2.69 Firmino, T. (8 de Abril de 2015), ‘O gato de Seabra’, Público, 2015
Tal como o Gato de Schrödinger existe paradoxalmente ao mesmo tempo em dois estados,
Miguel Seabra colocou-se numa sobreposição de lugares.
Na física quântica, há uma experiência mental muito conhecida chamada Gato de Schrödinger,
que o físico austríaco Erwin Schrödinger imaginou em 1935 para ilustrar o estranho mundo das
partículas. Dentro de uma caixa de aço, está um gato, um frasco de veneno, um contador Geiger
e uma amostra de uma substância radioactiva. Ao fim de uma hora, pode haver – ou não – um
átomo que tenha decaído e libertado assim radioactividade. Se tal aconteceu, é accionado um
martelo, que parte o frasco e o veneno é libertado. Mas sem sabermos o que se passa lá dentro,
o gato, segundo as leis da mecânica quântica, coexiste em dois estados ao mesmo tempo no
interior da caixa, está vivo e está morto. Há uma sobreposição de estados quânticos e só quando
alguém abre a caixa e verifica o que se passa no interior é que o gato assume um dos estados, e
ou está vivo ou está morto.
É o paradoxo do Gato de Schrödinger que vem à memória quando se fica a saber o nome do
principal vencedor deste ano do Grande Prémio Bial de Medicina.
Miguel Seabra é professor catedrático da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova
de Lisboa (UNL), onde se licenciou em medicina em 1986. O doutoramento, em bioquímica e
biologia molecular, foi em 1992 na Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Daí partiu em
1997 para Londres, para o Imperial College. Tem-se pois dedicado à investigação médica há
vários anos. Até ao início de 2012, dirigiu o Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade
de Ciências Médicas da UNL.
Desde Janeiro de 2012 e até esta terça-feira, quando a sua demissão foi anunciada, assumiu a
presidência da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a principal instituição pública que
financia o sistema científico do país, tutelada pelo Ministério da Educação e Ciência. É o seu
braço na aplicação das políticas científicas. Tem por missão desenvolver, avaliar e financiar o
sistema científico português. Assim, a FCT financia projectos de investigação, bem como
equipamentos científicos e bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. Em suma, como diz o
decreto-lei que define a sua missão, compete-lhe “a coordenação das políticas públicas de
ciência e tecnologia”. Políticas que, no actual Governo, e com Miguel Seabra na FCT, têm
passado por cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e por uma avaliação de
credibilidade duvidosa aos centros de investigação do país.
É por isso, no mínimo, surpreendente Miguel Seabra ter-se candidatado a um prémio de
investigação científica enquanto ocupava a presidência da FCT. Tal como o Gato de Schrödinger
existe paradoxalmente ao mesmo tempo em dois estados, Miguel Seabra colocou-se numa
sobreposição de lugares: era gestor político, que coordenava as políticas públicas de ciência e
tecnologia, e ao mesmo tempo cientista que concorreu a um prémio com a sua própria
investigação científica.
Não está em causa o mérito do seu trabalho científico, nem do seu currículo como investigador,
nem do júri que avaliou tudo isso, nem da Fundação Bial que atribuiu o prémio. Vamos pensar
que foi o melhor trabalho a concurso, entre os 36 que concorreram, e que merecia vencer. Mas,
ao candidatar-se ao Grande Prémio Bial de Medicina na qualidade de investigador enquanto era
presidente da FCT, Miguel Seabra começou por colocar os membros do júri, também cientistas,
de diversas universidades, numa situação estranha. Cientistas que são avaliados e financiados
pela fundação presidida por Miguel Seabra. Tal como colocou numa situação incómoda a
Fundação Bial (criada pelos Laboratórios Bial e pelo Conselho de Reitores das Universidades
Portuguesas), até porque no regulamento do prémio nada há que impeça a candidatura de
quem ocupe um cargo de gestão da política científica do país. Mas, principalmente, pôs-se a ele
próprio num lugar ainda mais estranho. Digamos que há um certo paradoxo ético.
Se Miguel Seabra já estava debaixo de fogo enquanto responsável pela gestão da ciência
portuguesa, esta candidatura ao prémio vem deixá-lo ainda mais chamuscado.
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2.69 Firmino, T. (8 de Abril de 2015), `O gato de Seabra`, Público