ANAIS
XIII ENCONTRO NACIONAL DA ABET
28 a 31 de outubro de 2013 – Curitiba-PR
GT 5
SESSÃO 3
ID 155
TRABALHO AUTÔNOMO: JUVENTUDE E FAMÍLIA NO POLO DE CONFECÇÕES
DO AGRESTE PERNAMBUCANO
Sandra Roberta Alves Silva (UFCG)
Marilda Aparecida de Menezes (UFCG)
RESUMO: A inserção do jovem no mercado de trabalho no Polo de Confecções do
Agreste Pernambucano se dá desde muito cedo na própria família. A autonomia
financeira é conquistada à primeira vista mediante o trabalho fora do espaço familiar,
em uma empresa formal ou informal, ou ainda montando sua produção própria de
confecção. Diante de tal realidade, optamos metodologicamente pela escolha de
uma família como unidade de análise, afim de melhor compreender as estratégias
de sobrevivência desenvolvidas nas famílias e suas implicações quanto à trajetória
de trabalho dos jovens. Como metodologia, escolhemos a história oral e a
etnografia, por nos possibilitar um maior entendimento das relações de trabalho
estabelecidas entre os jovens e suas famílias. Deste modo, foi possível perceber
que, entre o desejo e a conquista do trabalho autônomo, há constantes oscilações,
ou seja, um longo processo de idas e vindas, altos e baixos, que dificultam a
concretização do sonho, pois tanto o jovem quanto o adulto, para conseguir
estruturar sua própria produção, enfrentam muitas variáveis.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho, Autonomia, Jovens, Família, Polo de Confecções.
Introdução
A proposta desse artigo é analisar o trabalho dos jovens nas unidades de
produção familiar do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco, destacando
seu desejo de autonomia, o qual busca realizar por meio do trabalho assalariado
fora de casa ou montando sua produção própria de confecção.
Tomamos como base empírica um estudo de caso realizado em 2009, no
distrito de Pão de Açúcar, localizado no município de Taquaritinga do Norte, na
região do Agreste Setentrional de Pernambuco. Essa região tem se caracterizado,
nas duas últimas décadas, pela constituição de um aglomerado produtivo
especializado em confecções, envolvendo os municípios de Caruaru, Toritama,
Taquaritinga do Norte e Santa Cruz do Capibaribe, dentre outras cidades, o qual é
denominado Polo de Confecções do Agreste1.
O Polo de Confecções do Agreste é considerado atualmente um dos mais
importantes do Nordeste. Segundo o SEBRAE (2013), a região tem 18.803 unidades
produtivas. Melo (2000, p. 08), sua importância se aproxima em termos quantitativos
e qualitativos do Polo Cearense, no que se refere às vantagens competitivas
relacionadas a preço e à qualidade, favorecendo a conexão entre o Polo de
Confecções do Agreste e cadeias de produção e de comercialização não só locais,
mas também, regionais, nacionais e internacionais.
Para analisar a divisão do trabalho na família e o desejo de autonomia dos
jovens, seja no trabalho fora de casa ou montando sua própria produção de
confecções, optamos metodologicamente, nesse artigo, em privilegiar a trajetória de
uma família. A escolha da família como unidade de análise se justifica pela própria
história do surgimento da “Sulanca”2 na cidade de Santa Cruz do Capibaribe. Entre
as décadas de 1940 e 1950, as famílias, não conseguindo sobreviver apenas com
uma agricultura de subsistência e extremamente vulnerável às secas periódicas,
procuraram criar outras estratégias de sobrevivência. Nessa busca, surgiu de forma
autônoma3 a fabricação de peças de roupas com baixa qualidade e baixo custo, para
serem comercializadas nas feiras locais.
A princípio a matéria prima, na forma de retalhos, vinha de Recife através de
comerciantes que saíam do interior de Pernambuco para “vender galinhas, queijo e
carvão vegetal, e no retorno traziam retalhos de tecidos transformando-os em
1
A pesquisa empírica, aqui referida, foi originalmente desenvolvida para a Dissertação de Mestrado
de SILVA, S. R. A. “A juventude na ‘Sulanca’: Os desafios da inserção no mundo do trabalho em
Taquaritinga do Norte”. Campina Grande, UFCG, PPGCS, 2010.
2
Palavra originada da união da palavra helanca (malha vinda do Sul do País) e sul (SUL + ANCA =
SULANCA). Há também uma significação depreciativa relacionada ao produto, algo como sucata. Tal
hipótese tem mais fundamento, sendo coerente com o início das confecções, constituídas
inicialmente por cobertores e roupas muito simples, feitas com pedaços de retalhos, com um
acabamento mal feito. Deste modo, a “Sulanca” simbolizou uma região extremamente pobre, que
buscava sobreviver com meios próprios.
3
Vale ressaltar que quando nos referimos ao surgimento da “Sulanca” de forma autônoma, é por não
ter sido possível detectar uma iniciativa empresarial, processos cooperativos e associativos, ou ainda
a presença do Estado influenciando o seu surgimento.
colcha, camisa e roupa infantil” (GOMES, 2002, p. 138). As costureiras locais
ajudavam na confecção e comercialização com a finalidade de aumentar a renda
familiar. Com a expansão rodoviária, os tecidos que abasteciam a produção da
“Sulanca” começaram a vir de São Paulo e do Rio de Janeiro, através de caminhões
que traziam ponta de estoque, retalhos e resíduos de confecções do Brás e do Bom
Retiro (GOMES, 2002). Assim, nas primeiras décadas, a produção e venda de
confecções se constituíram como uma estratégia de sobrevivência das famílias
situadas no Agreste de Pernambuco, originalmente agricultoras. O crescimento
econômico da região ganha destaque impulsionado pela fabricação de roupas e, nos
anos 1990, a região passa a ser conhecida como “Polo de Confecções do Agreste”.
A produção inicia-se dentro das próprias casas e são denominadas pelos
confeccionistas de “fabrico”4. Com o crescimento da produção, o “fabrico” passa
para o fundo do quintal ou para uma garagem improvisada, em geral sem muita
estrutura. O “fabrico” tem a forma, quase sempre, de microunidades familiares, onde
o proprietário ou proprietária gerencia e a família participa da organização do
trabalho.
Dentre os membros da família, encontram-se os jovens que, em sua maioria,
aprendem a trabalhar na produção das confecções com os pais ainda bem
pequenos. Aos poucos cresce, nesses, o desejo da autonomia financeira. Como no
“fabrico” a renda familiar é prioritariamente utilizada para as necessidades da família,
os jovens, para atender suas necessidades específicas, começam a trabalhar fora
de casa, geralmente em “fabricos” de parentes ou de vizinhos, partindo em seguida
para constituir sua própria unidade produtiva. O desejo que impera em grande parte
dos jovens do Polo é o de ser um empreendedor autônomo, destinando-se a montar
o seu próprio negócio, reproduzindo a mesma estratégia de produção que aprendeu
com seus pais.
A fim de melhor compreender as estratégias de sobrevivência desenvolvidas
nas famílias e suas implicações quanto à trajetória de trabalho dos jovens, tomamos
como unidade de análise a Família Gomes, a qual é composta pelo pai, seu Edson
4
Pequenas unidades produtivas, popularmente conhecidas na região como “fabricos”, onde acontece
a produção de confecções, geralmente feitas dentro das casas, nos fundos de quintais, e em
pequenas garagens.
(48 anos), a mãe, dona Jandilma (43 anos), e três filhos, Josuel (23 anos), Joelson
(21 anos) e Jardiel (19 anos)5.
A primeira incursão em campo aconteceu no início de 2009. Acompanhamos
a família durante uma semana, onde tivemos a oportunidade de observar o processo
de produção e de que forma os jovens participavam das atividades de trabalho na
família. Através de entrevistas, foi possível compreender a trajetória familiar, suas
estratégias de renda, além de identificar as dificuldades existentes no que se refere
à produção e comercialização das confecções. Josuel, o filho mais velho da família
Gomes, foi escolhido na ocasião para ser acompanhado em seu cotidiano semanal
de forma mais intensa.
Participamos durante uma semana de momentos do
cotidiano e do trabalho da família, além de poder conversar com os seus membros
sobre suas experiências.
As metodologias escolhidas para melhor compreender as relações de
trabalho estabelecidas entre os jovens e suas famílias foram a história oral e a
etnografia. A história oral é compreendida não como uma simples técnica para
coleta de dados e informações, mas como “um discurso construído no processo de
interação social entre pesquisador e informantes” (MENEZES; AIRES; SOUZA,
2004, p. 3). Assim, entendemos que as narrativas dos jovens são construídas na
interação social entre eles e a pesquisadora. Essa perspectiva metodológica
compreende que os jovens entrevistados não são apenas informantes, mas tornamse protagonistas, pois narram sobre sua vida, seu cotidiano, suas redes de relações
de família, amigos e parentes.
A etnografia, por sua vez, tem por objetivo obter uma descrição densa, ou
seja, compreender os significados que os agentes sociais atribuem a eventos, fatos
e ações, bem como a rede de relações em que esses são produzidos. Sendo assim,
pode-se alegar que etnografia é a escrita do visível. Para Geertz, a descrição
etnográfica é “Interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a
interpretação envolvida consiste em tentar salvar o ‘dito’ num tal discurso da sua
possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (1978, p.31).
Portanto, ao estudar o significado da vida diária, pretende-se aprofundar a
investigação sobre aquilo que é visto e experimentado, mas também sobre o que
5
Os nomes aqui apresentados são fictícios para preservar a identidade da família. Quanto à idade, se
refere a cada membro da família em 2009, época em que a pesquisa foi realizada.
não é explicitado, ou seja, pretende-se revelar o cotidiano, no qual as pessoas agem
e encontram o significado de suas ações (BRAGA, 1988).
Família Gomes: divisão familiar do trabalho
As unidades produtivas que formam o Polo de Confecções do Agreste
organizam-se na família, envolvendo todas as pessoas da casa: crianças, jovens,
adultos, e ainda parentes ou vizinhos próximos, compreendendo, assim, uma
atividade familiar. Essa forma de organização do trabalho foi, também, observada
em uma etnografia realizada por Carneiro (2006), no município de Nova Friburgo-RJ,
sobre uma pequena localidade rural que trabalha com confecções de lingerie. A
autora compreende a constituição de uma empresa familiar mediante a “utilização
quase exclusiva da mão de obra familiar seguindo uma lógica de relações
semelhante à da organização da unidade de produção familiar agrícola”. Nesse
caso, pode haver a contratação informal de alguns empregados, geralmente
parentes e vizinhos próximos, mantendo, por sua vez, “uma relação de profunda
confiança” (2006, p. 116).
A contratação informal de mão de obra na produção familiar no Polo de
Confecções do Agreste também envolve pessoas próximas, parentes ou vizinhos,
para auxiliar no processo de produção; e acaba ainda por envolver uma grande rede
de prestação de serviços, que serve como forma de suprir a falta de estrutura das
unidades produtivas. Essa rede de prestação de serviços, em grande parte, é
constituída por “facções”6, cuja realização do trabalho é domiciliar.
Observando as características dos processos de produção das empresas
do Polo de Confecções, é possível verificar que o grau de interação entre
elas é visto nas relações de subcontratação e faccionamento de algumas
fases do processo produtivo (DIAS, 2007, p. 89).
As “facções”, como grande parte das unidades produtivas da região, também
são constituídas de modo informal. São formadas, particularmente, de costureiras,
6
Unidades produtivas, com aproximadamente 8 a 10 máquinas industriais, que prestam serviço de
costura aos “fabricos” e fábricas, focando em uma parte da produção. Sendo que o pagamento é feito
ao dono da facção, que, por sua vez, repassa para os seus funcionários os valores correspondentes
à participação de cada um.
sendo essas geralmente donas de casa que não possuem vínculo empregatício com
os empreendimentos que contratam seus serviços. Estão subordinadas a condições
precárias de trabalho e sujeitas aos prazos, formas e valores de pagamento
determinados pela parte contratante. Também as “facções” reproduzem a mão de
obra familiar e a contratação informal de parentes e vizinhos.
A família Gomes representa uma das inúmeras unidades produtivas de base
familiar que formam o Polo de Confecções. Durante a pesquisa, desenvolvida em
2009, foi possível acompanhar um pouco da rotina semanal da família, que
começava com o ciclo de vendas nas “Feiras da Sulanca”. Enquanto o pai saía para
vender os shorts infantis, que é uma mercadoria produzida pela família; a mãe
permanecia em casa, onde trabalhava sozinha, se dividindo entre o trabalho com a
costura e os afazeres domésticos. A atividade de comercialização do produto era
feita em três dias da semana: domingo durante o dia todo e na segunda e terçafeira, somente pela manhã.
Além de vender as peças na feira, o pai tinha a função de comprar o tecido e
cortar as peças; a mãe costurava a primeira etapa (emendava as primeiras partes do
short feitas com tiras de tecido), e em seguida a mercadoria era levada para ser
concluída em uma “facção” (etapa em que o short é fechado e colocado o elástico).
A “facção” que prestava serviço para a família Gomes estava localizada na zona
rural do município. O processo de produção envolvia ainda outras pessoas e outros
ambientes: a lavanderia, com a função de lavar o tecido e amaciá-lo; a estamparia,
que tem a responsabilidade de colorir as peças; e por último, pessoas que prestam
serviço caseando e colocando botões nos shorts.
Quando as peças retornavam para casa passavam pelo acabamento, que é
o processo pelo qual se retira as pontas de linha, e por fim eram arrumadas para
serem vendidas na próxima feira. A colaboração entre os membros da família era
sempre presente, além de Joelson, que se dedicava ao estudo da música, os outros
dois filhos Josuel e Jardiel, que trabalhavam fora de casa nas horas vagas, quando
necessário ajudavam na produção familiar. Joelson (filho do meio) era o único que
não trabalhava diretamente com a produção de confecções, por dedicar a maior
parte de seu tempo ao estudo da música (Trompa de Harmonia), embora, para
poder custear seus estudos, tenha prestado serviço em alguns “fabricos” de vizinhos
e ainda “feito” algumas feiras, além de ajudar a mãe no que era preciso dentro de
casa. Através da produção de confecções, os pais de Joelson o ajudavam no que
podiam, para que pudesse realizar o seu sonho de “viver de música”. Josuel e
Jardiel, os outros dois filhos, na segunda-feira às sete horas da manhã, se
organizavam para sair para o trabalho. Josuel (filho mais velho) trabalhava em uma
microempresa familiar e informal, e Jardiel (filho mais novo) trabalhava e ainda
trabalha7 em uma empresa de médio porte formalizada.
A inserção dos jovens na produção de confecções
Os pais de família do Polo de Confecções, em sua grande maioria
analfabetos, valorizam a escolarização dos filhos para que tenham a oportunidade
de aprender a ler e escrever; no entanto, na prática cotidiana, o trabalho assume um
significado de maior relevância do que a escola. O valor do trabalho extrapola sua
dimensão de atividade material e fonte de renda, sendo constituinte do processo de
socialização de crianças e jovens. Isso envolve tanto a aprendizagem de atividades
produtivas quanto a formação de valores. Para os pais, o trabalho de crianças e
jovens permite ocupar o tempo e, assim, evitar que se envolvam com “coisas
erradas”. Essa não é uma característica apenas das famílias do Polo de
Confecções, mas também das famílias da agricultura familiar. Deste modo,
observamos que a centralidade do trabalho, para as famílias, se coloca como “eixo
organizativo da vida social de crianças, jovens, adultos e idosos”, representando a
cooperação, mas também a aprendizagem associada à “transmissão do trabalho
como valor que constitui homens e mulheres honradas”, a exemplo das
comunidades camponesas (MENEZES, 2002, p. 11 e 12).
Para os jovens, o trabalho está entre os assuntos de maior interesse, ou
seja, está na ordem do dia (GUIMARÃES, 2005). A pesquisa “Perfil da Juventude
Brasileira”8, realizada em 2003, sobre a condição do jovem na contemporaneidade,
observou que o trabalho, na vida dos jovens, configurava-se em múltiplos
significados, os quais estão associados à necessidade, independência, crescimento,
autorrealização e, ainda, exploração. Destaca ainda que a relevância do trabalho
7
Jardiel até o dia 16 de agosto de 2012, data da nossa ultima visita à família, ainda permanecia
trabalhando na mesma empresa em que trabalhava em 2009.
8
Estudo intitulado “Juventude: cultura e cidadania”, tendo sido patrocinado pelo Instituto de Cidadania
e pela Fundação Perseu Abramo, executado pela Criterium Assessoria de Pesquisa, em 2003.
entre os jovens está fundamentada em dois aspectos: o primeiro se refere aos
aspectos objetivos, como a inserção ocupacional e a renda; e o segundo diz respeito
à dimensão subjetiva, ou seja, é um símbolo positivo da identidade dos jovens e de
seu reconhecimento como sujeitos autônomos em relação à família. O trabalho, para
os
segmentos
juvenis,
é
considerado
“como
espaço
privilegiado
para
desenvolvimento de habilidades e autoconhecimento, construção da autonomia em
relação à família, acesso a outras formas de sociabilidade, realização pessoal e
vivência da própria condição juvenil” (BRANCO, 2005, p.141).
Desse modo, o trabalho dos jovens é importante como meio de ajudar na
sobrevivência da família, mas, também, atende o seu próprio consumo: “seja para a
aquisição de vestimentas e calçados, seja para atividades culturais e de lazer, seja,
inclusive para possibilitar seus estudos” (MADEIRA, 1986, apud CORROCHANO,
2008, p.45). Entretanto, para além da associação entre trabalho e renda,
entendemos que na compreensão dos pais e também dos jovens o trabalho também
se destaca como um valor na constituição da identidade juvenil.
Josuel, o primeiro filho da família Gomes, começou a trabalhar na produção
de confecções desde os nove anos de idade. Ajudava seu pai a vender as peças
fabricadas na feira de Santa Cruz do Capibaribe-PE. Aos 11 anos passou a trabalhar
concomitantemente com outras atividades. Ele e seus irmãos faziam de tudo para
ajudar na melhora da renda familiar: vendiam picolé em casa ou em um carrinho na
rua; além de ficar cuidando dos carros na frente de uma churrascaria, que havia na
época, colocando papelão no vidro dos carros para não esquentar.
Assim como Josuel, praticamente todos os jovens do Polo de Confecções
iniciam no trabalho ainda na infância. Fato este também identificado na pesquisa
realizada sobre o Perfil da Juventude Brasileira, segunda a qual, considerável
parcela dos jovens brasileiros ingressam no trabalho ainda na infância, entre os 05 e
14 anos de idade (GUIMARÃES, 2005, p.167).
Trabalhar em casa ajudando a família na produção das confecções é assim
a iniciação do aprendizado profissional e da sua trajetória como trabalhadores, pois
é no espaço da família que os jovens aprendem todo processo da confecção. Nesse
processo, o desejo da autonomia financeira começa a surgir mediante as
necessidades e desejos de consumo pessoal. A gestão da renda gerada no trabalho
familiar fica nas mãos do pai e da mãe, os quais só concedem aos filhos pequenas
quantias para gastos específicos. Assim, os jovens, logo cedo, buscam o trabalho
assalariado fora de casa, de modo a conquistarem uma renda própria e atender
suas necessidades de consumo.
O primeiro trabalho de Josuel com confecções fora de casa foi aos 14 anos
de idade, em um pequeno “fabrico” de propriedade de uma vizinha, a qual fabricava
blusas femininas. Começou aparando as pontas de linha das peças e arrumado-as
depois de prontas. Atividade esta que, praticamente, inicia a maioria dos
adolescentes nos trabalhos com as confecções. Durante o período que passou
trabalhando com essa vizinha, fazia de tudo um pouco. Nos dias de feira ia para
Caruaru e recebia um valor estabelecido por cada semana. Nos outros dias,
trabalhava cortando, fazendo acabamento, levando e trazendo as peças de um lugar
para o outro (entre facções, estamparia, bordado, caseador).
Mesmo tendo alcançado seu primeiro objetivo, que era trabalhar fora de
casa para poder ter seu próprio dinheiro, o desejo do trabalho autônomo e de ser
dono de sua própria confecção sempre esteve presente na vida de trabalho de
Josuel. Depois de cinco anos de trabalho, ao sair do “fabrico” da vizinha, começa a
confeccionar “umas poucas peças” junto ao “fabrico” de sua família, e começa a
trabalhar “fazendo” as feiras da região como um vendedor autônomo. Além do que
fabricava, por ser uma quantidade ainda pequena, pegava peças com a antiga
patroa, com o pai e com outras pessoas, ganhando uma percentagem na venda, ou
seja, as peças eram entregues por um preço menor para que ele acrescentasse uma
margem de lucro e conseguisse ter um bom número de vendas nas feiras. Vale
ressaltar que a distribuição de mercadoria para os vendedores que fazem as “feiras
da sulanca” é uma prática muito comum entre os confeccionistas da região.
Josuel permaneceu “fazendo” a feira de Caruaru por cerca de dois anos,
mas, devido às vendas que “ficaram fracas”9, deixou de ir, e voltou a trabalhar com
os pais na produção familiar de confecções, tendo que adiar o sonho de trabalhar
para si próprio. Como a produção familiar era suficiente somente para a
9
Termo utilizado pelos fabricantes e vendedores, que se refere aos períodos em que há poucas
vendas nas feiras.
sobrevivência da família, Josuel voltou a procurar trabalho em um “fabrico” ou em
algum prestador de serviço10.
Ao mesmo tempo em que trabalhava com os pais, começou a trabalhar em
uma estamparia11, em Santa Cruz do Capibaribe, mas não era um trabalho
permanente e só tinha serviço quando era época de “feira boa”. Foi em busca de
trabalho na empresa em que seu irmão mais novo trabalhava, mas, como não
obteve nenhuma resposta, aceitou o convite para trabalhar no “fabrico” Júlio
Confecções12, que era informal e se dedica à confecção de camisas masculinas de
manga longa, geralmente utilizadas por trabalhadores rurais. Começou trabalhando
na estamparia, por já ter experiência nesse tipo de trabalho. Mas considerava essa
atividade dura e pesada, e queria mudar. Acreditava que se aprendesse a cortar,
seu trabalho ficaria bem mais leve. Aprendeu a fazer bancadas de corte. No entanto,
atuava também em outras atividades, como: arrumar as peças para a estamparia,
pegar peças nas diversas “facções” que prestavam serviço para o “fabrico”, dentre
outras; acabou por ser considerado um funcionário coringa pelo fato de saber fazer
de tudo um pouco.
Dentre suas principais reclamações quanto ao trabalho no fabrico destacava
o baixo valor do salário. Na época em que a pesquisa foi realizada, recebia R$
130,00 (cento e trinta reais) por semana, chegando ao final do mês a R$ 520,00
(quinhentos e vinte reais)13, salário este que era pago quinzenalmente. Josuel tinha
consciência de sua importância dentro da empresa e considerava que, pelo serviço
prestado, poderia receber um salário bem melhor. O baixo valor do salário o
motivava a montar seu próprio negócio, desta forma mais uma vez Josuel retoma
seu desejo de trabalho autônomo. Paralelamente ao trabalho no “fabrico” Júlio
10
Enquanto “fabrico” é um pequeno espaço familiar onde se fabrica e geralmente se finaliza a
mercadoria que seguirá para a venda, “prestador de serviço” realiza uma tarefa específica sob
demanda dos donos dos “fabricos”, como, por exemplo: design, estampa, caseado, bordado.
11
As estamparias geralmente funcionam em garagens, com pouca ventilação, onde os trabalhadores
ficam expostos ao calor extremo e a misturas químicas, como tinta e cola. Quanto ao equipamento de
trabalho, é possível encontrar mesas de estampar mecanizadas, no entanto em sua grande maioria
são mesas manuais, feitas em metalon (nome dado às peças de ferro em metal), que permitem
montar quadros resistentes capazes de suportar o peso das telas de estampar (quadro de madeira e
tela de nylon). As placas de estampar são aquecidas com GLP (gás liquefeito de petróleo), conhecido
popularmente como gás de cozinha.
12
Este nome também é fictício, para preservar a identidade do “fabrico”.
13
Vale ressaltar que o salário mínimo, em 2009, era de R$ 465,00 (quatrocentos e sessenta e cinco
reais). Desse modo, Josuel ganhava em torno de 12% a mais que o valor base, ou seja, apenas R$
55,00 (cinquenta e cinco reais) a mais.
Confecções, começou a confeccionar shorts infantis, com tecidos comprados do
próprio patrão; tecidos esses que, quando não serviam para a fabricação das
camisas, eram vendidos para outros. Josuel ainda acreditava que poderia ter uma
renda melhor, poderia contribuir financeiramente com sua família, além de que
poderia realizar o desejo de comprar um terreno e construir uma casa.
Pesquisadora: Quais são os seus sonhos e seus projetos para o futuro.
