ORIGEM E HIGROSCOPICIDADE DO AEROSSOL CARBONÁCEO EM ATMOSFERAS URBANAS E NÃO URBANAS A.CARVALHO e C. PIO Universidade de Aveiro – Dep. de Ambiente e Ordenamento – 3810-193 Aveiro RESUMO Colheram-se aerossóis com segregação por tamanhos, em regiões urbanas e não urbanas de Portugal. Determinou-se o seu conteúdo em carbono negro, carbono orgânico total e carbono orgânico particulado solúvel em água. Verificou-se que por consequência da oxidação fotoquímica dos compostos orgânicos e formação de compostos secundários polares durante o seu transporte na atmosfera, a fracção de carbono solúvel em água pode atingir valores significativos de 30 a 56 % em locais afastados das fontes emissoras, podendo contribuir significativamente para a formação das nuvens e interferir no balanço energético terrestre. Os níveis de carbono orgânico solúvel em água assemelham-se mais aos de carbono orgânico pirolisado que aos de carbono orgânico secundário, possivelmente devido à existência de compostos secundários adsorvidos menos polares e à tendência dos compostos oxigenados para pirolizar. Todas as distribuições por tamanhos apresentaram um pico nas partículas submicrométricas, ocorrendo também um segundo pico de carbono orgânico nas partículas mais grosseiras. PALAVRAS CHAVE: Aerossol carbonáceo, Distribuição por tamanhos, Solubilidade em água, Carbono secundário, Carbono pirolisado. 1 INTRODUÇÃO Durante vários anos considerou-se que o aerossol orgânico não interferia na formação das nuvens por ser hidrófobo. No entanto, recentemente, verificou-se que as partículas de fuligem dos motores Diesel apenas são hidrófobas quando frescas, aumentando a sua higroscopicidade à medida que envelhecem (Weingartner et al, 1997). Durante o seu transporte na atmosfera, os hidrocarbonetos são oxidados pela acção de oxidantes fortes e da radiação solar, o que leva à incorporação de átomos de oxigénio. Estudos recentes sugerem que os aerossóis carbonáceos após sofrerem estes processos podem ter um papel na formação das nuvens tão importante como o sulfato, devido à presença de compostos orgânicos oxigenados como os ácidos dicarboxílicos, os ceto-ácidos e os compostos multifuncionais (Novakov e Penner,1993; Saxena e Hildemann, 1996; Cruz e Pandis, 1997). Este estudo teve como objectivo aprofundar o conhecimento à cerca dos aerossóis de carbono, em especial a sua fracção solúvel em água. 1 2 PROCEDIMENTO EXPERIMENTAL 2.1 Amostragem dos aerossóis As campanhas de amostragem foram realizadas com amostrador de elevado caudal (high-volume) munido de cabeça de pré-separação PM-10 Sierra e impactor em cascata, de acordo com o programa indicado no Quadro I. As amostras foram colhidas em filtros Whatman QM-A pré-calcinados a 500 ºC. Quadro I – Programa de amostragem. Local Descrição Data Período de amostragem (dias) Número de amostras colhidas Areão Portugal (40º30'N, 8º47'W) Meio costeiro e rural, isolado de estradas e habitações. Março de 1998 3 4 Junho de 1998 2 3 Alfragide Portugal (38º47'N, 9º12'W) Meio urbano, junto a um nó de auto-estrada. 2 1 7,2; 3,0; 1,5; 0,95 e 0,49 7 a 12 horas 4 0,95 2.2 Novembro de 1998 Diâmetros de corte (µm) 7,2; 3,0; 1,5; 0,95 e 0,49 Análise laboratorial do carbono particulado O carbono negro e o carbono orgânico foram determinados por um método termoóptico, o qual se baseia na volatilização/oxidação do carbono particulado a CO2 e posterior análise por espectroscopia não-dispersiva de infravermelhos (Pio et al, 1994). A variação do enegrecimento da amostra, que ocorre durante a os processos de decomposição térmica, é monitorizada com um laser. Este método permite que o carbono orgânico que pirolisa durante o aquecimento da amostra seja quantificado e não sobrestime o carbono negro. Na literatura são descritos dois métodos para a determinação do carbono orgânico solúvel em água. Em ambos os casos é necessário extrair uma porção de filtro em água de elevada pureza. Num dos métodos o extracto é analisado num analisador de carbono orgânico total (Sempéré e Kawamura, 1994; Mueller et al, 1982). No outro método o carbono particulado presente no filtro é analisado antes e após a extracção (Cadle e Groblicki, 1982). Este procedimento tem vários inconvenientes, porque após a extracção a concentração superficial no filtro poderá não ser homogénea e as partículas sólidas podem entrar em suspensão pois, em meio aquoso, os filtros de quartzo não retêm as partículas eficientemente. 