ARTIGO DE REVISÃO � � � � � � � �� � � � � � � � � � �� ��������������������� O papel dos ácidos biliares na patologia e terapêutica das doenças hepáticas no cão e no gato The role of bile acids in the pathology and therapy of hepatic diseases in dog and cat Maria João Pires e Aura Colaço Departamento de Patologia e Clínicas Veterinárias, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Quinta dos Prados, 5001-911 Vila Real e-mail: [email protected] Resumo: Os ácidos biliares são compostos potencialmente citotóxicos, derivados dos esteróides, sintetizados pelos hepatócitos e segregados nos canalículos biliares. Durante a colestase os ácidos biliares acumulam-se no fígado e na circulação sistémica, atingindo concentrações tóxicas. Esta acumulação é capaz de causar a necrose, a apoptose e a fibrose do hepatócito, contribuindo para a patogénese das doenças colestáticas e para o desenvolvimento de insuficiência e de cirrose hepática. Os mecanismos implicados na toxicidade dos ácidos biliares, embora não se encontrem ainda completamente esclarecidos, incluem a estimulação da peroxidação lipídica e a indução da disfunção mitocondrial. No entanto, nem todos os ácidos biliares são tóxicos, como por exemplo o ácido ursodesoxicólico (UDCA). Este é um ácido biliar hidrofílico não tóxico que apresenta múltiplas actividades hepatoprotectoras, das quais se destacam as propriedades citoprotectoras, as antiapoptóticas e as imunomodeladoras, e um efeito colerético. Em medicina humana é utilizado predominantemente no tratamento de doenças hepáticas colestáticas. Em medicina veterinária existe pouca informação sobre a utilização do UDCA, no entanto, alguns estudos realizados demonstraram também o benefício do UDCA no tratamento de algumas doenças hepáticas do cão e do gato. Palavras-chave: ácidos biliares; hepatotoxicidade; hepatoprotecção; ácido ursodesoxicólico. Summary: Bile acids are sterol-derived, potentially cytotoxic compounds synthesized and secreted by hepatic epithelial cells into the bile canaliculus. During cholestasis bile acids accumulate in the liver and systemic circulation, reaching toxic concentrations. The accumulation of cytotoxic bile acids is thought to cause hepatocyte necrosis and apoptosis contributing to the pathogenesis of the cholestatic disease process and the development of liver cirrhosis and liver failure. Mechanisms implicated in the toxicity of the bile acids include stimulation of lipid peroxidation and induction of mitochondrial dysfunction. Not all bile acids are cyotoxic. Ursodeoxycholic acid (UDCA) has multiple hepatoprotective activities. UDCA has a choleretic effect, as well as cytoprotective, antiapoptotic and immunomodulatory properties. In human patients it is widely used for treating cholestatic liver diseases. There has been only limited reports on the use of UDCA in veterinary patients with hepatobiliary disease, but it is believed to be useful as adjunctive therapy in cholestasis hepatic disorders. Key-words: bile acid; hepatotoxicity; hepatoprotection; ursodeoxycholic acid. Estrutura e metabolismo dos ácidos biliares Os ácidos biliares, componentes orgânicos mais abundantes da bílis, são aniões orgânicos sintetizados exclusivamente no fígado a partir do colesterol. Uma série de reacções enzimáticas, no interior do hepatócito, converte o colesterol, um lípido insolúvel, em ácidos biliares anfifáticos, ou seja, com duas porções na sua molécula, uma hidrofílica e outra hidrofóbica. Esta característica dos ácidos biliares é fundamental para se compreender as suas funções biológicas, os seus processos de transporte e a sua capacidade citotóxica (Okolicsanyi et al., 1986; Bove, 2000; Souidi et al., 2001). Os principais ácidos biliares sintetizados no fígado dos mamíferos são derivados hidroxilados de um núcleo comum, o ácido 5β-colanoíco (Erlinger, 1985). Os ácidos biliares primários são o ácido cólico (3α, 7α, 12α- trihidroxi- 5β-colanoíco) e o ácido quenodesoxicólico (3α, 7α-dihidroxi- 5β-colanoíco) (Kutchai, 1983; Hornbuckle e Tennant, 1997). No