Josuel: No momento eu estava pensando em fabricar para mim.
Pesquisadora: E sair da empresa que você está trabalhando?
Josuel: Sim, eu estava pensando. Eu já não saí, porque eu devo um pano
que eu comprei lá. Eu estou pensando em pagar a ele, para começar a
fabricar para mim.
Pesquisadora: Você acha que ganharia mais?
Josuel: Eu acho que ganharia mais. Eu acho que se a pessoa conseguisse
uma mercadoria boa e que venda bem, a pessoa pode ganhar bem [...] Só
que essa mercadoria que eu estou fabricando agora, eu não estou tendo o
lucro dela ainda, porque eu comprei o pano fiado e estou fazendo ela toda,
vendendo e pagando o bordado. O pouco que eu vendi deu para pagar o
bordado das que foram feitas [...] Quando eu conseguir pagar o pano, o
resto que sobrar vai ser o lucro desse pano.
Pesquisadora: Aí você pretende só fabricar para você?
Josuel: É eu pretendo fabricar. E se eu conseguir fabricar e me
estabelecer, eu estou pensando em comprar uma casa e um terreno para
mim. É o próximo investimento que eu vou fazer para mim (Josuel, 23 anos,
2009).
A perspectiva de futuro de Josuel, assim como da maioria dos jovens de Pão
de Açúcar, está baseada em ser dono de sua própria confecção. O trabalho
autônomo não é nem o início nem a finalização de sua trajetória de trabalho, mas é
uma construção gradativa, que vai se constituindo através da combinação com o
trabalho assalariado.
Para além do desejo: a conquista do trabalho autônomo
Passados três anos, em 16 de agosto de 2012, fizemos uma nova entrevista
com Josuel, quando percebemos que o desejo do trabalho autônomo manifestado
na entrevista realizada em 2009 começou a concretizar-se. O jovem continuou no
“fabrico” em que trabalhava até o final de 2009. Ao sair conseguiu fazer um acordo
com o ex-patrão para receber além do décimo terceiro, certa quantia referente ao
tempo de trabalho.
Quanto à relação entre o patrão, o funcionário e o processo de demissão,
vale aqui uma observação: as unidades produtivas informais, a exemplo da Júlio
Confecções, que não empregam formalmente, geralmente, em caso de demissão,
fazem um “acordo” também informal com seus funcionários pelo tempo de trabalho,
e tentam ao máximo a cordialidade para que não venham a ter problemas futuros
com a Justiça do Trabalho. O valor recebido pelo funcionário, em acordo, na maioria
dos casos, é utilizado para esse começar a montar um pequeno negócio próprio,
passando a atuar como mais um prestador de serviços ou como um novo “fabrico”.
Josuel decidiu comprar um banco na “feira da sulanca” na cidade de Toritama, para
que pudesse vender sua mercadoria.
Passar a ser dono de um banco na feira torna-se uma conquista muito
importante para muitos confeccionistas, pois são nesses espaços que as famílias
vendem suas produções, sem ter que pagar aluguel, como é a prática de muitos que
não possuem renda suficiente para adquirir um “ponto na feira”.
[...] O banco é tudo (banco de feira). Para o comércio, a pessoa sem um
ponto é muito ruim fabricar. Com um ponto, não, a pessoa pode fazer a
mercadoria, que tem onde vender. Já tem uma freguesia. Quando a pessoa
chega no ponto, coloca a mercadoria lá, o povo já chega. Os compradores
já passam na carreira e dizem: “Separa cem peças para mim!”. E eu já vou
amarrando por ali. Quando ele chega na ponta da feira e volta, já pega a
mercadoria, paga e vai embora. Já tem fregueses que eu conheci lá no
ponto e que hoje ligam para mim: “Josuel, eu quero trezentas peças. Tem
como você me entregar assim... tem como deixar no ônibus e me dar o
número de uma conta de banco?”. Já teve caso de um freguês me ligar na
sexta, para eu entregar a mercadoria na segunda. Ele me pede o número
da conta e deposita o dinheiro de lá da Bahia, na segunda-feira eu só faço ir
ao ônibus e entregar a mercadoria [...] (Josuel, 27 anos, 2012).
O crescimento de uma pequena unidade produtiva familiar depende das
estratégias de vendas que cada confeccionista consegue empreender junto aos
seus pontos de venda nas “feiras da sulanca”. Seja vendendo diretamente ao
comprador que vai ao banco de feira escolher a mercadoria, ou através de uma
relação de confiança estabelecida entre comprador e vendedor. Em muitos casos o
comprador faz a encomenda de uma quantidade de peças fechada. Desse modo o
confeccionista pode optar por não ir a feira vender, e só fazer a entrega da
mercadoria confeccionada para o “freguês”. Atualmente, seu Edson (pai de Josuel),
que trabalhava “fazendo” feira num banco alugado de um compadre, passou a
produzir sua mercadoria sob encomenda, entregando toda a produção para dois
compradores. Para Josuel, o “ponto da feira” é muito importante porque consegue
vender sua produção e fazer contatos para novas encomendas.
O que é interessante na história de produção da família Gomes é que tanto
os pais quanto Josuel produzem paralelamente o mesmo tipo de mercadoria (shorts
infantis), num sistema de cooperação e ajuda mútua. Tal forma de produção não
representa uma sociedade, pois cada um tem uma produção independente, com
vendas e lucros também independentes.
A contribuição da família no início do “fabrico” para o jovem é de
fundamental importância, ou seja, a princípio se utiliza a mesma rede de prestação
de serviços. Em casa, o suporte de máquinas vem da família. Fora de casa, são os
mesmos prestadores de serviços, variando apenas em relação às costureiras, visto
que geralmente cada um tem suas próprias contratadas. Uma característica
interessante do processo de produção familiar é que os filhos, quando começam a
se organizar financeiramente com suas produções, procuram adquirir máquinas
diferenciadas das que a família já possui, para que as atividades se complementem.
Eu adquiri uma máquina grande de cortar tecido, porque a gente só tinha
uma pequena. E aí tanto serve para mim como para ele (o pai). A gente
sempre entra em acordo. Ele (o pai) disse que ia comprar uma máquina
para tirar ponta de linha, porque ficaria bom, a gente tirar das minhas peças
e das dele. Porque é assim que funciona, uma semana chega a mercadoria
pronta dele e a outra semana chega a minha, e quando as peças dele estão
em casa eu o ajudo, até porque, como é pronta entrega, é preciso aprontar
logo para entregar a mercadoria para o freguês. Ultimamente meu pai
comprou uma máquina de pregar botão, comprou a máquina com o
compressor, ela funciona com ar, aperta e prensa o botão, porque antes era
na mão. Imagina em dois mil shorts você colocar dois botões, são quatro mil
botões, era muita coisa. Com essa máquina adiantou muito a produção e
melhorou muito a qualidade da mercadoria (Josuel, 27 anos, 2012).
Mesmo recebendo ajuda por parte dos pais e também os ajudando quando
necessário, a primeira etapa das duas mil (2.000) peças produzidas mensalmente
por Josuel é feita por ele mesmo. Aprendeu a costurar desde pequeno, olhando seu
pai que consertava as máquinas, mas não “tinha prática”14, somente agora para a
produção de suas peças começou a costurar com maior frequência. As pessoas que
fazem o restante do processo de produção se encarregam de terminar a costura,
colocar o elástico, lavar e fazer a tintura das peças.
Segundo Josuel, a diferença entre trabalhar como funcionário em uma
empresa e montar o seu próprio “fabrico” está na possibilidade de ser livre para
poder fazer outras atividades, descansar quando quiser e trabalhar o quanto for
necessário, sem ter que cumprir horário.
Se eu tivesse numa empresa ainda eu não teria como fazer tanta coisa,
porque a pessoa fica ali muito presa. O que eu acho ruim é cumprir horário.
As vezes eu me acordava sete horas em ponto, já cansado, porque eu fazia
serão (hora extra). Eu trabalhava de sete horas às onze e meia, de uma
hora às cinco, e muitas vezes eu nem vinha em casa, ficava lá mesmo,
lanchava e segurava até às dez horas da noite. Aí vinha para casa e
jantava, porque lá nós só fazíamos um lanche. Algumas vezes jantava lá
mesmo, quando chegava, que fazia um lanche, tomava um banho e ia
dormir, já era onze, onze e meia da noite. Quando era sete horas do outro
dia, eu me acordava, mas só que tinha que estar lá de sete horas da
manhã. Aí só fazia escovar os dentes e corria para o trabalho, quando
chegava lá já era super atrasado. Quinze, vinte minutos de atraso. O patrão
não descontava do salário porque ele via que eu chegava atrasado, mas
não tinha hora para sair, aí ele não pegava no pé, por conta disso. Muitas
vezes eu estava cortando uma bancada, faltava um pouco e eu dizia, já que
falta pouco eu vou logo terminar. Às vezes todo mundo ia embora e eu
ficava lá sozinho terminando. Depois guardava a máquina e no outro dia já
estava tudo pronto, em vez de ligar a máquina para cortar, ia separar o que
já estava cortado. Aí eu acho que ele via, eu chegava atrasado, mas não
tinha essa besteira de sair vinte ou trinta minutos atrasado (Josuel, 27 anos,
2012).
Ao observar a família Gomes, uma coisa nos chamou a atenção: a relação
de trabalho entre pais e filhos é bem cooperativa e há constante ajuda,
principalmente para que o jovem consiga firmar sua produção, obtenha sucesso e
14
Para os confeccionistas da região, não “ter prática” é não ter habilidade e rapidez para produzir em
grande quantidade.
consiga seguir sozinho. Já no caso das famílias onde os filhos permanecem
trabalhando com os pais, dentro do mesmo “fabrico”, observa-se uma relação de
trabalho bastante conflituosa, principalmente quando os jovens começam a se
especializar, fazendo cursos que podem trazer inovações para a produção. Há forte
resistência por parte dos pais, que se apoiam na experiência passada do trabalho,
apresentando dificuldades em assimilar mudanças introduzidas por seus filhos.
Outro aspecto relevante, quanto a isso, é que, para os jovens que estão trabalhando
com os pais dentro dos “fabricos”, a maior parte da renda familiar fica com os pais.
Enquanto ainda são adolescentes, esses recebem um valor que poderia se
equiparar a uma mesada; conforme vão crescendo, o valor também vai aumentando;
no entanto, não chega a ser um salário, como para os demais parentes ou vizinhos
que trabalham para a família. Dessa forma, o valor recebido referente ao trabalho
desenvolvido lhe parece insuficiente frente ao que almeja em sua condição juvenil.
Diante do exposto somente quando saem para trabalhar fora de casa, ou
conseguem montar seu próprio “fabrico”, acabam por adquirir maior independência
financeira, com parte da renda recebida destinando-se a atender suas necessidades
pessoais e a outra parte, para ajudar a família diante de alguma necessidade.
Mesmo em tais condições, são os pais que permanecem responsáveis pelas
necessidades básicas do grupo familiar, como alimentação, água e luz. Atualmente
os jovens da família Gomes conquistaram a autonomia financeira e conseguiram
adquirir bens para si próprios. No entanto, continuam contribuindo para a renda
familiar, principalmente no que se refere aos gastos com as questões de melhoria da
estrutura física da casa.
Uma mesma família com trajetórias diferenciadas
É possível identificar casos em que alguns jovens trabalham com a produção
de confecções como uma atividade transitória ou temporária, servindo apenas de
ponte para que alcance sua autonomia financeira através de outra ocupação.
Podemos aqui citar o exemplo de Joelson (filho do meio da família Gomes), o qual
fez alguns trabalhos esporádicos no “fabrico” do pai e de alguns vizinhos para
conseguir custear seu curso de bacharelado em música. Com a ajuda da família,
conseguiu passar em um concurso público como músico do Corpo de Fuzileiros
Navais. No caso de Jardiel (o filho caçula), seu desejo era conseguir subir de cargo
na empresa que trabalhava e consequentemente melhorar seu salário. Segundo ele,
isso não dependia do grau de escolaridade, mas da produtividade, desenvoltura e
habilidade dentro da empresa. Atualmente continua trabalhando na mesma
empresa, mas agora atua como gerente de produção de arte, cuja finalidade é
auxiliar e fiscalizar desde a arte criada para estampar as camisas até a finalização
do processo.
Josuel se destaca na família por estar envolvido com várias atividades de
trabalho. Por ser um multi-instrumentista autodidata, a música sempre foi sinônimo
de lazer. Trabalhava com confecções e nas horas vagas se divertia tocando com os
amigos. Por diversas vezes realizou atividades remuneradas, mas como não era
uma quantia significativa, não considerava a música como uma profissão.
Atualmente toca numa banda de forró e, como na época do São João aparecem
muitas demandas, conseguiu um bom retorno financeiro, podendo assim pagar o
investimento que tinha feito em um instrumento musical (um contrabaixo).
Há um ano e meio foi convidado para ministrar aulas de percussão no
Projovem Adolescente do município de Taquaritinga do Norte-PE. Relata que na
época em que o convite foi feito sua produção ainda estava pequena e resolveu
aceitar por ser uma renda a mais, mas também pela possibilidade de trabalhar com
algo que gosta muito – a música.
Um dos argumentos apresentados por Josuel para justificar sua saída do
antigo trabalho foi o fato de ter que cumprir horário. No trabalho com o Projovem, ele
também tem horário a cumprir, mas ressalta que a rotina semanal é diferenciada,
consegue interagir mais livremente com os outros jovens e executa o seu trabalho
tranquilamente. Além de que pode concentrar o seu trabalho com o Projovem em
três dias da semana (quarta, sexta e sábado), e, ainda, trabalhar na confecção nos
outros dias, inclusive no domingo, quando precisa terminar as peças para poder
levar para a feira na segunda e terça-feira.
No Projovem eu tenho que cumprir horário também, mas não é uma rotina
igual a da empresa que você trabalha numa coisa só. Eu trabalhei três anos
numa coisa só. No fim eu já não aguentava mais. Agora com o Projovem eu
já sei que na quarta-feira eu pego lá no Silva de Baixo de três horas às
quatro e meia. Mas eu saio de casa de duas horas, chego lá de duas e meia
e fico por ali brincando com os meninos, a gente lancha e depois eu começo
a oficina. Termino e volto para casa sem aperreio. É uma coisa que tem
horário, mas dá para fazer o horário da pessoa tranquilo. Por exemplo,
Mateus Vieira é no primeiro horário, então dez e meia eu estou saindo de
casa. No sábado também é muito tranquilo, é de dez horas da manhã,
mesmo que eu vá para alguma festa na sexta-feira e chegue tarde, dá para
pessoa dormir e acordar às nove e meia, tomar um banho e chegar a tempo
(Josuel, 27 anos, 2012).
Além da jornada de trabalho com as confecções, com o Projovem, e com a
banda de forró, ainda tira um tempo para a prática do voo livre. Para ele a prática do
esporte é muito mais uma “curtição” e uma opção de lazer, do que um investimento
profissional. Embora tenha ficado em primeiro lugar em uma das etapas do
campeonato pernambucano, a remuneração financeira é apenas uma ajuda de
custo.
A possibilidade de conciliar todas essas atividades, segundo Josuel, só
existe por ter saído da empresa em que trabalhava como funcionário e ter
conseguido montar o seu “fabrico”, onde pode trabalhar por conta própria, fazendo o
seu horário, trabalhando até a hora que for necessário, ou ainda não trabalhando
quando não quiser. Sua maior preocupação está em ter que sair para vender a
mercadoria na feira e combinar com o pai o processo de produção.
O horário que eu tenho certo mesmo é na segunda-feira, que acordo às
quatro horas da manhã, porque eu vou para a feira de Toritama. De quatro
e meia eu já estou chegando lá na feira, mas também de onze horas da
manhã eu já estou em casa. Não cansa, porque, por exemplo, a feira de
Caruaru, a pessoa perde uma noite na feira. Lá não, dá para sair tranquilo
de casa, vai para a feira, e ainda trabalha a tarde toda. Se eu tiver ido para
algum evento de voo livre no domingo, ou quando toco no sábado, aí eu
estou muito cansado, na segunda-feira eu durmo mais um pouco. É aquela
coisa eu faço o meu horário, eu trabalho até dez horas da noite, no outro dia
eu durmo até nove horas da manhã, acordo, e trabalho até de noite. Tem
dia que precisa acordar cedo, então eu acordo de sete horas e começo
trabalhar mais cedo. Como eu trabalho com pai, tem os dias que ele está
cortando e a mesa está ocupada, aí eu tenho que combinar com ele, eu
acordo cedo para cortar meus shorts porque de tarde ele vai cortar os dele
(Josuel, 27 anos, 2012).
A realização do desejo de ser dono do seu próprio “fabrico” e poder fazer o
seu próprio horário de trabalho representa, para Josuel, uma conquista.
Principalmente pelo fato de poder conciliar o trabalho com outras atividades que,
para ele, tem grande significado, como a música e o voo livre. No que se refere aos
vários projetos de futuro, o que se destaca é o desejo de continuar com a confecção
de shorts, melhorar a produção, criar uma marca e formalizar a confecção, para que
possa emitir nota fiscal e aumentar o volume das vendas.
Os três jovens da família Gomes aprenderam a trabalhar dentro de casa
junto com os pais, no entanto suas trajetórias se diferenciam apenas na forma como
cada um procurou conquistar sua autonomia financeira, seja com o trabalho em uma
empresa de confecção como assalariado, seja como músico da marinha ou como
dono do próprio fabrico, desejo este que faz parte da vida de muitos jovens da
região.
Considerações finais
Alguns pontos merecem destaque no desenrolar deste artigo. Por exemplo,
a questão da inserção do jovem no mercado de trabalho, no território do Polo de
Confecções do Agreste de Pernambuco, se dá a partir da família, onde aprendem o
processo de produção e os segredos da comercialização. Quanto à autonomia
financeira dos jovens, à primeira vista se dá mediante o trabalho conquistado fora do
espaço familiar, em uma empresa formal ou informal, sendo estas “facções”,
“fabricos” ou prestadores de serviços.
Percebemos ainda que, entre o desejo e a conquista do trabalho autônomo,
há constantes oscilações, ou seja, um longo processo de idas e vindas, altos e
baixos, que dificultam a concretização do sonho, pois tanto o jovem quanto o adulto,
para conseguir estruturar sua própria produção, enfrentam muitas variáveis que
fazem parte do processo (maquinário adequado, bons prestadores de serviços,
feiras boas, uma boa mercadoria, fidelização do cliente, etc). Desse modo
destacamos a importância da estrutura familiar e das redes de prestação de serviço
construídas pela família, gerando a possibilidade de manter economicamente a
produção recém-iniciada.
Por fim, outra questão que se coloca é o desejo e a conquista do trabalho
autônomo. No caso de Josuel, o apoio da família, suas habilidades e seu espírito
empreendedor facilitou ter o seu próprio “fabrico”. Mediante tal conquista é possível
observar o presente sentimento de liberdade, e a possibilidade de ter controle sobre
o tempo livre e o tempo de trabalho, podendo ainda intercalar seu trabalho com as
confecções e outras atividades. No entanto, em uma mesma família, como aqui
exemplificamos, alguns conseguem conquistar o sonho do trabalho autônomo,
outros permanecem como empregados nos “fabricos” ou nas empresas, nas
“facções” ou prestadores de serviços locais, ou ainda saem em busca de outras
possibilidades de trabalho.
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ID 385
ENTRE A BENEMERÊNCIA E O INVESTIMENTO EM SI: A CITÉ PAR PROJETS E
O TRABALHO VOLUNTÁRIO NA AIESEC EM PORTO ALEGRE
Fernando Marcial Ricci Araujo (PPGS/UFRGS)
RESUMO
Este artigo propõe o estudo dos significados do trabalho voluntário na maior ONG
estudantil do mundo, a AIESEC, através da perspectiva da sociologia pragmática de
Luc Boltanski. Para tanto, tomou como universo empírico a sua sede em Porto
Alegre e visou compreender: 1) a maneira pela qual a AIESEC, dada a sua histórica
aproximação com os espaços empresariais, reflete as transformações recentes do
mundo do trabalho características da Era da Informação (CASTELLS, 2008) e da
revolução neoliberal (HONNETH & HARTMANN), e; 2) de que forma a nova
configuração ideológica do capitalismo por projetos, a chamada cité par projets
(BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999) influencia no trabalho e na vida dos membros da
sede da Organização em Porto Alegre. Neste intuito foram realizadas 11 entrevistas
que foram transcritas na sua integralidade e submetidas a uma análise aprofundada
na qual se tentou reconstituir a lógica intrínseca dos argumentos dos atores (SPINK,
1999). A principal contribuição da pesquisa é a de explicitar a maneira pela qual os
membros da AIESEC aderem a justificação por projetos e tecem a partir dela uma
gramática geral segundo a qual orientam suas vidas.
Palavras chave: trabalho voluntário - transformações do capitalismo – Cité par
projets – empreendedorismo de si – sociologia pragmática
1. INTRODUÇÃO
Este estudo, que tem por objeto empírico o trabalho voluntário realizado por
jovens na maior ONG estudantil do mundo, a AIESEC15, insere-se no quadro maior
de estudos da sociologia do trabalho sobre as novas configurações do trabalho
emergentes a partir das transformações, ainda em curso, do capitalismo nos últimos
40 anos. Os novos arranjos do trabalho, bem como as novas representações ideais
do trabalho e do trabalhador são tributária das inúmeras mudanças, tanto no plano
da gestão de pessoal, quanto no da base normativa do capitalismo. Essas
mudanças tiveram lugar a partir da última grande crise do petróleo, nos anos 1970,
bem como do vertiginoso progresso tecnológico da era da Informação (CASTELLS,
2008). Essas transformações também são características do momento da revolução
neoliberal, no qual alguns avanços do período socialdemocrata parecem ter sido
15
A sigla AIESEC significa, originalmente, « Association Internationale des Étudiants en Sciences Économiques
et Commerciale ». Esse nome remonta a história de sua fundação, em 1948, por três estudantes de três países
europeus (Suécia, Tchecoslováquia e Bélgica) dos cursos de Economia e Comércio Exterior. A AIESEC foi
fundada no contexto do pós-guerra tendo por objetivo principal a expansão do entendimento entre os povos,
alargando para tanto, o entendimento entre as pessoas. Por essa razão, a gestão de intercâmbios estudantis é
um dos pilares basilares da instituição e continua ocupando espaço central nos seus objetivos.
cooptados pelo capitalismo por projeto e convertidos em fatores de degradação das
condições de trabalho (HARTMANN & HONNETH, 2006: 289). Nesse contexto, os
indivíduos se tornam “empreendedores de si mesmo” utilizando seus recursos
subjetivos no intuito de tecer sua empregabilidade migrando de projeto em projeto e
assumindo o risco como norma de um “bom viver” (MOSSI & ROSENFIELD, 2011:
250).
Fortemente inspiradas pelos avanços tecnológicos da região do Vale do
Silício, as novas formas de organização do trabalho na sociedade em rede
primaram, por um lado, pela flexibilização do processo produtivo, descentralização
da empresas que passam a operar, cada vez mais em “equipes” – desintegrando a
grande e vertical empresa burocrática característica do modelo taylorista -, e, por
outro lado, por uma crescente internacionalização das carreiras dos altos quadros e
pela individualização das relações de trabalho (CASTELLS, 2008).
Nesse mesmo contexto de reorganização da produção capitalista e do
surgimento de novos arranjos de organização do trabalho, assiste-se também a
diversas transformações no que concerne as bases normativas do capitalismo. Notase o surgimento de uma nova configuração ideológica que reconstrói a gramática
das fontes de segurança e justificação que sustentam o engajamento dos indivíduos
no processo produtivo (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999). Partindo de uma
definição mínima de capitalismo que prioriza a “exigência de acumulação ilimitada
do capital por meios formalmente pacíficos”, Boltanski e Chiappelo (1999:35), a
partir da análise de conteúdo prescritivo dos manuais de gestão dos anos 1960 e
199016, apontam para a emergência de uma nova ordem de justificação, a chamada
“cité par projets”. Essa nova configuração ideológica possui na figura heroica do
manager sua representação arquetípica e é tributária dos ajustes que o capitalismo
se viu impelido a realizar ante às exigências da crítica social e artística da última
grande crise do capitalismo do fim dos anos sessenta.
Dada a aproximação histórica da AIESEC com os espaços da gestão e o
mundo empresarial, que será explicada brevemente na sessão seguinte deste artigo,
16
O objetivo dos autores na adoção dos manuais de gestão como objeto empírico é analisar, de
forma rigorosa, as transformações das transformações econômicas, sociais e ideológicas vivenciadas
pela sociedade francesa a partir dos anos 1960. Assim, os manuais de gestão constituem-se em
fontes privilegiadas dado o seu papel de verdadeiros “guias de ação” aos gerentes e, assim, ligarem
de forma indissolúvel, interesse econômico e orientação moral. Esses guias, como argumenta
Frétigné (2001), são imprescindíveis na garantia da mobilização e da adesão dos atores ao processo
de produção.
a análise proposta por este artigo toma o trabalho voluntário como objeto empírico
na tentativa de identificar a maneira pela qual essa nova configuração ideológica do
chamado “capitalismo por projetos”, tende a transbordar seus valores para além da
esfera produtiva.
