Jornal Brasileiro de Psiquiatria • vol. 52 - nº 5 • Setembro - Outubro 2003 Jornal Brasileiro de Psiquiatria Brazilian Journal of Psychiatry ISSN 0047-2085 CODEN JBPSAX volume 52 • set/out-2003 Publicação bimestral Órgão Oficial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB Alcebíades Gomes Festa Junina, detalhe 5 Jornal Brasileiro de Psiquiatria ISSN 0047-2085 CODEN JBPSAX volume 52 • set / out 2003 J.bras.psiquiatr. 52 (5): 329-396, 2003 Publicação bimestral Órgão Oficial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPUB UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JA NEIRO INSTITUTO DE PESQUISA Av. Venceslau Brás, 71 Fu n d os 22290-140 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel: (5521) 2295-2549 Fax: (5521) 2543-3101 w w w.ufrj.br/ipub e-mail: [email protected] frj.br DIRETOR M árcio Versiani [email protected] JORN AL BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA [email protected] EDITOR João Romildo Bueno [email protected] frj.br EDITOR CO N VIDADO DESTA EDIÇÃ O E. A . Carlini EDITORA ASSISTENTE Gláucia A zambuja de A guiar [email protected] frj.br EDITORES ASSOCIADOS E. Portella Nunes Filho [email protected] João Ferreira da Silva Filho [email protected] EDITOR EXECUTIV O Ne w t o n M arins CORPO EDITORIAL Naomar de A lmeida Filho M árcio A maral Thomas A. Ban O thon Bastos J. M . Bertolo te Neury José Botega M arco A ntônio A lves Brasil M ax Luiz de Carvalho Roosevelt M .S. Cassorla Juarez O liveira Castro Aristides Cordioli Jurandir Freire Costa Paulo Dalgalarrondo Carlos Edso n D uarte Luiz Fernando Dias Duarte W iiliam D u n nin g ham Claudio Laks Eizerick Helio Elkis Eliasz En gelhard t Ro d olf o Fahrer M arcos Pacheco de Toled o Ferraz Ivan Luis de Vasconcellos Figueira Josimar M ata de Farias França Ricardo Gattass W agner F. Gattaz Valentim Gentil Filho Clarice Gorenstein M auro Gus Luiz A lberto Hetem M iguel Roberto Jorge Flávio Kapczinski Julio Licinio Carlos A ugusto de M endonça Lima M aurício Silva de Lima Pedro A . Schimid t d o Prado Lima A na Carolina Lobianco M ário Rodrigues Louzã Neto Theodor S. Lo w enkron Nelso n M aculan Jair de Jesus M ari Paulo M at t os Celine M ercier Eurípedes Constantino M iguel Filho Talvane M . M orais A n t ô nio Egídio Nardi Irismar Reis de O liveira M arcos Palatinik A ntônio Pacheco Palha Roberto Ayrton Piedade João Ismael Pinheiro A na M aria Fernandes Pitta José A lberto Del Porto Branca Telles Ribeiro Fábio Lo pes Rocha Jane de A raújo Russo Luiz Salvador de M iranda Sá Jr. Benedetto Saracen o Itiro Shiraka w a Jorge A lbert o Costa e Silva João Ferreira da Silva Filho Fábio Gomes de M atos e Souza Ricardo de O liveira Souza Yves Th oret Gilberto A. Velho Walter Zin A ntonio W. Zuardi [email protected] CIP-BRASIL-CATALO G AÇÃ O N A F O NTE SINDICATO N ACIO N AL D OS EDITORES DE LIVROS, RJ Programação Visual e Produção Gráfica 071 Jornal brasileiro de psiquiatria / Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. — V.1, nº 1 ( ). — Rio de Janeiro: ECN-Ed. Científica Nacional, 2000 v.50 Diagraphic Editora Av. Paulo de Frontin 707 – Rio Comprido CEP 20261-241 – Rio de Janeiro-RJ Telefax: (21) 2502.7405 e-mail: [email protected] w w w.diagraphic.com.br Pede-se permuta Se solicita el canje Exchange requested M an bittet um A ustausch O n prie l’échan ge Si prega lo scambio M e nsal Editado pela Diagraphic a partir do V.49 (10-12), 2000 Descrição baseada em: V.47, nº12 (1998) ISSN 0047-2085 98-1981. 1. Psiquiatria - Periódicos brasileiros. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psiquiatria CDD 616.89 CDU 616.89 Sumário 335-339 E. A. Carlini Redução de danos: uma visão internacional 341-348 João Carlos Dias; Sandra Scivoletto; Cláudio Jerônimo da Silva; Ronaldo Ramos Laranjeira; Marcos Zaleski; Analice Gigliotti; Irani Argimon; Ana Cecília P. Roselli Marques Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas 349-354 Carla Silveira; Denise Doneda; Denise Gandolfi; Maria Cristina Hoffmann; Paulo Macedo; Pedro Gabriel Delgado; Regina Benevides; Sueli M oreira Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas 355-362 Marcelo Santos Cruz; Ana Cristina Sáad; Salette Maria Barros Ferreira Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas 363-370 E. A. Carlini Posicionamento da Unifesp sobre redução de danos 371-374 Edward MacRae; M onica Gorgulho Redução de danos e tratamento de substituição: posicionamento da Rede Brasileira de Redução de Danos 375-380 André Malbergier; Arthur Guerra de Andrade; Sandra Scivoletto Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 381-386 387-393 Beatriz Carlini-Marlatt; Dagoberto Hungria Requião; Andrea Caroline Stachon Redução de danos: uma abordagem de saúde pública Marcelo Araújo Campos; Domiciano J. Ribeiro Siqueira Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos E rrra ra t a: N o artigo Transtornos Mentais e Trabalho em Turnos Alternados em O perários de Mineração de Ferro em Itabira (M G), publicado no JBP 2003; 52(4): 283-89, uma correção precisa ser feita no Resumo : na p. 283, terceira linha, onde se lê n = 80, o correto é n = 580. Fontes de referência e index ação: Academia de Ciências da Rússia Biological Abstracts BLDSC – British Library Document Supply Center CAS – Chemical Abstracts Service of American Chemical Society Chemical Abstracts Embase/Excerpta Medica EM D O CS – Embase Document Delivery Service IBICT – Sumários Correntes Brasileiros INIST – Institute de L’information Scientifique et Technique KNAW – Library of The Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences LILACS – Index Medicus Latino-Americano NISC Pennsylvania, Inc. Periódica – CICH-UNAM Psychoinfo – American Psychological Association Ulrich’s International Periodicals Directory UMI – University Microfilms International J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 333 Apresentação Atualmente os problemas relacionados ao uso de drogas lícitas ou ilícitas no Brasil somam-se de forma crescente a uma ampla gama de questões sociais que exigem respostas precisas e efetivas. O debate sobre as formas de abordagem do uso abusivo de drogas é marcada pela discussão de pontos de vista aparentemente inconciliáveis, gerando dificuldades para o estabelecimento de consenso. Entre as questões discutidas mundialmente está a decisão de adotar ou não estratégias de prevenção e assistência orientadas pela lógica de redução de danos. Esta ótica, em uso pelo menos desde o início do século 20, teve impulso na última década como resposta, em grande parte, ao crescimento da ameaça representada pela epidemia da Aids. Redução de danos constitui um conjunto de medidas preconizadas com o intuito de diminuir os prejuízos relacionados ao consumo de álcool e de outras drogas, medidas essas que são adotadas sem que haja a exigência de os indivíduos implicados interromperem imediatamente o uso de drogas. A ausência de consenso ocorre porque se questiona se a utilização de estratégias de redução de danos, tanto em termos individuais quanto no plano coletivo, poderia agir como facilitação ou autorização para o consumo de drogas, sem levar em consideração os seus riscos e prejuízos. Também há aqueles que alegam ser a adoção dessa estratégia uma capitulação inaceitável na luta contra as drogas. Aqueles que defendem as estratégias de redução de danos, além de não concordarem com esses argumentos, ressaltam a diminuição dos prejuízos individuais pelo emprego de uma estratégia por eles considerada mais realista. Para dirimir este embate de posições há questões que ainda precisam ser respondidas, como: “A utilização de estratégias de redução de danos efetivamente diminui os prejuízos?” e “A sua adoção pode, por outro lado, aumentar o consumo de álcool e de outras drogas?”. Várias outras questões são atualmente foco de debate e esforços no sentido de estender e aperfeiçoar os recursos de prevenção e assistência aos problemas relacionados ao uso de drogas, como a necessidade de ampliação da rede de atenção, a relação com a mídia e a justiça e muitas outras. A definição sobre a utilização das estratégias de redução de danos é, no entanto, inadiável, uma vez que essa postura pode permear, como princípio, as ações em todas as demais áreas. O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Cebrid/FM/Unifesp), sob a coordenação do professor Elisaldo Carlini, confirmando sua excelência como centro de pesquisa nessa área, realizou, no dia 8 de agosto de 2003, a apresentação dos pareceres de centros universitários, associações com vasta experiência neste campo e representantes do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional Antidrogas sobre a adequação da adoção de estratégias de redução de danos e tratamentos de substituição no Brasil. Este número do Jornal Brasileiro de Psiquiatria reúne os pareceres apresentados como uma valiosa contribuição, uma vez que constituem, no seu conjunto, extensa revisão das evidências encontradas na literatura, além de relevante experiência com práticas de redução de danos. Marcelo Santos Cruz Coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Projad/Ipub/UFRJ) Redução de danos: uma visão internacional Harm reduction: an international view E. A. Carlini Resu m o A técnica de redução de danos não é mencionada nas Convenções Internacionais da O NU (1961, 1971 e 1988). Portanto, de acordo com o International Narcotics Control Board (IN CB), órgão que é considerado o guardião das convenções, esta modalidade de atuação não pode ser classificada como contrária às convenções. Este órgão internacional reconhece mesmo a importância da redução de danos como uma estratégia de prevenção terciária. Esta opinião é partilhada por muitos órgãos internacionais e nacionais. Todavia, o IN CB também alerta que a redução de danos não deveria ser utilizada apenas como uma “espécie de cunha” para facilitar a pregação de alguns que são favoráveis à legalização das drogas. Unitermos redução de danos; Convenções da ONU; INCB (JIFE); prevenção terciária; descriminalização; legalização Su m m a r y Harm reduction is not mentioned in the three United Nations Conventions: Single Convention on Narcotic Drugs, 1961; Convention on Psychotropic Substances, 1971; and Convention Against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances, 1971. As a consequence, according to the International Narcotics Control Board (INCB), a board considered as the guardian of these conventions, this form of prevention can not be classified as contrary to the conventions. Actually, the INCB recognizes the importance of harm reduction as a form of tertiary prevention. This opinion is supported by many other international and national bodies. However, the INCB also makes clear that harm reduction should not be utilized to help to promote movements aimed at legalization of drugs. Uniterms harm reduction; UN Conventions; INCB (JIFE); tertiary prevention; drug discriminalization; drug legalization Introdução e definições Em fevereiro de 2002, assi m declarava o International Narcotics Control Board (IN CB) das Nações Unidas: “As Convenções Internacionais (1961, 1971, 1988) não mencionam a redução de danos (...); portanto, esta modalidade não pode ser classificada como contrária às Convenções.” E em abril de 2003, o presidente do IN CB, prof. Philip Emafo, assim se pronunciou na reunião da Comissão de Drogas Narcóticas (C N D – Commission of Narcotic Drugs): “ O IN CB reconhece a importância da redução de danos em uma estratégia de prevenção terciária (...)” A fim de melhor entender o que foi dito acima, é oportuno definir o que são os órgãos ou estruturas mencionadas. O IN CB, constituído de 13 membros eleitos pelo Conselho Econômico e Social das N ações Unidas, é um órgão independente, mas mantido pelas Nações Unidas, que tem como função ser o guardião das convenções , isto é, verificar se a comunidade mundial obedece aos ditames das convenções. Foi criado em 1961 pela Convenção Úni- Membro titular eleito do International Narcotics Control Board (INCB), período 2002-2006. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). J . b r a s . p s i q u i a t r . vol. 52 (5): 335-339, 2003 335 Redução de danos: uma visão internacional ca de Entorpecentes. Ele pode ser considerado o judiciário das Nações Unidas em relação ao problema das drogas. As três convenções da O NU (1961, sobre entorpecentes; 1971, sobre psicotrópicos, e 1988, sobre substâncias químicas e precursores) são documentos que, através de seus artigos, dão regras aos países signatários sobre como controlar a produção, a distribuição, o uso, o armazenamento e os estoques de drogas narcóticas e psicotrópicas. Mais de 90% dos países são signatários desses documentos. Para exemplificar, 179 dos 192 países ou territórios já aderiram à convenção de 1961. Acresce-se que os 13 países/territórios que ainda não aderiram têm pequena representatividade no concerto das nações. São eles: Angola, Congo e Guiné Equatorial, na África; Butan, Cambodja, Coréia do Norte e Timor Leste, na Ásia; Andorra, na Europa; Kiribati, Nauru, Samoa, Tuvalu e Vanuatu, na Oceania. O Brasil é signatário das três convenções. A C omissão de Drogas N arcóticas (C N D – Commission of Narcotic Drugs) é o órgão da O NU, com mais de 50 membros, onde são tomadas decisões que poderíamos chamar de legislativas . É a C N D que pode, em assembléia, tomar decisões como incluir ou excluir substâncias das convenções (retirando ou determinando modificações nas listas). A C N D seria o braço político, o legislativo , das Nações Unidas, em relação às drogas. E finalmente temos o braço executivo da O NU, o United N ations O ffice on Drugs and Crime, (U N O D C) que substituiu o United Nations Drug Control Programme (U N D CP). Por fim, cabe também esclarecer as técnicas de prevenção adotadas pelas Nações Unidas através da Organização Mundial da Saúde (O MS), que são as que se seguem: Preve n ção pri m ária: tem por finalidade assegurar que uma desordem, um processo ou problema não ocorrerão, ou seja, impedir o primeiro uso de uma droga. Preve n ç ã o sec u n d ária: procura identificar e abolir ou modificar para melhor uma desordem, um processo ou problema o mais precocemente possível. Vale dizer: a prevenção secundária está indicada para aqueles que tiveram contato com a droga e visa a impedir ou diminuir este uso ou pelo menos impedi-lo de aumentar. P rrevenção evenção ter ciária: propõe interromper ou reterciária: tardar o progresso de uma desordem, um processo ou problema e suas seqüelas, mesmo que as con336 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Carlini dições básicas do fenômeno ainda persistam. Em outras palavras, a prevenção terciária não tem mais como condição básica e prioritária reduzir ou abolir o uso de drogas, mas sim interromper ou diminuir as seqüelas do uso, mesmo que este (as condições básicas) ainda persista. R. L. Dupont (1987), ex-diretor do National Institute on Drug Abuse (Nida) dos EUA sumariou os três tipos prevenção: • primária – prevenir o uso antes que ele se inicie; • secundária – impedir a progressão do uso, uma vez já iniciado; • terciária – impedir as piores conseqüências do uso contínuo. É n essa últi m a t éc n ic a d e p reve n ç ã o , a terciária, que os órgãos internacionais colocam a redução de danos, conforme já mencionado pelo presidente do IN CB. Histórico da redução de danos e as convenções da O NU Mesmo antes da convenção da O N U sobre narcóticos, de 1961, a redução de danos (embora sem esta designação) já era praticada em vários países. Por exemplo: ópio, heroína e morfina já eram administrados como terapêutica de adictos em países da Europa, pelo menos desde a década de 1920; a administração de ópio a pessoas adictas a esta substância já era prática comum na Ásia pelo menos a partir de 1914. E em 1965 iniciou-se a utilização da metadona para dependentes de opiáceos. Hoje em dia essas modalidades de intervenção terapêutica são chamadas de tratamento de substituição ou de manutenção, sendo formas de redução de danos. O termo redução de danos (RD) ainda não existia quando a Convenção de Drogas Narcóticas da O N U – 1961 foi estabelecida. Nessa convenção, o artigo 38 diz apenas: “medidas para prevenir o abuso e identificação precoce do mesmo, tratar e reabilitar o dependente ”. A Convenção de Psicotrópicos de 1971 também não menciona RD. No seu artigo 20 consta apenas: “para prevenir o abuso, identificar, tratar e reabilitar o dependente”. A Convenção de Precursores, de 1988, já se aproxima um pouco da concepção de RD: no seu artigo Carlini Redução de danos: uma visão internacional 14 diz que medidas devem ser adotadas, visando a “eliminar ou reduzir a demanda ilícita (...) com o fito de reduzir o sofrimento humano ” ( grifo meu). Há ainda a consignar que em uma seção especial da Assembléia Geral da O N U, em junho de 1998, o parágrafo 8 (b) pode ser interpretado como indiretamente referindo-se às medidas de RD: “A redução de demanda visa a prevenir o uso de drogas e a reduzir as conseqüências adversas do abuso de drogas ” (grifo meu). Foi baseado nesses fatos que o IN CB já havia concluído anteriormente que: “As Convenções Internacionais não mencionam a redução de danos (...); portanto, esta modalidade de terapêutica não pode ser classificada como contrária às Convenções”. “ O IN CB, portanto, não se opõe à redução de danos, dado ser ela parte do tratamento médico (grifo meu) e uma estratégia coerente de redução de demanda (...)”. “ O IN CB, entretanto, está preocupado com que algumas intervenções de redução de danos possam ser utilizadas com o propósito de advogar uma legalização da droga para uso não-médico, com o que não concorda”. Definição e filosofia da redução de danos O U N O D C, quando ainda U N D CP, na sua publicação Redução de Demanda – Um Glossário de Termos, assim define a redução de danos: “Redução de danos refere-se a políticas ou programas que visam diretamente a reduzir o dano resultante do uso de álcool ou outras drogas, tanto para o indivíduo como para a sociedade. O termo é usado particularmente para programas que visam a reduzir o dano sem necessariamente exigir abstinência ” (grifo meu). O U N O D C diz mais: “A extensão do desencorajamento do uso continuado da droga varia grandemente de acordo com a filosofia do centro que aplica redução de danos”; e ainda: “A redução de danos é neutra em relação à sabedoria e à moralidade do uso continuado de drogas, e não deveria ser vista como sinônimo de movimentos que procuram descriminalizar, legalizar ou promover o uso de drogas”. O I N C B, j á e m 1 9 9 3 , e m se u re l a t óri o anual, tam bém reconhecia a im portância da re- dução de danos, em bora mostrasse uma certa preocupação: “IN CB reconhece a importância de certos aspectos da redução de danos como uma estratégia de prevenção terciária (grifo meu) para propósitos de redução de demanda. Todavia o IN CB considera como seu dever chamar a atenção para o fato de que programas de redução de danos não são substitutos para programas de redução de demanda (...). O fato de que programas de redução de danos devem ser considerados apenas como um elemento de uma estratégia mais ampla e abarcante de redução de demanda tem sido negligenciado”. Objetivos e exemplos da redução de danos De acordo com o governo suíço, “intervenções de RD são aquelas planejadas para atingir as pessoas dependentes que não poderiam ser contatadas de outra maneira. Por exemplo, os programas de troca de agulhas e as salas de injeções são algumas vezes planejados com o objetivo adicional de se chegar até os dependentes fim de linha (hard core abusers) para motivá-los a iniciar tratamentos” (relatório da missão do IN CB à Suíça, ano 2000). Essa explicação do governo suíço encaixa-se b e m d e n tro d a d efi n ição d e R D d a d a p elo U N O D C. O que parece ser relevante nos programas de redução de danos é exatamente o que afirmou o governo da Suíça (e o de vários outros países), ou seja, são ou deveriam ser programas destinados a atingir usuários que não poderiam ser contatados por outros meios. Tanto assim é que o desenvolvimento de programas de redução de danos: • deve ter suas ações exercidas no próprio ambiente freqüentado pelos usuários de drogas; e • deve atingir ambientes de profunda exclusão social, exatamente o local onde se encontram os usuários fim de linha ou com comprometimento grave. Por outro lado, no sentido mais amplo, e seguindo as características de uma prevenção terciária (evitar as piores conseqüências do uso de drogas), várias estratégias ou programas de redução de danos podem ser estabelecidos, como, por exemplo: 1. programa de troca ou doação de seringas; 2. escolha (sorteio) de motorista sóbrio; J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 337 Redução de danos: uma visão internacional 3. servir bebidas em copos e recipientes que não sejam de vidro, em casos de bares freqüentados por bebedores-problema violentos; 5. instituir tratamentos de manutenção ou de substituição. Seguramente, esta última é uma das mais difundidas formas de redução de danos. de danos à base de terapêutica de substituição por metadona. Por exemplo, o IN CB diz sobre isto: “Em quase todos os indivíduos dependentes de opióides, a metadona, quando corretamente prescrita, reduz e freqüentemente elimina o uso de opióides não-prescritos (...) um efeito indireto do uso legal da metadona é a redução do crime associado” . Deve ser ressaltado que, em todas essas estratégias, não se procura diminuir ou parar o uso de droga, mas fazer com que o usuário evite danos a si e a outros. Deve-se tam bém ressaltar que nos Estados Unidos uma conferência de consenso, patrocinada pelo National Institutes of Health (NIH), em 1998 (JAMA 280,1936-1943,1998), concluiu que: 4. adesivos de nicotina para fumantes; e, Tratamento de substituição / manutenção De acordo com a O MS: “Para uma pessoa dependente de uma substância psicoativa, a prescrição d e u m a o u tra su bst â n cia psic o ativa, farmacologicamente relacionada àquela produzindo a dependência, para atingir objetivos definidos de tratamento, usualmente melhora a saúde e o bem-estar do paciente”. Para o IN CB, um tratamento de substituição tem por finalidade: 1. reduzir o uso ilícito da droga (o paciente recebe a droga e a utiliza sob orientação); 2. re d u z ir o risc o d e i n f e c ç õ es p e l a vi a endovenosa; 3. melhorar o estado físico e psicológico do usuário; e 4. reduzir a criminalidade. Ainda, para o IN CB: “ O programa de tratamento de substituição deve ser a última providência para os dependentes pesados ( hard core ) que não tiveram sucesso em tratamentos anteriores. Tal programa deveria ser encarado como última tentativa , mas, mesmo assim, como um programa provisório que deverá levar a um estilo de vida livre de drogas (...)”. Finalmente, o IN CB assim define um tratamento de substituição: “pode ser definido como a prescrição de uma droga com ação similar à droga de dependência, mas com menor grau de risco, com a finalidade específica de tratamento”. Entre as substâncias usadas para a terapêutica de substituição destaca-se a metadona (embora outras drogas estejam mais e mais conquistando o receit uário, co m o n o caso d a co d eín a e d a buprernorfina). Existem opiniões taxativas a respeito das vantagens de um programa de redução 338 Carlini J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 “Embora um estado livre de drogas seja o objetivo ideal de tratamento, as pesquisas mostram que este estado não pode ser atingido pela maioria dos pacientes. Todavia, outros objetivos importantes de um tratamento podem ser atingidos, tais como diminuição do uso de drogas, d i m i n u i ç ã o d a a t ivi d a d e cri m i n osa e restabelecimento de emprego, como acontece com a maioria dos pacientes sob a metadona”. M ais recen te m en te, a pró pria su bstância indutora de dependência tem sido dada aos pacientes sob supervisão médica. Esses programas são chamados tratamento de manutenção. É o caso da heroína sen do fornecida, sob contrato, para os dependentes desta substância na Holanda, na Suíça, na Alemanha e no Reino Unido; do ópio sendo administrado sob supervisão aos dependentes desta substância na Índia, no Irã, em Mianmá, na Laos e na Tailândia; da morfina para os dependentes desta substância na Austrália, na Guatemala, no México e Suíça. Da troca de seringas às salas de inalação Distribuição/ troca de seringas e agulhas Uma das formas mais utilizadas de redução de danos é a distribuição ou troca de agulhas e seringas. Em relação a esse programa, já em 1987 o IN CB, em seu relatório anual, assim se expressava: “É claro que a adoção de medidas que possam diminuir o compartilhamento de seringas entre os usuários de drogas por via endovenosa é um passo necessário para limitar a propagação da AIDS. Ao mesmo tempo, essas medidas profiláticas, que são urgentemente necessárias, não deveriam permitir ou mesmo facilitar o abuso de drogas”. Dezesseis anos mais tarde, ou seja, no ano de 2003, o IN CB novamente se posiciona favoravel- Carlini Redução de danos: uma visão internacional mente ao programa, dizendo: “Decisão 76/19 – Em relação à troca de seringas e agulhas, o IN CB reafirma sua posição anterior, já apresentada em relatórios anuais, de que, embora concorde que tais programas possam ser necessários para limitar a disseminação de HIV/AIDS, cuidados devem ser tomados para tais medidas não provocarem o abuso de drogas”. Salas de injeção Outra iniciativa de alguns governos europeus que vem despertando a atenção refere-se a salas de injeção. São ambientes onde os usuários podem injetar-se com as drogas que eles mesmos adquiriram. Não existe aconselhamento ou equipe de saúde nessas salas, apenas um local mais discreto e, portanto, mais protegido, para a prática de administração endovenosa de drogas. Essas seriam as razões aventadas para a existência da sala de injeção: os dependentes não mais injetar-se-iam nas ruas ou praças públicas, o que, certamente, confere certo grau de proteção. Mas alguns comentam que, na realidade, a verdadeira razão para o aparecimento dessas salas de injeção seria de ordem econômica. Algumas das cidades onde essa prática (salas de injeção) está sendo incentivada (por quem? só governo?) já haviam antes adotado o programa das praças de drogas, locais públicos onde usuários de drogas por via endovenosa se reuniam para auto-administrarem-se. A grande concentração de dependentes nessas praças e a visão deprimente de pessoas intoxicadas fez com que houvesse uma tremenda queda no comércio e no valor dos imóveis locais. As salas de injeção teriam então sido organizadas com o fito de diminuir a presença de dependentes endovenosos em um único local (a praça), diluindo a população para diferentes pontos (as salas de injeção). O IN CB não concorda com a existência dessas salas de injeção, pois elas ferem as convenções, e assim se pronuncia no seu Relatório Anual de 1999: “ O estabelecimento de salas de injeção, onde dependentes podem abusar de drogas obtidas ilicitamente , mesmo sendo estas salas direta ou indiretamente supervisionadas pelo governo, é contrário às Convenções Internacionais. A autoridade que autoriza as salas de injeção, e assim permitindo o uso (sem supervisão) de drogas, estará facilitando ou permitindo o cometimento de crime envolvendo a posse e o uso de drogas, (...) encorajando o tráfico. As salas de injeção devem ser claramente distinguidas (grifo meu) dos locais medicamente supervisionados, onde drogas são prescritas para o uso dos dependentes (tratamento de substituição ou manutenção)”. O IN CB novamente examina o problema, em novembro de 2002, e emite duas decisões a respeito, confirmando o que foi dito anteriormente: “Decisão 76/18 – em relação às salas de injeção, o INCB opina que tais programas estão em desacordo com as Convenções e são uma violação das mesmas”; “Decisão 76/17 – em relação aos tratamentos de substituição e manutenção, o INCB opina que são legítimos em face das Convenções, desde que o objetivo último de tais tratamentos seja a abstinência”. Salas de inalação Em algumas cidades na Europa foi aberta uma variante das salas de injeção, são as salas de inalação , onde os usuários podem fumar ou inalar crack e heroína que são adquiridos ilicitamente. Essas salas, que foram abertas em caráter experimental, não têm o aval do IN CB, que as condena como fez com as salas de injeção. Controle de qualidade das drogas Na Holanda (e possivelmente em outros países europeus), o governo colocou junto às salas de injeção/inalação equipamentos que permitem aos usuários avaliar a pureza das drogas que compram ilicitamente no mercado negro. Em relação a este tópico, o IN CB tomou duas decisões. A primeira é condenando tal prática: “ Decisão 76/20 – Em relação ao controle de qualidade de drogas, o IN CB opina que tais programas estão em desacordo com as Convenções”. A segunda decisão foi a inclusão, em seu relatório anual (de 2003), a ser publicado no início de 2004, de um ou dois parágrafos sobre esse programa. Finalmente deve ser mencionado que o governo holandês descontinuou o programa de controle de qualidade, pois surgiram evidências de que o mesmo estava incentivando o uso indevido de drogas. Endereço para correspondência E. A. Carlini Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) Departamento de Psicobiologia Universidade Federal de São Paulo Rua Botucatu 862/1º andar – Ed. Ciências Biomédicas CEP 04023-062 – São Paulo-SP J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 339 Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas Harm reduction: perspectives for the Brazilian reality. Position of the Brazilian Association of Psychiatry and the Brazilian Association for Studies of Alcohol and Other Drugs João Carlos Dias1; Sandra Scivoletto1; Cláudio Jerônimo da Silva 1; Ronaldo Ramos Laranjeira2; Marcos Zaleski2; Analice Gigliotti2; Irani Argimon2; Ana Cecília P. Roselli Marques2 Resu m o Este artigo tem como objetivo apresentar princípios, conceitos, fundamentos e principais diretrizes da redução de danos. Aborda as definições de risco e dano e a relação entre dano e uso de drogas, bem como a associação entre as perspectivas de danos individuais e coletivos. Sublinha que a redução de danos é um conjunto de estratégias que visa minimizar os agravos à saúde relacionados ao uso de drogas, quer sejam lícitas ou ilícitas, devendo ser encarada como uma das possíveis estratégias de abordagem no tratamento e na prevenção do uso de drogas. Suas ações devem estabelecer com precisão quais os tipos e qual a dimensão de danos que pretende minimizar e estar embasadas em evidências científicas. Enfatiza-se, contudo, a necessidade de serem devidamente explicitadas as suas indicações e o seu público-alvo em nosso país e que evidências científicas embasarão a prática, levando em consideração riscos e benefícios individuais e coletivos. Unitermos redução de danos; drogas lícitas e ilícitas; uso nocivo de drogas; dependência de drogas; risco; dano; abstinência; saúde pública Su m m a r y The purpose of this article is to present the principles, concepts, basis and the guidelines of the harm reduction strategy. It also presents the definitions of risk and damage and the relation between damage and drug use, as well as the association of the individual and communitary damage. It emphasizes that harm reduction strategy is one of the possible approaches in the treatment and prevention of drug use and its actions must establish which kinds and dimensions it supposes to minimize based in scientific evidences. It also stresses, however, the need of its targets in our country taking into consideration risks and benefits to the individual and to the population. Uniterms harm reduction; licit and illicit drugs; drug abuse; drug dependence; risk; damage; abstinence; public health 1. Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). 2. Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 341-348, 2003 341 Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas Dias et al. “As melhores estratégias para conscientizar a sociedade e as autoridades competentes da importância da questão das drogas não se resumem a um só golpe de mestre. Na verdade, é um grito de guerra longo e firme. Q uando apresentar sua argumentação sobre o caso, é fundamental se ater aos fatos, apresentá-los com sinceridade, e nunca parecer radical ou ter se deixado levar pela paixão em relação a esta questão. Acredito que também é importante formar alianças com outros assuntos de interesse de saúde pública mais amplos.” G riffit h Ed w ards, e n trevista p ara o Boleti m d a ABEA D , 2 0 0 1 Introdução Cada indivíduo traz consigo uma bagagem diferente a respeito do uso de drogas e, conseqüentemente, diversa atitude sobre redução de danos. Alguns apresentam posições e condutas influenciadas por suas próprias experiências de tratamento; outros tomam por base sua própria visão e formação, estando incluída a bagagem moral-religiosa sobre o uso de droga; outros, ainda, trazem uma visão menos estereotipada ou menos rígida do que é adequado em termos do uso de drogas para determinado indivíduo; ou ainda uma visão pró-legalização das drogas4 . Q ual a atitude e a característica das diversas visões sobre o uso de drogas e sobre os problemas a ele relacionados que caminham em sintonia com o movimento de redução de dano? E quais são as áreas em desacordo entre si ou que necessitam de maiores explorações e pesquisas? A redução de danos, portanto, pode ser entendida atualmente por, pelo menos, duas vertentes diferentes: (a) a primeira, mais fidedigna aos conceitos primordiais de sua criação, para reduzir danos de HIV e DST em usuários de drogas injetáveis e (b) a segunda, cujo conceito mais abrangente inclui ações no campo da saúde pública preventiva e de políticas públicas que visam a prevenir os danos antes que eles ocorram. Para o segundo conceito, que parte do ponto de vista mais abrangente, alguns princípios baseados em evidências devem ser destacados. A melhor forma de reduzir os danos de todas as drogas à sociedade é estimular padrões de abstinência em todas as comunidades, famílias e indivíduos. Não existe uso de drogas isento de riscos. Dados recentes mostraram que doses relativamente baixas de álcool expõem adolescentes a maiores riscos de acidentes e a outros problemas. As políticas de redução de danos, neste sentido mais amplo, deveriam diminuir os danos so342 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 ciais causados pelo uso de drogas. A Organização Mundial da Saúde propõe política neste campo. Exemplificando no caso do álcool, as políticas globais que visam a diminuir o consumo geral do álcool são: aumento do preço das bebidas; proibição da propaganda do álcool; controle de acesso e disponibilidade do álcool; leis mais atuantes sobre beber e dirigir. No Brasil não temos uma política sobre o álcool que objetive diminuir o consumo e o dano desta substância na nossa população, e, portanto, uma das prioridades de uma política racional sobre drogas deveria ser criar as c o n d i ç õ es p ara q u e est a p o lí t i c a f osse implementada. Seria a mais importante medida para diminuir o custo social do álcool. Nos poucos exemplos onde algumas dessas políticas foram implementadas temos resultados substanciais. Por exemplo, há um ano a cidade de Diadema, na Grande São Paulo, aprovou o fechamento dos bares a partir das 23 horas. Desde então a mortalidade por causas violentas caiu em mais de 50%. O primeiro conceito, baseado em princípios mais estritos, também pode ser entendido, segundo alguns autores, como ações dentro do campo preventivo, que é a melhor forma de reduzir ou evitar danos. Por este ângulo, podemos lembrar os seguintes dados: • as políticas de redução de danos para grupos específicos, como crianças e adolescentes, deveriam buscar ações sociais com vistas a estimular padrões de abstinência. Deveríamos entender um pouco mais as razões pelas quais a maioria dos adolescentes não usa drogas. Existem fatores de proteção nestes indivíduos que os mantém longe do consumo. Políticas que visem a ampliar estes fatores de proteção ao uso de drogas e a diminuição dos fatores de riscos do consumo deveriam ser estimuladas e implementadas; • o tratamento baseado na abstinência para a dependência química funciona e pode ser entendido, por este conceito mais ampliado, como a Dias et al. Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas melhor política de redução de danos. Inúmeras evidências têm mostrado que as diferentes formas de tratamento funcionam. Infelizmente não funcionam tanto como gostaríamos, mas, quando existe um sistema diversificado de tratamento numa comunidade na qual os profissionais são bem treinados, as taxas de sucesso aumentam muito. No Brasil não temos essa rede de tratamento, que deveria ser prioridade absoluta para uma política de redução de danos neste grupo. Não podemos deixar de notar que um bom número de pacientes não apresenta uma boa evolução, mesmo com a oferta ideal de tratamento. Estes pacientes deveriam receber um tratamento especial. Todo sistema de tratamento deveria basear-se numa política de inclusão daqueles pacientes que não estivessem tendo uma boa evolução, quer porque tenham uma comorbidade psiquiátrica associada, quer por falta de apoio social, ou por dano cerebral decorrente da própria dependência química. Estes pacientes deveriam ser incluídos no sistema de tratamento com programas especiais para eles. Nesta situação específica poderíamos falar em redução de danos no sentido estrito da palavra e oferecermos a possibilidade de o paciente adotar objetivos diferentes da própria abstinência. A recusa do paciente a se tornar abstinente nunca deveria ser motivo para a exclusão do tratamento; • portanto, a redução de danos, no sentido estrito da palavra, deveria ser uma das formas de tratamento oferecida aos pacientes. Existem evidências de que estas políticas podem salvar muitas vidas. Por exemplo, na década de 1980 o oferecimento de agulhas e seringas na Inglaterra poupou muitas vidas ao permitir que as pessoas não utilizassem material contaminado pelo HIV. Mas foi somente com a demonstração científica que essa política salvou vidas. Só então essas políticas foram incorporadas, na prática, no governo conservador da primeiraministra Margareth Tatcher, na Inglaterra; • em uma política de drogas deveríamos evitar ideologias e seguir os avanços conceituais. As evidências científicas ainda são os melhores critérios para adotarmos na prática de saúde. Corremos o risco de o termo redução de danos acabar virando mais uma ideologia que venha a produzir, ela mesma, um grande dano a uma política de drogas que ainda não se desenvolveu no Brasil. Assim, estabeleceu-se na literatura, ao longo dos anos, duas ou mais correntes de idealizadores da redução de danos. Procuraremos aqui retomar alguns conceitos iniciais, salientando a necessidade de esclarecimento dos princípios da redução de danos, de sua definição e de suas práticas, as quais muitas vezes se contradizem. Voltando, então, ao princípio, é importante que se esclareça que o fundamento da redução de danos não estabelece, necessariamente, uma posição contra nem tam pouco a favor do uso de drogas4 . A redução de danos está focalizada no aumento ou na diminuição dos agravos conseqüentes ao uso de substâncias psicoativas. A posição predeterminada do uso de drogas como intrinsecamente bom ou ruim não tem significado neste contexto. Assim, a discussão sobre esta questão pressupõe a isenção de posições ideológicas. Esta posição tem base nos primórdios da redução de danos na Europa; entretanto algumas reflexões foram sendo acrescentadas ao longo dos últimos anos, colocando em xeque tal princípio. Um profissional da saúde comprometido com a ética e com a medicina, baseado em evidências, poderia argumentar que as substâncias psicoativas p o d e m l e v ar a u m a d o e n ç a d e p ri n c í p i os biopsicossociais – a dependência – que pode ter conseqüências danosas para indivíduo. Portanto, ao não se assumir uma posição sobre a droga, poder-se-ia estar incorrendo em má prática da medicina. Ressalte-se aqui que a posição do profissional de saúde pode ser contrária às substâncias, mas não aos indivíduos que as utilizam. Uma confusão conceitual, então, foi se estabelecendo ao longo dos anos em torno da redução de danos: alguns se mantendo nos princípios de sua criação, mais praticados na Europa, e outros, incluindo práticas já existentes no campo da prevenção e do tratamento, no conceito e na prática da redução de danos. Portanto, numa primeira instância, faz-se necessário o estabelecimento de uma definição mais precisa, clara e uniforme sobre o termo redução de danos. Desta forma, as discussões a respeito das visões e ações acerca do assunto poderão estar devidamente fundamentadas. Deve-se levar em consideração o contexto social, a atitude, a cultura, os comportamentos, os hábitos, a epidemiologia e os padrões do uso de drogas. Estes últimos, especificamente, sofrem influência direJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 343 Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas ta da disponibilidade e das tradições com relação à formulação e fiscalização de políticas públicas relacionadas ao uso. De acordo com Griffith 3 , o uso de drogas pode ser entendido em duas dimensões distintas. De um lado está o uso da droga que varia ao longo de um continuum , e de outro, suas conseqüências. A redução de danos tem primordialmente o seu foco no eixo dos problemas associados ao uso de drogas. Entretanto é necessário sempre considerar a relação direta existente entre a gravidade das conseqüências e o padrão do uso de droga. Portanto, mesmo que os conceitos se entrecruzem com prevenção e tratamento, não deveríamos expandi-los? Definição de risco e dano Risco pode ser definido como a possibilidade ou probabilidade da ocorrência de um evento. O dano prevê a ocorrência do evento em si 4 . Assim, esses termos não deveriam ser usados como sinônimos porque, inclusive, estão relacionados a campos diferentes de atuação dentro do contexto de uso de droga. A redução do risco está no campo da prevenção e visa a evitar ou diminuir as chances de que um evento perigoso à saúde ocorra. A redução de danos prevê ações que diminuam os danos inerentes a um evento perigoso que já vem sendo praticado por indivíduos ou grupos de indivíduos. Relação entre uso de drogas e danos Comportamentos de risco não resultam necessariamente em danos. Existem, por exemplo, indivíduos que fumam por muitos anos e se mantê m sau dáveis, ou ain da in divíd uos q ue não usam capacete ao pilotar suas motocicletas e não sofrem acidentes. Contudo esses fatos não alteram a relação clara desses comportamentos de risco com a possibilidade de danos. Além disso, alguns comportamentos de risco, sabidamente relacionados com danos, podem ser praticados por muitos anos antes que ocorra o dano propriamente dito. Q ue tipos de dano podem ser associados ao uso de drogas? Alguns tipos de danos hepáticos e cerebrais, por exemplo, estão associados ao uso e álcool ou barbitúricos. Estes danos estão relaci344 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Dias et al. onados ao próprio efeito da droga no organismo. O utros danos, porém, estão associados com a forma de utilização (por exemplo, os utensílios utilizados). Fazem parte deste grupo as infecções p or h e p a t i t e B, HIV e h e p a t i t e C p or compartilhamento de equipamentos de injeção. O utro exemplo se relaciona às drogas de aspiração, como aerossóis, resultando em laringoespasmo. Existem, ainda, os danos associados com o contexto no qual a droga é usada, como, por exemplo, acidentes automobilísticos associados ao comportamento de beber e dirigir. No estabelecimento de políticas públicas de redução de danos é preciso ter em foco qual o tipo da relação existente entre as drogas e os danos associados ao uso, e quais danos se pretendem minimizar. A política de redução de danos, estabelecida em 1996 pelo governo do estado de São Paulo, por exemplo 1 , visava a minimizar o contágio por HIV, hepatites B e C associado ao uso de drogas injetáveis por compartilhamento de seringas ou agulhas, bem como as doenças sexualmente transmissíveis pelo comportamento sexual de risco, comum entre os usuários de drogas injetáveis. Essas ações podem ser entendidas como preventivas se tivermos como foco o indivíduo: são ações que objetivam diminuir o risco de os indivíduos contraírem HIV ou outras doenças transmissíveis por contato sangüíneo e sexual. Entretanto o foco da redução de danos está na população, ou seja, do ponto de vista epidemiológico, a redução de danos visa a minimizar danos à sociedade que sofre uma epidemia de HIV e outras doenças. A troca de seringas e agulhas foi uma estratégia que claramente tinha em vista minimizar o dano relacionado à contaminação por HIV, sífilis e hepatite numa população bem definida e que obteve resultados positivos, demonstrados em diversos trabalhos científicos. Definição: redução de danos Uma confusão freqüente se dá entre os termos minimização de danos e redução de danos. Redução de danos pode ser considerada algo essencialmente operacional (por exemplo, política de redução de danos, programa de redução de danos); a minimização de danos pode ser considerada uma meta global, um end point a ser alcançado através das estratégias de redução de danos4 . Dias et al. Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas O utro aspecto importante diz respeito ao termo dano . As políticas de redução de danos pretendem minimizar quais tipos de danos, relativos a que áreas da vida do indivíduo e em quais segmentos da população? O utra indagação que merece destaque é se a própria dependência deve ser considerada um dano. Dano pode ser definido como o resultado prejudicial à saúde, de gravidade alta e que decorre do uso de uma substância psicoativa, afetando um grande número de pessoas. Neste sentido, a redução de danos estabelece políticas e ações para minimizar estes danos que tenham representação epidemiológica. N egrete 6 , em editorial publicado na revista Addiction , afirma: “ Como pode alguém sugerir que a escravidão proporcionada pela droga não é um dos maiores danos no qual incorre o dependente?”. A vida de uma pessoa que depende de droga está direcionada pela urgência em obter novamente a experiência dos efeitos da droga, ou pela necessidade de se livrar dos desconfortos causados pela ausência da substância, decorrentes de alterações fisiológicas cerebrais. Ademais, a gravidade da dependência é um dos preditores de baixa adesão tanto para a troca de seringa como para a prática de sexo seguro entre os usuários de heroína, por exemplo 2 . N este sentido, a própria dependência química poderia ser entendida como um dano, além do fato, já apontado, da íntima relação da dependência com outros danos. Aqui está uma confusão que precisa ser esclarecida, porque, na definição de dano, pode ser incluída a dependência, e isto fugiria do conceito histórico inicial da redução de danos. Mas, por outro lado, como não considerar a dependência química um dano? Fazse necessária uma definição mais clara de quais os tipos de danos fazem parte do enfoque da redução de danos. Sen d o a red ução de danos tam bé m u m a es t r a t é g i a d e sa ú d e p ú b l i c a , n ã o se d e v e negligenciar o dano da depen dência q uímica. Educação, inform ação adeq uada, inclusão social, acesso aos serviços de saúde são algu m as das ações q ue p o deriam ser incluídas na redução de danos, e a estas deve ser acrescentad o o acesso fácil e irrestrito ao tratam ento da depen dência química. Princípios básicos de redução de danos A redução de danos é fundamentada nos seguintes princípios: 1. a redução de danos é uma alternativa de saúde pública para os modelos moral, criminal e de doença do uso e da dependência de droga. O modelo moral defende a proibição do uso ou da distribuição de certas drogas, atos considerados crimes sujeitos a punição. Como extensão do modelo moral (pressuposto: o uso de drogas ilícitas é moralmente incorreto), o sistema de justiça criminal tem colaborado com os formuladores de políticas nacionais de guerra às drogas, cujo objetivo aparente é promover o desenvolvimento de uma sociedade livre de drogas. Já o modelo doença enfatiza os programas de tratamento e de prevenção que procuram remediar o desejo ou a demanda por drogas por parte do indivíduo (redução da deman- da), tendo como objetivo primordial a abstinência. A redução de danos desvia-se de tais princípios, evitando julgamentos morais de certo ou errado e oferecendo uma variedade de políticas e de procedimentos que visam à redução das conseqüências prejudiciais do comportamento dependente. A redução de danos aceita o fato concreto de que muitas pessoas usam drogas e a maioria delas apresenta outros comportamentos, também de alto risco. Assim, a redução de danos trabalha com programas de baixa exigência, sem perder de vista a possibilidade ideal da abstinência5 ; 2. a redução de danos reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que minimizem os danos para aqueles que permanecem usando drogas. O princípio de tolerância zero estabelece uma dicotomia absoluta entre nenhum uso e qualquer uso, sem distinguir o uso experimental, os usos moderados, pesados e as diferentes dimensões de danos associados aos distintos padrões de uso. A redução de danos não é contra a abstinência. Contudo acredita que os efeitos prejudiciais do uso de drogas e outros riscos associad os, co m o a ativi d ad e sexual desprotegida, podem ser colocados em um continuum . Quando há comportamento muito perigoso, a redução de danos propõe reduzir o nível da exposição ao risco. A abordagem de redução gradual estimula os indivíduos que tenham comportamento excessivo ou de alto risco a dar J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 345 Dias et al. Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas um passo de cada vez para reduzir as conseqüências prejudiciais de seu comportamento5 . Estratégias de redução de danos também têm aplicação no uso de drogas legais, incluídos o tabaco e o álcool, para, por exemplo, tabagistas incapazes de abandonar o uso de maneira abrupta e definitiva. Existem, como alternativas disponíveis, os adesivos de nicotina, as gomas e outras formas de administração de nicotina menos nocivas do que o fumo. Embora as terapias de substituição de nicotina tenham sido criadas como um auxílio para deixar de fumar, algumas pessoas usam estes produtos para manter o uso de nicotina num nível mais seguro6; 3. a redução de danos surgiu principalmente como uma abordagem de baixo para cima , baseada na defesa do dependente, em vez de uma política de cima para baixo , promovida por formuladores de políticas de drogas5 ; 4. a redução de danos promove acesso a serviços de baixa exigência como uma alternativa para abordagens tradicionais de alta exigência. Os programas comunitários de rua oferecem um exemplo de abordagem de baixa exigência na redução de danos. Em vez de estabelecer a abstinência como um pré-requisito de alta exigência, para receber o tratamento para dependência ou outro tipo de assistência, os defensores da redução de danos estão dispostos a reduzir estes obstáculos. Deste modo, os necessitados têm mais possibilidade de aderir, iniciar, envolver-se com a mudança do comportamento. Os programas de baixa exigência fazem isto de diversas formas5 . Em primeiro lugar, os defensores de abordagem de baixa exigência estão dispostos a encontrar o indivíduo em seus próprios termos – encontrá-lo onde estiver, em vez de onde você deveria estar. Informações de membros da população-alvo são bem-vindas e, portanto, estimuladas, na tentativa de estabelecer uma parceria ou uma aliança entre os que fornecem os serviços e os que recebem (mesmo quando ambos os grupos consistem em usuários de drogas ativas). Novos programas são desenvolvidos com a colaboração de pessoas diretamente envolvidas e afetadas. Por meio do diálogo, da discussão e das iniciativas de planejamento mútuo (por exemplo, uso de grupos focais para reunir informações iniciais e fixação de metas), programas comunitários e serviços associados continuaram a emergir nos segmentos comunitários5; 346 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 5. a redução de danos baseia-se no pressuposto do prag matismo em pático versus idealismo moralista. Um adesivo para carros, popular em meados da década de 1990, proclama “ Merda acontece” 6 . Sendo uma abordagem prática, a redução de danos aceita esse fato desagradável da vida como premissa básica. O comportamento prejudicial acontece, sempre foi assim e sempre será. Uma vez aceita es t a p r e m iss a , a m e t a t o r n a-s e a d o pragmatismo empático: o que pode ser feito para reduzir o dano e o sofrimento tanto para o in d iví d u o q uan t o p ara a socie d a d e? O prag matismo não pergunta se o com portamento em questão é certo ou errado, bom ou ruim, doentio ou saudável. O pragmatismo preocupa-se com o manejo das questões cotidianas e das práticas reais, e sua validade é avaliada por resultados práticos 5 . Perspectiva pessoal x saúde pública Grande parte dos problemas de infecção por HIV e h e p atit e C e n tre usu ári os d e dro g as injetáveis tem simultaneamente satisfeito as considerações tanto da saúde individual como da saúde pública. A redução de danos deve considerar tanto o nível in dividual quanto o público da minimização do dano. O balanço dos benefícios dos danos para a população como um todo e o conhecimento dos danos totais individuais fornecerão o resultado dos benefícios públicos4 . Entretanto, como política pública, na prática a redução de danos tem um olhar epidemiológico. Esta confusão entre danos individuais e danos para a sociedade precisa ser mais bem esclarecida, porque nem sempre é possível contemplar as duas perspectivas em questão. Falta uma resposta, baseada em evidências, sobre qual é a perspectiva da redução de danos. Tipos e dimensão dos danos e população-alvo Os danos em um nível mais simples podem ocorrer como um único evento. Já em outras circunstâncias os danos são cumulativos4 . A gravidade do dano relacionado ao uso da droga, bem como os tipos de dano, deve ser cuidadosamente avaliada no estabelecimento de programas ou políticas de redução de danos. Na Europa os programas de redução de danos tinham o seu foco Dias et al. Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas no usuário de droga que apresentava dependência grave, que recusava o tratamento e que aumentava as estatísticas dos diversos problemas associados ao uso de droga. Entretanto, gradualmente as ações de redução de danos foram se expandindo para públicos cuja gravidade da dependência era menor. Existem evidências de que, quanto menor a gravidade do uso de droga, mais eficaz é o tratamento. A questão não respondida claramente é para qual público as políticas de redução de danos devem estar voltadas? Seria para os usuários que não querem tratamento. Mas seria ética a prática de ações de redução de danos sem tocar no uso da droga? Como definir claramente quem são os usuários que definitivamente não irão ao tratamento? Se a redução de danos está voltada aos problemas do uso e evita sugestões, opções e reflexões sobre o uso da droga, como saber se o indivíduo é elegível para um programa de redução de danos? Conclusões e recomendações 1. A redução de danos pode ser entendida por uma ótica mais abrangente, envolvendo ações de políticas públicas e tratamento ou a partir de uma ótica mais restrita, como a troca de seringas, mas também ações que minimizem danos antes que estes ocorram, estabelecendo programas, por exemplo, sobre beber e dirigir; 2. a redução de danos é um conjunto de estratégias que visa a minimizar os agravos à saúde associados ao uso de drogas, quer sejam lícitas ou ilícitas; 3. a redução de danos está focada no eixo dos problemas associados ao uso de drogas, mas não deve desconsiderar a existência da clara relação entre estes problemas e o uso, ao longo de um continuum, e que a própria dependência pode ser entendida como um dano; 4. é necessária uma definição objetiva do que seja dano, qual tipo de dano se pretende minimizar com as estratégias de redução de danos e quais as evidências científicas que embasarão a prática, levando em consideração riscos e benefícios para o indivíduo e para a sociedade; 5. os princípios da redução de danos são: (1) estabelecer uma abordagem de baixa exigência em alternativa aos serviços de alta exi- gência focados unicamente na abstinência; (2) proporcionar uma visão realista que reconhece que o uso de drogas ocorre, que nem todos os usuários estão em estágios de prontidão para mudança e que estas pessoas têm direito ao acesso aos serviços de saúde; (3) a redução de danos não é contra a abstinência e não deve ser confundida com atitudes ou posições ideológicas contra nem a favor do uso de drogas; 6. as ações de redução de danos devem ter claros quais os tipos e a dimensão de danos que se pretendem minimizar e estar embasadas em evidências científicas. As práticas de redução de danos mostraram-se eficazes através de pesquisas bem conduzidas em minimizar os danos causados pelo HIV e outras doenças infecciosas, mas para estabelecer novas ações é necessário um maior número de pesquisas. Desta forma se questiona se a medicina deve colocar em prática as intervenções ainda não-testadas e comparadas com outras intervenções já existentes; 7. a redução de danos reconhece que não é possível impor mudanças ao comportamento de terceiros, mas é possível dar acesso à informação a todos os cidadãos, com respeito, sem discriminação, e com isso minimizar os danos à saúde associados ao uso de drogas. Entretanto a recusa do tratamento não deveria ser motivo imediato para a exclusão do tratamento. Todos deveriam ter acesso às informações referentes a ele; 8. a redução de danos deve ser considerada uma das possíveis estratégias de abordagem ao tratamento e prevenção do uso de drogas. Desta forma, hão que se tornar explícitas suas indicações e seu público-alvo. Entretanto algumas questões permanecem pouco claras: (1) o foco das estratégias de redução de danos está em nível pessoal ou social? O u como se dá essa ponderação entre o que é bom para o indivíduo ou para a sociedade? (2) Sabendo pelas evidências que a dependência é um dano à saúde, estaria o profissional eticamente autorizado a não informar ao paciente sobre os riscos de uso da droga e não deixar claro que a meta ideal é a abstinência? (3) Para qual público de usuários as políticas de redução de danos se voltam, e como identificá-los?; 9. finalmente, a ABP e a ABEAD sugerem, fortemente, a realização de um consenso nacional, J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 347 Dias et al. Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas com a participação de todas as entidades representativas, para a discussão ampla e científica d o te m a c o m a fi n ali d a d e d e sere m estabelecidas metas, prioridades, bem como o esclarecimento de conceitos dúbios e protocolos de atuação. Referências 1. Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo (Conen/SP). Guia de ação. Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP; 1996. 2. Gossop M, Griffiths P, Powis B, Strang J. Severity of dependence and HIV risk, II. Aids Care 1993; 52: 159-68. 3. Griffith E. Tratamento do alcoolismo. Porto Alegre: Artes Médicas; 2001. 4. Heather N, Wodak A, Nadelmann E, O Hare P. Psychoactive drugs & harm reduction: from faith to science. British Library; 1992, p. 3-34. 5. Marllat G A et al. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com o comportamento de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas; 1999. 6. Negrete JC . Harm reduction: quo vadis? A ddiction 2001; 96: 543-5. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência João Carlos Dias Avenida Nossa Senhora de Copacabana 788/1202-1204 CEP 22050-001 – Rio de Janeiro-RJ Tel./fax: (21) 2548-3616 e-mail: [email protected] 348 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas Politics of the Ministry of Health for integral attention to users of alcohol and other drugs Carla Silveira; Denise Doneda; Denise Gandolfi; Maria Cristina Hoffmann; Paulo Macedo; Pedro Gabriel Delgado; Regina Benevides; Sueli Moreira Resu m o Os desafios colocados pela realidade contemporânea exigem esforços para construção de políticas públicas de atenção à saúde. Historicamente, a questão sobre a temática droga foi vista exclusivamente pela ótica predominantemente psiquiátrica ou médica. O uso e/ou abuso e/ou dependência de álcool e outras drogas representam um problema que é do âmbito da saúde pública, que pressupõe necessária interface com outros programas do Ministério da Saúde, de outros ministérios (Justiça, Educação, Secretaria de Direitos Humanos), organizações governamentais e não-governamentais e demais representantes da sociedade civil organizada, garantindo, assim, a intersetorialidade na construção de uma política de prevenção, tratamento e educação para o uso/consumo de álcool e outras drogas. Entendemos que sobre este tema há predomínio da heterogeneidade, já que afeta diferentes pessoas de diferentes maneiras, por diferentes razões, em diferentes contextos e circunstâncias. As ações de saúde devem atender às diferentes especificidades (isto é: eqüidade, universalidade e integralidade do Sistema Único de Saúde [SUS]) apresentadas pelo consumidor. Portanto, para que esta política de saúde seja coerente, eficaz e efetiva, devemos ter em conta que as distintas estratégias (retardo no consumo de drogas, redução de danos associada ao consumo e superação do consumo) são complementares e fundamentais para a sua construção. Unitermos saúde pública; redução de danos; usuários de álcool e outras drogas Su m m a r y The challenges put by the contemporary reality demand efforts for the construction of public politics of attention to health. Historically, the subjects on the theme drugs were seen exclusively through the optics of psychiatrics or doctors. The use and/or abuse and/or dependence of alcohol and other drugs represent a problem that is of public health extent, that presuppose necessary interface with other programs of the Ministry of Health, other Ministries (Justice, Education, General Office of Human Rights), government and non-government organizations and other representatives of the organized civil society, so guaranteeing the participation of all the sections in the construction of politics of prevention, treatment and education for the use and/or abuse of alcohol and other drugs. We understand that on this theme there is a prevalence of the heterogeneity, since it affects different people in different ways, for different reasons, in different contexts and circumstances. The actions of health Assessores do Ministério da Saúde. J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 349-354, 2003 349 Silveira et al. Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas should assist the different peculiarities (that is, equity, universality and totality of SUS) presented by the consumer. Therefore, so that these politics of health are coherent and effective, we should take into account that the different strategies (the retard of the consumption of drugs, the harm reduction associated to the consumption and the abstinence of the consumption) are complementary: they are fundamental elements in the construction of these politcs. Uniterms public health; reduction of damages; users of alcohol and other drugs Introdução A realidade contemporânea tem colocado novos desafios no modo como certos temas têm sido habitualmente abordados, especialmente no campo da saúde. A construção de diretrizes para a saúde deve ser coletiva. Os modelos assistenciais devem ser revistos, objetivando contemplar as reais necessidades da população, o que implica desenvolver ações que possam atender igualmente ao direito de cada cidadão. Este é um preceito da Constituição brasileira: a saúde deve ter abrangência universal, não existindo critérios que permitam a exclusão de qualquer segmento social de possíveis benefícios ou, ainda, que releguem grupos ou indivíduos a intervenções preventivas ou assistenciais de qualidade inferior ou de menor abrangência do que aquelas oferecidas aos seus concidadãos. O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição em 1988 e regulamentado pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, a Lei 10.216 (marco legal da reforma psiquiátrica) e o relatório da Conferência Nacional de Saúde Mental (dezembro/2001) vêm reforçando e fomentando o que é hoje tomado como imperativo: a elaboração de estratégias e propostas para efetivar e consolidar o modelo de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, de modo a garantir seu atendimento pelo SUS. De acordo com a Organização M undial de Saúde, cerca de 10% das populações dos centros urbanos de todo o mundo consomem substâncias psicoativas de forma abusiva, independentemente de sexo, idade, nível de instrução e poder aquisitivo. Isso nos mostra que estamos diante de um problema de grandes proporções. Frente à ausência de políticas claras e concretas de atenção voltadas para esse segmento, surgiram, no Brasil, alternativas de atenção pautadas pelo resultado de abstinência. 350 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 A política de promoção, prevenção, tratamento e educação voltada para o uso de álcool e outras drogas deverá necessariamente ser construída nas interfaces intra/intersetoriais. Visto que o uso de álcool e outras drogas é um grave problema de saúde pública, o Ministério da Saúde, pautado no compromisso ético de defesa da vida, apresenta as diretrizes para a construção de uma política de atenção integral, assumindo completamente o desafio de prevenir, tratar e reabilitar os usuários de álcool e outras drogas e enfocando a implementação e a implantação de ações com estratégias mais amplas, que possam contemplar g ra n d es p arc el as d a p o p u l aç ã o e q u e n ã o priorizem a abstinência como única meta viável. Contexto nacional: impacto do uso de álcool e outras drogas Pesquisas e estudos realizados observaram os seguintes pontos: 1. a Organização Mundial de Saúde apontou que 10% das populações que vivem em centros urbanos de todo o mundo consomem abusivamente substâncias psicoativas, sendo que o álcool e o tabaco possuem maior prevalência global, trazendo conseqüências graves para a saúde pública mundial 23 ; 2. est u d o c o n d u z i d o p e l a U n iv ersi d a d e d e Harvard apontou o álcool como responsável por 1,5% de todas as mortes no mundo e por 2,5% do total de anos vividos ajustados para incapacidade 21 ; 3. há uma tendência mundial que aponta para o uso cada vez mais precoce de substâncias psicoativas, sendo que tal uso ocorre de forma cada vez mais pesada. Estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Silveira et al. Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas Drogas Psicotrópicas (Cebrid) acerca do uso indevido de drogas por estudantes em dez capitais brasileiras foi utilizado como base comparativa para outros estudos e demonstrou que houve aumento do uso freqüente do álcool em seis das dez capitais brasileiras que participaram do estudo, e do uso pesado (20 vezes ou mais) em oito; 4. vinte e cinco por cento dos casos notificados de Aids no Brasil estão direta ou indiretamente relacionados à categoria de exposição ao uso de drogas injetáveis (Boletim Epidemiológico C N DST/Aids/2001); 5. estudo realizado entre usuários de drogas injetáveis (UDIs) contatados por projetos de redução de danos aponta que 38,6% compartilharam agulha e/ou seringa com outra pessoa, enquanto 35,9% utilizaram agulhas e/ou seringas de outra pessoa. A taxa de soroprevalência de HIV nesta população é de 36,5% 8; 6. pesquisa encomendada pelo governo federal mostra, em seus resultados preliminares, que 53% do total de pacientes atendidos por acidentes de trânsito no Ambulatório de Emergência do Hospital das Clínicas em São Paulo estava com índices de alcoolemia em seus exames de sangue superiores aos permitidos pelo Código de Trânsito Brasileiro. Das análises em vítimas fatais (IML/SP), o nível de alcoolemia encontrado chega a 96,8% 7 ; 7. série histórica do Sistema de Mortalidade do Ministério da Saúde nos últimos oito anos sobre a relação entre o uso de álcool e outras drogas e eventos acidentais ou situações de violência evidencia o aumento na gravidade das lesões e a diminuição dos anos potenciais de vida da população. Os acidentes e as situações violentas ocupam o segundo lugar em causa de mortalidade geral, sendo o primeiro lugar na causa de óbitos entre pessoas de 10 a 49 anos; 8. dados do Datasus referentes ao ano de 2001 notificam 84.467 internações para tratamento de problemas relacionados ao uso de álcoo l, n ú m ero q u atro ve z es su p eri or a o d e internações ocorridas por uso de outras drogas. N este mesmo período foram emitidas 121.901 autorizações para internação hospitalar (AIHs) para internações relacionadas ao alcoolismo; a média de internação foi de 27,3 dias, e o custo anual para o SUS foi superior a 60 milhões de reais; 9. n o p erío d o d e 1 9 8 8 a 2 0 0 1 , se g u n d o o Datasus, os gastos decorrentes do uso de álcool re presen tava m 87,9 % co n tra 13 % d os oriundos do consumo de outras substâncias psicoativas; 10. no Brasil, estima-se que 20% das pessoas tratadas na rede pública de atenção primária bebem em um nível considerado de alto risco, sendo que o sistema de saúde leva em média cinco anos para diagnosticar tal situação. Eficácia das ações de redução de danos e sua ampliação para a clínica das dependências As ações de redução de danos tiveram início no Brasil em 1989, em u m único m unicípio, Santos, no estado de São Paulo. Esta primeira iniciativa teve grande resistência das autoridades judiciais. Somente em 1994, com o primeiro acordo de empréstimo do governo brasileiro com o Banco Mundial, e em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas, a redução de danos constituiu-se como uma política de governo, mas ainda de modo parcial. O governo federal assumiu a redução de danos como importante ação de saúde pública. Essas ações foram acompanhadas pelo Ministério das Saúde – Coordenação Nacional de DST/Aids. O primeiro programa vinculado foi o do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad), na Bahia, vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA). O Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Justiça, iniciou a construção de pareceres para que a interpretação da antiga Lei 6.368, antidrogas, não impedisse as ações e o desenvolvimento de trabalhos de intervenção baseados em capacitação pelos pares e trabalho de redutores de danos. Constatou-se desde então que o impacto das ações de redução de danos está diretamente relacionado ao fato da inclusão dos usuários de drogas na agenda pública. Estudos realizados pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999/2001) demonstravam que as ações de redução de danos dirigidas a UDIs promoviam mudança de comportamento desde o aumento consistente no uso de preservativo, d e 4 2 % p ara 6 5 % , a t é a d i m i n u i ç ã o n o compartilhamento de material de injeção, de 70% J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 351 Silveira et al. Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas para 41%. A procura para diagnóstico de HIV e hepatites, o tratamento de dependência química e o tratamento da Aids também foram relatados a partir da implantação dos programas de troca de seringas, diminuindo a vulnerabilidade à infecção pelo HIV, bem como a soroprevalência da hepatite C nos usuários de drogas injetáveis. Atualmente contamos com 160 projetos financiados pela Coordenação Nacional de DST/Aids no Brasil e que atingem 84 mil pessoas, o que equivale a 10,5% do total estimado de UDI no Brasil. Existem 19 associações de usuários, ex-usuários e profissionais da redução de danos, sendo que duas são nacionais e 17, estaduais. Elas têm tido papel fundamental na conquista de cidadania pelos usuários de drogas, exigindo dos profissionais de saúde novas posturas para o atendimento do usuário. O utras estratégias e ações devem ser iniciadas e/ou implementadas, como a atenção para o compartilhamento de seringas e agulhas para uso de anabolizantes em academias de ginástica e para aplicação de silicone e de hormônios. Bem como ações que estão sendo realizadas de forma pontual. Há necessidade, pois, de expandir as estratégias de redução de danos para outras drogas e vias de administração, como o crack e o álcool. A ampliação e a garantia da participação ativa dos usuários de drogas na construção de políticas públicas de saúde, bem como o apoio governamental para a diminuição das vulnerabilidades deste segmento. Para tanto são necessários investimentos nacionais e internacionais na discussão das leis em vigor, a partir dos custos sociais e econômicos que as políticas repressivas (proibicionistas) fazem recair sobre a saúde. Diretrizes para uma política de atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas A política de atenção dirigida à população de usuários de álcool e outras drogas está em consonância com os princípios da política de saúde mental vigente. Sendo assim, a Lei Federal 10.216 19 também vem a ser instrumento legal/normativo máximo para a política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, a qual está em sintonia com os pressupostos da Organização M undial da Saúde. Mediante a multiplicidade de níveis de organização das redes assistenciais localizadas nos es352 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 tados e no Distrito Federal, a diversidade das características populacionais e a variação da incidência de transtornos causados pelo uso abusivo e/ou dependência de álcool e outras drogas, o M inistério da Saúde propôs a criação de 250 Centros de Atenção Psicossocial (Caps – álcool e drogas), dispositivo assistencial de comprovada resolubilidade que pode abrigar em seus projetos terapêuticos práticas e cuidados que contemplem a flexibilidade e a abrangência possíveis às necessidades a esta atenção específica, dentro de uma perspectiva estratégica de redução de danos sociais e à saúde. Os Caps ad devem oferecer atendimento diário, sendo capazes de prestar atendimento nas diversas modalidades (intensiva/semi-intensiva/nãointensiva), p ermitin d o o m anejo terap êutico dentro de uma perspectiva individualizada e de evolução contínua. Como principais objetivos de ação, os compromissos que se colocam hoje para a saúde é: • alocar a questão do uso de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública; • indicar o paradigma da redução de danos nas ações de prevenção e de tratamento como método clinicopolítico de ação territorial na perspectiva da clínica ampliada; • formular políticas que possam rever e discutir o senso comum sobre o uso de drogas e o usuário destas dentro de uma ótica científica e de saúde; • mobilizar a sociedade civil para participar das práticas preventivas, terapêuticas e reabilitadoras, bem como estabelecer parcerias locais para o fortalecimento de políticas municipais e estaduais. Diagnosticamos como necessário para esta integração das ações propostas: 1. construção de oportunidades de inserção das ações nos mecanismos implementados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas esferas de governo municipal e estadual; 2. formulação de alternativas para a sustentabilidade e o financiamento das ações; 3. repasse das experiências relativas às experiências de descentralização e da desconcentração de atividades e de responsabilidades obtidas por estados e municípios; 4. processos de formação e capacitação de profissionais e de trabalhadores de saúde, com am- Silveira et al. Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas plo investimento político e operacional para mudança de conceitos. de acolhimento em lugares de enfretamento coletivo das situações ligadas ao problema. O compromisso do Ministério da Saúde é de criar, manter equipamentos, qualificar seus profissionais, formular políticas de saúde, articulando com áreas afins, e executar e avaliar tais políticas, assumindo o que lhe cabe no enfrentamento do que faz adoecer e morrer. Estes são os compromissos do SUS: fortalecer seu caráter de rede, incitando outras redes à conexão; garantir o acesso aos serviços e a participação do consumidor em seu tratamento, através do estabelecimento de vínculos, da construção da co-responsabilidade e de uma perspectiva ampliada da clínica; e transformar os serviços locais Proporcionar tratamento na atenção primária, garantir acesso a medicamentos e atenção na comunidade, fornecer educação em saúde para a população, envolver comunidade/usuário/família, formar recursos humanos, criar vínculo com outros setores, monitorar as ações de saúde mental com a comunidade, dar apoio à pesquisa e estabelecer programas específicos são práticas que devem ser obrigatoriamente contempladas pela Política de Atenção a Usuários de Álcool e outras Drogas em uma perspectiva ampliada de saúde pública, como a que implantamos no Brasil. Referências 1. Benevides de Barros R, Passos E. Clínica e biopolítica na experiência do contemporâneo. Psicologia clínica. Rio de Janeiro: PUC/RJ, CTCH, Departamento de Psicologia 2001; 13(1): 91. 2. Câmara dos Deputados. Seminário Direito à Saúde Mental: Regulamentação e Aplicação da Lei 1.216. Brasília: Câmara dos Deputados; 2002. 3. Carlini EA, Gálduroz JC, Notto AR, Nappo AS. I levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil. São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas/Unifesp; 2002, p. 325-8. 4 . C risp A H , G e l d er M G . St i g m a t i z a t i o n o f p e o p l e w i t h mental illness. The British Journal of Psychiatry 2000; 177: 4-7. 5. Delgado PG. O SUS e a Lei 10.216: reforma psiquiátrica e inclusão social. In: Loyola C, Macedo P (orgs.). Saúde mental e qualidade de vida. Rio de Janeiro: Edições Cuca/Ipub, 2002. 6. Greve JMD et al . Álcool em vítimas de causas externas atendidas no pronto-socorro central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo, 1999. 7. Ipea/MS et al . Impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas. No prelo. 8. Kaiaffa W. Projeto Ajude Brasil: avaliação epidemiológica dos usuários de drogas injetáveis dos projetos de redução de danos. Ministério da Saúde, 2001. 9. Karan ML. Drogas, proibições e danos. No prelo 2003. 10. Mesquita F, Seibel S. Consumo de drogas: desafios e perspectivas. São Paulo: Ed. Hucitec, 2000. 11. M inistério da Saúde, Brasil. A contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/Aids entre UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e redução de danos. Brasília, 2001. 12. Ministério da Saúde, Brasil. Coordenação da Área Técnica de Saúde Mental. Proposta de Normalização dos Serviços de Atenção a Transtornos por Uso de Substâncias Psicoativas. Brasília, 1999. 13. M inistério da Saúde, Brasil. Drogas, A ids e Sociedade. 1995. 14. Ministério da Saúde, Brasil. Manual de Redução de Danos. 2001. 15. Ministério da Saúde, Brasil. 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A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, março/2003. 21. M urray CJ, Lopez A D. The global burden of disease: a comprehensive assessment of mortality and disability, form diseases, injuries and risk factors in 1990 and projected to 2020. Cambridge: Massachusetts Havard School of Public Health to Worth Organization and Work Bank. Global Burden of Injury Series; 1996. vol I. 22. Nery AF et al . Impacto do uso de álcool e outras drogas em vítim as d e a cid e n t es d e trâ nsit o . Brasília: A b d e tra , 1997. 23. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a Saúde no Mundo 2001 – Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança. Genebra: O MS, 2001. J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 353 Silveira et al. Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas 24. Paim, J. As ambigüidades da noção de necessidade em saúde. In Planejamento. Salvador, 8(1/2): 39-46, 1980. 25. Sampaio C M A, Campos M A (orgs.). Drogas, dignidade & inclusão social. A lei e a prática de redução de danos. 1. ed. Rio de Janeiro: Aborda/Coordenação Nacional de DST/Aids, 2003. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Denise Donedo Coordenação Nacional DST/Aids SEPN 511 – Bloco C CEP 70750-543 – Brasília-DF Tel.: (61) 448-8012 354 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Marcelo Santos Cruz 1; Ana Cristina Sáad 2; Salette Maria Barros Ferreira2 Resu m o O presente parecer representa uma síntese da literatura sobre as vantagens e desvantagens na adoção da política proibicionista ou das estratégias de redução de danos na diminuição da soroprevalência de vírus HIV, das hepatites B e C e dos comportamentos de risco entre usuários de drogas e a ausência de crescimento do consumo de drogas como resultado destas ações. Há evidências da diminuição de riscos e danos pela utilização de terapias de substituição no tratamento de usuários de drogas. Por outro lado, o regime proibicionista propõe a resolução dos problemas relativos ao uso de drogas através de táticas de repressão policial, por meio de uma concepção moral e criminal, sem se mostrar eficiente para diminuir os problemas relacionados ao uso de drogas. No que se refere à assistência, redução de danos significa o emprego de técnicas que viabilizem as melhores opções possíveis para cada paciente, evitando uma exigência de abstinência a qualquer custo. Pelos motivos expostos, o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro é favorável à adoção das estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas no Brasil. Unitermos álcool e drogas; redução de danos; política de saúde; terapia de substituição; proibicionismo Su m m a r y We present the synthesis of a literature review about advantages and disadvantages of drug prohibitionist politics versus harm reduction strategies. Brazilian and international researches show the usefulness of harm reduction strategies in reducing HIV, hepatitis B and C soroprevalence among drug abusers. These strategies diminish risk behaviors of drug abusers without resulting increased drug use. We found evidences that substitution therapy for drug abuse results in reduction of risks and harm. On the contrary, prohibitionist politics focus the resolution of drug problems on repression using a moral and criminal conception, failing to solve those problems. In health care context, harm reduction means the use of techniques that makes possible to offer better options for each patient without the requirement of drug abstinence. Because of the mentioned reasons, Psychiatry Institute of Universidade Federal do Rio de J aneiro supports the adopotion of harm reduction strategies in the management of drug and alcohol problems in Brazil. Uniterms drug and alcohol abuse; harm reduction; health politics; substitution therapy; prohibitionist politics 1 Coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad), do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub /UFRJ). 2Professora visitante do Projad, Ipub /UFRJ. J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 355-362, 2003 355 Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas A resposta dos responsáveis pelas políticas para as drogas no Brasil e no restante do mundo ocidental é ainda, predominantemente, a tentativa de eliminar a oferta de drogas ilícitas e com isso perseguir o ideal de uma sociedade sem drogas. Durante a última década, alguns países responderam aos problemas relacionados às drogas com iniciativas diversas, que envolviam a noção de redução de danos16, 26 . Essas iniciativas sugerem ser melhor, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo, diminuir os riscos e os prejuízos relacionados ao uso contínuo de drogas e à política de co ntrole de dro gas d o q ue restrin gir o foco objetivado em uma sociedade livre de drogas. O presente parecer representa uma síntese do que encontramos na literatura sobre as vantagens e desvantagens na adoção da política de uma sociedade livre de drogas ou das estratégias de redução de danos. As noções contemporâneas de redução de danos surgiram na formulação da política de drogas holandesa durante o final da década de 1970 e início da de 1980 14, 18 . O evento que tornou esta política oficial em países como Austrália, Suíça e Grã-Bretanha foi o reconhecimento, durante meados dos anos 1980, de que injetar drogas compartilhando agulhas dissemina o vírus HIV: “ O HIV é uma ameaça maior à saúde pública e individual do que o abuso de drogas, e a prevenção da Aids deve estar integrada aos esforços antidrogas” 1, 31 . Com o crescimento da epidemia de Aids, nos locais em que já se desenvolviam atividades de redução de danos estas iniciativas passaram a ser também dirigidas para a prevenção do contágio por todas as doenças transmissíveis por via venosa e também sexual. Figura 1 356 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 As estratégias de redução de danos partem do princípio de que não se pode esperar que se realize o ideal de a humanidade um dia prescindir de substâncias psicoativas e de que é indispensável o desenvolvimento imediato de ações para diminuir os danos provocados para cada indivíduo e para a coletividade. Assim, a política de redução de danos visa ao desenvolvimento de uma série de ações no sentido de que o ideal é que os indivíduos não usem drogas, mas, se isto ainda não for possível, que o façam com o menor risco possível (Marlatt, 1999; Nadelmann, 1997). Os princípios básicos da redução de danos, segundo Marlatt 18 , são: 1. a redução de danos é uma alternativa de saúde pública para os modelos moral/criminal e de doença do uso e da dependência de drogas; 2. a redução de danos reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos; 3. a redução de danos surgiu principalmente como uma abordagem de baixo para cima , baseada na defesa do dependente, em vez de uma política de cima para baixo promovida pelos formuladores de políticas de drogas; 4. a redução de danos promove acesso a serviços de baixa exigência como uma alternativa para abordagens tradicionais de alta exigência; 5. a redução de danos baseia-se nos princípios do prag matismo em pático versus idealismo moralista. No caso do uso injetável de drogas, por exemplo, se um indivíduo ainda não consegue deixar de usar uma droga, as ações são no sentido de que ele o faça de forma não-injetável. Se ele ainda não consegue isto, que o faça sem compartilhar seringas. Se ele ainda não consegue, que ele e os parceiros usem métodos eficientes de esterilização do equipamento de injeção e assim por diante. A troca de seringas é apenas uma das ações nesta direção. Junto a esta tarefa obrigatoriamente devem ser realizadas outras, como oferecer tratamento para a dependência da su bstância, exa m es clínicos p ara d oe nças transmissíveis por via venosa ou sexual, tratamento para doenças clínicas, ensinamentos e material educativo sobre a prevenção de doenças de contágio sexual e venoso. Como afirmam Nadelmann, McNeely e Drucker22, “a prioridade é colocada na maximização da quantidade de contato que usuári- Cruz et al. Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas os de drogas problemáticas têm com os serviços comunitários sociais, de assistência e outros”. O risco de contágio de doenças de transmissão pelo uso de drogas injetáveis é uma preocupação de saúde pública, sendo esta forma de contaminação relevante no contágio entre usuários de drogas injetáveis assim como a disseminação destes para seus parceiros pela via do contágio sexual. No Brasil, a redução de danos é a abordagem preventiva oficial pela qual a epidemia de Aids vem sendo enfrentada, e a pretensão é que se expanda para a área de prevenção e tratamento de usuários de drogas8 . Como a preocupação com a transmissão da Aids é generalizada, a maior parte dos estudos sobre os resultados da execução de estratégias de redução de danos é referente aos riscos de contaminação pelo HIV. Esta preocupação é justificada p e l as al t as t a x as d e p re v al ê n c i a d e sor o p osi t ivi d a d e e n tre usu ári os d e d r o g as injetáveis. Um estudo realizado nas cidades de Itajaí, Porto Alegre, São José do Rio Preto, São Paulo e Sorocaba mostra taxas que variam de 18,4% a 78% de prevalência de HIV na população de usuários de drogas injetáveis27 . A média no grupo estudado (52,3%) é muito maior do que a da população em geral, da mesma forma que a prevalência de soropositividade para HTLV (17%)4, 34 . Estudos realizados em Santos19 , Rio de Janeiro 4 e Salvador 2 encontraram taxas igualmente altas para estes vírus e para os das hepatites B e C. O mais importante é que nestas três cidades estes estudos encontraram importante queda na prevalência destes agentes infecciosos quando comparados com estudos realizados antes da instituição, nestas cidades, de estratégias de redução de danos para este grupo populacional. Embora não se possa afirmar que a queda nas taxas de soropositividade seja resultado da implantação das estratégias de redução de danos, outros resultados destas pesquisas apontam nesta direção, como é o caso da diminuição da freqüência do uso injetável e do padrão de compartilhamento de seringas (em Santos, Rio de Janeiro e Salvador) e do uso de preservativos (Salvador). Os resultados dos estudos realizados no Brasil são consistentes com aqueles efetuados nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na Holanda e na Austrália11, 15, 20 . Um estudo de revisão de 14 programas de troca de seringas mostrou que dez deles tiveram co m o resultad o a diminuição no compartilhamento de seringas, quatro não mos- Figura 2 Figura 3 traram nenhuma redução e nenhum programa resultou em aumento 15, 20 . O emprego da substituição de drogas por outras substâncias menos associadas a danos, mesmo quando estas oferecem risco de abuso ou dependência, também pode ser compreendido entre as ações das estratégias de redução de danos. N o Brasil, podem ser incluídos nesta categoria o uso dos benzodiazepínicos nas fases iniciais após a interrupção do uso do álcool e a prescrição de metadona para dependentes de opióides. A substituição no tratamento de dependentes de opióides é utilizada em outros país es d es d e 1 9 2 3 2 3 . S e g u n d o N a d e l m a n n , M c N eely e Drucker 22 , os resultad os p ositivos e n c o n t ra d o s n a l i t era t u ra s o b r e o us o d e metadona para usuários de heroína incluem a diminuição no uso de heroína 12, 24 , a diminuição do uso injetável 10, 30 , a redução de comportamenJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 357 Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas que podem provocar dependência, e com a possibilidade de ocorrência de troca de uma droga pela outra, há evidências de que não há diminuição da chance de abstinência estável de metadona e outras drogas para pacientes que aderem a programas de metadona17 . Em oposição à política de redução de danos está a guerra às drogas ou a ideologia de tolerância zero , adotada principalmente pelo governo norte-american o e b asead a n as p olíticas d e proi bição, criminalização e numa ideologia rígida livre de drogas (Nadelmann, 1997). Este projeto, cunhado durante o governo Reagan, tem empregado somas vultosas em iniciativas dirigidas fundamentalmente para a repressão de produção, comercialização e consumo de substâncias ilícitas. O regime internacional de proibição de drogas promovido pelos Estados Unidos desde o início de 1900 está agora firmemente estabelecido pelo mundo: a Convenção Única sobre Narcóticos (Single Convention on Narcotic Drugs), de 1961, e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilegal de Narcóticos e Substâncias Psicoativas (Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychoactive Substances), de 1988, foram ratificadas em mais de cem governos21, 32 . As táticas de repressão e sanções desenvolvidas pelos Estados Unidos, incluindo aparato eletrônico de vigilância, testes de drogas, novas leis, prisões compulsórias relacionadas às drogas, foram adotadas em muitos países, e a proporção de aparato, recurso policial e espaço em prisões destinados a esse fim aumentou dramaticamente 20 , inclusive no Brasil9 . Como afirmam Nadelmann, McNeely e Drucker22, essas políticas “se mantêm dominantes nos Estados Unidos, apesar das recomendações em contrário de Figura 4 Figura 5 to criminoso e prisões13 , a redução nas taxas de mortalidade entre dependentes 7 e o aumento no emprego 5, 12 . Embora os críticos das estratégias de substituição se preocupem com o uso de substâncias 358 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Figura 6 Cruz et al. Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas várias instituições de alto nível científico e de consultores do governo ao longo de anos”. Este tipo de abordagem entende o problema do uso de drogas através dos modelos moral/criminal e de doença, como cita Marlatt 18 : “ O modelo moral, como expresso na política de controle de drogas dos Estados Unidos, é o de que o uso e/ou a distribuição de certas drogas são crimes que merecem punição... no modelo moral o uso de drogas ilícitas é moralmente incorreto”. Estes modelos também foram verificados em nosso país como ideologia predominante, importados dos EUA 28, 29 . O objetivo final dos programas de tratamento baseados em modelos moral e de doença é reduzir e eliminar a prevalência do uso de drogas, concentrando-se no usuário. Figura 7 Entre as críticas à política de guerra às drogas encontra-se o predomínio da destinação de recursos públicos à repressão com resultante escassez de recursos e esforços destinados às atividad es d e preve n ção e assist ê n cia. Ta m b é m é questionado o próprio objetivo da política, uma vez que se discute se é possível esperar que um dia haja alguma sociedade livre de drogas. As críticas referentes à política de redução de danos geralmente são calcadas mais em experiências pessoais do que em científicas e incluem a idéia de que a redução de danos estimularia o consumo de drogas e trabalharia visando à legalização das mesmas. Talvez seja este o motivo da escassez de artigos que se contrapõem às estratégias de redução de danos. A preocupação com a possibilidade de os programas de troca de seringas incentivarem o uso de drogas não é corroborada por estudos no exterior25, 35 . Embora ainda não existam dados nacionais disponíveis para responder a esta questão, conforme Bastos e Mesquita3 “é preciso afirmar, categoricamente, que nenhum estudo científico até hoje publicado corroborou a formulação de que a implantação de projetos de trocas de seringas daria lugar a um aumento do consumo de drogas nas comunidades por eles abrangidas”. As estratégias de redução de danos têm sido disseminadas mundialmente e atualmente passam a ser compreendidas como uma proposta não apenas preventiva, mas também como uma das bases que fundamentam a assistência a usuários de drogas6 . No que se refere à assistência, a utilização do modelo de redução de danos significa o Figura 8 Figura 9 emprego de técnicas por profissionais e instituições que viabilizem as melhores opções possíveis para cada paciente, evitando uma exigência de J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 359 Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Figura 10 Figura 13 Figura 11 Figura 14 Figura 12 abstinência a qualquer custo. Não se trata de desprezar a importância da abstinência para muitos pacientes, mas incluí-la como uma possibilidade 360 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 entre outras. A utilização deste tipo de abordagem torna possível que muitos pacientes se vinculem aos profissionais e à instituição, iniciando tratamento que pode progressivamente trazer modificações importantes na forma de o paciente lidar consigo mesmo e com o mundo à sua Cruz et al. Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas volta e, inclusive, com o seu uso de drogas. A exigência de abstinência, por outro lado, seleciona aquela parcela do grupo de usuários de drogas que pode desde o início interromper o uso da substância, excluindo os demais do tratamento. Como enfatiza Carlini8 , a adoção de uma estratégia de redução de danos não se trata apenas de uma mudança de paradigma, mas também da “adoção de uma política que respeite a pluralidade de modos de vida e que atue a partir da aceitação desta realidade”. Esta autora descreve ainda como vantagens da estratégia de redução de danos o fato de ser menos custosa do ponto de vista dos recursos financeiros e mais eficiente se comparada com as abordagens tradicionais. A opção por uma estratégia de redução de danos não é contraditória com a utilização de ações no sentido de diminuir a oferta e o consumo de drogas. Na realidade, como demonstram Stimson e Fitch 33 , as estratégias de redução de danos só são opostas às posturas proibicionistas que se propõem a resolver os problemas relacionados ao uso de drogas pela sua proibição geral. A partir do que encontramos na literatura, o posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ é favorável à utilização das estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas no Brasil. Pelos motivos expostos, deve-se afirmar que admitir a impossibilidade imediata de uma sociedade livre de drogas é assumir, de forma responsável, o papel que cada um tem no tratamento da dependência de drogas, tratamento este adequado a cada indivíduo, suas necessidades e possibilidades. Investir em políticas públicas de prevenção e tratamento coerentes com a realidade do país e da sociedade é abordar de forma coerente os problemas relacionados ao uso de drogas. Privilegiar as ações repressivas, responsabilizar as substâncias e aqueles que as utilizam pelos problemas encontrados e estigmatizar usuários como moralmente criminosos ou doentes são formas parciais e preconceituosas de se enfrentar o problema do uso de drogas, propostas não-endossadas pelas estratégias de redução de danos. Referências 1. Advisory Council on the Misuse of Drugs. Aids and drug misuse, part I: report of the Advisory Council on the Misuse of Drugs. London: Her Majesty’s Stationery Office, 1988. 2. 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Rockville, MD: National Institute of Drug Abuse; 1988, p. 106-25. 14. Leuw E, Marshall I.H. Between prohibition and legalization: the Dutch experiment in drug policy. New York: Kugler; 1994. 15. Lurie P, Reingold AL. The public health impact of needle exchange programs in the United States and abroad. Berkeley: University of California, Institute for Health Policy Studies, 1993, apud Nadelmann E, McNeely J, Drucker E. International Perspectives. In: Lowinson JH, Ruiz P, Millman RB, Langrod LG. Substance abuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1997, p. 22-39. 16. MacCoun RJ, Saiger AJ, Kahan JP. Drug policies and problems: the promise and pitfalls of cross-national comparison . In: Heather N, Wodak A , Nadelmann EA , O´Hare P. (eds.) Psychoactive drugs and harm reduction: from faith to science. London: Whurr Publishers; 1993. 17. Madux JF, Desmond DP. Methadone maintenance and recovery from opioid dependence. 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A contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/Aids entre UDI no Brasil: dez anos de pesquisa e redução de danos. Brasília; 2001, p. 49-78. 35. Watters JK, Estilo MJ, Clark GL, Lorvick J. Syringe and needle exchange as HIV/Aids prevention for injection drug users. JA M A 1994; 271(2): 115. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Marcelo Santos Cruz Avenida Venceslau Brás 71/fundos – Botafogo CEP 22290-140 – Rio de Janeiro-RJ e-mail: [email protected] Posicionamento da Unifesp sobre redução de danos E. A. Carlini Resu m o Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vários grupos atuam na área de uso abusivo e dependência de álcool e outras drogas: a Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad), criada pela união de dois setores – o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid) e a Unidade de Dependência de Drogas (Uded) –, e, vinculados ao Departamento de Psiquiatria –, os setores Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) e a Unidade de Atendimento a Dependentes (Uniad). Durante a fase de preparação da reunião, várias discussões ocorreram nesses setores, sem que existisse um consenso sobre a questão. Dada a riqueza das discussões, optamos por apresentar neste documento as diferentes reflexões e o posicionamento desses grupos. Unitermos redução de danos; Unifesp; dependência de droga; tratamento Su m m a r y In the Federal University of S ão Paulo several groups are dealing with the problems of alcohol and drug abuse: the discipline of Medicine and Sociology on Drug Abuse (Dimesad), composed of the Brazilian Center of Information on Psicotropic Drugs (Cebrid) and Unite of Dependence of Drug (Uded), the Program of Attendance and Orientation of Dependent Persons (Proad) and the Unity of Attendance of Dependent Persons (Uniad). Several previous meetings and discussions among these bodies were held, but a consensus was not reached on harm reduction. As a consequence of this lack of consensus, the independent opinion of each of these bodies on the subject were published separately. Uniterms harm reduction; Unifesp; drug addiction; treatment Posicionamento da Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas Alexandro B. Guerra; Ana Cecília P. R. Marques; Ana Regina Noto; Beatriz M. V. Camargo; Eroy A. Silva; Hamer A. Palhares; José Carlos Fernandes Galduróz; Marlene Asevedo; Maria Lucia O. Souza Formigoni; Solange A. Nappo A redução de danos não deve ser confundida com os contextos culturais, científicos e políticos nos quais ela ocorre. Considerando que a falta de conceitos claros sobre redução de danos possa ser um problema para sua aceitação, implementação e avaliação, é preciso discutir de modo aprofundado a questão e avaliar sua efetividade15. É importante ter claro qual dano se quer reduzir e como avaliar cientificamente o impacto de cada tipo de ação ou estratégia na mudança de comportamentos de risco e na redução da disseminação de epidemias, assim como sua influência sobre os conceitos acerca do uso de drogas nas comunidades nas quais essas medidas são adotadas. J . b r a s . p s i q u i a t r . vol. 52 (5): 363-370, 2003 363 Carlini et al. Posicionamento da Unifesp sobre redução de danos As especificidades culturais são de suma importância e devem ser consideradas nessas avaliações à medida que as primeiras estratégias de redução de danos forem desenvolvidas, visando a atingir usuários de drogas injetáveis, principalmente dependentes de opiáceos. N o Brasil, a maioria dos usuários de drogas faz uso de álcool, maconha ou cocaína, requerendo ações adequadas a este perfil. É preciso discutir quais são os nossos principais problemas para determinar as ações de redução de danos prioritárias e permitir um adequado planejamento de investimentos a curto, médio e longo prazos. Para isso é necessário um esforço conjunto das autoridades dos sistemas de saúde, judiciário, de assistência social, da comunidade universitária e de profissionais atuantes na área, a fim de permitir a adoção de medidas cientificamente embasadas que permitam a melhor aplicação possível dos recursos humanos e financeiros disponíveis. Em resumo, a redução de danos pode e deve ser incluída nos programas de saúde, desde que: • sejam desenvolvidas pesquisas que comprovem sua necessidade, sua efetividade e sua relação custo/ benefício; • seja contextualizada, pois a cultura de cada local influencia o modelo e o resultado de qualquer intervenção; • não seja considerada o oposto de proibição, como uma proposta de legalização das drogas. Conceitos Antes de enfocar a redução de danos propriamente dita, é importante elucidar alguns conceitos sobre prevenção. 1 ) Re d ução d a oferta – medidas repressivas que têm como objetivo a destruição e a proibição de produção, importação ou venda de substâncias psicoativas ilícitas, por meio de policiamento e aplicação das leis. Q uanto às lícitas, em geral, o objetivo é agilizar a vigilância sanitária no controle de prescrições. 2 ) Re d u ção d a d e m a n d a – são medidas planejadas para diminuir os agravos à saúde decorrentes do consumo de drogas, além dos fatores de risco para o indivíduo na família, na escola, na comunidade, no trabalho, evitando ou diminuindo o uso. 3 ) Risc o e d a n o – o que é dano e como isto se relaciona com risco? Ambos têm sido usados 364 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 como sinônimos, embora não o sejam. Risco pode ser definido como a possibilidade ou probabilidade da ocorrência de um evento. Dano se refere a uma conseqüência de um evento já ocorrido. 4 ) Preve n ção e re d ução d e d a n os – ao aplicarmos os conceitos de prevenção à área de uso e abuso de drogas, podemos considerar: š prevenção primária – não existindo o consumo, engloba as ações que visam a evitar ou retardar o início do consumo de drogas. Ex.: campanhas educativas, divulgação de informações, educação comunitária, limitações impostas pela legislação, etc.; š prevenção secundária – existindo algum nível de consumo, as ações de prevenção secundária têm por objetivo evitar o aparecimento de problemas decorrentes do uso, podendo englobar tanto ações que visam à redução ou interrupção do consumo de drogas como ações que visam a evitar conseqüências decorrentes do uso, sem propor alteração do consumo. Ex.: identificação precoce de um padrão de consumo prejudicial, informação sobre níveis seguros do consumo de álcool, detecção precoce seguida por intervenções breves, campanhas que propõem se beber, não dirija; š prevenção terciária – em geral dirigida às pessoas identificadas como dependentes, as ações de prevenção terciária objetivam redução das conseqüências, sejam elas biológicas, psicológicas ou sociais. Pode englobar ações que visem à redução do consumo (ex.: tratamento com meta de abstinência), ou das conseqüências, sem propor alteração de consumo. A prevenção terciária engloba tratamento, reabilitação e estratégias de redução de dano. Redução de danos A Redução de danos (RD) é um conjunto de ações ou estratégias voltadas para diminuir os riscos e os danos decorrentes do uso de drogas a partir de medidas que não envolvem a redução do consumo, não exigindo abstinência20 . O bjetivos da RD: as ações de redução de danos visam, principalmente, a reduzir comportamentos de risco associados ao uso de drogas, sendo pragmáticas e de baixa exigência. Não têm como objetivo a redução do consumo, mas sim a de outros Carlini et al. Posicionamento da Unifesp sobre redução de danos problemas a ele associados. Um exemplo clássico desse tipo de ação é prover os usuários com seringas limpas e preservativos, a fim de se evitar a transmissão de doenças infecto-contagiosas. Redução de danos e minimização dos danos também são expressões usadas como sinônimas, sendo mais adequado utilizar o termo redução de danos ao se referir ao conjunto de estratégias por meio das quais se poderá minimizar o dano. • à redução de conseqüências legais (ex.: mudança da lei, diferenciando usuários de traficantes). A Dimesad entende que estratégias de redução de danos podem ser utilizadas na prevenção secundária e terciária, como resumido no Q u a d r o 11. Quadro 1 – Estratégias de redução de danos O utras ações de redução de danos envolvem medidas que visam: Prevenção primária Prevenção secundária • à redução de acidentes (automobilísticos ou por overdose ); Evitação do consumo Redução do consumo • à redução de conseqüências sociais (como as salas para uso de drogas supervisionadas pelo sistema de saúde); Prevenção terciária Redução do consumo Estratégias que não envolvem redução do consumo = redução de danos Posicionamento da Unidade de Atendimento a Dependentes (Uniad) Marcelo Ribeiro; Ronaldo Ramos Laranjeira Em relação à prevenção, existem dois braços importantes: 1) redução do suprimento – medidas repressivas que têm como objetivo a destruição, a proibição da produção, a importação e a venda de SPP ilícitas por meio de policiamento e aplicação das leis. Q uanto às lícitas, em geral o objetivo é agilizar a vigilância sanitária no controle de prescrições e exigir a ampliação das bulas e a capacitação dos comerciantes de remédios quanto ao uso do álcool nas formulações; 2) redução da demanda – são medidas planejadas para diminuir o consumo, diminuindo, conseqüentemente, os riscos para o indivíduo, para a família e para a comunidade. Essa forma de prevenção foi desenvolvida a partir do modelo de doença e, portanto, propõe como medidas preventivas a abstinência (prevenção primária); a diminuição do uso (prevenção secundária) e o tratamento com abstinência (prevenção terciária). Todos esses níveis de prevenção adotam a abstinência como meta e, mais tarde, com a evolução do modelo de uso, ampliam sua intervenção para técnicas de redu- ção do consumo e terapias de substituição para alguns pacientes. A proposta de beber moderadamente é um exemplo, assim como a terapia de reposição com adesivos de nicotina. A redução de danos é um modelo de cuidados com a saúde cujas ações ou estratégias estão voltadas para diminuir os riscos e os danos decorrentes do uso de drogas, a partir de medidas gerais, sem reduzir o consumo 8, 7, 17-19). Portanto esse modelo não exige abstinência21 . A redução de danos não deve ser confundida com os contextos ideológicos, culturais, científicos ou políticos nos quais ela ocorre, mas é necessário assimilá-los5, 9, 13, 14. Existem alguns pressupostos éticos e teóricos que consideramos fundamentais: 1) é importante preservar a vida humana e melhorar os níveis de saúde do indivíduo e da população; 2) não existem sociedades que não fazem nenhum uso de drogas, portanto isto não deve ser ignorado ou criminalizado; 3) tanto drogas lícitas como ilícitas podem promover danos com impacto individual e/ou social; J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 365 Carlini et al. Posicionamento da Unifesp 4) as pessoas têm direito à informação sobre drogas com base em evidências científicas integradas ao contexto social; 5) os efeitos das drogas variam de acordo com características individuais, podendo influenciar seu equilíbrio e relações sociais, gerando dano individual e/ou social; 6) em decorrência da variabilidade individual e social, estratégias de baixa exigência precisam ser utilizadas; 7) quan do o in divíduo não aceita ou não consegue reduzir o uso, aplica-se o m o delo de redução da de man da de proble mas, a redução de danos, na q ual o consu m o não é ab ord ad o. Na Uniad, a estratégia de redução de danos é utilizada na prevenção terciária, dentro do tratamento formal, cuja meta ideal é a abstinência. Assim, é aplicada em uma etapa inicial e ou intermediária, visando à abstinência. Posicionamento do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) Fernanda Moreira; Dartiu Silveira O Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), fundado em 1987, é um serviço do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Ao longo de sua existência, o Proad vem desenvolvendo atividades de assistência, ensino, pesquisa e prevenção na área das dependências de substâncias lícitas e ilícitas e algumas dependências não-químicas, tais como jogo patológico e sexo compulsivo. O Proad foi a primeira instituição ligada à universidade a instituir um programa de redução de danos no Brasil. Já contávamos, desde 1990, com um programa de formação de outreach workers – hoje chamados redutores de danos –, profissionais que saíam às ruas nos locais de concentração de usuários de drogas injetáveis para ensinar-lhes técnicas de desinfecção de agulhas e seringas. Devido aos impedimentos legais, não foi possível, na época, adotar a troca de seringas e agulhas, regulamentação que ocorreu somente em 1998. Em 1994, com o estabelecimento de um convênio com o Ministério da Saúde (DST/Aids), o Proad passou a coordenar ações preventivas relacionadas ao abuso de drogas e à infecção pelo HIV em nível nacional, com subsídios da Organização das Nações Unidas (U N D CP-O N U)/Banco Mundial. Atualmente, estamos reestruturando o programa de disponibilização de seringas aos usuários de drogas injetáveis, o Programa de Redução de Danos (PRD /Proad). Nesse programa, identificamos, na rede de pacientes atendidos pelo Proad, aqueles com potencial para atuarem como 366 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 voluntários no PRD /Proad. Esses pacientes podem ser usuários de drogas injetáveis (UDI) ou ex-UDI, ou, ainda, usuários de drogas que tenham penetração na rede social dessa população-alvo. A partir dessa identificação, os redutores de danos (agentes de saúde) serão capacitados, pela equipe do Proad e por profissionais colaboradores, para abordar usuários de drogas injetáveis, distribuir seringas e agulhas estéreis e descartáveis, promovendo práticas de uso seguro de drogas e aconselhamento para a prática de sexo livre de riscos. Contamos, há cinco anos, com um grupo de acolhimento de redução de danos dentro de nossa sede. Esse grupo é voltado para usuários de drogas ilícitas, entre 18 e 25 anos, que não desejam, em princípio, interromper o uso de drogas, mas discutir formas de uso controlado com o objetivo de realizá-lo com o menor risco possível. Fre q üen te m en te o bserva m os q ue vários d os freqüentadores desse grupo acabam se engajando no tratamento, visando a abandonar o uso de drogas. Segundo dados do Ministério da Saúde, 23% dos usuários atendidos pelos PRD procuram tratamento para dependência química. Nossa instituição vem desenvolvendo trabalhos de pesquisa na área que incluem os seguintes projetos, concluídos ou em andamento: uso terapêutico de cannabis na dependência do crack; investigação do risco de contaminação pelo HIV entre usuários de crack; a overdose de cocaína na perspectiva do usuário; fatores preditivos de suicídio entre dependentes de álcool e drogas; transtorno de atenção Carlini et al. Posicionamento da Unifesp em usuários de drogas; comportamento sexual de risco para Aids entre usuários de cocaína e crack; fatores de risco para a infecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis (DST) entre dependentes; comportamentos autodestrutivos em usuários de álcool e drogas; violência familiar e abuso de álcool e