“Em Direção à Minha Voz” Quando um filme é um filme... Maria Alice Rocha É possível trazer imagens que convocam poesia para se falar sobre povos que vivem conflitos territoriais, políticos, econômicos e culturais sem, no entanto, amenizar os efeitos de tal estado? Alguns filmes conseguem isso, como “Em Direção à Minha Voz” (2014), do diretor turco Huseyin Karabey. Relaciono a esse outros já lançados que trabalham essa temática, trazendo inclusive crianças como protagonistas: “Brinquedo Proibido” (1952), do francês René Clément, e “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2006), do brasileiro Cao Hamburger. Essas produções não apelaram para a simplificação e/ou a idealização para representarem situações difíceis de abordar. Ao contrário, as crianças e os velhos são chamados para dar visibilidade ao absurdo que tais conflitos credenciam. Imaginem como são atingidos aqueles que não têm voz? Os habitantes considerados fragilizados são os que parecem ter mais condições de demonstrar as contradições e, ao mesmo tempo, convocar a discussão sobre questões que estão mascaradas nessas situações, como o exercício do poder sem medidas e os interesses privados. O filme, como sugere o título na sua tradução para o português, consegue usar muito bem esse recurso narrativo, ao trazer uma criança e sua avó como personagens principais. Essa família curda é levada a tomar atitudes que podem comprometê-‐la e até mesmo atingi-‐la de modo brutal, quando resolvem encontrar uma saída para trazerem de volta da prisão o filho/pai preso injustamente. A exuberância da natureza montanhosa turca revelada nesse filme parece realçar o “pequeno” que compõe os motivos dos conflitos. As estradas vazias, os arames farpados e os exércitos a postos revelam a insegurança e o perigo para quem precisa atravessar essas paisagens, sem livre acesso. Ainda assim, "é preciso ir em direção à minha voz"; é o que fazem a avó e a neta quando tentam, cada uma à sua maneira, conseguir armas para negociar a libertação almejada. As sequências da menina recolhendo armas de brinquedo e da avó desenterrando um "tesouro" exemplificam tal posição. O recurso a tais cenas e os cortes entre as sequências parecem funcionar como uma forma de dar um tempo para que seu espectador respire e participe do filme, elaborando sua continuidade. A opção de explorar essa condição de implicação pelo viés narrativo das fábulas e dos contadores de histórias merece também ser destacada, principalmente por valorizar uma tradição que faz parte da etnia curda, além de fazer com que se possa relacionar a condição do narrador, no sentido discutido por Walter Benjamim no livro "Magia e Técnica, Arte e Política" (1985). No texto “O Narrador”, o filósofo alemão questiona essa figura, dizendo que o mesmo está em vias de extinção, e tendo a compreensão de que um narrador se implica no que narra, como o personagem que o filme apresenta. Ele nos dá uma dimensão do que é contar um acontecimento, pois ao transmitir uma experiência recupera traços tradicionais de seu povo e de sua própria experiência, e os relaciona aos vividos pelos outros. Enfim, o filme visto, com seus elementos bem dispostos, possibilita "intercambiar experiências", para usar uma expressão benjaminiana. "O Sonho de Wadjda" Um olhar genuinamente local Por Gabriel Fabri Um filme que fez história. "O Sonho de Wadjda" (2012) é um exemplar raro de cinema, por carregar consigo toda uma importância sociocultural: ser o primeiro longa-‐metragem dirigido por uma mulher na Arábia Saudita. A diretora Haifaa Al-‐Mansour desponta com a nada fácil missão de mostrar para o mundo um olhar genuinamente local sobre o país. Ela aposta numa narrativa simples, mas carregada de um simbolismo forte e de uma ternura surpreendentemente encantadora. Wadjda é uma garotinha que todos querem que seja comum, que siga as regras de disciplina impostas pela sociedade, pelo alcorão e pela instituição escolar, como todas as outras meninas de sua idade ou todas as mulheres da região. Entretanto, ela possui uma rivalidade de criança com um garoto do bairro e deseja uma bicicleta para apostar corrida com ele. Se para o Ocidente esse parece ser um desejo comum, para o círculo social da garota tal desejo é indecente, pois