O argumento que sustentamos é o de que os valores da cité par projets que
gratifica o indivíduo conexionista, homem camaleão, de ação, que tem em si mesmo
a segurança de sua empregabilidade e que não hesita em colocar suas
competências e recursos emocionais a serviço de projetos individualizados (MOSSI,
2012), tornam-se elementos de uma gramática geral segundo a qual os atores
passam a orientar suas vidas, performando-os no âmbito de diversas esferas da
existência17.
Esse argumento é resultado de pesquisa empírica realizada no ano de 2012,
na qual foram realizadas onze entrevistas com presidentes, ex-presidentes e demais
membros18 da sede da AIESEC em Porto Alegre. Em um momento posterior, os
entrevistados tiveram seus relatos integralmente transcritos e analisados em
profundidade com o objetivo de resgatar o sentindo intrínseco do discurso dos atores
(BARDIN, 2008).
Levando em consideração que qualquer interpretação subentende um
processo de produção de sentido (SPINK, 1999) nossa atividade-meio foi o de
selecionar e posicionar alguns trechos de entrevistas relacionando-as com algumas
ideias fundamentais baseadas na teoria. Para assegurar o rigor desse diálogo entre
teoria e campo empírico foi construído um modelo de análise com o conceito de
“estado de grande” da cité par projetos desmembrado em 7 dimensões as quais se
ramificam ainda em dezesseis indicadores que serviram como guia para as
entrevistas.19
2. UNIVERSO EMPÍRICO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
17
O conceito de “gramática”, baseado na obra de Lemieux, remete a ideia de um conjunto de regras
a seguir para que se alcance o reconhecimentos, em uma sociedade dada, da “maneira correta a agir
e os princípios justos para julgar (LEMIEUX, 2009). O conceito de “gramática” enquadra-se nos
esforços da sociologia pragmática no objetivo de tomar a sério os julgamentos morais dos atores e
seus momentos reflexivos, para, em um momento posterior, construir modelos de competências e
princípios de julgamentos sob a forma de “gramáticas” (NACHI, 2006).
18
Dos quais três ex-presidentes; quatro vice-presidentes; dois coordenadores e dois membros. Uma
tabela com o perfil dos entrevistados está disponível na página 81, nos apêndices.
19
O quadro com o conceito desmembrado será apresentado na segunda seção deste artigo que trata
dos procedimentos metodológicos.
Tendo sido criada no contexto do pós-guerra por três estudantes de economia
e comércio exterior, a AIESEC constitui-se em um objeto empírico privilegiado para
a compreensão das transformações do capitalismo dada a sua histórica
aproximação com os espaços empresariais e de gestão. A história da fundação da
AIESEC, bem como a história do seu desenvolvimento, estão intrinsicamente
vinculadas com as transformações do capitalismo.
Ainda que a Organização tenha sido fundada a partir de uma perspectiva
“substantiva” (RAMOS, 2007), e por isso, calcada em valores e preocupada com a
reconstrução dos laços entre povos que entraram em conflito na Segunda Guerra
Mundial20, ela também responde a pressão das escolas de negócios imbuídas na
missão de construir indivíduos com um background cosmopolita, ligados ao mundo
dos negócios e portadores de uma expertise que lhes tornariam capazes de
reconstruir a economia europeia em crise.21
Os três jovens que fundaram a AIESEC eram provenientes da Dinamarca, da
Tchecoslováquia e da Bélgica e todos possuíam vínculos com as escolas de
comércio ou economia. O seu objetivo inicial era, portanto, i) fomentar intercâmbios
entre jovens estudantes egressos de diferentes países no intuito de revigorar a
tolerância cultural no landemain da II Guerra Mundial , e; ii) formar oportunidades de
trabalho no campo da gestão destes intercâmbios e de demais atividades das sedes
nacionais da AIESEC (como seminários regionais, congressos internacionais de
temas globais, parceria com empresas, etc.) para estudantes com background
cosmopolita formados nas escolas de comércio e economia.
Ao longo da sua história a Organização acompanhou as transformações do
capitalismo exigidas pelo mundo das empresas a qual estava invariavelmente
conectada. O exemplo disso pode ser visto em diversos momentos da sua história
como, por exemplo no: i) crescente incremento nas técnicas e meios de gestão dos
intercâmbios, acompanhando os imperativos da gestão em voga no meio
empresarial nos primeiros anos da sua existência nos anos 1950; ii) amplo
investimento em “intercâmbios profissionais”, no interior de empresas multinacionais
20
Por isso o papel central dos intercâmbios, que se configurou, desde o início da história da AIESEC,
na ferramenta por excelência visualizada pelos idealizadores da Organização no objetivo de
reconstruir os laços entre nações separadas pela guerra.
21
A grande maioria das informações sobre a história da AIESEC utilizadas nesse estudo foram
extraídas do site oficial da AIESEC internacional (www.aiesec.org) e de uma publicação editada pelo
escritório da AIESEC em Amsterdam em comemoração aos 60 anos da AIESEC, intitulada: “60 years
of Activating Youth Leadership”, consentida entre os ex-membros como a mais completa síntese da
história da AIESEC.
que começavam a se “internacionalizar”, a partir dos anos 1960; iii) adesão a temas
gerais discutidos amplamente nos espaços empresariais como, educação para os
negócios, comércio internacional e empreendedorismo, muito em voga a partir dos
anos 1970; iv) adoção de um sistema informatizado que já lograva o controle
meticuloso de todos os procedimentos relacionados aos processos da ONG, desde
o recrutamento até o intercâmbio e a formação de equipes, nos anos 1980 e 1990;
e, por fim, v) a elaboração de uma “visão” integralmente calcada por projetos22 a
qual tem por objetivo facilitar a idealização e a execução de projetos no intuito de
fornecer, aos membros da AIESEC, o seus principais “produtos”: “oportunidades de
intercâmbio”, “parcerias com empresas privadas”, “organização de seminários”,
“organização de eventos com o público externo” nos anos 2000.
Assim, nota-se que a AIESEC, por conta da sua histórica proximidade com o
mundo empresarial e da gestão, acompanhou as transformações do capitalismo e as
respectivas transformações do mundo do trabalho. Não por acaso nos dias atuais a
Organização conta com um plano estratégico que visa a transformação de toda a
sua estrutura operacional calcada inteiramente por “projetos”.
A AIESEC chegou ao Brasil em 1970 com a fundação de dois comitês: o de
Porto Alegre, situado na Escola de Administração da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e o de São Paulo (situado na Fundação Getúlio Vargas)23.
Atualmente a rede nacional conta com mais de 4 mil membros no Brasil,
espalhados em 38 escritórios presentes em 14 estados brasileiros. As parcerias
nacionais da AIESEC no Brasil apontam no sentido de sua aproximação com o setor
corporativo. São mais de 15 parceiros, entre eles, Coca-cola, Femsa, Andrade
Guttierrez, Volkswagen, Santander, Google, Itaú, Artemisia, Danone, etc. Essas
empresas desempenham atividades em parceria com a AIESEC como capacitações,
consultorias, networking, projetos de sustentabilidade e empreendedorismo social ou
como hóspedes de intercambistas estrangeiros nos seus estabelecimentos.
No
Brasil,
a
Organização
está
muito
mais
imbuída
para
com
o
desenvolvimento de competências dos seus membros do que propriamente com os
22
A chamada “visão 2010”: Project based structure: taking AIESEC to the next level.
23 As informações referentes a essa subseção, sobre a História da AIESC no Brasil, foram extraídas
do site da AIESEC no Brasil http://www.aiesec.org.br/historia e de uma entrevista previamente
realizada com um dos fundadores do escritório da AIESEC em Porto Alegre, bem como da análise de
diversos materiais promocionais de diversos escritórios da AIESEC no Brasil.
intercâmbios.24Essa abordagem se constitui na ênfase ao uso das experiências
oferecidas (seja de intercâmbio, liderança ou a simples membresia) como forma de
desenvolver as potencialidades dos seus membros. Nesses termos, a rede brasileira
se
constitui
mais
em
termos
de
uma
“plataforma
de
desenvolvimento”,
disponibilizando aos seus integrantes uma gama de vivências capazes de lhes
somarem na aquisição de competências e habilidades específicas do que
propriamente uma organização voltada tão simplesmente aos intercâmbios.
Levando em consideração os elementos que caracterizam a Organização no
Brasil: uma plataforma de desenvolvimento que assume a forma de uma “rede”
repleta de oportunidades para o desenvolvimento das competências humanas, o
culto das “habilidades multifuncionais”25, o intercâmbio como ferramenta de
“flexibilização” do indivíduo, a busca pela excelência na execução dos “projetos”,
entre outros,
utilizaremos, portanto, como conceito-chave para pensar os
significados dessas práticas específicas da AIESEC, a noção do “estado de grande”
da “cidade por projetos”26 como a expressão de um conjunto de valores que, pelo
desenvolvimento do espírito do capitalismo, hoje são dominantes no campo das
representações sociais.
No intuito de assegurar o rigor da comunicação entre teoria e campo empírico
foi construído indicadores a partir do nosso conceito central, qual seja, o de “estado
de grande” da cité par projets. A construção desses indicadores
serviu para melhor compreender os relatos dos entrevistados em consonância com
os elementos da teoria, e assim, assegurar a rigidez desse diálogo.
Quadro 1: Construção de indicadores
24
Emblemática dessa postura é o logo que figura no material promocional do escritório de Curitiba da
gestão 2010: “Nossa abordagem inovadora para o desenvolvimento de jovens tem o foco em assumir
uma postura pró-ativa, desenvolver autoconsciência e uma visão pessoal, construindo redes de
contatos e se capacitando para conduzir a mudança”.
25
www.aiesec.org.br/nossa-plataforma.html
26
Tradução livre do autor. No entanto, no corpo do artigo, com o objetivo de evitar interpretações
equivocadas decorrente do conteúdo do termo “cité” optamos pela utilização do conceito original em
francês.
Fonte: Elaboração do autor com base em (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999)
Após transcrição e análise em profundidade das entrevistas, foram utilizadas
técnicas como o mapa e a árvore de associação de ideias, no entanto, em
consideração aos limites exigidos para este artigo elas foram suprimidas, optando-se
assim, na seleção e no posicionamento de trechos das entrevistas relacionando-os
Conceito
Dimensões
1) Auto-conhecimento
Estado de grande da
cité par projets
2) Empreendedor de si
Indicadores
1.1) Quais as motivações da vontade de
conhecer? A AIESEC lhe ajuda/ajudou
nesse objetivo?
1.2) Como vivenciou a experiência de coach
com o líder?
2.1) Que tipo de desenvolvimento busca na
AIESEC?
2.2) Como vivencia o desenvolvimento das
potencialidades?
3) Flexibilidade
3.1) Relacionamento interpessoal com
estrangeiros e membros do “time”
3.2) Disposição ao nomadismo,
envolvimento em quais projetos? Formação
em qual área? Perspectivas profissionais?
Adaptabilidade
4.1) Como se dá a busca pelo aumento do
Capital de experiências. Vontade de fazer
intercâmbio? Quais as motivação para o
desafio de gerir um time?
4.2) Vontade de vivenciar culturas e
ambientes diferentes?
4.3) Quais as razões para permanecer na
AIESEC?
Conexionismo
5.1) Terror ante o isolamento: como vive a
conexão com a rede? E o isolamento dentro
do escritório local?
5.2) Contatos x Amigos? Como se dá o
relacionamento com os indivíduos da rede?
Eles são importantes dentro das suas
perspectivas profissionais?
Inspiração
6.1) Qual a importância conferida ao papel
de inspirar os coordenados?
6.2) Quais os tipos de exemplos que geram
a inspiração?
Trabalho por Projetos
7.1) Como é vivenciada a experiência de
integrar um projeto? Como a lógica de
trabalho por projetos lhe influencia fora do
trabalho?
7.2) Como os projetos articulam a conexão
entre domínios, campos e interesses
distintos?
com os indicadores do conceito maior.
Em um último momento, foram criadas três categorias para dar conta dos
objetivos propostos e assegurar uma visão global da maneira pela qual os
entrevistados tomam para si os valores do “estado de grande”. São elas: o “saberser”, que visa explicar a maneira pela qual os indivíduos vivenciam uma “forma de
ser e de viver” em consonância com esses valores; o “saber-fazer” que visa
apreender a maneira pela qual as “técnicas de trabalho” se tornam valores
imperativos para os indivíduos, que migram do cotidiano do trabalho para a vida
privada e, finalmente; o “saber-explicar” a categoria que mais se aproxima do
objetivo da sociologia pragmática que teve por objetivo mostrar a maneira pela qual
os atores aderem a justificação por projetos construindo uma cadeia causal que liga
a “melhoria dos indivíduos” à construção de um mundo melhor”.
3. A SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA DA CRÍTICA E AS TRANSFORMAÇÕES DO
CAPITALISMO
A sociologia pragmática nasce principalmente a partir dos esforços de Luc
Boltanski e Laurent Thévenot, na tentativa de marcar posição contra as teorias
dominantes nos anos 1960 e 1970 que colocavam um acento muito forte nas
relações de força e de interesse entre os atores, por meio de conceitos como o de
violência simbólica que, segundo Boltanski, permite assimilar toda e qualquer
relação social como uma forma de violência mais ou menos dissimulada
(BLONDEAU & SEVIN, 2004; CELIKATES, 2012). Nesses termos, a crítica operada
por esses autores é sobretudo em relação à chamada, “ilusão ocasionalista”
(BOURDIEU, 1972, apud VANDENBERGHE, 2006) que pressupõe um conflito
incontornável entre a análise do sociólogo e a interpretação dos atores imersos na
illusio de suas práticas, incapazes, portanto, de distanciar-se delas tornando-se
vítimas de uma “ilusão de reflexidade” (BOURDIEU, 1999).
Boltanski, em claro movimento de ruptura epistemológica com Bourdieu e
seus antigos colegas do CSE (Centre de Sociologie Europeénne) preocupado em
formular uma teoria da ação em que o pano de fundo seria formado por questões
relativas à justiça (BOLTANSKI & THEVENOT, 1991), passa a conceder uma maior
reflexidade ao ator social. Nessa ruptura, portanto, Boltanski e Thévenot (1991) se
debruçam nas “operações críticas às quais recorrem os atores quando estes querem
manifestar seu desacordo sem recorrer à violência” (DELAS e MILLY, 2009). O que
está em jogo para os dois é o acesso aos princípios de julgamento utilizados pelos
agentes no intuito de justificar ou criticar os preceitos gerais que ordenam a situação
corriqueira. Por isso a análise centrada nas situações de crítica que interrompem o
curso ordinário da ação (BOLTANSKI & THEVENOT, 1991), nas palavras dos
autores:
Cette orientation théorique qui suppose de saisir l’action sans son
rapport à l’incertitude a pour conséquence, au niveau de la méthode
d’observation, de centrer la recherche sur les moments de remise en
cause et de critique qui constituent les scènes principales traitées
dans cet ouvrage. Par ailleurs, le choix d’étudier en priorité ce
moment-là nous paraît particulièrement adapté à l’étude d’une société
où la critique occupe une place centrale et constitue un instrument
principal dont disposent les acteurs pour éprouver la relation du
particulier et du général, du local et du global (BOLTANSKI &
27
THEVENOT, 1991, p. 31)
Dessa forma a Sociologia pragmática de Boltanski e Thévenot vai tomar o
presente imediato como universo empírico por excelência, e, consequentemente os
“momentos críticos” nos quais os atores exprimem publicamente suas críticas e/ou
justificações fazendo referência aos princípios gerais de justiça. Nesses termos,
pode-se dizer que a Sociologia pragmática dialoga com a tradição do pragmatismo
americano, apresentando uma análise que prima pela análise situacional da ação,
com o intuito de apreender as pressões situacionais, materiais e ideais das
operações de justificação (VANDERBERGHE, 2006). Ela opera dessa forma, segue
argumentando o autor, uma guinada hermenêutica já que rompe com o “paradigma
do desvelamento” para se aproximar da postura fenomenológica, “recusando invocar
os mecanismos sociais e as forças inconscientes que determinariam o ator, sem ele
saber, e explicariam suas ações”.
A sociedade tal como é vista por Boltanski, supõe uma concepção de ação
social indissociável, portanto, da moral. Em outros termos, a normatividade do
sujeito vem à tona no momento em que este manifesta as suas críticas e
justificações quando se depara a uma situação de injustiça no prosaico da vida
cotidiana (MOSSI, 2012; BOLTANSKI & THENEVOT, 1991).
3.1 A Tipologia das cités
27
“Esta orientação teórica que supõe tomar a ação sem sua relação à incerteza tem por
consequência, no nível do método da observação, de centrar a pesquisa sobre os movimentos de
questionamento e de crítica que constituem as principais cenas tratadas nessa obra. Além disso, a
escolha de estudar em prioridade este momento nos parece particularmente adaptado ao estudo de
uma sociedade onde a crítica ocupa um lugar central e constitui um instrumento principal do qual
dispõem os atores para colocar à prova a relação do particular e do geral, do local e do global”.
Tradução livre do autor
Boltanski e Thévenot
na obra “De La Justification”, de acordo com
Vandenberghe (2006), criam uma Sociologia bidimensional na qual figuram,
basicamente, dois espaços de interação: 1) um primeiro nível contendo pessoas
particulares em situações ordinárias se relacionando com outras pessoas e objetos;
2) um segundo nível mais abstrato, no qual residem as convenções gerais
orientadas para o bem-comum, ou, ainda, em outros termos, um princípio comum
legítimo de justiça.
É a partir da noção de “princípio superior comum” - tomada de Rousseau - que
se dá a construção desse sistema bidimensional. O segundo nível que abriga formas
sintéticas, ou os chamados “transcendentais históricos” (as cités) reinserem a ordem
no primeiro nível no qual indivíduos vivem dispersos - onde acontecem as situações
corriqueiras, a ação ordinária. Já no segundo nível, figuram os “princípios de
equivalência” que permitem aproximar os atores em função da transcendência de
um determinado princípio de justiça. Nesse sentido, “o princípio de equivalência é o
que regula as disputas e é o que permite a construção do acordo” (MOSSI, 2012).
Como argumenta Boltanski (BLONDEAU & SEVIN, 2004), a construção dos
princípios de equivalência é resultado de uma dialética entre, por um lado, a
pesquisa de campo atenta às experiências ordinárias dos atores, nas quais estes
entram em disputa e introduzem suas críticas e justificações, e, por outro, a leitura
de obras seminais da filosofia política ocidental. Essas obras são compreendidas
enquanto “gramáticas” destinadas a testar a validade de uma qualidade comum aos
seres humanos que poderá ser tida como o princípio básico do princípio de
equivalência.
Nesses termos, os autores constroem seis modelos de cités que repousam
em seis princípios de equivalências que exercem um papel essencial nas disputadas
da vida social – estabelecendo assim, “tipos de grandezas” que orientam um sentido
geral de justiça. O modelo da cité – que nas palavras de Boltanski consiste em “um
sistema de constrangimentos que pesam sobre o estabelecimento de um princípio
qualquer de equivalência” (idem) - precisa satisfazer duas exigências básicas: i) o da
humanidade comum (o fato de nenhuma pessoa ser mais humana que outra no
contexto de uma cité), e; ii) o da construção de uma ordem hierárquica que ordene o
caos da situação ordinária.
As seis cités, elaboradas por Boltanski e Thevenot em “De La Justification”
são: i) a cidade inspirada, onde a grandeza é definida pelo acesso a um estado de
graça; ii) a cidade doméstica calcada na ocupação de uma posição de destaque no
contexto de uma cadeia hierárquica de relações pessoais; iii) cidade de renome na
qual o princípio superior comum relaciona-se à estima dos outros; iv) cidade cívica
em que al grandeza está ligada à renúncia dos particularismos em prol de uma
repartição dos bens segundo os princípios do mercado; v) a cidade mercantil em que
o princípio superior comum é a concorrência e, por fim; a vi) cidade industrial, na
qual a grandeza é medida a partir da eficiência.
Na esteira dessa tipologia, na obra em que marca uma guinada da sociologia
pragmática em direção à uma macro sociologia, surge a sétima e última cité: a cité
par projets.
3.2. “O Novo espírito do capitalismo” e a cité par projets
Respondendo às críticas endereçadas à obra “De La Justification”28 Boltanski
passa em “O novo espírito do capitalismo” à uma rigorosa análise das
transformações socioeconômicas e ideológicas vivenciadas pela sociedade francesa
a partir da última grande crise do capitalismo de meados dos anos 1960. Dessa
forma, tomam por objeto empírico os discursos presentes nos manuais empresariais
que fundamentam as práticas de gestão em dois momentos cruciais do capitalismo
(os anos 1960 e os anos 1990).
A escolha dos manuais de gestão como objeto empírico justifica-se por serem
depositários de uma literatura que comporta não só uma dimensão técnica, como o
simples receptáculo dos novos métodos de obter lucro, mas sobretudo pelo seu
caráter moral, à medida que ela se configura enquanto uma literatura normativa, que
diz aquilo que deve ser, aquilo que é considerado “bom” no que concerne à gestão
do trabalho e das pessoas (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999:84). Assim, os
autores analisam como o capitalismo conseguiu cooptar aspectos da crítica estética
e social, principalmente no contexto pós-maio de 1968, nos termos de uma nova
configuração ideológica que justifica o engajamento das pessoas no capitalismo.
A obra “O Novo espírito do capitalismo” que marca uma guinada macrossociológica à perspectiva da
sociologia crítica, pode ser compreendida como um esforço de responder às críticas recorrentes em
relação a obra anterior “De la Justification” na qual Boltanski teria: i) esquecido a história; ii)
negligenciado as relações de força e; iii) superestimado às situações micro, ordinárias, em detrimento
à macrosociologia. (BLONDEAU & SEVIN, 2004).
28
Partindo de uma definição mínima de capitalismo enquanto “um sistema de
acumulação ilimitada de capitais por meios formalmente pacíficos (1999:35), os
autores enfatizam a pobreza axiológica do sistema e chamam atenção para a
necessidade de um “espírito” que justifique e incentive o engajamento ao capitalismo
já que ele, por si só, pela sua indiferença normativa, não é capaz de suscitar o
engajamento das pessoas na atividade econômica.
Dado, portanto, a ausência de lastro entre a atividade econômica e qualquer
exigência moral (indiferença normativa), faz-se necessária a existência de uma
ideologia justificadora que seja um alento ao engajamento no capitalismo. Essa
ideologia justificadora precisa satisfazer três elementos básicos: i) tornar o
engajamento ao capitalismo excitante; ii) garantir um universo mínimo se segurança
para si e para seus descendentes no futuro; iii) realizar minimamente as exigências
de justiça que, quando submetidas à crítica, permita justificar o engajamento no
capitalismo nos termos da construção de um bem-comum (BLONDEAU & SEVIN,
2004).
Nesse sentido, os autores revelam a morfologia dos movimentos do
capitalismo que estão invariavelmente relacionados às críticas endereçadas a ele (a
chamada “espiral da crítica). Nesses termos, a crítica anticapitalista, tão antiga
quanto o próprio capitalismo, constitui-se no norte das transformações, justamente
por questionar os princípios de justiça das provas, obrigando-o a se justificar.
A partir dessa ideia básica que relaciona i) o capitalismo, ii) a crítica
anticapitalista e; iii) o “espírito do capitalismo”, os autores identificam três momentos
históricos nos quais o capitalismo, respondendo às críticas, transforma suas provas
de justiça e fontes de segurança e excitação no intuito de mobilizar os indivíduos a
tomarem partido na vida econômica, conforme o quadro abaixo.
