UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FERNANDA CÁSSIA DOS SANTOS
ARTUR AZEVEDO E A IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA NA PASSAGEM
DO SÉCULO XIX PARA O XX
CURITIBA
2008
FERNANDA CÁSSIA DOS SANTOS
ARTUR AZEVEDO E A IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA NA PASSAGEM
DO SÉCULO XIX PARA O XX
Monografia apresentada à disciplina Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica como
pré-requisito para a conclusão do curso de
História, Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª Drª Andréa Doré.
CURITIBA
2008
À minha mãe,
amor incondicional.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me presenteou com uma vida recheada de bênçãos.
Aos meus pais, pelo apoio e pelo incentivo ao estudo e sem os quais
nada disso seria possível.
A todos os professores com os quais tive aula durante esses anos, que
direta ou indiretamente influenciaram meu trabalho e que muitas vezes me
desafiaram, trazendo-me crescimento pessoal e intelectual.
À professora Andréa Doré, pela paciência e pela orientação presente,
atenta e carinhosa, que soube exigir de mim na medida certa.
Ao professor Walter Lima Torres, do DeArtes, pelas indicações de leitura
logo no início do trabalho.
À professora Ana Paula Vosne Martins, pela oportunidade de participar
PET-História, que contribuiu imensamente na minha formação ao me
proporcionar uma experiência de trabalho em grupo vinculada ao ensino, à
pesquisa e à extensão.
A todos os colegas que estiveram ao meu lado desde o primeiro dia de
aula até o último, pela presença amistosa, pela parceria em trabalhos das
diferentes matérias e pelos momentos de descontração.
Aos colegas do PET-História que muitas vezes ouviram relatos desse
meu trabalho e que participaram comigo das diversas atividades organizadas
pelo grupo.
Aos colegas da gestão 2006-2007 do CAHIS, que foram meus
companheiros numa experiência vinculada ao movimento estudantil.
Aos meus alunos, em especial ao “Trio de Ferro”, que foram minha
motivação para continuar nos momentos mais difíceis.
Aos amigos, pelo apoio e por terem feito com que meus dias se
tornassem mais alegres.
À Dayane, que além de ter sido a melhor parceria para realização de
trabalhos e para momentos de estudo, tornou-se amiga e companheira para
todas as horas.
Ao Neto, pela amizade, pelo amor e pelas bibliotecas e sebos visitados
em meu nome em São Paulo.
A todos aqueles que em momentos distintos teceram comentários sobre
meu trabalho, em especial àqueles que me fizeram perguntas que eu não
soube responder e assim forçosamente contribuíram com a ampliação dos
meus conhecimentos.
À Sesu, pelo auxílio financeiro.
Ao povo brasileiro, que ao pagar seus impostos com o suor do seu rosto,
me beneficiou duplamente: na oportunidade de estudar numa universidade
pública, gratuita e de qualidade e na possibilidade de receber a bolsa que
financiou esse trabalho de pesquisa.
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Carlos Drummond de Andrade, “Hino Nacional”.
RESUMO
A discussão da questão da nacionalidade é característica de momentos de
desestabilização e de reajustamento social e, por esta razão, se coloca em períodos
de fortes mudanças sociais e políticas, como é o caso da transição do século XIX
para o XX no Brasil. A geração de intelectuais que viu o nascer da República
mostrou-se preocupada em pensar a nação e suas peculiaridades. Mais do que isso,
tratou-se de uma geração que idealizou colocar o país no nível do século,
acelerando a marcha evolutiva, a fim de atingir uma posição de paridade com a
parcela considerada a mais avançada da humanidade: a civilização européia. A
intelectualidade brasileira manifestou estas preocupações com a identidade nacional
das mais diferentes formas e a literatura foi uma delas. No teatro, em particular, este
foi um período marcado por muitas expectativas e conflitos, resquícios de uma
perspectiva de atraso que perseguiu o teatro brasileiro desde o movimento
romântico. Para os autores vinculados ao teatro, produzir peças capazes de falar a
respeito do Brasil neste período significou não só atender a uma demanda
intelectual de fundo político e justificada pelo presente, mas também retomar
questões que ficaram como que mal resolvidas no período romântico. Artur Azevedo
foi o principal autor do nosso teatro durante esse período, no qual, a contra-gosto da
crítica teatral, os gêneros vinculados à comédia predominaram no cenário nacional.
