talvez ela mesma não se tenha dado a conhecer. É por esse motivo que
trabalhos como os de Daniel Bell, de 1973, e de Jean-François Lyotard, de 1979,
e alguns outros, são vistos – e declarado pelos próprios autores – como trabalhos
que falam mais de uma ordem futura, uma previsão, que propriamente sobre
presente. Portanto, aqueles que defendem a emergência de uma nova ordem, a
chamada pós-modernidade, ou qualquer outro conceito que equivalha, estão
olhando mais para um esfarelamento do substrato que tem dado sustentação aos
cânones da modernidade, que propriamente apresentando. Especificando, os
axiomas de uma nova ordem que, com certeza, está em gestação e ainda é
impossível conhecermos o rosto, apenas identificamos tênues traços. Lyotard
(1986) em sua obra intitulada O Pós-moderno, faz a seguinte advertência
introdutória:
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
185
Este estudo tem por objeto a posição do saber nas sociedades
mais desenvolvidas. Decidiu-se chamá-las de “pós-moderna”. A
palavra é usada, no continente americano, por sociólogos e
críticos. Designa o estado da cultura após as transformações que
afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a
partir do final do século XIX. Aqui, essas transformações serão
situadas em relação à crise dos relatos (...) Simplificando ao
extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação
aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das
ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe (Lyotard,
1986, p. xv-xvi).
Esses relatos e metarrelatos (relatos universalizantes), sejam eles de
caráter filosófico ou científico 7 no decorrer período que se passou a chamar
consensualmente de moderno, na maior parte das vezes tiveram a pretensão – ou
foram aceitos como tal – de se constituírem numa arquitetura epistêmico-teóricoconceitual definitiva aos diferentes tipos de saberes humanos. Eles passaram
então a nortear o movimento humano em diversas (e diferentes) sociedades,
legitimam-se como verdadeiros, certos. Toda a crítica que lhes foi feita, na maior
parte das vezes, não foi suficiente para desconstruí-los; contrariamente, quase
sempre contribuíam para o seu aprimoramento, avanço, legitimação, conferindolhes uma dimensão de princípio, de fundamento, de conhecimento clássico. Essa
perspectiva contribuiu – não apenas à filosofia e à ciência, mas também à arte e à
literatura, sobretudo – para o estabelecimento da noção de evolução, de
progresso, de avanço, e continuidade, de ascendência, de verdade e de
emancipação.
De modo suficientemente estreito, o fim, o esgotamento, ou crise da
episteme moderna se confunde com a “crise dos relatos” ou a “incredulidade dos
metarrelatos”, nos termos de Lyotard. É nesse mesmo sentido que Stein (2001, p.
21) aponta que: “no momento em que perdemos esta unidade de um sistema, ou
possibilidade de haver sistema filosófico que explique as diversas regiões
fundamentais do saber e do convívio humano, neste momento, chegamos ao fim
7
Os grandes relatos estão presentes em diferentes momentos e áreas do conhecimento moderno.
A título de exemplificação, nas ciências humanas, a noção de contrato social desenvolvida –
evidentemente com diferenças inclusive significativas – por Hobbes, Locke e Rousseau; do
mesmo modo a teoria marxiana, cuja crítica realizada por mais de um século, pelos chamados
marxistas, teve como objetivo o seu aprimoramento. Nas chamadas ciências da natureza a física
de Newton, bem como a teoria da evolução de Darwin, constituíram-se temas de debate, desde a
sua concepção; o mesmo se pode dizer da teoria psicanalítica de Freud, embora mais tardia,
inspirou o desenvolvimento de muitas outras correntes no âmbito das ciências do comportamento.
186
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da modernidade”. A perda da unidade de um sistema a que se refere o autor, não
significa que essa unidade não fora ou não deveria ter sido criticada. Ao contrário,
era justamente a crítica a essa unidade que lhe conferia e garantia a centralidade,
a universalidade a dimensão de fundamento. A modernidade fora, o tempo todo,
crítica. É justamente o abandono, o desinteresse pela crítica dos chamados
metarrelatos e consequentemente a busca de novas paisagens, novos horizontes
de saberes, que denota a perda de unidade, apontada por Stein (2001), dos
diferentes sistemas que davam sustentação axiomática à modernidade.
