PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Narrativas heroicas e mundos possíveis: os discursos globabilizados do empreendedorismo social1 Angelina Sinato2 ESPM Resumo Esse artigo aborda o discurso do empreendedorismo social. Analisamos as narrativas comunicacionais que constituem a imagem do empreendedor social em discursos globalizados. Para tanto, abordaremos instituições de abrangência mundial: Ashoka, Skoll Foundation e Schwab. Tais instituições articulam novos mundos possíveis (Lazzarato, 2006), e representam de maneira emblemática o novo espírito do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 2009). Nesse cenário, os empreendedores são representados pela forma mítica e heroica, como novos olimpianos (Morin, 2011). Do ponto de vista metodológico, trabalharemos com a análise de discurso (Fairclough, 2001). Palavras-chave: empreendedorismo social; mundos possíveis; espírito do capitalismo; olimpianos. Introdução As narrativas globais sobre o empreendedorismo social ganham legitimidade crescente em nosso tempo. Diante da repercussão de tal fenômeno, buscamos entender sua origem, sua fundamentação retórica3 e quais os reflexos sociais e culturais a ele atrelados. Dado esse objetivo, optamos por observar o plano discursivo, o que caracteriza o estudo do tema como um fenômeno comunicacional. Os discursos, além de representarem entidades e relações sociais, também as constituem, e enfocam as 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: GT 01: COMUNICAÇÃO E CONSUMO: cultura empreendedora e espaço biográfico, do 4º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP. Email: [email protected]. 3 Vale ressaltar que o termo “retórica” é aqui entendido como “o estudo dos discursos que circulam na sociedade sob o ângulo da argumentação.” (Angenot, 2012, p. 144). PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) pessoas como o centro dessas relações, para o papel de sujeitos sociais (Fairclough, 2001). Para entendermos como se dá a preponderância do discurso empreendedor e, especialmente a do empreendedorismo social, dois conceitos são muito relevantes: novo espírito do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 2009) e mundos possíveis (Lazzarato, 2006) e a articulação entre ambos. O capitalismo mostra-se como um sistema em que a busca pelo salário não é motivação suficiente, é preciso que o trabalhador empenhe-se em sua função de maneira mais contundente. Esse é um dos motivos da existência de um espírito que permeie o sistema. O “envolvimento pessoal” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 39), torna-se essencial para o sistema capitalista e, como abordaremos adiante, também é muito relevante para constituir o discurso empreendedor. Já Lazzarato realiza uma leitura histórica para mostrar que crises passadas enfrentadas pelo capitalismo levaram à necessidade da criação de um sistema em que existam novos mundos possíveis, capazes de amenizar problemas apresentados pelo modus operandi do capitalismo tradicional. É nesse sentido que se revela que “o enunciado ‘um novo mundo é possível’ designa, assim, menos uma afirmação do que uma interrogação, um questionamento” (Lazzarato, 2006, p. 14). Questionamento que se leva adiante na construção de enunciados, destacando que “o mundo possível existe perfeitamente, mas não existe fora daquilo que o expressa (enunciado, rosto, signo) nos agendamentos coletivos de enunciação” (Lazzarato, 2006, p. 25). E é nesse campo do enunciado que as instituições de empreendedorismo social constroem seus mundos possíveis. No interior de cada mundo possível, existem elos simbólicos, que estimulam a ação cooperativa entre seus participantes, como podemos observar por meio do site da Ashoka: Os empreendedores sociais da Ashoka fazem parte de uma rede mundial de intercâmbio de informações, colaboração e disseminação de projetos composta hoje por mais de 3500 empreendedores localizados nos diversos países em que atuam (...). Além disso, o Centro de Competência para Empreendedores Sociais – uma parceria da Ashoka com a McKinsey & Company – oferece para a rede de empreendedores sociais a adaptação e transferência de conhecimentos, práticas, ferramentas de gestão e planejamento do setor privado para o setor social. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Cria-se, assim, um sentimento de pertencimento. Os sujeitos podem e tentam construir possibilidades, mas é importante ressaltar que todas elas acontecem somente dentro da lógica do capital. A promessa de transformação é sempre presente, mas o que se constrói para que ela aconteça privilegia o sistema vigente. E, como podemos observar pelo exemplo a seguir, a lógica empreendedora replica o discurso empresarial: os empreendedores sociais são designados como “indivíduos que combinam pragmatismo, compromisso com resultados e visão de futuro para realizar profundas transformações sociais.”, destaca o site da instituição Ashoka. Dessa forma, a hipótese que norteia este estudo é a de que tais parâmetros discursivos inseridos no novo espírito do tempo constituem a imagem dos empreendedores sociais como olimpianos (Morin, 2011), semideuses que apresentam características ao mesmo tempo humanas e sobre-humanas. 1. Contexto histórico do empreendedorismo social O próprio termo “empreendedorismo social”, apesar de amplamente divulgado e reconhecido, não possui uma definição clara. As instituições apresentam diversas traduções e construções históricas para o nascimento desse fenômeno. Assim, optamos por mostrar o contexto histórico do empreendedorismo social por meio das instituições analisadas. A Ashoka se propõe, nesse sentido, como pioneira na definição do empreendedor social. Bill Drayton, fundador da instituição em 1980, conta que o projeto originou-se por meio do apoio a “inovadores para o público” ou “empreendedores do público”. Para Drayton, “os empreendedores sociais são aqueles que reformam ou revolucionam o modelo de produzir valor social nas áreas da educação, da saúde, do ambiente e do acesso ao crédito, encontrando novas e melhores formas de fazer as coisas.” Segundo esse mesmo site que descreve a maneira como se iniciou o empreendedorismo social, somente a partir dos anos 90 é que se passou a reconhecer a maneira de agir do empreendedorismo social como símile do PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) empreendedorismo, com a diferença de não ser totalmente orientado para negócios ou economia. Discurso que já contém um paradoxo intrínseco. A organização conta sua história, seu pioneirismo ao trabalhar com pessoas capazes de realizar “transformações de alto impacto social”, e destaca sua atuação mundial e a rigorosidade de seu processo seletivo: “além de uma rede ampla de empreendedores sociais, a Ashoka promove protagonismo, transformação e empatia em diversas esferas na sociedade.” E, ainda de acordo com o site da instituição: Graças ao seu rigoroso e qualificado processo de seleção voltado para a busca permanente por inovação, ao apoio dado aos empreendedores sociais nos diferentes estágios de desenvolvimento de suas ideias e ao investimento realizado em pessoas, e não em projetos, a Ashoka se faz uma organização única, diferenciada no contexto do setor social no Brasil e no mundo. O nome Ashoka refere-se a uma expressão em sânscrito que significa “ausência de sofrimento”, e a logomarca que representa uma árvore de carvalho, capaz de acolher seus participantes, em busca de oferecer um ambiente propício para a produção de um mundo em que não haja sofrimento, mundo esse transformado pelas ideias inovadoras dos “fellows” da Ashoka. A Schwab Foundation é uma instituição fundada em 1998, de atuação tanto local quanto global, com o objetivo de disseminar modelos sustentáveis de inovação. Ela se encontra sob a supervisão legal do Governo Federal da Suíça, e fica em Genebra. Ela é a segunda instituição formada pelo professor Klauss Schwab, também criador do World Economic Forum, em 1971. Apesar de ser o Fórum Mundial também uma organização sem fins lucrativos, a Schwab Foundation originou-se “com a finalidade de promover soluções empresariais e com um compromisso de gerar impacto social para bases” (tradução nossa). Ou seja, seu objetivo claramente se constitui a partir de uma lógica empresarial, e para participar dessa fundação, é preciso também passar por um processo seletivo. A fundação também apresenta uma definição muito bem delimitada do que é ser empreendedor social. Trata-se de um “líder ou visionário pragmático (...), que alcança metas