PROCESSO 0000177-22.2010.5.01.0046 RECURSO ORDINÁRIO ACÓRDÃO 10ª T U R M A DANO MORAL. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. O combate à discriminação é uma das mais importantes áreas de avanço do Direito, característico das modernas democracias ocidentais. Afinal, a sociedade democrática distingue-se por ser uma sociedade suscetível a processos de inclusão social, em contraponto às antigas sociedades que se caracterizavam pela forte impermeabilidade, marcadas pela exclusão social e individual. Nesse sentido, o princípio da não discriminação, o respeito ao valor do trabalho e a subordinação da livre iniciativa à sua função social atuam como fatores limitadores à dispensa imotivada. Configurada a odiosa conduta discriminatória empresarial quando da dispensa obreira, impõe-se ao empregador o ônus de arcar com a respectiva indenização, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. Apelo patronal improvido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso ordinário em que são partes: TAM LINHAS AÉREAS S/A, como recorrente, e MARCUS BRITTO TROVÃO, como recorrido. Adoto, na forma regimental, o relatório do nobre Desembargador Marcelo Antero de Carvalho, Exmo. Relator do sorteio, verbis: “A Excelentíssima Juíza do Trabalho Maria Gabriela Nuti, da MM. 46ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, prolatou a r. sentença de fls. 368/374, complementada às fls. 388 pela decisão dos embargos declaratórios, que julgou procedente em parte o feixe de pedidos. A reclamada, não conformada, interpôs recurso ordinário de fls. 392/427, requerendo a reforma da decisão de primeiro grau no que tange ao adicional de periculosidade e indenização por danos morais.. Contrarrazões às fls. 439/466, requerendo a confirmação do julgado. Os autos não foram remetidos ao respeitável Ministério Público do Trabalho, considerando-se a Lei Complementar nº 75/1993 e o Ofício PRT/1ª Região nº 27/08-GAB, de 15/01/2008. Este é o breve relatório”. V O T O: Conhecimento: Recurso ordinário interposto a tempo e modo. Conheço-o. Mérito: Do adicional de periculosidade: Bate-se a empresa recorrente pela reforma do veredicto de origem que a condenou ao pagamento do adicional de periculosidade, sob o argumento de que o obreiro, na condição de piloto de aeronave, não estaria sujeito a risco acentuado quando do abastecimento daquela Trata-se de desarrazoada tese. Exsurge do panorama processual que o autor ingressou na ré em data de 21/12/2000, tendo exercido as funções de co-piloto e comandante de aeronave, até à dispensa verificada em 05/03/2008, ocasião em que percebia a remuneração de R$6.163,11 (seis mil, cento e sessenta e três reais e onde centavos). O minucioso e denso laudo pericial elaborado pelo expert do Juízo de origem classificou como perigosa a atividade laborativa prestada pelo obreiro, merecendo destaque seus termos, às fls. 273, verbis: “Foi constatado pela perícia realizada no pátio do estacionamento de aeronaves que tanto o co-piloto como o comandante permaneciam trabalhando na área de risco enquanto o abastecimento da aeronave com o combustível QAV-1 estava sendo processado; além disso, o representante da TAM, Sr. Hideo Takahashi de Luccas (comandante de aeronaves), confirmou que é normal a permanência do co-piloto e do comandante ... no interior do avião e que ao comandante era atribuída a responsabilidade de recepcionar os passageiros na porta da aeronave no momento de embarque. Dessa forma, e baseado única e exclusivamente no que determina a lei trabalhista, o perito do Juízo considera a atividade do Reclamante como periculosa, fazendo jus ao adicional de periculosidade de 30%, durante todo o tempo em que prestou serviços para a TAM Linhas Aéreas S/A.” Com efeito, ainda que o autor não estivesse em contato direto com inflamáveis, o fato de exercer seu mister em área de operação das aeronaves, durante o reabastecimento destas, por si só configura circunstância de risco, na forma estabelecida pelo anexo 2, item 1, letra "c" da NR-16 do Ministério do Trabalho, verbis: "São consideradas atividades ou operações perigosas, conferindo aos trabalhadores que se dedicam a essas atividades ou operações, bem como aqueles que operam na área de risco adicional de 30 (trinta) por cento as realizadas: (...) c. nos postos de abastecimentos de aeronaves a todos os trabalhadores nessas atividades ou que operam em área de risco. (...) ÁREA DE RISCO Toda a área de operação, abrangendo no mínimo, círculo com raio de 7,5 metros com centro no ponto de abastecimento e o círculo com raio de 7,5 metros com centro na bomba de abastecimento da viatura e faixa de 7,5 metros de largura para ambos os lados da máquina.” Nesse rumo, não discrepa a jurisprudência, verbis: "ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. ... ATIVIDADES