Quadro 2: Transformações do espírito do capitalismo
Tendo dividido os manuais de gestão em dois grandes corpora, o primeiro
abrangendo obras dos anos 1959-1969 e, o segundo, com obras da literatura
managerial compreendida entre os anos 1989 e 1994, os autores apontam para as
diferentes transformações que culminaram na formação de um “novo espírito do
capit
Elementos
fundamentais
Historização e
Figura Dominante
Substrato
normativo ao
engajamento no
Capitalismo
Justificação
Elementos de
segurança
Crítica a qual foi
confrontado
1̊ espírito do
Capitalismo
Capitalismo
doméstico e familiar
herdeiro do século
XIX; Burguês
empreendedor
descrito por Weber e
Sombart;
Ideologia do “eu
vitorioso”;
empreendedorismo
burguês;
2̊ espírito do
Capitalismo
Compromisso cívicofordista (1930-1960);
Diretores heroicos da
grande empresa
hierarquizada;
Crença no
progresso, na
ciência, na técnica e
nos feitos da
indústria em prol do
bem-comum;
Gigantismo das
organizações
provendo segurança
aos seus
assalariados;
convenções
coletivas, lógica do
estatuto; Estadoprovidência;
Tradicionalista; (foi
preciso incorporar a
ânsia de libertação
do antigo regime e
mostrar as chances
de autorrealização
do indivíduo);
Carreirista; busca
pelo poder via
ascensão na
hierarquia da grande
empresa planificada;
Socialista;
(incorporação da
exigência de
liberdade ante ao
perigo da alienação)
Novo espírito do
Capitalismo
Capitalismo
financeiro, mundo
em rede (1968 - );
Manager
conexionista da
empresa flexível;
Realização pessoal;
autonomia como
desenvolvimento das
habilidades
comunicacionais,
relacionais, criativas
e inventivas;
Reputação como
garantia de
empregabilidade;
multiplicidade das
conexões e das
informações; a cada
projeto bem sucedido
há a um valor
agregado que se
soma à
empregabilidade de
cada pessoa;
Crítica social e
estética de 1968:
em resposta à
denúncia do
desencantamento do
mundo, o espírito do
Capitalismo
incorporou a
exigência por
autonomia no
trabalho,
autenticidade das
relações humanas,
supressão dos
controles externos,
etc;
alis
mo”,
cara
cterí
stico
da
era
da
Infor
maç
ão e
do
des
mant
elam
ento
do
pact
o
fordi
sta.
A
ssim
, os
elem
entos presentes na literatura da gestão dos anos 1990 são emblemáticos da luta
travada pelos gerentes e pelo patronato no intuito de deslegitimar a hierarquia, a
planificação, a autoridade formal e o esvaziamento das relações pessoais informais
típicas do espírito anterior. Agindo assim, há um rompimento com as formas
taylorizadas do trabalho, típicas da cité industrielle, tidas a partir de 1968 como
fontes de injustiça e desumanização. Incorporando elementos da crítica artística, o
espírito do capitalismo buscou a concretização de um engajamento ao trabalho
“mais humano”, no qual se constrói um sentido geral com o intuito de desenvolver a
autonomia individual contribuindo para as finalidades do projeto coletivo. As palavras
de ordem desse novo tipo de engajamento no trabalho passam a ser, portanto, o
desabrochar das emoções, da intuição, da criatividade e do “desenvolvimento
pessoal” – esse novo credo da atual gestão empresarial (BOLTANSKI &
CHIAPELLO, 1999: 122).
Dessa forma, o cadre dá lugar ao manager, e o mundo planificado da grande
empresa burocratizada cede espaço para um mundo em rede onde o manager, a
partir da sua inventividade e capacidade de estabelecer vínculos e conectar pessoas
passa a ser a figura heroica dessa nova configuração ideológica: a cité par projets.
Nessa sétima cité a segurança já não está mais calcada no Estadoprovidência ou na lógica carreirista da cité industrielle e sim na aptidão dos atores
em criar conexões. A atividade e a capacidade de mediação é o princípio superior
comum dessa cité29 onde as pessoas têm medida a sua “grandeza” de acordo com a
sua capacidade de romper com o isolamento e encontrar coisas ou pessoas com as
quais possam iniciar um projeto.
A noção de projeto, também é de extrema importância nessa nova
configuração ideológica, pois comporta a exigência de segurança, ou seja, a
empregabilidade dos atores é tecida a partir da participação em diversos “projetos”
de curta duração. Além disso, também é no seio dos projetos que ocorre a
redistribuição da grandeza: sendo “grande” aquele indivíduo que, sabendo
estabelecer conexões e estender as redes, permite que todos os indivíduos
beneficiem-se dessa pluralidade de elos.30
Atentos a essa nova composição do substrato normativo do capitalismo,
característico do momento pós-fordista e levando em consideração os inúmeros
Tomando o lugar, portanto, da “eficiência”: princípio superior comum da cité industrielle.
Segundo Boltanski (2002) a noção de exploração na cité par projets deve remeter-se à
desigualdade de condições de cada pessoa em explorar as redes. Em outros termos, em um mundo
onde a grandeza pressupõe a atividade e o deslocamento, os fatores de precarização são agora o
enraizamento local, a fidelidade e a estabilidade, ou seja, os menos móveis.
29
30
elementos que caracterizam a AIESEC: utilizaremos, portanto, como conceito-chave
para pensar os significados do trabalho voluntário na AIESEC, a noção do “estado
de grande” da cité par projets. Entendemos o “estado de grande” como a expressão
de um conjunto de valores que, pelo desenvolvimento do espírito do capitalismo,
hoje são dominantes no campo das representações sociais e, ao que parece,
tendem a não se resumirem aos espaços da esfera produtiva, transbordando para
outros meios sociais (como as ONGs) e transformando em larga medida a maneira
pela qual os indivíduos pensam e planejam as suas vidas, como veremos a seguir
no caso dos estudantes que participaram da AIESEC.
4. OS SUJEITOS E O TRABALHO NA AIESEC: DE JUSTIFICAÇÃO À
GRAMÁTICA
4.1. O saber-ser: entre o autoconhecimento e o investimento em si
Em todas as entrevistas realizadas, não houve nenhuma em que o
entrevistado, em algum momento, não tenha se referido à AIESEC como uma
“plataforma de desenvolvimento”. A partir da leitura em profundidade das entrevistas
torna-se claro que a lógica que motiva o engajamento no trabalho na AIESEC
corresponde à lógica do indivíduo empreendedor de si mesmo (LÓPEZ-RUIZ, 2007),
tal como expressa as palavras de um entrevistado:
Pra mim o principal conceito que está envolvido nessa ideia de “plataforma” é de
que, ao contrário de, tipo, cursos de inglês, cursos de pintura, aulas de piano em
que tu tens um professor que está lá, que tem todo um conteúdo sabe? Que tem
uma forma de orientação, uma plataforma pra mim seria um lugar em que ela te
oferece várias possibilidades e tu escolhe o que é melhor pra ti. (...) E a AIESEC é
bem isso... Tu tem uma prateleira de produtos que tu pensa: ah, isso é super bom
pra eu desenvolver a minha interculturalidade, isso aqui é super bom pra eu
desenvolver o meu foco em gestão de pessoas, isso aqui é bom pra eu
desenvolver o meu foco em resultado, agora eu paro e penso o que é melhor pra
mim, ah eu penso que agora o ideal seria parar e consumir esse produto, pra
melhorar esse lado. Então eu vou ser dono do meu próprio desenvolvimento, do
meu próprio caminho. Então acho que essa é a principal questão quando se fala
em plataforma, é um lugar onde tu pode se apoiar pra subir em determinado
conhecimento. Não é algo que vão te empurrar. Se tu entrar e sair pela AIESEC
pela mesma porta tu podes sair igual, ao contrário de uma aula de piano, de um
curso técnico onde alguém vai te ensinar alguma coisa. Um lugar onde tu vais pra
pró-ativamente buscar o que tu quer saber da forma que tu quer saber. (Homem,
27 anos, ex-presidente da AIESEC em Porto Alegre, 5 anos na AIESEC)
Há uma clara distinção entre os elementos que fazem com que as pessoas
entrem na AIESEC e os que fazem com que elas permaneçam. Em uma primeira
leitura panorâmica das entrevistas fica claro que os argumentos mobilizados pelos
atores para justificar a entrada na AIESEC ainda que subjetivos, são parecidos, e
envolvem sempre elementos como a curiosidade, a insatisfação com a normalidade
da vida acadêmica, a vontade de pertencimento a um outro grupo, e, principalmente,
vontade de fazer um intercâmbio.
No entanto, as razões pelas quais as pessoas explicam o seu engajamento, e
consequentemente, a candidatura a postos mais importantes dentro da organização
(líder de time, vice-presidente e presidente) são muito mais objetivos e se
relacionam sempre com a aquisição de competências e a busca pelo
desenvolvimento, aproximando-se com a ideia de utilizar a AIESEC como uma
“plataforma” como exposto na fala do entrevistado logo acima. Também é
emblemático dessa motivação o depoimento de um ex-presidente da AIESEC em
Porto Alegre quando indagado por quais razões fora levado a se candidatar para o
posto:
Honestamente eu não sei te dizer. A AIESEC tem toda uma questão que é o
seguinte: ela te envolve muito. Eu brinco mas é verdade, tem algum quê, sim, de
lavagem cerebral assim, e quando tu estás lá dentro tu cria laços muito fortes e a
relação de poder é muito forte dentro da AIESEC. (...) Mas eu só me candidatei
porque eu percebi que eu tinha coisas pra desenvolver ainda que eu só
31
conseguiria como LCP , eu não me candidatei ao MC, por exemplo, porque eu
não enxergava pontos que eu pudesse me desenvolver na organização, então eu
falei: opa, parei, aqui deu.... Já acho que eu já adquiri tudo que eu poderia aqui,
tudo que eu pudesse levar pra minha vida pessoal e profissional e aí deu né... é
aquela velha questão que eu me dei conta de que durante todo esse processo eu
não queria estar na AIESEC só pra ter amigos, me divertir e ter contatos, que é
algo muito forte dentro da organização. Eu queria mesmo me desenvolver,
claramente pra mim, a minha escolha que me levou ser LCP era muito subjetiva, e
a escolha de sair foi muito objetiva: eu não via mais potencial de desenvolvimento.
(Homem, 26 anos, ex-presidente da AIESEC em Porto Alegre, 3 anos ne AIESEC)
A vontade de assumir desafios no seio da organização (galgando postos mais
altos), tal como foi colocada pelo ator, e também é colocado de forma semelhante
pelos demais entrevistados, é a expressão da vontade de ser ator do seu próprio
desenvolvimento - revelando assim um protagonismo dos valores do grande da cité
par projets que engaja-se em projetos de muitas ordens imbuído de tomar nas mão
o seu próprio futuro, performando, dessa forma, uma das dimensões mais sedutoras
da atual gestão empresarial que é a proposta do trabalho como vetor do
desenvolvimento pessoal (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999: 122).
Nessa lógica de tomar nas mãos o seu próprio futuro, o processo de
autoconhecimento ocupa um lugar central. Ele é vital porque é justamente a partir
dele que o indivíduo inicia a busca das “ferramentas” necessárias para elevar-se
31
LCP significa Local Comitee President, é, portanto o termo para designar o presidente do escritório
local. MC significa National Comitee, ou seja, o escritório que gerencia a AIESEC a nível nacional.
naquilo que ele sente que precisa aperfeiçoar, e, consequentemente, as
experiências que deseja aproveitar dentro da enorme “prateleira de produtos” que a
AIESEC oferece para os seus membros. Por outro lado, a centralidade desse valor
na Organização também remete às novas configurações de autonomia no mundo
trabalho, calcadas cada vez mais na promessa de autoconhecimento e realização
pessoal.
A relação que o membro da AIESEC estabelece com o seu trabalho na
Organização, nos parece, portanto, o resultado de uma dialética que se constitui em
torno de dois eixos principais: o autoconhecimento e a busca pelo aperfeiçoamento.
Nesses termos, a “pró-atividade” em direção a esses dois eixos é amplamente
disseminado na sua cultura organizacional, premiando os jovens que performam o
maior número de “atividades” possíveis no interior de projetos específicos da
organização32. Assim, entendemos que a AIESEC adere à concepção de grandeza
que divide as pessoas entre grandes e pequenos no contexto da cité par projets: a
capacidade de performar atividades e mediar encontros no interior de projetos.
4.2. O saber-fazer: a lógica por projetos e o ser humano que nunca
desliga
No contexto da AIESEC, o trabalho por projetos é um constante do início ao
fim da passagem do indivíduo pela organização. A maneira pela qual o trabalho é
estruturado na AIESEC é emblemática do processo de transformação da
organização do trabalho a partir dos anos 1990. Assim, há a valorização do indivíduo
que sabe trabalhar em pequenos grupos33, como líder ou como colaborador, o
incentivo ao desenvolvimento da flexibilidade34 a ideia de carreira como um vagar
32
Projeto de incentivo à intercâmbios, projeto de incentivo a parcerias com empresas e organizações
diversas, projeto de posicionamento externo, projeto EduAction (oferecer à crianças da rede pública
de ensino aulas sobre temas globais com intercambistas estrangeiros que estão em Porto Alegre),
projeto de seleção de novos membros para o escritório local.
33Essas unidades básicas de trabalho na AIESEC levam o nome de “times” e possuem sempre um
número reduzido de pessoas, chegando a no máximo 12 ou 15 pessoas nos projetos maiores, nos
quais as decisões sempre são tomadas em conjunto e o líder é apenas um “catalisador do processo”
nas palavras de um entrevistado. Esse modelo de gestão do trabalho relaciona-se com a chamada
world-linked democracy que substitui a gestão empresarial autoritária por grupos de trabalho mais
autônomos nos quais os líderes são, sobretudo, exemplos, em detrimento ao antigo chefe autoritário
representante do segundo espírito do capitalismo.
34 A flexibilidade é uma competência fundamental para o membro da AIESEC dado que se trata de
uma organização que trabalha com indivíduos de várias nacionalidades e culturas, muitas vezes
trabalhando em conjunto, compartilhando funções e um mesmo ambientes de trabalho.
quase errático de um projeto a outro e a autonomia baseada no autoconhecimento e
na exploração das potencialidades de cada indivíduo.
A partir da análise das entrevistas, identificamos que a maior parte dos
entrevistados mobilizam os valores da cité par projets no intuito de justificarem a
maneira pela qual eles levam a cabo as atividades que performam no âmbito dos
“times” onde estão alocados e em função dos projetos que atuam. Assim, essa forma
de conduzir o trabalho aparece como a única maneira possível de levar a cabo as
atividades que os atores gostariam de performar, assumindo o papel organizador de
ordenar as ações necessárias para se alcançar um dado objetivo estipulado
previamente. Nesses termos, a forma “projetada” de conduzir o trabalho e a vida
também aparece como um remédio à improdutividade e à tristeza oriunda da
incapacidade de dar conta do excesso de atividades:
(...) eu tinha uma carga muito grande de insatisfação com a minha vida o tempo
inteiro e não conseguia saber por quê. Hoje em dia eu me dei conta que é porque
eu tinha uma cobrança interna com compromissos que eu assumia comigo mesmo
dos mais triviais: tocar piano, jogar futebol toda semana, ser melhor em qualquer
coisa, concluir a minha atividade, entregar a pauta da reunião de EB, fazer o
35
escritório crescer . Eu descobri que o excesso de compromissos não cumpridos
comigo mesmo me deixava triste e eu não conseguia perceber (Homem, 27 anos,
ex-presidente da AIESEC em Porto Alegre, 5 anos de AIESEC).
Vivenciada a tensão ante a limitação da capacidade do ator de executar as
tarefas que ele mesmo se propõe, a lógica por projetos entra como uma “salvadora”
que lhes dá um saber-fazer específico para conseguir levar a cabo a gama de
atividades. Como segue explicando o ator:
Eu aprendi então a transformar tudo que era complexo e intangível em coisas
simples, e acionáveis, a partir de um projeto. Tipo, sentar e escrever sobre tal
coisa: redigir o plano estratégico. Objetivo esperado dessa atividade: eu quero que
ao final do meu trabalho eu tenha isso, isso e isso. Isso me começou a me permitir
que todas as frentes da minha vida andassem.
(...)Eu consegui enxergar que ter um objetivo semântico não leva a uma
conclusão. Tipo, tocar piano não é o objetivo, o objetivo é ir às aulas de piano,
agendar a primeira. É isso que leva a conclusão das coisas. Então eu aprendi a
administrar melhor o meu tempo, eu aprendi que ninguém administra objetivos,
ninguém administra projetos, tu administra as ações que tu podes concluir. Eu me
tornei muito mais produtivo, e por consequência, muito mais satisfeito comigo
mesmo (Idem).
Assim, o trabalho por projetos é vivenciado pelos indivíduos como uma
“ferramenta” capaz de ordenar ações práticas que vão levar à realização do “objetivo
semântico” e, por consequência, aumentar o nível de satisfação consigo próprio,
35
Refere-se ao escritório da AIESEC em Porto Alegre
intimamente vinculado, para a grande maioria dos atores entrevistados, com a
realização das atividades que eles mesmo se exigem sem cessar.
Igualmente característica dessa maneira instrumental de agir visando pontuar
as ações práticas necessárias para alcançar a concretização dos projetos da vida
pessoal, é a resposta de um outro entrevistado quando indagado sobre as suas
perspectivas profissionais para o futuro:
Como eu te falei ah eu quero entrar no mestrado, mas me pergunta se eu já tô estudando?
Bem, não (risos)...mas é só pro final do ano que vem. Mas eu já tô
pesquisando, me informando,
já vou começar a ler coisas e tal. Eu comecei a perceber
que é preciso ter objetivos claros,
mas mais do que isso a ideia de como fazer pra chegar
lá.
P: Lá onde, perdão?
Nos objetivos! Tipo, a longo prazo tu precisa ter metas claras pras tuas próximas
metas
de vida pra que tu possa dar suBstância pra esses passos. Assim que eu faço que
a vida
tenha sentido, sabe? Estipulando metas, coisas que eu quero conquistar,
lugares que eu quero
ir, e eu preciso dessa coisa que a AIESEC me deu de como
fazer pra chegar lá (Homem, 23 anos,
membro, 2 anos de AIESEC).
Parece-nos claro que essa forma de protagonizar a lógica do trabalho por
projetos - no âmbito do trabalho e da vida pessoal dos membros da AIESEC assume para eles os contornos de uma ferramenta pessoal de organização, que
confere inclusive sentido às suas empreitadas profissionais, (“fazer o escritório
crescer”) e pessoais (“tocar piano, jogar futebol toda semana). É a partir dela que os
membros vão levar a cabo a extensa gama de atividades que eles mesmos se
propõem a desempenhar, desde participar de fóruns sobre empreendedorismo até
desfrutar de momentos casuais com amigos, ou, como no segundo caso, encontrar
um programa de mestrado que lhe satisfaça as expectativas.
Assim, somos levados a crer que à medida que os indivíduos nos informam
da maneira pela qual conferem sentido às suas empreitadas pessoais e
professionais, organizando-as na forma de microprojetos, esse parece constituir um
importante achado do presente estudo. Em outros termos, nota-se a evidência
daquilo que para Boltanski e Chiapello parecem estarem dispostos a concordar: o
inevitável transbordamento dessa nova configuração ideológica do capitalismo para
as demais esferas da vida. Os valores que atuam como o sustentáculo das fontes de
segurança e excitação do capitalismo por projetos, e que é mobilizado pelos
membros para justificar a sua entrega ao trabalho voluntário na AIESEC torna-se
uma gramática geral, segundo a qual os indivíduos conduzem suas vidas. Assim, a
presença em algum projeto no qual haja a possibilidade de aprendizado de novas
competências ou estabelecimento de novos contatos, torna-se para esses indivíduos
um imperativo, fazendo do membro da AIESEC parecer, a quem os observa de fora,
um indivíduo que não desliga nunca.
4.3 O saber-explicar: o lugar da benemerência no “espírito” da AIESEC
A presente categoria “saber explicar”, consiste em um esforço do autor, nos
termos de criação de uma categoria que visa dar conta da maneira pela qual o
membro da AIESEC explica e justifica os sentidos da as prática36. Assim, buscamos
através da análise em profundidade das entrevistas, acessar o sentido que os atores
conferem ao engajamento na AIESEC e, sobretudo, à permanência na Organização.
É importante lembrarmos que o fundamento da AIESEC se constitui em
termos de uma razão benemerente que visa a construção uma sociedade melhor a
partir, justamente, da formação de indivíduos melhores. Assim, os jovens que
ingressam nela, são tidos como meio para o alcance desse objetivo maior. Em
muitos documentos e entrevistas encontramos referências dessa visão geral, que
centra no indivíduo os esforços para construção da “paz mundial e o
desenvolvimento das potencialidades humanas”37. Essa visão geral é vivenciada
pelos membros como objetivo último da Organização, a qual todos invariavelmente,
devem contribuir a partir do seu próprio desenvolvimento e desenvolvimento dos
demais membros.
Dessa forma, reiterando o discurso oficial da organização, os membros
entrevistados relacionam o desenvolvimento das “potencialidades huamanas”38 com
esse ideal maior, benemerente, de construção de um mundo melhor. É sobretudo
através desse discurso que os membros justificam o emprego das suas energias no
grande projeto coletivo de transformação da realidade. Portanto, é transformando a
si mesmo e conduzindo seus membros ao caminho do autoconhecimento e do
desenvolvimento que o membro da AIESEC contribui ao projeto coletivo de
transformação da realidade a partir da formação dos agentes de mudança:
36
Assim, a despeito do “Saber-ser” e do “Saber fazer” que já existem na literatura sociológica, a
categoria “Saber explicar” é de autoria própria. Nesses termos visamos encerrar a explicitação de
como os membros da AIESEC tomam para si os valores da cité par projets no âmbito das três
esferas: “Saber-ser”; “Saber-fazer”; e “Saber explicar”.
37
www.aiesec.org.br/aiesec-way
38
Através da nossa análise, acreditamos que já é possível inferirmos que as “potencialidades
humanas” desenvolvidas pela AIESEC, não são quaisquer potencialidades. São, sim, habilidades e
ferramentas amplamente afinadas com as virtudes almeijadas no âmbito do novo espírito do
capitalismo e que, no entanto, não são explicitadas como tais no âmbito do dia-dia daqueles que a
buscam através das vivências oferecidas pela AIESEC.
P: Como tu definirias a AIESEC?
Pra mim foi uma grande oportunidade, pras outras pessoas eu defino muito como
uma organização que tem por objetivo ajudar as pessoas a se tornarem melhores,
com palavras mais simples. E a gente faz isso promovendo intercâmbio e
promovendo trabalhos de gestão em um time. Como intercambista ou como
membro de um time tu te desenvolve né? Então mais ou menos assim que eu
explico, a gente tem diversos projetos, e todos os projetos tem esse intuito de
melhorar o mundo, e eu tô de acordo com isso, sabe? Acho que se a gente tiver
líderes melhores, a gente vai ter um mundo melhor. (Mulher, 24 anos,
coordenadora, 3 anos na AIESEC).
O desenvolvimento que a AIESEC propicia para os seus membros é sempre
visto como potencialmente benéfico para a sociedade, se tornando obrigação do
membro da AIESEC colocá-lo “a serviço do mundo” como ilustra o trecho abaixo
originado de uma pergunta referente às expectativas profissionais para o futuro:
Então eu quero criar ambientes ou negócios que estimulem as pessoas a pensar.
Será que o melhor jeito de tomar um cafézinho é numa cafeteria? Será que
existem outras formas? Será que a melhor forma de se transportar é por estrada
ou existem outras formas de se transportar? Eu quero utilizar muito a minha
capacidade de resolver problemas pra colocar a serviço do mundo. Isso aqui é
assim hoje, mas como pode ser melhor? Como pode ser mais eficiente? Gerar
mais emprego, dar mais oportunidades pras pessoas, fazer com que elas voltem
mais satisfeitas pra casa e felizes com o que elas fazem. (Homem, 27 anos, expresidente, 5 anos na AIESEC)
O extrato anterior é emblemático de muitos aspectos do desenvolvimento da
AIESEC e a relação que o membro estipula para colocá-los a serviço da melhoria do
mundo. Como podemos observar, existe na motivação desse ator a necessidade de
fazer “as pessoas pensarem” de uma outra forma39, elevando-as e conferindo
sentido ao seus trabalhos: “fazendo com que elas voltem mais satisfeitas pra casa”.
Dessa forma, a sociedade também sai engrandecida possuindo a sua disposição
pessoas mais satisfeitas e dispostas a colocarem suas habilidades extraordinárias “a
serviço do mundo”.
Portanto, assim como na tipologia das cités apresentada por Boltanski &
Chiappelo (1991), onde um dos constrangimentos que pesa sob o modelo específico
de cada configuração ideológica (cité) é a exigência do caráter benevolente da
natureza da qualidade dos “grandes”, no nosso universo empírico à entrega ao
trabalho também é justificada em prol do bem-comum.
Por isso – acreditamos possível a inferência – a ênfase no capital de experiências que alarga as
visões e permite que o indivíduo encontre soluções e saídas brilhantes (e alternativas) baseadas na
criatividade de quem, ainda que jovem, possui a experiência de um homem-camaleão, nômade
permanentemente aberto ao novo e ao desconhecido.
39
Faz parte do argumento dos autores que, decorrente do vazio moral que
caracteriza o Capitalismo40, ele estabelece sempre uma relação dialética com a
crítica, absorvendo dela elementos que permitem um desenvolvimento das suas
provas de justiça com o intuito de satisfazer a exigência moral da construção do
bem-comum, que ele diz estar sempre a serviço (BOLTANSKI & CHIAPPELO,1999:
78).
