1 TELENOVELAS REGIONALISTAS NO CANADÁ FRANCÊS Licia Soares de Souza Universidade do Estado da Bahia- UNEB Resumo: A síndrome canadense na televisão significa uma forma mista de concorrência que conjuga lazer e informação. Semanticamente define produções ancoradas na cultura local enfatizando valores da sociedade representada.A teleficção regionalista ressalta aspectos da canadianidade incorporando personagens coloniais que construiram o país. E as teleséries, ambientadas nos cenários urbanos, recodificam a temática regionalista em torno da problemática dos novos imigrantes no Quebec. Palavras-chave : telenovela, Quebec, regionalismo A síndrome canadense é caracterizada por Dave Atkinson (1993) como um fenômeno que vem modificando os regimes das televisões públicas européias. O Canadá adotou desde o surgimento de sua televisão uma forma mista de concorrência que difere das formas estadounidenses, completamente comerciais, e das formas européias que valorizavam um modelo de serviço público indiferente às seduções do mercado publicitário. A interferência desta síndrome na Europa é caracterizada como a "canadianização do mundo". A canadianização abre um largo debate sobre a constituição de uma televisão nacional que conjuga mercado e serviço público, honrando sobremaneira as culturas locais dos receptores. Efetivamente, a Société Radio-Canada1 investe em produtos regionais, valorizando os estilos de vida e a história das províncias do Canadá. O Québec, sendo uma província produtora de teleséries, se destaca pela evidência do regime misto que aceita a inserção da publicidade para aquecer a criatividade na televisão a qual tem sido reconhecida como importante instrumento de conservação da francofonia na América do Norte. Nesse contexto, Saint-Jacques e De La Garde2 concebem uma interessante matriz conceitual para a compreensão da dinâmica cultural do Québec. Os debates linguísticos, sociais e políticos da província francofônica canadense não são desconhecidos do resto do mundo e levantam questões relativas aos confrontos entre os horizontes culturais de um Velho Mundo conquistador e os de um Novo Mundo que evoluiu em território americano, assim como 2 descortina as contrafações geradas pela hegemonia econômica do mundo anglo-saxão que determinou esse mesmo território americano. No cenário cultural, a literatura quebequense ocupa lugar de destaque na representação dos modos de vida do Grande Norte. A ficção televisiva evoluiu em consonância com a história e os valores específicos da sociedade quebequense, rompendo com as fórmulas do soap opera estado-unidense, a tal ponto que os produtores sempre sentiram dificuldades em exportá-lo para o Canada inglês ou para os países francofônicos da Europa3. Assim, os autores citados elaboram a distinção entre um domínio sábio restrito e um domínio largo de grande consumo , apta .a indicar as relações orgânicas que se estabelecem entre um campo cultural de alto saber e outro campo que abraça produtos heterogêneos destinados ao grande público. Preferindo empregar os termos cultura de grande consumo, pretendem liberar estas formações culturais que se desenvolvem na esfera da mídia industrial das conotações pejorativas. Primeiramente, porque a herança histórica dos termos cultura de massa induz às idéias de indiferenciação social e de atitude passiva dos receptores, até de atitude de fusão com a fonte emissora; a herança não menos pesada de cultura industrial denota a cultura de empresas; e, a herança também problemática de cultura , dividida entre a acepção etnológica que remete ao conjunto das formas adquiridas de comportamento em uma sociedade e a acepção tradicional que só abarca os aspectos intelectuais de uma determinada civilização, gera confusões de ordem semântica. Assim, uma decupagem do campo cultural precisando o domínio intelectual restrito e o domínio largo de grande consumo tem a vantagem de reconhecer as condições materiais de funcionamento de cada campo cultural, permitindo igualmente captá-los em