735
A REPRESENTAÇÃO DA POLÊMICA SOBRE O USO DE ESTRANGEIRISMOS
NO BRASIL FEITA POR UM JORNALISTA NORTE-AMERICANO
Marina Gláucia Verzola1
INTRODUÇÃO
Tem ganhado relevância, nas discussões da sociedade brasileira, o discurso
sobre a promoção e a preservação da língua portuguesa. Grande parte dessas
discussões aconteceu após o deputado federal Aldo Rebelo propor o Projeto de Lei
nº 1676/99 (REBELO, 1999), por meio do qual propõe restrições ao do uso de
estrangeirismos, principalmente os de língua inglesa.
Nesse projeto, ele afirma que a imposição de uma língua é uma das maneiras
de se dominar um povo, mesmo que isso ocorra de maneira lenta, e tenta mostrar
que a língua portuguesa está sendo descaracterizada por causa da presença de
palavras como "holding", "recall", "franchise", "coffee-break", "self-service". Rebelo
acredita que os anglicismos são uma prática abusiva e enganosa, pois muitas vezes
os encontramos em propagandas que dizem “on sale”, as quais podem iludir o
consumidor que não possui conhecimento sobre línguas estrangeiras. A intenção
confessa do projeto é promover, defender e proteger a língua portuguesa sem barrar
sua evolução, pois se assume que a lei não se aplica “a palavras e expressões em
língua estrangeira consagradas pelo uso, registradas no Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa” (REBELO, 1999). Além disso, o deputado afirma que, “na
inexistência de palavra ou expressão equivalente em língua portuguesa, admitir-se-á
o aportuguesamento da palavra ou expressão em língua estrangeira ou o
neologismo próprio que venha a ser criado” (REBELO, 1999).
Esse Projeto de Lei gerou polêmicas na sociedade letrada brasileira. Na mídia
de referência, já se encontravam críticas ao uso do inglês nas diversas esferas de
atividade – comercial, econômica, de informação etc. A iniciativa do deputado abriu
um espaço maior ainda de discussão da questão, em especial por parte daqueles
que consideravam a luta contra os estrangeirismos uma atitude muito complexa para
1
Mestranda do Programa de Mestrado em Linguística da Universidade de Franca 736
ser resolvida por meio de um decreto. Os linguistas estão entre aqueles que
encabeçaram um movimento contra a iniciativa em pauta: houve uma série de
debates nas universidades e na mídia, houve documentos de desapreço à atitude,
publicações em livros e revistas, entre outros. (MENDONÇA, 2006)
Nosso objetivo neste artigo é analisar como esse acontecimento é
ressignificado na mídia norte-americana, em novo contexto ideológico. Analisamos,
neste trabalho, a matéria “English is spoken here: too much, some say” (publicada
no jornal The New York Times on-line em 15 de maio de 2001) do jornalista norteamericano Larry Rohter, representante desse jornal no Brasil. Como parte da
pesquisa sobre “A promoção e a preservação da Língua Portuguesa sob o olhar do
outro”, que desenvolvemos, buscamos identificar a representação que faz o citado
jornalista do projeto do deputado e da sociedade brasileira, nos conflitos ideológicos
em que se constituem os discursos no contexto de imposição cultural da língua
inglesa.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A base teórica desta pesquisa é a concepção dialógica da linguagem,
especialmente aquela que parte das reflexões produzidas pelo círculo de Bakhtin,
composto principalmente pelos intelectuais russos Volochinov, Medvedev e Mikhail
Bakhtin, sendo este a figura que mais se destacou no grupo. Nessa perspectiva, a
linguagem é concebida como um fluxo discursivo em que as palavras dos outros são
constitutivas das do “eu”; assim, uma palavra se constitui necessariamente a partir
de, com e para outras palavras. A base teórica também compreende estudos de
Jacqueline Authier-Revuz (1990) que, a partir das reflexões do Círculo de Bakhtin e
da
perspectiva
psicanalítica
de
linha
lacaniana,
propõe
o
conceito
de
heterogeneidade enunciativa, a qual, para a autora, se divide em constitutiva,
mostrada marcada e não-marcada.
Faremos, antes de iniciar a análise da matéria selecionada, breves
considerações teóricas que norteiam essa análise. Consideramos o texto em
questão como um enunciado, tal como o concebe Bakhtin (1992). Para este autor, o
enunciado não se restringe à materialidade textual, pressupõe necessariamente um
autor, um interlocutor, um projeto de dizer, uma compreensão responsiva do outro,
ou seja: o enunciado pressupõe necessariamente uma enunciação. É nesse
737
contexto que o autor-criador, uma função que dá unidade e acabamento ao
enunciado, sempre organiza o todo sígnico em função da compreensão responsiva
do outro.
De acordo com Brait e Melo (2007), o enunciado concreto existe quando há
interação entre os participantes da enunciação. As autoras dizem que, para Bakhtin,
um enunciado sempre se dirige a alguém, ou seja, possui um destinatário.
Assim, o enunciado e a enunciação, na obra do autor, estão necessariamente
relacionados na produção de sentido. Cabe acrescentar que o enunciado, nessa
perspectiva teórica, deve ser relacionado ao mesmo tempo ao contexto imediato e
sócio-histórico, deve ser pensado como fruto de um trabalho social, e não individual.
Dessa forma, os valores ideológicos interferem diretamente no enunciado.
Consideremos a definição de ideologia dada por Voloshinov, citada por
Miotello:
“Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das
interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se
expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas.” (VOLOSHINOV, apud
MIOTELLO, 2007, p.169)
Miotello (2007, p. 172) lembra que, para o autor russo, “as palavras são
tecidas por uma multidão de fios ideológicos, contraditórios entre si”, e que
O signo verbal não pode ter um único sentido, mas possui acentos
ideológicos que seguem tendências diferentes, pois nunca conseguem
eliminar totalmente outras correntes ideológicas de dentro de si.
(MIOTELLO, 2007, p.172)
Se existem contradições na sociedade, os signos irão refletir e refratar essas
contradições presentes na ideologia e nas relações sociais. Essa relação da palavra
com os valores ideológicos interfere diretamente em seu sentido. A seguir,
resumimos
aspectos
sobre
o
sentido
nessa
concepção
teórica.
Para
Bakhtin/Voloshinov (1995), toda enunciação deve ter uma significação e um tema. O
tema de uma enunciação é o seu sentido, que só é determinado se olharmos não só
as formas linguísticas, mas também os elementos não-verbais da situação. De
acordo com o autor, o tema pode variar, ou seja, podemos falar a mesma frase em
duas situações diferentes e elas terem significados diferentes. “O tema é um sistema
de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às
condições de um dado momento da evolução” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1995, p.
738
129). No entanto, a significação são os elementos da enunciação que são reiteráveis
e idênticos cada vez que são repetidos.
