C A PA
Acima, uma das quatro lajes em baixo-relevo (das quais foram extraídos os detalhes das páginas seguintes) de Wiligelmo (século
XI-XII), fachada da Catedral de Módena; a partir da esquerda: a oferta de Abel e Caim, Caim mata Abel, Deus repreende Caim;
abaixo, Santo Agostinho num afresco do século VI, Basílica de São João de Latrão, Roma
A inveja
da graça alheia
“A tristeza pela bondade de um outro, sobretudo
se é irmão, é o pecado que Deus condena mais
que qualquer outro” (De civitate Dei XV, 7, 1).
Entrevista com padre Nello Cipriani sobre
Abel e Caim, como imagens dos dois tipos de cidade
(ou seja, de Igreja) que aparecem no De civitate Dei
por Lorenzo Cappelletti
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30DIAS Nº 12 - 2011
A BEL E C AIM : DOIS TIPOS DE CIDADE
as duas cidades não são uma real e outra
ideal, mas fazem parte ambas, continuamente, do panorama histórico; e a outra grande
dificuldade é que a sua oposição absoluta
não coincide de modo algum com uma impermeabilidade absoluta de uma em relação à
outra. Há algum texto em que Santo Agostinho mostra com maior clareza a imanência à
história e o aspecto dinâmico da relação entre as duas cidades?
NELLO CIPRIANI: No passado houve um grande
debate em torno da noção das duas cidades, objeto
do De civitate Dei de Santo Agostinho. Alguns estudiosos, sobretudo protestantes, entenderam a cidade
de Deus apenas como uma comunidade espiritual e
invisível, uma communio sanctorum, ou como uma
comunidade meramente escatológica, que não teria
nenhuma relação com a Igreja que vive no tempo,
unida pela comunhão dos sacramentos e ordenada
por uma hierarquia. A razão dessa interpretação se
deve ao fato de que o critério seguido pelo bispo de
Hipona para distinguir as duas cidades, a de Deus, ou
celeste, e a dos homens, ou terrena, vem da sua postura interior oposta. Elas nascem de dois amores contrários: a cidade de Deus nasce do amor a Deus que
chega até o desprezo de si mesmo, a cidade terrena,
do amor a si mesmo que chega até o desprezo de
Deus; a primeira vive segundo o Espírito ou segun- ¬
a virada do ano voltamos a conversar com
padre Nello Cipriani, professor ordinário
no Instituto Patrístico Augustinianum, de
Roma, sobre Abel e Caim como imagens dos dois
tipos opostos de cidade (ou seja, de Igreja) que
aparecem no De civitate Dei de Santo Agostinho.
Uma peregrina na terra, a outra que precisa atestar-se neste mundo. Uma peregrina, não porque
caduca, como erroneamente se entende, mas porque não pretende construir-se por si mesma e se
reconhece constantemente criada por Deus; e
portanto é livre, livre para pedir e oferecer a si
mesma. A outra que pretende construir para si
uma morada estável neste mundo e que, portanto, se concebe necessariamente em alternativa ou
pelo menos em concorrência com qualquer um
que neste mundo queira afirmar sua presença.
N
Dados os binômios usados pelo próprio
Santo Agostinho (cidade dos homens/cidade
de Deus; cidade terrena/cidade celeste, etc.),
uma das maiores dificuldades para quem se
aproxima do De civitate Dei é entender que
A oferta de Abel e Caim, mosaico do século XII,
Capela Palatina, Palermo
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A BEL E C AIM : DOIS TIPOS DE CIDADE
Agostinho observa que Caim, ao ver que Deus
tinha aceito a oferta do irmão e não a sua, não
deveria ter-se indignado nem sentido inveja, mas
ter-se arrependido e imitado o irmão bom, pois –
conclui – “a tristeza pela bondade de um outro,
sobretudo se é irmão, é o pecado que Deus
condena mais que qualquer outro”
do Deus, a outra segundo a carne ou segundo o homem. As duas cidades, além disso, mesmo tendo sentimentos opostos, já que são animadas por uma fé,
uma esperança e um amor diferentes, vivem através
do tempo confundidas e mescladas uma à outra. Portanto, a impressão é de que o discurso está no plano
da meta-história e não da concretude histórica, que
pode ser reconhecida. Semelhante conclusão, porém, não corresponde de modo algum ao pensamento de Santo Agostinho, que repete muitas vezes que a
Igreja é a cidade de Deus, ou melhor, a parte dela que
vive na história “entre as perseguições dos homens e
as consolações de Deus”1. Já no início da obra, de fato, ele distingue a parte da cidade de Deus que vive na
estabilidade da sé eterna e a parte que “neste correr
dos séculos caminha peregrina entre os infiéis, vivendo de fé e esperando com perseverança”2 a vida eterna. No livro dezoito do De civitate Dei ele retoma a
história da Igreja: fundada por Cristo sobre o fundamento dos Apóstolos, difunde-se primeiramente de
Jerusalém para a Judeia e para a Samaria; depois,