suas condições particulares de produção e de recepção, em suas histórias, nos elos que estabelecem com os variados sistemas de socialização e nos elos que estabelecem mutuamente. Evidentemente essa decupagem supõe um posicionamento que aceita a lógica comercial que alimenta a cultura larga a qual, por sua vez, também contribui ao aparecimento de uma tecnologia de ponta favorecendo a concretização de sempre novas condições de produção e de recepção. Nesse caso, os termos grande consumo retiram a cultura larga da via do desprezo e apontam para a necessidade de análise desses focos ( os meios de comunicação ) de emergência e de consolidação de uma cultura particular que convive com todas as formas culturais, inclusive a sábia, e com os diferentes registros discursivos que codificam as realidades sociais. No seio do debate sobre a síndrome canadense, nota-se uma aliança histórica entre cultura restrita e cultura larga que conserva, no meio televisivo, as funções educativa e informativa reativando igualmente a função da diversão. Nessa direção, a SRC tem sempre feito a propaganda de seus próprios produtos culturais como produtos-reflexo da sociedade onde são produzidos. 3 Telenovelas regionalistas No âmbito da ficção, é um romance de 1933 que deslancha a simbiose entre cultura restrita e cultura larga, favorecendo a instalação da síndrome canadense. Un homme et son péché (Um homem e seu pecado) de Claude-Henri Grignon mostra como um pequeno camponês ( petit paysan de chez nous), não estrangeiros ( sobretudo os ameríndios e os ingleses) que sempre representaram o perigo para o canadense-francês, consegue dominar toda uma comunidade pela prática da agiotagem. Os nativos dessa comunidade fictícia devem dinheiro ao personagem Sérafim que acumula seu tesouro em sacos de aveia beijando-os e abraçando-os frequentemente. Simbolicamente, Serafim encadeia sentimentos ambíguos nos receptores: 1) medo de um avarento que manipula a comunidade em uma época de crise, após a depressão de 1929 ; 2) fascínio pela força desse nativo, enquanto que todo canadense-francês sempre tivera sido considerado como um perdedor nos confrontos com os ingleses. Un homme et son péché se torna o exemplo de uma comunicação literária, cultura restrita, que pôde se manter viva na cultura larga, e na consciência popular, por mais de meio século, graças às versões radiofônicas e televisivas. Ao nível da transposição narrativa romancerádio (1939-1962), Renée Legris ( 1980 ) salienta que a pintura dos costumes se diversifica, novos personagens ligados à vida regional das Laurentides e de São Jerônimo são criados, o homem da terra é valorizado, o que ganha grande importância na construção da imagem quebequense dos rurais, em uma época em que a cidade começa a atrair as populações campesinas. O dinheiro continua sendo o motor da narrativa e a prática da avareza encaminha a ação, mas já existem algumas diferenças entre romance e radionovela. Estruturalmente, esta última, tendo que se estender em inúmeros capítulos, fornece a base para o desenvolvimento de vários núcleos semânticos. O mais importante se configura como aquele que reforça a ideologia da conservação4 como uma consequência positiva da colonização, em uma época já influenciada pelos manifestos modernistas que rompiam com a tradição edênica do mundo rural. Assim, a vida dos povoados é vista como lugar privilegiado de comunicação e solidariedade e o canadensefrancês é contemplado como homem de força, também capaz de vencer, o que deve freiar a atração para a vida urbana e industrializada. Em resumo, se as práticas artísticas da modernidade desejavam o esquecimento desse passado de "terra e batina", ou o esquecimento da canadianidade, como espaço de construção e desbravamento, a radionovela insistiu em mostrar para seus receptores que a colonização não tinha sido tão nefasta, e não deixou o Canadá francês se apagar de todo da memória do quebequense5. 