a partir de métodos empresariais, mas sem deixar de lado a coragem para PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) inovar além de tais métodos”. No site institucional, é feita a comparação direta entre empreendedor e empreendedor social, com a diferença de que os últimos agem em prol de organizações sem fins lucrativos. É muito interessante ressaltar quais os atributos que caminham juntos na definição do que é empreendedorismo social e também da figura do empreendedor. No caso da Schwab, vemos, por exemplo, a necessidade de atuação em larga escala, assim como inovação, tudo em busca do desenvolvimento social. Uma descrição muito emblemática presente no site é a que descreve o perfil do empreendedor como: “Combinação das características representadas por Richard Branson4 e Madre Teresa”. Ou seja, não basta querer mudar o mundo, é preciso agir como um bem sucedido empresário bilionário para conseguir alcançar tal “meta”, tal lucro. A Skoll Foundation também se declara como uma das precursoras do desenvolvimento do empreendedorismo social no mundo. Foi criada em 1999, por Jeff Skoll e tem por missão “impulsionar mudanças de larga escala, ao conectar e investir em empreendedores sociais inovadores que ajudem a resolver os problemas mais urgentes do mundo.” (tradução nossa). São “agentes sociais que criam inovações que alteram o status quo e transformam o mundo para melhor”. Assim como os demais, destaca sua atuação mundial, o elo criado entre os seus empreendedores e os altos valores de investimentos alcançados ao longo de sua trajetória. Com um breve olhar sobre a história de todas as organizações, percebemos que o surgimento delas coincide com um período próximo (anos 80 e 90). Esse é o momento histórico que Boltanski e Chiapello definem como “terceiro espírito do capitalismo”. Por “espírito do capitalismo” entende-se “a ideologia que justifica o engajamento do capitalismo.” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 39). Historicamente, o capitalismo apoiou-se em diversos tipos de justificativas para que fosse aceito e até desejado. Dessa maneira, o capitalismo se propõe retoricamente como a melhor alternativa ou mesmo, 4 A saber: Richard Branson é um empresário britânico bilionário, dono de mais de 400 empresas. (Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/richard-branson-negocios-importa-conseguir-criaralgo-especial). PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) a única alternativa. A ideia de espírito do capitalismo permite-nos entender suas movimentações e como ocorreram as mudanças ao longo do tempo. As alterações acontecem a partir das críticas realizadas e é nesse sentido que os autores atribuem “à crítica um papel de impulsionador das mudanças do espírito do capitalismo.” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 61). Ou seja, são as críticas as fontes mobilizadoras da reformulação retórica do capitalismo, que impulsionam a mudança de um espírito a outro. Nesse sentido, entendemos que o terceiro espírito do capitalismo reformula o espírito anterior e propõe importantes alterações. Dentre elas, destaca-se o fato de que a figura do empregado, subjugado à lógica de uma empresa magnânima passa a não mais se sustentar. Surge assim a imagem paradigmática do empreendedor, como modelo de cultura, substituindo o antigo parâmetro de empregado. Assim, as próprias organizações reformulam suas lógicas e discursos e, nesse contexto, a figura do empreendedor – chamado de intraempreendedor – sobressai-se em relação ao empregado. Também diminuem o papel do Estado, visto que sua participação excessiva no segundo espírito do capitalismo despertou muitas críticas. Os autores reforçam que o terceiro espírito do capitalismo ainda está em desenvolvimento, mas há algumas características bastante emblemáticas e que dialogam com a eminência do empreendedorismo social, como a globalização. Além disso, é nesse momento em que se desenvolve a lógica empreendedora, em seu sentido mais amplo. As corporações constroem mundos, e incluem, por exemplo, consumidores e trabalhadores dentro desse mundo. São mundos pensados, imaginados. E é a cooperação entre cérebros que atualiza esses mundos. A cultura empreendedora se expande para além do mundo corporativo. Valores