Aspectos da História Contemporânea de Israel tais como se refletem na
Literatura Hebraica
Alexandre Feldman
Resumo
A literatura hebraica israelense surgida há mais de cem anos tem servido para expor aspectos da
história e da formação do país, que abarcam a colonização e construção, as características
culturais da fusão de elementos nativos com os recém-adquiridos, o que abrange a estabilização
da língua hebraica nas normas culta e popular e a introdução do modelo que tem sido
denominado “o hebreu novo” nesta literatura. Foram analisados cinco estudos de Itamar EvenZohar, Dan Miron, Robert Alter, Hanan Hever e Bosmat Even-Zohar que cobrem o período de
1882 até o final da década de 1980 e baseiam-se nas principais obras literárias produzidas.
Verificou-se por meio desta pesquisa científica que houve na literatura, assim como na
sociedade, a fusão dos novos elementos com os antigos, utilização ampla do modelo cultural
cristalizado na Rússia no início do período em questão, adaptação a padrões mais recentes da
cultura universal, sendo que as diversas temáticas locais vêm se manifestando desde a década
de 80 com as características do pós-modernismo.
O surgimento de uma cultura hebraica nativa na Palestina teve início em 1882,
quando foi constituída uma sociedade cuja natureza provou ser altamente fluida. O afluxo
periódico de grupos relativamente grandes de imigrantes interrompeu ou perturbou
continuamente a estabilidade da comunidade. Cada novo fluxo resultava numa
reestruturação do sistema todo. Entretanto, é comumente aceito que, por volta da época do
estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, que marca o final mais ou menos impreciso
do período iniciado em 1882, existia na Palestina uma sociedade judaica relativamente
cristalizada com um caráter cultural específico e um alto nível de auto-consciência, bem
como instituições sociais, econômicas e políticas estabelecidas. Ela diferenciava-se,
culturalmente e de outras maneiras, da velha comunidade judaica da Palestina pré-sionista e
das comunidades judaicas de outros países. Além disso, a distinção entre culturas judaica e
hebraica tornou-se secundária e eventualmente obsoleta.
As primeiras ondas da nova imigração judaica à Palestina, pelo menos até o início
dos anos 30, parecem ser diferentes de outras emigrações em tempos modernos, pois havia
uma atividade consciente e deliberada conduzida pelos próprios imigrantes na substituição
de elementos da sua cultura pelos de uma outra. Sabemos que o comportamento cultural
dos imigrantes oscila entre dois pólos: a preservação da cultura de origem e a adoção da
cultura do país alvo, onde o que importa é enfatizar a necessidade de um sistema
alternativo. A ideologia sionista e suas ramificações fornecem a principal motivação para a
imigração bem como princípios para a criação de uma cultura alternativa. Isto não implica
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na existência de qualquer tipo de modelo cultural forte durante este período, nem na
aceitação pelos imigrantes destes princípios de uma maneira consciente. O princípio
governante era “a criação” de um novo povo judeu e de um novo judeu na Terra de Israel”.
Entre os vários modos de contrapor o “novo hebreu” ao “antigo judeu da diáspora” estavam
a transição para o trabalho físico, a autodefesa e o uso de armas, a suplantação da língua da
diáspora, o iídiche, pela nova língua, o hebraico coloquial, com adoção da pronúncia
sefardita ao invés da ashquenazita, e o abandono das roupas judaicas tradicionais. A luta
deliberada pela adoção maciça de novos constituintes não aniquila todos os elementos da
“antiga” cultura. E nenhum sistema que mantenha uma ininterrupta existência é capaz de
substituir todos os seus elementos. Normalmente, apenas o centro do sistema se modifica;
relações na periferia mudam de forma muito gradual. No caso da língua e da literatura os
modelos canonizados que tinham se cristalizado na Europa Oriental mantiveram suas
posições e centrais nestes sistemas enquanto os elementos novos foram forçadas a
permanecer na periferia, penetrando o centro apenas no final da década de 50. O
crescimento gradual do acento sefardita como a norma métrica para a poesia hebraica
ilustra em que extensão os modelos literários institucionalizados estavam fechados à
penetração dos elementos nativos. Apesar da pronúncia sefardita dominar o hebraico falado
na Palestina, ela não tinha impacto nas normas da linguagem poética, aparecendo nos
setores oficiais apenas no início dos anos 20. Os modelos empregados como alternativas
eram baseados na adoção maciça de elementos russos, incluindo o ritmo, entonação, ordem
das palavras, etc. O mesmo ocorria na prosa narrativa, por volta do fim dos anos 40, em
que, mesmo em escritores que mal conheciam uma língua estrangeira e que estavam
assumindo posições centrais, poucos elementos da língua nativa são encontrados, fato que
se modificou na metade dos anos 50. Nesta época a literatura hebraica respondeu à
chamada de compromisso de um realismo de intenção moral. A ideologia foi o único
motivo para o realismo. Os desafios implacáveis do novo meio social israelense foram
acompanhados por um conjunto de desafios afins colocados pela língua hebraica. Deve-se
ter em mente que esta foi a primeira geração de escritores hebraicos desde a antigüidade
que tinha absorvido a língua hebraica naturalmente como uma língua materna. A prosa
israelense através das quatro décadas do Estado apresenta com certeza um quadro evolutivo
no qual temos um mapa de gerações: a Geração de 48, a Nova Onda ou Geração do Estado
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que começou a publicar no final dos anos 50, a Geração Desiludida da década de 70 e os
escritores dos anos 80 e 90. Nota-se que o sistema de textos escritos é o mais
institucionalizado dentro da cultura e como é portador de reconhecimento oficial tem a
função central de gerar modelos textuais. Neste sistema a literatura freqüentemente assume
uma posição central, fato que ocorreu na cultura hebraica moderna.