EXERCIDAS EM ÁREAS DE RISCO. O fato do reclamante não trabalhar diretamente no abastecimento de aeronaves, mostra-se irrelevante, diante dos termos do Anexo 2, item I, da NR 16, que considera perigosas não apenas as atividades de trabalhadores que se dedicam especificamente a essa atividade ou operação (abastecimento), mas também àqueles que operam na área de risco, que é a hipótese dos autos. Recurso de revista conhecido e desprovido". (TST-RR 2449-1998018-05-40 - 2ª Turma - Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva - pub. em 10/10/2003) De outra banda, ao revés do alegado pelo empregador, o trabalho intermitente em área perigosa traz ínsito risco potencial para o trabalhador, expondo-o à circunstância de dano capaz de malferir sua integridade física. A questão restou pacificada no cenário jurisprudencial pela edição da Súmula nº 364 do c. TST, verbis: “ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. EXPOSIÇÃO EVENTUAL, PERMANENTE E INTERMITENTE. Faz jus ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma intermitente, sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dáse de forma eventual, assim considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido”. Dessarte, comprovada a exposição intermitente do obreiro ao agente perigoso, mantenho intacta a decisão recorrida. No que toca à base de cálculo das parcelas e dos respectivos reflexos, a condenação encontra-se em consonância com os entendimentos consubstanciados nas Súmulas nºs 132 e 191 do c. TST. Nego provimento. Da indenização por dano moral: Rebate a ré a condenação que lhe restou imposta, no valor equivalente a 100 vezes a remuneração obreira (R$616.311,00 - seiscentos e dezesseis mil, trezentos e onze reais), a título de indenização por dano moral. Nega o conteúdo discriminatório que teria motivado o despedimento. O argumento não convence. Sabe-se que a denúncia vazia do contrato de trabalho traduz um direito meramente potestativo. Todavia, indigitado direito encontra limites no ordenamento jurídico pátrio e, em algumas vezes, em normas coletivas, restringindo ou, até mesmo, inviabilizando o livre exercício do poder resilitório. Exubera do cenário processual que o trabalhador possui um qualificado currículo e, no desenvolvimento de seu mister, sempre zelou pelas condições de segurança das aeronaves, denunciando as irregularidades capazes de pôr em risco a vida da tripulação e dos demais passageiros, o que, em última análise, conspira em favor da própria empresa, na medida em que salvaguarda sua imagem comercial. No caso em baila, a cláusula 8ª da Convenção Coletiva de 2007/2008 (fl. 62), vigente à época da dispensa, impunha critérios a serem observados quando da necessidade de redução do quadro de pessoal. Ocorre que, em sua peça de resistência, a ré refutou expressamente a observância do dito regramento normativo, invocando, tão somente, o exercício de seu direito potestativo. Em contraponto, o acervo probatório dos autos, notadamente, a prova oral produzida reverbera o malsinado caráter discriminatório da dispensa obreira e a ameaça velada de seu preposto, inviabilizando a obtenção de novo emprego pelo trabalhador, verbis: “Que (...) ouviu o comandante Yuri comentando com outros pilotos sobre o reclamante; que não conhecia o reclamante pessoalmente e ouviu falar dele como foram de exemplo no sentido de que o autor reclamava muito dos itens de documentação e manutenção das aeronaves da reclamada; que, utilizando o exemplo do autor, Yuri pedia que todos tivessem mais flexibilidade e maleabilidade no trabalho, não exigindo tanto rigor quanto aos itens de segurança; que tal fato ocorreu no DO de Congonhas; que, na ocasião, o autor já teria sido dispensado e inclusive servia de exemplo (...), ou seja, os comandantes ali presentes deveriam ser mais flexíveis para não incorrerem no mesmo ‘erro’ do autor; que a ré determinada a realização de vôos sem o cumprimento de todas as regras de segurança necessárias, pois dificilmente um fiscal perceberia isso; que havia vários chefes que davam essa ordem, e o próprio Yuri Cidim na referida conversa, citando o autor como exemplo, deu uma ordem do gênero; que no Do de Congonhas, em outra situação, (...) ouviu do comandante Yuri Cidim que, dependendo dele, o comandante Trovão (reclamante) não conseguiria emprego tão fácil, pois eram poucas as empresas no Brasil; ... que sabe dizer que Yuri Cidim, até 2010, era um dos chefes de equipamento, logo, também era chefe do autor; que o comandante Yuri era muito taxativo e impunha muito as vontades da chefia; (...) que as pessoas ficavam boquiabertas com o fato de o autor, cerca de 2 anos após a dispensa, não ter conseguido se recolocar, com todo seu currículo” (fl. 365). E nem se diga que o fato de não haver trabalhado