como autonomia e autoengajamento passam a ter voz, assim como a máxima “a empresa sou eu”. Vale ressaltar que o capitalismo é, provavelmente, a única, ou pelo menos a principal, forma histórica ordenadora de práticas coletivas perfeitamente desvinculada da esfera moral, no sentido de encontrar sua finalidade em si mesma (a acumulação do capital como fim em si). (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 53) PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) No entanto, a lógica do espírito empreendedor passa a se transformar em valor moral, ao associar-se a qualidades como determinação, resiliência, coragem e ousadia para realizar o bem ao próximo. O resultado, o sucesso, o bom desempenho, dependem somente do sujeito, da maneira como ele encara os desafios oferecidos pela vida. Notase que esse perverso discurso em que felicidade e desempenho dependem exclusivamente da atuação pessoal extrapola o âmbito do trabalho. Conforme destaca João Freire Filho, “a felicidade desponta como ponto fulcral de novos projetos para o incremento do progresso e da cidadania” (Filho, 2010, p. 5), e, se olharmos para a lógica do empreendedorismo social, tal dinâmica fica ainda mais evidente, já que a promessa de “realização” tanto profissional quanto pessoal tornam-se ainda mais convergentes. Vidas particulares e profissionais passam a estar cada vez mais entrelaçadas, e autorrealização e propósito de vida também. Essa união constitui uma falácia, pois se “você ama o que faz”, não há problema algum em despender a maior parte do seu tempo nessa extenuante tarefa. Essa contextualização é relevante para entendermos de que maneira surge a figura do empreendedor social. Ainda que dentro da lógica já naturalizada do capitalismo como único sistema possível, o empreendedor social passa a ter sua imagem atrelada a um revolucionário, transformador, ou mesmo herói olimpiano. Como vimos pelas definições dadas pelas instituições analisadas, os empreendedores sociais são aqueles que acreditam que é possível transformar o mundo. São inovadores e ousados ao proporem novas saídas para as mazelas sociais. Entretanto, essa dinâmica acontece somente no plano discursivo, já que o modus operandi utilizado replica os moldes da perversa lógica corporativa. Ou seja, a mudança do mundo pressupõe a manutenção da mesma lógica do mundo atual, dentro do mesmo sistema vigente, replicando as mesmas desigualdades. 2. Os mundos possíveis do empreendedorismo social PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) O empreendedorismo social constitui um campo simbólico (Bourdieu, 2006) que abriga as mais diversas instituições, fundações, e, de maneira geral, organizações voltadas ao bem comum por meio de um sistema empreendedor. Há, de certa forma, um discurso único que engloba esse campo de maneira ampla, mas cada uma dessas organizações constrói um mundo possível. Ao observarmos as três instituições que aqui estão sendo analisadas (Ashoka, Schwab e Skoll), percebemos similaridades relevantes em diferentes aspectos. Seu surgimento se dá num mesmo momento histórico, como abordamos anteriormente, e a partir da iniciativa de um já estabelecido homem de negócios. Diante de tal perspectiva, podemos observar a maneira como tais organizações constroem o perfil de seus empreendedores, mas esse será um tópico que abordaremos com um pouco mais de detalhes em breve. E, além disso, como cada instituição, dentro desse campo simbólico mais amplo, delimita seu mundo possível, e realiza também uma convocação biopolítica (Prado, 2013) para atrair participantes para esses mundos possíveis, estabelecidos em torno da ideia de bem comum, universal. A lógica organizacional, presente nos discursos das organizações estudadas, expande-se para os indivíduos que dela fazem parte. Esses são mundos pensados, imaginados. Lazzarato, ao discorrer sobre os mundos possíveis, leva em consideração a lógica empresarial. Ressaltou: a empresa que produz um serviço ou uma mercadoria cria um mundo. Nessa lógica, o serviço ou o produto – da mesma maneira que o consumidor e o produtor – devem corresponder a esse mundo. Esse último precisa estar inserido nas almas e nos corpos dos trabalhadores e consumidores. (Lazzarato, 2006, p. 99). No caso do empreendedorismo social, podemos