4 Em 1956, a televisão de Radio-Canada decide produzir a telenovela Les belles histoires des Pays d'En-Haut6, adaptação audiovisual de Un homme et son péché. A narrativa televisiva traz modificações na estrutura formal e no conteúdo do romance. Como o explica Legris, a ausência do narrador é compensada pelo suporte visual da imagem e a chegada do sistema de côres transforma o ambiente de miséria do universo imaginário de Grignon em ambiente maravilhoso e luxuoso. O mais importante é que o mito do avarento se transforma passando a configurar práticas coletivas, isto é, a avareza e o individualismo de Serafim são reinterpretados como práticas capitalistas modernas positivas, advindas de uma agricultura produtiva ; essa antiga avareza se torna um projeto de economia política, pois Serafim é eleito prefeito e assim tem a bagagem da racionalidade para administrar o bem público. A economia do pé de meia é substituída pela prática da poupança. De forma mais acentuada que no rádio, a colonização é percebida como momento ideológico dinâmico, gerador de desenvolvimento. E toda a força de Serafim volta a ser sentida como necessária a retirar o Canadá francês do atraso, o que traz para os novos públicos todos os benefícios da ideologia de conservação do território. No mesmo ritmo de Les belles histoires..., outras telenovelas foram produzidas seguindo enfoques temáticos da natureza e da vida rural como Le temps d'une paix ( O tempo de uma paz ) e Terre Humaine (Terra Humana), nos anos 80. Entre 18 de outubro de 1990 e 31 de janeiro de 1991, Radio-Canada transmitiu em vinte episódios a série Les filles de Caleb7, ( As filhas de Caleb) do romance de Arlette Cousture. A série oferece um exemplo recente de adaptação para a televisão de um romance que toca na problemática campesina, revigorando o simbolismo dos personagens de uma comunidade nacional e serve para ilustrar o caráter distinto da indústria audiovisual quebequense. Abriu debates sobre o papel crucial que a televisão sempre desempenhou na criação de uma identidade nacional quebequense, sobretudo por ter sido difundida após o fracasso do acordo do Lago Meech8 em 1990. O conflito principal diz respeito à vida de um casal: Emilie, exemplo de experiência feminina de luta, assumindo sua responsabilidade histórica de criar seus filhos sozinha e Ovila, o marido, errante e instável, figura clássica do coureur de bois, comerciante de peles, símbolo da mitologia dos Países do Alto., que, de uma certa forma, define uma identidade mestiça e intercultural. Com efeito, a problemática da diferença entre o personagem habitante sedentário e o personagem nômade sempre dirigiu as definições da identidade quebequense. Nicolas van Schendel (1994) caracteriza o errante desbravador como uma figura rebelde que descentraliza os eixos da colonização, uma figura híbrida da pre-canadianidade configurada pelo confronto entre o colonizador e os autóctones. 5 Se os romances regionalistas vêm relembrar as expressões da canadianidade nas interações entre nômades e habitantes, os romances urbanos modernos projetam os entrelaçamentos culturais com as figuras dos neo-quebequenses, os novos imigrantes de origens outras que a européia. Há meio século, a cidade atrai populações campesinas do Canadá e trabalhadores da América Latina e Ásia, e o boulevard Saint-Laurent ( em Montréal) surge como novo símbolo da traversia étnico-cultural, assim como representou o rio Saint-Laurent na formação da canadianidade. Neste sentido, telenovelas de sentido urbano transpõem a problemática do descentramento, presente nas narrativas regionalistas, para o cenário atual, mostrando como os sentimentos de ameaça e desconfiança vão se metamorfoseando em uma visão de troca e de colaboração entre paises9. E assim se manifestam determinados aspectos da síndrome canadense na televisão nacional, enfatizando o fato de que as produções têm que trabalhar com valores, não existindo só pra entreter,mas se convertendo em meio de informacao e de cultura com finalidades sociais. Nas discussões entre cultura restrita e cultura larga, Saint-Jacques e De la Garde