PROGRAMA INTERNACIONAL DE RESIDÊNCIAS A trajetória artística de MARTA FERRACIN, italiana radicada na Austrália, vem priorizando nos últimos anos duas frentes de trabalho: a criação de ambientes imersivos e a experiência do encontro. Ao longo de sua residência de três meses no Rio de Janeiro, Marta observou as interações e documentou diariamente a sua vivência no Brasil com entradas no seu blog. Como resultado, leva daqui os ritos que aconteceram nos encontros: aqueles relatados em seu dia a dia, os ocorridos no momento da feitura dos isopores na praça pública, as trocas dos sons captados que compõem a instalação sonora e a performance do pajé e de todos aqueles que percorrerem os alto falantes da instalação “Techno Entheogen”. Não necessariamente religiosos, são ritos no sentido da capacidade de ativar objetos e espaços, e criar entendimentos que ultrapassam o mundo visível material. “Barato” foi uma performance realizada no Largo de São Francisco no dia 16 de abril, e pode ser conferida em vídeo. Fascinada pelos padrões criados pelos vendedores ambulantes que revestem as caixas de isopor com fitas coloridas com o intuito de diminuir a dispersão térmica, Marta propôs a troca das caixas vazias pelos trabalhos artísticos de transeuntes. Numa espécie de “potlatch”, fornecia os materiais e recebia em troca os registros dos criadores junto de suas obras - os isopores revestidos de fitas adesivas, que levavam com eles. A remuneração pelo ofício era o próprio trabalho, contrariando a lógica capitalista. Já a instalação “Techno Entheogen”, Marta define como um ritual xamânico, em que o volume e a vibração dos sons do mundo contemporâneo ativam o invisível. Sobre 29 alto-falantes pendurados pelo teto repousam ervas e sementes, que tremem de acordo com as diferentes sonoridades que cada subwoofer emana, e despertam os sentidos e a memória das diversas culturas presentes na vida brasileira. O pajé tupi guarani Tobi Itaúna participou ativamente da organicidade da disposição de ervas e temperos, e vai fazer uma performance para marcar o início da obra, com a realização de um ritual para abrir os caminhos e abençoar o espaço. A carga transcendental que Marta imprime na instalação nos instiga a pensar sobre o momento mágico em que um objeto se torna algo mais. Na obra reside a capacidade de transformar o ordinário em especial, em algo cheio de significado. Nessa medida, não seria todo artista um pouco xamã? ****** A proposta desenvolvida pela norte-americana SARAH BEATTY parte de um exercício de meditação que usa a respiração como combustível para o crescimento do corpo. Propõe que se imagine que com a inspiração é possível crescer em direção ao solo, enraizar-se e virar árvore. Crê que é possível sermos um só organismo na natureza: casa, corpo e arquitetura. Com formação em pintura, Sarah tem como foco as pequenas formas, por serem portáteis e caberem na vida nômade. Seus quadros diminutos parecem antigos conhecidos - você certamente já viu algo parecido na casa de praia da sua família -, numa espécie de “comfort painting” que transita pelo kitsch e não se preocupa com estatutos que teimam em separar as belas artes dos desenhos e cores mais simples. A escala reduzida também é usada para investigar como a pintura pode existir no espaço exterior, e é nesse ponto que a sua pesquisa desenvolvida no Brasil se encontra no momento. Tal como no exercício de meditação, o trabalho de Sarah vem de dentro e transparece suas relações sociais efetivas. Para experimentar com as proporções da moradia e do corpo, escolheu uma árvore existente no terreno de sua residência temporária no Rio de Janeiro e nela pendurou pequenas casas de madeira, remetendo às brincadeiras infantis de casa na árvore ao mesmo tempo em que confirma a possibilidade da arquitetura como forma natural. São os registros desse processo e algumas de suas íntimas pinturas que Sarah mostra aqui no Largo das Artes. ****** O alemão BODO KORSIG quer ativar sentimentos e memórias do espectador, mesmo que eles estejam guardados no fundo da mente. Para isso, coloca-o em contato com imagens que, mesmo sutis, são capazes de afetar pessoas de todos os lugares e origens. “Zona Magnética de Dor”, vídeo que resulta de sua estadia no Brasil, mostra duas capturas do fluxo de um edifício garagem em São Paulo, entremeadas por abelhas em movimento. Os carros descem rampas em velocidade reduzida, e remetem aos rituais enfadonhos da vida cotidiana. As abelhas parecem sujeitos de um experimento, e são filmadas sobre um fundo branco, desapropriadas de sua ambiência natural. Nos lembram que cidades são como colônias e, tal como elas, obedecemos a fluxos sociais e naturais. A música da dupla eletrônica alemã CLUBBleu e a poesia de Renato Rezende, ambos colaboradores do vídeo, aumentam a sensação de que estamos diante de um circuito fechado e abafado. Os frames colocados lado a lado criam uma imagem que sorrateiramente nos pergunta sobre a validade dos rumos que escolhemos para conduzir a humanidade. Vale mesmo a pena ficarmos presos no trânsito e a todos esses ciclos que construímos para nós mesmos? Que circuitos são esses que regem nossas vidas? Em meio aos sons industriais, a voz avisa: minha função é pôr a mão na sua caixa de marimbondos / libertar suas abelhas vermelhas ferozes. Deveríamos aprender algo com as abelhas?A residência de quatro semanas de Bodo Korsig no Largo das Artes é um prêmio da competição “Cool stories for when the planet gets hot IV”, uma iniciativa da plataforma ARTPORT_making waves, que busca chamar a atenção para as questões ambientais através da arte. ****** A húngara TIMEA TIHANYI está na metade da sua residência de dois meses no Rio de Janeiro. Radicada nos Estados Unidos e com formação em escultura, leciona na Universidade de Washington em um programa interdisciplinar de arte. Seu processo artístico prioriza a fricção entre objetividade e subjetividade, e se interessa particularmente pelos materiais empregados, o labor que dá vida a eles e a participação e o uso que as pessoas fazem das obras. Desde sua chegada ao Brasil, a artista vive ativamente a alteridade de ser estrangeira e percebe a diferença entre os espaços e os lugares de uma cidade que não lhe é familiar. Ao se definir como uma passageira, sentiu a necessidade de se localizar. Por isso recortou em couro falso dourado seu próprio mapa do Rio. O mapa é uma representação objetiva, mas que como toda abstração, parte da escolha de determinados elementos pinçados da realidade. Portanto, é sempre parcial e nunca será capaz de dar conta do real. A projeção das formigas em movimento carrega de novos significados e afetividade aquilo que deveria ser apenas uma abstração cartográfica. De certa forma, amolece a dureza do traçado das ruas, que são ignoradas nos caminhos trilhados pelos insetos. Tendo a porcelana como seu material favorito de trabalho, Timea está acostumada com a significância que determinados materiais e cores carregam por si mesmos. A escolha da materialidade do mapa reflete isso. O dourado é a cor idealizada construída pelo Brasil para o mundo, baseada no mito da abundância do barroco colonial e do sol tropical. Ciente de que não encontraria correspondência a esse idealismo, apropriou-se desse material pouco nobre comprado nos arredores do Largo das Artes - na região da Saara. Localiza sua experiência num lugar que não é nem o fino ouro nem o tecido que pretende ser couro. A cidade que vem conhecendo é um pouco das duas coisas. Carla Hermann (abril 2015)