Para exemplificar, são aqui citadas algumas obras com o objetivo de demonstrar as
características principais de cada fase e a evolução da literatura hebraica desde antes da
criação do Estado de Israel quando ainda predominava a oposição cultural novo hebreu –
antigo judeu.
A descrição literária agora clássica do trabalhador hebreu sentado em uma caixa de
madeira, comendo pão árabe mergulhado em óleo de oliva, expressava de uma só vez três
novos fenômenos: ele é um trabalhador, ele é um “verdadeiro filho da terra” e ele não está
comendo de um modo “judaico” (não está sentado à mesa e obviamente não cumpriu os
preceitos religiosos de lavar as mãos). O conto de A. Z. Rabinovitz A vovó rejeita a vovó
aproxima (em Haadamá, 1920), é um exemplo complexo no qual foi introduzido o “hebreu
novo” no repertório literário de centro. Em seus contos, os “hebreus novos” são nitidamente
apresentados, mas eles não são as personagens principais. A personagem da qual está o
narrador, é que conserva algumas características do modelo “da diáspora”. No conto é
descrita a tensão entre duas ou três personagens que se encontram na seqüência entre
“hebreu novo”, “israelense novo” e do modelo da “diáspora”.
Apesar da grande semelhança entre os modelos “hebreu novo” e “israelense novo”,
na maioria das vezes, o primeiro é mesclado a modelos “da diáspora” e o segundo tende a
ser a realização completa do modelo. O “hebreu novo” que se pode abstrair dos contos é
um judeu, jovem, pioneiro, amante do trabalho, ligado à natureza, apaixonado pelo país,
ativo, corajoso, dentre várias outras características positivas que lhe são atribuídas,
inclusive o moralismo, todas revelando que o “hebreu novo” é construído como oposição
consciente aos modelos dos “hebreus da diáspora”.
Entre os escritores de contos que abrangiam a personagem do “hebreu novo” alguns
foram também editores de periódicos literários, já que naquele período a atividade da
literatura hebraica baseava-se primordialmente na iniciativa organizacional (edição e
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criação de grupos, etc.); destes destacam-se A. Z. Rabinovitz, David Shimanovitz,
Yehoshua Barzilai entre outros. Algum tempo depois, ainda prevaleceriam elementos
baseados em modelos externos. No romance Dias de Messias, de Yitzhak Dov Berkovitz
(1938), há o ancião típico da aldeia construindo uma casa para si como uma khata (na
Rússia – uma choupana de camponês). A versão do Barão de Rothschild do fazendeiro
judeu na Palestina, por outro lado, foi o autêntico modelo francês. A predominância de tais
elementos foi curta, sua sobrevivência dependia da habilidade de preencher uma função de
acordo com a nova ideologia do ressurgimento nacional.
Os dias de Ziklag, de S. Yizhar (1958), que alterna monólogos interiores e grandes
diálogos, cobrindo sete dias durante a Guerra de Independência, é claramente representante
de uma década de ficção em busca de um acordo entre a guerra e as questões nacional e
pessoal. Há uma tradição literária baseada indiretamente na Rússia do século XIX e
escritores de ficção hebraica do início do século XX, o que mostra um atraso do romance
israelense com relação à ficção de outro lugar. Esse atraso ocorreu porque enquanto no
cenário internacional de ficção havia, desde a Segunda Guerra, várias tendências altamente
divergentes como um pós-modernismo consciente, uma auto-reflexão ficcional, na
literatura hebraica encontrava-se primordiamente o recurso de fantasias e uma variedade de
elementos do realismo do século XIX, apenas levemente modificados para responder às
pressões de uma nova era histórica. Yizhar tipifica a ficção israelense com dilemas e
destino coletivos: o protagonista verdadeiro de seu romance não é uma personagem, mas o
grupo por igual. Procura também uma aproximação frouxa ao fluxo de consciência que o
associa com a prosa modernista das décadas de 20 e 30.
Na década de 60 o romance rompe decisivamente com o contrato tácito do realismo
que tinha sido obrigatoriamente observado. O romance Não deste tempo, não deste lugar,
de Yehuda Amichai (1964), é considerado a obra hebraica mais original dos anos 60, na
qual a principal inovação é a divisão da ação em dois enredos simultâneos que
compartilham um só protagonista em capítulos alternados que são ligados por um modelo
intrincado de temas e motivos.