bicicleta é apenas para garotos. Contra a vontade de todos, Wadja começa a pensar em como conseguir comprar uma, e segue numa jornada para arrecadar dinheiro. A partir da protagonista, o filme cutuca os preceitos, o senso comum, os dogmas e os tabus de sua sociedade, por um olhar feminino, mas também infantil. Wadjda não é ingênua, pelo contrário, ela conhece a sua sociedade -‐-‐ e a questiona, coisa que nenhum dos poucos adultos do filme parece fazer. Por que só os meninos podem ter (e andar de) bicicleta? Por que ela não pode pular amarelinha na frente dos homens? Qual o sentido de se cobrir com uma burca preta no calor do Oriente Médio? Wadjda, apesar de ser apenas uma menina, é a mulher mais forte do elenco, praticamente todo feminino. Ela tem a coragem de desafiar a sociedade patriarcal em que vive, por meio de suas pequenas teimosias. Sutilmente, ela critica as imposições da sociedade à mulher, enquanto, nitidamente, só quer ser ela mesma: uma criança, e brincar como uma, sem restrições de gênero, sem imposições sociais nas quais não vê propósito. Ela quer o brinquedo "de menino" e não tem medo de admitir. Sua rebeldia é usar tênis All-‐star roxo, ao invés da sapatilha preta das outras meninas. Com delicadeza e bom humor, a diretora conseguiu fazer um filme encantador, divertido e crítico. Uma personagem cativante (a menina está ótima em seu papel), com problemas de criança que apontam para questões muito maiores. Um filme que parece ter vindo de um cinema maduro, e não da primeira experiência feminina por trás das câmeras na Arábia Saudita, a ponto de a única cena triste ser tão emblemática, com fogos de artifício em segundo plano. "Taram, Tarambola" As provas de amor Cleide Fayad A necessidade do amor dos pais inspira duas irmãs a poetizar a própria vida dançando, cantando e reinventando histórias em "Taram, Tarambola" (2014). Emilie e Anna vão criando uma linguagem mágica para se relacionar com o mundo e lidar com a inconseqüência e o desequilíbrio dos adultos; com a angústia insuportável do abandono pelo pai, incapaz de implicar-‐se e de dedicar tempo a elas. A diretora opta por apresentar a história do ponto de vista das crianças e esse "primeiro olhar" radicalmente sincero de que são capazes conduz a narrativa. A expectativa de coerência e justiça nas suas relações guia a observação atenta do cotidiano, revelando a incapacidade dos adultos em perceber o próprio despreparo, a violência e o risco a que expõem seus filhos, muitas vezes. A frustração decorrente da impossibilidade de contar com os pais fortalece a cumplicidade e o sentimento de proteção entre as meninas, evidenciada em pequenos gestos. Cada uma se esforça, à sua maneira, para manter o autocontrole quando, no limite de suas forças, percebe a necessidade do apoio à irmã, que se fragiliza. "Taram, Tarambola" reivindica o amor como compromisso real, a ser expresso pela ação concreta dos adultos – na presença, no cuidado constante com a criança. Faz lembrar a máxima de Robert Bresson, no diálogo de "As Damas do Bois de Boulogne" (1945): "Não existe o amor, só existem as provas de amor". Por meio da direção de arte, o filme aponta a importância do próprio cinema no desenvolvimento do imaginário infanto-‐juvenil ao evocar filmes como a série "Sissi", "Pedro e o Lobo" e comédias de Jacques Tati. Na sua abordagem visceral do cotidiano das crianças com sua família, "Taram, Tarambola" discute a responsabilidade -‐-‐ intransferível -‐-‐ dos pais e assim contribui, verdadeiramente, com a infância. "A Conquista do Espaço" Momento épico do imaginário Giovana Botti A repetição marca a narrativa do curta ficcional "A Conquista do Espaço" (2011). Com roteiro e direção de Chico Deniz, o filme centra atenções no cotidiano de um menino tipicamente urbano e redunda cenas de grades, janelas, portas, cintos de segurança e portões de condomínio para tentar dimensionar uma infância sem quintais e brincadeiras de rua. De casa para a escola e da escola para casa, é só no trajeto feito de carro que o menino tem contato com a vida na cidade e, pela janela, observa a espontaneidade expressa pela alegria de garotos pedintes no farol. O ritmo narrativo das cenas dos meninos de rua é generoso, a trilha sonora entorna mais