cólon, os ácidos biliares primários podem ser metabolizados pela flora bacteriana em ácidos biliares secundários (Zimmerman, 1979; Bunch, 1998). Uma alteração comum é a 7α-deshidroxilação do ácido quenodesoxicólico e do cólico que resulta na formação de ácido litocólico (3αmonohidroxi- 5β-colanoíco) e desoxicólico (3α, 12αdihidroxi- 5β-colanoíco), respectivamente (Erlinger, 1985; Tennant, 1997; Rothuizen, 1999). Os ácidos biliares terciários, o ursodesoxicólico e o sulfolitocólico, produzem-se no intestino ou no fígado a partir dos secundários (Carey e Cahalane, 1988; Fernández e Pérez, 1998). O grau de hidroxilação é um factor fundamental da hidrofobicidade relativa dos ácidos biliares. De uma forma geral, quanto maior o grau de hidroxilação, menor é a hidrofobicidade dos ácidos biliares e, portanto, menor será a sua toxicidade (Leveille-Webster, 1997). Na maioria dos animais, os ácidos biliares primários 137 Pires, M.J. e Colaço, A. transportadores, os mais importantes dos quais estão presentes do íleo RPCV (2004)nos 99 enterócitos (551) 137-143 distal, que consistem num transportador apical dos ácidos biliares dependente do sódio são conjugados no fígado com a taurina e/ou com (ABST) a ee num Stolz, 1999; Kramer al., e1999; Meier e Stieger, transportador basolateral et (Bahar Stolz, 1999; Kramer et al., 1999; glicina (Tennant, 1997; Meyer e Harvey, 1998). Nos 2002). A reabsorção passiva a partir do cólon envolve Meier e Stieger, 2002). A reabsorção passiva a partir do cólon envolve apenas os ácidos gatos, a conjugação ocorre exclusivamente com a tauapenas os ácidos biliares não conjugados que se formabiliares não que se formarambacteriana pela desconjugação bacteriana dos ácidos rina. Os cães fazem a conjugação predominantemente ramconjugados pela desconjugação dos ácidos biliares com a taurina, mas são capazes, quando necessário, de conjugados (Zimmerman, 1979; 1999). Hofmann, 1999). CerCerca de 95% dos ácidos biliares conjugados (Zimmerman, 1979; Hofmann, a trocar pela glicina (Center, 1996). Apesar dos ácidos ca de 95% dos ácidos biliares excretados são reabsorvibiliares excretados são reabsorvidos no tracto intestinal (Rothuizen, 1999). biliares segregados serem conjugados, a conjugação dos no tracto intestinal (Rothuizen, 1999). não é essencial para a sua secreção biliar (Anwer e Meyer, 1995). A conjugação dos ácidos biliares aumenta a sua solubilidade aquosa, diminuindo a sua absorção passiva no FÍGADO tracto biliar e no intestino delgado (Rothuizen, 1999; Leveille-Webster, 2000). Este facto promove a manuCaptação Hepática tenção de altas concentrações intraluminais de ácidos biliares na árvore biliar e no intestino, o que facilita o Secreção seu papel na estimulação do fluxo biliar e na promoção Canalicular Veia Porta da absorção de gorduras no intestino. Os ácidos biliaVesícula res podem também ser esterificados com o sulfato e o Biliar ácido glucurónico e, embora a sulfatação e a glucuroTransporte Transporte Passivo nidação sejam vias minoritárias em animais saudáveis, Activo ganham importância em situações como a colestase. AB AB Pelo facto de aumentarem ainda mais a solubilidade Íleo AB Jejuno Excreção Fecal Duodeno dos ácidos biliares, estas modificações promovem a sua excreção biliar e a diminuição da sua reabsorção Figura 1 – Circulação enterohepática dos ácidos biliares. AB = ácidos Figura 1 – Circulação enterohepática dos ácidos biliares. AB = ácidos biliares. biliares. intestinal (Center, 1996). Circulação enterohepática dos ácidos biliares Após a sua reabsorção para a circulação portal, eles são atransportados atéa ao fígadoportal, e eficientemente extraApós sua reabsorção para circulação eles são transportados até ao ídos do sangue dos sinusóides (75 a 90%) pelos hepatócitos da zona periportal (Meyer e Harvey, 1998). Na hepatócitos da zona periportal (Meyer do e Harvey, 1998). Nasão membrana sinusoidal do membrana sinusoidal hepatócito, activamente Os ácidos biliares sofrem uma eficiente circulação transportados para o citoplasma porpor dois enterohepática, que