A elucidação da crença dos atores na cadeia causal que liga “a melhoria dos
indivíduos a partir da adesão aos valores da cité par projets” com a consequente
“melhoria da sociedade e do mundo” parece ser o fundamento que legitima a adesão
dos atores na justificação “por projetos”. Desse modo, eles passam a acreditar nela
como sendo, efetivamente, um vetor para a construção de um mundo melhor, o que
permite que ela seja utilizada em outras esferas da vida e não só apenas no trabalho
voluntário que desempenham na AIESEC.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA ORDEM DE JUSTIFICAÇÃO À GRAMÁTICA
O objetivo deste estudo foi o de compreender com mais profundidade a
maneira específica pela qual a AIESEC reflete as transformações recentes no
mundo do trabalho e como os seus membros tomam para si os valores da cité par
projets fazendo deles não apenas um aporte para justificar o seu engajamento na
Organização, mas levando-os também para outras dimensões da vida além do
trabalho. Nesses termos, o que no âmbito do trabalho na AIESEC parece constituir
um ideal de “bom trabalho” – em consonância com a atual ordem de justificação do
capitalismo - torna-se uma gramática geral (LEMIEUX, 2009), nos termos que o
autor concede ao conceito, ou seja, de um conjunto de regras a seguir, tidas como
corretas do ponto de vista do “saber agir”. Assim, essa gramática serve de substrato
segundo o qual os atores passam a pensar os seus planos pessoais, os seus
relacionamentos, os seus investimentos escolares e as suas ambições para o futuro.
Para dar conta desse objetivo, tomamos emprestado da literatura sociológica
as categorias: “saber ser” e “saber fazer” e adicionamos ainda uma terceira: “saber
explicar”, que, no âmbito desse trabalho, são compreendidas como categorias que
40
Lembramos da definição mínima utilizada pelos autores no objetivo de sublinhar a pobreza
axiológica do capitalismo e a consequente necessidade de uma “moral” que justifique o engajamento
na esfera produtiva: “um sistema de acumulação ilimitada de capitais por meios formalmente
pacíficos” (Boltanski & Chiappelo, 1999).
possibilitam analisar como se dá a adesão dos indivíduos aos valores se tornaram
palavras de ordem da atual configuração moral do “bom trabalho” no contexto do
capitalismo por projetos.
No plano do “saber ser”, percebemos que o membro da AIESEC, tal como o
manager, se constitui em um indivíduo faminto de autoconhecimento e,
consequentemente, empresário de si mesmo (LÓPEZ-RUIZ, 2009) que vai buscar
nas vivências oferecidas pela AIESEC uma plataforma de desenvolvimento de
competências. Dessa
forma,
a
partir
desse
objetivo
de
desenvolver
as
potencialidades dos seus membros, os líderes da AIESEC são peça fundamental, tal
como os coachs que atuam como psicólogos a serviço da firma (BOLTANSKI &
CHIAPELLO, 1999: 127) pois são eles os atores que irão guiar o autoconhecimento
dos membros que, em um primeiro momento, irão tomar consciência de si para,
posteriormente, perseguir do desenvolvimento das suas potencialidades.
Já no “saber fazer”, são explicitados certos valores ligados mais diretamente
com o métier do membro da AIESEC. Esse conjunto de “técnicas” vimos que são
levadas a cabo pelos atores no cotidiano do trabalho na Organização, mas também
no âmbito da sua vida pessoal, fazendo do “saber fazer” que caracteriza o trabalho
na Organização, uma gramática geral que confere sentido às práticas ligadas a
outras esferas da vida e transforma a presença em “projetos” de curta duração um
imperativo.
Por fim, no plano do “saber explicar” vimos a maneira pela qual os membros
da AIESEC aderem à justificação por projetos e explicam a razão pela qual
engajam-se (e permanecem) na Organização. Dessa forma, nota-se a construção de
uma relação causal que liga a formação de indivíduos portadores dos valores da cité
par projets com a construção de uma sociedade melhor. Vive-se, portanto, a ideia de
que, forjando indivíduos com capacidade de liderança, empreendedores de si,
flexíveis, adaptáveis, com visão de mundo (ou seja, indivíduos que reúnam em si as
competências que a AIESEC visa a rebentar nos seus membros), a Organização
age em prol do bem-comum ao entregar à sociedade jovens lideranças que irão se
constituir enquanto agentes de mudança e, consequentemente, meio para se chegar
à paz mundial.
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ID 386
A AGRICULTURA
FAMILIAR
COMO
FORMA
ALTERNATIVA
DE
ORGANIZAÇÃO
DO
TRABALHO: UMA RESENHA
Tatiana Losano de Abreu
Ivan Targino Moreira
RESUMO
Diante dos dilemas em torno da inserção capitalista no campo, visualiza-se a
tendência de expropriação dos meios de produção e proletarização do camponês.
Mas, é evidente a permanência de formas alternativas de produção no campo, como
a baseada no trabalho da família. Pretende-se, nesse artigo, fazer um resgate da
discussão acerca da permanência ou extinção do campesinato nas formações
sociais capitalistas. Para tanto, foram destacadas as contribuições de autores
clássicos que versaram sobre a penetração do capitalismo na agricultura, bem como
algumas contribuições de autores brasileiros sobre a problemática. Concluiu-se que
o processo de inserção capitalista no campo brasileiro, apesar de distinto da
realidade vivenciada pelos autores clássicos, pode ser compreendido a partir dos
pressupostos teóricos desenvolvidos por Marx e seus adeptos ortodoxos e
heterodoxos, já que demonstraram o caráter contraditório do desenvolvimento
capitalista. A agricultura familiar, apesar de inserida no processo de acumulação de
capital, não está inteiramente a ele subordinada, guardando uma relativa autonomia.
As formas variadas de resistência da agricultura camponesa de base familiar, a
partir das diversas articulações entre essa forma de produção e a economia
capitalista, tornam este tema relevante para uma melhor compreensão da realidade
que ainda envolve um número significativo de trabalhadores.
Palavras-Chave: Agricultura familiar. Teoria marxista. Chayanov. Desenvolvimento
capitalista. Trabalho rural.
Abstract
Facing the dilemmas surrounding the capitalist insertion in the field, we can see the
trend of expropriation of the means of production and proletarianisation of peasant.
But it is evident the permanence of alternative forms of production in the field, as
based on the work of the family. It is intended, in this article, make a rescue of
discussion about the permanence or extinction of the peasantry in capitalist social
formations. Thus, we highlighted the contribution of classical authors about the
penetration of capitalism in agriculture, and some contributions from Brazilian authors
on the issue. It was concluded that the process of capitalist integration in the
Brazilian countryside, although distinct from the reality experienced by the classical
authors, can be understood from the theoretical assumptions developed by Marx and
his followers orthodox and heterodox, since it demonstrated the contradictory
character of capitalist development. Family farming, although within the process of
capital accumulation, is not entirely under it, keeping a relative autonomy. The varied
resistance of peasant farming family based, from the various links between this form
of production and the capitalist economy make this topic relevant to a better
understanding of the reality that still involves a significant number of workers.
Keywords: Agriculture family. Marxist theory. Chayanov. Capitalist development.
Rural labor.
1. INTRODUÇÃO
O debate sobre a penetração do capitalismo na agricultura contém vários
dilemas e polêmicas. Muitas formulações teóricas sobre este tema foram
incentivadas pela realidade da Europa no final do século XIX, momento em que
alguns autores desenvolveram teorias de comprovada relevância para este debate,
como as formulações de Kautsky (1972), de Rosa Luxemburgo (1976) e de Lênin
(1985), à luz do arcabouço marxiano. Acrescenta-se a esse elenco, a contribuição
de Chayanov (1981), como uma interpretação que absorve elementos tanto da teoria
neoclássica quanto do marxismo. Sem abstrair suas diferenciações, cabe aqui
ressaltar um ponto em comum: esses autores não tinham dúvidas de que o
desenvolvimento capitalista no campo não se daria (e não se dá) de forma tranquila
e que resultaria em mudanças no modo de vida camponês, ao ponto de suscitar
numa forma alternativa de organização do trabalho no campo, baseada na
agricultura familiar.
Essa discussão também encontrou lugar no Brasil. Para Abramovay (1994,
1998), Silva (1980, 1996), Lamarche (1993), Wanderley (1996; 2003) e Schneider
(2003, 2006), Paulino (2006, 2010), dentre outros, o debate em torno da agricultura
familiar versus campesinato traduz as implicações da penetração do capitalismo no
campo para a realidade brasileira.
O entendimento do termo “agricultura familiar” passa a ter maior relevância
no Brasil somente na década de 90, devido às pressões exercidas pelos
movimentos sociais do campo, principalmente, com a criação do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, em 1996 e, com ele, a cobrança
por políticas específicas para essa categoria de trabalhadores ainda abundante no
Brasil (SCHNEIDER, 2003). Desde então, o debate em torno desta temática também
se acirra no âmbito acadêmico, tendo em vista o papel desempenhado por essa
forma de organização da produção no contexto da economia brasileira. Com efeito,
no Brasil, 84,4% dos estabelecimentos agropecuários foram identificados, pelo
Censo Agropecuário de 2006, como de agricultura familiar, ocupando apenas 24,3%
de área, equivalente a 80,25 milhões de hectares, e sendo responsável por um terço
das receitas dos estabelecimentos agropecuários brasileiros.
Segundo a Lei de Agricultura Familiar (Lei n° 11.322, de 24 de julho de
2006), o agricultor familiar é aquele que pratica atividades no meio rural e que
atende a diversos requisitos como: não possuir área maior do que quatro módulos
fiscais; utilizar predominantemente mão de obra da própria família; ter renda familiar
predominantemente originada de atividades vinculadas ao seu estabelecimento; e
administrar seu estabelecimento com sua família (IBGE, 2009).
Abramovay (1998) considera o agricultor familiar como um resíduo formado
a partir das famílias camponesas tradicionais, e fruto da mudança de paradigmas
que o capitalismo trouxe no campo. Apesar desta ascendência, gerou-se uma
identidade nova, com uma diferente racionalidade. Wanderley (2003) interpreta essa
nova racionalidade, não como uma ruptura total com o passado, mas como uma
identidade construída de forma dialética, de modo que é possível encontrar
resquícios do camponês tradicional no modo de vida e de organização do trabalho
do agricultor familiar.
Lamarche resgata um conceito simples de agricultura familiar, como “uma
unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente
ligados à família” (1993, p. 15). Na realidade, o autor se preocupou em identificar a
lógica de organização da agricultura familiar e constatou grande diversidade de
formas produtivas do agricultor familiar brasileiro, mas todas as formas tinham uma
característica em comum: a articulação entre produção, trabalho e família.
A existência de formas alternativas de produção, mesmo diante da tendência
da expropriação do agricultor dos meios de produção e proletarização do trabalhador
rural, é um fenômeno que merece análise, assim como a forma que esta estrutura
produtiva se submete à produção capitalista. O presente artigo busca fazer o resgate
da discussão a cerca do agricultor familiar, de modo a possibilitar um maior
entendimento a respeito dessa forma alternativa de organização do trabalho. Para
tanto, será exposta a contribuição de autores clássicos sobre a penetração do
capitalismo na agricultura e as consequências para a população camponesa, bem
como a contribuição de autores brasileiros contemporâneos.
2. AS
CONSEQUÊNCIAS DA PENETRAÇÃO DO CAPITALISMO NO CAMPO NA VISÃO DE
MARX
Na obra “O Capital”, Marx analisou o funcionamento do modo de produção
capitalista. Ele procurou explicar as forças que interagem neste modo de produção e
teorizou, sobretudo, acerca da relação entre capital e trabalho e as contradições
oriundas desta interação. Formulações sobre campesinato estão diluídas de forma
secundária nesta e em suas outras obras, e devem ser interpretadas levando em
consideração o contexto histórico e econômico vivido pelo autor durante o processo
de sua elaboração teórica: a Europa Ocidental do século XIX, quando o capitalismo
estava se consolidando após a revolução industrial.
Não se pode negar, entretanto, que Marx (2009) desenvolveu formulações
importantes para a discussão sobre o campesinato. Utilizando-se do materialismo
histórico dialético, este autor não poderia considerar esta discussão como isolada no
tempo e espaço, buscando trazer aspectos históricos para discutir o distanciamento
entre o camponês e a terra, além da separação entre campo e cidade, processos
integrados em uma discussão mais ampla: a relação entre o homem e a natureza
com o desenvolvimento do modo de produção capitalista.
Marx é tido por alguns autores, no campo de estudo das questões agrárias,
como aquele que preconizou o fim do campesinato com o desenvolvimento do
sistema capitalista, já que para esse autor:
A separação entre o produto do trabalho e o próprio trabalho, entre
as condições objetivas do trabalho e a força subjetiva do trabalho, é,
portanto, o fundamento efetivo, o ponto de partida do processo de
produção capitalista (MARX, 2009, p. 665).
Esta ideia é evidente na leitura de vários trechos de “O Capital”, em
específico, quando discute a acumulação primitiva de capital, no capítulo XXIV
dessa obra. Para ele, “A expropriação do produtor rural, do camponês, que fica
assim privado de suas terras, constitui a base de todo o processo” (MARX, 2009, p.
829).
Esse autor admite que a história da expropriação dos produtores agrícolas
de seus meios de produção, a transformação da propriedade privada pessoal em
propriedade privada capitalista, assume formas diferentes nos diversos países,
percorrendo fases distintas e em épocas históricas diferentes. Para exemplificar,
Marx (2009) desenvolveu os aspectos da expropriação camponesa clássica,
ocorrida na Inglaterra entre os séculos XV e XVIII, acontecimento histórico que
resultou no surgimento da propriedade privada capitalista, a partir da negação da
propriedade individual.
No século XVIII, intensifica-se o processo de abolição das relações de
produção feudais e o desenvolvimento do capitalismo industrial, ou seja, o
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção capitalistas:
Parte dos habitantes rurais se torna disponível e se desvincula dos
meios de subsistência com que se abastecia. Esses meios se
transformaram então em elementos materiais do capital variável. Os
camponeses expulsos das lavouras têm de comprar o valor desses
meios, sob a forma de salário, a seu novo senhor, o capitalista
industrial; O que sucede com os meios de subsistência, ocorre com
as matérias-primas que a agricultura indígena fornece à indústria.
Elas se transformaram em elemento do capital constante (MARX,
1985, p. 863).
Sem condições de garantir a subsistência no campo, os trabalhadores rurais
vão buscar nas cidades a solução de seus problemas, tornando-se parte do exército
industrial de reserva, rebaixado ao nível mínimo de salário, podendo chegar ao
pauperismo.
A decadência do trabalhador agrícola, constatada por Marx, reside no fato
da economia camponesa ser, por definição, uma economia mercantil, representada
pela circulação simples de mercadorias cujo objetivo final é a satisfação das
necessidades e não a geração de mais-valia. Como a produção mercantil simples
não é a dominante no modo de produção capitalista, ela pode estar presente em
certas sociedades, mas de forma subordinada e fragilizada, na medida em que sofre
grande influência do sistema econômico global e, por isso, apresenta uma forte
tendência de desintegração.
A ideia de transformação das relações sociais não capitalistas em relações
tipicamente capitalistas ou, em outras palavras, a concepção aparentemente
“engessada” de Marx em relação à transformação do camponês em proletariado
recebe diferentes significados nos Grundrisse.
No decorrer de sua vida intelectual, Marx registrou extratos, comentários,
notas,
testemunhos
e
desenvolvimentos
preliminares
de
sua
crítica
que
permaneceram inéditos por um grande período de tempo. Esses escritos foram
completados em 1858 e disponibilizados apenas em 1934, mas, antes disso
serviram de base teórica para “O Capital”, mesmo que de forma parcial. Nos
Grundrisse (2011), Marx apresenta concepções multifacetadas sobre o tema
campesinato. Nesta obra, Marx preconiza uma visão multilinear do desenvolvimento
do capitalismo, admitindo a permanência de relações sociais de produção não
capitalistas que, entretanto, contribuem para a acumulação de capital. Sobre a
importância dessa obra, afirma Mario Duayer, na apresentação da obra publicada
em português (apud MARX, 2011).
Os Grundrisse são o único trabalho em que a teoria do capitalismo,
da gênese ao colapso, foi delineado por Marx em sua totalidade.
Pode-se dizer que constituem a única obra completa de economia
política escrita por ele, não importa se obscura e desordenada (p.
17).
Deve-se lembrar, no entanto, que mesmo em O Capital, Marx já sinaliza que
o capital se apodera dos espaços econômicos de forma fragmentária, possibilitando
até mesmo a persistência e a recriação de formas não tipicamente capitalistas de
produção (MARX, 2009).
Diante da completude das obras de Karl Marx, seu arcabouço teórico e seu
método de análise serviram de inspiração para outros autores, como Kautsky, Lênin
e Rosa Luxemburgo, conhecidos teóricos marxistas, e Chayanov, que irá se afastar
das concepções marxistas ortodoxas.
2.1 O CAMPESINATO SEGUNDO KAUTSKY
Diante das transformações ocorridas no campo no século XIX, Karl Kautsky
publicou em 1899 “A Questão Agrária”, buscando discutir a inserção do capitalismo
nas atividades agrícolas.
Considerando inevitável a industrialização da agricultura, o autor aponta
para a tendência de diminuição da pequena propriedade, com seu possível
desaparecimento, visto a desvantagem de competição com a grande propriedade
que, segundo ele, apresenta superioridade técnica.
Para Kautsky, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais se diferenciam
as técnicas e formas de organização da grande e da pequena exploração. O
momento específico que culminou nesta diferenciação foi quando a servidão feudal
desapareceu, o proprietário fundiário se tornou livre proprietário de suas terras e
passou a cultivar de acordo com seus planos. A partir disso, foram se
desenvolvendo as grandes propriedades que passam a ser mais produtivas que as
pequenas. “A pequena exploração gasta mais para obter o mesmo efeito útil e não
pode tirar o mesmo lucro que a grande exploração.” (KAUTSKY, 1972, p. 134).
De qualquer modo, como o avanço no capitalismo no campo é interrupto e
culmina na integração agricultura-indústria a partir da dissolução da indústria
doméstica, a consequência é o envolvimento do camponês no sistema capitalista
através da sua transformação em trabalhador assalariado no mercado ou agricultor
voltado à produção do mercado.
Em face dessa tendência de desagregação do campesinato, Kautsky (1972)
vislumbra duas possibilidades para a sua sobrevivência:
a) A organização de cooperativas por parte dos camponeses, que seria uma
forma de se tornarem grandes e poderem competir com a grande propriedade rural.
A organização dos camponesesem cooperativas seria uma forma de terem mais
acesso ao crédito e ao comércio. O autor lembra, no entanto, que mesmo essa
alternativa é limitada, pois é muito mais fácil para os grandes proprietários se
organizarem em cooperativas do que os camponeses.
E mais uma vez encontramos aqui, tal como nos outros progressos
agrícolas, a grande exploração a marchar à frente. A cooperação
tornou-se indispensável para o camponês, mas, na maior parte dos
casos, não como um meio de reunir as suas pequenas forças num
esforço comum equivalente ao do grande proprietário fundiário, mas
antes como um meio de não deixar nas mãos dos grandes
proprietários as vantagens que a cooperação proporciona a cada
participante e de obter também uma parte dessas vantagens
(KAUTSKY, 1972, p. 163).
b) O suporte do Estado, através de subsídios à produção e garantia de
mercado para a produção camponesa, tendo em vista a importância social desse
contingente de trabalhadores.
É diante desta constatação que Kautsky (1972) defende a tendência do
desaparecimento da pequena propriedade privada diante da evolução do modo
capitalista na agricultura, mesmo reconhecendo a sua importância até mesmo como
fornecedor de matéria-prima à indústria e como mão de obra assalariada nos
momentos de necessidade.
2.2 LÊNIN E o processo de penetração capitalista na agricultura
Lênin, em “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia", publicado em
1899, procurou analisar, inclusive com o uso de dados estatísticos dos zemstvos, as
consequências do avanço capitalista em uma realidade econômica que ainda
apresentava fortes laços feudais, como no caso da Rússia no final do século XIX. A
partir desta análise, ele previa um forte processo expropriação e destruição do
campesinato.
O autor destaca a importância de estudar a base sobre a qual se forma o
mercado interno capitalista, o que significa analisar o processo de decomposição
dos pequenos agricultores em patrões e em operários agrícolas. Para ele, a situação
econômica do campesinato russo é de caráter mercantil, onde o camponês está
subordinado ao mercado. Sendo uma economia mercantil, observam-se todas as
características inerentes a ela: a concorrência, a luta pela independência econômica,
a mercantilização da terra, a concentração da produção, a proletarização da maioria.
Assim, quanto mais a produção mercantil penetra a agricultura,
quanto mais se agudiza a concorrência entre os agricultores, a
disputa pela terra, a luta pela independência econômica, tanto maior
é o vigor com que deve manifestar-se essa lei, que conduz à evicção
pobre e médio pela burguesia camponesa (LÊNIN, 1985, p. 39 e 40).
A contradição existente no interior do campesinato resulta na sua própria
desintegração através da destruição do campesinato patriarcal e a criação de uma
população rural de novo caráter, que constituirá a base de uma sociedade dominada
pela economia mercantil e pela produção capitalista.
O processo de descamponização, como é chamado pelo autor, reside na
constituição de dois tipos essenciais de população rural: a burguesia rural, ou
campesinato rico, e o proletariado rural. Aburguesia rural associa a agricultura
comercial com empresas industriais e o comércio. O proletariado rural é a classe dos
operários assalariados que podem tanto possuírem um lote comunitário, como não
possuir
nenhuma
terra.
Suas
características
são:
possuir
(normalmente)
estabelecimentos de extensão ínfima e em total decadência; não podem sobreviver
sem vender a sua força de trabalho. Seu nível de vida é extremamente baixo.
Vale destacar que o proletário rural, segundo esta análise, é definido não
pela perca da posse da terra, mas pela necessidade de se proletarizar. Assim como
não existe capitalista sem proletário, não é possível a existência da burguesia rural
dissociada do proletariado rural.
Na maioria dos casos, as dimensões da exploração estão acima das
possibilidades da força de trabalho da família, por isso, a formação
de um contingente de operários agrícolas e, ainda mais, de diaristas,
é condição indispensável da existência do campesinato rico (LÊNIN,
1985, p. 115).
O elo entre esses dois tipos de população rural é o campesinato médio que
transita entre a classe da burguesia rural e do proletariado rural e que, sob a
economia mercantil, é o grupo menos desenvolvido. A tendência dessa população é
clara para Lênin (1985). A forte dependência de condições favoráveis à produção
torna o trabalho agrícola do campesinato médio muito instável, logo, a consequência
provável é procurar renda suplementar através da venda da força de trabalho.
“Assim ocorre um fenômeno especificamente próprio da economia capitalista: a
eliminação dos camponeses médios e a intensificação dos extremos – a
descamponização” (LÊNIN, 1985, p. 118).
Mas, o autor ainda admite a existência de várias formas do capitalismo
penetrar na agricultura e que esse processo se dá de forma lenta, já que vários
fatores podem retardar esse processo, como a presença da servidão, da usura e do
pagamento em trabalho.
2.3 A importância das formações camponesas no capitalismo para Rosa
Luxemburgo
Rosa Luxemburgo, em “A acumulação de capital”, procurou analisar as
formulações marxistas em relação, principalmente, ao processo de reprodução do
capital para defender a existência necessária de formas não capitalistas de
produção. Dialogando com os esquemas de reprodução simples e ampliada do
capital, desenvolvidos por Marx no volume II de O Capital, a autora defende a tese
de que estas formulações estavam inacabadas, de modo que ainda existiam
espaços vazios na teoria da mais-valia de Marx (CORREIA, 2011), que precisavam
ser mais bem teorizados. Embora concordasse com o pensamento marxista de
Lênin e Kautsky em relação à expropriação camponesa como resultado do
desenvolvimento capitalista, o problema principal do pensamento marxista, segundo
ela, estava na consideração da existência de uma realidade material na qual
dominasse exclusivamente a produção capitalista.
O que Marx adotou como hipótese de seu esquema de acumulação
corresponde, portanto, somente à tendência histórica e objetiva do
movimento acumulativo e ao respectivo resultado teórico final. O
processo de acumulação tende sempre a substituir, onde quer que
seja, a economia natural pela economia mercantil simples, e esta
pela economia capitalista, levando a produção capitalista – como
modo único e exclusivo de produção – domínio absoluto em todos os
países e ramos produtivos. E é nesse ponto que começa o impasse.
(LUXEMBURGO, apud CORREIA, 2011, p. 68).