drogas; fatores de risco para abuso de drogas em crianças de rua; alterações psiquiátricas e neuropsicológicas em adolescentes usuários de ayahuasca em contexto ritual religioso; alterações eletrocardiográficas em pacientes usuários de cocaína (monitorização eletrocardiográfica ambulatorial – holter); prevenção do uso indevido de drogas (conhecimentos e atitudes de coordenadores pedagógicos de escolas públicas de ensino fundamental da cidade de São Paulo) redução de danos ou guerra às drogas, comparando-se modelos de prevenção; situações relacionadas ao uso indevido de drogas nas escolas públicas da cidade de São Paulo (uma abordagem do universo escolar). Redução de danos: o ponto de vista do Proad No século passado, três ocorrências favoreceram uma nova forma de abordar o problema do uso indevido de substâncias psicoativas no mundo: em 1926, no Colégio de Médicos Britânicos/ Comitê Rolleston, começou-se a prescrever heroína e seringas para os dependentes de heroína; em 1984, na epidemia de HIV e hepatite B entre usuários de drogas injetáveis na Holanda, medidas sanitárias derrubaram o preconceito de que os dependentes químicos não responderiam a intervenções de prevenção; e houve expansão da estratégia de troca de seringas em vários países do mundo. A essa nova abordagem deu-se o nome de redução de danos. Atualmente o movimento de redução de danos (RD) vai muito além dos programas de disponibilização de seringas para usuários de drogas injetáveis. Podemos pensá-lo como um paradigma que permeia diversos aspectos do trabalho na área de uso e abuso de substâncias psicoativas. Segundo Andrade 1 , “redução de danos é uma política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas”. A posição do Proad foi considerar a redução de danos como um paradigma que permeia todo o seu trabalho. Em sua tese, Bravo 2 afirma existirem atualmente dois discursos contrapostos a respeito do consumo de drogas: o discurso tradicional, ligado a posturas repressivas, focalizando predominantemente as drogas ilegais e criminalizando o usuário – a chamada guerra às drogas; e um novo discurso, denominado redução de danos, que não tem como objetivo a eliminação total do consumo, mas a diminuição dos efeitos prejudiciais do mesmo, priorizando a saúde dos sujeitos e da comunidade em geral. Esse movimento aceita que “bem ou mal, as drogas lícitas e ilícitas fazem parte deste mundo, e escolhe trabalhar para minimizar seus efeitos danosos ao invés de simplesmente ignorá-los ou condená-los” 6 . Na RD, o critério de sucesso de uma intervenção não segue a lei do tudo ou nada, sendo aceitos objetivos parciais. As alternativas não são impostas de cima para baixo , por leis ou decretos, mas são desenvolvidas com participação ativa da população beneficiária da intervenção. O denominador comum das ações dentro da RD é a postura compreensiva e inclusiva, as abordagens amigáveis ao usuário12 . Cabe ressaltar que, na visão partilhada pelo Proad, a RD não se contrapõe ao modelo que visa à abstinência de drogas, mas o considera uma das estratégias possíveis entre várias outras. O Q u a d ro 2 compara a política de guerra às drogas com o movimento de redução de danos, tendo sido elaborado com informações sintetizadas por Wodak 22 e apresentadas por Bravo 2 . Segundo Silveira e Silveira16 , o movimento da redução de danos apresenta como objetivos gerais: evitar, se possível, que as pessoas se envolvam com o uso de substâncias psicoativas; se isto não for possível, evitar o envolvimento precoce com o uso de drogas, retardando-o ao máximo; para aqueles que já se envolveram, ajudá-los a evitar que se tornem dependentes; para aqueles que já se tornaram dependentes, oferecer os melhores meios para que possam abandonar a dependência; e se, apesar de todos os esforços, eles continuarem a consumir drogas, orientá-los para que o façam da maneira menos prejudicial possível. Dessa forma, consideramos a redução de riscos e a redução de danos partes de um mesmo continuum onde estão englobadas as estratégias de prevenção nos vários níveis – primário, secundário e terciário – bem como todas as intervenções de atendimento ao usuário, incluindo tratamento e reinserção social. Na visão do Proad, em um tratamento da dependência química pautado nos princípios da reJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 367 Carlini et al. Posicionamento da Unifesp Quadro 2 – Comparação entre a política de guerra às drogas e o movimento de redução de danos Redução de riscos e danos Guerra às drogas Aceita a inevitabilidade de um determinado nível de consumo na sociedade, define seu objetivo primário, como reduzir as conseqüências adversas desse consumo Parte do pressuposto de que é possível se chegar a uma sociedade sem drogas Enfatiza a obtenção de metas subótimas a curto e médio prazos Enfatiza a obtenção de metas ótimas a longo prazo Ação dentro da visão tradicional da saúde pública Predominância de ações jurídico-políticas, sendo restritas as de saúde Vê os usuários como membros da sociedade e almeja reintegrá-los à comunidade Vê os usuários de drogas como marginais perante a sociedade Enfatiza a mensuração de resultados no âmbito da saúde e da vida em sociedade, freqüentemente com metas definidas e objetivos determinados Enfatiza o enfoque na mensuração da quantidade de droga consumida Implementa as suas intervenções com envolvimento relevante da população-alvo As intervenções são planejadas fundamentalmente por autoridades governamentais Enfatiza a importância da cooperação intersetorial entre instituições do âmbito jurídico-político e da saúde Orientação política populista Enfatiza a prevenção e o tratamento de usuários de drogas, fazendo com que as atividades de repressão se dirijam basicamente ao tráfico em grande escala Enfatiza a eliminação da oferta de drogas sem admitir a existência de diferentes padrões de uso das mesmas Julga que as atividades educativas referentes às drogas devam ser de natureza factual, ter credibilidade junto à população-alvo, basear-se em pesquisas e traçar objetivos realistas As atividades educativas veiculam uma mensagem única: Não às Drogas Inclui drogas lícitas como o álcool e o tabaco Restringe-se ao uso de drogas ilícitas Dá preferência à utilização de terminologia neutra, não-pejorativa e científica Dá preferência à utilização de termos veementes e valorativos dução de danos, os usuários são acolhidos dentro das suas demandas e possibilidades. Isso inclui a possibilidade de modificação do padrão de uso e da substituição da droga de abuso por outra com a qual o usuário consiga estabelecer um padrão de uso menos danoso, sem excluir a possibilidade da abstinência. A substituição de drogas pode incluir tanto drogas lícitas (prescrição de metadona para usuários de opióides e de benzodiazepínicos para dependentes de álcool) quanto ilícitas (acompanhar o uso de maconha que usuários de crack e cocaína fazem no sentido de tentar controlar sua fissura ). As metas intermediárias são destinadas aos pacientes que não desejam ou não conseguem, temporariamente ou não, abandonar o uso de drogas. A busca pelo uso moderado ou controlado da substância em questão é, em princípio, uma estratégia possível no atendimento ao dependente de qualquer substância. No enfoque da RD, a individualidade do usuário é considerada e ele participa da construção do seu modelo de recuperação, podendo ainda vir a atuar como redutor de danos na recuperação de seus pares (outros usuários). O Proad considera essencial a continuidade das pesquisas sobre essas novas formas de intervenção. 368 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Ao colocarmos o status legal das drogas em uma posição secundária nesta discussão, estamos assumindo uma posição bastante clara: no tocante à legislação, o Proad defende a descriminalização do usuário de qualquer droga, assumindo que o ato de consumir drogas, por si só, não pode ser considerado um delito. Somente poderia ser penalizado o usuário que eventualmente viesse a com e t er u m cri m e 1 1 . C a b e esc l are c er q u e descriminalizar diz respeito a despenalizar (não mais tornar alvo de sanção penal) o indivíduo que usa ou porta a droga para uso próprio, não importando se é um usuário ocasional ou um dependente. Diferentemente, legalizar refere-se a medidas mais amplas que despenalizam igualmente a produção e a comercialização dos tóxicos4 . O Proad considera a descriminalização das drogas uma importante medida de redução de danos: “a descriminalização do uso de drogas, em nosso entender, poderia ser, por um lado, fator de integração do usuário na sociedade e, por outro, acabaria com o estigma marginalizante da droga” 4 . Dentro da mesma linha de coerência, o Proad coloca-se frontalmente contra intervenções coercitivas junto a usuários, como a justiça terapêutica. Essa proposta “baseia-se numa relação Carlini et al. Posicionamento da Unifesp crime e castigo, obrigatoriedade e punição, numa filosofia que ingenuamente acredita que uma lei criminal é capaz de per se inibir o uso”, não diferenciando o dependente químico do usuário ocasional, além de propor uma forma de tratamento que não admite a possibilidade da recaída como fenômeno inerente ao processo de recuperação 10 . Quanto às práticas de redução de danos na comunidade, os benefícios da prática de disponibilização de seringas e demais insumos aos usuários de drogas injetáveis, de eficácia amplamente comprovada, levam o Proad a considerar imprescindível sua adoção dentro de um modelo de intervenção abrangente. Com relação à distribuição de cachimbos para usuários de crack, faltam ainda pesquisas que justifiquem ou condenem a prática. Na opinião do Proad, a redução de danos não deve se restringir às drogas ilícitas, defendendo no entanto que as muitas iniciativas já existentes devam ser reforçadas, como as campanhas para evitar a direção de veículos sob efeito de álcool e a restrição de venda de bebidas alcoólicas a menores e em estradas. Indiscutivelmente, a redução de danos é um tópico importante no campo das dependências químicas, seja como paradigma de referência, seja como conjunto de estratégias de intervenção. O Proad propõe ainda que a RD seja incluída no currículo de todos os cursos na área de dependências químicas. Defende ainda o estímulo à produção de conhecimento no campo da redução de danos. Segundo Carlini-Cotrim 3 , “houve um aumento de quase 12 vezes, entre as décadas de 1960 e 1980, na quantidade de artigos publicados (no jornal O Estado de São Paulo ) sobre drogas, álcool e tabaco”. Tal interesse da mídia, por outro lado, não se traduziu em melhoria da qualidade das reportagens, que muitas vezes veiculam informações distorcidas e tendenciosas. O Proad reconhece, assim, a necessidade de um trabalho contínuo junto à mídia, visando a reduzir os danos relacionados à veiculação de informações equivocadas. Referências 1. Andrade TM, Dourado MI, Farias AH, Castro BG. Redução de danos e redução da prevalência de infecção pelo HIV entre usuários de drogas injetáveis em Salvador-Bahia. In: A contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/AIDS entre UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e redução de danos. Ministério da Saúde. Brasil. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e AIDS. Brasília: Ministério da Saúde 2001; 95-114. 2. Bravo O A. Discurso sobre drogas nas instituições do Distrito Federal [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2000. 3. Carlini-Cotrim B. A escola e as drogas: o Brasil no contexto internacional [tese]. Psicologia Social. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1992. 4. Costa PF. Aspectos legais do consumo. In: Bucher R. As drogas e a vida. São Paulo: EPU; 1988, p. 39-45. 5. Des Jarlais DC. Harm reduction: a framework for incorporating science into drug policy [editorial]. American Journal of Public Health 1995; 85(1): 10-1. 6. Harm Reduction Coalition. 2002-2003[WEBPA GE]. URL: http:// w w w.harmreduction.org/ Webpage acessada em: 7/11/ 2002. 7. Heather N, Wodak A, Nadelmann E, O’Hare P. Psychoactive drugs & harm reduction: from faith to science. British Library; 1992, p. 3-34, . 8. Kreitman N. Alcohol consumption and the prevention paradox. British Journal of Addiction 1986; 81: 353-63. 9. Leuw E, Marshall IH. Between prohibition and legalization: the dutch experiment in drug policy. New York: Kugler; 1994. 10. Maierovitch W. Justiça terapêutica – entrevista Dr. Walter Maierovitch. Webpage acessada em: 10/08/2003; http:// w w w. psicolo gia-o nlin e . org . br/a t u alid a d es/ materias.cfm?id_area=460. 11. Maierovitch W. Drogas sem lei no Brasil. Correio Brasiliense. Brasília, quinta-feira,17 de janeiro de 2002. Webpage acessada em: 10/08/2003; http://www2.correioweb.com.br/ cw/2002-01-17/mat_28927.htm. 12. Marlatt G A. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999. 13. Nadelmann EA. Thinking seriously about alternatives to drug prohibition. Daedalus 1992; 121(3): 85-132. 14. Nadelmann EA. Commonsense drug policy. Foreign Affairs 1998; 77(1): 111-26. 15. Newcombe R. The reduction of drug related harm. A conceptual framework for theory, practice and research. In: O’Hare P et al ., editors. The reduction of drug related harm. London: Routledge; 1992. 16. Silveira EDX, Silveira DX. Um guia para a família. Brasília: Presidência da República - Secretaria Nacional Antidrogas; 2001. 17. Strang J. Drug use and harm reduction: responding to the challenge. In: Heather N, Wodak A, Nadelmann E, O’Hare PA, editors. Psychoactive drugs & harm reduction. London: Whurr Publishers; 1993, p. 3-20. 18. Stimson GV. Has the kingdom averted an epidemic of HIV – infection amongst drug injectors? [editorial]. Addiction 1996; 91(8): 1085-8. J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 369 Carlini et al. Posicionamento da Unifesp 19. Stimson GV, Choopanya K (in press). Global perspectives on drug injecting. In: Stinson GV, des Jarlais DC, Ball A, editors. Drug injecting and HIV infection: global dimensions and local responses. 20. World Health Organization Collaborative Study Group. An international comparative study on HIV seroprevalence and risk behaviours. Bull On Narc 1993; 45(1): 19-46. 21. Wodak A, Sauders W. Harm reduction means what choose it to mean [editorial]. Drug and Alcohol Review 1995; 14: 269-71. 22. Wodak A, Lurie P. A tale of two countries: attempts to control HIV among injecting drug users in Australia and the United States. Journal of Drug Issues 1997; 27(1): 117-34. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Ana Cecília P. R. Marques Rua Napoleão de Barros 925/térreo CEP 04024-002 – São Paulo-SP Tel.: (11) 5539-0155 ramal 163 370 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Redução de danos e tratamento de substituição: posicionamento da Rede Brasileira de Redução de Danos Harm reduction and substitution treatment: the position of Brazilian Harm Reduction Network Edward MacRae1; Monica Gorgulho2 Resu m o A Rede Brasileira de Redução de Danos (Reduc) acredita que a questão das drogas deve ser entendida de maneira ampla, que inclua os aspectos sociais, políticos e econômicos, ao lado daqueles que enfocam a saúde em sentido estrito. Similarmente, riscos e danos devem também ser entendidos de maneira ampla, cuidando-se para não impor definições demasiadamente estritas sobre o que seja redução de danos. A redução de danos deve ser baseada em uma abordagem simpática, isenta de moralismo e centrada em um trabalho comunitário que, embora possa propor novos padrões e modos de uso, reconheça a importância da escala de valores do usuário e de seu conhecimento sobre drogas. Embora favorável, em princípio, a tratamentos de substituição e de manutenção, consideramos que, na ausência do uso de heroína de porte significativo no Brasil, restam ainda neste país muitas questões a serem abordadas sobre o tema. Quanto ao tratamento de substituição, o presente estado de ilegalidade e intolerância legal e cultural em relação ao uso da Cannabis vem impossibilitando a continuação de estudos sobre sua aplicabilidade como substituto do crack . Uma das medidas mais importantes a serem tomadas seria a descriminalização do uso de drogas e a discussão ampla, informada e democrática de medidas alternativas de controle da oferta dessas substâncias. Unitermos redução de danos; tratamento de substituição; tratamento de manutenção; descriminalização; crack; Cannabis; heroína; metadona Su m m a r y Rede Brasileira de Redução de Danos (Reduc) believes that the drug question must be understood in all its breadth, including the cultural, social, political, economic concerns alongside those strictly focused on health. Similarly, risks and damages must also be understood broadly and care must be taken not to impose too restrictive a definition on harm reduction. Harm reduction must be based on a sympathetic, nonjugemental approach, centred around community work that although it may propose new patterns and modes of use, recognises the importance of the users´ values and knowledge about drugs. Although sympathetic in principle to substitution and maintenance treatments, we consider that in the absence of a sizeable heroin problem in Brazil, many questions on the subject are yet to be further discused in this country. As for substitution tratment for other substances, the present state of legal and cultural intolerance towards the use of Cannabis has been rendering it impossible to carry out further research on its use as a substitute to crack. One of the most important measures yet to be taken would be the decriminalization of drug use and widespread informed democratic discussions on alternative measures of control over drug supply. Uniterms harm reduction; substitution treatment, maintenance treatment; decriminalisation; crack cocaine; Cannabis; heroin; methadone 1 Vice-presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos; doutor em antropologia social; professor adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA); pesquisador associado do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad). 2 Mestre em Psicologia; diretora da Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA). J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 371-374, 2003 371 Redução de danos e tratamento de substituição: posicionamento da Rede Brasileira de Redução de Danos A discussão sobre tratamento de substituição ainda é incipiente no Brasil, dificultando o debate até mesmo dentro da instituição que, por natureza, muito se interessa por ele, a Rede Brasileira de Redução de Danos (Reduc). Não temos ainda um posicionamento sobre detalhes específicos referentes a esta prática, mas somos claramente favoráveis a que o tratamento de substituição seja considerado, quando relevante, alternativa de atendimento à toxicomania, em sua proposta ampla. Nestas condições, temos algumas reflexões a oferecer para a discussão do tema. Primeiramente, consideramos que a redução de danos é um conceito em aberto, ao qual podem ser atribuídos diversos significados. Ilustra isso o fato de diferentes autores identificarem suas origens nas mais diferentes épocas, oscilando entre a Antigüidade, as décadas de 1920 ou 1980. A Reduc entende o conceito menos como uma série de diretrizes específicas para condutas no atendimento a toxicômanos e mais como postura de princípios em relação aos inúmeros problemas relacionados à maneira como nossa sociedade vem abordando a questão das drogas. Concebemos que as noções de risco e dano devam ser entendidas em sua relatividade. As ciências sociais, que já vêm tratando exaustivamente d estes te m as, tê m m ostra d o co m o a hierarquização de riscos em geral sempre depende do ponto de vista de quem os está avaliando e, mais importante de tudo, que se deve ter em vista a impossibilidade de se prever com certeza os resultados a médio e longo prazos tanto de práticas individuais quanto políticas. Assim, autores como a antropóloga Mary Douglas consideram que mais do que tentar prever todos os desfechos para determinadas ações, a estratégia mais sensata seria reforçar a resiliência da sociedade, ou seja, a maneira de se manter a sua natureza original através da adaptação a novas situações1 . Portanto consideramos da maior importância manter uma postura que preserve a diversidade de concepções sobre a questão, seus problemas e possíveis soluções. Preocupam-nos os esforços de alguns setores que, respaldados no prestígio social adquirido pelo discurso médico, buscam definir de maneira categórica, a partir de um ponto de vista estrito, quais os riscos apresentados pelo uso de drogas e quais as maneiras de enfrentá-las que possam, com legitimidade, vir a ser adotadas. A Reduc chama atenção para a importância da ampla experiência que vem sendo acumulada pelo movimento social de redução de danos. Este, além do crescente valor que vem adquirindo em nível in372 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 MacRae & Gorgulho ternacional, já congrega no Brasil vários milhares de colaboradores dos mais diversos estratos sociais e profissionais, agrupados ao redor de duas associações nacionais, 17 redes regionais e mais de cem programas de redução de danos espalhados por todo o país. Chama atenção também para o fato de o trabalho que vem sendo realizado por este movimento ser atualmente um dos mais estudados e avaliados no campo de saúde pública. Consolidam-se, assim, as suas posições nos debates que vem travando com outras categorias, muitas das quais, além de carecerem de maiores experiências nesta área específica, até recentemente se posicionavam contrárias a ele, chegando, em certos casos, a tentar desqualificar ações e discursos de seus proponentes. A Reduc considera que as questões referentes ao uso de drogas não podem ser restritas a discussões sobre condutas a serem adotadas em relação a indivíduos que apresentam quadros de toxicomania ou o risco de contraírem o HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Atualmente os graves problemas de segurança pública, entre os quais as crises que vem sofrendo o Rio de Janeiro, assim como outras cidades brasileiras, nos fornecem uma lembrança constante da variedad e d e d a n os n e c essi t a n d o d e re d u ç ã o o u minimização. Revelam também a imbricação dos seus vários aspectos, o que torna fúteis as tentativas de abordá-los como se fossem estanques. Consideramos que a humanidade sempre usou substâncias psicoativas com as mais variadas e importantes finalidades, e que não seria viável, ou até desejável, que seu uso fosse descartado, como preconizam alguns segmentos mais radicais da sociedade (lembremos que vinho, café e anestésicos, por exemplo, são substâncias psicoativas essenciais à nossa vida física, social ou cultural). Partimos do posicionamento de que a abordagem mais indicada para a questão das drogas seja aquela que prioriza a redução dos danos decorrentes deste uso, que acreditamos ser inevitável para a maioria das pessoas. Entendemos que o bom senso dita que a redução dos danos, concebidos de forma ampla e incluindo aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e sanitários, deva ser o objetivo principal a ser atingido por uma política sobre drogas. Cremos que os controles da oferta e do consumo devam ser concebidos somente como possíveis estratégias pontuais a serem aplicadas nos casos em que seja demonstrada de maneira científica a real necessidade de se restringir, desta forma, a liberdade do conjunto dos membros da sociedade. Consideramos também arbitrária a diferenciação feita atu- MacRae & Gorgulho Redução de danos e tratamento de substituição: posicionamento da Rede Brasileira de Redução de Danos almente entre as drogas lícitas e ilícitas e propomos que todas devam ser contempladas numa política para as drogas (e não antidrogas). Esta deve ser regida por considerações de cunho estritamente democrático, assim como devem ser as medidas implementadas na sua execução. Concebemos a questão da toxicomania e de outros problemas decorrentes ou associados ao uso de substâncias como sendo de natureza biopsicossocial, levando-nos a criticar a expressão dependência química como sendo demasiadamente redutora. Isso porém não significa que rejeitemos a noção de que, certas dependências têm seu lado orgânico e que, no caso dos opióides, por exemplo, deve-se enfrentar a questão da tolerância e, ainda, que uma das maneiras de se fazer isso seja através do uso de substâncias que atuem como substitutas. No entanto existem várias questões a serem ainda debatidas em maior profundidade no que concerne a tratamento de substituição, como, por exemplo: a) o tratamento de substituição é válido somente para drogas que provocam dependência física, ou podemos considerá-lo útil também para tratar casos em que a dependência seja mais de ordem psicológica ou social; b) deve-se pensar em tratamento de manutenção (onde se prevê a continuação em longo prazo do uso de uma substância causadora de dependência, talvez até a droga originalmente usada pelo paciente, heroína, por exemplo) ou somente numa substituição provisória por outra droga da mesma categoria. Não se pode deixar sem resposta a suspeita levantada, muitas vezes, contra certas drogas de substituição, como a metadona, acusadas de fazer mais mal do que as originalmente usadas pelo paciente; c) programas de substituição devem ter alto ou baixo limiar? Consideramos que caracterizam baixo limiar: facilidade de entrada, orientação à redução dos danos, ter como objetivo principal o alívio de sintomas e fissura e a melhoria na qualidade de vida dos pacientes, assim como a oferta de uma gama de opções de tratamento. Programas de alto limiar seriam aqueles em que é mais difícil ingressar, ou com critérios de seleção exigentes, orientados para a abstinência (incluindo abstinência de metadona ou outras drogas de substituição), inflexibilidade nas opções de tratamento, adoção de controles (de urina, etc.) para detecção de uso, política de expulsão rígida para recaídas, psicoterapia ou aconselhamento compulsórios; d) um dos problemas sérios com vários programas de substituição é o seu uso como forma de controle social, chantageando-se o usuário com a ameaça de cortar a sua prescrição da droga de substituição se ele incorrer em deslizes, como recaídas, violência ou tráfico. Isso nos parece agredir a própria dignidade do ser humano; e) que fazer quando as drogas de substituição m ais rec o m e n d áveis são ilícit as, c o m o a Cannabis, por exemplo? A Reduc considera necessário questionar a primazia freqüentemente atribuída ao saber médico. Assim, suas propostas sempre enfatizam, além da necessidade de combater a exclusão social, a im portância do protagonismo dos usuários de dro gas tanto através de sua participação na conceituação e discussão dos problemas quanto na implementação das ações. Consideramos também da maior importância envolver as comunidades usuárias nesse trabalho, promovendo padrões de uso de menor risco. No decorrer dos anos a experiência de redução de danos vem demonstrando a importância de se estabelecer um diálogo verdadeiro com os usuários de drogas, evitando estabelecer uma posição de confronto com seus valores centrais (ou seja, evitando trazer mensagens puramente negativas ou repressivas sobre o uso de substâncias psicoativas). Devemos, ao invés, buscar contribuir para modificações pontuais em certos aspectos das práticas de uso, não deixando de reconhecer o valor geral do seu conhecimento empírico de questões relacionadas ao uso, lícito ou ilícito, dessas substâncias. Sabemos que há algum tempo os centros médicos de maior importância vêm adotando posturas deste tipo. Assim a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, tem realizado pesquisas com populações indígenas para aprender com elas as possibilidades de uso medicinal de uma grande variedade de plantas nativas de suas regiões. Outras pesquisas sobre o uso de cocaína e seus derivados também se voltaram para o que se poderia chamar a cultura da coca . Discordamos das generalizações que preconizam a abstinência do uso de drogas como a meta ideal. Clínicos e pesquisadores têm constatado que freqüentemente o uso de drogas ilícitas consiste numa espécie de automedicação psiquiátrica por parte de usuários que encontram neste recurso uma maneira de aliviar seu sofrimento, e a sua interrupção pode levar a agravamentos de sua condição. ConsideraJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 373 Redução de danos e tratamento de substituição: posicionamento da Rede Brasileira de Redução de Danos mos que tal recurso deva ser entendido de maneira respeitosa, e não rejeitado sumariamente com a imposição de programas de tratamento voltados unicamente para a abstinência. Desta forma, em muitos casos, tratamentos de substituição ou manutenção seriam recomendáveis. A Reduc questiona também a classificação automática do uso de drogas ilícitas como uma patologia per se. Consideramos que o status legal de muitas substâncias psicoativas é mais bem entendido a partir de análises de cunho histórico e social do que médico. Assim, a clínica não seria um ponto adequado a partir do qual realizar-se-iam estudos sobre o uso de drogas. Por isso a necessidade de se fazer pesquisas na população em geral, como levantamentos domiciliares ou escolares. Igualment e , d e v e m -se e vi t ar g e n erali z a ç õ es e recomendações sobre políticas de drogas baseadas em premissas puramente clínicas. São conhecidos os perigos da medicalização de problemas de ordem social. A organização da sociedade não pode ser pautada somente por considerações de saúde pública. Um dos fatores que mais dificultam o trabalho de redução de danos, assim como de outras abordagens de prevenção, é o status ilegal de diversas drogas. Além de fomentar a arbitrariedade e a violência, a criminalização do uso leva a um maior isolamento do usuário, dificultando o seu encaminhamento a tratamentos de saúde, nos casos em que isso seria necessário, e o seu acesso a vários outros direitos que lhe deveriam ser assegurados como cidadão. Também torna mais difícil a prevenção através do diálogo franco e da promoção de métodos mais seguros de uso. Em relação a tratamentos de substituição, dificulta sobremaneira a busca de substâncias alternativas ou regimes de uso da droga original que sejam mais adequados às suas necessidades sociais ou de saúde. Assim, por exemplo, tem MacRae & Gorgulho sido muito difícil dar continuidade às indicações iniciais, vindas tanto da clínica quanto do trabalho de campo realizado com as populações usuárias, de que o uso da Cannabis poderia ser um bom auxiliar no tratamento de algumas droga-dependências. O único projeto nesse sentido, montado com respaldo acadêmico no Brasil, foi realizado no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp/EPM 2, mas, apesar de os estudos apontarem resultados positivos, têm faltado ousadia técnica e política a outras instituições para replicá-los perante o atual clima de intolerância. Acreditamos que o Brasil cometeu grave equívoco ao ceder parte de sua soberania, submetendose a uma convenção mundial que padroniza, de maneira rígida e difícil de alterar, a abordagem da questão das drogas. Hoje já existe uma forte discussão sobre a eficácia das convenções internacionais para o controle de drogas, em um reconhecimento de que o modelo de tratamento tailor-made, que já se mostrou o mais eficaz em relação ao usuário de drogas, deve valer também para as nações, cada qual com suas especificidades e problemas, cada qual com suas escolhas e soluções. Entendemos, com isso, que o tratamento de substituição é mais um dos problemas que têm sido definidos não por suas características próprias, mas exclusivamente por definições e encaminhamentos generalistas, que tanto já provaram sua eficácia discutível. Finalmente, consideramos que algumas das medidas mais importantes a serem tomadas sejam a revogação da criminalização do uso nãomedicamentoso de drogas e a abertura de amplas discussões so bre form as alternativas d e controlar o seu mercado. Isso possibilitaria um verdadeiro e necessário avanço na discussão sobre a real eficácia dos modelos de atenção dirigidos ao uso e abuso de substâncias psicoativas, incluindo-se os tratamentos de substituição. Referências 1. Douglas ME, Wildavsky A. Risk and Culture, an essay on the selection of technological and environmental dangers. Berkley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1982. 