resulta na manutenção de um conhepatócito, são activamente transportados para o citoplasma dois transportatransportadores de dores de membrana, um transportador dependente do junto estável de ácidos biliares recirculantes (Figura 1). sódio, o cotranportador 5Na+/taurocolato (NTCP no No cão, este conjunto de ácidos biliares oscila entre Homem; Ntcp no rato), e um transportador indepen1,1 e 1,2g e circula aproximadamente 10 vezes por dia dente do sódio pertencente a uma família de transporta(Hornbuckle e Tennant, 1997). Apenas 5 a 10% dos dores denominada de “polipéptidos transportadores de ácidos biliares circulantes escapam à reabsorção intesaniões orgânicos” (OATP no Homem, Oatp1 no rato) tinal e são perdidos nas fezes, perda que é compensada (Figura 2) (Kullak-Ublick et al., 1994; Hagenbuch e pela síntese hepática (0,3-0,7g/dia) (Anwer e Meyer, Meier, 1996; Kullak-Ublick e Meier, 2000; Elferink 1995; Meyer e Harvey, 1998). e Groen, 2002). Os ácidos biliares movem-se através No jejum, os ácidos biliares são armazenados na do citoplasma até à membrana canalicular ou apical do vesícula biliar. A ingestão de uma refeição estimula a hepatócito, ligados a proteínas ou via vesículas intracilibertação de colecistoquinina pelas células endócrinas toplasmáticas, sendo depois novamente excretados na da mucosa do intestino, resultando na contracção da bílis (Suchy et al., 1983; Nathanson e Boyer, 1991; Esvesícula biliar e na libertação dos ácidos biliares para teller, 1996). A secreção canalicular de ácidos biliares o duodeno (Hofmann, 1999; Leveille-Webster, 2000). é mediada por dois sistemas de transporte dependentes Neste, as moléculas de ácidos biliares anfifáticas assodo ATP. Um para os ácidos biliares monovalentes, um ciam-se formando micelas que solubilizam os lípidos homologo das glicoproteínas-P, originalmente referido da dieta, facilitando a absorção intestinal de gorduras. como “sister of P-glicoprotein” (SPGP) e actualmenDevido à relativa natureza hidrofílica dos ácidos biliate denominado de “bile salt export pump” ou Bsep no res conjugados, eles sofrem uma reabsorção intestinal rato e BSEP nos humanos (Meijer et al., 1999; Kullakpassiva mínima, que ocorre especialmente no jejuno Ublick et al., 2000; Meier e Stieger, 2002). O outro (Zimmerman, 1979; Leveille-Webster, 1997). A sua repara os ácidos biliares divalentes, o mrp2 no rato e o absorção é predominantemente mediada por transporMRP2 no Homem, também denominado de transportadores, os mais importantes dos quais estão presentador canalicular multiespecífico de aniões orgânicos tes nos enterócitos do íleo distal, que consistem num (cMOAT) (Figura 2) (Gartung e Matern, 1998; Trauner transportador apical dos ácidos biliares dependente do et al., 1999; Kamisako et al., 1999). sódio (ABST) e num transportador basolateral (Bahar 138 fígado e eficientemente extraídos do sangue dos sinusóides (75 a 90%) pelos MRP2 no Homem, também denominado de transportador canalicular multiespecífico de aniões orgânicos (cMOAT) (Figura 2) (Gartung e Matern, 1998; Trauner et al., M.J. e Colaço, A. 1999; Kamisako et Pires, al., 1999). RPCV (2004) 99 (551) 137-143 periféricos pode atingir concentrações tóxicas. Este aumento de ácidos biliares no fígado promove a apoK mrp AB ptose, a necrose, a fibrose e, finalmente, a cirrose biliar Na (Angulo, 2002). Na HEPATÓCITO Ntcp AB Os mecanismos exactos responsáveis pela acção tóAB Bsep Oatps AB xica dos ácidos biliares não estão ainda completamente Membrana Membrana esclarecidos. No entanto, vários estudos experimentais canalicular sinusoidal demonstraram a hepatotoxicidade de alguns ácidos biliares (Schmucker et al., 1990; Heuman et al., 1991). Figura 2sistemas – Principais sistemas deenvolvidos transporte envolvidos na captação sinuFigura 2 – Principais de transporte na captação sinusoidal e na secreção Alguns dos mecanismos postulados incluem a alterasoidal e na dos ácidos biliares. ABcanalicular = ácidos biliares; canalicular dos ácidos biliares. ABsecreção = ácidoscanalicular biliares; Bsep = transportador