Cereja (2007) explica que a significação, se comparada ao tema, representa
um estágio inferior de significar, porque constrói o sentido com os signos linguísticos
e as formas gramaticais da língua. Em se tratando do tema, que para Cereja (2007),
representa um estágio superior de significar, pode-se perceber que ele depende não
só das formas linguísticas, mas principalmente, da situação histórica concreta, ou
seja, dos elementos extraverbais. O tema é instável, depende da situação, do lugar
em que está inserido. Portanto, o tema é único e irrepetível.
Assim, enquanto a significação é por natureza abstrata e tende à
permanência e à instabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao
fluido e dinâmico, ao precário, que recria e renova incessantemente o
sistema de significação, ainda que partindo dele. (MIOTELLO, 2007, p.202)
Nessa perspectiva teórica, a palavra não é neutra e sim ideológica, pois
carrega consigo as vozes dos outros que a utilizam. Os sentidos das palavras se
modificam ou se atualizam, de acordo com a situação sócio-histórica em que são
utilizadas (CEREJA, 2007, p.204).
2. METODOLOGIA
A metodologia utilizada é a proposta por Carlo Ginzburg (1989) para a
pesquisa nas ciências humanas - Paradigma Indiciário. Em seu livro Mitos,
emblemas, sinais: morfologia e história, no capítulo Sinais, raízes de um paradigma
indiciário, Ginzburg explica que o modelo dá atenção ao particular, ou seja, àquilo
que é diferente, pois são os sinais peculiares que mostram a singularidade. Ele diz
que o pesquisador deve perseguir pegadas, pistas e indícios que permitam elaborar
hipóteses sobre o todo dos dados.
Uma das hipóteses de que partimos é que a matéria ressignifica o discurso
presente no projeto de Aldo Rebelo e em suas declarações, bem como dados da
mídia e polêmicas com os linguistas, segundo o lugar sócio-ideológico no qual o
autor se posiciona: o do sujeito norte-americano, privilegiado, se comparado ao
sujeito de nacionalidade brasileira, sendo o Brasil um país emergente no contexto
político-econômico.
739
3. CONTEXTUALIZAÇÃO: os estrangeirismos na perspectiva do político e do
linguista
Na tentativa de delinear as vozes sociais com as quais a matéria analisada
dialoga e as quais ressignifica, resumimos aqui uma polêmica representativa
ocorrida no Brasil sobre a restrição ao uso de estrangeirismos.
Trata-se da polêmica entre Aldo Rebelo e o linguista Carlos Alberto Faraco,
que, no artigo “Guerras em torno da língua” escrito no jornal Folha de São Paulo, em
25 de março de 2001, faz um texto-resposta para o citado projeto do deputado
federal. O linguista inicia seu texto dizendo que ainda hoje as línguas não são vistas
como objeto de estudo da ciência, pois acredita-se que já tenha sido dito tudo a
respeito da linguagem. A linguística, por exemplo, apesar de estar nas universidades
há 40 anos, ainda não possui seu lugar na sociedade. De acordo com Faraco
(2001), ela é responsável por um grande acervo de descrições do português e por
produzir um quadro bastante delineado da diversidade linguística do país (em que se
falam perto de 180 línguas, somando as línguas dos grupos europeus, asiáticos e
indígenas), e mesmo assim, essa disciplina permanece invisível aos olhos do senso
comum. Ele defende a idéia de que a Linguística ainda não conseguiu ocupar seu
devido lugar na sociedade e que, por isso, prevalece-se o senso comum, ou seja,
ainda não se veem diferentes discursos que dizem a língua no Brasil, apesar de eles
existirem. Um exemplo disso dado pelo linguista é o próprio projeto de Rebelo que
caminha livremente pelo Congresso, o que prova, para ele, que a questão linguística
ainda não é assunto social. Faraco (2001) diz que o projeto mostra preconceitos e
mitos sobre a linguagem e
revela um indisfarçável desejo de controle social da pior espécie, daquele
que, ignorando a heterogeneidade e a dinâmica da vida cultural, quer impor
o homogêneo e o único. Todo gesto de legislar sobre a língua tem, aliás,
essa triste característica. (FARACO, 2001)
Retomando pesquisa realizada por uma destas pesquisadoras, podemos
dizer que o linguista assume, nesse debate e em outros que tiveram lugar na mídia
sobre o Projeto de Lei, o discurso a favor da abordagem científica das línguas (em
defesa, portanto, dos estudos descritivos e/ou cientificamente embasados da
740
Linguística, em oposição aos estudos normativos da gramática tradicional). Além
disso, o linguista critica as políticas linguísticas autoritárias, com as quais identifica o
Projeto de Lei em questão. (MENDONÇA, 2006)
Pouco tempo depois, o jornal Folha de São Paulo divulgou um artigo de
Rebelo intitulado A intriga das línguas, de 15 de abril de 2001, no qual percebemos
outra resposta, mas desta vez de Rebelo a Faraco. O deputado defende seu projeto
apoiando-se na idéia de que a língua é uma ferramenta de conquista. “A cultura
dominante impõe seu vocabulário à cultura dominada. (...) Quando Portugal decidiu
empreender a colonização, cuidou de providenciar um idioma para comunicação
com os nativos.” (REBELO, 2001). Entretanto, desenvolve esse argumento não o
considerando um caso de imposição linguística e cultural, ponto de vista que se
encontra em estudos de linguistas, mas como “elemento decisivo na unidade
nacional.” (MENDONÇA, 2006, p. 194)
O deputado explica que o português falado no Brasil sempre aceitou
contribuições de outras línguas como as indígenas e africanas, pois sempre,
segundo ele, tivemos sabedoria de adaptá-las na pronúncia e na escrita e um bom
exemplo disso seria a palavra futebol, que tomamos do inglês.
A esse respeito, convém considerar que
Rebelo responde a Faraco imbuído do espírito do purismo nacionalista,
usando, sem os citar diretamente, discursos de escritores e gramáticos –
estes mesmos que foram criticados por seu debatedor. Nessa paráfrase,
reafirma o discurso da unidade da nação brasileira pela comunhão
lingüística entre brancos, negros e índios, comunhão realizada pelo povo
(...). Reafirma o discurso da unidade na diversidade, em que o português
enriqueceu-se com as contribuições de outras línguas, mas permaneceu
uno, “elemento decisivo da unidade nacional”. Considera a língua uma
unidade, um bem intangível da pátria que deve ser preservado em sua
pureza e valorizado como tal. Assim, só assume como positiva a influência
passada de outras línguas no português. As influências contemporâneas
não são aceitas. (MENDONÇA, 2006, p. 192-193)
Dessa forma, encontramos, nesses dois textos que polemizam entre si, por
um lado, uma postura que busca ver na interferência linguística um fato social e
histórico que deve ser descrito e entendido sem preconceitos linguísticos; por outro
lado, temos uma postura purista, que argumenta a favor de uma unidade, em
detrimento da diversidade linguística que constitui a nação brasileira. Nos seis textos
que compõem a polêmica, esses aspectos são retomados. A seguir, analisamos
741
como a matéria citada do The New York Times ressignifica essas polêmicas que
giram em torno do nosso idioma, de acordo com o lugar que o sujeito ocupa.