A tese de Rosa Luxemburgo (1976) consiste na inexistência de uma
sociedade homogeneizada com a dominação exclusiva do capital, mas sim na
coexistência de sociedades capitalistas com sociedades não capitalistas, cuja
existência favoreça a acumulação de capital. Sua argumentação tem por base a
impossibilidade de realização de todo o valor existente após a reprodução ampliada
do capital no esquema desenvolvido por Marx. Como capital não gera mercado para
seus produtos, a efetiva acumulação, ou seja, a realização da reprodução ampliada
do capital só é possível com a garantia de uma demanda solvente, além da
demanda real pelas novas e cada vez mais abundantes mercadorias. Serão as
sociedades não capitalistas as demandantes das mercadorias produzidas,
garantindo maiores incentivos para o aumento da produção a partir da crescente
demanda por produtos (demanda solvente)41.
Mas, a importância dos agentes econômicos não capitalistas não reside
apenas na possibilidade de realização da mais-valia. A hipótese essencial do
esquema marxista de acumulação, baseada na consideração de que todos os meios
de produção e consumo são elaborados exclusivamente na produção capitalista,
não correspondia com a realidade observada por Rosa Luxemburgo (1976), muito
menos com a história e o caráter do capital.
A produção capitalista, como tal, no final de vários séculos de
desenvolvimento, só compreende uma pequena parte da produção
mundial (estabeleceu-se, até agora, preferencialmente na pequena
Europa, onde ainda não conseguiu dominar esferas completas, como
a agricultura, o artesanato independente; grandes regiões da
América do Norte e das demais partes do mundo estão também
ainda intocadas). Em geral, a forma de produção capitalista encontrase limitada, até agora, principalmente aos países da zona temperada,
enquanto, por exemplo, no Oriente e no Sul, verificam-se apenas
pequenos progressos. Por conseguinte, se a produção capitalista se
restringisse aos elementos da produção fornecidos dentro desses
estreitos limites ter-lhe-ia sido impossível chegar a seu nível atual e
não teria conseguido desenvolver-se (...) em seu impulso para a
apropriação das forças produtivas para fins de exploração, o capital
recorre ao mundo inteiro; tira os meios de produção de todos os
cantos da terra, colhendo-os ou adquirindo-os de todos os graus de
culturas e formas sociais (LUXEMBURGO, 1976, p. 307).
A existência de formas não capitalistas de produção é, portanto, resultado de
dois fatores: a não inserção do capitalismo em todos os espaços; e a própria
necessidade do capital que acaba recriando de forma contraditória essa camada de
potenciais consumidores de mercadorias e de potencial exército industrial de
reserva.
Em suma, na interpretação de Rosa Luxemburgo (1985), o
desenvolvimento do capitalismo no campo não significa
necessariamente a destruição do campesinato, dado ao fato que o
papel do camponês neste processo é o de um trabalhador para o
capital, por ser ele o responsável pela reprodução da mais-valia
capitalista. Por isso, para o capital se desenvolver, faz-se necessário
41
Diante do mesmo raciocínio, a autora desenvolveu uma diferente interpretação da origem das crises
econômicas, como fruto da interrupção do processo de acumulação a partir da incapacidade do mercado externo
de realizar todo o valor produzido pela reprodução ampliada do capital. Na verdade, a autora confunde a forma
de manifestação da crise como seu conteúdo.
à dissolução e a recriação do campesinato para completar o seu ciclo
produtivo (CORREIA, 2011, p. 68).
2.4 O CAMPESINATO SEGUNDO CHAYANOV
A partir do entendimento das economias familiares russas do início do
século XX, Alexandre Chayanov desenvolveu a obra “A Organização da Unidade
Camponesa”, publicada em 1925. Esta obra se destaca diante de outras
interpretações sobre esta temática, já que, fugindo do entendimento marxista
ortodoxo, Chayanov desenvolve uma teoria que preconiza a existência de outro
modo de produção inserido na formação social capitalista42. E, longe de entender
esta existência como um problema, o autor destacava a tendência do aumento de
unidades econômicas familiares como consequências do avanço capitalista.
A esfera da produção agrária é um exemplo claro de formação não
capitalista. “Esta unidade tem motivações muito específicas para a atividade
econômica, bem como uma concepção específica de lucratividade” (CHAYANOV,
1981, p. 134). Deste modo, ele propôs o estudo da distribuição dos recursos (terra,
trabalho e capital) no interior das unidades camponesas a fim de enfatizar as suas
particularidades e constatar a racionalidade singular dos camponeses.
A organização social capitalista é definida pela íntima relação entre as
seguintes categorias: salário (remuneração do trabalho); renda (remuneração pelo
uso da terra); Juros (remuneração pelo uso do capital constante); o lucro (a
diferença entre receita e custo); e preço (valor das mercadorias no mercado). O
sistema de unidades de trabalho familiar camponesa e artesanal, já que serão
unidas por processos monetários de troca, apresentarão as categorias preço e
capital, entretanto, a categoria salário estará ausente.
O resultado do ano de trabalho de um camponês ou artesão que dirige sua
empresa sem trabalho pago é o “produto do seu trabalho”, considerado pelo autor
como uma categoria específica desta forma de organização. Com a ausência da
categoria salário, o fenômeno social de lucro líquido também esta ausente e a lógica
que guia as decisões de produção é diferente.
Na estrutura produtiva agrária, a maior parte da esfera da produção baseiase numa forma não capitalista, em forma de unidade econômica familiar não
42
No contexto das ciências sociais, suas ideias foram representantes do pensamento neo-populista (GERARD e
SALMONI, 1994).
assalariada, onde as decisões são baseadas nas necessidades de cada unidade
familiar de produção. As necessidades consideradas são de ordem tanto biológica
(alimentação
e
vestuário),
como
também
aquelas
impostas
social
ou
economicamente,
Estas últimas são reflexos da sua integração ao circuito da economia
mercantil e, nesse casso, a aquisição de bens duráveis (maquinaria
agrícola, eletrodomésticos, automóvel…) e o pagamento de encargos
públicos (taxas, impostos…) passam a fazer parte do consumo
familiar (GERARD e SALMONI, p. 3, 1994).
Aqui, as unidades de produção e de consumo são as mesmas, então, o
limite da produção, ou, de outro modo, o grau de autoexploração, é determinado
pelo equilíbrio entre a satisfação da demanda familiar e a penosidade do trabalho. A
determinação deste equilíbrio se dá de forma subjetiva, já que leva em consideração
forças internas, em contraposição às forças do mercado, como a fertilidade da terra,
o tamanho da família que deve ser sustentada por essa produção e a parte da
família apta ao trabalho. Ou seja, a família define o máximo e o mínimo da atividade
econômica da unidade.
Chayanov (1981) destaca que a intensidade do cultivo e suas formas
organizativas dependem da relação entre a extensão e qualidade da terra em
comparação com a extensão das necessidades da família, fortemente influenciadas
pela densidade populacional. “A densidade populacional e as formas de utilização da
terra tornam-se assim fatores sociais extremamente importantes, que determinam
fundamentalmente o sistema econômico (...) além do padrão de vida tradicional”
(CHAYANOV, 1981, p. 145).
Assim, o aumento da família de um camponês afeta a balança que guia as
decisões da unidade familiar, tornando necessário o aumento da produção via
intensificação da utilização da terra ou a compra de outra terra para evitar a
inatividade forçada43. No caso extremo, a família terá que completar a renda
disponibilizando sua força de trabalho para exploração capitalista.
Mesmo com possibilidade de o trabalho assalariado estar presente nas
unidades familiares, não significaria, para o autor, a transformação do caráter da
produção para a forma capitalista, já que a presença do trabalho assalariado adquire
caráter subordinado à lógica da produção camponesa. “A presença da categoria
salário modifica um pouco o conteúdo das categorias usuais de exploração familiar,
43
Existe força de trabalho da família camponesa disposta ao trabalho, mas ausência de terra.
mas não chega a substituí-las pelas categorias de uma exploração capitalista”
(CHAYANOV, 1981, p. 156).
A lógica diferente da agricultura camponesa, em relação à capitalista, explica
a permanência do camponês mesmo em situações consideradas, do ponto de vista
capitalista, irracional. “Deste modo, a lógica da análise marginalista é inaplicável, já
que para o camponês a noção de utilidade marginal decrescente do trabalho se
defronta com a noção de satisfação de suas necessidades” (PONTES, 2005, p. 36).
Assim, a partir do entendimento de categorias diferentes em relação às
apresentadas pelo sistema capitalista, o autor classifica a unidade econômica
camponesa como não capitalista.
Por fim, Chayanov (1981), apesar de não vislumbrar o desaparecimento dos
camponeses,
como
explicado
anteriormente,
não
nega
o
processo
de
industrialização agrícola em grande escala, considerando as cooperativas coletivas
como alternativas para a exploração camponesa diante este fenômeno.
3. AS ABORDAGENS DOS TEÓRICOS DA ECONOMIA CAMPONESA
Estudos desenvolvidos à luz da discussão clássica, exposta anteriormente,
buscam, além de discorrer sobre as contradições entre as teorias até então
desenvolvidas e a realidade observada, dialogar sobre as transformações que o
campesinato sofreu e continua a sofrer com a expansão das relações capitalistas.
De fato, tanto os adeptos ao marxismo ortodoxo, quanto os que acreditam
na existência do modo de produção camponês, admitem que a existência de
relações camponesas nasformações sociais capitalistasnão se dá de forma tranquila
e transformações da identidade camponesa são inevitáveis.
No capitalismo, a integração crescente dos camponeses ao mercado
subverte os elementos constitutivos da produção familiar, e elimina o
balanço entre o trabalho e o consumo como fator determinante das
decisões econômicas, que se concentram cada vez mais na
agroindústria, seja ela capitalista ou cooperativa (ABRAMOVAY,
1998, p. 77).
Na década de 1960, deu-se a constituição dos Complexos Agroindustriais
(CAIs) no Brasil, com um novo padrão agrícola, orientado fundamentalmente para a
o incremento da produção através do aumento da produtividade. A produção
tradicional não é imediatamente substituída, mas muda seu caráter diante da
necessidade de expandir o complexo agroindustrial, com a ajuda da intervenção
estatal. Este constitui o processo de modernização agrícola brasileiro, que se
intensifica entre a década de 70 e 90, alterando o mercado de trabalho agrícola e
tornando a produção agropecuária subordinada aos interesses da cadeia produtiva
como um todo.
Para Silva (1996), a modernização no campo brasileiro se dá de forma
desigual e lenta. Ela repõe e redefine formas aparentemente já superadas de
produção, garantindo o processo de proletarização e de recriação de produtores
familiares. Estes últimos, na medida em que se integram no CAIs, se tecnificam
crescentemente e se imobilizam através de contratos que garantem certa
estabilidade. “Essa aparente estabilidade da pequena produção é na verdade a face
aparente de uma constante recriação/destruição de inúmeros pequenos produtores”
(SILVA, 1996, p. 174).
São também evidentes, para Lamarche (1993), as transformações que a
exploração familiar passou nas últimas décadas, afetada pelo caráter conservador
da modernização agrícola. Uma grande parcela da ‘pequena produção’ foi excluída
deste processo e acabou conservando características tradicionais, como a
dependência sobre a grande propriedade, a precariedade do acesso aos meios de
trabalho, a pobreza e a extrema mobilidade espacial.
Oliveira (1997) defende que o processo contraditório de criação e recriação
da unidade familiar é inerente do desenvolvimento capitalista no Brasil. Ou seja, o
avanço contraditório do trabalho familiar é consequência do avanço das relações de
trabalho especificamente capitalistas. Nesta concepção, o próprio capital pode
lançar mão de relações de trabalho e de produção não capitalistas para reproduzir e
valorizar o capital.
O fazendeiro, ao invés de destinar uma parte de seu capital para
realizar a tarefa de refazer o pasto, arrenda a terra a camponeses
sem-terra ou com pouca terra na região, para que eles façam o
trabalho por ele. Esse arrendamento pode ser de várias formas, entre
elas a de dividir parte da produção obtida no solo durante uma
colheita de algodão, amendoim, milho etc. O fazendeiro entra com a
terra e por isso recebe (...) uma porcentagem previamente
estipulada. Também pode cobrar uma quantia em dinheiro pela
cessão da terra. (...) Em seguida o camponês planta, por um ano ou
mesmos ainda, um produto na terra que era ocupada pela pastagem.
Após a colheita, ou ele entrega parte da produção ao fazendeiro ou
vende a safra e paga em dinheiro a quantia estipulada previamente
no contrato de arrendamento. Em seguida, semeia o capim na terra e
entrega/devolve a área ao fazendeiro, que aguardará apenas o
crescimento do capim e terá o pasto reformado, sem que para tal,
tenha gasto parte de seu capital (...) Para aumentar o seu capital, o
capitalista cria e recria o trabalho camponês” (OLIVEIRA, 1997, p.
19)
Silva (1980) corrobora com essa ideia. Para ele, a agricultura familiar
viabiliza a acumulação de capital no polo dinâmico do sistema econômico. Encaramse as relações de produção não capitalistas como sendo reproduzidas pelo
movimento de acumulação de capital, gerando mais uma contradição do modo de
produção capitalista, já que a sua existência, apesar de necessária em determinado
momento histórico, se torna um entrave em outro momento.
No Brasil, a pequena propriedade é responsável pela produção de grande
parte dos gêneros alimentícios que abastecem os centros urbanos, além de
contribuir para o barateamento da mão-de-obra. Torna-se possível manter o padrão
de acumulação no campo e na cidade. De acordo com Silva (1980):
Embora suas mercadorias tenham um papel importante na
manutenção de um baixo custo de reprodução da força de trabalho e
de um baixo preço das matérias-primas, o capital precisa destruí-la.
Essa tendência é inerente da produção capitalista, uma vez que
acumular significa também aumentar o proletariado. No entanto, na
medida em que o faz, cria novos obstáculos à acumulação, repondo
as suas contradições (p. 5).
Deste modo, o próprio processo de desenvolvimento desigual do capitalismo
no Brasil amplia o trabalho assalariado nas grandes e médias unidades capitalistas
e, contrariamente, o domínio do trabalho familiar nas pequenas unidades
camponesas. Logo, a expansão do trabalho assalariado traz consigo a expansão do
trabalho familiar, como fruto das contradições internas do capitalismo.
A ideia de subordinação da produção camponesa ao sistema capitalista é
amplamente defendida por Martins (2010) e Paulino (2006 e 2010). A hipótese
desenvolvida por Martins (2010) é que o capitalismo, na sua expansão, se redefine e
define antigas relações de produção, subordinando-as às relações do capital,
engendrando relações não capitalistas, que serão igual e contrariamente
necessárias a essa reprodução.
Segundo Paulino (2006, 2010), é na unidade dialética entre a expansão do
latifúndio e da unidade camponesa, ou entre trabalho assalariado e trabalho familiar
camponês, que se entende a estrutura agrária brasileira. Deste modo, é essencial
perceber a diferença entre o processo de organização do trabalho para a produção
do capital e o processo de reprodução capitalista do capital.
A reprodução do capital é fruto de relações capitalistas de produção,
baseadas fundamentalmente no trabalho assalariado. Mas a produção do capital
nunca é produto das relações tipicamente capitalistas, e sim a partir de relações não
capitalistas de produção dominadas pelo capital, como a produção baseada no
trabalho familiar (PAULINO, 2010). O trabalho do agricultor gera um valor, que será
apropriado pelos setores capitalistas. Mas, como os camponeses operam com uma
lógica distinta, sua forma de acumulação é diferenciada, não se dando através da
extração da mais-valia. A integração do campesinato no sistema de trocas mercantis
se dá por meio da venda do fruto do trabalho da família, e não pela venda da sua
força de trabalho. Esta realidade não impossibilita a acumulação pelos setores
capitalistas.
O excedente de renda gerado pela produção camponesa pode ser
acumulado de duas formas: diretamente através do rebaixamento do preço inicial do
produto no momento de intermediação entre os produtores e consumidores finais; de
forma indireta, ao serem despendidos menos recursos com o pagamento de
salários, a partir do momento que há um barateamento dos alimentos que compõem
a cesta básica, fruto da produção camponesa cuja remuneração não está mediada
pela extração da taxa de lucro média (PAULINO, 2006).
“Isso nos permite entender a razão pela qual as culturas que
compõem a alimentação básica da população, de um modo geral,
são desenvolvidas pelos camponeses, pois isso representa,
contraditoriamente, possibilidade de acumulação de capital fora do
circuito produtivo tipicamente capitalista” (ibid, p. 33).
A transferência do valor criado pelo camponês é assegurada pela
monopolização do território, que se expressa no processo de organização do
território por parte do capital industrial, mesmo quando parcela do território está
ocupada por pequenos e médios produtores. Esses produtores perdem a autonomia
e se tornam, na maioria das vezes, dependentes de processadoras que irão
viabilizar a produção no lugar dos produtores diretos. Esta profunda ligação com a
indústria favorece a compra da produção camponesa a um preço inferior ao valor
trabalho contido nela. Portanto, o grau de monopolização do território define, em
grande parte, a apropriação do valor criado pelo agricultor camponês (PAULINO,
2006) e fundamenta a ruptura do entendimento clássico de que o desenvolvimento
das forças produtivas capitalistas culminaria na bipolarização entre capital e
trabalho.
Além das cadeias produtivas que se sustentam por meio da matéria-prima
fornecida pela agricultura camponesa, apropriando a renda dela, também há
apropriação na esfera do consumo produtivo, através do monopólio dos preços dos
insumos necessários à produção. Como o camponês não esta excluído do processo
de modernização da base técnica da agricultura, os incentivos para o fomento de
avanços na base técnica nas propriedades agrícolas acaba aumentando o
atrelamento do campesinato aos setores capitalistas e, por consequência, a facilitar
a acumulação do setor industrial (PAULINO, 2006).
Paulino (2006) ainda destaca que a monopolização do território não se dá de
forma harmoniosa, envolvendo profundos conflitos. Apesar de o produtor conseguir
manter certa autonomia e garantir, através de um contrato, a venda de sua
produção, esse não é um jogo de soma nula.
O campesinato não fica isento a essa situação de subordinação, é uma
classe com consciência de classe, que se expressa pela ambiguidade diante da
situação contraditória de ser proprietário e trabalhador. Eles lutam, de um lado, por
valores considerados conservadores ligados à reprodução de sua condição de
proprietário de terra; de outro, lutam contra as diversas formas de drenagem do valor
criado e contra a ameaça de expropriação, na tentativa de combater o “jogo de soma
não nula”.
Apesar deste intenso conflito, não é adequado vincular a agricultura familiar
com pobreza. Abramovay (1998) admite que seja possível encontrar no interior da
família camponesa os elementos geradores de sua conduta específica que não
corresponde à racionalidade predominante, a capitalista. Mas, a ideia de tendência à
polarização da estrutura fundiária entre um setor altamente capitalizado, que utiliza
fundamentalmente
mão-de-obra
assalariada,
e
outro
setor
com
baixa
competitividade, considerado agricultura familiar por não contratar mão-de-obra e
por não ter condições reais de se manter diante da concorrência, apenas subestima
a capacidade histórica que as explorações familiares apresentam ao lidar com o
progresso técnico.
O autor fundamenta, assim, a sua crítica à imagem de agricultura familiar
ainda predominante na literatura. Ao contrário do que se imagina, pode-se
considerar a agricultura familiar moderna como de natureza fundamentalmente
empresarial, disposta e com capacidade de inovação técnica que, ao mesmo tempo,
mantém o caráter familiar da propriedade, da direção, organização do trabalho e
execução das tarefas (ABRAMOVAY, 1998).
O termo “pequena produção”, pode gerar, então, uma subestimação do
agricultor familiar. O agricultor familiar é um sujeito diferente dos camponeses
analisados pelos clássicos, sendo, para Abramovay (1998), resultado da
metamorfose deles a partir da necessidade de se adaptarem às novas exigências do
mercado controlado pelo capital. O autor refere-se, como já ressaltado, ao agricultor
família como um resíduo formado a partir das famílias camponesas, seus ancestrais,
e fruto da mudança de paradigmas que o capitalismo trouxe no campo. Apesar desta
descendência, gerou-se uma identidade nova, com uma diferente racionalidade.
Logo, a grande metamorfose se dá pela adesão às novas tecnologias e ao se
integrarem no mercado.
O que escamoteia sob o nome de “pequena produção” é o abismo
social que separa camponeses – para os quais o desenvolvimento
capitalista significa a fatal desestruturação – de agricultores
profissionais – que se vêm mostrando capazes não de sobreviver
(porque não são resquícios de um passado em via mais ou menos
acelerada de extinção), mas de formar a base fundamental do
progresso técnico e do desenvolvimento do capitalismo na agricultura
contemporânea (ABRAMOVAY, 1998, p. 211).
Assim, o agricultor familiar integrado ao mercado, capaz de incorporar os
principais avanços técnicos e de responder às políticas governamentais, essenciais
neste processo, não pode ser considerado camponês, visto que a metamorfose foi
completa. O campesinato consiste em um limite à racionalidade econômica, e o
próprio progresso técnico cria uma realidade contrária à permanência da agricultura
camponesa irracional (ABRAMOVAY, 1994).
A concepção fatalista de metamorfose do campesinato atrasado em
agricultor familiar moderno é criticada por alguns autores, como Paulino (2006 e
2010) e Wanderley (1996 e 2003). Muitas vezes, por trás do debate camponês
versus agricultor familiar, esta implícita a suposição de irracionalidade do
campesinato, uma discussão regida pelo preconceito. Assim, a diferenciação dada
por Abramovay peca ao atribuir a inserção no mercado como um critério de
diferença entre o camponês “atrasado”, que era incompatível com o ambiente
econômico que impera as relações mercantis, e o agricultor familiar, com espírito
empreendedor e atualizado cm as inovações agrícolas (PAULINO, 2010).
O fato de os camponeses estarem inseridos no mercado não os torna menos
camponeses, mas é necessário discutir as formas como eles se inserem. E, apesar
da produção camponesa estar assentada na forma simples de circulação de
mercadoria, expresso na fórmula M-D-M, a realidade mostra que essa produção
pode gerar dinheiro extra, devido à produtividade do trabalho e/ou presença de
outros elementos formadores de renda, como o trabalho acessório ou pluriatividade,
como desenvolvido por Schneider (2006)44. A transformação do camponês em
pequeno (ou grande) capitalista irá se dá a partir da mudança das relações sociais
de produção, especificamente na alteração das relações de trabalho, ou seja, com a
presença de assalariados permanentes na unidade de produção (PAULINO, 2006).
Wanderley (1996), admite que a modernização transformou o agricultor, mas
a trajetória do camponês diante da introdução de novas tecnologias e das novas
maneiras de produzir é marcada por elementos de rupturas e de continuidades,
discordando, neste aspecto, com as suposições de Abramovay.
Na verdade, a autora consensua com o fato de a modernização ter
transformado os camponeses tradicionais em agricultores modernos, mas o
agricultor
familiar
carrega
consigo
diversos
elementos
característicos
do
campesinato tradicional, impossibilitando uma ruptura completa entre os dois
agentes e transformando qualquer análise mais complexa.
Wanderley (1996) esclarece que o termo “agricultor familiar” não é uma
categoria social recente na história econômica brasileira. Para ela, a agricultura
familiar adquire um conceito genérico, que incorpora uma diversidade de situações
específicas e particulares, mas que possui a característica definidora de envolver
famílias que são, ao mesmo tempo, proprietárias dos meios de produção e do
trabalho nos seus estabelecimentos produtivos, ou seja, representa uma estrutura
produtiva que associa família-produção-trabalho. Mas, são diversas as combinações
entre propriedade e trabalho existentes, assim como são diversas as formas sociais
atreladas.
As formas modernas de agricultura familiar são aquelas que
44
Ambos os termos “trabalho acessório” e “pluriatividade” representam diversas estratégias
encontradas pelo agricultor familiar para complementar renda. Schneider (2006), entretanto, irá
considerar a pluriatividade como algo novo, associada à crescente mercantilização da vida social e
econômica dos agricultores familiares. Esse equívoco, entretanto, é claro a partir da própria leitura dos
clássicos, como Kautsky (1972) e Chayanov (1981), que já expuseram em suas obras a existência do
trabalho acessório no cotidiano do camponês tradicional.
Sob o impacto das transformações de caráter geral – importância das
cidades e da cultura urbana, centralidade do mercado, mais
recentemente, globalização da economia etc. – tentam adaptar-se a
este novo contexto de reprodução, transformando-se interna e
externamente em um agente da agricultura moderna. (WANDERLEY,
1996, p.7)
Na verdade, boa parte da análise desenvolvida por Wanderley e destacada
aqui, remonta à proposta analítica de Lamarche (1993), que defende a importância
do patrimônio cultural do modo de ser do agricultor familiar. Portanto, ele considera
que os agricultores familiares são portadores de uma tradição familiar, mas
conseguem se adaptar às condições modernas para produzir, demonstrando a
capacidade de resistência e adaptação deles aos novos contextos econômicos e
sociais.