com o anúncio do Evangelho aos povos pagãos, se
estende a todo o mundo conhecido. Delineia depois
suas características principais: na Igreja há uma hierarquia, há praepositi, de modo particular o bispo,
chamados a servir os irmãos, e há simples fiéis, que
são também cristos, ou seja, consagrados, e participam do sacerdócio de Cristo. O momento central da
vida da Igreja é a celebração eucarística, quando ela
se une ao sacrifício de Cristo na cruz e com ele oferece a si mesma. Da Eucaristia os cristãos extraem a força para suportar as perseguições e o martírio. A Igre-
ja, de resto, não tem apenas inimigos externos que a
perseguem; sofre também em razão dos hereges e de
muitos que são cristãos só de nome. A cidade de
Deus, que é a Igreja peregrina, vive no mundo submetida às leis e às autoridades do Estado, respeita tudo o
que não é contrário à religião e não deixa de dar a sua
contribuição para criar uma sociedade pacífica, pois
considera a paz temporal um bem precioso para todos. Por fim, a cidade de Deus, que caminha peregrina no mundo, é a Igreja, ou seja, a comunidade bem
visível dos crentes, que vive no tempo com o olhar fixo na eternidade, mas que sofre e se esforça na história para aliviar as misérias dos homens, pois é animada por uma fé “que age pela caridade” (Gl 5,6). Se a
esperança escatológica a projeta para o céu, a caridade a liga à história, para antecipar em alguma medida
já aqui a paz que não tem ocaso.
Pode-se dizer que a essência da cidade celeste, representada por Abel, segundo Agostinho, está toda no fato de Abel ter aceito ser
peregrino, enquanto Caim pôs-se a construir
uma cidade? Se dermos atenção a algo mencionado no livro XV do De civitate Dei, poderíamos dizer que Abel põe-se a si mesmo à
disposição para que um Outro se manifeste
(sua praesentia servientem) e Caim, ao contrário, precisa demonstrar que está ali e, portanto, que tem importância (suam praesentiam demonstrantem)3?
Abel, que não constrói nenhuma cidade, e Caim,
que a constrói, são figuras bem representativas das
duas cidades, pois para Santo Agostinho a esperan-
“Inter persecutiones mundi et consolationes Dei” (Agostinho, De civitate Dei XVIII, 51, 2).
“...In hoc temporum cursu, cum inter impios peregrinatur ex fide vivens, sive in illa stabilitate sedis aeternae, quam
nunc exspectat per patientiam...” (Agostinho, De civitate Dei I, Praefatio).
3
“Invenimus ergo in terrena civitate duas formas, unam suam praesentiam demonstrantem, alteram caelesti civitati
significandae sua praesentia servientem” (Agostinho, De civitate Dei XV, 2).
1
2
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A oferta de Abel e Caim
ça escatológica e, respectivamente, o retraimento
no mundo são suas principais características distintivas. Os cidadãos da cidade terrena são tais justamente porque vivem retraídos na terra, buscam apenas
os bens deste mundo e, pela posse deles, se esforçam e lutam entre si. O cristão, por sua vez, vive no
mundo sem se apegar a ele; faz bom uso dos bens
temporais, sem se deixar possuir por eles, pois se
considera exilado neste mundo e tem os olhos sempre voltados para a pátria do céu, que é o próprio
Deus. Todavia, as diferentes esperanças não são o
único elemento distintivo das duas cidades. Santo
Agostinho considera a cidade de Deus diferente da
cidade terrena também pelo amor à verdade e sobretudo pela humildade de quem se reconhece criatura
de Deus e portanto vive na obediência e na submissão ao Criador. Escreve: “Na cidade de Deus e à cidade de Deus exilada no tempo é recomendada sobretudo a humildade, que é exaltada em grau supremo
em seu rei, que é Cristo, enquanto em seu adversário, que é o diabo, domina, como ensina a Sagrada
Escritura, o vício oposto a essa virtude, ou seja, a soberba. Está portanto aqui a grande diferença entre as
duas cidades de que falamos: uma é a sociedade dos
homens pios, a outra a dos ímpios; cada uma unida a
seus anjos, a primeira unida aos anjos nos quais prevaleceu o amor de Deus, a outra aos anjos em que
prevaleceu o amor a si”4. Outro elemento distintivo
da cidade de Deus é a caridade que impele seus
membros a servirem-se mutuamente, enquanto ¬
4
“Quapropter quod nunc in civitate Dei et civitati Dei in hoc peregrinanti saeculo maxime commendatur humilitas et
in eius rege, qui est Christus, maxime praedicatur contrariumque huic virtuti elationis vitium in eius adversario, qui est
diabolus, maxime dominari sacris Litteris edocetur: profecto ista est magna differentia, qua civitas, unde loquimur, ¬
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Caim mata Abel
na cidade terrena domina a paixão pelo poder e pelo
predomínio (cf. De civitate Dei XIV, 28).