de ácidos biliares; ção da homeostasia intracelular do cálcio, a peroxida+ Bsep = transportador canalicular de ácidos biliares; mrp = transportador 2 Na /taurocolato; Oatps = mrp2 = transportador canalicular de aniões orgânicos; Ntcp = cotransportador canalicular de aniões orgânicos; Ntcp = cotransportador Na+/taurocolato; ção lipídica, a disfunção mitocondrial, a desgranulação polipéptidos transportadores de aniões orgânicos. Oatps = polipéptidos transportadores de aniões orgânicos. dos mastócitos, a interferência com a organização do citoesqueleto, a necrose e a apoptose (Anwer e Meyer, A biossíntese de ácidos biliares está sujeita a uma re1995; Jaeschke et al., 2002). troacção negativa, na qual o retorno dos ácidos biliares Apesar de desempenharem um papel fundamental na ao fígado suprime a actividade do colesterol 7α-hidro6 formação e no fluxo de bílis, os ácidos biliares podem xilase e da hidroxi-metil-glutaril-coenzima A reducproduzir colestase. Alguns estudos realizados colocam tase. Assim, os factores que influenciam a actividade a possibilidade de os ácidos biliares poderem produzir destas enzimas regulam a biossíntese de ácidos biliares colestase aguda, em parte, pela alteração da homeos(Burwen et al., 1992; Bahar e Stolz, 1999). tasia intracelular de cálcio. Anwer et al. (1988) deO tipo de ácidos biliares presentes na bílis varia entre monstraram pela primeira vez, que os ácidos biliares as diferentes espécies animais. Nos humanos, os ácidos aumentavam os níveis intracelulares de cálcio e que biliares mais abundantes são o ácido cólico (35%) e este aumento precedia a lesão celular. Estes resultados quenodesoxicólico (35%), com menor quantidade de confirmaram que os efeitos hepatotóxicos dos ácidos ácido desoxicólico (24%) e traços de litocólico e urbiliares estão, pelo menos em parte, relacionados com sodesoxicólico (Fernández e Pérez, 1998). No gato, a sua capacidade para aumentar os níveis intracelusegundo Leveille-Webster (1997) os ácidos biliares lares de cálcio. Contudo, outros factores devem estar predominantes são o ácido cólico (90%) e desoxicólico implicados, porque o ácido ursodesoxicólico também (7,8%) com pequenas quantidades de ácido quenodeaumenta as concentrações intracelulares de cálcio, mas soxicólico (2,6%). No cão, o ácido biliar mais abunnão produz colestase. dante é o ácido cólico (Meyer e Harvey, 1998). Os ácidos biliares são detergentes activos que podem lesar directamente os hepatócitos. A baixas concentrações, os ácidos biliares alteram a composição das Hepatotoxicidade dos ácidos biliares membranas biológicas (Leveille-Webster, 1997). Segundo Krahenbuhl et al. (1994) as mitocôndrias dos A citotoxicidade dos ácidos biliares é fortemente hepatócitos parecem representar um alvo importante afectada pela sua estrutura: quanto maior é a hidrofopara a acção tóxica dos ácidos biliares. Os mesmos aubicidade, maior é a citotoxicidade. A hidrofobicidade tores demonstraram que os ácidos biliares hidrofóbicos e, portanto, a hepatoxicidade dos ácidos biliares dimialteram a função do complexo enzimático da cadeia de nuem na seguinte ordem: litocólico > desoxicólico > transporte de electrões em mitocôndrias isoladas do quenodesoxicólico > cólico. A conjugação diminui a fígado de rato, e portanto, a toxicidade mitocondrial hepatoxicidade, sendo os conjugados de taurina menos destes ácidos biliares pode ser relevante no desenvolhepatotóxicos do que os conjugados de glicina (Quenevimento de insuficiência hepática na colestase. Sokol au e Montet, 1994; Anwer e Meyer, 1995). As molécuet al. (1993) demonstraram que existe uma associação las de ácidos biliares com um grau de hidrofobicidade entre a toxicidade dos ácidos biliares hidrofóbicos e a semelhante podem mostrar diferentes propriedades formação de radicais livres em hepatócitos isolados de citotoxicas e citoprotectoras. De facto, um estudo rerato. Logo, os antioxidantes podem reduzir a lesão hecente realizado por Carubbi et al. (2002) sugere que pática provocada por níveis baixos de ácidos biliares, as propriedades