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ISSN 2175-9596
VISIBILIDADE E GESTÃO DE SI: CARTOGRAFANDO
CONTROVÉRSIAS ACERCA DAS NOVAS BIOTECNOLOGIAS
Visibility and Sefl-Management: mapping controversies on new biotechnology.
Cristina de Siquera Gonçalves a
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro b
(a)
UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil, e-mail: [email protected]
(a)
UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil, e-mail: [email protected]
Resumo
As novas tecnologias de visualização do corpo, como as tecnologias de mapeamento cerebral, permitindo
outro tipo de visibilidade surgem com a promessa de poder entender melhor os transtornos a fim de criar
novas terapias para os mesmos. Além disso, levam a novos discursos acerca dos sujeitos, não mais vistos a
partir de uma interioridade ou de uma subjetividade, mas sujeitos cerebrais, em que doenças, tais como a
depressão e o TDAH, são vistos como alteração neuroquímica a ser tratada com o uso de medicamentos.
Concomitantemente, abrem o caminho a novas práticas que ultrapassam a questão saúde/doença. Aqui,
comportamento, capacidade cognitiva, humor e outras questões, também são remetidos a trocas
neuroquímicas tornando-se passíveis de serem alteradas pelos mesmos medicamentos que tratam as
doenças. Isso nos leva a discussão das enhancement technologies, intervenções que visam a melhora do
funcionamento ou de características humanas para além do sustento da saúde ou reparo do corpo (Hogle,
2005 apud. Frize, 2013), sendo uma dessas práticas o consumo de medicamentos para a melhora da
performance cognitiva e do humor. Visto isto, propomos analisar no presente trabalho o consumo desses
medicamentos por entendermos que o mesmo está articulado com novas formas de perceber e intervir
sobre o corpo, estando articulado a uma gestão de si. Envolvendo também questões éticas importantes,
como a possibilidade de coerção ao seu consumo e a redefinição da natureza humana, que longe de
apresentarem um consenso, envolvem muitas controvérsias, tendo efeitos sobre a produção da
subjetividade contemporânea.
Palavras-chave: biotecnologias, enhancement technologies, visibilidade, gestão de si, cartografia das
controvérsias.
3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios. 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil, p. 534550. ISSN 2175-9596
GONÇALVES, Cristina.; PEDRO, Rosa Maria.
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Abstract
The brain mapping capabilities of recent body imaging technology brings a new kind of visibility, and
with it the promise of better understanding disorders and developing new therapies. Furthermore, they
lead to new discourses on the human subject no longer seen from subjectivity nor interiority, but as a as a
cerebral being whose illnesses, such as depression and ADHD, are seen as neurochemical changes
subject to pharmacological treatment. Simultaneously, they pave the way for applications beyond health
and illness boundaries. Behavioral, cognitive and humor issues, among others, are also linked to
neurochemical changes, and therefore treatable by drugs alike. This takes us to the discussion of
enhancement technologies, interventions intended to improve human functions or characteristics beyond
what is necessary to sustain health or repair the body (Hogle, 2005 apud. Frize, 2013), among which are
the use of drugs for the enhancement of cognitive performance and humor. Given this points, this study
intends to analyse the use of this drugs connected to new forms of perceiving and intervening on the body
and subsequent relation to self-management, coupled with important ethical issues such as the possibility
of coercive use and the redefinition of human nature, that far from consensus, involves several
controversies and affects contemporary production of subjectivity.
Keywords: biotechnology, enhancement technologies, visibility, self-management, mapping controversies.
INTRODUÇÃO
Jornal O Globo, 9 de fevereiro de 2015, anuncia a criação de minicérebros ou organoides
cerebrais humanos como um grande avanço no estudo do transtorno esquizofrênico e do autismo
e como possibilidade de desenvolvimento de novas terapias para os mesmos. Sendo ressaltado
pelo neurocientista Stevens Rehen como uma nova maneira de olharmos para o nosso interior e
de podermos ver em tempo real o que acontece durante a formação do nosso cérebro, esses
organoides trazem a oportunidade de uma análise tridimensional do cérebro, assim como a
possibilidade de observarmos como ocorrem seus principais processos biológicos e como
podemos alterá-los.