Em outro lugar, do livro XV, Agostinho faz
uma comparação entre as duas cidades com
base numa outra imagem bíblica, a das ofertas
feitas a Deus por Abel e Caim, uma recebida e a
outra recusada. Recusada – Agostinho comenta – não porque Caim não tenha oferecido algo
seu, mas porque, justamente oferecendo algo a
Deus, pretendia na realidade não servir, mas
servir-se de Deus. Essa também pode ser uma
imagem eficaz e atual, pois permite entender
até onde pode chegar o equívoco da religiosidade até mesmo dos cristãos, que pode existir não
a serviço, mas como justificação de si.
Sim, é verdade. Os dois irmãos, Abel e Caim, são
vistos como representativos das duas cidades também
pela expressão da sua religiosidade. Segundo o livro
do Gênesis, Caim sentiu tristeza, pois Deus tinha recebido a oferta de Abel e não a sua (cf. Gn 4,4-5). Como
utraque discernitur, una scilicet societas piorum hominum, altera impiorum, singula quaeque cum angelis ad se pertinentibus, in quibus praecessit hac amor Dei, hac amor sui” (Agostinho, De civitate Dei XIV, 13, 1).
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Abel, que não constrói nenhuma cidade, e Caim,
que a constrói, são figuras bem representativas
das duas cidades, pois para Santo Agostinho
a esperança escatológica e, respectivamente,
o retraimento no mundo são suas principais
características distintivas. Os cidadãos da cidade
terrena são tais justamente porque vivem retraídos
na terra, buscam apenas os bens deste mundo e,
pela posse deles, se esforçam e lutam entre si
observa Santo Agostinho, pelo relato bíblico “não é
fácil precisar por quais motivos Caim desagradou a
Deus”5. Na primeira carta de João, porém, lemos que
Caim estava tomado pelo maligno e matou seu irmão,
“porque as suas obras eram más, ao passo que as do
seu irmão eram justas” (1Jo 3,12). O bispo de Hipona
entende essas palavras no sentido de que Caim com a
sua oferta “dava a Deus algo seu, mas dava-se também
a si mesmo”6. E explica: “Assim fazem todos aqueles
que, mesmo não seguindo a vontade de Deus, mas a
sua, ou seja, mesmo não vivendo com o espírito reto,
mas perverso, oferecem todavia a Deus uma dádiva,
com a qual pensam torná-lo propício, a fim de que os
ajude não a curar seus desejos maus, mas a satisfazêlos”7. Provavelmente tinha em mente em primeiro lugar os sacrifícios públicos que no império romano os
pagãos ofereciam a seus deuses, para serem por eles
ajudados a reinar sobre os outros povos, “não pelo desejo de prover o seu bem, mas por querer dominálos”8. Porém, ele oferece, em seguida à observação
histórica, um princípio geral que infelizmente pode ser
aplicado também à religiosidade de muitos fiéis: “Os
bons se servem do mundo para gozar de Deus, os
maus ao contrário querem servir-se de Deus para gozar o mundo”9. A análise de Santo Agostinho, de qual-
quer forma, não se detém aqui. Ele observa ainda que
Caim, ao ver que Deus tinha aceito a oferta do irmão e
não a sua, não deveria ter-se indignado nem sentido
inveja, mas ter-se arrependido e imitado o irmão bom,
pois – conclui – “a tristeza pela bondade de um outro,
sobretudo se é irmão, é o pecado que Deus condena
mais que qualquer outro”10.