Homem de seu tempo, Artur Azevedo considerava a comédia um gênero menor,
mas era um pouco mais complacente e acreditava numa convivência pacífica entre
os gêneros que mais agradavam ao público e aqueles que interessavam aos
literatos, tanto que se aventurou por ambos os caminhos. Ao escrever suas
comédias, Artur Azevedo se afastou declaradamente das pretensões literárias de
sua época, permitindo-se criar uma produção simplesmente capaz de atrair o
público. O mais interessante é que, justamente neste momento, vemos surgir uma
produção tipicamente brasileira. Acreditando no papel singular ocupado por esse
autor no contexto, nossa proposta de pesquisa é a de localizar os elementos de
brasilidade presentes nas obras de Artur Azevedo, procurando observar o modo
como elas expressam a discussão da nacionalidade brasileira que se coloca no
período.
Palavras-chave: Primeira República. Identidade Nacional. Artur Azevedo.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 07
2 TEATRO E NACIONALISMO............................................................................... 13
2.1 IDENTIDADE E NACIONALIDADE.................................................................... 13
2.2 POR UMA NAÇÃO BRASILEIRA....................................................................... 15
2.3 EM BUSCA DE UM TEATRO NACIONAL......................................................... 21
3 HUMOR E NARRATIVA NACIONAL....................................................................27
3.1 OS GÊNEROS CÔMICOS NO BRASIL DA PASSAGEM DO SÉCULO............ 27
3.2 LITERATURA E HISTÓRIA – PAUSA NECESSÁRIA....................................... 32
3.3 HUMOR E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA......................................................... 39
4 ARTUR AZEVEDO E A IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA........................43
4.1 ARTUR AZEVEDO..............................................................................................43
4.2 DICOTOMIAS: CAMPO X CIDADE; ELITE X POVO......................................... 45
4.3 PERSONAGENS BRASILEIRAS........................................................................53
5 CONCLUSÃO........................................................................................................59
6 FONTES................................................................................................................ 61
7 REFERÊNCIAS......................................................................................................62
8 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.......................................................................... 65
9 APÊNDICES.......................................................................................................... 68
7
1 INTRODUÇÃO
Na virada do século XIX para o XX, o Brasil passava por inúmeras
modificações.
As
grandes
cidades
cresciam
aceleradamente,
ocasionando
alterações na política e na vida cotidiana das pessoas ao mesmo tempo em que no
interior e nos sertões do país houve poucas mudanças, como afirma Margarida de
Souza Neves:
Ali, nada parecia romper uma rotina secular, firmemente alicerçada no
privilégio, no arbítrio, na lógica do favor, na inviolabilidade da vontade
senhorial dos coronéis e nas rígidas hierarquias assentadas sobre a
1
propriedade, a violência e o medo.
Face aos contrastes e estranhamentos característicos do processo de
modernização que se intensificava, surgiu a necessidade de discutir a nação e a
identidade brasileira. Apesar de não se tratar de uma questão nova para a
intelectualidade do país, via-se na transição da Monarquia para a República um
momento crucial para o encontro de respostas para questões complexas como:
“quem é o brasileiro?” e “que nação é esta que se chama Brasil?”.2
A discussão da questão da nacionalidade é característica de momentos de
desestabilização e de reajustamento social. No Brasil desse momento, um país
multifacetado em que coexistiam cosmopolitismo e provincianismo, modernidade e
atraso, liberalismo e oligarquia, a sociedade ao mesmo tempo em que refletia um
desejo de se tornar moderna, convivia com a chaga do trabalho escravo. Nesse
contexto repleto de tensionamentos, os intelectuais mostraram-se preocupados em
pensar o Brasil e suas peculiaridades. Pode-se dizer, inclusive, que esses
intelectuais idealizaram colocar o Brasil no nível do século, acelerando a marcha
evolutiva, a fim de atingir uma posição de paridade com a parcela mais avançada da
humanidade: a civilização européia. 3
1
NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República: O Brasil na virada do século XIX para o
XX. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida. (orgs.). O Tempo do Liberalismo
excludente: da proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. (O Brasil Republicano, 3). p.15.
2
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle
Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp.34-35.
3
Ibidem. p. 34.