alegria e as crianças carentes são só felicidade pelo olhar do pobre menino rico. Enquanto isso, cortes dinâmicos e sequências repetidas das horas a fio em frente ao videogame e na rotina da escola tentam representar a agenda atribulada do menino, que só brinca com outras crianças durante as aulas ou no recreio. Nessas circunstâncias, escapar dos muros do condomínio vira um momento épico no imaginário e a referência ao clássico "2001 – Uma Odisseia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick, marca a busca pelo fascínio do espaço e o encontro com novas descobertas que enriqueceriam a experiência infantil. Para representar a apatia das relações humanas na caricatura da infância do menino de classe média, os diálogos são telegráficos e os personagens nada reflexivos. Com recursos que fogem da sutileza, "A Conquista do Espaço" soa como um pito nos adultos que cercam o universo infantil de redes de proteção e amarras que isolam a criança do mundo lá fora. "Corvos" Solidão e abandono Giovana Botti As cenas de duas crianças brincando, felizes, pelas ruas de uma pacata cidade nórdica em um dia chuvoso poderiam ser de absoluto ludismo se uma das meninas não estivesse raptando a outra. É assim, belo e inquietante, o longa-‐metragem polonês "Corvos" (1994), de Dorota Kedzierzawska. Pelas impressões e angústias da garota, de 9 anos, que decidiu raptar uma menininha ainda menor que ela, só para ser chamada de mãe, o filme revela melancólicos momentos de solidão e abandono materno em meio a uma fotografia marcada por sombras. É ela o "corvo", assim apelidada porque imita o bicho e não por acaso reage com agressividade refratária ao mundo que não a acolhe. A cena em que a garota é obrigada a aparecer na aula de ginástica feminina da escola usando roupa íntima, por ter esquecido o uniforme em casa, é a alegoria dessa inadequação. Ela é vítima de "bullying" por aparecer diferente, enquanto todas as meninas estão de "collant" preto, como corvos alinhados em fios de alta tensão. A volta para casa é a volta para uma sopa insossa, um comer solitário, um mundo sem adultos e sem tutores. Não há amigos, família ou Estado. Só inimigos e indiferentes. Ainda assim, ela não arrefece a aspereza e a narrativa constrói a justificativa para a menina ser quem é. Faz até perdoar o rapto de outra criança porque tudo o que ela queria era ser a mãe que gostaria de ter. A infância difícil na relação com o mundo adulto lembra o clássico “Cria Cuervos” (1975), de Carlos Saura, outro drama protagonizado por uma menina incompreendida e que também lida com a alegoria dos corvos. Em "Corvos", a menina finalmente se entrega ao choro natural da infância na sequência final do filme, quando ela pede colo para a mãe, sempre ausente, e a câmera sai da perspectiva da criança para assumir o olhar do espectador. Para a diretora, a culpa é social, é de todos nós. Como no provérbio espanhol, "crie corvos e eles te arrancarão os olhos". "Sam" Turbilhão de emoções Juliana Sabbag "Sam" (2013) é a história de um garoto de 7 anos que mora com a mãe desde o divórcio dos pais e que um certo dia, a pedido da mãe, tem que passar a morar temporariamente com o pai, de quem é muito distante. Um escritor sem inspiração, que nunca cuidou desse filho e que, aos olhos de todos os que estão à sua volta, não tem nenhuma capacidade para a tarefa. Aos poucos, Sam vai mostrando a esse pai os caminhos do afeto e luta como ninguém por essa aproximação. Entramos em sua angústia, no vazio que sente por não ter aquele pai de quem sempre sentiu falta. Mas ele não desiste. Seus olhos dizem muito e esse é um grande mérito do filme, que nos transporta diretamente para dentro de Sam e nos faz acompanhar o turbilhão de emoções por que passa o menino no dia a dia da convivência com o pai. Ora seus olhos abaixam de tristeza, ora se iluminam de esperança nas pequenas coisas. E, nessa via de altos e baixos, vamos conhecendo um pouco esse pai e entendendo os limites daquilo que ele pode dar e das escolhas que ele faz. Nesse sentido, o filme nos faz refletir também sobre expectativas, sobre o que se espera de um pai. Simples, esse longa que nos chega da Suíça vem pra nos lembrar que nunca se deve desistir de uma criança. Vem pra mostrar o quão