4. ANÁLISE: O USO DE ESTRANGEIRISMOS SOB O OLHAR DO OUTRO
Apresentamos aqui a análise da reportagem English is spoken here... Too
much, some say2 do jornalista norte-americano Larry Rohter, correspondente do
jornal The New York Times no Brasil. (ver anexo)
Uma das hipóteses de que se parte é que a reportagem (aqui tomada como
um enunciado, como o propõe Bakhtin) ressignifica o discurso presente no projeto
de Aldo Rebelo e em suas declarações, bem como dados da mídia e polêmicas com
os linguistas, segundo o lugar sócio-ideológico no qual o autor-criador se posiciona:
o do sujeito norte-americano, privilegiado se comparado ao sujeito de nacionalidade
brasileira, sendo o Brasil um país emergente no contexto político-econômico.
É preciso destacar aqui que também usamos o conceito de autor-criador
como o propõe Bakhtin. Para ele, existe uma distinção entre o autor-pessoa, que
seria o próprio escritor, o artista, e o autor-criador, que é a função estético-formal da
obra. Esta função não pode deixar de existir, pois é ela que materializa a relação
entre o herói e o mundo. Faraco (2005) diz que o autor-criador representa para
Bakhtin uma posição axiológica, pois quando a realidade vivida é transposta para o
plano da obra pelo autor-criador, ele também recorta e reorganiza os eventos da
vida dando forma ao conteúdo. Dessa forma, de acordo com Bakhtin, Faraco (2005)
explica que na transposição de planos da vida para a arte podemos perceber um
posicionamento valorativo por parte do autor-criador, pois, para Bakhtin, seria
impossível a transposição neutra. “O autor-criador é, assim, uma posição refratada e
refratante.” (FARACO, 2005, p. 39)
Essa voz criativa (isto é, o autor-criador como elemento estético-formal) tem
de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz segunda, ou seja, o
discurso do autor-criador não é a voz direta do escritor, mas um ato de
apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a poder ordenar
um todo estético. (FARACO, 2005, p. 40)
2
O inglês é falado aqui... Demasiado, alguns dizem (tradução nossa)
742
Dessa forma, percebemos que o autor do The New York Times é um autorcriador que dá forma ao conteúdo e, nesse processo de construção deixa perceber
uma posição de valor.
Destacamos também que, de acordo com Bakhtin (1992), o enunciado é a
unidade real da comunicação verbal e representa um elo, pois ele está ligado a
outros enunciados. Este autor diz que o enunciado não se restringe à materialidade
textual, pressupõe necessariamente um autor-criador, um interlocutor, um projeto de
dizer, uma compreensão responsiva do outro, ou seja: o enunciado pressupõe
necessariamente uma enunciação. Dessa forma, olharemos para a reportagem do
jornalista como um enunciado que está inserido em um momento histórico de uma
determinada sociedade.
Bakhtin (1992) diz que todo enunciado é uma resposta a enunciados
anteriores e, neste caso, a reportagem de Rohter se constitui em uma resposta ao
projeto do deputado, assim como às discussões e polêmicas ocorridas aqui no
Brasil. Além disso, Bakhtin (1992) explica que todo enunciado promove uma atitude
responsiva, pois o ato da compreensão já indica uma dialogicidade, ou seja, uma
interação do destinatário com o enunciado, da qual nasce uma resposta, mesmo que
não expressa ou materializada. Por isso, o enunciado representa um elo que liga
enunciados anteriores e posteriores a si mesmo.
Na visão bakhtiniana todo enunciado é formado de acordo com um tempo e
um espaço social nos quais o autor-criador está inserido. Por isso, o enunciado
produzido por ele reflete e refrata a ideologia de seu tempo e espaço. Além disso,
Bakhtin (1992) diz que aquilo que o sujeito enuncia é só um reflexo de tudo que já foi
enunciado um dia, pois o sujeito não é e nunca será o primeiro a produzir um
discurso. No seu discurso estão inclusos os discursos dos outros. Jacqueline
Authier-Revuz diz que “As palavras são, sempre e inevitavelmente, as palavras dos
outros. [...] Somente o Adão mítico, [...] estaria em condições de ser ele próprio o
produtor de um discurso isento do já dito na fala de outro.” (1990, p. 26/27) Assim
podemos dizer que o autor-criador enuncia de acordo com seu lugar sócioideológico e tudo aquilo que ele diz, na verdade, reflete a ideologia norte-americana,
ou seja, reflete tudo que é dito pelos outros sujeitos norte-americanos que compõem
o discurso do autor-criador.
A reportagem analisada se inicia com um exemplo, em tom de deboche, da
situação brasileira frente ao Projeto de Lei do deputado federal sobre o uso de
743
anglicismos. Dessa forma, o autor-criador, no acabamento estético que dá ao
enunciado em questão, já indica um lugar para o brasileiro: o de sujeito que pode ser
ridicularizado: “If Aldo Rebelo gets his way, it will soon be illegal for Brazilians to go
to a ''drive-in'' for a ''hot dog'' and ''milkshake,'' entrust their cars to ''valet parking'' or
invest their money with a ''personal banker.”
3
(ROHTER, 2001). O autor-criador
escreve de modo a fazer com que o leitor imagine, pelo menos por um instante, a
situação absurda em que nós brasileiros nos encontraríamos se o projeto fosse
aprovado. No entanto, logo em seguida, o autor-criador do The New York Times
assume que as atividades em si não serião proibidas, apenas o uso das expressões.
Assim, ele, no movimento argumentativo do discurso, faz uso do nonsense como
recurso para desmoralizar o sujeito referido e a sociedade de onde ele provém. Logo
em seguida, diminui o tom de deboche usado no início do texto para falar da
sociedade brasileira. “The activities themselves will not be prohibited, mind you, just
the use of the English-language terms by which they are commonly known here”
4
(ROHTER, 2001).
Podemos perceber o olhar desse sujeito sobre o Brasil analisando algumas
formas que ele usa para citar a voz dos entrevistados. Os discursos narrativos foram
estudados por Bakhtin (1995) como formas enunciativas em que podemos perceber
a presença de vozes sociais no discurso. Maingueneau (1993) e Authier-Revuz
(1990) consideram os discursos narrativos como formas de heterogeneidade
enunciativa. No enunciado que analisamos, encontram-se o discurso direto e o
indireto.