juntamente com o autor desfiguraria o depoimento da indigitada testemunha, na medida em que esta presenciou o superior hierárquico do trabalhador, comandante Yuri Cidim, criticar sua conduta profissional, fazendo-o, não de modo reservado, em conversa informal, mas, ao revés, em reunião, na qual orientava outros pilotos quanto à conduta desejável pela companhia em relação aos procedimentos de segurança das aeronaves. Destarte, do denso e convincente depoimento testemunhal deflui que o trabalhador, ao exigir o estrito cumprimento das normas de segurança das aeronaves, ao invés de receber elogios pelo zelo profissional que orientava sua conduta, tornou-se inconveniente para a empresa. Como bem destacou o Julgador a quo, verbis: “Os elementos dos autos demonstram que o autor era um empregado que lutava por melhores condições de segurança dentro do ambiente de trabalho, era, enfim, um homem corajoso que, enfrentando a omissão legislativa na regulamentação do artigo 7º, I, da CRFB, buscava concretizar aquilo que entendia justo. Pessoas assim, confrontadoras, tendem a incomodar o status de inércia no qual o ser humano tem por hábito colocar-se, para tentar manter uma estabilidade e tranquilidade aparentes. Pessoas assim também incitam revoluções, também colaboram para a evolução social. Cidadãos assim são necessários para a concretização dos objetivos desta República, que consistem, em síntese, na construção de uma sociedade livre, justa, solidária, sem preconceitos, mais igual, menos marginalizadora, para garantir o tão sonhado desenvolvimento nacional. Comandantes deste porte não carregam nas costas a culpa pela morte de pais e mães de família, pois este é o destino de quem se submete ao jugo do empregador irresponsável, que no afã de lucrar mais, determina, não oficialmente, a tolerância com o intolerável, a falta de segurança do voo”. Com efeito, in casu, não se pode conferir validade à dispensa imotivada do autor, restando atribuir-lhe odiosa índole discriminatória, o que vai de encontro aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (art. 1º, III e IV). É relevante observar que o combate à discriminação é uma das mais importantes áreas de avanço do Direito, característico das modernas democracias ocidentais. Afinal, a sociedade democrática distingue-se por ser uma sociedade suscetível a processos de inclusão social, em contraponto às antigas sociedades que se caracterizavam pela forte impermeabilidade, marcadas pela exclusão social e individual. Nesse sentido, o princípio da não discriminação, o respeito ao valor do trabalho e a subordinação da livre iniciativa à sua função social atuam como fatores limitadores à dispensa imotivada. Cumpre, pois, invocar o “princípio da vedação do retrocesso”, segundo o qual o legislador não pode subtrair da norma constitucional definidora de um direito social fundamental o grau de concretização já alcançado. Dito de outra forma, nas palavras de LUÍS ROBERTO BARROSO, “é ilegítimo o retorno a uma situação de omissão constitucional, após ter havido a regulamentação do direito” (A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil, Ed. Renovar). Se assim é, resta configurado o comportamento discriminatório da reclamada em relação ao obreiro, atingindo de forma indelével seu patrimônio ideal. Quanto ao valor atribuído à indenização, tem-se-no por adequado - R$616.311,00 (seiscentos e dezesseis mil, trezentos e onze reais) - considerando-se os danos causados ao autor - a impossibilidade de recolocação no mercado de trabalho por cerca de dois anos, em razão das “proféticas” medidas tomadas pelo empregador traduzidas nas depreciativas informações prestadas a terceiros -, a capacidade econômica da empresa e o cunho pedagógico que se deve incrustar à reparação, sob pena de torná-la pífia. Nego provimento. Da expedição de ofícios: Desarrazoada a insurgência patronal quanto à expedição de ofícios, na medida em que, diante da existência de indícios no que toca ao descumprimento das normas de segurança das aeronaves, é dever do magistrado dar ciência destes aos órgãos competentes, objetivando a adoção das providências cabíveis. Nego provimento Conclusão: Conheço do recurso ordinário e, no mérito, nego-lhe provimento. A C O R D A M os Desembargadores que compõem a 10ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, por unanimidade, conhecer do recurso e, no mérito, por maioria, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Exma. Desembargadora Rosana Salim Villela Travesedo, que redigirá o acórdão, consoante norma regimental. Vencido o Excelentíssimo Juiz do Trabalho Convocado Marcelo Antero de Carvalho, que dava provimento parcial ao apelo, excluindo a condenação por dano moral. Rio de Janeiro, 5 de setembro de 2012. ROSANA SALIM VILLELA TRAVESEDO Redatora designada