2 Porções de filtro (22,5 cm2) foram extraídas em 15 ml de água ultra-pura. Os extractos foram filtrados através de filtros pré-lavados Whatman 42 e Schleicher & Schüll FP 030/80 de poro 0,2 µm. Transferiram-se volumes de 1,5 ml para barquinhas de combustão, os quais foram secos durante a noite a 30 ºC na presença de sílica gel. Por fim analisaram-se as barquinhas pelo método descrito anteriormente. 2.3 Determinação do carbono orgânico secundário O carbono orgânico secundário (COsec) foi estimado usando a seguinte expressão: COsec ≈ CO - æ CO ö ç è CN × CN (Eq. 1) mínima Onde CO é o carbono orgânico total, CN é o carbono negro e CO/CN mínima é a razão mínima entre o carbono orgânico e o carbono negro (1,1). Esta equação fornece resultados correctos se (Castro et al, 1999): • Nas amostras utilizadas para calcular a razão CO/CN mínima a quantidade de COsec é desprezável; • A contribuição de compostos orgânicos semi-voláteis comparada com os nãovoláteis é desprezável; • A composição das fontes do aerossol carbonáceo primário e a contribuição relativa de cada fonte para o aerossol são espacialmente e temporalmente constantes. • A contribuição de carbono orgânico primário não proveniente de combustão é baixa e constante. 3 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 3.1 Abundância e distribuição por tamanhos do aerossol carbonáceo As distribuições médias por tamanhos de carbono negro e carbono orgânico são apresentadas na Figura 1 e as concentrações médias no Quadro II. No Areão ocorreram 2 cenários distintos. Em Março de 1998 registaram-se concentrações de CO e CN elevadas associadas a um regime de brisa, a qual propicia o transporte de poluentes do interior para a costa, quer directamente pela brisa de terra, quer indirectamente pela brisa de mar. Por outro lado em Junho de 1998 verificaram-se níveis baixos e ventos de norte. Analisando as trajectórias das massas de ar verifica-se que a sua origem é marítima, tendo os percursos sido efectuados sobre o mar ou paralelamente à costa. Em Alfragide a forte influência rodoviária existente contribuiu para ai ocorrerem as concentrações mais elevadas. 3 Quadro II – Concentrações médias totais de carbono negro (CN) e carbono orgânico [total (CO), secundário (COsec) e solúvel em água(COSA)]. Concentração (µg m-3) Areão Alfragide – Novembro de 1998 Março de 1998 Junho de 1998 Impactor de 1 etapa Impactor de 5 etapas CN 1.2 0.25 3.3 8.3 CO 8.7 1.8 8.9 16 COSA 4.4 0.54 0.87 3.5 COsec 7.3 1.5 5.2 6.7 O carbono negro apresentou um máximo nas partículas submicrométricas, pois as combustões interna e industrial produzem partículas finas de CN. No Areão também ocorreu um pequeno pico nas partículas grosseiras, possivelmente devido à quantificação de alguma celulose refractária ou carbonato como carbono negro. O carbono orgânico abundou principalmente nas partículas de diâmetro inferior a 1,5 µm, ocorrendo também nas partículas maiores que 3 µm. A bimodalidade das distribuições sugere que cada pico tenha uma origem distinta. O pico fino de CO resulta não só de fontes antropogénicas como o CN, mas também da conversão gás-partícula. Este fenómeno pode envolver a formação de novas partículas por condensação, ou então a adsorção á superfície de partículas pré-existentes. Por consequência, mesmo na fracção fina, o CO ocorre em partículas maiores que o CN. O pico grosseiro normalmente tem origem biogénica (esporolação, polinização e fragmentação) e no desgaste dos pneus. O COsec e o COSA apresentaram distribuições por tamanhos semelhantes às do orgânico total. Matsumoto et al (1998) também referem uma distribuição bimodal para o COSA no Pacífico norte. 3.2 Relação entre o carbono orgânico solúvel em água e o carbono secundário O COsec constituiu geralmente mais de 80 % do CO no Areão (meio rural), o que é superior aos 30 a 56 % de COSA. Em Alfragide (meio urbano) o COsec foi cerca de 60 % do CO, enquanto em o COSA foi apenas de 9 %. Sempéré e Kawamura (1994) observaram que na área urbano de Tóquio o COSA constitui 28 a 55 % da massa do carbono total. Estes valores elevados sugerem que nesta zona os hidrocarbonetos são oxidados rapidamente. Como se pode verificar graficamente na Figura 2 e na expressão a seguir apresentada, o COSA encontra-se bem correlacionado com o COsec (R2 = 0,97127), mas é-lhe inferior: COSA = 0,63383 × COsec - 52,24500 (Eq. 2) 4 ∆[CN]/∆logDp -3 (ngC m ) ∆[CO]/∆logDp (ngC m-3) 1200 1000 800 600 400 200 0 8000 6000 4000 2000 0 8000 6000 4000 2000 0 0,1 3 Areão - Março / 98 0,49 0,95 1,5 Dp (µm) COSA CONSA COsec COpri 7,2 10 250 200 150 100 0 50 1200 1000 800 600 400 Areão - Junho / 98 6000 5000 4000 3000 2000 0 1000 8000 10000 6000 4000 8000 10000 6000 2000 4000 200 0 400 600 800 1000 1200 0 7,2 10 2000 3 0 0,49 0,95 1,5 200 0,1 0 Dp (µm) 5 