De acordo com Maingueneau (1993), o discurso direto e o indireto
representam algumas manifestações da heterogeneidade enunciativa e se
constituem em duas formas diferentes empregadas para relatar uma enunciação.
Este autor cita C. Kerbrat-Orecchioni que afirma que caso um locutor queira ocultarse por trás de um terceiro, a citação “é frequentemente uma maneira hábil por ser
indireta” de sugerir o que se pensa, sem necessitar responsabilizar-se. (C. KerbratOrecchioni, apud MAINGUENEAU, 1993, p.86) Também podemos destacar o
3
Se fosse feito o que o deputado Aldo Rebelo deseja, logo seria ilegal para os brasileiros ir a um “drivein” para comer um tomar “milkshake”, estacionar os carros em “valet cachorro quente e parking” ou investir o
dinheiro com um “personal banker”. (tradução nossa)
4
As atividades em si não seriam proibidas, imagine você, só o uso de termos em língua inglesa os quais
são conhecidos e comuns aqui. (tradução nossa)
744
seguinte: Fiorin (2006) comenta que, no o discurso direto, o narrador dá à voz do
personagem um sentido de verdade.
Como o gênero a que pertence a matéria analisada é a reportagem, é
preciso fazer algumas considerações sobre ele. De uma perspectiva dos estudos da
comunicação, Nilson Lage (2006) afirma que o gênero reportagem se diferencia da
notícia por ser um texto mais extenso, completo e rico em informações. Nele, a
informação depende da intenção do jornalista, ou seja, decorre de uma visão
jornalística dos fatos, enquanto que na notícia podemos encontrar a informação de
maneira breve não dependendo dos projetos de dizer dos jornalistas. Outra
característica importante relacionada à reportagem é que ela “dá conta de um
estado-de-arte, isto é, da situação momentânea em determinado campo de
conhecimento” enquanto que “a notícia trata de um fato, acontecimento que contém
elementos de ineditismo, intensidade, atualidade, proximidade e identificação que o
tornam relevante.” (LAGE, 2006, p.114) Outra característica relevante da reportagem
é que ela se constitui da entrevista, gênero básico da atividade jornalística. As falas
dos entrevistados são organizadas em discursos narrativos, daí a importância dos
discursos citados nesse gênero, que inclusive vale-se deles para construir efeitos de
sentido de verdade, valores argumentativos etc.
Nos primeiros momentos em que fala de Aldo Rebelo, o autor-criador
define/descreve o deputado como um membro do Congresso e como comunista, em
forma de aposto. Nesse aspecto, enfatiza o partido e a ideologia de Rebelo:
Mr. Rebelo, a member of Congress, decided to take action after he took
offense at the proliferation here of stores with English-language names (…)
“Why should Brazilians have to feel embarrassed in their own country
because they can't pronounce these names?'' (E1, L1) said Mr. Rebelo, a
member of the Communist Party of Brazil. (E2, L2) 5 (ROHTER, 2001, grifo
adicionado).
Nesse discurso citado, o autor-criador se identifica com E2 e L2 – nesse
enunciado E2, ele define para o sujeito citado um lugar sócio-ideológico com o qual
ele não se solidariza. Dessa forma, ele destaca do outro aquilo que pode torná-lo
passível de crítica.
5
Sr. Rebelo, membro do congresso, decidiu agir depois que viu como crime a proliferação aqui de lojas
com nomes na língua inglesa... (...) “Porque os brasileiros devem se sentir embaraçados no próprio país porque
eles não conseguem pronunciar estes nomes?” disse o Sr. Rebelo, um membro do Partido Cumunista do Brasil.
745
De acordo com Bakhtin (1992), o enunciado é bipolar, pois de um lado ele
traz aquilo que é coletivo – a língua – e de outro lado, aquilo que é individual – o
próprio enunciado. Sendo assim ele pode transmitir a individualidade do autorcriador, que no caso é o jornalista da reportagem. Mas, entendemos que a
individualidade de Rohter mostra, na realidade, a ideologia norte-americana, pois ele
se constitui em um sujeito norte-americano. Além disso, Bakhtin (2000) diz que as
palavras isoladas não expressam juízos de valor, mas quando o locutor as utiliza,
elas se tornam dotadas de expressividade, mostrando seu ponto de vista e, para ele,
é possível perceber o diálogo produzido através de uma única palavra, que, na
verdade, pode indicar uma voz social. Dessa forma podemos perceber que o
jornalista, ao comentar que o deputado faz parte do partido comunista, transmite a
crítica a Rebelo de que só uma pessoa como ele poderia produzir um projeto tão
sem fundamento.
O autor-criador dá acabamento estético ao enunciado citando falas de
sujeitos que se opõem ao deputado. Ele constrói o artigo usando falas de Rebelo,
por exemplo, e logo em seguida acrescenta um discurso narrativo que não seja
compatível com a do deputado. As falas não compatíveis com seu olhar vêm entre
aspas, no discurso direto, pois o jornalista faz questão de mostrar seu
distanciamento, ou seja, assume que o enunciado não é de sua autoria. No entanto,
podemos perceber o posicionamento do autor-criador pelas falas dos sujeitos que
ele coloca em seu texto. Bakhtin (1992) diz que a escolha dos recursos linguísticos
depende do projeto de dizer do autor-criador. Assim, o autor-criador utiliza-se de
recursos como o discurso direto e indireto, o que lhe permite projetar sua visão
(ideologia norte-americana) sem se comprometer. De acordo com Jacqueline
Authier-Revuz (1990), esses recursos representam a heterogeneidade mostrada
marcada, ou seja, introduzem o discurso do outro de forma explícita (marcada).
Como exemplo, podemos citar uma parte da reportagem em que o autorcriador coloca a fala de Ricardo Gouveia Botelho, um web designer. A idéia de
Botelho é: “I think he and the whole idea are nuts” 6 (ROHTER, 2001). A palavra nuts
pode ser traduzida para o português como “louco (a)”, “doido (a)” ou “fora de
controle”. Se considerarmos a heterogeneidade enunciativa e o discurso relatado (tal
como os entendem Mikhail Bakhtin e Jaqueline Authier-Revuz), percebemos o
6
Eu acho que ele e a ideia toda são loucas. (tradução nossa)
746
movimento enunciativo do sujeito americano para desmistificar o discurso da
promoção e preservação da língua portuguesa, tal qual é proposto principalmente
pelo projeto de lei: ele destrói o argumento do outro sem se comprometer com as
idéias citadas. A utilização de aspas, de acordo com Maingueneau (1993), é a
maneira mais fácil de distanciar os termos de seu sujeito, ou seja, o autor-criador
não assume o discurso. Para Bakhtin (1992), as palavras colocadas entre aspas
podem ser percebidas como as palavras dos outros e manifestam indiretamente a
visão do autor-criador, pois naquele momento as palavras do outro são as dele (do
autor-criador).
