Texto de José Portela, Vila Real, 9 de Fevereiro de 2009, in Prefácio do livro de crónicas de Aleixo Simões «Flor-de-sal», Edições Colibri, Março de 2009, ISBN 978-972-772-874-9 Duas ou três palavras Dita o cânone que, aqui e agora, exponha algumas notas breves sobre «a obra e o homem». É o que tentarei fazer já de seguida, embora acabe por discorrer acerca do autor sobretudo através dos traços e imagens que a sua escrita espelha. Este livro é, antes de mais, uma colectânea de crónicas escritas entre 2002 e 2009 para o jornal quinzenal «Pinhel Falcão». Trata-se de meia centena de textos, escolhidos e revistos pelo autor e alguns amigos. São artigos descontraídos e fluentes, vagando nas horas dos dias, de cariz manifestamente opinativo e redigidos num tom crítico saudável. Constituem, claro está, um exercício de cidadania e ajudam um nadinha a nutrir a nossa democracia ainda infante. São canteiros de escrita, exíguos sim, mas férteis e irrigados. Há neles salpicos, gotas e fios cintilantes de pensamento e poesia de autores consagrados. Casos do dia, voltas e reviravoltas em curso, expressões e termos coloquiais e mais um ou outro adágio são enxertados na cepa dos textos. Isto, em regra, precisamente para serem repensados. Dado que o espaço da escrita no jornal é um T zero, a análise é necessariamente sumária e simples, por vezes tão simplificadora quanto questionável. Em qualquer caso, cada artigo é um convite à conversação, não aspirando a ser mais do que um intróito à tertúlia. Sim, agrada aceitar o encontro, apetece reler e parar nesta pergunta, naquela cogitação, naquele outro sentir; dá vontade de corroborar, logo abaixo, a defesa do valor ameaçado de corrosão. E que dizer, enfim, do desejo de debater o termo recorrente aqui e ali, a passagem controversa acolá? Por exemplo, o valor dos media e dos wikis, ou a noção de «realidade», a qual embebe os textos de Aleixo Simões. Há tanta quanto meia realidade por página, grosso modo. Sim, preocupa-o muito a dita realidade, que é irremediavelmente plural. Inquieta-o sobretudo a do interior, que sob aspectos variados não é distinta da que se observa entre o resto do «nobre povo» da «nação valente». Invoca, a propósito, Pessoa, e cita a questão que Alexandre O’ Neill tinha consigo mesmo. Replico já ao cronista, com as próprias palavras do poeta: [...] ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato! Mirando-o, folheando-o, sentindo-lhe o peso e a textura, torna-se evidente que este livrinho é bem mais do que uma colectânea de crónicas, é um lugar de testemunhos e encontros. A sua feitura oficinal, o resultado editorial e a apresentação (tal como certamente sucederá quanto à Texto de José Portela, Vila Real, 9 de Fevereiro de 2009, in Prefácio do livro de crónicas de Aleixo Simões «Flor-de-sal», Edições Colibri, Março de 2009, ISBN 978-972-772-874-9 sua difusão) estão repletos de sinais de desvelo, que só a amizade e o amor logram alcançar. A obra, pelas reflexões, interpelações e chamadas ao debate que comporta, será prezada por muitos leitores e será mesmo peça de estimação, tanto para o autor como para os seus amigos, entre os quais se contam alunos, ex-alunos, colegas e mestres. Através dele, Aleixo Simões a todos convoca, para que se celebre e fortifique o espírito crítico, a amizade e a vida. Como adverte, haja vida, não nos amolemos com o trato da «vidinha». Aleixo Simões é português, mas um português peculiar. Está na cara que ele é pessoa de «andar espantado de existir», como diria José Gomes Ferreira. Assim, gosta de matutar e escrever, consulta dicionários e aprecia máximas