entender que o discurso que constrói a forma de atuação corporativa concebe um mundo. E que esse mundo criado existe intrinsecamente em quem faz parte dele. Assim, os mundos idealizados pelas instituições pela sua maneira de agir incorporam os seus participantes e também todos os que com elas se envolvem. Essa relação se torna ainda mais próxima com o entrelaçamento que se observa entre os participantes desses mundos e pela maneira PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) como os limites entre vida pessoal e profissional encontram-se cada vez mais tênues no momento histórico em que nos encontramos. Aliás, pode-se entender nesse sentido um diálogo presente entre Boltanski e Chiapello e Lazzarato, já que o terceiro espírito do capitalismo propicia todas as condições básicas para que seja possível a construção de mundos possíveis. No site da Ashoka, por exemplo, a ideia desse mundo possível construído fica bastante evidente pela maneira como a instituição define sua atuação e a dos seus participantes. Inicialmente, temos inclusive um gráfico que demonstra como o “mundo” institucional da organização se configura: Ilustração 1: diagrama que define a estrutura da Ashoka e a inserção de seus “fellows” nesse modelo. O diagrama evidencia como indivíduo, grupo e setor se relacionam, e essa imagem traduz claramente a ideia de uma esfera incorporar as menores. O empreendedor social faz parte de um grupo maior, já que a Ashoka “identifica e investe em empreendedores sociais líderes e os ajuda a alcançar impacto social máximo.” (tradução nossa). Isso é possível por meio de grupos e redes de empreendedores unidos pela Ashoka, para que possam trabalhar conjuntamente e maximizar sua atuação social: “Ashoka envolve comunidades de empresários e desenvolve padrões de colaborações eficazes que mudam campos inteiros”. Por meio de uma rede global com esses agentes de mudança, a instituição diz criar as condições necessárias para que a atuação sustentável de todos os participantes seja possível. De maneira global, a “Ashoka cria PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) infraestrutura necessária, como o acesso ao financiamento social (...) e quadros de parcerias”, tudo isso para que seja possível proporcionar “valor social e financeiro” para os participantes. Parcerias, financiamento, infraestrutura, são apenas alguns dos indicativos da realização de uma possibilidade de mundo. “A expressão e a efetuação dos mundos e das subjetividades nele inseridas, a criação e a realização do sensível (desejos, crenças, inteligências) antecedem a produção econômica” (Lazzarato, 2006, p. 100). No caso da atuação dos empreendimentos sociais, a produção econômica se realiza em função do apoio a uma causa, mas ainda assim, a realização do sensível antecede qualquer produção tangível. Além disso, a construção da lógica do empreendedorismo social encontra-se subjugada, tensionada pela necessidade de pertencimento ao modelo capitalista. É preciso adequar-se ao mercado, ao sistema vigente. Como destaca Lazzarato, nossa ‘liberdade’ é exercida exclusivamente para escolher dentre possíveis (mundos) que outros instituíram e conceberam. Ficamos sem o direito de participar da construção dos mundos, de formular problemas e de inventar soluções, a não ser no interior de alternativas já estabelecidas (Lazzarato, 2006, p. 101). 3. Os habitantes dos mundos possíveis: empreendedores sociais e a figura heroica As histórias dos empreendedores sociais possuem espaço de destaque nos sites das organizações pesquisadas e lhes atribuem um caráter humano, uma força simbólica pautada pela multiplicidade de vozes presentes. Suas atuações são narradas de maneira a corroborar o mundo possível do qual fazem parte e também exemplificam a estrutura do novo espírito do capitalismo que abordamos anteriormente. O entrelaçamento de vida pessoal e profissional evidencia-se no discurso que revela suas vidas e suas qualidades ao atuarem como empreendedores sociais. No site da Skoll Foundation, por exemplo, há uma parte dedicada a contar a história dos chamados “novos heróis”. Nesse espaço há um vídeo que narra as histórias dramáticas de 14 ousadas pessoas de todos os cantos do globo, que, contra todas as probabilidades, aliviaram eficazmente