8
A intelectualidade brasileira manifestou tais preocupações com a identidade
nacional das mais diferentes formas e a literatura foi uma delas. No teatro, em
particular, esse foi um período marcado por muitas expectativas e conflitos,
resquícios de uma perspectiva de atraso que perseguiu o teatro brasileiro desde o
movimento romântico. Para os autores vinculados ao teatro, produzir peças capazes
de falar a respeito do Brasil neste período significou não só atender a uma demanda
intelectual de fundo político e justificada pelo presente, mas também retomar
questões que ficaram como que mal resolvidas no período romântico.
Desde o início do século XIX houve uma preocupação por parte dos
intelectuais com a criação de uma tradição artístico-literária capaz de refletir o Brasil,
contribuindo, assim, para o forjamento de uma identidade nacional brasileira
movimento que se tornou necessário por ocasião da independência e da decorrente
necessidade de consolidar o estado brasileiro.4 O Romantismo desempenhou um
importante papel neste momento, na medida em que proclamava a especificidade
das diferentes nações, ainda que no processo de apropriação do ideário do
movimento
realizado pelos
intelectuais
brasileiros
tenham ocorrido
alguns
deslocamentos.
A idéia de que o Brasil precisava de uma literatura e uma historiografia com
cores locais para se estabelecer como nação independente, relacionava-se com o
desejo de civilizar-se à maneira européia, superando assim, o atraso de país
colonizado. A busca pelo que há de específico é, portanto, no contexto brasileiro,
uma busca pela civilização criticada pelo Romantismo europeu. Tornar-se civilizado,
na concepção da nossa elite do período significou em certa medida, negar
determinados traços característicos da nossa sociedade e nesta perspectiva, muito
daquilo do que era popular não foi reconhecido como brasileiro por estar muito
distante da cultura européia, com a qual havia uma pretensão de identificação.5
Antônio Cândido, em seu trabalho A Formação da Literatura Brasileira
descreve o modo como a nossa literatura adquiriu caráter de sistema literário,
articulando autores, textos e públicos naquilo que se pode ter como uma tradição,
processo este, que teria sido concluído ao término do movimento romântico. O teatro
4
RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p. XIX.
5
Ibidem. p.XXVII.
9
no Romantismo não obteve, no entanto, uma formação no sentido no qual o autor
aplica o termo. Não houve um movimento coeso que se pudesse intitular romântico e
tampouco que fosse capaz de conciliar a estrutura estética desejável com uma
temática de cunho nacional.6 Disso decorre a perspectiva de atraso à qual nos
referimos
anteriormente.
Permaneceu,
portanto,
nos
debates
acerca
das
representações teatrais a aspiração romântica da busca pela cor local, por um teatro
que se mostrasse capaz de falar a respeito do Brasil, mesmo quando o drama
romântico já perdia terreno para a escola realista. Efetivamente, no entanto, apenas
a comédia de costumes mostrou-se capaz de trazer elementos de brasilidade da
forma como desejavam os românticos, mas se tratava de um gênero menor, incapaz
de atender às expectativas estéticas da crítica teatral do período.
A comédia de costumes pode ser considerada a única tradição teatral
genuinamente brasileira.7 Martins Pena influenciou diversos autores e entre eles
está Artur Azevedo, que será o principal autor do nosso teatro durante os últimos
anos do século XIX e primeiros anos do século XX, período no qual os gêneros
vinculados à comédia predominaram no cenário nacional. Este é um momento no
qual há um gradativo aumento da presença estrangeira em nossos palcos, e no que
concerne ao teatro brasileiro, a preferência do público volta-se para o teatro cômico
e musicado. A crítica teatral neste contexto lamentou profundamente este
movimento conclamando a necessidade de se formar uma tradição teatral brasileira
que estivesse em conformidade com as reconhecidas escolas artísticas européias,
ou seja, capaz de nos aproximar da civilização. 8
Aos olhos da crítica teatral da passagem do século, o teatro produziu muito
pouco daquilo que dele era esperado. O Brasil não era, portanto, apenas um país
atrasado com relação aos demais, mas também um país que possuía um teatro
atrasado. Neste momento em que era retomada a preocupação com a identidade
nacional brasileira, nada mais natural do que exigir uma participação do teatro neste
projeto. Ocorre que, o teatro, para além de atender às expectativas dos intelectuais,
6
FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 78.