Mas o que esses organoides cerebrais humanos ou as técnicas de mapeamento cerebral nos
dizem? Quais os efeitos que esse tipo de técnica tem sobre a subjetividade? Que novos discursos,
práticas e capturas surgem a partir dessas novas técnicas de visibilidade?
Segundo Pimentel e Vaz (2009), técnicas como a tomografia por emissão de pósitrons ou
Petscan, nos permitindo conhecer o cérebro em funcionamento, permitem que psiquismo e
organismo, pensamento e matéria possam ser estudados pelos mesmos princípios, levando assim,
a uma compreensão das doenças mentais em termos orgânicos, além de impulsionar:
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“pesquisas sobre comportamento e fatores psíquicos que incluem conduta
amorosa, diversas espécies de compulsão (droga, compras, sexual, etc.),
capacidades cognitivas, sentimentos morais e até mesmo crenças religiosas
(EHRENBERG, 2004b) – isto é, comportamentos e capacidades que não
necessariamente são desviantes e apenas de modo mediado podem se articular
com o sofrimento, embora sejam imediatamente objetos interessantes de
intervenção tecnológica.” (Pimentel e Vaz, 2009, p.8)
Assim, tal como a Petscan, se esses organoides cerebrais humanos e outras técnicas de
mapeamento cerebral surgem com a promessa de poder entender melhor os transtornos visando
criar novas terapias para os mesmos, eles também abrem o caminho a novas práticas que
ultrapassam a questão saúde/doença e a novos discursos acerca dos sujeitos, não mais vistos a
partir de uma interioridade ou de uma subjetividade, mas sujeitos cerebrais, em que doenças, tais
como depressão e TDAH são vistos como deficiência ou alteração neuroquímica a ser tratada
com o uso de medicamentos. Concomitantemente, discursos sobre comportamento, capacidade
cognitiva, humor e outras questões, também são remetidos a trocas neuroquímicas e nesse
sentido, também são passíveis de serem alteradas pelos mesmos medicamentos que tratam as
doenças.
Isso nos leva a discussão das enhancement technologies1, intervenções que visam a melhora do
funcionamento ou de características humanas para além do sustento da saúde ou reparo do corpo
(Hogle, 2005 apud. Frize, 2013), sendo uma dessas práticas o consumo de medicamentos para o
aprimoramento da performance cognitiva e do humor.
Assim, propomos analisar no presente trabalho, o consumo desses medicamentos voltados para o
aprimoramento cognitivo e do humor, por entendermos que este consumo está articulado com
novas formas de perceber e intervir sobre o corpo, que envolve a gestão de si e questões éticas
controversas como a possibilidade de coerção e a redefinição da natureza humana, tendo efeitos
sobre a produção da subjetividade contemporânea.
Dos Discursos e das Práticas
1
Utilizamos o termo enhancement technologies ou apenas enhancement em inglês, pois o mesmo ainda não é traduzido para o
português nas bibliografias levantadas. Para efeito deste trabalho utilizaremos em alguns momentos o termo aprimoramento da
performance em substituição à enhancement.
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Se em Descartes a res cogitans, interioridade ou alma, era a parte mais importante dos sujeitos,
sendo delegada a res extensa, o corpo, um papel inferior, o que vemos na atualidade, com a
psiquiatria biológica articulada as neurociências e as novas técnicas de visualização do corpo, é a
materialização da interioridade ou a interioridade transformada em cérebro.
Essa predominância do registro visual obtida com o aumento das novas tecnologias de
visualização do corpo leva ao nascimento de uma intimidade que não envolve mais
“o inconsciente, as paixões ou o desejo. As emoções, a decisão e o
comportamento social vêm sendo crescentemente submetidos a roupagens
fisicalistas, reportadas mais aos neurônios e neurotransmissores do que aos
conflitos psicológicos (COSTA, 2004). Diz-se que o deprimido, antes que
marcado por uma experiência angustiante, sofre de “deficiência de serotonina”.”