2. Labigalini Junior E. O uso de Cannabis por dependentes de crack : um exemplo de redução de danos. In: Mesquita F, Seibel S (orgs.). C onsumo de drogas, desafios e perspectivas. Hucitec: São Paulo, 2000. p. 173-84. Jornal Brasileiro de Psiquiatria 374 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Endereço para correspondência Mônica Gorgulho Rede Brasileira de Redução de Danos (Reduc) Alameda Madeira 258/604 – Alphaville CEP 06454-010 – Barueri-SP Tel: (11) 4195-0335 e-mail: [email protected] Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo André Malbergier; Arthur Guerra de Andrade; Sandra Scivoletto Resu m o O modelo de redução de danos vem sendo discutido intensamente em vários países do mundo, entre os quais o Brasil. Este estudo, através de uma revisão de artigos listados no Medline, pretende embasar o parecer do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo sobre o tema. O bservou-se que existem evidências suficientes na literatura para se considerar o modelo de redução de danos, baseado em programas de intervenção comunitária, acesso a seringas estéreis e a tratamento, eficaz como estratégia de prevenção da infecção pelo HIV em usuários de drogas injetáveis em vários países do mundo. O modelo de redução de danos vem sendo estudado com resultados promissores em projetos destinados a reduzir danos associados ao uso excessivo de álcool em populações específicas. O uso do modelo em outras situações ainda necessita de evidência empírica. Unitermos redução de danos; HIV; drogas; álcool Su m m a r y The harm reduction model has been discussed in many countries around the world, including Brazil. This study, using a Medline review, intends to give support to elaborate a critical review on the subject by the Department of Psychiatry of the Faculdade de Medicina da Universidade de S ão Paulo. There are sufficient evidences in the literature to consider the harm reduction model, based on community-based intervention, access to sterile syringes and treatment, effective as a strategy to prevent HIV infection in injecting drug users in several countries in the world. The harm reduction model has also been studied, with encouraging results, as a strategy to reduce harm associated to binge alcohol use in specific populations. The use of the model in other situations still needs more empirical evidence. Uniterms harm reduction; HIV; drugs; alcohol Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea), Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 375-380, 2003 375 Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo O modelo de abordagem do uso de drogas segundo a ótica de redução de danos vem sendo discutido nos últimos anos em vários países do mundo, entre os quais inclui-se o Brasil. Este modelo passou a estar em evidência no final da década de 1980 como uma resposta ao aumento da prevalência da infecção pelo vírus da Aids (HIV) em usuários de drogas injetáveis (UDI) em vários países do mundo. Neste texto, serão discutidos os principais dados da literatura, visando a embasar parecer, baseado em evidências, a respeito do tema. A Aids foi inicialmente detectada em UDI na cidade de Nova York no final de 1981. Todavia os primeiros casos não geraram grande interesse e preocupação entre os profissionais de saúde pública. Naquela época, prevaleceu a idéia de que estes casos eram restritos a determinada área geográfica, que seu número, comparativamente ao dos homossexuais, era pequeno, e ocorriam em uma população estigmatizada, marginalizada e sem poder político. Esta percepção foi rapidamente modificada após o desenvolvimento dos testes para detecção de anticorpos para o HIV. Apesar de haver poucos casos de doença estabelecida entre os UDI de Nova York, os testes revelaram que aproximadamente metade desta população já estava infectada pelo HIV20. Estudos em diversas regiões do mundo confirmaram a possibilidade de rápida disseminação do HIV na população de UDI. Para exemplificar, Milão, Nova York e Viena apresentaram crescimento da seroprevalência entre UDI ao redor de 20% ao ano. Em outras áreas, co m o Edim burgo e Bangcoc, a disseminação foi extremamente rápida, com a seroprevalência crescendo entre 40% e 50% em dois anos20 . N o Brasil, alguns estudos apontam para alta prevalência da infecção pelo HIV em usuários de drogas injetáveis. Esta prevalência varia de 36% a 57% em grandes cidades da região Sudeste do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Santos)7, 16, 23 . Após a percepção do crescimento acelerado dos casos de Aids em UDI, os profissionais de saúde pública se defrontaram com a necessidade de estudar e elaborar estratégias mais eficazes de abordagem desta população. Poucos anos após o aparecimento da epidemia, a comunidade homossexual começou a se mobilizar e se proteger. Este fato teve como conseqüência a tendência de estabilização do número de casos nesta população. Por outro lado, o 376 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Malbergier et al. número de casos em UDI em vários países não parava de crescer. Este crescimento veio reforçar a opinião de alguns autores de que o UDI seria refratário às campanhas de prevenção e educação e incapaz de alterar o seu comportamento de risco 3 . Este assunto ainda gera controvérsias, havendo também diversos estudos que mostram que novas formas de abordagem têm se mostrado eficazes na prevenção da transmissão do HIV em UDI e que esta população tem diminuído a freqüência de adoção de comportamentos de risco 4 . Em vários países do m un do, a tradicional dicotomia do tudo ou nada , que tem a total abstinência como meta necessária para a abordagem do usuário, vem sendo substituída por uma visão mais pragmática: Se você não consegue parar de usar, use da maneira menos danosa possível . O u seja, mesmo que o usuário não consiga deixar de usar, os profissionais de saúde podem ajudá-lo a diminuir a morbidade e a mortalidade relacionadas ao consumo de drogas. A preocupação com a disseminação do HIV entre os UDI estimulou o aparecimento de novas estratégias para atacar o problema. Provavelmente a mais popular destas estratégias é a chamada harm reduction ou redução de danos. Esta é uma política que visa a diminuir ao máximo os efeitos negativos ou lesivos do uso de drogas. Esta abordagem tem suas raízes em modelos de saúde pública com uma visão mais humanista e sem preconceitos. Contrasta, assim, com o modelo de abstinência total, que, segundo alguns autores, teria suas raízes na repressão e no paternalismo médico-religioso25 . Esta política é originária da Inglaterra, onde tal abordagem parece ter participado do controle mais eficaz da epidemia34 . O chamado modelo inglês foi desenvolvido a partir de cinco conceitos básicos: 1) o foco tem sido transferido da dependência propriamente dita ou do problema da droga per se para os problemas associados a determinadas maneiras de usar drogas, como, por exemplo, a injeção. Há autores que defendem que as drogas não são o grande problema a ser atacado, e sim a transmissão do HIV; 2) o usuário, ao contrário do que muitos acreditam, pode ser racional. Ele se preocupa com sua saúde, responde às campanhas educativas e informativas e está disposto a adotar medidas preventivas quando estas são adequadas a sua cultura e sua linguagem; Malbergier et al. Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 3) o foco volta-se para a saúde e o corpo e afasta-se da psicopatologia; 4) os profissionais que desejam trabalhar nesta área tam bém precisam mudar sua abordagem. Os serviços devem ir às comunidades a fim de trazer os usuários para o tratamento ou assessorá-los em seu próprio meio através de capacitação de pessoas ligadas às associações de auto-ajuda e da própria comunidade. Isto requer a formação de educadores de saúde e muitas vezes o alistamento de ex-usuários para esta tarefa; 5) redução da hostilidade e da confrontação e o estímulo para que se estabeleçam relações de cooperação entre os usuários e os serviços de tratamento 33 . Algumas condições básicas precisam ser satisfeitas para que o novo modelo seja eficaz 6 : • capacitação técnica dos profissionais na área de drogas e também de Aids; • ampla disponibilidade de preservativos; • acesso gratuito a serviços de tratamento sem longas filas de espera; • am pla disponibilidade de seringas e outros equipamentos. Este modelo teve grande penetração na Europa. Inglaterra, Holanda, Alemanha, França e Escócia adotaram políticas de saúde pública na área de drogas/Aids com base nos conceitos acima discutidos32 . Fora da Europa, a Austrália foi um dos países que prontamente assumiram tal modelo no combate à infecção pelo HIV em UDI. E m 1 9 8 7- 1 9 8 8 , n os Es t a d os U n i d os, o N ational Institute on Drug Abuse (Nida – órgão máximo no assunto de drogas naquele país) começou a desenvolver projetos de prevenção de Aids em UDI, com base em programas de intervenção na comunidade. Estes projetos representaram uma mudança qualitativa nos programas financiados por este órgão. Em seguida, o Instituto de Medicina dos Estados Unidos lançou relatório concluindo que programas de trocas de seringas e agulhas são eficazes em prevenir a infecção pelo HIV e não aumentam o uso de drogas ilícitas22 . A repressão ao uso e a prevenção do uso de drogas como metas exclusivas começam a abrir espaço para programas de abordagem do usuário como ele é, isto é, usando drogas. N ão se oferece so mente ajuda para que parem de usar, mas também para que usem da maneira mais segura possível. Estas abordagens menos tradicionais foram se tornando cada vez mais freqüentes como modelos de atenção à população de UDI, já que torna-se cada vez mais evidente que os UDI não estão sendo atingidos pelo modelo tradicional do sistema de saúde. Embora não haja estatísticas confiáveis nesta área no Brasil, dados norteamericanos revelam que somente 10% a 17% dos UDI estão em contato com o sistema de saúde 2, 31 . Soma-se a este fato o contexto social em que os UDI geralmente vivem e que podem acabar por prejudicar seu acesso e compreensão das informações e os passos necessários à mudança de comportamento 29, 35 . A partir deste momento, criam-se vários programas de intervenção nas comunidades. O modelo de intervenção baseia-se em programas desenvolvidos em Chicago por uma equipe liderada pelo médico Patrick Hughes, na década de 1970. Neste modelo, ex-usuários de drogas foram utilizados como linha de frente na tentativa de combater uma epidemia de heroína na cidade. Na década de 1980, este modelo foi adaptado para a prevenção da Aids em UDI. Esta estratégia utiliza-se de ex-usuários pertencentes às comunidades-alvo. Os ex-usuários são preferencialmente indivíduos conhecidos e com boa penetração na população que será abordada. Como estes indivíduos são vistos como líderes ou modelos que conseguiram obter mudanças em seus comportamentos de risco, eles possuem entrada facilitada no grupo. Atingindo as redes de sociabilidade e usando os métodos característicos de comunicação de cada grupo, visa-se a gerar respostas coletivas de mudança de hábitos30 . Este modelo de intervenção por ex-usuários ( outreach model) na comunidade tem se mostrado um meio eficaz de prevenir a infecção pelo HIV em uma população que não é atingida pelos serviços tradicionais de saúde. Um exemplo deste tipo de abordagem vem sendo desenvolvido pela Universidade de Illinois, em Chicago, com sucesso na redução da freqüência de comportamentos de risco em UDI. O ato de compartilhar seringas era relatado por 100% dos usuários no início da intervenção. Este número caiu para 14% após quatro anos de programa. A taxa de aquisição da infecção pelo HIV caiu de 8% para 4% ao ano36 . Nestes últimos anos, observou-se que investimentos maciços em repressão, e não em educação e prevenção, não obtiveram impacto consiJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 377 Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo derável na prevalência do uso de drogas em várias regiões do mundo. A prevenção do uso de drogas (visando à sua erradicação) permanece como opção de longo prazo para evitar a transmissão da Aids. Todavia a urgência do momento criou novas formas mais imediatas e pragmáticas de atacar a questão. A idéia de que o uso seguro de drogas pode ser uma forma viável de prevenção de Aids neste grupo começa a se tornar realidade e está sendo posta em prática com sucesso em vários países do mundo. A importância de programas comunitários e do envolvimento da população no problema foi ressaltada por Mann em assembléia da Organização Mundial da Saúde (O MS) em Genebra: “Em programas relacionados à Aids, há uma relação direta entre a força, diversidade e envolvimento da comunidade e de organizações não-governamentais e o sucesso que pode ser alcançado” 19 . Mais de 15 anos de pesquisa sobre prevenção de HIV/Aids em UDI, usuários de crack e em seus parceiros sexuais têm mostrado que programas baseados na comunidade são eficazes. Pesquisas cumulativas em 23 locais, acompanhando 18.144 usuários de drogas (13.164 UDI e 4.980 usuários de crack) reportam que, de três a seis meses após participarem de algum tipo de intervenção preventiva, 72% dos UDI ou pararam de se injetar ou reduziram a freqüência de injeção. Dos que continuaram se injetando, quase 60% pararam ou d i m i n u íra m a re u t ili z a ç ã o ou compartilhamento de seringas. Q uase 25% dos indivíduos avaliados iniciaram tratamento no seguimento destes estudos27 . O utros estudos também confirmaram que a abordagem comunitária pode ser um fator de incentivo à procura e à manutenção de tratamento 15 . A entrada no tratamento é, em si, um fator de prevenção do HIV nesta população, já que vários estudos vêm mostrando que indivíduos em tratamento apresentam menores taxas de injeção de drogas. Um estudo mostrou que usuários de drogas que não estavam em tratamento tinham seis vezes mais chance de se infectarem pelo HIV dos que os em tratamento 24 . Programas de troca de seringas também estão sendo utilizados, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, como medidas preventivas com o intuito de diminuir a proliferação do HIV na população de UDI. Em vários países o programa tem sido associado à diminuição da freqüên378 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Malbergier et al. cia do ato de compartilhar equipamentos11, 14 . Este efeito é, em parte, devido ao aumento da disponibilidade de seringas nestes locais. Além de trocar seringas e equipamentos usados por novos, estes programas oferecem informação, referência para tratamento e contato com profissionais da área, potencializando os efeitos preventivos desta iniciativa. Os possíveis efeitos negativos associados à troca de seringas, como o aumento do consumo de drogas injetáveis ou o estímulo aos usuários de drogas não-injetáveis a se injetarem, não foram observados. Projetos de acesso a seringas estéreis como parte de um programa de prevenção de infecção pelo HIV em UDI têm se mostrado muito úteis na abordagem de populações de difícil acesso e de alto risco para infecção. As avaliações destes programas indicam que eles são efetivos na redução do uso injetável de drogas. Estudo em N ova York mostrou redução de 70% na incidência de HIV atribuída a programas de acesso a seringas estéreis10 . Em 29 cidades com programas estabelecidos de acesso a seringas estéreis, a prevalência de HIV caiu, na média, 5,8% por ano. Por outro lado, esta prevalência aumentou 5,9% por ano em outras 51 cidades que não têm este tipo de programa12 . Também estudos de custo/efetividade mostra m q u e est es pro gra m as previ n e m n o vas infecções e poupam gastos com os cuidados médicos do tratamento para indivíduos infectados13 . O programa de acesso a serin gas estéreis promove: • aumento do número de usuários de drogas que procuram e se mantêm em tratamento se estes programas estão disponíveis; • disseminação de informações sobre redução de riscos para infecção pelo HIV, material para mudança de comportamento e referências para realização de testagem sorológica e tratamento; • redução da freqüência de injeção e compartilhamento de materiais de injeção; • redução do número de seringas contaminadas em circulação na comunidade; • aumento da disponibilidade de seringas estéreis na comunidade. Um complemento ou alternativa (onde programas de trocas de seringas são proibidos) é a descontaminação de seringas. Esta prática é estimulada em vários programas de prevenção e tem sua eficácia comprovada com uma lavagem com hipoclorito de sódio ou três com água1 . A distri- Malbergier et al. Redução de danos: Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo buição de hipoclorito de sódio é um dos aspectos enfatizados tanto em programas de troca de seringas como em programas comunitários17 . Estudos de custo/efetividade têm reportado que programas estruturados de prevenção de HIV baseados na comunidade auxiliam na redução de futuros custos associados aos cuidados e tratamento da infecção pelo HIV28 . Também os tratamentos para dependência de drogas são custoefetivos em reduzir o uso de drogas e os custos sociais e de saúde associados quando comparados a não tratar ou a encarcerar os usuários26 . Em resumo, prevenir a disseminação do HIV através do uso injetável de drogas requer uma abordagem ampla e sincronizada com base em alguns princípios fundamentais8 : • assegurar coordenação e colaboração entre os provedores de serviços aos UDI, seus parceiros sexuais e seus filhos; • assegurar acesso e qualidade das intervenções; • reconhecer e superar o estigma associado ao uso injetável de drogas; • adequar os serviços para as características dos UDI. As estratégias de prevenção devem: • prevenir o início de uso de drogas; • usar programas comunitários para atingir usuários fora de tratamento; • ampliar o acesso a programas de tratamento de qualidade; • instituir programas de prevenção de HIV em cadeias e penitenciárias; • prover cuidados médicos para UDI infectados pelo HIV; • prover aconselhamento para redução de risco e testagem para UDI e parceiros sexuais. Conclui-se, através das evidências da literatura, que o modelo de redução de danos, com base em programas de intervenção comunitária, acesso a seringas estéreis e a tratamento, é eficaz como estratégia de prevenção da infecção pelo HIV em UDI em vários países do mundo. As evidências sobre o uso do modelo de redução de danos na abordagem do uso de drogas ainda não têm o mesmo consenso que o seu uso como fator de prevenção do HIV em UDI. Entre esses novos usos, a estratégia de redução de danos como abordagem do uso excessivo de álcool, principalmente em adolescentes e universitários, é a que mais apresenta estudos e evidências de eficácia na literatura. Vários estudos controlados m ostram que adolescentes e universitários submetidos à intervenção focada em discutir os riscos do uso excessivo (grande quantidade em pequeno espaço de tempo) mudam seu comportamento, assumindo uma postura mais responsável quanto ao uso de álcool, diminuindo episódios de embriaguez, brigas e acidentes5, 9, 21. A abordagem de redução de danos como estratégia de tratamento nos leva à antiga discussão das propostas de tratamento baseadas na abstinência total versus beber moderado. Ainda longe de chegarmos a um consenso, parece, todavia, haver um grupo de pacientes que poderia se beneficiar de uma proposta de beber moderado, estratégia considerada um modelo baseado em reduzir danos associados ao uso de álcool 18 . Referências 1. Abdala N, Gleghorn A A, Carney JM, Heimer R. Can HIV-1contaminated syringes be disinfected? Implications for transmission among injection drug users. J Acquir Defic Syndr 2001; 28(5): 487-94. 2. A lcabes P, Vlahov D, A nthony JC . 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Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Arthur Guerra de Andrade Departamento de Psiquiatria Faculdade de Medicina da USP Rua Ovídio Pires de Campos s/n – 1º andar Consolação CEP 01060-970 – São Paulo-SP Tel.: (11) 3062-9029 380 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Redução de danos: uma abordagem de saúde pública Harm reduction: a public health approach Beatriz Carlini-Marlatt; Dagoberto Hungria Requião; Andrea Caroline Stachon Resu m o O presente artigo aborda a visão de redução de danos (RD) endossada pelo Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas (Ipad), reconhecendo a falta de uma definição universal do termo. Para o Ipad, a RD é uma abordagem útil para minimizar as conseqüências de diversos comportamentos de risco, principalmente na área do abuso de substâncias psicoativas. O presente artigo caracteriza RD e a diferencia da abordagem de algumas visões simplistas e maniqueístas erroneamente identificadas com a mesma. Segundo o Ipad, cinco pontos devem ser enfatizados quando se define redução de danos: a RD é uma alternativa de saúde pública para os modelos criminal e de doença; a RD reconhece a abstinência do uso de substâncias psicoativas como ideal, mas aceita alternativas intermediárias; a RD é uma abordagem que incentiva e incorpora a participação daqueles que sofrem com o abuso dessas substâncias (abordagem de baixo para cima); baseia-se no pragmatismo empático, em oposição ao idealismo moralista; e promove acesso a serviços de saúde de baixa exigência . Finalmente, o Ipad rejeita a identificação de RD com legalização de drogas ilegais, defende a inclusão de drogas legalizadas na sua abordagem (como álcool e tabaco) e critica tentativas de incluir ações de RD em grupos sociais que não se ajustam à abordagem, como é o caso de alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental, grupo de baixo risco de uso de substâncias, ou mensagens veiculadas universalmente via meios de comunicação de massa. O artigo é concluído apresentando-se dados norte-americanos recentes que documentam a dificuldade de se conseguir apoio para projetos de pesquisa dedicado a entender comportamentos de risco não-aceitos pelo status quo . Unitermos redução de danos; saúde pública; legalização; pesquisa Su m m a r y The term Harm Reduction lacks an universal definition. In this article, Ipad (Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas) presents its understanding of the term as an useful approach to minimize the consequences of risky health behaviors, particularly in the substance abuse domain. According to Ipad, five main features should be emphasized on a HR approach: HR is a public health alternative to the moralistic and disease models of drug use and addiction; HR recognizes abstinence as an ideal outcome but accepts alternatives that reduce harm; HR has emerged primarily as a bottom-up approach based on addict advocacy, rather than a top-down policy promoted by drug policy makers; HR promotes low-threshold access to services as an alternative to traditional, high-threshold approaches; HR is based on the tenets of compassionate pragmatism versus moralistic idealism. Finally, Ipad rejects the identification of HR with drug legalization, defends that legal substances should be included and prioritized in HR initiatives and is critical of attempts to overgeneralize HR approaches as beneficial for any social group. For Ipad, HR is a helpful strategy to be used where harm exists and not a universal panacea. The article concludes by discussing some of the current difficulties on getting support for doing research on ways to reduce harm among groups that display behaviors not accepted by mainstream values, using recent North American cases as an illustration. Uniterms harm reduction; public health; research; substance abuse Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas (Ipad), Pontifícia Universidade Católica do Paraná. J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 381-386, 2003 381 Carlini-Marlatt et al. Redução de danos: uma abordagem de saúde pública “A redução de danos não é nova na medicina. Afinal, não está longe do conselho hipocrático aos jovens médicos de primum non nocere – em primeiro lugar, não cause danos3 .” D avi d A bra ms e D avi d Le w is, 1 9 9 8 Introdução O Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas (Ipad) da Pontifícia Universidade C atólica do Paraná defende e valoriza a abordagem de redução de danos (RD) como uma alternativa viável, humana e de resultados positivos já demonstrados para vários comportamentos de risco à saúde. No entanto, a abordagem de RD não é elemento central ou definidor das ações do Ipad, nem vista pelos seus profissionais como a panacéia universal que resolverá todos os impasses e desafios desta área da saúde mental. Assim sendo, os autores deste texto consideramos adequado, neste breve documento, caracterizar redução de danos e discutir alguns dos mitos e estereótipos que cercam esta abordagem como uma maneira de delinear mais claramente nossa posição. Redução de danos: abordagem de trabalho vs. movimentos sociais O Ipad acredita que os princípios da redução de danos são freqüentemente úteis para abordar comportamentos de risco, incluindo uso de substâncias psicoativas. Ele também reconhece que esses princípios vêm sendo utilizados muito antes de a expressão redução de danos ter sido criada. Na verdade, o que vem sendo chamado de RD é, em grande parte, a utilização de um realismo pragmático e de um bom senso que boa parte da humanidade emprega quando se defronta com a impossibilidade de promover mudanças abruptas e radicais em situações e comportamentos arriscados. Nesse sentido, o Ipad tem se preocupado em fazer distinção entre a abordagem de redução de danos e a história da expressão redução de danos. Esse termo foi cunhado por movimentos sociais liderados por usuários de drogas em busca de uma maior aceitação social dos seus estilos de vida, preocupados com a crescente mortalidade por Aids entre eles. Carrega, assim, no seu bojo, a bandeira de afirmação política desse grupo social. 