a pobreza e PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) as doenças, combateram o desemprego e a violência, por meio de educação, luz, oportunidade e liberdade para as pessoas pobres e marginalizadas em todo o mundo . Esses protagonistas heroicos são apresentados como sinônimos de empreendedores sociais. São os protagonistas capazes de apresentar soluções viáveis para mudar a vida de pessoas desesperadas. No site, segue-se uma pergunta, que é também uma convocação: “O que é possível? Você ficaria surpreso. Faça uma viagem em um mundo em as pessoas tomam atitudes para fazerem uma grande diferença”. Acabar com o trabalho escravo na Índia, ajudar órfãos da AIDS de Zâmbia. Como tudo isso seria possível? Por meio da atuação da Skoll Foundation. Esse é o início do primeiro filme que conta a história dos novos heróis. No plano discursivo, fica bastante evidente como era a situação anterior da atuação da instituição e como as sociedades beneficiadas se encontram a posteriori. Ilustração 2: imagem do vídeo “novos heróis” presente no site da Skoll Foundation De maneira emblemática, a introdução do filme diz que irá mostrar esse “antese-depois” e quando é citada a instituição como a provedora dessa possibilidade de mudança, desse novo mundo possível, surge a imagem de um horizonte azul, e, posteriormente, diversas crianças segurando um globo terrestre. Mais adiante, na página dedicada aos empreendedores sociais, vê-se o destaque para a atuação global da Skoll Foundation, simbolizada por um mapa que aponta todos os países de atuação. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Nessa mesma página é possível ver todos os empreendedores, um a um, ou mesmo separados pelas categorias de atuação pelos quais são classificados (por exemplo: “desflorestamento”, “educação e oportunidades econômicas”, “desenvolvimento efetivo”, “paz e segurança humana”). Para a Ashoka, seus membros, denominados “fellows” são aqueles que conseguem apresentar soluções inovadoras capazes de mudar todos os padrões da sociedade e realizar mudanças profundas. Destaca-se a atuação em mais de 70 países e que, para se tornar um fellow da Ashoka, todos esses empreendedores passaram por um rigoroso processo seletivo, em que confirmam cumprir com as “Condições de Associação com a Ashoka” (tradução nossa). Após essa descrição, a convocação para integrar esse mundo possível: “Junte-se a nós em investir no crescimento da principal rede mundial de empreendedores sociais”. Tanto a Skoll quanto a Ashoka apresentam seus atuais empreendedores, um a um, com a definição de sua atuação e, especialmente, a quantificação dos resultados alcançados. Novamente, destacamos aqui a maneira como os empreendedores são narrados e quais os critérios mais relevantes pelos quais são definidos e também classificados. São discursivamente apresentados como revolucionários, criativos, engajados, corajosos, ousados. Mas estão inseridos nas dinâmicas institucionais que exigem resultados quantitativos, replicando emblematicamente o modus operandi de grandes e lucrativas corporações. Ou seja, sem de fato realizarem verdadeiras revoluções capazes de alterar o sistema vigente e suas crueldades estruturais. Assim como o perfil de cultura e conduta definido por Morin como “olimpianos”, os empreendedores sociais unem características humanas e sobre humanas, são perfis que geram identificação e também projeção. Permeiam o imaginário, mas possuem ao mesmo tempo “substância humana que permita identificação.” (Morin, 2011, p. 101). Consideramos esse diálogo pertinente, pois Morin ressaltava que os olimpianos são figuras que “encarnam os mitos de autorrealização da vida privada” (idem), e Boltanski e Chiapello apontam que o novo espírito do capitalismo pressupõe que se atenuem as barreiras entre realização pessoal PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) e profissional, para garantir que o engajamento profissional seja cada vez maior, ainda que mais extenuante. Ao observarmos os discursos referentes aos empreendedores sociais, o que se destaca é a realização que seus trabalhos lhe fornecem e como suas qualidades estão presentes de maneira entrelaçadas em todos os aspectos de suas vidas. Esses heróis contemporâneos são fonte de um realismo identificador, que disseminam as características do mundo possível do qual fazem parte. Os olimpianos unem ao mesmo tempo poderes mitológicos e competências técnicas, assim como os empreendedores heroicos apontados quantitativamente por suas realizações práticas. A partir do momento que todos são heróis, não há de fato heroísmo, como aponta Buonanno (2011). Percebe-se ser essa uma maneira de dar voz a um discurso vazio, incapaz de promover reais transformações. A real transformação ocorre, então, somente no plano retórico, na maneira como o capitalismo incorpora as críticas que lhe são feitas. 