Que horas são no paraíso? Segundo os relatos bíblicos, o paraíso - chamado de Jardim do Éden, era um espaço terrestre localizado num ponto qualquer da remota ancestralidade. Nesse espaço atemporal, o homem criado à forma do seu criador vivia em comunhão com a natureza, a salvo dos males e das doenças, pois imortal. Com o pecado original, o homem torna-se mortal, e com seu ato transporta o paraíso terrestre para a metafísica, tornando-o um local imaterial, distante, onde só se teria acesso se expiasse sua culpa diante do Criador. O paraíso, com a culpa de Adão e Eva, tornar-se-ia um lugar mítico, acessível somente aos bons, tornando-se uma metáfora do ensejo de bondade e beleza. Em todas as religiões e crenças, o paraíso ocupa um lugar privilegiado. Mas não é somente na religião, também na filosofia e nas artes, pois os mais distintos autores usaram da imagem do paraíso em suas obras, desde Dante Alighieri – na literatura, Hieronymus Bosch – na pintura, Thomas Hobbes – na filosofia, Maquiavel – na política, entre tantos outros o usaram como conto moral. Mas é o poeta inglês John Milton (1608-1674) que, no século XVII, comporá a mais importante obra sobre o tema do Paraíso Perdido,1 inspirado no livro do Gênesis, escrito em 1667, é uma epopéia composta de doze cantos. Na história, Satanás, sabendo que uma nova raça ocupará o lugar dos anjos rebelados, resolve agir. Deus prevê a perdição do homem e sua possível redenção, caso alguém se sacrifique por ele. O Filho se oferece em holocausto, e o homem, mesmo antes da queda, já se acha redimido. Deus ordena ao arcanjo Rafael que previna os pais da humanidade sobre os projetos diabólicos. O arcanjo lhes relata a rebelião dos anjos e a sua consequente precipitação no inferno. Mas Eva se deixa seduzir e induz também Adão ao pecado. Adão sofre as consequências da falta irremediável. Sofre uma visão na qual contempla tudo que acontecerá em tempos futuros até o nascimento de Cristo. Com a morte física Deste, o homem se salvará. A alegoria de Milton se torna uma forma de compreensão dos valores humanos em meio a tentativa de alcançar o eterno sublime. Nascimento e morte, vida terrena e o eterno retorno são as principais questões que mobilizam o pensamento ocidental, desde a antropologia à ciência, da religião à arte. Depois do fenecimento do corpo, a alma livre chega ao paraíso – o inferno é pura especulação religiosa, diriam alguns céticos. Especula-se que a primeira pergunta que o homem faça ao chegar ao paraíso será: que horas são aqui? O antropólogo Claude Lévi-Strauss buscou justificar a essência da existência na necessidade do homem em reconhecer-se a partir do binômio espaço e tempo.2 Sob esta premissa podemos especular o porquê do título Que Horas São no Paraíso que o artista Albano Afonso escolheu para nomear sua mostra. Ele nos serve de índice para compreensão da vertente existencialista no escopo de sua experiência visual quando exibe esqueletos no espaço da galeria. Pois os corpos não são reais, parecem ter suas dimensões reais, mas só podem ser vistos como experiências metafísicas, por serem mensuráveis somente no interior da nossa experiência individual. Destituídos de sua fisicalidade aparente, esses corpos, um masculino e um feminino, se apresentam como partículas físicas de luz, emitidas pela incidência de um facho sobre eles. Na sala superior da galeria, Albano exibe a visão de seu Paraíso, ao colocar dois corpos revestidos de espelhos (Natureza-Morta - Casal, 2007), estes jazem meio abraçados, tendo em volta um ambiente paradisíaco de uma floresta. As imagens da obra Florestas (2007) advêm de um jogo de espelhos onde o real e o virtual confundem-se para criar um ambiente onírico. Na sala central, o artista colocou três caixas de vidro. Na primeira, um par de cabeças, noutra, dois corações gigantes e na última caixa, uma pélvis masculina e uma feminina, entrelaçadas. Nas paredes laterais, o artista projeta desenhos de prismas feitos com luzes. São