sensível são as relações familiares e como a infância, mais do que tudo, deve ser olhada com atenção e com toda delicadeza que merece. "A Menina Espantalho" Conduzir o pai pela mão Maria Helena Maquete Quando um homem é privado de tudo, o que resta enfim é ele mesmo. Foi o que senti a respeito de Geraldo, o pai de Luzia em "A Menina Espantalho" (2008), curta-‐metragem do mineiro Cássio Pereira dos Santos. Geraldo é um retrato fiel do homem do campo que, longe do glamour dos shoppings e das atrações da vida moderna, agarra-‐se à realidade de sua enxada e do plantio do que comer. Vários aspectos motivaram minha simpatia e empatia com o filme, entre eles os cenários suficientemente restritos a planos, na maioria fechados, da ambientação da lida no campo e das interações à mesa, abrindo-‐se justamente quando se referem a momentos prazerosos de criatividade ou conquista, notadamente das crianças. Os figurinos modestos (ninguém maltrapilho), a leveza com que narra uma história rude de vida, deram-‐me também a oportunidade de recordar momentos na infância em que a felicidade fluía tão inequívoca dentro de mim à custa de coisas poucas e simples. Mesmo proibida pelos costumes de aprender a ler, tal como é permitido ao irmão Pedrinho, Luzia enfrenta as negativas do pai sem se deixar convencer de sua rigidez. E, apesar de seu papel central, a pequena Luzia, a quem, aliás, se refere o título, pareceu-‐me conduzir Geraldo pela mão, possibilitando colocar em close a grandeza humana desse pai tão aparentemente bruto e, ao mesmo tempo, tão capaz de se render ao novo, revendo enraizados conceitos e consultando, para tal, apenas seu próprio coração. Com uma espécie de astúcia terna e velada, o filme propicia uma visibilidade também à mãe de Luzia, que sequer o direito a um nome recebe na trama. Ao mesmo tempo, porém, seu papel materno reforça a conclusão de Donald Winnicott, psicólogo inglês com notável experiência na análise do comportamento infantil, sobre a importância de uma mãe real, nem boa, nem má, para uma formação saudável e promissora de cada criança: "A mãe suficientemente boa é um colo protetor e facilitador para que o filho enfrente o mundo". Mesmo sem condições de gerar para si uma melhor participação social, dessa mãe seca de perspectivas brota uma Luzia fértil de determinação e viçosa como o arroz que sua mãe colhe numa conotação poética sobre a germinação de sua própria semente numa versão mais livre, forte e agora com nome: Luzia. Outra impressão que me fica é a de que, tal como o Pequeno Príncipe de Saint-‐Exupéry, quantas vezes assistir à "Menina Espantalho", mais lições de vida e poesia irei encontrar na relação entre os personagens do filme e seu mundo. Foi inevitável pensar no paradoxo de nossa vida urbana em que quanto mais conforto alcançamos, mais nos afastamos das chances de conhecer o verdadeiro tamanho de nossa força de vida. Realidade dura, rendição, ternura e perseverança, "A Menina Espantalho" reúne tantas razões para entreter e emocionar quantas as que centenas de longas-‐metragens gostariam de ter. Fantasiando com a concretude com que Luzia e Pedrinho conseguem fazê-‐lo, tive um desejo estranho de abraçar a tela, apertando junto ao peito todos os personagens, convencendo-‐os da grandeza de suas existências e absorvendo deles um maior sentido para a minha. "Sanã" Um mundo à parte Maria Helena Masquetti Não existem palavras para descrever a solidão, e muito menos a solidão de uma criança, seja ela uma autista, socialmente abandonada ou simplesmente imersa em seu mundo interior, como é natural, enfim, das crianças. Mas a empatia e a sensibilidade parecem ter se unido para possibilitar ao diretor Marcos Pimentel esse exercício, no curta-‐metragem "Sanã" (2013), de tentar ilustrar o universo solitário, mas nem por isso limitado, de um garoto albino mergulhado num mundo à parte numa comunidade à beira mar. Pelas várias impressões que suscita, "Sanã" bem pode ser um desses híbridos concebidos dentro de determinada linguagem, mas que, no decorrer da realização, acabam numa fronteira com outra, o que não invalida a riqueza de ambas as percepções, seja o filme entendido como um documentário realista ou uma ficção poética. No entanto, uma bicicleta em ótimo estado