7
PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2003. p.138.
8
FARIA, João Roberto. Op. Cit. pp. 150 -160.
10
precisava agradar também ao público, que tinha expectativas muito distantes das da
crítica teatral do período.
Artur Azevedo foi reconhecido como o maior representante deste movimento
teatral em que prevaleceram gêneros cômicos, tendo se tornado conhecido tanto
pela sua extensa produção voltada para o teatro popular, quanto pela escrita de
textos de crítica teatral publicados em jornais. Homem de seu tempo, considerava a
comédia um gênero menor, mas era um pouco mais complacente e acreditava numa
convivência pacífica entre os gêneros que mais agradavam ao público e aqueles que
interessavam aos literatos, tanto que se aventurou por ambos os caminhos.
Ao escrever suas comédias, Artur Azevedo se afastou declaradamente das
pretensões literárias de sua época, permitindo-se criar uma produção simplesmente
capaz de atrair o público. O mais interessante é que, justamente neste momento,
vemos surgir uma produção tipicamente brasileira. Num momento em que a crítica
almejava um teatro com autor e temática brasileira, as comédias de Artur Azevedo
colocam em cena homens humildes e homens letrados, negros, mulatos, caipiras.
Os cenários das peças do autor podem trazer a cidade do Rio de Janeiro
modernizada que seduz pelas suas belezas, pequenas cidadelas interioranas e suas
festas populares, e ainda a periferia e o povo marginalizado. A fala dos personagens
é antes de tudo, o português brasileiro e marcado por diferenças regionais, opondose assim, à preferência do uso do léxico e da sintaxe lusitanas, presentes nas obras
literárias da época.
Artur Azevedo interessa-nos neste momento, por se tratar de um homem
inscrito em dois mundos, o mundo da elite intelectual e o do povo. Dois mundos
estes, que em última instância são um só: o Brasil da virada do século. Nesse
trabalho monográfico procuramos, nesse contexto, realizar uma leitura de três peças
do autor, procurando observar o modo como elas expressam a discussão da
nacionalidade brasileira que se coloca no período.
As peças foram escolhidas por serem as únicas burletas escritas pelo autor e
também por ainda não terem sido analisadas por historiadores. São elas: A Capital
Federal (1897), cujo texto se desenvolve em torno da vinda de uma família do
interior de Minas para o Rio de Janeiro, trazendo uma reflexão a respeito das
diferenças entre a vida da cidade e a vida no campo, O Mambembe (1904), na qual
o autor discute a situação do próprio teatro de sua época através da história de um
grupo de teatro itinerante que apresenta espetáculos no interior do Brasil e O
11
Cordão (1908), em que é colocada a questão da repressão aos populares cordões
carnavalescos que ocorriam no Rio de Janeiro. Como fontes auxiliares, necessárias
para compreender a relação entre a crítica teatral da época com a produção do
autor, selecionamos o ensaio Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de
Nacionalidade, da autoria de Machado de Assis (publicado em 1973 na revista norteamericana O Novo Mundo); além de dois textos do próprio Artur Azevedo, em que
ele defende suas opções estéticas.
Nosso
referencial
teórico-metodológico
foi
construído
a
partir
do
expressionismo9 Herderiano, que em linhas gerais trata-se de uma teoria baseada
na idéia de que as atividades humanas em geral, e a arte em particular, expressam a
personalidade completa do indivíduo e do grupo social em que foram produzidas; o
que quer dizer que toda e qualquer obra humana está necessariamente vinculada a
seu criador e também a seu povo. Sendo assim, através da expressão artística, têmse o acesso ao modo de pensar de cada grupo social, seus desejos e necessidades.
As idéias de Herder vêm sendo retomadas atualmente por Stephen Greenblatt, que
ao investigar as complexas relações entre a obra literária e seu autor, afirma que a
arte é capaz de ressoar o seu momento histórico, chamando a atenção para o fato
de que é preciso localizá-la no seu tempo, pois sua viabilização não depende
apenas da genialidade de seu autor, mas de condições históricas. Para pensarmos
na relação entre a representação humorística e a identidade nacional brasileira,
utilizamos as afirmações de Elias Thomé Saliba relacionadas ao humor, que
segundo o autor, participa ativamente do processo de criação da imaginação
nacional construindo tipos visuais e verbais e criando estereótipos que confluem
para a formação do que se poderia compreender no momento como uma imagem do
homem brasileiro.