imagens de mãos retiradas de pinturas no ato de tomar uma chaga, como nas pinturas religiosas do Maneirismo e do Barroco. Mais uma vez o artista recorre a própria história da imagem para criar uma nova imagem. Complementando o paraíso do artista, temos uma dupla projeção de uma mesma imagem, porém com tempos em desacordo. As imagens iguais, tornam-se diferentes na medida que o tempo interfere em sua sequência visual (2). Os ossos e os órgãos repousam em caixas de vidro, espécies de ataúdes transparentes, como achados arqueológicos. Vistos no espaço, essas imagens podem tanto remeter aos moldes dos corpos encontrados nas escavações de Pompéia, quanto às imagens de Adão e Eva das pinturas religiosas: Mantegna, Dürer, Michelangelo, Caracci, Cranach, Grossaer, tantos pintores imortalizaram o ato da expulsão do paraíso. Formalmente, Adão e Eva de Albano Afonso remetem a uma outra obra sua, um outro Adão e Eva da série Pictogramas Iluminados. No primeiro trabalho, datado de 2000, a imagem é composta de micro lâmpadas que criam uma imagem a partir da emissão da luz num desenho bidimensional, mas incorporando os fios elétricos que alimentam a peça como filamentos dos corpos (veias). Na segunda obra, esta da série Natureza Morta, o naturalismo do corpo é encoberto pelo efeito visual, pós-pop e alegórico, das pequenas partículas de espelho que os recobrem projetadas no espaço a partir de um facho de luz sobre o ataúde. As partículas oriundas dos reflexos criam um corpo expandido no ar. Sendo central na sua obra, a luz pode aparecer nos reflexos propositados das fotografias, nos quais as luzes de flashes das câmeras são disparadas diante de um espelho, quanto no brilho fugidio de uma estrela, captada num ponto qualquer de seu ateliê. Mas é nas séries Pictogramas Iluminados e Pinturas de Luz que a massa de energia da luz é utilizada como moldagem plástica. As Pinturas de Luz desejam ser pinturas desencarnadas. A série começou em 2000 quando o artista apresentou sua primeira versão de Adão e Eva. Seguiram-se Maja (2000), Leda e Prometeu (2002), Martírio (2005) e Metamorfoses (2006). Nessas obras, a luz é projetada sobre um espelho com imagens decalcadas que são refletidas no espaço sob forma de anamorfoses de luz. Outras vezes a luz é projetada diretamente sobre objetos de vidro, como na Natureza-Morta com Cabeça e Coração (2005) e no Déjeuner (2005), ou ainda recobertos com espelhos, como o esqueleto desmontado que apresentou numa caixa de vidro, ainda dentro da série Natureza-Morta. A peça em questão deixava evidente para além de fêmures, tíbias e omoplatas, uma caveira. Uma vanitas pop, luxuriante e sedutora aos olhos dos desavisados, pois o crânio humano, símbolo inequívoco da eminência da morte, foi sempre utilizado como alegoria. Comparece no monólogo existencial To Be or Not to Be, de Hamlet bem como nas pinturas de naturezasmortas no Renascimento e no Barroco. A caveira de espelhos de Albano Afonso tem a mesma natureza metafórica da Black Kites (1997) de Gabriel Orozco – uma caveira tabuleiro de xadrez – e da For the Love of God (2007), a caveira de diamantes de Damien Hirst. Todas essas vanitas têm as mesmas procedências formais e buscam as razões conceituais que levaram Hans Holbein a pintar uma anamorfose de caveira em The Ambassadors (1533) diante das glórias e das riquezas da vida. É disso que tratam as obras de Gabriel Orozco, de Damien Hirst e de Albano Afonso. Que Horas São no Paraíso evidencia o estado de transitoriedade da vida, que somente a arte é capaz de perpetuar. Necessitamos de um paraíso bíblico e inatingível? Penso que se necessitamos de um paraíso, este paraíso é a arte, o único complemento vital, estético e ético que o homem pode deixar como herança a outras gerações. Paulo Reis, 2007 Lisboa, Setembro 2007. 1 John Milton. Complete Poems and Major Prose. Merritt Y Hughes (ed.). New York, 1957. 2 Depoimento do artista 3 Claude Lévi-Strauss. L'homme nu. Mythologiques IV. Paris: Plon, 1970.