Em suma, o autor verificou, assim como a maioria dos autores citados até
aqui, que:
A identidade do agricultor familiar está ainda em construção e que se
constrói a partir da convicção de que o agricultor constitui uma
categoria social particular, ocupando um lugar específico na
sociedade brasileira, diferente, como vimos, ao mesmo tempo dos
grandes proprietários e empreendedores e dos trabalhadores
assalariados. (LAMARCHE, 1993, p. 220).
4. Considerações Finais
Marx, ao discorrer sobre o processo de desapropriação e de assalariamento
do camponês, com base na experiência histórica inglesa, ressalta que a tendência
para o declínio do trabalhador agrícola familiar reside no fato da economia
camponesa ser, por definição, uma economia mercantil, representada pela
circulação simples de mercadorias, cujo objetivo final é a satisfação das
necessidades e não a maior geração de mais-valia.
Embora a produção mercantil simples não seja a dominante no modo de
produção capitalista, ela pode estar presente - como efetivamente está! – mas de
forma subordinada e fragilizada, na medida em que sofre grande influência do
sistema econômico global e, por isso, apresenta uma tendência de desintegração,
mesmo que isso não seja inexorável.
A sucinta exposição das contribuições de Kautsky, de Lênin, de Rosa
Luxemburgo e de Chayanov, apesar das suas diferenças, buscou mostrar que elas
são essenciais para o entendimento do processo de penetração do modo de
produção capitalista no campo e suas consequências para o campesinato. Os dois
primeiros autores, mesmo diante de realidades econômicas distintas, preconizam a
extinção do camponês com o desenvolvimento do capitalismo. Mesmo assim, suas
análises possibilitam a visualização da resistência camponesa em algumas
realidades específicas. Rosa Luxemburgo defende a coexistência de sociedades
capitalistas com não capitalistas. Chayanov, mantendo-se fiel aos pressupostos
populistas, rejeita a tese do fim do campesinato no desenvolvimento do capitalismo
na agricultura e contribui para reforçar a tese da sua permanência, também em
situações específicas.
O processo de penetração capitalista no campo brasileiro, apesar de distinto
da realidade vivenciada pelos autores clássicos, pode ser compreendido a partir dos
pressupostos teóricos acima referenciados, já que não passa de uma demonstração
do caráter contraditório do desenvolvimento do modo de produção capitalista, como
defendido pelos autores contemporâneos. Destacam a constante criação e recriação
do agricultor familiar a partir das contradições da própria estrutura formativa do
modo de produção capitalista. Esta compreensão é resultado de uma concepção
marxista da formação econômica social, que explica as movimentações do capital a
partir de seu desenvolvimento desigual.
Mesmo realizando a análise a partir da estrutura interna capitalista, a
capacidade de resistência do agricultor familiar camponês, na tentativa de garantir a
tradicionalidade e relativa autonomia, não deve ser esquecida. As formas variadas
de resistências a partir das diversas articulações entre a produção, o trabalho e a
família, tornam este tema relevante para estudos abrangendo realidades
específicas.
Em resumo, o debate sobre as formas de organização da agricultura
camponesa e as possibilidades de sua permanência nas formações sociais
capitalistas ainda não está finalizado. Além disso, a importância que, ainda,
assumem essas formas de organização nas diferentes economias, inclusive na
brasileira, mostra que essa discussão é relevante, inclusive como substrato para as
políticas públicas direcionadas para o desenvolvimento rural.
5. Referências Bibliográficas
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ID 422 (2 arquivos em pdf Capa e conteúdo estão à parte)
TRABALHO, REDES E CADEIAS NA ECONOMIA DO ARTESANATO:
CONFIGURAÇÕES DA PRODUÇÃO ARTESANAL A BASE DE FIBRA DE BURITI
NO MARANHÃO (Pôster)
Juliana da Cruz Costa
ID 435
EXPANSÃO AGRÍCOLA E TRANSFORMAÇÕES DO MERCADO DE TRABALHO:
OS CANAVIEIROS NAS ÚLTIMAS DUAS DÉCADAS
Camila Strobl Sakamoto
Elyson Ferreira de Souza
Resumo: O setor sucroalcooleiro constitui-se um grande exemplo dos efeitos da
expansão produtiva da agricultura brasileira sobre o mercado de trabalho agrícola. A
partir dos microdados das PNADs de 1992 a 2011, observou-se a PEA agrícola
canavieira e indicadores das condições de trabalho detalhados por região. De modo
geral, no país houve uma enorme redução do total de ocupados nas atividades
canavieiras juntamente com o aumento do rendimento. De maneira mais detalhada,
os efeitos da expansão produtiva foram diversos entre as regiões com forte
mudança do perfil destes ocupados. De um lado, ainda há a permanência de
significativa parcela de ocupados com baixos níveis de remuneração nas áreas de
cultivo mais tradicionais (apesar da forte redução do número de ocupados) e, de
outro lado, aumento do número de ocupados com elevados níveis de remuneração
(comparativamente com ocupados de outras atividades agrícolas) em áreas de
cultivo mais recente, ligadas ao avanço da grande agroindústria do setor
sucroalcooleiro da última década.
Palavras-chave: setor sucroalcooleiro, PEA agrícola, desigualdade regional,
condições de trabalho.
1. Introdução
Após um grande período de estagnação produtiva e de baixos níveis de
indicadores de produtividade, a agricultura brasileira tem experimentado nas últimas
três décadas uma enorme expansão da produção impulsionada pelo elevado ganho
de produtividade. Para traduzir os impactos desse processo, uma observação mais
detalhada e específica permite avaliar melhor os efeitos desse aumento produtivo.
Um caso que engloba essas mudanças e apresenta efeitos relevantes é o da canade-açúcar. Assim como as grandes lavouras do país, a expansão da produção da
cana-de-açúcar também foi acompanhada por um crescimento expressivo da
produtividade nos últimos anos, contando com uma intensificação da mudança da
base técnica e utilização de insumos modernos desde os anos 1970. Além disso, o
cultivo da cana-de-açúcar mostrou importante expansão no território nacional
atingindo a nova fronteira agrícola do país (o que também ocorreu com outras
importantes atividades agrícolas). Lembrando que estas áreas de cultivo mais
recente apresentam maior concentração tecnológica: determinante para o enorme
ganho de produtividade deste segmento da atividade agrícola (SANTOS e VIEIRA
FILHO, 2012).
Mais especificamente a partir dos anos finais da década 2000, o Brasil
mostrou uma enorme expansão produtiva da cana-de-açúcar. Esse desempenho
produtivo foi influenciado, em grande medida, pelo aumento crescente do consumo
de açúcares no mercado externo, principalmente pelos países da Ásia, além do
aumento da demanda agroenergética (LIMA, 2010). Entre 1990 a 2008, a produção
da cana-de-açúcar passou de 263 para 649 milhões de toneladas. Crescimento
muito superior ao da Índia, segunda maior produtora mundial, que obteve uma
produção de 226 milhões de toneladas em 1990 e de 348 em 2008 (MAPA, 2012).
Em termos de geração de valores, a cana-de-açúcar também tem enorme
importância e respondeu por 17% do total do valor gerado pela lavoura brasileira no
ano de 2009 (atrás apenas da soja) (SANTOS e VIEIRA FILHO, 2012).
Neste quadro que se conformou nas últimas décadas, diversos estudos tem
chamado atenção para os impactos da expansão produtiva do setor sucrooalcoleiro
e as alterações provocadas na estrutura fundiária agrícola (como a superposição do
cultivo da cana sobre outros cultivos, a concentração e o aumento das áreas médias
dos estabelecimentos, etc.), a questão ambiental (como fonte de energia alternativa)
e, principalmente, os impactos no âmbito do trabalho (SZMRECSÁNYI, et al.,2008;
MORAES, 2007).
Considerando que o setor sucroalcooleiro já foi um grande gerador de
ocupações e as particularidades do setor em relação as formas de contratação da
mão-de-obra, torna-se interessante observar os impactos das transformações deste
segmento da agricultura dentro do âmbito do trabalho. De modo geral, frente a este
crescimento produtivo e as mudanças no complexo agroindustrial da cana-de-açúcar
(que serão expostas posteriormente), o objetivo do artigo é observar o mercado de
trabalho agrícola canavieiro e a sua evolução durante as últimas duas décadas,
especificamente entre 1992 e 2011, na tentativa de observar se o aumento da
produção e da produtividade do setor se traduziu em melhores condições de
trabalho. De forma mais detalhada, busca-se indicar os diferentes impactos da
expansão produtiva canavieira nas diferentes regiões do país sobre os seus
respectivos mercados de trabalho canavieiro, partindo da constatação de que a
expansão produtiva se deu em diferentes níveis de intensificação entre as regiões
brasileiras.
2. Metodologia
Para analisar o mercado de trabalho agrícola canavieiro e sua evolução
durante as duas últimas décadas foram utilizados dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 1992 a 201145.
Antes de prosseguir é importante destacar que a PNAD obteve abrangência
total do território nacional apenas em 2004 e não contém informações das áreas
rurais dos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá nos anos
anteriores. Para possibilitar a comparação no período de análise foram excluídos os
ocupados com residência rural destas Unidades da Federação. Deste modo, nas
análises regionais a observação do Norte não considera grande parte do território da
região.
Foram selecionadas as pessoas com 10 anos ou mais de idade e ocupados
com trabalho principal nas atividades agrícolas, especificamente no cultivo da canade-açúcar (PEA agrícola canavieira)46. Deste modo, cabe salientar que não serão
considerados trabalhadores não agrícolas que trabalharam no setor sucroalcooleiro,
como os trabalhadores das indústrias do setor e outros trabalhadores em atividades
com características não agrícolas.
Os valores de rendimento foram deflacionados para 1º de outubro de 2011,
segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) fornecido pelo IBGE,
seguindo a metodologia de Foguel e Corseuil (2002) de adaptação à PNAD.
Para qualificar as análises os resultados apresentam corte por região,
destacando que para as análises com maior detalhamento optou-se pela divisão
regional em dois grandes grupos: i) regiões Norte e Nordeste; e ii) regiões CentroOeste, Sudeste e Sul.
45
Lembrando que a PNAD não é realizada em anos censitários e, por excepcionalidade, não foi realizada no ano
de 1994.
46
É importante destacar que mesmo com a alteração da classificação das atividades dos empreendimentos
considerados pela PNAD, ou seja, com a introdução em 2002 da Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE), a comparação é viável. Como sugere as orientações de correspondência da Comissão
Nacional de Classificação (CONCLA) fornecida pelo IBGE.
3. O setor sucroalcooleiro brasileiro
3.1. Formação e evolução do setor nas últimas duas décadas
Para orientar a análise do mercado de trabalho canavieiro o artigo expõe
nesta seção uma sintética observação da formação do complexo do setor
sucroalcooleiro brasileiro e sua evolução nas últimas duas décadas. Torna-se
importante considerar a mudança da sua relação com o Estado e a evolução do
quadro institucional do setor (juntamente com a estrutura de poder), que alteraram
drasticamente durante as últimas duas décadas.
Segundo Ramos (1999), a produção canavieira na sua formação constitui o
melhor exemplo de uma estrutura fundiária concentrada. Esse sistema de gestão
permanece predominante até hoje, considerando que grande parte da produção de
cana-de-açúcar provém de plantações próprias (não de fornecedores)47 apesar das
políticas que buscaram incentivar a integração do setor com produção de médio e
pequeno porte. Na evolução do setor, a estrutura de poder e o surgimento das
usinas ficaram inicialmente concentradas por um longo período nos principais
Estados produtores de açúcar (Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro), tendo
ocorrido uma modernização que se concentrou no processamento fabril (RAMOS,
2007b). Já no período mais recente o cultivo se expandiu pelo território brasileiro e
surgiram novos grupos na região Centro-Oeste (principalmente em Goiás e Mato
Grosso do Sul que apresentaram um salto enorme da produção nos anos 2000) e na
região Sul (especificamente no Paraná), mas com a região Sudeste permanecendo
como a maior produtora do setor 48.
Para a introdução das grandes usinas industriais no Brasil foi importante a
concepção do Proálcool, estimulado pela crise do petróleo em 1979, que promoveu
um surto de implantação de destilarias autônomas a partir dos anos 1980 (LIMA,
2010). Destacando, deste modo, a importância do papel do Estado na expansão
produtiva do período. Já na década de 90 houve mudanças do quadro
governamental, que nas décadas anteriores tinha como objetivo a regulação do
setor (tendo início da intervenção estatal em 1931 com a criação da Comissão de
Defesa da Produção do Açúcar – CDPA) (RAMOS, 2007b). A partir deste momento,
47
48
Ver dados em Mapa (2012).
Ver séries históricas de produção em MAPA (2012).
houve forte perda do papel regulador do Estado no setor que se confirmou com a
extinção do Instituto do Açúcar e Álcool (que tinha dentre os objetivos proteger os
produtores e trabalhadores do setor, mas vinha perdendo o poder de intervenção
desde a década de 1950 e 1960) (LIMA, 2010). Inicia-se neste contexto uma nova
dinâmica de crescimento e expansão produtiva do setor sucroalcooleiro.
Após este período concretizou-se uma visão de que as medidas adotadas
pelo governo frente ao setor foram descontínuas, atenderam a interesses de grupos
específicos, o que contribuiu para a criação de grupos com interesses divergentes
dentro do setor sucroalcooleiro brasileiro. De um lado, os usineiros do Norte e
Nordeste (áreas de cultivo mais tradicionais e menos avançadas) defendiam uma
maior regulamentação, proteção à produção regional e garantias de rentabilidade e,
de outro lado, os usineiro do Centro-Oeste ao Sul que detinham os maiores índices
de
expansão
da
produção
apresentavam
interesses
de
completa
desregulamentação em todo o sistema produtivo (apesar deste grupo também
contar com divergências internas, sendo que alguns defendiam certa intervenção
frente à forte expansão produtiva de algumas usinas da grande agroindústria) (LIMA,
2010).
No período mais recente, o setor permanece com elevadas discrepâncias
regionais e as políticas direcionadas diretamente ao setor estiveram mais focadas
nas medidas facilitadoras para o consumo do etanol (como o incentivo ao mercado
interno de carros flex fuel e a regulação do álcool na definição do teor de álcool na
gasolina) (MAPA, 2009; LIMA, 2010). Paralelamente, o Estado também promoveu
pressões legais e sociais sobre o setor, com contribuições principalmente do estado
de São Paulo que se generalizaram para todo o país. Também houve uma
convergência com a pressão dos vários órgãos públicos (Ministério Público do
Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego) frente às precárias condições de
trabalho no cultivo da cana-de-açúcar (RAMOS, 2007a).
Em relação a mudança da base técnica do setor, cabe destacar o processo
de intensificação da mecanização que ocorre desde meados da década de 60
(RAMOS, 1999). Nos anos mais recentes, o fim da queima da cana-de-açúcar para
despalha (eliminação da folha e palha) e a introdução da automação na colheita,
carrega um forte incentivo ambiental, além do incentivo na redução dos custos (já
que a colheita manual apresentou redução da produtividade por trabalhador)
(MORAES, 2007). Fator que contribuiu para esse processo foi a Legislação do
Estado de SP que prevê a extinção da queima até 2021 nas áreas passíveis de
mecanização integral da colheita e até 2031 nas áreas onde as máquinas não
conseguem operar (áreas com declividade elevada e impossibilidade de utilização
de colheitadeiras) (RAMOS, 2007a). Nesta mesma direção, em 2007 a UNICA
(juntamente com a contribuição do Estado de São Paulo) lançou o Protocolo
Agroambiental que antecipou o prazo para eliminação da queimada em São Paulo e
em 2012 cerca de 112 usinas estavam de acordo com esse protocolo (aderindo
metas e prazos mais curtos que a prevista pela legislação estadual)49. Outros fatores
positivos à adoção da mecanização, é que a palha também pode ser utilizada na cogeração de energia elétrica e o fim das queimadas também conta com o apelo da
saúde pública (MORAES, 2007).
A expansão da cana-de-açúcar no país durante a última década tem sido
caracterizada pela elevada concentração tecnológica nas áreas de cultivo mais
recentes (na “nova fronteira agrícola” do país), com destaque principal para os
estados de Goiás e outros do Centro-Oeste, seguidos pelo enorme avanço do
estado de São Paulo e do Paraná.
Paralelamente a estas mudanças de caráter tecnológico, desde meados dos
anos 1990 criou-se um cenário de intenso processo de centralização de capital,
movimento de particularização dos interesses e concentração de processadoras
(frente a fragilidade financeira de algumas empresas) (BELIK et al. 1998 apud LIMA,
2010), além do intenso processo de integração vertical da produção e formação de
joint venture (como por exemplo, o caso da Cosan e Exxon Mobil na formação da
Raízen em 2008).
Logo, ressalta-se que o setor apresentou importantes mudanças na estrutura
de poder (passando de um setor comandado por grandes proprietários de terras
para um setor guiado por grandes empresas da agroindústria moderna) e mudanças
no âmbito legislativo (que envolvem questões trabalhistas e ambientais que também
estão relacionadas com a imagem desta agroindústria moderna do setor).
Ressaltando dentre destas transformações o aumento da presença de grandes
empresas de capitais estrangeiros, que contam com avanços técnicos em toda a
cadeia produtiva (desde insumos agrícolas até tecnologia de ponta industrial), assim
como as alterações da presença dos governos federais e estaduais e a presença de
outros órgãos não governamentais.
49
Para maiores detalhes do Protocolo Agroambiental do Estado de São Paulo ver: < www.unica.com.br>.
2.2.
O
mercado
de
trabalho
agrícola
canavieiro:
especificidades
e
transformações
Constatou-se que para compreender as transformações ocorridas no
mercado de trabalho agrícola canavieiro é importante levar em considerações não
só as transformações produtivas, mas também as mudanças institucionais. Além
disso, trata-se de um setor com características diferenciadas entre as regiões, tanto
na sua formação como expansão nas últimas décadas.
Somado a isso, para observar o comportamento dos ocupados no cultivo de
cana-de-açúcar é essencial considerar dois elementos característicos do processo
produtivo deste cultivo. O primeiro refere-se ao impacto gerado pela característica
sazonal da colheita da cana-de-açúcar (ligado ao ciclo produtivo da planta). Essa
sazonalidade acaba gerando uma utilização do trabalho temporário bem superior as
demais atividades agrícolas. O segundo elemento a considerar refere-se aos
impactos do processo de mecanização.
Apesar do mercado de trabalho agrícola canavieiro ter forte presença de
trabalhadores temporários pela própria sazonalidade da colheita, cabe destacar que
as mudanças na base técnica e o aumento da produção da cana-de-açúcar no
período de intensificação da produção (principalmente após o Proálcool) geraram
um agravante na situação destes trabalhadores temporários. Basicamente a enorme
expansão da área de cultivo de cana-de-açúcar alterou o quadro de policultura de
algumas regiões dando maiores dimensões aos efeitos da sazonalidade do trabalho
canavieiro e reduzindo as opções de trabalho agrícola nas localidades (GRAZIANO
DA SILVA, 1997). Nesta direção, segundo Ramos (2008), a política de incentivo à
produção do Proálcool gerou forte expansão da utilização da mão-de-obra
temporária.
Em relação a estes trabalhadores, as precárias condições de trabalho e
baixa remuneração acabaram gerando greves durante os anos 1980 (destacando a
Greve do Guariba em 1984 e de Leme em 1986), que geraram melhorias nas formas
de pagamento dos trabalhadores da colheita, mas o movimento perdeu força e não
foram seguidas por mais reivindicações de grande mobilização da classe. Para
explicar a perda de força do movimento dos trabalhadores canavieiros, ressalta-se
que a dissipação da identidade desta classe trabalhadora frente ao contexto que se
formou no final da década de 80, quando as reinvindicações (antes reprimidas)
explodiram e a luta dos trabalhadores sem terra e dos trabalhadores canavieiros se
misturaram e também foram esquecidas pelas reinvindicações urbanas. Agravando
a situação destes ocupados, as políticas de emprego e de trabalho nos canaviais
(direcionadas na intermediação da relação de trabalho, como a fiscalização de
acordos coletivos; acidentes de trabalho e de transporte; e que buscavam o fim da
situação de escravidão) por vezes eram contraditórias e buscavam “normalizar” e
normatizar a questão do bóia-fria (GRAZIANO DA SILVA, 1997).
Já a partir dos anos 1990, a introdução da informática permitiu um controle
maior da produtividade dos trabalhadores. Neste período, também se consolidaram
as chamadas “gatonas”, tipos de empreiteiras de mão-de-obra ligadas diretamente
ou indiretamente às usinas que se responsabilizam pela contratação temporária dos
trabalhadores dos canaviais (GRAZIANO DA SILVA, 1997). Os mesmos
trabalhadores passaram a serem contratados pelas mesmas empresas a cada safra,
criando uma categoria de trabalhadores “temporários-permanentes”, que na maioria
das vezes, trabalhando informalmente, não tinham acesso ao seguro-desemprego e
a muitos direitos trabalhistas (PAIVA, 2008).
Com a expansão da produção no território brasileiro, o Nordeste se tornou o
principal centro emissor de trabalhadores temporários migrantes, que se
direcionavam para as safras do Sudeste e do Centro-Oeste, muitas vezes em
precárias condições de alojamento e para serem submetidos a uma jornada
ampliada e severa no corte da cana. De acordo com Paiva (2008), atualmente ainda
é elevada a contratação terceirizada por intermédio dos “gatos”, promovendo a
precarização das relações de trabalho principalmente entre os trabalhadores
nordestinos, e as melhorias neste mercado de trabalho se devem às questões
maiores, como a regulação do governo sobre os trabalhadores como um todo, e não
à movimentos dos trabalhadores canavieiros.
Por outro lado, há uma maior conscientização das grandes empresas e um
movimento para promover melhores condições de trabalho especificamente para
estes ocupados. Em 2007 foi realizado um acordo entre os assalariados e a União
da Indústria de cana-de-açúcar (UNICA) na tentativa de eliminar a terceirização na
lavoura de cana, ou seja, contratação com a utilização de intermediários (KREIN e
STRAVINSKI, 2008). Contudo, ainda existe elevada contratação destes agrícolas
por meio de intermediários, o que acaba dificultando uma melhor visualização da
real situação destes ocupados (RAMOS, 2008).
Por fim, é fundamental ressaltar os impactos do crescente uso de tratores na
produção agrícola. As tarefas de preparo do solo e tratos culturais são geralmente
totalmente mecanizados, utilizando-se mão de obra principalmente nos períodos de
plantio e colheita da cana-de-açúcar, que também tem sofrido automatização
(RAMOS, 2008).
Para observar o mercado de trabalho agrícola, é importante ressaltar uma
passagem de Gasques et. al. (2008), que analisando a produtividade do trabalho, da
terra e do capital na agricultura chama atenção para o crescimento a partir do início
dos anos 2000 e com maior intensidade para a produtividade da mão-de-obra, que
apresentou um crescimento bem mais intenso na comparação com os demais
fatores. Mas é importante ressaltar que o movimento de expansão da produtividade
não foi homogêneo entre os produtores agropecuários brasileiros, mas marcada por
fortes diferenciais regionais. Fator que pode ter gerado diferenciais elevados nos
possíveis ganhos repassados aos rendimentos dos trabalhadores.
Sugerindo estes diferenciais nas atividades agrícolas canavieiras, cabe
referenciar dados de uma pesquisa divulgada pela Conab (2012) que realizou
entrevistas nas usinas do setor sucroalcooleiro e mostrou a mecanização mais
intensa nas áreas de expansão mais recentes da agricultura, dentro do CentroOeste, seguido pelas áreas estabelecidas por mais tempo, da região Sudeste. Na
colheita da safra da cana-de-açúcar de 2009/10 realizada no estado de Goiás 64,7%
foi mecânica, seguido dos estados do Mato Grosso do Sul (63,3% da colheita total
do estado) e São Paulo (58,6% da colheita total do estado). Enquanto que em
Alagoas e Pernambuco a mecanização representou apenas 6,3% e 0,3% da
colheita, respectivamente.
De forma geral, a mecanização gerou o desaparecimento dos trabalhadores,
tendo criando uma massa de trabalhadores desempregados com falta de
alternativas de ocupação em áreas com predominância da monocultura (BALSADI et
al. 2002 apud SZMRECSÁNYI, 2008). Ademais, as perspectivas para o mercado de
trabalho é de continuidade da redução relativa dos trabalhadores agrícolas do setor
sucroalcooleiro e, juntamente com a enorme expansão produtiva, o aumento da
produtividade do trabalho (RAMOS, 2007a).
4. Condições de trabalho da PEA agrícola canavieira e evolução entre 1992 e
2011
O tamanho da PEA agrícola canavieira apresentou flutuações consideráveis
durante as ultimas décadas (acompanhando o aumento da produção nos anos 2000,
depois de uma queda sensível da produção), mas a tendência de queda destes
ocupados é evidente, principalmente nos últimos anos analisados (a partir de 2009).