É necessário, pois, que também a sociologia examine, quais foram os
motivos que desencadearam a incredulidade, a descontinuidade, o fim dos
metarrelatos como possibilidade de representação das manifestações humanas
em suas diferentes formas de saberes. Nesse sentido, Lyotard (1986, p. xv-xvi)
tem uma aguçada percepção quando vincula a incredulidade com relação aos
metarrelatos a um efeito do progresso das ciências; afirmando, por outro lado que
esse progresso, por sua vez, a supõe. De fato a Ciência, desenvolvida de forma
pujante no decorrer de toda a modernidade, parece ter sido o tipo de
conhecimento que mais logrou sucesso durante toda a história da humanidade,
nas mais diferentes sociedades, desde os conhecimentos mítico, alquímico e
religioso.
O conhecimento científico na sua obstinada busca por pontuar todas as leis
da natureza, na tentativa de construir o quadro geral de todo o conhecimento e
assim dominar os fenômenos ditos naturais e humanos, transbordou a si próprio,
deparando-se com os limites do continente que o continha. Como conteúdo, o
conhecimento científico, parece ter se esparramado no mar das descobertas
geradas por si próprio; descobertas, estas, que, se por um lado, transformaram as
paisagens social, cultural, política, econômica, artística e tecnológica, por outro
lado, diferenciaram tanto os objetos do mundo a ponto de transformá-los na atual
teia de complexidade.
A “realidade”, seja humana ou natural – dicotomia, esta, que faz parte de
uma episteme de caráter cartesiano –, não obstante a todo esforço (e porque não
dizer sucesso) da Ciência, mostrou claramente que não se dá a conhecer tão
facilmente. O avanço da Ciência fez com que o conhecimento representasse não
a
verdade
universal,
mas
a
seletividade
de
incontáveis
possibilidades
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
187
combinatória entre os diferentes objetos do mundo, nos seus distintos níveis (ou
dimensões) de “apreensão” cognitiva. A Ciência – que buscava uma realidade
finita e estável – foi lançada num mar de infinitas realidades (possibilidades) que
podem ser acessadas circunstancialmente, contingencialmente e, na maior parte
das vezes, de forma precária. Dessa forma, o conhecimento, como um mero
processo de diferenciação entre os múltiplos objetos do mundo, ocorre de forma
exponencial: quanto maior o conhecimento, maior é a diferença dos objetos
postos no mundo, portanto, mais diferenciação é produzida, e assim por diante.
Como esse processo ocorre não apenas de forma quantitativa, mas qualitativa e
como
a
contingência
e
a
precariedade
fazem-se
sempre
presentes,
impossibilitando a aspiração iluminista de estabelecimento de leis gerais, ficam,
assim, estabelecidas as bases sobre a qual se erige a complexidade.
A unidade perdida, como bem tem apontado Stein (2001, p. 21), não é
somente a unidade do sistema filosófico, do metarrelato, é concomitantemente a
perda da unidade do “objeto” – o objeto do mundo – sobre o qual o sistema
filosófico se reportava, uma vez que esse “objeto” diferenciou-se em todas as
direções (ou dimensões), adquirindo a capacidade de falar de si através de
diferentes linguagens, com diferentes interlocutores, por vezes ao mesmo tempo.
É dessa forma que devemos buscar compreender os termos diferenciação e
fragmentação, atualmente tão empregados para descrever um novo estado de
ordem que se constitui.
A Filosofia moderna e a Ciência, não apenas se desenvolveram,
potencializando-se mutuamente desde os prenúncios da modernidade, como
também se entrelaçaram de maneira profundamente simbiótica. A Ciência,
durante toda a concepção de modernidade, desenvolvia-se vigorosa, guarnecida
pela filosofia que, de certa forma, lhe guiava os passos, por entre o corredor bem
iluminado pela luz do logos, evitando, assim, as contradições de um mundo quase
dual. Entretanto, o rastro de transformações que a Ciência tem deixado por onde
passava, isto é, ao fazer emergir novos, e novos objetos no mundo, resultantes de
sua interação cada vez mais aguda com objetos-preexistentes, tem se constituído
em fatores determinantes na construção da sua própria crise, da ruptura e, porque
não dizer, do fim da modernidade. Não apenas da unidade constitutiva do sistema
188
Léo Peixoto Rodrigues
filosófico moderno ruiu; ruiu também a unidade constitutiva dos principais axiomas
da ciência moderna, a unidade do seu método. Então, o que restou?