382 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 O Ipad defende a abordagem de redução de danos segundo os princípios apresentados a seguir, acolhe e simpatiza com movimentos sociais de usuários de drogas que lutam por maior tolerância e menor estigma social, defendendo seus direitos de acesso a serviços de saúde. No entanto, essa acolhida não obriga a que o Ipad concorde com algumas bandeiras defendidas por setores desse movimento, como a legalização de substâncias ilegais ou o relaxamento de legislações de controle para substâncias legais. Abordagem de redução de danos defendida pelo Ipad A redução de danos é uma alternativa de saúde pública para os modelos criminal e de doença A redução de danos oferece uma alternativa prática para os modelos moral/criminal e de doença. Diferentemente dos proponentes do modelo moral – que vêem o uso de drogas como ruim ou ilegal e defendem a redução de oferta (via punição e proibição) –, a proposta de redução de danos desvia a atenção do uso de drogas em si para as conseqüências ou para os efeitos do comportamento aditivo. Tais efeitos são avaliados principalmente em termos de serem prejudiciais ou favoráveis ao usuário de drogas e à sociedade como um todo, e não por o comportamento ser considerado, em si, moralmente certo ou errado. Além disso, em contraste com o modelo de doença – que vê a dependência como uma patologia biológica/genética e promove a redução da demanda como meta primordial da prevenção e a abstinência como única meta aceitável de tratamento –, a redução de danos oferece uma ampla variedade de políticas e de procedimentos que visam a reduzir as conseqüências prejudiciais do com portamento aditivo. A redução de danos aceita o fato de que muitas pessoas usam drogas e apresentam outros comportamentos de alto risco, e que visões idealistas de uma sociedade livre de drogas não têm quase nenhuma chance de se tornarem realidade3. A redução de danos reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos A redução de danos não é contra a abstinência. Os efeitos prejudiciais do uso de drogas po- Carlini-Marlatt et al. Redução de danos: uma abordagem de saúde pública dem ser colocados num continuum , como as diversas temperaturas indicadas em um termômetro. Q uando as coisas ficam muito quentes ou perigosas, a redução de danos propõe baixar o fogo a um nível mais moderado. A abordagem de redução gradual estimula os indivíduos com comportamento excessivo ou de alto risco a dar um passo de cada vez para reduzir as conseqüências prejudiciais de seu comportamento. A abstinência como meta final reduz muito ou elimina totalmente o risco de danos associados ao uso excessivo de drogas. Nesse sentido, a abstinência é incluída co mo o ponto final ao longo de um continuum , que varia de conseqüências excessivamente prejudiciais a conseqüências menos prejudiciais. Ao colocar os efeitos prejudiciais do uso d e d ro g as e m u m c o n t i n u u m , e m v e z d e dicotomizá-lo como legal ou ilegal, ou indicativo de ausência ou presença de doença aditiva, os defensores da redução de danos incentivam qualquer movimento rumo à sua diminuição como um passo na direção certa3 . A redução de danos é uma abordagem de baixo para cima, baseada na defesa das necessidades do usuário, ao invés de uma abordagem de cima para baixo, promovida por formuladores de políticas A estratégia de redução de danos visa a capacitar e a dar voz aos pacientes e clientes de serviços de saúde. Procura minimizar o diferencial de poder entre aqueles que administram e prestam serviços e aqueles que são contemplados por eles, para dar voz nas decisões de como, onde e de que maneira as pessoas são tratadas3 . A redução de danos promove acesso a serviços de baixa exigência como uma alternativa a abordagens tradicionais de alta exigência Em vez de estabelecer a abstinência como um pré-requisito de alta exigência para receber tratamento ou outro tipo de assistência, a abordagem de redução de danos procura reduzir obstáculos, tentando facilitar e garantir o envolvimento daqueles que precisam de ajuda dos serviços disponíveis. Exemplo dessa postura de baixa exigência é abordar os indivíduos onde eles se encontram , ao invés de onde eles deveriam estar , ou seja, serviços de outreach work que oferecem ajuda ao usuário no próprio ambiente em que as drogas são consumidas3 . A redução de danos baseia-se nos princípios do pragmatismo empático versus o idealismo moralista Comportamentos prejudiciais são um fato da vida, e a abordagem de redução de danos aceita esta realidade, não muito agradável, como uma premissa básica. Uma vez aceita essa premissa, a meta torna-se de pragmatismo empático: o que pode ser feito para reduzir o dano e o sofrimento dos indivíduos e da sociedade? O pragmatismo adotado pela RD não pergunta se o comportamento em questão é certo ou errado, bom ou ruim, doentio ou saudável, preocupa-se, isto sim, com o manejo das questões cotidianas e das práticas reais, sendo sua validade avaliada por resultados concretos3. Temas polêmicos associados à abordagem de redução de danos “A redução de danos pode ser excessivamente simplificada, e, assim, considerada um movimento extremista diabólico. Alternativamente, pode ser vista como um novo projeto conceitual abrangente para integração do que há de melhor em medicina, saúde pública e política de prevenção3” O fato de o termo RD ter sido cunhado a partir de movimentos sociais tem conseqüências importantes no debate acadêmico especializado. Talvez a mais importante delas seja a falta de uma definição única do termo: RD tem sido definida a partir da ótica daqueles que a defendem ou a criticam, e não a partir de uma conceituação fundamentada em pesquisa publicada em literatura especializada. Nesse contexto, o Ipad, enquanto órgão de assistência, pesquisa e prevenção, vê como pertinente o esclarecimento do que entende ser redução de danos, como foi feito nas páginas anteriores deste texto, assim como explicitar sua posição em relação a temas polêmicos que têm sido associados a RD. Nas próximas páginas será apresentada a visão do Ipad sobre a relação entre RD e legalização de drogas, RD e prevenção primária (ou uniJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 383 Redução de danos: uma abordagem de saúde pública versal) e pertinência da generalização da RD e comportamentos de risco que não sejam o uso de drogas ilegais. Redução de danos e legalização de drogas ilegais O Ipad não endossa a legalização de substâncias ilegais no Brasil como estratégia de reduzir o dano associado a seu consumo. No entender de seus profissionais, políticas públicas de RD devem ter como parâmetro medidas que reduzam o dano associado ao uso de drogas de modo coletivo, adotando-se uma perspectiva de saúde coletiva. Assim, embora seja possível que a legalização de substâncias hoje consumidas e vendidas clandestinamente favoreça alguns usuários de drogas, que seriam menos estigmatizados e teriam acesso mais fácil a serviços de saúde e mais difícil ao sistema carcerário, é difícil imaginar que tal medida beneficiasse de modo coletivo nossa sociedade. O raciocínio desenvolvido por aqueles que defendem a legalização de substâncias para reduzir danos é baseado na visão de que esta permitiria melhor controle social e governamental das substâncias que atualmente são consumidas ilegalmente, de que aproximaria usuários hoje temerosos de procurar ajuda dos serviços de tratamento, de que permitiria a geração de impostos que poderiam ser usados para educar jovens sobre os riscos do consumo de substâncias psicoativas. Se esse tipo de lógica pode ter sentido em países europeus, sua base de sustentação torna-se bastante frágil ao cruzar o Oceano Atlântico rumo ao Sul. Aqui no Brasil ainda lutamos para garantir controles mínimos para as substâncias que são legalizadas, como álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos. 384 Carlini-Marlatt et al. ticas de controle mais efetivas para minimizar os danos das substâncias psicoativas legalizadas em nossa sociedade é motivo suficiente para termos muitas reservas em relação à tentativa de legalização de outras substâncias. N o entanto, o Ipad vê com simpatia a diminuição das penas legais associadas ao uso de substâncias de pequeno impacto na saúde coletiva, como é o caso principalmente da maconha. N este caso, parece que o dano produzido pela punição tem sido maior do que o causado pelo co m portamento, na medida em que rotula e pune como criminosos jovens que poderiam ser mais úteis para a sociedade se cumprissem somente uma pena de caráter social pelo seu comportamento inadequado. Redução de danos e prevenção primária Há também quem defenda que, numa abordagem de redução de danos, os jovens devem ser ensinados desde pequenos a usar drogas da maneira menos arriscada possível, pois no caso de um dia, mais tarde, tornarem-se usuários, saberão ao menos evitar alguns riscos e minimizar alguns danos. Nessa linha de raciocínio, defende-se orientar jovens nas escolas a beber com moderação; usar seringas descartáveis, no caso de quererem injetar alguma substância; evitar o uso de sacos plásticos para armazenar inalantes, no caso de quererem cheirar cola ou acetona, evitando assim o risco de morte por asfixia se ficarem inconscientes. O Ipad entende que propostas como essas não estão alinhadas com a abordagem de RD, da forma como endossamos. Nossas leis que procuram regulamentar o acesso ao álcool por menores de idade são raramente cumpridas (ou mesmo lembradas); a legislação de controle das propagandas de tabaco em eventos esportivos só tem sido cumprida em eventos de menor importância, sendo informalmente revogadas em competições esportivas de calibre internacional; a tentativa de diminuir acidentes por motoristas alcoolizados esbarra no simples fato de que a existência de bafômetros é quase tão rara quanto a presença de policiais efetivamente conscientes do seu papel educacional de multar motoristas imprudentes nas estradas. O próprio termo redução de danos é base para explicar este não-alinhamento: para reduzir danos é preciso que eles sejam uma possibilidade concreta. Assim, bebedores pesados e de risco, que vivenciam problemas eventuais devido a seu comportamento, podem se beneficiar de programas que sugerem beber com moderação e ensinam como diminuir as chances de acidentes e outras conseqüências negativas associadas ao uso abusivo do álcool. Mas para aqueles que não bebem ou o fazem de modo muito esporádico, esse tipo de orientação é não só inapropriada como potencialmente promotora de danos. O fato de que a sociedade civil brasileira e os nossos governos não têm conseguido gerar polí- Da mesma forma, ensinar a importância de se trocar seringas para um grupo de jovens sem ne- J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Carlini-Marlatt et al. nhum indicativo prévio de uso ou alto risco de se tornarem usuários é inócuo e de certa forma irresponsável, pois passa a mensagem de que injetar substâncias é algo tão corriqueiro que é preciso orientar como fazê-lo nas escolas. Generalização da abordagem da redução de danos a drogas legais Um outro tipo de polêmica nesta área, que requer um posicionamento claro de entidades e profissionais, é a necessidade de definir a abrangência da abordagem de redução de danos: trata-se de algo somente válido para drogas ilegais, onde o termo se originou, ou é possível estendêlo para drogas legalizadas? O Ipad entende que redução de danos não é só nem principalmente uma proposta de enfrentamento do uso de drogas ilegais, mas é uma abordagem de saúde pública para comportamentos de risco à saúde, inclusive uso de álcool e tabaco. O tabagismo, mesmo entre os setores mais conservadores da área de tratamento, tem sido alvo de uma abordagem clássica de RD: o uso de adesivos e gomas de mascar com nicotina. Embora quase nenhum profissional negocie com seu paciente que a abstinência seja a meta do tratamento do tabagismo, o uso de adesivos e gomas de nicotina vem possibilitando uma estratégia gradual de mudança rumo à abstenção. Com esses recursos, o fumante não tem que interromper o uso da nicotina – substância da qual é dependente –, mas somente mudar sua via de administração. A nicotina continua sendo gradualmente liberada, em quantidades negociadas, visando a uma readequação de hábitos e cotidiano até que se possa interromper a administração da droga. Da mesma forma, as estratégias de motorista designado , muito usadas nos EUA, no Canadá e na Europa, são exemplares de RD. É aceito quase como inevitável que muitas pessoas vão beber pesadamente em situações de festa, e procura-se negociar a diminuição dos riscos e das conseqüências de se associar este comportamento com direção de veículos. Assim, campanhas educacion ais i n c e n t iva m j o ve ns a se al t ern are m n a abstenção de álcool por uma noite e dar carona para seus amigos embriagados. Em retorno, este jovem poderá beber à vontade em uma outra ocasião, pois um dos jovens que foi beneficiado com sua carona cumprirá desta vez seu compromisso de não beber. Redução de danos: uma abordagem de saúde pública Palavras finais: redução de danos e pesquisa Para encerrar a contribuição do Ipad para este debate, parece importante comentar um pouco o tão usado argumento de que RD é uma abordage m interessante, m as ain da m uito p ouco pesquisada para ser adotada. O primeiro ponto a ser considerado neste tipo de raciocínio é que uma série de outras abordagens vem sendo amplamente utilizada, não só no Brasil como no exterior, com pouquíssima pesquisa, com muito mais condescendência. Grupos de auto-ajuda do tipo AA ou NA, ou mesmo comunidades terapêuticas, são exemplos importantes neste sentido. Um segundo ponto é, a nosso ver, bem mais relevante: parece haver evidências de que projetos de pesquisa que se propõem investigar abordagens que possam beneficiar os grupos mais marginalizados da sociedade vêm enfrentando problemas sérios de financiamento, principalmente no país que financia 85% de toda a pesquisa na área de drogas no mundo: os EUA. De fato, a comunidade científica tem sido surpreendida, dia após dia, com uma intervenção do atual governo norte-americano nas linhas de pesquisa sem precedentes desde a era do mccarthismo, nos anos 1950. Vejamos então alguns exemplos: • em dezembro de 2002, o dr. Willian Miller, autor do livro Entrevista Motivacional , foi convidado a compor o painel de especialistas do National Institute of Drug Abuse (Nida), que assessora este instituto no julgamento dos milhares de projetos de pesquisa que são enviados anualmente para renovação ou início de financiamento. Ele obviamente aceitou o convite, considerado de grande honra, embora com remuneração modestíssima. Dias mais tarde, um funcionário da Casa Branca ligou pessoalmente para o dr. Miller e o sabatinou sobre suas visões políticas em relação a temas considerados controversos: aborto, pena de morte, programa de troca de seringas, apoio a tratamentos baseados em fé religiosa e, finalmente, seu voto para presidente na última eleição. Aparentemente, o dr. Miller não respondeu às perguntas da maneira como seria desejável pelo funcionário da Casa Branca, pois logo após o telefonema ele foi desconvidado a compor o painel do Nida4 ; • em abril deste ano, o New York Times publicou artigo sobre a censura de certos termos J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 385 Carlini-Marlatt et al. Redução de danos: uma abordagem de saúde pública em projetos de pesquisa na área de Aids. Segundo o periódico, vários cientistas dessa área receberam alertas de funcionários do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHHS) ou de membros do Congresso sobre a importância de evitar certas expressões em grants. Termos como trabalhadores do sexo , homens que fazem sexo com homens e troca de seringas seriam considerados inapropriados e praticamente anulariam as chances de financiamento dos mesmos. O bviamente, o porta-voz do DHHS, em entrevista ao New York Times, afirmou que não havia nenhum documento neste sentido, mas cientistas de várias parte dos EUA relataram experiências muito parecidas, sempre por comunicação verbal1 ; • no mesm o 18 de abril, a revista científica Science reforça os achados do New York Times, comentando uma visita do DHHS à Universidade da Califórnia, em São Francisco. Segundo a Science , o pesquisador visitado foi convidado a limpar a redação de seu projeto de pesquisa e, consistente com o que o New York Times relatou, substituir expressões como troca de seringas e prostitutas para aumentar as chances de aprovação de financiamento do projeto 2 ; • finalmente, durante o mês de julho, pesquisadores nos EUA foram surpreendidos com mais uma tentativa de controle político sobre temas de pesquisa: o dr. Victor Hesselbrock, presidente da Research Society on Alcoholism (RSA), lançou carta de apelo a todos os cientistas norte-americanos, no dia 21 de julho, no sentido de enviarem moções de apelo a seus senadores contra a desaprovação de quatro projetos de pesquisa já aprovados pelo comitê de especialistas do National Institute of Health (NIH), via votação de emenda no Congresso Nacional. Com uma agenda repleta de temas mais apropriados para serem discutidos na Câmara Federal, os deputados federais dedicaram a tarde do dia 10 de julho à discussão e à votação de uma emenda que confere ao Congresso poder de revogar aprovação de projetos de pesquisa sobre sexualidade. Mais assustador ainda o fato de esta emenda, sem precedentes na história da ciência norte-americana, só ter sido derrotada por dois votos. Assim, em poucas semanas, será discutida no Senado e poderá se tornar realidade. Em tempos de intolerância, uma abordagem tolerante e pragmática, como a redução de danos, precisa urgentemente de mais pesquisa para se afirmar como uma alternativa viável. E essas pesquisas têm sido conduzidas com rigor e sucesso, mas somente quando abordam populações e substâncias de fácil digestibilidade política , como jovens universitários que bebem pesadamente e adultos tabagistas. O u quando abordam epidemias que há muito tempo deixaram de respeitar os cordões sanitários que separam os grupos sociais de comportamentos pouco convencionais, como é o caso da epidemia da Aids. Muito ainda precisa ser pesquisado e nós, do Ipad, temos completa ciência disto. Mas temos ciência também de que as barreiras neste sentido são grandes e vêm crescendo, e que, enquanto isto, teremos que conviver com uma certa frustração e uma grande esperança de que o cenário político internacional mude, rumo a uma maior abertura a abordagens criativas que possam eventualmente ser respostas efetivas aos desafios da saúde coletiva na área de substâncias psicoativas. Referências 1. Goode E. Certain words can trip up Aids grants, scientists say. New York Times, 2003. 2. Kaiser J. Studies of gay man, prostitutes come under scrutinity. Science 2003; 300: 403. 3. Marlatt G A. Redução de danos: estratégias pragmáticas para comportamentos de risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. 4. Zitner A. Critics contend Bush team is stacking advisory panels. Los Angeles Times, 2002. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Dagoberto Hungria Requião Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua Imaculada Conceição 1.155 – Prado Velho CEP 80215-901 – Curitiba-PR Tel.: (41) 271-1515 386 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos Harm reduction and substitution therapy: the Brazilian Harm Reduction Outreach Workers Association point of view Marcelo Araújo Campos; Domiciano J. Ribeiro Siqueira Resu m o A Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda) entende redução de danos como movimento social para a busca de um estado de maior bem-estar social para todos, usuários ou não de drogas legais ou ilegais. As terapias de substituição (TS) são naturalmente entendidas como parte do repertório de ações de redução de danos ao transigir com o uso de drogas e não ter como meta única a abstinência. Sua implantação no Brasil para drogas ilícitas – principalmente cocaína e maconha – demanda desconstrução das atitudes antidrogas, inclusão e normatização da redução de danos e das TS na rede SUS e reordenamento da política nacional de drogas. Nesse sentido a Aborda pode ser um ator importante para a discussão dos marcos teóricos e da sua operacionalização em campo, além da necessária atuação de controle social e advocacy dos direitos das pessoas que usam drogas. Dado o enorme prejuízo que a atual perseguição penal das pessoas que usam drogas ilícitas implica para elas e para a sociedade em geral, soa pouco efetivo reduzir as terapias de substituição (ou a redução de danos em geral) a atos de promoção da saúde stricto sensu , sendo imprescindível incluir nas discussões da sua apropriação pelo SUS alternativas para a necessária regulamentação, em algum grau, da produção, do comércio e do consumo dessas drogas. O melhor efeito que a implantação das TS poderia trazer seria a substituição do discurso e da atitude antidrogas por um novo paradigma de maior inclusão social e tolerância. Unitermos drogas; redução de danos; terapia de substituição; movimentos sociais Su m m a r y Aborda understands harm reduction as a social movement towards a state of greater welfare for everyone, whether they use drugs or not. Substitution therapies (ST) are naturally considered part of the harm reduction set of strategies, inasmuch as drug use is tolerated and abstinence is not the only objective. To implement those illicit drugs therapies in Brazil – mainly cocaine and marijuana – the antidrug attitude must be deconstructed, harm reduction and ST must be included and normalized in the Public Health System (SUS, in Portuguese), and national drug policy must be reordered. In that sense Aborda can play an important part in the discussion of both its theoretical benchmarks and field operations, besides the necessary social control activities and drug users rights advocacy. Given the enormous damages the actual criminalized persecution represents to those who use illicit drugs and for society as a whole it does not seem effective to merely consider substitution therapies (or harm reduction in general) as health promotion activities. As the discussions about its appropriation by the Public Health System continues, it is necessary to address alternatives to an indispensable regulation to some extent of production, sales, and consuming of those drugs. The best consequence of ST implementation would be the substitution of the antidrug discourse and attitude by a new paradigm of greater social inclusion and tolerance. Uniterms drugs; harm reduction; substitution therapy; drug policy; advocacy Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda). J . b r a s . p s i q u i a t r. vol. 52 (5): 387-393, 2003 387 Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos É preciso su p erar o m o m e n t o e m q u e as dro g as são ini m i g as d a vi d a O conceito de redução de danos (RD), na história da Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda), foi estratégia de saúde , passou por política de saúde e agora é melhor expresso como movimento social 1 . Em que pese a utilização, no senso comum, da expressão redução de danos para qualquer situação onde exista busca de diminuição de prejuízos, ou mesmo ao se referir especificamente a (eventuais ou potenciais) prejuízos resultantes do uso de psicoativos, a Redução de Danos (escrita com iniciais em maiúsculas), como movimento social, superou o paradig ma sanitarista, sendo agora entendida como busca de estado de maior bem-estar social para todos, com ou sem uso das drogas, inclusive daquelas tidas como ilegais. Da mesma forma, as terapias de substituição ganham, na RD, interpretação pelo movimento social, ou seja, são lidas e construídas também pelo viés ideológico. O objetivo deste texto, contudo, não é promover debate ideológico, mas, atendendo a convite do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), apresentar o entendimento, pela Associação Brasileira de Redutores de Danos, das terapias de substituição como uma das estratégias para reduzir danos, naturalm ente permeadas pelos valores eleitos pelo movimento social de RD, esclarecendo como estes valores implicam mais que colorido ideológico: eles são, não raro, definidores da eficácia das ações, notadamente daquelas construídas com o público-alvo dos Projetos de Redução de Danos (PRDs) – pessoas em geral que usam drogas e que, pelo menos em princípio (a grande maioria), não estão inseridas, com indicação ou interessadas em propostas terapêuticas para o uso de drogas em si. A RD contribui na busca daquele estado de maior bem-estar social para todos, indo além e até, se necessário, contradizendo o discurso sanitarista onde este discurso estiver orientado exclusivamente para o controle de doenças, sem buscar saúde integral, ou distanciado dos direitos humanos. O bjetivos da substituição Na Aborda, as ações de redução de danos (assi m co m o q ual q uer co nstrut o teórico so bre 388 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Campos & Siqueira psicoativos), são pensadas a partir de análise da relação triangular droga / sujeito / contexto , consideran d o o perar m o dificações q ualitativas ou quantitativas em quaisquer dos vértices, de modo a obter resultado final de melhor relação risco/ benefício para quem usa e para a coletividade. O mesmo raciocínio aplicamos às terapias de substituição: elas devem ser fator de equilíbrio biopsicossocial na relação tríplice entre o sujeito, a(s) droga(s) e o(s) contexto(s) de sua vida. Portanto elas incluem a troca (quantitativa, qualitativa ou em modo de usar) de drogas legais ou ilegais por outras, legais ou não, que melhorem o grau de compatibilidade do uso pelo sujeito em cada contexto. Tal compatibilidade inclui busca de satisfação do desejo do sujeito, a conservação de sua saúde e a harmonia com a coletividade. A intervenção para reduzir danos busca convivência mutuamente respeitosa entre as pessoas que usam drogas e suas redes de relações, sejam familiares, no trabalho, afetivas, etc. A atitude de disposição em construir habilidades para aquela compatibilização, reunidas sob o nome genérico estratégias de redução de danos (incluindo terapias de substituição), e que transige com a condição de usuário de drogas, é universalmente aplicável e, a nosso ver, direito das pessoas que usam drogas – ilegais inclusive. Considerando a magnitude do seu potencial benefício – para estas pessoas, suas redes de contatos e para a sociedade em geral –, acreditamos que a omissão das alternativas de redução de danos pelos responsáveis (diretos ou indiretos) pelo atendimento de pessoas que usam drogas é passível de questionamento ético, caracterizando imperícia ou negligência. Pelo olhar da Aborda, a RD inclui terapias de substituição (TS) como uma das opções com nível de exigência mais compatível com as necessidades, capacidades e desejos das pessoas que usam drogas do que a abstinência; é propiciadora de construção de vínculo com estas pessoas, e alternativa para aquelas que não têm demanda ou desejo de parar de usar não serem privadas de medidas que lhes propiciem melhor qualidade de vida e menos riscos, para si próprias, sua rede de relações e sociedade em geral. Diferentemente de Marllat, que coloca como um dos princípios que “a redução de danos reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam danos” 4 , na Abor- Campos & Siqueira Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos da não só não consideramos a abstinência a única alternativa válida como sequer a temos como sempre