num cenário precário de confortos, os trajes mais coloridos que se destacam na paisagem, bem como a proximidade sem contato de outros personagens me falam muito mais sobre a representação de uma criança em sua busca encantada pelos detalhes do seu aqui e agora, explorando os elementos de que dispõe à sua volta. Apesar do comportamento solitário e talvez consequentemente invisível, o menino , centro da trama, não parece triste, tampouco louco, e sua invisibilidade por parte de outras crianças reforça a impressão de que ele seja apenas a representação de um estado interior das crianças. As poucas e esparsas conversas que se ouve entre os demais ilustram essa ponte tênue entre o mundo interno e o externo das crianças, em que tanto um como o outro costumam ser igualmente reais para elas. Pode-‐se ver em "Sanã" um paralelo com a menina de "Corvos" (1994), de Dorota Kedzierzawska, no qual a narrativa parece provir do próprio sentimento, da solidão e dos medos provocados pelo abandono, os quais a dramaticidade da ambientação quase materializa. Mas os filmes parecem tomar caminhos opostos quando, entre outros detalhes descritos, em "Sanã" a tristeza não figura como centro das atenções e o menino por vezes sorri. A vastidão das dunas, a fina poeira que paira indicando um silêncio que beira o místico, a movimentação ritmada do mar e a tonalidade suave das cenas conduzem muito mais a uma meditação sobre o tema da solidão criativa infantil do que a alguma compaixão sobre a criança que ali não demonstra, enfim, necessitar dela. Quem mais a não ser uma criança poderia se importar em entender o modo de sentir de um caranguejo submerso nas areias da praia? "Corvos" Clima de tensão contínua Maria Helena Masquetti Os corvos, que dão título ao filme, são historicamente associados a aspectos sombrios e obscuros, bem como à morte. E é justamente esse sentimento que se pode captar diante do drama da criança que protagoniza o filme. Mais do que compaixão ou tristeza, a ambientação permite captar a morbidez do mundo interno e externo no qual vive uma garota aparentando nove, dez anos, e cujo nome não é mencionado. Rejeitada pela mãe que, por sua vez, parece também perdida em suas buscas por afeto, a pequena ganha as ruas expondo-‐se ao risco iminente e mantendo o filme num clima de tensão contínua enquanto corre a maior parte do tempo. Após sua fuga de um homem ameaçador, o ecoar de um grito no escuro furta de quem assiste a ilusão confortável de que a coragem lhe bastaria para sair ilesa da crueldade das ruas. Ao sequestrar uma garotinha de prováveis quatro anos – cuja interpretação rouba a cena por algum tempo –, a menina de "Corvos" (1994) parece desejar experimentar o gosto do afeto ao buscar produzi-‐lo na criança. A não evidência de uma busca determinada pelo paradeiro da criança, os diálogos inconclusos com estranhos, a iluminação sombria dos cenários e a interação escassa da menina com outras pessoas dão um forte tom ficcional ao filme que, no entanto, mantém os pés firmes na questão da privação e da consequente delinquência. A iluminação quase tétrica da maioria das cenas, a coloração leve nos planos abertos da menina numa praia deserta e sua contemplação solitária do mar transmitem a sensação de uma narrativa feita do ponto de vista da própria solidão. Nesse aspecto, o drama revela um traço comum com o curta "Sanã" (2013), de Marcos Pimentel, no qual a solidão de uma criança também parece ser narrada pelo sentimento, diferenciando-‐se, no entanto, pelo enfoque mais poético da introspecção infantil. Contendo o choro diante das adversidades, a menina revela uma capacidade quase selvagem de resiliência, dando sinais, porém, do chamado estado borderline atribuído pela psicologia às pessoas que não vivem fora da realidade e nem dizem coisas delirantes, mas, ao mesmo tempo, já não se ajustam satisfatoriamente ao mundo real. Ao rosnar para um cachorro e grasnar para os corvos como se dialogasse com eles, além de sequestrar uma garotinha sem noção das consequências, ela dá mostras disso. Em nova tentativa inglória de atrair a atenção materna, suas forças parecem se esvair, indicando sua rendição a uma morte, seja ela física ou psíquica. Representada pela única cena em cores onde a menina