(Pimentel e Vaz, 2009, p. 11)
Tal discurso puramente informacional do ser humano, que segundo Lafontaine (2004) nasce do
prolongamento cibernético para a biologia molecular e a engenharia genética, faz com que a
diferença ontológica entre o vivo e o não vivo deixe de existir, passando o ser vivo a ser
entendido a partir da sua estrutura físico-química.
Para além do modelo do código genético que passa a comandar a organização do ser vivo,
descrevendo a transmissão da hereditariedade “em termos de informação, mensagens e códigos”
(Lafontaine, 2004, p. 185), abrindo o caminho para uma concepção puramente informacional dos
seres vivos através de sua definição em termos de mensagens, vemos esse viés informacional
abranger todo o discurso sobre o ser vivo e a vida. Podemos dizer nesse sentido, que há também
um prolongamento cibernético para o campo da neurociência que vem trazendo novos discursos e
formas de intervenção sobre o corpo.
Aqui, o que podemos chamar de uma “vulgata neurocientífica”, vem se tornando a linguagem de
base de codificação da existência humana, não mais vista em termos de uma interioridade, de
uma subjetividade, mas em termos de trocas e deficiências neuroquímicas, levando as pessoas a
falarem da depressão em termos de “deficiência na recaptação de serotonina” e de questões de
comportamento enquanto TDAH a ser tratado quimicamente.
Assim, parafraseando o que Castel (1987) denomina de a “nova cultura psicológica”,
consideramos que concomitantemente a isso há uma “nova cultura neurocientífica” que tem
levado as pessoas a pensarem em si em termos neuroquímicos e biológicos, e as conduzido à
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busca de medicamentos não apenas para o tratamento de doenças, mas para o aprimoramento de
suas performances, no presente caso, cognitiva e do humor.
Visto isto, mais do que trabalhar o patológico, vemos a neurociência se propondo a trabalhar o
estado normal e expandindo seus conceitos a todos os âmbitos. Tal aspecto é destacado por
Ehremberg (2009) ao falar da existência de um programa “forte” das neurociências, que no plano
teórico identifica o conhecimento do cérebro ao conhecimento de si, e no plano clínico, acredita
poder fundir neurologia e psiquiatria, tratando as psicopatologias neuropatologicamente. E para
além disso, o que mais nos interessa no presente trabalho, é que em um prazo mais longo visa
poder agir sobre a maquinaria cerebral visando aumentar nossas capacidades de decisão e ação,
visando construir o que ele chama de uma “biologia do espírito” ou “uma neurobiologia da
personalidade”.
Vemos assim o aparecimento de uma psiquiatria biológica articulada com a neurociência, que
vem trazendo discursos sobre o sujeito baseado nas novas tecnologias de visualização e que tem
como técnica principal o uso dos medicamentos, que para além da questão doença/saúde, pode
ser usado para a performance, para a melhora da capacidade cerebral, vindo também na direção
do acolhimento de novas demandas como a formação permanente, a renovação perpétua, o
enfrentamento das mudanças tecnológicas e a concorrência. Há uma demanda por frutificação do
potencial humano, a pessoa deve trabalhar seu potencial, ela é responsável por gerir a si, gerir sua
empregabilidade, sua produtividade, e o consumo de medicamentos para a melhora da
performance surge como um meio de alcançar a potencia e a produtividade, provendo de solução
técnica não apenas os problemas pessoais como também os organizacionais.
O tempo está cada vez mais acelerado, os trabalhadores vêm cada vez mais seu tempo de vida
encolhido pelas novas tecnologias – visto que com um smartphone e um computador pessoal
“sempre se está disponível” – e o medicamento aparece como uma solução técnica que não
requer disponibilidade e tempo.Visto tudo isto, podemos dizer que tal cultura neurocientífica
trazendo a possibilidade de trabalhar a normalidade a partir do uso de tecnologias de
aprimoramento que ajudem na performance cognitiva e do humor, faz com que medicamentos,
que inicialmente eram dirigidos para doenças, sejam redirecionados para questão que estão longe
do âmbito da doença e da deficiência, mas trata-se da eficiência, encarregando-se também da
problemática da felicidade.