4. Conclusões Heróis, agentes transformadores, responsáveis por revoluções que mudam “profundamente” a realidade que enfrentamos. Essa é uma maneira de exemplificar o discurso que permeia a imagem do empreendedor social. Apesar da força discursiva, há uma incoerência clara entre o que se propõe como revolução e o que se é possível atingir sem que haja uma real mudança estrutural. A lógica empreendedora apresenta uma ideia domesticada de revolução que pressupõe que o capitalismo, já naturalizado, continue a ser o único sistema viável e desejável. Por mais que muitas vezes a proposta seja a de mudar o status quo (como a que está presente no site da Skoll Foundation), a atuação de tais organizações não possibilitaria uma alteração dessa magnitude. Entretanto, as narrativas que contam a história desses empreendedores sociais disponibilizam a ideia de novos mundos possíveis. Cada organização, à sua maneira, constitui um mundo possível e convoca a participação de todos para essa nova possibilidade. Os mundos possíveis extrapolam barreiras físicas, fundamentam-se a partir de ideais. Entretanto, como destaca Lazzarato, eles não existem para além dos PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) fatores que o representam, como signos e enunciados. Assim, a construção dessas novas possibilidades apresenta uma grande força simbólica, capaz de envolver e encantar, dissimulando a impossibilidade da realização factual de tais revoluções. É exatamente nesse contexto discursivo que se formam as imagens dos heróis contemporâneos, dos olimpianos. Morin já ressaltava que, “como toda a cultura, a cultura de massa produz seus heróis, seus semideuses, embora ela se fundamente naquilo que é exatamente a decomposição do sagrado: o espetáculo, a estética.” (p. 101). Pragmáticos e dotados de características místicas, os olimpianos englobam aspectos reais e imaginários, e reforçam, no plano discursivo, seus pretensos papeis de heróis cotidianos, dotados de uma sensibilidade ímpar para enxergar os problemas da humanidade, resilientes, corajosos, indubitavelmente íntegros. Dessa maneira, há a possibilidade de se gerar grande realismo identificador com os que entram em contato com suas histórias, mesmo que suas narrativas heroicas, revolucionárias e realmente transformadoras sejam inviáveis de ocorrer para além do plano discursivo. Assim, a construção dos mundos possíveis e a consequente consolidação da imagem heroica dos empreendedores sociais podem ser apresentadas como sintomas do novo espírito do capitalismo. São maneiras de resposta às críticas ao capitalismo, e de ainda assim mantê-lo, com seu quadro histórico de desigualdades estruturais. A lógica empreendedora, que se sobressai a partir do novo espírito do capitalismo, passa a difundir características como engajamento e autorrealização como fundamentais para os sujeitos presentes nas corporações. Como vimos, ao analisarmos os sites das três instituições de atuação global (Ashoka, Schwab e Skoll Foundation), essas características se apresentam fortemente em seu discurso, ao definirem o perfil de um empreendedor social. Percebe-se, dessa maneira, que os discursos referentes ao empreendedorismo social incorporam a lógica de mercado, são construídos pelo capitalismo, que se fortifica como um sistema já naturalizado. E mais, apresentam possibilidades de novos caminhos, quando na verdade apenas replicam o status quo atual, dissimulando muitas das desigualdades estruturais do capitalismo sob o plano discursivo de revoluções sociais. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014) Referências Bibliográficas: AGENOT, Marc. 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