Para concluir esta idéia, podemos perceber que o autor-criador faz uso de
informações vindas também de pessoas comuns, como a fala que ele utilizou de um
web designer e não de autoridades no assunto. Entretanto, trata-se de sujeito
claramente afetado pelo Projeto de Lei em questão, visto que a área da informática
utiliza largamente a língua estrangeira, em especial o inglês. Nesse sentido, a fala
desse sujeito serve grandemente ao projeto de dizer do autor-criador, que critica o
projeto em pauta.
Outra prova de que a reportagem é construída com falas que contradizem as
opiniões do deputado é a fala de Sérgio Nogueira Duarte, professor de português
que escreve para uma coluna semanal em um jornal brasileiro: “Foreign words are
present in any language, and often for good reasons” 7. (ROHTER, 2001) Antes
disso, nos é apresentada a fala de Aldo Rebelo que diz que não quer controlar a
evolução da língua, mas sim evitar abusos. Nessa instância, percebemos que o
autor-criador se posiciona contra as idéias do deputado, mas o faz a partir das falas
alheias, como é típico do gênero jornalístico-reportagem. O sujeito exime-se da
responsabilidade pelo dizer, mas deixa explícita a idéia de ridicularização frente à
fala do político, pois acrescentando idéias opostas, induz ao pensamento de que as
falas do deputado não possuem valor devido ao fato de que todas as outras
apresentadas foram contrárias ao seu argumento.
O jornalista vê a questão de um determinado ponto de vista ideológico,
contrário aos valores político-ideológicos do deputado comunista, porque questiona
o projeto sobre preservação da língua e, em determinado ponto do texto, por
exemplo, ele explicita a sua visão de defesa do seu próprio país: Aldo Rebelo estaria
7
Palavras estrangeiras são presentes em qualquer língua e sempre por boas razões. (tradução nossa)
747
preocupado com a hegemonia econômica e comercial dos Estados Unidos, pois ele
(o jornalista) afirma que o francês e o árabe foram as principais fontes de palavras
estrangeiras usadas no português, mas a iniciativa é voltada para o inglês, o qual o
deputado disse ser um instrumento de hegemonia norte-americano.
Though French and Arabic have historically been the main sources of
foreign words used in Portuguese, the language of Brazil, the initiative is
clearly aimed at English, which Mr. Rebelo said he regarded as an
instrument of ''the economic and commercial hegemony of the United
States.'' 8 (ROHTER, 2001)
Observe-se a colocação das aspas: o autor-criador não se identifica com o
discurso do enunciador que enuncia da perspectiva do político comunista – neste
momento, ao se distanciar do discurso do outro, ele mostra o lugar ideológico de
onde enuncia.
O projeto então, segundo o autor-criador, não teria uma primeira intenção
linguística, mas sim política. No entanto, ele, que o comenta, também pontua o texto
com comentários extra-linguísticos, pois faz uso de argumentos de qualquer
natureza, não só linguística, para dar suporte às sua ideias. Na visão bakhtiniana, o
enunciado se constrói na inter-relação dos elementos linguísticos do texto com a
história, a cultura, a sociedade e outros aspectos do intertexto (o extraverval). Por
esse olhar, os dois – jornalista e deputado – constroem seus enunciados a partir de
posicionamentos - que a análise vai desvendando – ideologicamente opostos, mas
os dois com forte cunho nacionalista.
Se considerarmos, segundo Rajagopalan (2003), que as identidades
linguísticas estariam, de certa forma, em crise devido à vivência em mundo
globalizado, não deveria haver a preocupação exposta pelo deputado através de seu
projeto. Entretanto, esta é uma visão que precisa ser comprovada historicamente.
Talvez futuros estudos pudessem promover uma análise política do projeto tendo em
vista a atual conjuntura sócio-política-cultural brasileira, frente ao próprio país e em
relação à situação global.
Na reportagem, o autor-criador cita o linguista americano Steven R. Fisher
falando sobre as decisões brasileiras que favorecem o estudo do espanhol em
8
Embora o francês e o árabe tenham sido historicamente as principais fontes de palavras estrangeiras
usadas no português, a língua do Brasil, a iniciativa é claramente voltada para o Inglês, o qual o Sr. Rebelo disse
ser um instrumento de hegemonia econômica e comercial dos Estados Unidos. (tradução nossa)
748
nosso país. Com isso, tenta fazer ver que estrangeirismos não representam ameaça
real de desvirtuamento de uma língua. Entretanto é interessante observar que a
língua espanhola, mesmo sendo ensinada nas escolas do Brasil há quase um
século, não foi incorporada no uso linguístico como o inglês, não houve uma
explosão de termos hispânicos no português. Por isso, não se pode prescindir de,
pelo menos, considerar as diferenças de relações comerciais, econômicas e
culturais do Brasil com seus vizinhos continentais e, por outro lado, com os Estados
Unidos. Assim, uma análise política, como foi dito anteriormente, talvez pudesse
elucidar melhor a questão.
Ampliando essa reflexão sobre o desenvolvimento da argumentação a partir
do uso do discurso do outro, vejamos o fragmento em que o autor-criador cita o
linguista acima referido e finaliza a matéria:
As a result, there was a flurry of concern last year when Steven R. Fischer, an
American linguist, predicted that ''within 300 years Brazil will be speaking'' a
different language. That forecast came on the heels of a government decision
to make the study of Spanish obligatory in Brazilian schools to help forge
closer ties with the rest of Latin America, which often dismisses Portuguese as
nothing more than ''Spanish, badly spoken.'' ''Brazil is surrounded by countries
that speak Spanish,'' Dr. Fischer said in an interview with the newsmagazine
Veja. ''As commercial exchanges and contacts increase,'' he said, ''there will
be much pressure'' to abandon Portuguese. ''Due to the enormous influence of
Spanish, it is quite likely that a type of Portunhol will emerge,'' he added,
combining the Portuguese words for Portuguese and Spanish. (1)
In an effort to fortify the language internationally, Brazil has stepped up its
financial support for the Community of Portuguese-Speaking Nations, created
in 1996. The Brazilian government has also pushed for Portuguese to be used
as an official language at the United Nations and taken the lead in trying to
revive the use of Portuguese in East Timor, where use of the language was
harshly restricted during 25 years of Indonesian rule. But Brazilians should not
''feel threatened or go tilting at windmills on some sort of Don Quixote quest
that doesn't make sense,'' Dr. Padilha counseled. ''Any language is a living
organism that is evolving, and our language, thank God, is one that has
always shown a capacity to accept the foreign words it wants and to reject the
ones that it doesn't want” 9 (2) (ROHTER, 2001, grifo adicionado).
9
Como resultado, teve ano passado um período curto, mas intenso, de preocupação quando Steven R.