necessária ou desejável. Embora não persiga a abstinência, a RD também reconhece a utilidade das terapias de substituição como alternativa para pessoas em situação de uso problemático/danoso de drogas e com desejo de interrompê-lo: estas pessoas podem ter nas terapias de substituição um amparo eficiente no controle de sofrimento nas fases iniciais da abstinência (diminuição ou abolição de desconforto da abstinência) ou como manutenção da abstinência, como acontece, por exemplo, com a oferta de nicotina inalatória, oral ou transdérmica para tabagistas em abandono do hábito. Tanto para os que buscam abstinência como para os que não a têm como objetivo, as terapias de substituição podem atuar como estratégia de escalada inversa: migração de padrões de uso e relações mais problemáticas com psicoativos para padrões mais harmônicos e menos problemáticos, ou seja, de deslocamento de situação de abuso rumo ao uso . Aceitar que este movimento é possível implica também o rompimento com postulados como o que considera o uso problemático incompatível com transição para o uso controlado (ex.: alcoolismo é uma doença incurável ), quando se sabe que tal transição é possível3 . N o caso, por exem plo, da cocaína, não se podem desprezar as implicações da observação de que, no caso da substituição da forma de assimilação (e talvez da quantidade) do psicoativo –, quando sugerimos uso inalado substituindo injetável – não está sendo colocada a abstinência como única meta para todos os usuários de cocaína desejosos de diminuir ou evitar os riscos do uso injetável, ainda que para muitos a substituição seja considerada etapa na busca de interrupção do uso. Considerar falha terapêutica o sujeito que se mantém dependente da cocaína inalada seria subestimar o benefício de não fazer uso injetável. Possíveis contribuições da Aborda para a implantação e a implementação de terapias de substituição no Brasil N ão é possível desvincular as ações de saúde co nstruí d as e i m p lan ta d as co m usuários d e álcool e outras drogas das ações de fomento ao ativismo, protagonismo e busca de inclusão social d estas p essoas, d e m aneira social m en te transformadora, tanto para superação ou diminuição da sua vulnerabilidade aos agravos à sua qualidade de vida como para eficácia das próprias ações de resgate ou promotoras de sua saúde. As terapias de substituição podem ser mais q ue intervenção co m p ortam ental e m m uitos sentidos. Sua medicalização , ao reduzi-las a atos de saúde stricto sensu, assim como algumas correntes entendem a redução de danos, subestima o seu valor mobilizador para superação do paradigma antidrogas e implica atraso de transformações benéficas para a sociedade e para as vidas das pessoas que usam drogas. A discussão a seguir tenta apresentar as contribuições da Aborda tanto como movimento social quanto como prestação de serviços. Ativismo (a Aborda como movimento social de RD) O norte da RD é dignidade com qualidade de vida, não consideradas necessariamente incompatíveis com a condição de usuário de álcool ou outras drogas. Para a maioria das pessoas que usam cocaína e maconha, os fatores causadores de má qualidade de vida são mais relacionados à sua condição de usuários de drogas do que aos efeitos dos psicoativos em si, e isso deve ser considerado mesmo para pessoas com uso problemático ou dependência daquelas substâncias. O movimento social trabalha pela construção da imagem dos usuários de droga como não sendo necessariamente merecedores de cuidados de saúde e questiona as atitudes que os rotulam como dignos de punição e execração. Consideramos o conceito de dependência tão relativo e impreciso quanto o de loucura, e mesmo pessoas que se identificam como ou são rotuladas de dependentes nem sempre apresentam indicação de tratamento. A própria desqualificação como marginal, doente ou criminoso é fonte de estresse e condição neurotizante para pessoas que usam drogas, especialmente daquelas hoje tidas como ilegais no Brasil, e um dos estereótipos a serem combatidos com ativismo (incluindo ações de advocacy dos direitos das pessoas que usam drogas). Esse componente de advocacy deve ser considerado no delineamento das políticas de saúde para o reconhecimento, normatização e disponibilização, no SUS, das TS, assim como de todas as estratégias de RD. J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 389 Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos N esse caminho rumo à institucionalização da saúde pública que contempla TS e RD, é papel da Aborda/ M ovimento Social demandar e auxiliar na desconstrução de situação de conflito com a lei das orientações de substituição de drogas ilegais por outras também ilegais, e no reconhecimento destas ações como eficazes, eticamente legítimas e valiosas. É sabido que a TS, ao disponibilizar uma fonte regulada de acesso a drogas, reduz problemas decorrentes da falta de controle sobre a qualidade do produto (p. ex.: risco de overdose ou de danos por contaminantes) e da interação das pessoas que as usam com o mercado ilícito e violento. Há estudos, por exemplo, com a metadona, demonstrando como sua entrada no mercado ilícito e a venda com concentração e pureza alteradas são deflagladoras de problemas com sua qualidade e crimes. O mesmo vem acontecendo com a buprenorfina em vários contextos 2, 5, 6 . Há aqui o desafio de discutir TS no Brasil para, por exemplo, cocaína e maconha, incluindo um possível papel de disponibilização destas mesmas drogas (como já se faz com nicotina na medicina privada), com qualidade controlada pelo Estado e em contexto regulado e normatizado no Sistema Único de Saúde (SUS), como forma de esvaziar os danos causados pela condição de ilegalidade e vinculação ao dito tráfico de drogas . Tal discussão deve incluir a alternativa de regulamentação da produção e consumo em algum nível. Não nos esqueçamos da necessidade de se discutir a mesma disponibilização de álcool, talvez enriquecido com tiamina, para usuários em condição de indigência e que lançam mão de fontes de álcool mais tóxicas (inclusive com metanol) quando a decisão de como resolver o desconforto da síndrome de abstinência é feita tendo na facilidade do acesso a algo que contenha álcool o critério definidor. O desafio de institucionalização destas propostas é ampliado pelo fato de nem sempre serem compatíveis com a cultura institucional onde se desenvolvem as ações, além de que a própria política de drogas nacional carece de definições. A nosso ver, a Secretaria N acional Antidrogas (Senad) não tem perfil nem papel definidor desta política, já que não reúne o repertório real de contribuições dos Ministérios da Justiça, Saúde e Educação para ir além da repressão e da identificação com a superada política norte-americana de guerra às drogas, também carente de substituição. 390 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Campos & Siqueira Técnico-operacionais (a Aborda e seus associados como prestadores de serviço) Apenas ativismo não é suficiente: embora sejam, em números relativos, uma minoria do total de pessoas que usam psicoativos, o número absoluto de pessoas em situação de uso problemático de álcool e outras drogas no que se refere a repercussões negativas para sua saúde física é grande e carente de acesso a assistência de qualidade. A Aborda foi fundada em 1997 e hoje está presente em 19 estados brasileiros, reunindo cerca de 650 membros que trabalham em diversos projetos e programas de redução de danos, a maioria deles financiada através da Coordenação Nacional de DST e Aids. Em 2003 foram capacitados pela Aborda representantes destes 19 estados a atuarem como Centros de Capacitação em Redução de Danos, criados Centros Regionais de Redução de Danos, abrangendo N orte, N ordeste e Centro-O este (CRRD-1), Sudeste (CRRD-2) e Sul (CRRD-3), com a missão de fomentar consistência ao movimento de redução de danos e apoiar os trabalhos locais, aglutinando os envolvidos e descentralizando o gerenciamento da Aborda. O Primeiro Treinamento Nacional de Redutores de Danos foi organizado pela Aborda em 1999 (até abril de 2003 foram capacitadas aproximadamente 350 pessoas). Através de projetos implantados com a Aborda foram abertos programas de RD em Minas Gerais, Acre, Ceará, Pernambuco, Espírito Santo, Paraná, Mato Grosso, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rio de Janeiro, inclusive com suporte para criação de associações locais de redutores de danos. Os associados (pessoas que trabalham em diversas instituições – governamentais e não-governamentais) têm na Aborda um espaço de encontro para discutirem e aprimorarem suas práticas, tanto como provedores de serviços de prevenção e assistência a usuários de drogas quanto como ativistas do movimento social. Conquanto a cobertura dos programas de redução de danos (PRDs) seja numérica (em número de usuários atingidos) e geograficamente ampla, ela é ain d a frágil e m term os d e co ntin uid ad e e sustentabilidade das ações. Muitos dos PRDs são projetos dependentes de financiamento e não autosuste n táveis, e a institucio n alização e a profissionalização das ações de RD são incipientes, insuficientes e pouco sólidas. Uma das propostas que estão se n d o estrutura d as é a b usca d a profissionalização dos redutores e da inclusão de Campos & Siqueira Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos técnicas de RD (e de TS) nos currículos de formação de recursos humanos dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e Programa de Saúde da Família (PSF). Alguns dos PRDs (p. ex.: Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e M in as G erais) atua m co m al g u m grau d e interatividade com o SUS, inclusive com interação com PACS e PSF, além da gradativa aproximação com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Esta interação é forma de equacionar o outro lado da moeda das ações de RD: a melhoria do acesso das pessoas que usam drogas aos insumos e serviços de assistência em saúde, cabendo, além de facilitar aquele acesso, trabalhar pela melhoria da qualidade desta assistência, precária qualitativa e quantitativamente. As terapias de substituição podem ser pensadas como ampliação de repertório da assistência a pessoas que usam drogas, mesmo no contexto de precariedade do SUS. Cabe aqui a observação sobre o próprio conceito de terapias de substituição , já que encontramos entre elas algumas que se caracterizam como atos terapêuticos (envolvem processo diagnóstico e terapêutico, inclusive com prescrição de medicamentos, idealmente seguindo protocolos amparados na literatura científica) e outras que a nosso ver são passíveis de apropriação (e na verdade já aplicadas) pelos redutores de danos, cuja capacitação tem nível de sofisticação similar ao dos agentes de saúde comunitária (embora diferente – discussão sobre o processo de profissionalização dos redutores de danos está sendo conduzida, com participação direta da Aborda, junto ao Ministério da Saúde). É possível que seja mais adequado reservar a expressão terapias de substituição para aquelas substituições que se caracterizam como atos terapêuticos complexos (estamos tentando evitar a expressão ato médico para não haver confusão com defesa da classe dos médicos como se fossem os únicos aptos a conduzir tais tratamentos). As formas de terapias de substituição aplicáveis em campo podem e devem ser consideradas papel dos redutores de danos (e dos agentes de saúde comunitária em geral). Orientações como a substituição do crack por maconha (ou do crack puro por mistura com maconha) ou da cocaína injetada por inalada são formas de substituição já incorporadas ao repertório de alternativas oferecidas aos usuários de drogas, sendo tema de discussões nas capacitações nacionais de redutores de danos feitas pela Aborda desde 1999. Estas substituições são particularmente relevantes no nosso meio, onde as terapias de substituição clássicas (de opiáceos) hoje quase não têm função. Auxiliar na demarcação, no Brasil, da fronteira entre atos terapêuticos complexos e não-complexos, bem como no estabelecimento de um corpo organizado de técnicos e conhecimentos sobre substituição, a exemplo do que já existe em alguns países, é um dos papéis da Aborda. Consideramos que o público-alvo para terapias de substituição pelos redutores de danos que atuam em campo não são todos os usuários e que os redutores e agentes comunitários de saúde não serão os mais indicados para proceder a algumas substituições. Há usuários de álcool e outras drogas que necessitarão de suporte com maior nível de complexidade. O papel dos redutores de danos é mais bem desempenhado onde se pode promover o acesso destes usuários a serviços de saúde (SUS), os quais são poucos e nem sem pre transigem com a condição de usuários (em geral, a meta colocada é não usar drogas), sendo necessário normatizar as alternativas de substituição (assim como está sendo com as alternativas de redução de danos) nestes serviços. Existe potencial para aproveitamento da rede de redutores de danos, que tem entre seus papéis o de facilitar o acesso das pessoas que usam drogas a insumos e serviços de saúde, na consolidação das terapias de substituição outras, além das que eles já conhecem e orientam. Mais que executora de terapias, a rede de redutores, que na Aborda inclui grande número de pessoas que usam ou já usaram drogas, pode também participar diretamente na construção de conhecimento sobre as terapias de substituição, seja como partícipe em protocolos de pesquisa, seja como detentor de conhecimentos a serem cientificamente avaliados como potenciais terapias de substituição. Entre as formas de substituição e redução de danos de que temos relatos citamos a troca de cocaína por anfetaminas, o álcool por maconha, o uso de doses baixas de cocaína para contrabalançar o efeito depressor do álcool (p. ex.: ao dirigir), todas já apontadas em campo por usuários de drogas e merecedoras de avaliação quanto ao seu real valor, seja como estratégias a serem reconhecidas e apropriadas para obtenção daquela melhor compatibilidade entre o sujeito e a droga em cada contexto, seja para desaconselhar subsJ . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 391 Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos tituições tidas como vantajosas quando, após serem estudadas, não demonstrarem sê-lo. N este p o n to há q ue se co nsid erar m aior maleabilidade e disposição para enfrentamento de questões legais pelas organizações da sociedade civil que possuem o já discutido papel de transformação social. Por exem plo, a troca de crack por maconha é conhecida e estimulada pelos red utores de danos e m cam p o, m as a m aioria d as instituições (g overna m en tais ou não) que realizam atendimento a usuários de dro gas, presas ao discurso antidrogas , ain da reluta em ad mitir sua utilidade ou o faz de forma extremamente tímida, deixando de explorar esta alternativa mesmo quando potencialmente mais benéfica para quem atende. Conclusões e considerações finais Classificar RD (que inclui as TS) como medida paliativa não faz sentido, já que o seu objetivo não é perpetuação de situação de uso proble m ático de dro gas, o q ue seria m anter ou mesmo aumentar danos ao invés de reduzi-los. Os tratamentos de substituição podem também ser vistos como redução de danos (ainda que não ideologicamente identificados com o movimento social de RD) para os que, em sofrimento com sua condição de usuários, desejam ajuda para interromper ou organizar o uso, e sempre lembrando que RD, como entendida pela Aborda, não considera a abstinência a única meta válida ou estado ideal de controle sobre o uso. O objetivo é a convivência mutuamente respeitosa, o bem-estar para os indivíduos com maior sintonia entre direitos individuais e coletivos. A inclusão das TS de forma mais sistematizada e institucionalmente sustentada na rede de saúde do SUS tem no movimento de redução de danos tanto um potencial executor como um beneficiário: ao melhorar sua atuação com a inclusão das terapias de substituição, os redutores de danos também se fortalecem como categoria profissional. Pelo olhar da RD, as TS não devem ser confundidas como etapas ou estratégia para busca de abstinência , nem justificadas ou reforçadoras de atitudes antidrogas. Tal constructo teórico (a inclusão de TS como parte do discurso antidrogas) seria, além de cientificamente inconsistente e de lógica 392 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 Campos & Siqueira confusa, limitadora dos benefícios que as pessoas que usam drogas e a sociedade em geral podem obter co m sua disponibilização. Esta disponibilização, por sua vez, implica descriminalização e regulamentação de consumo de psicoativos hoje tidos como ilegais, essenciais tanto para realmente operacionalizar a TS destes psicoativos no SUS como para quebrar a vinculação de pessoas que os usam (mesmo se não-formalmente inseridos em TS) com a criminalidade. Substituir a condição de incluídos na marginalidade pela inclusão social seria o ganho maior da implantação das TS tanto para estas pessoas como para a sociedade em geral. Somos uma sociedade de consumo, tendo o desejo como mola mestra desse processo que não sobrevive sem a continuada reinvenção do desejo e o incitamento à busca de sua satisfação. As substâncias tidas como drogas podem ser vistas como mais um produto para aquela satisfação, além de tamponamento para a insatisfação. Em tempos de globalização há o risco de sobrar aos estados menos técnica, política ou economicamente capazes de construir e defender suas decisões se submeterem a interesses que não são os do seu povo, exercendo o seu poder para a repressão, o que os distancia da função fomentadora de bemestar social para todos. Ao passar a instrumento para servir ao fluxo de capitais, o Estado perde as suas bases, sua soberania e independência, tornando-se mero serviço de segurança (policial inclusive) para os incluídos nas relações legal e socialmente aceitas. Os que não pertencem à elite ou não estão disp ostos a m o dificar seus m o d os de vida para compactuar com as mesmas regras (como grande parte das pessoas que consomem drogas ilegais) são continuadamente acusados de serem ameaça ao Estado ou à sociedade, desqualificados e incluídos na marginalidade. Mesmo usuários de drogas de alta renda, a despeito de estarem menos vulneráveis à violência das regras do tráfico , também têm seus hábitos estigmatizados (e bem escamoteados para os de fora) e alguma vulnerabilidade ao envolvimento com outras formas de violência, como a corrupção. Neste contexto antidrogas , os muros dos controles, dos quais a política de tolerância zero (que também pode ser lida como intolerância 100% ) é instrumento, ficam mais altos, as satisfações dos sonhados desejos ficam mais distantes, as pontes para o atravessamento para uma vida mais digna e cidadã revelam-se poucas, estreitas e quebradiças. É tempo de inverter esse processo, e a redu- Campos & Siqueira Redução de danos e terapias de substituição em debate: contribuição da Associação Brasileira de Redutores de Danos ção de danos, como movimento social – do qual a Aborda é expoente – é um dos caminhos para devolver à sociedade brasileira e ao Estado por ela constituído a condução da sua política de drogas, com justiça e independência. Agradecimentos A Francisco Inácio Bastos, Christiane Moema Alves Sampaio e Luiz Paulo Guanabara, pelas contribuições. Referências 1. C ampos M A , Sampaio C M A . Introdução. In: C ampos M A , Sampaio C M A (orgs.). Drogas, dignidade e inclusão social: a lei e a prática de redução de danos. Rio de Janeiro: Aborda; 2003, p. 11-2. 2. Jaffe JH, O’Keeffe C. Related articles, links: from morphine clinics to buprenorphine – regulating opioid agonist treatment of addiction in the United States. Drug Alcohol Depend May 21, 2003; 70(suppl. 2): S3-S11. 3. Larimer ME, Marlatt G A, Baer JS, Quigley LA, Blume WA, Hawkins EH. A controvérsia do beber controlado. (Subitem do capítulo 3 – Redução de danos para problemas com álcool: ampliando o acesso e a acolhida dos serviços de tratamento e prevenção). In: Marlatt G A et al. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco . Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999, p. 66-9. 4. Marllat G A. Princípios básicos e estratégias de redução de danos. In: Marllat G A et al. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco . Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999, p. 46. 5. Reilly D, Scantleton J, Didcott P. Related articles, links: magistrates’ early referral into treatment (Merit): preliminary findings of a 12-month court diversion trial for drug offenders. Drug Alcohol Rev Dec 2002; 21(4): 393-6. 6. Seymour A, Black M, Jay J, Cooper G, Weir C, Oliver J. Related articles, links: the role of methadone in drug-related deaths in the west of Scotland. Addiction Jul 2003; 98(7): 9951002. Jornal Brasileiro de Psiquiatria Endereço para correspondência Marcelo A. Campos Rua Gama Cerqueira 544 – Jardim América CEP 30460-360 – Belo Horizonte-MG Tel.: (31) 9128-9361/3373-8203 e-mail: [email protected] J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 393 Instruções aos autores No Jornal Brasileiro de Psiquiatria são publicados artigos relevantes em português, inglês ou espanhol. Os requisitos para apresentação de manuscritos foram estabelecidos de acordo com Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals do International Committee of Medical Journals Editors – Grupo de Vancouver – publicado em Ann Intern Med 1997:126:36-47, disponível em versão digital em http:/ / www.acponline.org. Manuscritos e correspondências devem ser enviados para: Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro Av. Venceslau Brás, 71 Fundos 22290-140 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel: (5521) 2295-2549 Fax: (5521) 2543-3101 www.ufrj.br/ipub e-mail: [email protected] Uma vez aceito para publicação, torna-se o trabalho propriedade permanente da Diagraphic Editora Ltda., que reserva todos os direitos autorais no Brasil e no exterior. Carta de autorização • Os manuscritos devem estar acompanhados de carta de autorização assinada por todos os autores. Modelo “ Os autores abaixo assinados transferem à Diagraphic Editora Ltda., com exclusividade, todos os direitos de publicação, em qualquer forma ou meio, do artigo..............., garantem que o artigo é inédito e não está sendo avaliado por outro periódico e que o estudo foi conduzido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e de suas emendas, com o consentim e n t o i n form ad o aprovad o p or co m itê d e ética devidamente credenciado.” (incluir nome completo, endereço postal, telefone, fax, e-mail e assinatura de todos os autores). Avaliação por pareceristas ( peer review • Todos os manuscritos submetidos ao JBP serão avaliados por dois pareceristas independentes. Estrutura do manuscrito • Os manuscritos devem ser enviados em formato eletrônico, acompanhados de quatro cópias impressas na última versão, e não serão devolvidos em nenhuma hipótese. • Todas as páginas devem estar numeradas, indicando na primeira o total de páginas. • A primeira página deve conter o título do trabalho, nome completo dos autores e filiação científica. • Os resumos devem ser apresentados no idioma do texto e em inglês, inclusive títulos, com, no máximo, 200 palavras. • Os unitermos, entre três e 10, devem ser apresentados nos dois idiomas. Recomenda-se o uso de termos da lista denominada Medical Subject Headings do Index Medicus ou da lista de Descritores de Ciências da Saúde, publicada pela BIREME, para trabalhos em português. • Tabelas e ilustrações devem estar numeradas e preparadas em folhas separadas, com as respectivas legendas em form ato que permita sua reprodução e incluídas no disquete. Os locais sugeridos para inserção deverão ser indicados no texto, com destaque. • Ilustrações não serão aceitas em negativo e impressão de fotos em cores será cobrada do autor. • Agradecimentos deverão ser mencionados antes das Referências. Referências Devem ser numeradas e apresentadas em ordem alfabética. Deve ser usado o estilo dos exemplos que se seguem: Artigos • Akiskal HS, Maser JD, Zeller PJ, Endicott J, Coryell W, Keller M, Warshaw M, Clayton P, Goodwin F. Switching from ‘unipolar’ to bipolar II. An 11-year prospective study of clinical and temperamental predictors in 559 patients. Arch Gen Psychiatry 1995; 52:114-23. Livro • Goodwin FK, Jamison KR. Manic-Depressive Illness. New York: O xford University Press; 1990. Capítulo de livro • Heimberg RG, Juster HR. Cognitive-behavioral treatments: literature review. In: Heimberg RG, Liebowitz MR, Hope D A, Sch neier FR, editors. Social p ho bia – D iag nosis assessment and treatment. New York: The Guilford Press; 1995, p. 261-309. J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 395 Instructions for authors The Jornal Brasileiro de Psiquiatria will consider for publication relevant articles in Portuguese, English or Spanish. The following guidelines for the submission of manuscripts are in accordance with the Uniform requirements for manuscripts su b m itte d to bio m e dical jo urn als of t h e In tern atio n al Committee of Medical Journal Editors – Vancouver Group – published in the Ann Intern M ed 1997; 126:36-47, also available in http:/www.acponline.org. Send all manuscripts and correspondence to the following address: Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro Av. Venceslau Brás, 71 Fundos 22290-140 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel: (5521) 2295-2549 Fax: (5521) 2543-3101 www.ufrj.br/ipub e-mail: [email protected] O nce accepted for publication, the manuscript becomes permanent property of the Diagraphic Editora Ltda. which reserves all the rights in Brazil and in any other foreign country. Structure of the manuscript • The articles should be sent in electronic format plus four printed copies of the latest version, which will not be returned to the authors in any instance. • All pages must be numbered, indicating in the first page the total numbers of pages. • The first page must have: title of the manuscript, complete name of the authors and scientific affiliation. • Abstracts should be presented in the languages of the text and in english with the maximum number of 200 words. • Key words should be presented in two languages, the one of the text and in english (between 3 and 10). For the choice of terms, the list entitled Medical Subject Headings of the Index Medicus or the Lista de Descritores de Ciências d a Saú d e of BIRE M E, for p ort u g uese scie n tific literature, are recommended. • Tables and illustrations should be numbered and placed in separate individual pages, with the legends, in a format that allows its reproduction, and its inclusion in a diskette. Places for insertion in the text should be highlighted. • Illustration in negative will not be accepted and the printing of coloured material will be charged to the author. • Ack n o w le d g e m e n ts sh o ul d b e p lace d pri or t o t h e References. Authorizing letter • M a n uscri p ts s h o u l d b e a c c o m p a n i e d b y a l e t t er authorizing the publications signed by all authors. Letter “The undersigned authors transfer to Diagraphic Editora Ltda., with exclusiveness, the copyright of the p u b li c a t i o n b y a n y m e a ns o f t h e m a n uscri p t entitled...................., guarantee that this article is not being evaluated by another periodical and that the study has been conducted according to the Declaration of Helsinki and its amendments with informed consent duly approved by an independent review board (IRB).” (include the complete name, addresses, telephone, fax, e-mail and signature of all authors). Peer review • All manuscripts submitted to this Journal will be reviewed by two independent reviewers. 396 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003 References Should be numbered and listed in alphabetical order. The following styles for the references should be employed. Articles Akiskal HS, Maser JD, Zeller PJ, Endicott J, Coryell W, Keller M, Warshaw M, Clayton P, Goodwin F. Switching from ‘unipolar’ to bipolar II. An 11-year prospective study of clinical and temperamental predictors in 559 patients. Arch Gen Psychiatry 1995; 52:114-23. Book Goodwin FK, Jamison KR. Manic-Depressive Illness. New York: O xford University Press; 1990. Book chapter Heimberg RG, Juster HR. Cognitive-behavioral treatments: literature review. In: Heimberg RG, Liebowitz MR, Hope D A, Sch neier FR, editors. Social p ho bia – D iag nosis assessment and treatment. New York: The Guilford Press; 1995, p. 261-309.