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Biopolítica e Gestão de Si
Segundo Foucault (2000), um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a assunção da vida
pelo poder, o que ele chamou de biopolítica. Tal tecnologia, não excluindo a tecnologia
disciplinar, se aplicaria a vida do homem enquanto ser vivo e enquanto espécie, tentando reger a
multiplicidade de homens na medida em que essa redunda em corpos individuais, mas
principalmente se dirigindo a multiplicidade de homens à medida que eles formam uma massa
global afetada por processos de conjunto próprios da vida, tais como nascimento, morte, doença,
etc. Aqui, sendo a morte uma ameaça constante, combatê-la se torna uma forma de governar a
vida, aumentando a mesma, controlando seus acidentes e limitando suas deficiências. De acordo
com Foucault “a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o Estado, tem essencialmente a
função de incumbir-se da vida, de organizá-la, de multiplicá-la, de compensar suas
eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biológicas” (Foucault,
2000, p. 313).
Tal conceito de biopoder inclui discursos de verdade sobre o caráter ‘vital’ dos seres humanos,
com autoridades competentes para falar sobre esses discursos de verdade, inclui estratégias de
intervenção sobre a coletividade em nome da vida e da morte, e modos de subjetivação que
levariam os sujeitos a agir sobre si mesmos em nome de sua própria vida ou saúde, e da própria
vida e saúde de seus familiares ou da sociedade como um todo (Rabinow e Rose, 2006). Nesse
sentido, estamos diante de uma tecnologia de poder que tem a vida sobre o controle do Estado e
da sociedade, mas que também fala do controle de cada um sobre si, sendo a gestão de si um
aspecto importante dessa biopolítica.
Assim, ao falarmos das novas biotecnologias, que têm possibilitado diversas intervenções no
corpo e na vida, podemos falar de uma ampliação do biopoder. Com as novas tecnologias, o
poder de gerir a vida se ampliou consideravelmente, desde antes do nascimento, com a seleção
genética, passando pelo melhoramento artificial da nossa capacidade cognitiva e do nosso humor,
até a morte, com a possibilidade do prolongamento da vida.
Porém, tal gestão de si não aparece apenas na busca de um corpo saudável e perfeito, de um
sujeito que deve estar atento ao próprio corpo e que é responsável por gerir a sua potencialidade,
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mas de um sujeito que também é responsável por gerir a sua produtividade e consequentemente a
sua empregabilidade.
O modelo de acumulação flexível aliado ao novo modelo de gestão organizacional e às novas
tecnologias vem dissipando as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de vida. Além disso,
não apenas o tempo de trabalho se tornou flexível, como também os regimes e contratos de
trabalho, levando a redução do emprego regular e aumento dos níveis de desemprego “estrutural”
(Gaulejac, 1946). Juntamente a isso, o novo modelo de gestão, vem preconizando um sujeito que
deve assumir o papel de gestor de si mesmo, que deve gerir suas habilidades, carreira e
empregabilidade, sendo o responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso.
“Nesse contexto, não é mais ser limitado. É pedido o crescimento permanente
dos desempenhos e ao mesmo tempo a diminuição dos custos. Criam-se
exigências cada vez mais elevadas, além daquilo que se sabe poder fazer. O
ideal se torna norma. Os procedimentos não são estabelecidos a partir de uma
análise concreta dos processos de produção e das atividades reais, mas para
clientes perfeitos, trabalhadores sempre no auge da forma, jamais doentes, em
um contexto sem obstáculo. A fraqueza, o erro, o contratempo, a imperfeição, a
dúvida, tudo aquilo que caracteriza o humano “normal”, não tem mais lugar de
ser. A gestão preconiza o ideal em um mundo sem contradição. O ideal não é
mais o horizonte a atingir, mas uma norma a aplicar.” (Gaulejac, 1946, p. 121)
Assim, tendo que gerir a sua empregabilidade em um mundo competitivo, não apenas fazendo
cursos e adquirindo habilidades, mas tendo que estar ativo para cumprir metas e disponível
integralmente, o consumo de medicamentos para a melhora cognitiva e do humor pode ser um
meio para conseguir aderir a tal modelo. Principalmente o consumo da Ritalina, que vem tendo
repercussão na mídia através de notícias de “concurseiros” e executivos que fazem uso dessas
substâncias para conseguir estudar ou trabalhar por mais horas e “bater suas metas”.