hidrofílicas e/ou a concentração miceatravés da prevenção da formação de radicais livres de lar crítica dos ácidos biliares, embora sejam factores oxigénio (Yerushalmi et al., 2001). determinantes, não são os únicos responsáveis pelos Os ácidos biliares também são pró-inflamatórios. efeitos biológicos dos diferentes ácidos biliares nos Eles aumentam a libertação de radicais livres de oxigéhepatócitos. nio dos neutrófilos e podem provocar a desgranulação Como a retenção hepática e sérica de ácidos biliados mastócitos. Como são capazes de inibir a polimerires acompanha a maioria das alterações hepatobiliares, zação da actina, os ácidos biliares provocam alterações foi proposto que os ácidos biliares desempenhariam no citoesqueleto dos hepatócitos, contribuindo para a um papel importante na progressão de doenças hepádisfunção hepática. A alteração dos microfilamentos ticas crónicas. Em doentes humanos com colestase, a pericanaliculares, com consequente dilatação do esacumulação de ácidos biliares no fígado e nos tecidos + 2 + + 139 Substituição dos Ácidos Biliares Hidrofóbicos O UDCA é um ácido biliar não hepatotóxico e relativamente hidrofílico. A sua Pires, M.J. e Colaço, A. administração oral em humanos resulta num RPCV enriquecimento da137-143 bílis com conjugados (2004) 99 (551) de UDCA. Substituindo os ácidos biliares hepatotóxicos e hidrofóbicos por ácidos paço canalicular biliar entre hepatócitos adjacentes, conjugados de UDCA. Substituindo os ácidos biliares biliares hidrofílicos, a acção eprejudicial dos primeiros serhidrodiminuida. O UDCA conduz ao desenvolvimento de colestase (Leveille-Wehepatotóxicos hidrofóbicos por ácidosdeverá biliares bster, 1997). fílicos, a acção prejudicial dos primeiros deverá ser dipode também actuar directamente no lúmen intestinal, competindo pelo transporte no A necrose e a apoptose intervêm na morte celular inminuida. O UDCA pode também actuar directamente duzida pelos ácidos biliares. Benz et al. (1998)íleo demonsno lúmen intestinal, competindo pelo transporte no íleo de ácidos biliares secundários tóxicos. Deste modo, os ácidos biliares retidos nos traram que na colestase grave, as lesões produzidas pede ácidos biliares secundários tóxicos. Deste modo, os los ácidos biliares se deviam principalmente àhepatócitos necrose, são ácidos biliares retidos nos hepatócitos são menos lesi- 2001; Angulo, menos lesivos (Hofmann, 1999; Kumar e Tandon, enquanto que, numa colestase moderadamente grave, a vos (Hofmann, 1999; Kumar e Tandon, 2001; Angulo, apoptose representava o mecanismo predominante 2002). 2002). de toxicidade dos ácidos biliares. Outro estudo, realizado por Rodrigues et al. (1998) demonstrou que os ácidos Figura 3 – Mecanismos de acção do UDCA. biliares hidrofóbicos in vivo provocam directamente a apoptose no tecido hepático. Os hepatócitos isolados Substituição dos Efeito de rato sofrem apoptose quando são incubados com Ácidos Biliares Citoprotector ácidos biliares tóxicos a concentrações micromolares Hidrofóbicos baixas, que são tipicamente observadas durante a colestase. Assim, o tipo de lesão hepática durante a colestaMECANISMOS se pode variar, dependendo da concentração de ácidos DE ACÇÃO biliares tóxicos acumulados no hepatócito, ou seja, a apoptose pode ser o primeiro tipo de morte celular com concentrações baixas, enquanto que a necrose ocorre Efeito Actividade principalmente com concentrações altas (Rodrigues e Imunomodeladora Colerético Steer, 2000). Estudos recentes, realizados por Fiorucci et al. (2001) e Gumpricht et al. (2002) têm apontado para um possível papel protector do óxido nítrico conEfeito citoprotector tra a apoptose produzida pelos ácidos biliares. Figura 3 – Mecanismos de acção do UDCA. Parece, assim, que os ácidos biliares podem afectar O UDCA parece ser capaz de regular o transporte uma grande variedade de processos celulares, e que alcanalicular, diminuindo a quantidade de ácidos biliares guns desses efeitos podem levar ao desenvolvimento no hepatócito. Também pode competir com os transde patologias