que dão que pensar, do tipo «as melhores estratégias são escritas no pretérito», uma sentença de Alphonse Allais. Não, não, tudo isto não é nada coisa de somenos. Mas há mais sinais de cuidado e preocupação para aqueles que são seus amigos: ele rala-se — falo a sério — ele rala-se com Portugal. Sim, mói a alma com as questões de fundo que o afundam, não a ele mas ao país. Ao levantar e ao deitar interroga-se mesmo se nesse dia Portugal nasceu e onde tal se viu. A semana avança e ele vai buscando se Portugal se cumpre, ou se se vai cumprindo. Pessimista, conclui que ninguém faz nada por isso. Não raro, com José Cardoso Pires anuncia e denuncia: “… este país não existe. Eu estive lá!...” Claro, não há só desgosto, muito em particular a mágoa causada ao geógrafo por «este nosso país real, cinzento e sofrendo de letargia». Há também o oposto, a alegria de viver, o gosto de ler. Gosta da prosa, poesia, Borges, José, Sofia. Gosta do silêncio Marcel e do gesto Marceau. Gosta das palavras e do silêncio que as preserva e valoriza. Aleixo aprecia os Prémios Nobel da literatura: Camilo José Cela (1989), Saramago (1998). Mastiga filosofia, a de Descartes, Sartre e Eduardo Lourenço. Aleixo, ciente do tamanho do mundo e dos valores universais, deleita-se a imaginar que, em vez de braços, tem asas, tal como sucede a Maria do Carmo Abecassis, apesar da poetisa dizer o contrário. Mas já sabemos que o poeta (e cada um dos seus irmãos) é um fingidor: vide adiante o poema, na crónica diaLUGAR. Suspeito ainda que Aleixo se perde e reencontra no desenhar, fotografar e filmar. Pelo menos, dedica um texto a o cameraman, e retrata com mestria alguns perfis de gente pública e notória. Sugiro desde já que o leitor descubra quem é J.B. ... — simplesmente J.B. — e não resisto a registar o instante em que Aleixo Simões faz o boneco de Deng Hsiao Ping: «olhar brilhante e incisivo, que lembrava uma raposa com ânsias de galinheiro». Texto de José Portela, Vila Real, 9 de Fevereiro de 2009, in Prefácio do livro de crónicas de Aleixo Simões «Flor-de-sal», Edições Colibri, Março de 2009, ISBN 978-972-772-874-9 Claro que os gostos não se discutem, já o sabemos. E saibamos também que o cronista adora brincar. Sim, pelo menos com as palavras. Pressente-se e vê-se que, felizmente, mantém dentro de si a curiosidade e o olhar gaiato da infância, ele que é um homem tão entroncado e maduro quanto delicado. Tal como Alice, deambula pelo país das Maravilhas e faz perguntas de pasmar aos actores e figurantes de um Portugal dos Pequenitos. Aqueles que, como diz apuradamente, «aconchegam a roupinha da cama uns dos outros como velhas criadas “de dentro”, desprovidos, no entanto, da altivez submissa destas». Tal como uma criança entretida com as peças de lego — simples, mas geniais — Aleixo monta, aprecia e desmonta o topo dos seus textos, os títulos; reaprecia-os e remonta-os. Para comprovar isto, basta atentar no tratamento que lhes dá. Por exemplo, Golpe de Estudo e maniCÓMICO. Títulos estes, aliás, que com um pouco mais do marinar da escrita poderiam ter sido fundidos numa única expressão SIMPLEXmente jocosa: Golpe de Estudo maniCÓMICO. E nova crónica se juntaria ao rol. O leitor, naturalmente, descobrirá adiante o gosto e o proveito de ouvir Aleixo Simões, mas é mister que conclua com duas notas mais. Bem haja, Aleixo, por me ter dado a ler os textos escolhidos, assim como pela estima com que me distingue. Aleixo: para lograr alcançar, ainda mais, um viver tranquilo, e ainda para nosso próprio benefício, persevere na escrita. Defenda o seu «reduto». Faz sentido. Faz todo o sentido.