A resistência a uma noção pós-moderna compara-se a inconformidade
frente ao sentimento de orfandade: parece ter restado muito pouco além de
espumas. O corredor bem iluminado pela luz do logos agora tem suas paredes
arredadas, transformou-se num grande átrio com numerosos objetos, fazendo
com que a luz que outrora iluminadora provoque apenas penumbra. Essa é a
complexidade quando enfocada de um ponto de vista epistemológico, teórico
heurístico e metodológico no que se refere ao conhecimento contemporâneo. A
ruptura, a descontinuidade, objeto de tantas disputas acadêmicas, quando o tema
é a modernidade/pós-modernidade, está no fato de não dispormos mais da
eficiência das ferramentas que antes dispúnhamos para a apreensão da
totalidade, para a construção da certeza para a fundamentação da verdade.
4. Considerações
Conhecer o conhecimento como dimensão e parte fundamental da cultura
humana e ir em busca dos diferentes fatores que o determinam, o condicionam, o
direcionam, o estimulam e o limitam, já fazia parte da proposta apresentada por
Karl Mannheim, em seu livro, lançado pela primeira vez em 1929, denominado
Ideologie und Utopie. Quase um século se passou e as ciências sociais em geral
e, em particular, a sociologia poucos esforços têm dedicado, sobretudo no Brasil,
para conhecer com maior profundidade a produção de conhecimento, um dos
fazeres centrais da cultura contemporânea.
É evidente que os esforços para a compreensão das diferentes dimensões
de conhecimento que a sociedade contemporânea tem desenvolvido não devem
(e tampouco poderiam) ficar circunscritas a alguns poucos preceitos teóricos e
metodológicos levantados por Mannheim. Entretanto, ele teve o mérito de
perceber no início do século XX, a velocidade das transformações sociais
propiciadas pelo desenvolvimento multidisciplinar do conhecimento, e alertar para
o fato de que a sociologia, como disciplina do conhecimento científico, deveria
ficar atenta a tais transformações.
Há limites para a Sociologia do Conhecimento em uma “Sociedade do Conhecimento”?
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É bem verdade que nos dias de hoje temos múltiplos esforços
(transdisciplinares) para lidar com o conhecimento no sentido lato. Porém, nunca
antes na história da modernidade, o conhecimento (sobretudo, o conhecimento
científico-tecnológico) tem transformado de modo tão radical a sociedade nas
suas principais esferas, isto é, no plano social – das relações sociais – no plano
cultural, político e econômico, além dos desdobramentos que daí decorrem.
A sociologia, de certo modo, continua ainda tímida no avanço de pesquisas
que se referem ao conhecimento científico, isto é, às produções oriundas das
diferentes ciências (disciplinas científicas) e que, de algum modo, afetam as
relações sociais, sejam essas relações entre Estado e Sociedade civil, no seio da
própria sociedade civil (hábitos de consumo, lazer, estilo de vida; comportamento
de massa, violência; ocupação de espaços e territorialidade; envelhecimento
longevidade, etc) e, sobretudo, as transformações de caráter mais profundo que
têm relação com uma socioecologia numa perspectiva mais ampla. Fato é que as
transformações são drásticas e a Ciência, no sentido da sua propositura
iluminista, moderna, não tem conseguido dar conta, mesmo minimamente, das
velozes transformações. Daí uma sociologia do conhecimento que pode e deve
ser ilimitada na sua contribuição para o conhecimento do conhecimento.
5. Referências
BELL, Daniel. O Advento da Sociedade Pós-industrial. São Paulo: Cultrix, 1977.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
LYOTARD, Jean-François. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva,
1996.
RODRIGUES, Léo P. Introdução à Sociologia do Conhecimento, da Ciência e do
Conhecimento Científico. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.
STEIN, Ernildo. Epistemologia e Crítica da Modernidade. Ijuí: Editora Unijuí, 2001
STRATHERN, Paul. Foucault em 90 Minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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Debates pertinentes: para entender a sociedade