secundárias no decurso de doenças heportadores intracelulares que promovem a captação páticas. dos ácidos biliares retidos para o interior dos organitos (Hofmann, 1999; Kumar e Tandon, 2001). Este ácido Hepatoprotecção dos ácidos biliares biliar reduz a subsequente necrose ou apoptose, como tem sido demonstrado por vários autores: in vitro, o 11 dos ácidos biliares em Contudo, nem todos os ácidos biliares são tóxicos e UDCA diminui a acção tóxica existem diferenças entre espécies. Por exemplo, o áciculturas de hepatócitos primários humanos (Galle et do ursodesoxicólico (UDCA), um ácido dihidroxilado, al., 1990); em ratos infundidos com ácidos biliares hinão é tóxico quando é administrado a humanos, a radrofóbicos, a infusão simultânea de UDCA protege-os tos, a cães (Center, 1993) e a gatos (Nicholson et al., contra o desenvolvimento de colestase e necrose hepá1996). tica (Heuman et al., 1991). O UDCA, também protege, O mecanismo de acção do UDCA tem sido objecto de parcialmente, as membranas das mitocôndrias isolainvestigação intensa, contudo é um tema ainda controdas de hepatócitos de rato contra a lesão induzida por verso. No entanto, a sua compreensão é essencial para ácidos biliares hidrofóbicos (Leveille-Webster, 1997). a utilização racional deste ácido biliar nas doenças heRodrigues et al. (1998) verificaram que o UDCA parepatobiliares. Alguns mecanismos de acção (Figura 3), ce inibir a apoptose, prevenindo directamente as alteraatravés dos quais o UDCA pode exercer os seus efeitos ções na membrana mitocondrial. terapêuticos, têm sido mencionados por vários autores (Reichen, 1993; Queneau e Montet, 1994; Beuers et Efeito colerético al., 1998; Trauner e Graziadei, 1999; Lazaridis et al., 2001; Kumar e Tandor, 2001; Angulo, 2002). O mecaO UDCA não conjugado promove um fluxo biliar nismo de acção do UDCA pode variar com a fisiopatorico em bicarbonato. Esta hipercolerese é semelhante logia da doença hepática subjacente (Angulo, 2002). ao resultado de um shunt colehepático. Este ácido biliar pode também aumentar a secreção biliar de ácidos biSubstituição dos ácidos biliares hidrofóbicos liares endógenos e de outros compostos potencialmente tóxicos, retidos durante a colestase como o cobre, os O UDCA é um ácido biliar não hepatotóxico e releucotrienos, o colesterol e a bilirrubina (Scharschmidt lativamente hidrofílico. A sua administração oral em e Lake, 1989; Leveille-Webster, 1997; Lazaridis et al., humanos resulta num enriquecimento da bílis com 2001). 140 Pires, M.J. e Colaço, A. Actividade imunomodeladora O UDCA parece ter propriedades imunomoduladoras; reduz a expressão hepatocelular e biliar do complexo maior de histocompatibilidade (classe I e classe II) através da redução da influência estimulatória dos ácidos bilires hidrofóbicos (Trauner e Graziadei, 1999; Kumar e Tandor, 2001); diminui a expressão de antigénios humanos leucocitários (HLA) nas células hepatobiliares em desordens colestáticas, reduzindo as lesões citotóxicas mediadas pelas células T, que pode ser o principal mecanismo envolvido na progressão de doenças hepáticas crónicas (Leveille-Webster, 1997; Kumar e Tandon, 2001). Além disso, o UDCA inibe a produção anormal de imunoglobulinas e de citocinas a partir das células mononucleares do sangue periférico. Clinicamente, o tratamento com este ácido biliar diminui os níveis séricos de imunoglobulinas M, de anticorpos antimitocondriais e de anticorpos contra a desidrogenase piruvato (Trauner e Graziadei, 1999; Angulo, 2002). Em doentes humanos com cirrose biliar primária, o UDCA também reduz o número, a desgranulação e a infiltração de eosinófilos nos espaços porta (Lazaridis et al., 2001; Kumar e Tandor, 2001). Fiorucci et al. (2001) recentemente demonstraram que o NCX-1000, um tipo de óxido nitríco derivado do UDCA, tem um efeito protector contra a lesão hepática mediada pelas células T auxiliares. Como o UDCA não previne a fibrose e parece ter alguns efeitos imunomodeladores, o seu efeito terapêutico na cirrose biliar primária pode ser melhorado pela combinação