São dessa mesma época os contos Diante das Florestas, de A. B. Yehoshua, O
nômade e a víbora, de Amós Oz e No auge do verão, no auge da luz, de Amália KahanaCarmon, que representam um momento de uma idéia de introvisão da dialética de construir
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uma nação-estado sobre bases de uma tradição minoritária oprimida. Estes contos de fato
sinalizam estágios diferentes na formação da consciência da maioria, através de um exame
crítico das posições da minoria. Eles também apontam para a possibilidade da consciência
da maioria tomar forma sem recorrer ao tipo de uma superioridade a priori que nega à
minoria qualquer espaço livre.
Nessa fase, a procura de uma nova identidade israelense é concebida como a revolta
da minoria contra a maioria. Estes contos contribuíram para subverter a ilusão comumente
mantida da validade metafísica a-histórica do conceito de identidade nacional.
Nos anos 70 a literatura hebraica moveu-se em direção à vanguarda internacional
em um notável fluxo de obras convincentemente originais. Os principais escritores da Nova
Onda utilizam um estilo mais simbólico. A marca do amadurecimento do romance hebraico
foi a publicação, em 1977, de Passado Contínuo, de Yaakov Shabtai, um dos
representantes da Geração Desiludida. As inovações formais são rigorosas e
descompromissadas a serviço de um hiper-realismo. Embora a palavra contínuo não
apareça no título original em hebraico, a idéia é manifestada na tipografia, em que 275
páginas não são interrompidas sequer por parágrafos. Este romance consegue proporcionar
um relatório minucioso e persuasivo das realidades social e psicológica do país.
Nos anos 80, o pós-modernismo faz uma entrada dramática na cena literária
israelense exibindo de variadas maneiras e graus o gosto contemporâneo pela fantasia,
paródia, jocosidade e consciência ostentada dos artifícios da ficção. Nesta época o romance
Ver: amor, de David Grossman (1986), é o mais ambicioso: é a obra mais complexa e de
fôlego vinculada a Shoá1 escrita nos últimos anos, pois trata da necessidade inevitável e a
incapacidade necessária da imaginação para compreender a Shoá. Como no caso de
Amichai, uma ruptura fundamental com as convenções do realismo é feita com o intuito de
atingir a total impossibilidade do assunto. O romance compreende quatro longos capítulos,
cada um escrito em um estilo e modo narrativo bem diferentes. Suas quatro partes
abrangem entre outras, a volta a vida do “Kafka” polonês Bruno Schultz, assassinado por
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A palavra Shoá, em hebraico, se refere exatamente a uma catástrofe cujo entendimento nos remete a um
trauma e ferimento profundos e, conseqüentemente, à necessidade de relatar o ocorrido. Ela tem sido utilizada
como um substituto aos termos Holocausto e Genocídio, pois enquanto o primeiro carrega um significado de
sacrifício, imolação, expiação e abstração da vontade própria para satisfação de outrem, o que não
corresponde ao que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, o segundo não delimita a singularidade do
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um oficial nazista em Drohobitz e que retorna metamorfoseado em salmão numa
recomposição da essência da vida, uma enciclopédia, uma história pseudo-infantil narrada
pela personagem Anshel Vasserman ao oficial alemão Neigel e o confronto do menino e
posteriormente escritor jerosolimita Momik com sua concepção da Shoá. A descida à Shoá
não se realiza no caminho histórico, mas sim como uma descida mítica ao inferno das
profundezas da alma. A questão central levantada é se, ao desnudar as raízes profundas da
iniquidade, pode-se igualmente imaginar uma saída deste círculo vergonhoso de vítimas e
agressores e promover o humanismo.
Verifica-se, portanto, que a ideologia sionista e suas ramificações forneceram
motivação para a formação de uma cultura abrangente. Por isso, pode-se dizer que,
inicialmente, não existe algo como uma literatura hebraica unificada, mas sim estratos
independentes influenciados pelo bilingüismo, literatura moderna e pós-moderna, bem
como guerras e fatores sociais.
Apenas a partir de 1960 e 1970, a literatura passou a abordar intensamente o
indivíduo colocando a sociedade num segundo plano, no qual o entusiasmo dos anos de
guerra é trocado por valores pessoais e a existência íntima.
A literatura israelense dos anos 1990 expõe sua visão de reconcialiação com a
tradição como um pensamento muito desejável; porém, como nesta época ela própria
tomou diferentes rumos e formas, seria loucura prever possíveis direções futuras da
literatura hebraica israelense. No presente momento, entretanto, esta literatura, no melhor
dos casos, está evoluindo como uma expressão angustiada dos dilemas israelenses e uma
crítica precisa da mentalidade do país com sua própria lógica interna.
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_________. Modern Hebrew Literature: Zionist Perspectives and Israeli Realities. In: WIRTH-NESHER,
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antecedentes históricos.
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