Fischer, um linguista americano, predisse que “dentro de 300 anos o Brasil estaria falando” uma língua diferente.
A previsão veio depois da decisão do governo de obrigar o estudo do espanhol nas escolas brasileiras para ajudar
na aproximação com resto da América Latina, que geralmente desmerece o português como nada mais que o
“espanhol, mal falado.” “O Brasil é rodeado de países que falam espanhol,” Dr, Fischer disse em uma entrevista
a Veja. “Assim que as trocas comerciais e os contatos aumentarem,” ele disse, “vai ter muito mais pressão” para
abandonar o português. “Devido a grande influência do espanhol, é bem provável que um tipo de Portunhol vai
emergir,” ele acrescentou, combinando palavras portuguesas e espanholas. Em esforço de fortificar a língua
internacionalmente, o Brasil aumento o suporte financeiro a Comunidade das Nações de falantes do português,
criada em 1996. O governo brasileiro também tentou persuadir para que o Português fosse usado com língua
oficial nas Nações Unidas e pegou a liderança tentando reviver o uso do Português no Timor Leste, onde o uso
da língua foi severamente restrito durante 25 anos de imposições da Indonésia. Mas os brasileiros não devem “se
sentir ameaçados ou mirar contra moinhos de vento como Don Quixote, o que não faz sentido,” Dr. Padilha
749
No recorte (1) do discurso citado anteriormente, o autor-criador utiliza a fala
de Fischer como argumento para contestar o deputado. Trata-se de argumento de
autoridade, que confere “cientificidade” e, portanto, valor de verdade, ao enunciado.
Deve ser destacado, também, o uso das aspas na construção desse efeito de
objetividade – o autor-criador manifesta somente indiretamente seu ponto de vista,
pois dá fala ao outro e se separa de suas palavras; contudo, no todo do enunciado,
esses discursos da autoridade somam para argumentar contra o projeto em questão.
Também no recorte (2) a autor-criador identifica-se com a autoridade citada,
Dr. Padilha, tanto na afirmação de que os anglicismos não modificariam
substancialmente o português do Brasil, quanto na ridicularização da proposição de
Aldo Rebelo, a quem indiretamente classifica de quixotesco. Podemos perceber,
dessa forma, a ridicularização do projeto pelas falas que o autor-criador utiliza.
Se analisarmos o vocabulário que o jornalista utiliza, percebemos o tom de
escárnio presente em suas falas, que apesar de tentar camuflar a visão do sujeito
norte-americano sobre essas questões mais políticas do que linguísticas, deixa à
mostra certas marcas que nos levam a desvendar o olhar desse sujeito. “Mr. Rebelo
is sponsoring legislation that would outlaw the introduction and use of foreign words
in this nation of 170 million people”
10
(ROHTER, 2001). O trecho retirado da
reportagem possui a expressão “nesta nação de 170 milhões de pessoas”, que nos
faz pensar em como um projeto conseguiria controlar todos esses falantes. Ou seja,
mais uma vez, o autor-criador do texto se vale do recurso de ridicularização do
outro, identificando as idéias deste com o nonsense.
Essa postura frente ao referido projeto de lei encontra respaldo em opiniões
de outros sujeitos no Brasil. Essa crítica veio por parte, principalmente, de jornalistas
brasileiros, conforme confirmam dados coletados por Mendonça (2006).
Também houve esse posicionamento por parte de linguistas. Exemplo é a
posição de Bagno (2002): “(...) fazendo a gente até se perguntar se esse projeto é
mesmo para ser levado a sério ou se não passa de uma piada surrealista de
péssimo gosto...” (p. 51). Logo adiante, este autor também diz: “Por falar em
advertiu. “Qualquer língua é um organismo vivo que está se desenvolvendo, e a nossa língua, graças a Deus, é
uma que sempre mostrou a capacidade de aceitar as palavras estrangeiras que ela quer e de rejeitar aquelas que
ela não quer.”
10
Sr. Rebelo está organizando a lei que iria tornar ilegal a introdução e o uso de palavras estrangeiras
nessa nação de 170 milhões de pessoas.
750
lingüística, o deputado – contribuindo ainda mais para o caráter (involuntariamente?)
cômico de seu texto – (...)” (p. 52).
De acordo com Bakhtin (1992), todo enunciado comporta uma parte dada e
outra criada.
O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e
irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o
bem, a beleza, etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir
de uma coisa que é dada (a língua, o fenômeno observado na realidade, o
sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão
de mundo, etc.). O dado se transfigura no criado. (BAKHTIN, 1992, p. 348)
O autor-criador a partir do “dado”, fala de linguistas brasileiros, constrói o
“criado”, ressignificando para o leitor as mesmas falas, quando as usa no intuito de
confirmar o seu discurso. Como diz Cereja, citando Bakhtin “Os sentidos das
palavras se modificam ou se atualizam, de acordo com a situação sócio-histórica em
que são utilizadas” (Cereja, 2007, p. 204). E a situação sócio-histórica desse autorcriador é representativa do ponto de vista ideológico do sujeito norte-americano.
Outra investida de deboche do autor-criador vê-se quando ele diz “show de
suporte ao Sr. Rebelo” referindo-se às listas de substitutos em língua portuguesa
para anglicismos aqui usados.
“In a show of support for Mr. Rebelo, posters listing Portuguese-language
substitutes for English words have gone up over this cosmopolitan city, which
sets styles for the rest of the country. They were put up by the Movement for
the Valuation of Brazilian Culture, Language and Riches, a nationalist group”.
11
(ROHTER, 2001, grifo adicionado)
Tais listas, além de ridicularizadas pelo jornalista, são explicitamente
identificadas como sendo propostas por “um grupo nacionalista”. Retomando a ideia
exposta acima de que a escolha das palavras indica a visão do autor-criador,
podemos perceber a crítica, pois o jornalista utiliza a palavra show – que é
normalmente usada aqui no Brasil – mostrando que os estrangeirismos já fazem
11
Em um show de suporte ao Sr. Rebelo, apareceram nesta cidade cosmopolita pôsteres (listas) com
substitutos em língua portuguesa para as palavras inglesas, o que impõe estilos para o resto do país. Eles foram
colocados pelo Movimento de Valorização da Cultura Brasileira, Línguas e Riquezas, um grupo nacionalista.
(tradução nossa)
751
parte da realidade linguística e que é inútil lutar contra eles. Além do mais, ao
afirmar que as listas de substitutos foram propostas pelo grupo nacionalista, o autorcriador do The New York Times critica indiretamente o deputado por ser
nacionalista, apesar de que o jornalista, defendendo sua nação, também o é.