Nesse quadro o sujeito é supostamente livre, supostamente dono de uma mobilização voluntária
que visa “maximizar suas atuações e reduzir seus afastamentos em relação a uma norma-média”
(Castel, 1987, p. 177), que programa a si mesmo com a iniciativa de que tenha uma rentabilidade
imediata. Porém, se tal liberdade existe, essa não deixa de envolver controvérsias quando se trata
do uso de medicamentos para o aprimoramento da performance cognitiva e do humor, o que
trataremos a seguir.
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Gestão de si, Liberdade de Escolha ou Coerção
Sendo responsabilizado por evitar o fracasso e por se gerir, o sujeito acredita estar sendo livre na
escolha pelo medicamento. Liberdade de escolha que alguns estudiosos levantam quanto ao
consumo de medicamentos para o aprimoramento da performance e que envolve muita
controvérsia.
Esposito (2005), apoiando o uso de tais drogas com fins de aprimoramento das capacidades
humanas no trabalho, no colégio e também no estabelecimento de estados de felicidade e
tratamento de desvios de conduta, destaca que o que deveria prevalecer é a liberdade dos sujeitos
de escolherem pelo consumo ou não desses medicamentos. Nessa mesma direção, Greely,
Campbell, Sahakian, Harris e Kessler, em uma matéria publicada na revista Nature (2008), ao
falar sobre os riscos associados ao consumo desses medicamentos, destacam que os
consumidores que deveriam julgar os prováveis riscos e benefícios de seu uso.
Tal liberdade de escolha é destacada por Azize (2008) com a ideia de self-creation, possibilidade
de criação de si enquanto “vinculada ao livre-arbítrio, fazer escolhas para si mesmo, modificar a
sua identidade conforme a valoração de determinados traços que portamos, e dos quais podemos,
ou não, querer nos livrar.” (DeGranzia, 2004 apud. Azize, 2008, p. 16-17).
Porém, se considerarmos que é uma escolha dos sujeitos o consumo de drogas de aprimoramento,
não é menos fato que ele sendo responsável por gerir sua saúde e também a sua empregabilidade,
pode ser “coagido” a fazer uso das mesmas. Como destacado por Chatterjee (2009) a questão de
escolha pode evoluir para a coerção, pois não tirar proveito das melhorias pode significar que está
sendo deixado para trás.
Em uma sociedade competitiva como a nossa, as pessoas poderiam se sentir coagidas a usar
“drogas da inteligência”, como a Ritalina, com a finalidade de competir em pé de igualdade, e até
mesmo poderiam se ver coagidos a dar a seus filhos esses medicamentos para os mesmos fins de
competitividade. Em outro sentido, em uma sociedade onde a tristeza é vista como uma doença,
que em alguns graus impossibilita a vida produtiva dos sujeitos, os mesmos também poderiam se
ver coagidos ao uso de drogas do humor para continuarem produtivos.
Tal aspecto é ressaltado por Grelly e Col. (2008) que destacam que existe a possibilidade de que
escolas e empregadores possam solicitar reforço farmacêutico ou até mesmo, que essa coerção
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possa ocorrer indiretamente pela necessidade do sujeito em competir com seus colegas. De
acordo com um documento produzido pelo parlamento europeu:
“Increased availability of cognitive enhancers could lead to greater pressure on
individuals to use them. In the first instance, this could arise through pressure to
compete with peers at school or in work. Indeed, legislation has already been
introduced in the US to prevent school personnel promoting the use of cognitive
enhancers. There are also ethical questions as to whether employers would be
within their rights to require employees in certain professions to use cognition
enhancers in the workplace.” (Coenen, Schuijff, Smits, Klaassen, Hennen,
Rader e Wolbring, 2009, p. 85)
Assim, podemos dizer que dentro de uma lógica gestionária, em que o sujeito é responsável por
gerir a sua empregabilidade, ele poderia se ver coagido a fazer uso desses medicamentos para se
tornar mais competitivo, como destaca a reportagem “O cérebro turbinado” da revista Scientific
American Brasil:
“Se você tem 65 anos e mora em Boston, suas economias da aposentadoria
provavelmente diminuíram bastante. Isso o obriga a permanecer no mercado de
trabalho e competir, alerta e eficiente, com um sujeito de 23 anos em Mumbai.