Comparando-se os dois extremos do período, os agrícolas ocupados no cultivo da
cana-de-açúcar passaram de 775 mil para pouco menos de meio milhão, entre 1992
e 2011.
Considerando que houve forte expansão da produção do setor, pode-se
dizer que, assim como outras importantes lavouras brasileiras, a produção da canade-açúcar esta acompanhada de um acentuado aumento da produtividade do
trabalho. Mesmo observando o período de aumento considerável do número de
ocupados que foi entre 2001 e 2008 (que contou com acréscimo de 218 mil
trabalhadores) constata-se que este aumento esteve longe de ser proporcional ao
aumento da produção do mesmo período (que quase dobrou, passando de 293
milhões de toneladas para 569 milhões de toneladas de cana moída50).
Gráfico 1. PEA agrícola canavieira. Brasil, 1992 a 2011. (em mil pessoas).
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
50
Banco de dados da ÚNICA. Disponível em: <www.unica.com.br>
A redução dos ocupados nesta atividade foi influenciada principalmente pela
forte queda destes trabalhadores no Nordeste e Sudeste (ver Apêndice – Gráfico 3).
Na primeira região os canavieiros passaram de 416 mil para apenas 183 mil entre
1992 e 2011, na segunda região a queda foi menor, passando de 286 mil para 211
mil no mesmo período. O Sul e Centro-Oeste respondem por parcela pequena
destes ocupados, mas enquanto a primeira região apresentou queda a segunda
apresentou aumento. A região Norte apresenta população ocupada na atividade
quase insignificante, menos de 5 mil trabalhadores.
Mesmo com o acréscimo de ocupados, o Centro-Oeste chegou em 2011
com apenas 55 mil trabalhadores canavieiros. Mas cabe destacar que houve um
forte aumento da área plantada de cana-de-açúcar nesta região nos anos 2000 e a
região se tornou uma das maiores produtoras, indicando que a expansão produtiva
no Centro-Oeste é baseada na mecanização e na alta produtividade do trabalho51.
Já o Norte e Nordeste são responsáveis por 37,5% do total de ocupados
neste setor agrícola, mas as regiões respondem por menos de 12% do total da
produção e perderam sua participação no total desde início dos anos 1950 (quando
deixou de ser o maior produtor de cana-de-açúcar) (LIMA, 2010).
No geral, a dinâmica de expansão da produção apresenta características
marcantes entre as diferentes regiões. O Nordeste se caracteriza pela queda de
representatividade produtiva e permanência de um modo de produção tradicional
bastante precário, mas responsável por parcela significativa de ocupados. O
Sudeste permaneceu com parcela majoritária da população ocupada canavieira,
mas representa uma região onde o acelerado aumento da produção foi
acompanhado por uma forte modernização e mecanização, tendo o apresentado
forte aumento da produtividade. Já o Centro-Oeste representa uma região de
expansão nova da cana-de-açúcar, onde a produção já se inseriu com forte
mecanização e com elevada produtividade. Na região Sul a produção ocorre
basicamente no Paraná e com a produção seguindo características do Sudeste.
Apesar do decréscimo dos ocupados no período, o rendimento médio dos
trabalhadores canavieiros apresentou forte aumento, passando de R$ 485 para R$
931 entre 1992 e 2011 (Gráfico 2). Ressaltando que o rendimento permaneceu em
51
Na safra de 2010/11 os estados de Goiás e Mato Grosso do Sul (maiores produtores da região) obtiveram uma
produção de 46,6 milhões e 33,5 milhões de toneladas, respectivamente, enquanto Alagoas e Pernambuco
(maiores produtores da região) obtiveram 28,9 milhões e 16,9 milhões de toneladas, respectivamente na mesma
safra. Disponível em: <www.unica.com.br/data>.
baixo nível com pequenas flutuações até 2002 e apresentando aumento estável e
significativo a partir de meados da mesma década.
Gráfico 2. Rendimento no trabalho principal da PEA agrícola canavieira. Brasil,
1992 a 2011. (em R$).
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Excluídos os ocupados que não declararam
rendimento. Valores deflacionados pelo INPC para 2011.
Entre as regiões as flutuações do rendimento canavieiro são mais intensas
(ver Apêndice – Gráfico 4). Como o esperado o Nordeste apresenta os piores níveis
de remuneração dos agrícolas ocupados no cultivo de cana-de-açúcar mesmo após
o aumento significativo, passando de R$ 354 para R$ 594 entre 1992 e 2011. As
regiões Sudeste, Sul e, principalmente, Centro-Oeste apresentaram rendimentos
bem superiores aos ocupados nordestinos e também crescimento mais acentuado.
No geral, a maioria das regiões apresentou uma valorização das remunerações mais
intensas a partir de meados dos anos 2000 (exceto o Centro-Oeste que apresentou
pico do rendimento médio em 2003, mas cabe ressaltar que neste ano a região
ainda detinha uma pequena quantidade de ocupados nesta atividade), mas as
disparidades regionais se intensificaram. Em 2011, o rendimento médio do CentroOeste era o dobro do observado no Nordeste, enquanto que em 1992 estas duas
regiões apresentavam rendimentos bem mais próximos. Comparando a região
Nordeste com o Sudeste os diferenciais também aumentaram no período.
A enorme evolução do rendimento da região Centro-Oeste se deve pela
introdução da cana na região que ocorreu com maior intensidade apenas na última
década, com forte expansão das áreas e da produtividade do cultivo da cana-deaçúcar. Por outro lado, o baixo nível de remuneração dos nordestinos se deve à
permanência da baixa produtividade do plantio da cana no Nordeste, sendo que a
região apresenta o menor rendimento por área plantada segundo Lima (2010), e de
condições precárias de trabalho e contratação52.
Para melhor observação das condições de trabalho destes ocupados
canavieiros entre as grandes regiões é essencial considerar os diferentes tipos de
posição na ocupação (Tabela 1). Antes é importante destacar que o caráter
temporário destes trabalhadores agrícolas acaba sendo subestimado pela
entrevistas
da
PNAD,
que
muitas
vezes
classifica-os
como
empregados
permanentes em vista da formalidade e temporalidade de serviço (SZMRECSÁNYI
et al., 2008).
Em primeiro lugar chama atenção que mesmo depois de uma queda
significativa é considerável a participação dos empregados temporários, ou seja,
com contrato de trabalho por tempo determinado. No Brasil estes ocupados
representavam quase 40% do total de canavieiros, passando para 26% em 2011.
Essa queda foi fortemente puxada pelo comportamento dos ocupados das regiões
Centro-Oeste ao Sul, que apresentaram forte queda dos temporários, de 163 mil
para cerca de 52 mil.
Dentre o período analisado cabe uma distinção, entre 1992 e 2001, houve
forte redução dos empregados tanto temporários como permanentes. Já entre 2001
e 2011, houve um aumento considerável dos empregados permanentes, isso se
deveu ao acréscimo de 130 mil ocupados nesta categoria nas regiões do CentroOeste, Sul e Sudeste, acompanhando a expansão forte da produção agrícola da
cana-de-açúcar ocorrida nestas regiões. Ao final do período analisado o número de
empregados permanentes mais que superou o número de empregados temporários,
cerca de 74% dos canavieiros destas regiões eram permanentes.
Já nas regiões Norte e Nordeste houve uma piora nos indicadores. O quadro
apresenta uma tendência de queda constante dos empregados, tanto dos
temporários como principalmente dos permanentes, gerando um agravante:
aumento da participação dos temporários, principalmente entre 2001 e 2011. Antes
Assim como afirma Santos e Vieira Filho (2012), o Nordeste apresenta a menor concentração
tecnológica de sua agricultura e sugerem que a produtividade do trabalho nesta região é a mais baixa
em relação as demais regiões.
52
os empregos que ofereciam maior estabilidade representavam cerca de 51% dos
agrícolas canavieiros em 1992, reduzindo para 43,5% em 2011. Neste último ano os
temporários chegaram a responder por 42% do total de canavieiros das regiões.
Estas regiões também apresentaram significativa queda dos agricultores na posição
de não remunerado e autoconsumo em todo o período, contando também com
redução dos autônomos entre 2001 e 2011 (após um aumento destes ocupados
entre 1992 e 2001), o que sugere a queda da importância das atividades ligadas à
agricultura familiar de pequeno porte da região que foi importante na atividade da
cana-de-açúcar da região no passado e vem perdendo participação gradativa, assim
como é apontado por Paiva (2008).
Tabela 1. PEA agrícola canavieira por posição na ocupação, segundo região.
Brasil, 1992, 2001 e 2011.
Posição na
ocupação
Empregado
permanente
Empregado
temporário
N/NE Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Empregado
permanente
Empregado
temporário
CO/S Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Empregado
permanente
Empregado
temporário
Brasil Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Região
1992
Ocupados
%
2001
Ocupados
%
2011
Ocupados
%
211.914 50,9
125.448 47,5
80.650 43,5
144.372 34,7
94.545 35,8
77.932 42,1
13.102
7.948
3,1
1,9
18.176
5.204
6,9
2,0
15.455
3.439
8,3
1,9
39.312
9,4
20.782
7,9
7.771
4,2
416.648 100
264.155 100
185.247 100
159.497 44,5
96.970 43,8
227.369 73,7
163.584 45,7
98.126 44,3
51.744 16,8
14.330
7.867
4,0
2,2
15.772
3.602
7,1
1,6
10.129
5.466
3,3
1,8
12.746
3,6
6.831
3,1
13.893
4,5
358.024 100
221.301 100
308.601 100
371.411 47,9
222.418 45,8
308.019 62,4
307.956 39,8
192.671 39,7
129.676 26,3
27.432
15.815
3,5
2,0
33.948
8.806
7,0
1,8
25.584
8.905
5,2
1,8
52.058
6,7
27.613
5,7
21.664
4,4
774.672 100
485.456 100
493.848 100
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
No geral, para todo o país, nota-se uma redução dos autônomos entre 1992
e 2011 (com aumento entre 1992 e 2001), podendo estar relacionada com uma
queda de produtores menores, mas deve-se destacar que não significa
necessariamente uma redução da participação da cana-de-açúcar produzida por
fornecedores das grandes usinas sucroalcooleiras. Segundo dados do MAPA
(2012), a participação dos fornecedores na produção da cana-de-açúcar aumentou
consideravelmente nos estado de Goiás, Mato Grosso do Sul (maiores produtores
da região Centro-Oeste) e São Paulo nos anos 2000. Ou seja, trata-se de
agricultores de grande porte que trabalham fornecendo matéria-prima para as
grandes usinas sucroalcooleiras.
Passando a observar os rendimentos médios dos canavieiros por tipo de
ocupação (Tabela 2), chama atenção o enorme crescimento do rendimento dos
empregados permanentes. Em 2011 estes ocupados recebiam em média R$ 991,
praticamente o dobro do observado em 1992. Entre os empregados temporários o
aumento foi relativamente menor, mas também elevado, passando de R$ 362 para
R$ 688 entre o período de análise. Analisando as regiões, a valorização dos
rendimentos dos empregados foram, sensivelmente, maiores entre os ocupados do
Centro-Oeste ao Sul.
Tabela 2. Rendimento no trabalho principal da PEA agrícola canavieira por
posição na ocupação, segundo região. Brasil, 1992, 2001 e 2011.
Região Posição na ocupação
N/NE
CO/S
Empregado
permanente
Empregado
temporário
Conta-própria
Empregador
Total
Empregado
permanente
Empregado
temporário
Conta-própria
1992
RTP
2001
2011
344,97
361,16
600,55
293,23
297,47
518,37
429,77 819,38 615,94
1.610,07 2.490,90 2.565,63
354,43 407,97 595,79
610,64
673,99 1.130,85
422,82
529,21
943,22
1.376,79
966,19
722,06
Empregador
3.831,59 7.540,29 4.536,19
Total
626,84 717,74 1.133,70
Empregado
459,06 497,55 991,22
permanente
Empregado
362,06 415,49 687,90
temporário
Brasil
Conta-própria
956,42 898,96 659,65
Empregador
2.715,14 4.240,40 3.773,41
Total
484,89 554,33 931,17
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: Não foram considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia,
Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Excluídos os ocupados que não
declararam rendimento. Valores deflacionados pelo INPC para 2011.
Nas regiões Norte e Nordeste, destaque é dado para a valorização do
rendimento entre os empregados temporários de 74%, seguido pelo aumento dos
permanentes de 66%. Por outro lado, a única ocupação canavieira que apresentou
aumento do número de ocupados também apresentou redução do rendimento
médio, o que ocorreu com os trabalhadores por conta-própria. Nestas áreas
ressalta-se o baixo rendimento dos empregados temporários, em 2011 estes
ocupados recebiam na média apenas R$ 518, valor abaixo do salário mínimo
vigente.
O mesmo ocorreu nas regiões do Centro-Oeste ao Sul, enquanto as
posições de empregado permanente e temporário apresentaram crescimento do
rendimento significativo, principalmente entre 2001 e 2011, houve queda do
rendimento entre os conta-própria e empregadores. Mas houve queda do número
total dos ocupados nestas duas últimas categorias de ocupação (conforme mostrou
a tabela anterior). Nestas regiões destaca-se também a taxa de valorização do
rendimento médio dos empregados temporários entre 2001 e 2011, que foi de 78,5%
contra 68,0% dos empregados permanentes.
Passando a observar a formalidade entre os trabalhadores na posição de
empregado, chama enorme atenção o aumento da taxa de formalidade,
principalmente entre 2001 e 2011 (Tabela 3). Para o Brasil, em 2001 cerca de 65%
dos empregados no cultivo da cana-de-açúcar estavam com carteira de trabalho
assinada, passando para 81% em 2011. Apesar da redução das disparidades
regionais, as regiões do Centro-Oeste ao Sul apresentam maiores taxas em
comparação com as regiões do Norte e Nordeste (88,5% contra 67,8%
respectivamente em 2011).
Como o esperado os empregados permanentes apresentam melhores
condições de trabalho, destacando a elevada formalidade entre as regiões CentroOeste ao Sul que detinham mais de 207 mil empregados permanentes protegidos
pelos benefícios trabalhistas oferecidos pela carteira. Apesar do crescimento
elevado da formalidade entre os empregados canavieiros nortistas e nordestinos as
disparidades são relevantes, principalmente entre os temporários, enquanto que
estes tinham uma taxa de formalidade de 54% os temporários das demais regiões
apresentavam uma taxa de cerca de 77%.
No total, ao final do período as regiões do Centro-Oeste ao Sul detinham
quase 250 mil empregados formais, o que é um contingente expressivo,
considerando uma atividade agrícola e o processo de mecanização da cultura.
Tabela 3. Empregados agrícolas canavieiros com carteira assinada e taxa de
formalidade, segundo região. Brasil 1992, 2001 e 2011.
Região
Posição na
ocupação
Empregado
permanente
Empregado
N/NE
temporário
1992
Ocupados
com
carteira
%
118.101
32.329
Total
Empregado
permanente
Empregado
CO/S
temporário
150.430
Total
Empregado
permanente
Empregado
Brasil
temporário
213.291
129.886
83.405
247.987
115.734
2001
Ocupados
com
carteira
%
55,7
22,4
42,2
81,4
51,0
66,0
66,8
37,6
84.128
26.669
110.797
90.775
68.627
159.402
174.903
95.296
2011
Ocupados
com
carteira
%
67,1
28,2
50,4
93,6
69,9
81,7
78,6
49,5
65.351
42.143
107.494
207.237
39.647
246.884
272.588
81.790
81,0
54,1
67,8
91,1
76,6
88,5
88,5
63,1
53,5
65,1
81,0
Total
363.721
270.199
354.378
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não foram considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Para melhor qualificação das condições de trabalho dos agrícolas ocupados
no cultivo de cana-de-açúcar, cabe observar a jornada de trabalho destes
trabalhadores canavieiros (Tabela 4). Não houve grandes alterações no número
médio de horas habitualmente trabalhadas pelos agrícolas canavieiros. Como o
esperado os ocupados na posição de não remunerados e de autoconsumo (que na
sua maioria representam jovens e mulheres que trabalhavam em apoio ao cultivo da
família) apresentam jornadas menores em comparação com as outras ocupações,
mas cabe lembrar que estes ocupados representam parcela minoritária dos
canavieiros. O interessante então é observar o comportamento da jornada dos
empregados. Nas regiões do Norte e Nordeste houve um aumento da jornada de
trabalho entre os empregados permanentes e principalmente entre os temporários
no período de 1992 a 2001, mostrando um pequeno aumento da precariedade de
condições de trabalho entre estes ocupados. Já entre 2001 e 2011, houve redução
destas jornadas, mas os temporários permaneceram com jornada acima da
recomendada formalmente.
Tabela 4. Média de horas habitualmente trabalhadas na semana pela PEA
agrícola canavieira por posição na ocupação, segundo região. Brasil, 1992,
2001 e 2011.
Região Posição na ocupação
N/NE
CO/S
Brasil
Empregado permanente
Empregado temporário
Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Empregado permanente
Empregado temporário
Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Empregado permanente
Empregado temporário
Conta-própria
Empregador
Não remunerado ou
autoconsumo
Total
Horas de trabalho
semanal
1992 2001 2011
46,8 47,2 47,0
44,4 46,0 44,0
40,8 43,0 38,3
47,1 41,3 44,4
34,0
34,0
34,0
44,6
49,4
47,9
44,5
54,4
45,4
49,0
48,4
44,4
62,5
44,4
46,9
45,1
45,4
54,0
35,0
32,2
26,4
48,1
47,9
46,3
42,7
50,8
48,1
48,0
47,2
43,7
50,0
45,8
46,9
44,4
41,1
50,3
34,3
33,6
29,1
46,2
46,6
45,3
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não foram considerados os residentes rurais dos estados de
Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
O que chama atenção são as jornadas de trabalho maiores entre os
empregados das regiões Centro-Oeste ao Sul em comparação com as demais
(exceto em 2011 para os empregados permanentes). No início do período analisado
a jornada dos permanentes era de 49,4 horas semanais nestas regiões, número que
se reduziu até 2011 mas permaneceu acima da jornada regular formal.
Por fim, cabe observar a proporção de empregados agrícolas canavieiros
que receberam auxílio no trabalho principal (Tabela 5). Entre os empregados da
região do Norte e Nordeste, nota-se uma forte redução da participação dos que
receberam auxílio moradia (passando de 34,6% para 10,7%, entre 1992 e 2011).
Mas cabe ressaltar que apesar de representar um auxílio recebido pelos
empregados, não necessariamente trata-se de um benefício em dinheiro, podendo
ser traduzido em locais de moradia temporária oferecidos aos ocupados durante o
período da colheita da cana-de-açúcar, o que sugere que se constituem em locais
de precárias condições para moradia, como por exemplo, alojamentos localizados
nas proximidades das plantações de cana. Ou seja, o auxílio pode representar, até
certo ponto, uma precariedade maior da ocupação. O mesmo pode ocorrer com o
auxílio de transporte, possivelmente uma parcela significativa é caracterizada por
meios de transporte encontrados em precárias condições de uso e oferecidos aos
empregados pela própria empreiteira contratante de serviços em canaviais.
Tabela 5. Empregados canavieiros que recebiam auxílio no trabalho e
porcentagem sobre o total de empregados, segundo região. Brasil, 1992, 2001
e 2011.
Regiã
o
Tipo de auxílio
Moradia
N/NE
Alimentação
1992
Empregado
s
beneficiado
s
123.208
8.615
Transporte
75.279
Saúde ou
11.400
%
34,
6
2,4
21,
1
3,2
2001
Empregado
s
beneficiado
s
67.265
12.410
68.850
8.933
%
30,
6
5,6
31,
3
4,1
2011
Empregado
s
beneficiado
s
16.992
14.887
60.474
9.933
%
10,
7
9,4
38,
1
6,3
reabilitação
CO/S
Moradia
48.789
15,
1
17.010
Alimentação
15.690
4,9
21.055
Transporte
182.873
Saúde ou
reabilitação
42.837
Moradia
Alimentação
Brasil
Transporte
171.997
56,
6
13,
3
25,
3
120.005
25.094
84.275
8,7
10,
8
61,
5
12,
9
20,
3
32.786
116.145
167.853
91.511
49.778
24.305
3,6
33.465
8,1
131.032
258.152
38,
0
188.855
45,
5
228.327
11,
7
41,
6
60,
1
32,
8
11,
4
29,
9
52,
2
23,
2
Saúde ou
54.237 8,0
34.027 8,2
101.444
reabilitação
Fonte: microdados da PNAD. Elaboração dos autores.
Nota: não foram considerados os residentes rurais dos estados de Rondônia,
Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Considerados apenas os ocupados
na posição de empregado.
No geral, as regiões Norte e Nordeste apresentam participação muito
reduzida dos auxílios alimentação e saúde ou reabilitação, não chegando a atingir
10% dos empregados agrícolas canavieiros.
Nas regiões Centro-Oeste ao Sul a proporção de empregados que
receberam auxílio é bem superior às demais regiões menos desenvolvidas (exceto o
auxílio moradia que cobre parcela similar as demais regiões, apenas 11,7% dos
ocupados). Destaca-se a grande participação de empregados que receberam auxílio
transporte (chegando em 2011 a representar cerca de 60% do total de empregados),
além do crescimento significativo, principalmente entre 2001 e 2011, dos auxílios de
alimentação e de saúde ou reabilitação entre os empregados canavieiros das
regiões.
5. Considerações Finais
Apesar da grande representatividade do setor em termos produtivos e de
geração de valor, o mercado de trabalho agrícola canavieiro tem apresentado forte
redução, com corte de mais 280 mil postos de trabalho. Dentro deste contexto geral,
o artigo permitiu verificar que tanto a expansão produtiva da cana-de-açúcar no
território brasileiro como os seus impactos sobre o mercado de trabalho foram
desiguais entre as regiões. A utilização de diferentes formas de contratação entre as
diferentes regiões conformam elevadas desigualdades de rendimento, formalidade e
benefícios recebidos pelos trabalhadores.
Entre os pontos positivos, chama atenção o elevado nível de formalidade
entre os ocupados agrícolas nestas atividades, assim como o nível de rendimento
relativamente alto em comparação com outras atividades da agricultura brasileira. A
própria modernização e inserção do setor agroindustrial na questão ambiental
(trazendo a necessidade de uma imagem de modernidade e de consciência
sustentável) pode ter sido um fator que contribuiu para o aumento da formalização
do uso da mão-de-obra nos canaviais. É também importante ressaltar o aumento do
rendimento médio que, em todas as regiões, foi mais intenso a partir de meados dos
anos 2000 (que pode ser explicado pela intensa expansão da produção e também
pelas melhorias das condições de trabalho juntamente com a política de valorização
do salário mínimo adotada principalmente a partir de meados dos anos 2000).
Contudo, os ganhos produtivos foram maiores em certas regiões do país e
se traduziram em melhores condições de trabalho e principalmente emprego (tanto
para os permanentes como para os temporários). Já nas regiões onde
permaneceram baixos níveis de produtividade e expansão produtiva menos
acentuada, as melhorias no mercado de trabalho não se revelaram na mesma
dimensão. Nos dois extremos encontram-se as regiões Centro-Oeste e Nordeste.
Em 2011, o rendimento médio dos canavieiros da primeira região era o dobro da dos
nordestinos. As disparidades regionais continuam elevadas e se intensificaram, de
certa forma, pelas melhorias nas condições de trabalho mais acentuadas nas
regiões do Centro-Oeste Sudeste e Sul em detrimento do Norte e, principalmente,
Nordeste.
Por fim, salienta-se que, assim como destacado por Moraes (2007), em
relação aos trabalhadores que ainda permanecem nesta atividade agrícola, deve ser
dada a devida preocupação (em vista a previsão do fim das queimas), sendo que o
destino destes ocupados não é promissor (devido a falta de qualificação) em relação
às oportunidades de inserção em ocupações com melhores condições de trabalho,
sugerindo que algumas políticas públicas deveriam se direcionar à recolocação
destes ocupados. No geral, sugere-se que esse contexto de queda de ocupações e
opções de trabalho remunerado no campo (não só no setor sucroalcooleiro) acaba
dando ainda mais importância para as políticas públicas (desde programas de
transferência de renda até programas de crédito rural ao pequeno produtor e
políticas de incentivo à pequena produção que focam a distribuição e
comercialização de produtos assim como assistência técnica) nas regiões menos
desenvolvidas. Cabendo lembrar que muitas vezes esses trabalhadores acabam não
encontrando alternativas de ocupação em outras atividades agrícolas, visto a
enorme expansão de culturas no campo que exigem baixo emprego de mão-deobra, agravante que Graziano da Silva (1997) já havia apontado durante os anos
1990.
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GT 5 Sessão 3