Outro exemplo relacionado ao vocabulário usado pelo jornalista é o adjetivo
“cosmopolitan” escolhido por ele para caracterizar a cidade de São Paulo. A palavra
cosmopolita caracteriza uma cidade onde vivem e/ou passam pessoas de diversas
nacionalidades e com essa ideia o sujeito norte-americano mostra que seria difícil,
ou quase impossível, homogeneizar o uso linguístico. Novamente – e aqui de forma
mais sutil – a relação do projeto em questão com o nonsense.
Um ponto interessante do enunciado do The New York Times é aquele em
que seu autor-criador afirma que o projeto, quando de sua apresentação ao Senado,
serviu para desfocar a atenção dos legisladores, e da população, de um grande
escândalo de corrupção que acontecia no país. “The lower house passed the bill in
an atmosphere of wanting to distract attention from a growing political corruption
scandal, and it is not known when the Senate will get around to dealing with it.”
12
(ROHTER, 2001) Mais uma vez o sujeito norte-americano lança mão de expedientes
não especificamente linguísticos para emitir sua opinião sobre o projeto de língua no
Brasil. Reafirma-se aqui a ridicularização que prevalece em todo o artigo. Nesse
caso, percebemos que o acabamento que o autor-criador dá ao enunciado transmite
sua idéia e/ou consciência, pois de acordo com Bakhtin (1992), podemos perceber o
autor em suas obras, pois ele representa uma imagem. Assim, enxergamos como
ele vê a nós e ao nosso país.
Generaliza-se, na reportagem, uma situação que já havia sido especificada
pelo deputado. Diz o autor-criador que o projeto proibiu muito do vocabulário do
futebol, que é o esporte nacional, como por exemplo, o uso de palavras como gol e
pênalti. “Taken literally, the measure would also appear to outlaw much of the
vocabulary of soccer, the national sport, starting with the name of the game itself,
futebol, and including such terms as gol and penalty.”
13
(ROHTER, 2001) O político
havia explicitado que palavras já assimiladas pelo português seriam mantidas. “But
Mr. Rebelo said he was willing to grant an exception for words that had already been
12
O Congresso passou a lei em uma atmosfera de queres distrair a atenção para um crescente escândalo
político e, não é sabido quando o Senado vai lidar com ela. (tradução nossa)
13
Tomada literalmente, a medida iria proibir muito do vocabulário do futebol, o esporte nacional,
começando com o nome do jogo, futebol, e incluindo termos como gol e pênalti. (tradução nossa)
752
or were being assimilated into Portuguese. ''We don't want to control the evolution of
the language,'' he said. ''What we want is to avoid abuses''.”
14
(ROHTER, 2001)
Reiteradamente o autor-criador desmerece o projeto: neste ponto do texto é a
expressão “esporte nacional” que o ajuda a construir a crítica, pois ele deixa a ideia
de que até o esporte nacional sofreria consequências se o projeto virasse lei, ou
seja, o autor-criador deixa implícita a idéia de que o projeto não foi bem
fundamentado.
Por fim, Bakhtin diz que os gêneros podem carregar tons expressivos e, que
em alguns casos, podemos confundir a qual gênero o enunciado pertence. Podemos
dizer que o enunciado (reportagem) do jornalista norte-americano Larry Rohter se
constitui em uma crítica ao deputado. Assim, ele dá um acabamento estético ao
texto (ao organizar as citações em um arranjo argumentativo) que desvenda seu
projeto de dizer.
Procura-se nesta análise perceber a representação que o sujeito norteamericano – jornalista do The New York Times – faz do discurso sobre a língua
portuguesa do Brasil, tendo como principal referente o projeto do deputado Aldo
Rebelo. Em uma visão que, entretanto, não esgota a discussão, percebem-se as
posições nacionalistas de um e outro, sobre uma questão linguística.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após estudar as teorias selecionadas que nos serviram de base, e também
textos de contextualização que nos permitiram ter conhecimento das opiniões de
linguistas brasileiros a respeito do Projeto de Lei de Aldo Rebelo podemos concluir
que o jornalista do The New York Times, tomado na voz dos autores-criadores
criados na enunciação, ressignifica o discurso de promoção e preservação da língua
portuguesa devido ao lugar em que estão inseridos. Seu discurso revela uma
interpretação de discursos que circulam por aqui com outras entonações valorativas,
na contrapalavra que dão ao discurso desse seu outro.
Quando lidas no Brasil, outro contexto sócio-político e econômico,
percebemos algumas ideias não compatíveis com o olhar brasileiro, devido ao fato
14
Mas o Sr. Rebelo disse que haveria exceções para as palavras que já tinham sido assimiladas no
português. “Nós não queremos controlar a evolução da língua,” ele disse. “ O que nós queremos é evitar abusos”.
(tradução nossa)
753
de terem sido escritas por sujeitos que ocupam a posição de pertenceram a um país
de maior desenvolvimento político e econômico. Percebemos que o olhar do outro
nos vê como sujeitos colonizados, por vezes em conflito com nosso colonizador.
REFERÊNCIAS:
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de
Estudos Lingüísticos 19. Campinas: IEL, 1990.
BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel
Lahud e Yara F. Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ____ Estética da criação verbal. Tradução
de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. O problema do texto. In: ____ Estética da criação verbal. Tradução de Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BRAIT, B., MELO, R. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In: BRAIT, B.
(org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
CEREJA, William. Significação e tema. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave.
4. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
FARACO, Carlos Alberto. Guerras em Torno da Língua. Folha de São Paulo, São
Paulo, 25 mar. 2001. Caderno Mais!, p. 30-31.
______. Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitoschave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. A identidade linguística em um mundo globalizado.
In:____ Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São
Paulo: Parábola Editorial, 2003.
LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística.
São Paulo: Record, 2006.
MAINGUENEAU, Dominique. A heterogeneidade mostrada. Novas tendências em
Analise do Discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes ed. Da
UNICAMP, 1993.
MENDONÇA, Marina Célia. A luta pelo direito de dizer a língua: a lingüística e o
purismo lingüístico na passagem do século XX para o século XXI. Tese de
754
doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (Campinas
- SP). Fevereiro de 2006.
MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4ª. ed. São
Paulo: Contexto, 2007.
REBELO,
Aldo.
Projeto
de
Lei
no.
1676/99.
Disponível
em
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=polemica/docs/polemica1.
Acesso em 09 set. 2008.
______. A Intriga das Línguas. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 abr. 2001. Mais!,
p. 22-23.
ROHTER, L. English is spoken here: too much, some say. The New York Times,
Nova Iorque, EUA, 15 maio 2001. Disponível em http://www.nytimes.com. Acesso em
setembro de 2008.
ANEXO – Reportagem do jornal The New York Times: English is spoken here…
Too much, some say. (Larry Rohter - 15 de maio de 2001)
RIO DE JANEIRO, May 14— If Aldo Rebelo gets his way, it will soon be illegal for
Brazilians to go to a ''drive-in'' for a ''hot dog'' and ''milkshake,'' entrust their cars to
''valet parking'' or invest their money with a ''personal banker.''