Talvez então você se sinta pressionado a usar esses medicamentos” (Lynch
apud. Stix, 2010, p.38)
Também haveria a possibilidade do sujeito se sentir coagido a tomar por achar que os outros
estariam tomando ou até mesmo por pressão do empregador, “Como diz Elaine (...) que também
faz uso da Ritalina: “Eu recomendaria o remédio para alguns dos meus funcionários mais lentos,
para que eles acompanhassem meu ritmo.”” (Vera e Soares, 2009).
Aqui, segundo Lebrun (2004) nós acreditaríamos ser livres, mas por outro lado seríamos
produzidos pelo discurso da ciência que nos faz crer que a melhor maneira para lidarmos não
apenas com a doença, mas com questões existenciais e com a ineficácia, é pelo consumo de
medicamentos.
Nesse quadro, as indústrias farmacêuticas se voltariam para a produção e divulgação das lifestyles
drugs, “... medicamentos usados para condições que não são problemas de saúde, ou que se
situam na fronteira entre saúde e bem-estar. São medicamentos para parar de fumar, impotência
sexual, obesidade, queda capilar, prevenção de acne, etc.” (Aguiar, 2004, p.126-127), ampliando
o campo da saúde. Campo flexível, pois como destaca Conrad (2007), o que se constitui como
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necessidade médica é flexível e situado socialmente 2, mudando através dos tempos (Conrad,
2007):
“New diseases or disorders may be defined (as diagnoses) in order to legitimate
medical treatments or interventions (Conrad, 1992, 2000). Thus, the line
between what is deemed a necessary treatment and what is an enhancement can
be blurred and can shift as definitions of disease change. If, for example,
scientists developed a drug that could enhance memory, we might soon see a
growth of diagnoses of “memory deficit disorder.” Would this be a treatment or
an enhancement? The boundaries of disease and enhancement are likely to be
severely contested, especially by those who want interventions legitimated as
therapies for medical problems.” (Conrad, 2007, p. 72)
Assim, se o surgimento de novos medicamentos pode levar a novas intervenções, não podemos
esquecer do papel do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) na
ampliação das categorias diagnósticas, dos interesses da indústria farmacêutica e do papel da
mídia, que mais do que divulgar os diferentes transtornos mentais e os medicamentos existentes
para seu tratamento, vem alterando a nossa experiência acerca de nós mesmos, sendo o discurso
vinculado pela indústria da saúde um dos mais poderosos vetores de produção de subjetividade
na contemporaneidade (Aguiar, 2004).
Visto isto, podemos considerar que a grande divulgação das diferentes categorias diagnósticas,
aliada ao fato de existirem medicamentos para a melhora da concentração e da memória, assim
como para a melhora do humor, aliado a uma cultura subjetivada a ver nos medicamentos a
solução para todos os problemas, pode fazer com que a percepção de uma dificuldade dentro
desse âmbito seja vista como algo que precisa de intervenção medicamentosa. Aqui, o sujeito
encontraria no medicamento a resolução para todos os males - não apenas das doenças, como
também da ineficácia - encontrando no cuidado com o corpo a possibilidade de uma vida não
apenas saudável, mas potente.
“...no âmbito do paradigma biotecnológico, tudo parece convergir para a idéia
de que nos tornamos superpotentes, pois as decisões acerca da vida e da morte
passam a depender de nós. Por um lado, somos capazes de produzir vida
sintética ou artificial, ou seja, somos capazes de produzir artificialmente nossa
existência. Por outro lado, rapidamente estaremos aptos a prolongar
2
Destacamos a visão de Conrad acerca dessa influência do social na flexibilização do que é considerado uma necessidade
médica, mas a posição que assumimos no presente trabalho, é a posição da Teoria Ator-Rede (TAR), tal como desenvolvida por
Latour (2012), que considera o social enquanto uma rede sócio-técnica heterogênea que articula atores humanos e nãohumanos, ambos actantes dessa rede. Um social enquanto agregado heterogêneo que envolve muitas articulações.