Como é possível dizer, seguindo sempre o livro XV do De civitate Dei, que depositar a esperança na invocação do nome do Senhor Deus
(como faz Enos, outra figura veterotestamentária da cidade celeste) é a atividade totalizante e
suprema da cidade de Deus sem sermos tachados de espiritualismo e de quietismo e mantendo, todavia, a radicalidade dessa afirmação?
Também Enos, o filho de Set, é visto por Santo
Agostinho como uma figura representativa da cidade
de Deus, porque foi o primeiro que “começou a invocar o nome do Senhor”11. E essa – explica – “na presente condição de morte é toda e a máxima ocupação
da cidade de Deus peregrina neste mundo”12. Em sua
radicalidade, a afirmação é realmente forte, mas não
nos deve surpreender, se levarmos em conta que a
oferta a Deus vem de Deus não menos que a invocação de seu nome13. Já no décimo livro da obra Agos- ¬
“In quo autem horum Deo displicuerit Cain, facile non potest inveniri” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
“Dans Deo aliquid suum, sibi autem se ipsum” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
7
“Quod omnes faciunt, qui non Dei, sed suam sectantes voluntatem, id est non recto, sed perverso corde viventes,
offerunt tamen Deo munus, quo putant eum redimi, ut eorum non opituletur sanandis pravis cupiditatibus, sed explendis” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
8
“Non caritate consulendi, sed dominandi cupiditate” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
9
“Boni quippe ad hoc utuntur mundo, ut fruantur Deo; mali autem contra, ut fruantur mundo, uti volunt Deo” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
10
“Hoc peccatum maxime arguit Deus, tristitiam de alterius bonitate, et hoc fratris” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
11
“Speravit invocare nomen Domini Dei” (Agostinho, De civitate Dei XV, 21).
12
“In hoc mundo peregrinantis civitatis Dei totum atque summum in hac mortalitate negotium” (Agostinho, De civitate Dei XV, 21).
13
“Illa autem, quae caelestis peregrinatur in terra, falsos deos non facit, sed a vero Deo ipsa fit, cuius verum sacrificium ipsa sit” (Agostinho, De civitate Dei XVIII, 54, 2).
5
6
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Também Enos, o filho de Set, é visto por
Santo Agostinho como uma figura representativa
da cidade de Deus, porque foi o primeiro
que “começou a invocar o nome do Senhor”.
E essa – explica – “na presente condição
de morte é toda e a máxima ocupação
da cidade de Deus peregrina neste mundo”
tinho dissera que toda a vida de cada cristão e de toda
a cidade remida é um sacrifício agradável a Deus. Esse culto espiritual da cidade de Deus não é uma evasão dos compromissos da vida concreta de cada dia.
O verdadeiro culto de Deus, de fato, consiste no
amor a Deus e inseparavelmente no amor ao próximo (cf. De civitate Dei X, 3, 2). Para Santo Agostinho, “os verdadeiros sacrifícios são as obras de misericórdia, que fazemos para nós mesmos e para o próximo em louvor a Deus”14. É sacrifício agradável a
Deus, portanto, tudo o que os membros do corpo de
Cristo fazem para manter unida na caridade a comunidade eclesial, exercendo cada um o seu carisma
em benefício dos outros membros. Enfim, a Eucaristia é culmen et fons da vida da cidade de Deus peregrina no mundo: “Este é o sacrifício dos cristãos:
‘Muitos e um só corpo em Cristo’. A Igreja celebra
esse mistério com o sacramento do altar, conhecido
dos fiéis, no qual lhe é mostrado que, na coisa que
oferece, ela mesma é oferecida”15.
Para concluir, portanto, padre Cipriani nos recorda oportunamente que é o sacramento a fonte
da verdadeira imagem da Igreja, justamente porque
ela, celebrando-o, nada demonstra (demonstrat),
mas lhe é mostrado (demonstratur) que naquilo que
oferece (offert) ela mesma é oferecida (offeratur). Do
ativo ao passivo, poderia, como bom orador, comentar Agostinho.
“Vera sacrificia opera sint misericordiae sive in nos
ipsos sive in proximos, quae referuntur ad Deum” (Agostinho, De civitate Dei X, 6).
15
“Hoc est sacrificium christianorum: Multi unum corpus
in Christo. Quod etiam sacramento altaris fidelibus noto frequentat Ecclesia, ubi ei demonstratur, quod in ea re, quam
offert, ipsa offeratur” (Agostinho, De civitate Dei X, 6).
14
Deus repreende Caim
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