0,1 3 7,2 10 Alfragide - Novembro / 98 0,49 0,95 1,5 Dp (µm) Fig. 1 – Distribuições médias por tamanhos de carbono negro, carbono orgânico total (CO), carbono orgânico solúvel em água (COSA) e carbono orgânico secundário (OCsec) obtidas no Areão e Alfragide. ∆[CO]/∆logDp -3 (ngC m ) Esta discrepância pode resultar da adsorção e condensação de compostos secundários menos polares ou da influência de fontes biogénicas. A existência de concentrações elevadas de carbono solúvel em água em zonas afastadas das fontes emissoras reforça a ideia de que os aerossóis orgânicos podem contribuir significativamente para a formação das nuvens. Os aerossóis envelhecidos que chegam a estes locais perderam o seu carácter hidrófobo devido às transformações sofridas durante o transporte, podendo actuar como núcleos de condensação das nuvens contribuindo para a sua formação, e por consequência aumentar o albedo e interferir no balanço energético terrestre. 3.3 Relação entre o carbono orgânico solúvel em água e o carbono pirolisado De uma forma geral as amostras de Alfragide apresentaram um conteúdo orgânico facilmente volatilizável e baixa solubilidade em água, todavia houve 2 amostras com solubilidade mais significativa, as quais volatilizaram com mais dificuldade e pirolisaram significativamente, sugerindo a existência de uma relação entre a ocorrência de pirólise e a solubilidade em água. Observando a Figura 2 verifica-se que de facto existe correlação entre os conteúdos orgânicos pirolizado (CP) e solúvel em água (R2 = 0,95087). Mais interessante revela-se o declive da recta obtida pelo método dos mínimos quadrados: COSA = 1,00432 × CP + 33,52721 (Eq. 3) O qual apresenta um valor aproximadamente unitário, sugerindo uma possível identidade entre as duas variáveis. É aceite que a presença de grupos funcionais muito polares possibilita o estabelecimento de ligações fortes como as pontes de hidrogénio, as quais são responsáveis pela ocorrência de calores lactentes de volatilização elevados. Em estudos da pirólise do carvão (Solomon et al, 1992) verificou-se que esta é favorecida quando abundam os grupos funcionais oxigenados. Durante o aquecimento do material carbonáceo estes grupos funcionais e as ramificações alifáticas decompõem-se libertando CO2, H2O e CH4. A sua decomposição pode ser acompanhada pela formação de novas ligações com moléculas adjacentes originando moléculas menos voláteis e com uma estrutura de anéis aromáticos condensados. Deste modo o COSA pode ser de facto constituído pelos mesmos compostos que pirolisam durante a analise. 6 3000 -3 [COSA] (ngC m ) 2500 2000 1500 1000 [COSA] vs [CP] 500 [COSA] vs [COsec] 0 0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 4500 [COsec] e [CP] (ngC m-3) Fig. 2 – Representação gráfica das concentrações de carbono orgânico solúvel em água (COSA) em função das concentrações de carbono orgânico secundário (OCsec) e carbono orgânico pirolisado (PC). 7 4 CONCLUSÕES O estudo realizado com amostras urbanas e não urbanas permitiu melhorar o conhecimentos existentes à cerca das distribuições por tamanhos dos aerossóis de carbono e da solubilidade do aerossol orgânico em água, destacando-se as seguintes conclusões: • Os aerossóis de carbono negro e carbono orgânico abundam sobretudo nas partículas com diâmetro inferior a 1,5 µm; contudo o carbono orgânico e as suas fracções solúvel em água e secundária também apresentam um pico nas partículas maiores que 3 µm; • O carbono orgânico solúvel em água e o carbono orgânico secundário ocorrem com mais abundância em zonas afastadas das fontes emissoras, onde constituem uma fracção elevada do aerossol orgânico, podendo contribuir significativamente para a formação das nuvens e interferir no balanço energético terrestre; • O carbono orgânico solúvel em água é inferior ao carbono orgânico secundário, possivelmente devido à adsorção e condensação de compostos secundários menos polares ou da interferência de fontes biogénicas; • O carbono orgânico solúvel em água apresenta valores semelhantes ao carbono orgânico pirolisado; A contribuição dos grupos funcionais oxigenados para a formação de moléculas mais pesadas durante a decomposição térmica sugere que os compostos solúveis em água podem ser os mesmos que pirolisam durante a análise. 5 AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à Fundação para a Ciência e a Tecnologia o apoio financeiro deste trabalho (IGLO - Contracto Praxis/3/3.2/EMG/1949/95) e a bolsa concedida a Abel Carvalho. 8 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CADLE, S. 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