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indefinidamente a vida, eliminando a morte de nosso horizonte.” (Pedro, 2009,
p. 74)
Porém, se dentro do paradigma biotecnológico o horizonte de intervenções se amplia, o que está
em jogo é isso assumir um caráter de “necessário”, pois com o avanço da genética, da
bioquímica, da física e das técnicas associadas a estes saberes, mais poderes e escolhas de
intervenção teremos e assim, mais responsabilidade em administrar tal poder, tendo que fazer
escolhas. A questão não será mais de querer administrar, mas de “não poder não administrar”
(Pedro, 2009).
Visto isto, podemos considerar que em uma sociedade em que é necessário estar constantemente
feliz e preparado para o mundo competitivo, o uso de drogas para o aprimoramento do humor e
para a performance cognitiva, não parece ser algo tão fora da realidade, “É preciso não apenas
trabalhar [...] Mas também dormir, ir a festas, receber amigos, comer, exercer a sexualidade, etc.
Adoecer nesse contexto, figura um parêntese nessa exigência” (Lefreve, 1991 apud. Dantas,
2009, p. 575). Podemos dizer talvez que ser saudável, mais do que não estar doente, configura um
estar ativo, disposto, ser bem-sucedido, coisas para as quais as drogas de aprimoramento da
performance contribuiriam grandemente.
Assim, diante de tal possibilidade de manipulação da vida que segundo Rabinow (2002) “...
infere tanto o desejo de dominar e disciplinar, quanto um imperativo de aperfeiçor o orgânico.”
(Rabinow, 2002, p. 154), deveríamos nos perguntar se quando se trata das novas biotecnologias,
o objetivo último é a dominação e disciplinarização da vida ou o aperfeiçoamento orgânico da
mesma? Pergunta para a qual não temos resposta, mas parece apontar a uma segunda questão, a
de que o consumo de medicamentos para o aprimoramento da performance levaria a uma
artificialidade ou redefinição da natureza humana.
Tal questão traz à tona a dicotomia natural x artificial, que tanto Latour como Haraway nos
ajudam a pensar. Segundo Latour (1994) somos seres híbridos e a dissociação
natureza/sociedade, natural/artificial, foram tentativas fracassadas de purificação dos modernos,
por isso “Jamais Fomos Modernos”, pois jamais fomos humanos no sentido de uma pureza, de
uma humanidade pura. Seguindo esse mesmo pensamento, Haraway (2009) destaca que somos
ciborgues, híbridos de organismo e máquina, não havendo uma dada natureza humana, uma
dualidade natural x artificial, mas uma construção que se dá articulada com a tecnologia.
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Assim, seguindo o pensamento de Haraway (2008), segundo a qual não dá para chamar de
selvagens os gatos capturados, alimentados com comida industrializada e enredados com tantas
outras tecnologias, também não tem como pensarmos em uma natureza humana que não esteja
enredada com as tecnologias. O “tornar-se mundano”, tal como a autora nos propõe, é exatamente
um tornar-se com, outros humanos, animais e também as tecnologias. Nos constituímos com
diversos aparatos, sendo os medicamentos só mais um deles.
Como Greely e Col. (2008) destacam, a vida de todos os seres humanos é antinatural. Casas,
roupas e comidas têm pouca relação com o nosso estado natural, além disso, nós sempre fizemos
invenções para a melhoria de nossos cérebros, como a língua escrita, a pintura e a Internet, e
também fazemos uso de diversas atividades capazes de melhorar nosso desempenho, como
exercícios adequados, nutrição e sono. Igualmente, a luz sintética, como o fogo, a lâmpada e a luz
elétrica são exemplos de tecnologia de aprimoramento, pois com o advento da mesma, trabalho e
vida social puderam se estender pela noite, criando pressões competitivas e incentivos (Harris,
2009).
Visto isto, as regras usadas para distinguir os aprimoradores cognitivos permitidos hoje seriam
questionáveis, pois de todos os meios que utilizamos para melhorar o nosso desempenho, só eles
seriam proibidos (Greely e Col, 2008).