ressaltam que as críticas dirigidas ao emprego da tecnologia, geralmente de origem estadounidense, para produzir cultura ocultam um fenômeno fundamental na compreensão do papel da teleficção na interpretação da cultura quebequense: um engenho de morte, tecnologia alienígena, se transforma em engenho de vida que valoriza a francofonia e sua cultura. Para testemunhar essa dinâmica televisiva, necessário se faz a consulta de EvaMercedes Sanchez (1999) que mostra como a telenovela quebequense consegue ser um instrumento privilegiado de socialização para imigrantes latino-americanos. Estes reencontram as estruturas das grandes narrativas audiovisuais, a que eram acostumados em seus países de origem, e, através desse hábito de recepção, se informam sobre estruturas semânticas do novo país e aprendem novos valores que necessitam transcodificar no dia a dia. NOTAS : 1 A Société Radio-Canada (SRC) gera a televisão nacional, conhecida como a Televisão de Radio-Canada. 2 Cf.. Denis Saint-Jacques e Roger De La Garde, Les pratiques culturelles de grande consommation. Le marché francophone.,Quebec, Nuit Blanche éditeur,1992. 3 Mesmo a Sociedade Radio-Canada, que assegura um serviço nacional de radio e televisão e que deteve o monopólio da teledifusão até 1960, tendo como missão produzir para todo o território nacional, em inglês e francês, orientada por uma política nitidamente federalista, privilegiou a criação teleromanersca em seu lado francês-quebequense permitindo o surgimento de autores regionais, a consolidação de uma temática e de uma linguagem ancoradas na terra quebequense e, 6 enfim, a formação de uma tradição de invenção televisivas que jean-Yves Croteau (cf. Biblio) chama de milagre. 4 É necessária uma leitura complementar sobre a ideologia da conservação que valorizava o mundo rural e a religião católica, como características do Canada-francês. Esta ideologia dirige os romances regionalistas de 1860 aos anos trinta, quando obras como Un homme et son péché vêm mostrar o lado rude e não romântico dos campesinos. 5 É importante saber que no movimento de modernização da província, a passagem de um Canada francês para o Québec significa cancelamento de valores e tradições, a recusa de uma ideologia de conservação 6 As belas histórias dos Países do Alto. Os Países do Alto. representam a região ao Norte de Montréal, habitada pelos Ameríndios, para onde só iam os desbravadores, os comerciantes de peles, os nômades da sociedade. Por ser uma zona considerada de aventura, se tornou um espaço místico, condenado inclusive pelo clero como espaço de perdição. 7 Sobre esta série consultar , Catherine Saouter, A telenovela, arte de novos narradores. Formas e influências da narrativa telenovelesca. Canadart (2), 1994,p. 87-111. 8 O acordo do Lago Meech, quando as demais províncias do Canadá recusaram aceitar o caráter de sociedade distinta do Québec. 9 Consultar nosso artigo - Paraliteratura e televisão: análise de uma produção da TV de RadioCanada, Scoop.Canadart (2), (cf. biblio), onde analisamos esta problemática em Lance et Compte e Scoop. Referências bibliográficas ATKINSON, Dave, La crise des télévisions publiques européennes. Ou la propagation du syndrome canadien Montréal, .Institut québécois de recherche sur la culture, 1993. SAINT-JACQUES, Denis, DE LA GARDE, Roger, Les pratiques culturelles de grande consommation. Le marché francophone, Québec, Nuit Blanche éditeur, 1992. CROTEAU, Jean-Yves, Répertoire des séries, feuilletons et téléromans québecois. De 1952 à 1992. Québec, Les Publications du Québec, 1993. Fadul, Anamaria (ed.), Ficção seriada na TV. As telenovelas latinoamericanas. São Paulo: Nucleo de Pesquisa de Telenovelas, ECA-USP, 1992. 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Van Schendel, Nicolas, "L'identité métisse ou l'histoire oubliée de la canadianité", La question identitaire au Canada francophone: récits, parcours, enjeux, hors-lieux, sob a direção de J. Létourneau, Québec, Presses de l'Université Laval, 1994, pp. 101-121.