terapêutica com agentes imunossupressores, tais como a prednisona, a ciclosporina e a azatioprina (Anwer e Meyer, 1995; Hofmann, 1999) ou com agentes fibróticos, como a colchicina (Poupon et al., 1996). Aplicação terapêutica dos ácidos biliares O UDCA é utilizado há já algumas décadas em medicina humana. Durante muitos anos os Japoneses apreciaram os poderes curativos da bílis dos ursos Negros Chineses. O principal ácido biliar destes ursos é o ursodesoxicólico (UDCA) que é formado pela 7-β-epimerização do ácido quenodesoxicólico pelas bactérias intestinais. Está também presente em pequenas quantidades na bílis de muitos mamíferos (Beuers et al., 1998). O UDCA tem sido sintetizado para comercialização, principalmente no Japão, como agente hepatoprotector desde 1936. Na década de 70, descobriu-se que o UDCA era capaz de dissolver os cálculos biliares e subsequentes testes clínicos levaram à sua comercialização com este objectivo. Nos anos 80 começou a ser administrado em doentes com cirrose biliar primária, provocando uma notável melhoria dos testes de função hepática e prolongando o tempo entre o diagnóstico e a transplantação hepática (Hofmann, 1999). Desde en- RPCV (2004) 99 (551) 137-143 tão, numerosos trabalhos têm documentado o benefício da utilização do UDCA no tratamento de uma variedade de doenças hepatobiliares crónicas em humanos, particularmente da cirrose biliar primária (Lindblad et al., 1998; Angulo et al., 1999a; Angulo et al., 1999b; Invernizzi et al., 1999; Milkiewicz et al., 1999; Nousia-Arvanitakis et al., 2001). Existe pouca informação sobre o uso do UDCA em animais com doença hepatobiliar. Meyer et al. (1997) administraram UDCA na dose de 15 mg/Kg uma vez ao dia, num cão com hepatite crónica e colestase grave. Estes autores observaram um aumento da concentração sérica de UDCA e uma diminuição da concentração sérica de ácidos biliares hidrofóbicos endógenos, uma melhoria clínica e uma redução da actividade sérica das enzimas hepáticas, dos níveis séricos de albumina e de bilirrubina. Estes resultados são semelhantes aos observados em doentes humanos com hepatite crónica. Assim, o UDCA pode ter um papel importante na manutenção de hepatites crónicas activas tanto em cães com em gatos. No entanto, a sua administração está contra-indicada quando existe suspeita de obstrução biliar (Johnson, 2000). A segurança do UDCA foi investigada em gatos. Day et al. (1994) não observaram reacções adversas quando o UDCA foi administrado a cinco gatos saudáveis, na dose de 10 mg/Kg/dia durante três meses. Num outro trabalho realizado por Nicholson et al. (1996), com quatro gatos saudáveis, a administração diária de UDCA na dose de 15 mg/Kg, durante oito semanas, não foi associada com o aparecimento de reacções adversas, alterações nos testes de função hepática ou alterações nos resultados da biópsia hepática. Conclusão A maior parte da informação disponível sobre a toxicidade e interesse terapêutico dos ácidos biliares é baseada em estudos realizados com pessoas, e com animais em condições de laboratório. As vantagens da utilização do UDCA no tratamento de doenças hepatobiliares permanecem ainda mal esclarecidas. Alguns autores referem que quando utilizam este ácido biliar, tanto em cães como em gatos com doenças hepáticas colestáticas crónicas, têm a “impressão” clínica de que o seu efeito é benéfico, no entanto, realçam a necessidade de realizar mais estudos para investigar este assunto, e comprovar, o seu potencial terapêutico. A dose utilizada em cães e gatos, com doenças hepáticas crónicas, varia entre 10 e 15 mg/kg por dia, e devido às suas fortes propriedades coleréticas, nunca deve ser administrado quando se suspeita de uma possível obstrução dos ductos biliares extrahepáticos. 141 Pires, M.J. e Colaço, A. Bibliografia Angulo, P., Batts, K., Therneau, T., Jorgensen, R., Dickson, E., Lindor, K. (1999a). Long-Term Ursodeoxycholic Acid Delays Histological Progression in Primary Biliary Cirrhosis. Hepatology, 29 (3), 644-647. 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