Proibição esta que com a ajuda de Conrad (2007) podemos associar com a ética protestante que
se oporia às tecnologias de aprimoramento da performance por essas serem soluções tecnológicas
que não envolvem trabalho duro. Segundo o autor, a sociedade adotaria um “calvinismo
farmacológico” em relação ao uso de medicamentos, acreditando que “...it is better to achieve an
objective such as pleasure, sexual satisfaction, mental stability, and bodily fitness naturally tham
with drugs or medications” (Conrad, 2007, p. 92). Dentro dessa lógica, as pessoas não
considerariam antinatural a aquisição de músculos advindos de horas de malhação, pois esse
aprimoramento teria sido fruto de trabalho duro.
Calvinismo farmacológico ou não, podemos considerar como destaca Rabinow (2002), que existe
um naturalismo que preso a axiomas como “(1) O artificial nunca é tão bom quanto o natural; (2)
A criação fornece a própria vida; vida é autoprodução; (3) A homeostase (auto-regulação) é a
regra de ouro.” (Rabinow, 2002, p. 153) nos faz ver as novas tecnologias que incidem sobre a
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vida por um viés negativo, sendo o principal obstáculo para a total exploração e aproveitamento
das potencias da vida.
É nesse sentido que a presente discussão se faz importante, pois o ser humano já está
profundamente articulado com as máquinas e as diversas técnicas de manipulação da vida, não
tem como retrocedermos. Além disso, sem dúvida, tais tecnologias trouxeram muitos avanços em
relação ao tratamento de doenças anteriormente incuráveis, na descoberta precoce de várias
doenças e na melhora da qualidade de vida. Porém, devemos pensar em como estamos nos
formando a partir disso, que novas subjetividades estão sendo constituídas e como podemos olhar
para esses aspectos sem naturalizá-los, para que então possamos constituir outras possibilidades.
CONCLUSÃO
Como vimos, as novas tecnologias de visualização tem levado a novos discursos e intervenções
sobre a vida, e se por um lado esses discursos e práticas abrem um horizonte de manipulação e
aperfeiçoamento da vida, como no presente caso, a possibilidade de aperfeiçoarmos a nossa
performance cognitiva e o humor, por outro ele traz muitas controvérsias, pois se é deixado ao
sujeito a liberdade de escolha pelo uso desses medicamentos, sabemos que tal escolha pode
passar pela coerção, como também pode ser influenciada pela simples existência de tais técnicas
ou pela indústria farmacêutica, que como dissemos acima, é uma grande produtora de
subjetividade na atualidade.
Não queremos dizer com isso que o consumo de medicamentos para o aprimoramento da
performance seja um meio ruim em si, como muitos defensores do uso de enhancement
destacam, as pessoas sempre usaram substancias para melhorar a performance. Também não
queremos condenar uma artificialidade que estaria presente no uso desses medicamentos, pois
como falamos anteriormente não há uma natureza humana que não esteja enredada com as
tecnologias. A questão também não é ser pró ou contra, dizer se é bom ou ruim, mas podermos
mostrar como os diferentes atores vêm compondo mundo com esses medicamentos, visto que
estar no mundo é estar nessas inter-relações com as tecnologias. Também não se trata de
retrocedermos ao estado anterior das coisas, onde não haja medicamentos e diversas técnicas de
intervenção sobre a vida, mas se trata de pensarmos nas possibilidades diversas de constituição
dos sujeitos para além das capturas.
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Neste sentido, a Cartografia das Controvérsias, tal como proposto por Latour (2012), se torna
importante se quisermos delinear as controvérsias em questão a fim de compreender uma
realidade que é complexa, que é formada por uma rede sociotécnica heterogênea, composta por
humanos e não-humanos, que é fruto de associações, debates e discussões entre diferentes atores
e que se estabelece de uma maneira, mas pode ser constituída diferentemente, performando outras
realidades.
Como destacado antes, a natureza nunca foi tão natural e intocada pelo humano, estamos
profundamente articulados com tais tecnologias e dificilmente conseguiremos voltar a uma época
onde não haja essas novas formas de intervenção sobre a vida, sendo importante pensarmos em
outras possibilidades que não passe pela rejeição da tecnologia, mas por uma reflexão acerca dos
seus efeitos.
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