The activities themselves will not be prohibited, mind you, just the use of the Englishlanguage terms by which they are commonly known here.
Mr. Rebelo, a member of Congress, decided to take action after he took offense at
the proliferation here of stores with English-language names, like The Pet From
Ipanema; Love, Sex and Money, a boutique; World Top Lock; Fashion Mall; Bad Kid;
Video Market; and Sweet Way.
''Why should Brazilians have to feel embarrassed in their own country because they
can't pronounce these names?'' said Mr. Rebelo, a member of the Communist Party
of Brazil.
In a burst of what opponents disparagingly call ''verbal nationalism,'' Mr. Rebelo is
sponsoring legislation that would outlaw the introduction and use of foreign words in
this nation of 170 million people. It was initially considered little more than a crank
bill.
755
The goal of his bill, he said, is ''to boost the self-esteem of the people in relation to
Portuguese and show them that it is not a language that is ugly, underdeveloped,
backward or useless, as some people might imagine.''
Mr. Rebelo said he was particularly alarmed by the use of English-language terms in
business and technology when ''there are perfectly adequate Portuguese-language
substitutes.''
Brazil has the largest computer and Internet industry in Latin America, and Englishderived verbs like startar, printar, attachar or deletear and the nouns homepage, email, site and mouse are standard usage.
''I think he and the whole idea are nuts,'' retorted Ricardo Gouveia Botelho, a 28year-old Web site designer shopping at a computer store. ''We use those words
because everybody in the world understands them. And what does he plan to do,
send the language police to the office to bust us?''
But the proposal was approved by the lower house of Congress on March 29, and
business and advertising groups are lobbying intensely to defeat it in the Senate.
The lower house passed the bill in an atmosphere of wanting to distract attention
from a growing political corruption scandal, and it is not known when the Senate will
get around to dealing with it. If the Senate passes the bill, President Fernando
Henrique Cardoso will have to decide whether to sign it.
Though French and Arabic have historically been the main sources of foreign words
used in Portuguese, the language of Brazil, the initiative is clearly aimed at English,
which Mr. Rebelo said he regarded as an instrument of ''the economic and
commercial hegemony of the United States.''
Businesses have already begun reacting as though they expect his bill to become
law. Major banks have ended programs with names like Hot Money, Federal Card
and Home Banking, while stores have begun taking down signs that advertise a
''sale'' or ''20 percent off'' and replacing them with others announcing a ''liquidação.''
In a show of support for Mr. Rebelo, posters listing Portuguese-language substitutes
for English words have gone up over this cosmopolitan city, which sets styles for the
rest of the country. They were put up by the Movement for the Valuation of Brazilian
Culture, Language and Riches, a nationalist group.
But most language professionals maintain that the legislation is too extreme and that
it underestimates the absorptive capacity of Brazilian Portuguese.
756
Brazilians have proven so creative in adapting English to their own needs, in fact,
that native speakers of English are often baffled by the usages they encounter here.
To Brazilians a shower stall is a ''box,'' a billboard is an ''outdoors,'' to go jogging is to
''cooper'' (after a doctor who introduced it here), a razor blade is a ''gilete'' and the
steroid-fueled weight lifters who pick fights in nightclubs are ''pit boys.''
Taken literally, the measure would also appear to outlaw much of the vocabulary of
soccer, the national sport, starting with the name of the game itself, futebol, and
including such terms as gol and pênalti. But Mr. Rebelo said he was willing to grant
an exception for words that had already been or were being assimilated into
Portuguese.
''We don't want to control the evolution of the language,'' he said. ''What we want is to
avoid abuses.'' And the best way to do that, he contends, is to punish violators with
fines or by ''sending them back to school for Portuguese classes.''
The legislation calls for the Brazilian Academy of Letters to determine which foreign
words can be used legally, or as Mr. Rebelo puts it, ''granted a residence visa,'' and
which cannot. But the academy, which already sets the rules for spelling here, seems
to have reservations about the expanded role envisioned for it.
''The congressman's concern for the health of our language is praiseworthy,'' said
Tarcísio Padilha, president of the 40-member group. ''But this problem is a cultural
one of great complexity, and it seems to me to be more a matter for public debate
than one which should be regulated by laws and decrees.''
Sérgio Nogueira Duarte, a professor of Portuguese who writes a weekly column on
language for the daily Jornal do Brasil, said: ''Foreign words are present in any
language, and often for good reasons. To use the word 'dumping,' for example, is
better than wasting a whole line to explain in Portuguese that you are talking about
selling a product below cost so as to damage a competitor.''
One reason Mr. Rebelo's proposal may be flourishing is Brazil's status as the only
Portuguese-speaking country in the Western Hemisphere, which feeds a sense of
isolation and fear that the language will be overwhelmed by others.
The drive to protect Portuguese is not the only such movement. France has passed
numerous laws in the last decade to try to protect the French language; in fact, Mr.
Rebelo said his measure was modeled on those. Quebec also has passed laws to
assure the supremacy of French.
757
Portuguese may be the seventh most widely spoken language in the world, but
outside Brazil it is the mother tongue of fewer than 50 million people, the bulk of
whom live in five very poor countries in Africa -- Mozambique, Angola, GuineaBissau, Cape Verde and São Tomé e Príncipe.
As a result, there was a flurry of concern last year when Steven R. Fischer, an
American linguist, predicted that ''within 300 years Brazil will be speaking'' a different
language.
That forecast came on the heels of a government decision to make the study of
Spanish obligatory in Brazilian schools to help forge closer ties with the rest of Latin
America, which often dismisses Portuguese as nothing more than ''Spanish, badly
spoken.''
''Brazil is surrounded by countries that speak Spanish,'' Dr. Fischer said in an
interview with the newsmagazine Veja. ''As commercial exchanges and contacts
increase,'' he said, ''there will be much pressure'' to abandon Portuguese.
''Due to the enormous influence of Spanish, it is quite likely that a type of Portunhol
will emerge,'' he added, combining the Portuguese words for Portuguese and
Spanish.
In an effort to fortify the language internationally, Brazil has stepped up its financial
support for the Community of Portuguese-Speaking Nations, created in 1996.
The Brazilian government has also pushed for Portuguese to be used as an official
language at the United Nations and taken the lead in trying to revive the use of
Portuguese in East Timor, where use of the language was harshly restricted during
25 years of Indonesian rule.
But Brazilians should not ''feel threatened or go tilting at windmills on some sort of
Don Quixote quest that doesn't make sense,'' Dr. Padilha counseled. ''Any language
is a living organism that is evolving, and our language, thank God, is one that has
always shown a capacity to accept the foreign words it wants and to reject the ones
that it doesn't want.''
Download

a representação da polêmica sobre o uso de - Uni