afugenta os corvos, a morte parece ganhar um status de alívio. "Território do Brincar" Espaço do encontro Beatriz Craveiro "Território do Brincar" (2015) é um filme sobre infância e, sendo esse seu tema principal, traz questionamentos quanto à representação: a narrativa apresentada é para crianças, sobre crianças ou meramente com crianças? Ainda que pareça retórica, entrando no campo das teorias, não necessariamente intrínseco ao cinema, a pergunta me parece pertinente, principalmente em relação a outros filmes com temática infantil no cinema brasileiro contemporâneo. De que forma estamos enxergando e representando nossas crianças? O filme trabalha com um recorte específico: as diferentes formas de brincar em cidades brasileiras, priorizando comunidades menores e que, de certo modo, tenham uma ligação muito forte com a natureza. Essa escolha vai contra uma maré de filmes atuais, em que a infância e a adolescência são vistas como sintomas de uma sociedade cada vez mais apegada à tecnologia e à comunicação em massa. Indo por esse viés, a narrativa que se constrói se direciona mais para uma infância idealizada, como visão dos adultos do que deveria representar esse período tão enigmático da vida. Essa sensação vem principalmente através das imagens que constroem o filme. A fotografia em "Território do Brincar" é esteticamente muito forte, tendo o poder de comover o olhar do espectador que se deleita com as imagens na tela. Os enquadramentos são bem trabalhados, a luz traz um tom de etéreo e a composição com a música torna tudo quase mágico. Por se tratar de um documentário, a fotografia é quase "boa demais". E é esse fato que traz uma certa sensação de estarmos nos relacionando com o filme através dos olhos dos realizadores -‐-‐ adultos -‐-‐ e não das crianças, as grandes protagonistas dessa narrativa. A câmera quase não "brinca". Salvo certos momentos, é raro a câmera correr junto com as crianças, acompanhar seus movimentos lado a lado e se deixar contaminar pela loucura que são as brincadeiras ali representadas. Em um filme cujos "personagens" têm uma idade de muita movimentação, é um tanto estranho observar que a câmera permanece racional, distante em seu trabalho mesmo quando próxima daquilo que se observa. A disassociação da forma (imagem) do conteúdo (brincadeira) causa esse estranhamento. Analisando um outro espaço, a opção em não usar narração enriquece os diálogos e a poesia presente na interação entre as crianças, que criam um mundo próprio com suas brincadeiras. O discurso, portanto, vem daqueles que foram filmados, sem uma intervenção ou reinterpretação por parte dos realizadores do filme. A ausência da narração harmoniza com o posicionamento do filme em mostrar um protagonismo infantil, em que as crianças dominam as cenas e seus conteúdos. Essa escolha se torna muito importante em questão de representação, principalmente ao levar em conta que se trata de um documentário. Entretanto, levanta um outro questionamento: onde estão os realizadores nos momentos das filmagens? Por que -‐-‐ dentro das imagens que nos são fornecidas pelo filme -‐-‐ não interagem e brincam com as crianças? Essa objetividade se junta à estética da câmera e constrói um filme que traz o realizador mais presente no pensamento de montagem do que no encontro com o real, no poder que o documentário tem de colocar pessoas em frente à câmera e observá-‐las interagir. O filme se encaminha, então, para o campo do documentário chamado de observacional, em que o realizador não interage, mas usa a câmera como dispositivo para captar momentos que acredita serem interessantes. A não interação da equipe de filmagem com as crianças não desmerece o filme, apenas constrói um pensamento que pode ser enxergado através da análise de suas imagens. "Território do Brincar" é um filme que traz muito presente o olhar da criança sobre sua própria maneira de brincar, construindo no relacionamento criança-‐criança uma poesia desse olhar que capta o mundo de uma forma diferente. O documentário alcança o que muitas vezes falta a filmes de ficção: o poder de conectar o espectador com uma realidade -‐-‐ na maioria das vezes -‐-‐ diferente da sua, criando uma imersão nesse mundo enigmático, mágico e, sobretudo, brincante.