O trabalho de monografia foi divido em três capítulos, cada um dos quais
também divididos em três partes. No primeiro, discorremos a respeito do conceito de
nação e o modo como ele se vincula à idéia de identidade, e em seguida nos
centramos no problema da definição da nossa identidade nacional para concluir
relacionado as exigências da crítica teatral do período com a questão da criação da
nação brasileira. No capítulo seguinte, exploramos os diferentes gêneros cômicos
presentes nos palcos brasileiros na passagem do século, demonstrando como o
9
Termo cunhado por Isaiah Berlin em seu livro: Vico e Herder. Brasília: Editora da UnB, 1982.
12
humor se relacionou com a construção de discursos identitários. Ainda nesse
capítulo, julgamos necessário escrever sobre o modo como a relação entre História
e Literatura tem sido discutida nas ciências sociais, dada a característica ficcional de
nossas principais fontes. Por fim, no último capítulo, há uma breve biografia do autor
seguida pela análise das peças teatrais que selecionamos para a realização desse
trabalho.
13
2 TEATRO E NACIONALISMO
O Mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e Desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Fernando Pessoa, Ulisses.
2.1 IDENTIDADE E NACIONALIDADE:
No decorrer de quase todo o século XIX, a definição da nacionalidade
brasileira foi um problema para os intelectuais brasileiros. Preocupação latente no
período romântico, a questão é retomada no final do século por ocasião do fim da
escravidão e dos primeiros anos da República. Da mesma forma, na década de
1920, a nação é novamente posta no centro das discussões políticas e culturais, de
modo que um breve olhar sobre a história do nosso país nos permite observar que
repetidas vezes, por condições históricas distintas, houve a necessidade de se
pensar a identidade nacional do brasileiro. Como afirma o antropólogo Roberto
DaMatta:
Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem somos e como
somos; de saber por que somos. [...] Como um povo se transforma em
Brasil? A pergunta, na sua discreta singeleza, permite descobrir algo muito
importante. É que no meio da multidão de experiências dadas a todos os
homens e sociedades [...], cada sociedade apenas se utiliza de um número
limitado de ‘coisas’ (e de experiências) para construir-se como algo único
10
[...].
Se o questionamento a respeito da identidade nacional é renitente, é porque o
próprio caráter nacional constitui-se numa construção histórica, “mudando de uma
hora para outra e com cada novo incidente vivido pela nação”11. Desta forma, o
10
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, pp.16-17.
11
BOUER, Otto. Le concept de nation. In. HAUPT, Georges; LÖWY, Michael; WEILL, Claude. Les
marxistes et la question nationale: 1848-1914. Paris: François Maspero, 1974, p.249.
14
caráter nacional de um povo é mutável, refletindo o momento histórico específico
que suscita tal questionamento.
Benedict Anderson define a nação como “uma comunidade política
imaginada”12, o que significa que se trata de uma relação social organizada
politicamente e legitimada por uma determinada maneira de pensar. O termo
“imaginação”, aqui, refere-se à idéia de criação, ou seja: a nação é de certa forma,
construída. E construída sobre que moldes?
A nação vincula-se necessariamente ao sentimento de pertencimento. Em
seu livro, O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil, Bernardo Ricupero explica
esta questão afirmando que há uma dimensão sagrada relacionada à idéia de
nação:
[como se a sociedade tivesse] passado a se cultuar diretamente,
dispensando a mediação religiosa. Portanto, a idéia de nação funcionaria
praticamente como uma religião secular ou civil, como as que existiam na
Antiguidade Clássica. De maneira mais ampla, é possível considerar que,
assim como a religião foi uma das principais formas encontradas em
sociedades tradicionais para estabelecer identidades, o nacionalismo pode
13
assumir papel semelhante em sociedades modernas.
Ricupero demonstra que a nação está ligada a um certo anseio de
permanência de laços comunitários num contexto em que começam a prevalecer as
relações de tipo societário. Em outras palavras, o Estado, enquanto instituição,
precisa ser legitimado afetivamente, o que é possível a partir da construção do
caráter nacional de um povo. Ao mesmo tempo, a partir do momento em que uma
comunidade passa a se compreender como nação, a tendência é que busque tornar
reconhecida sua existência política através do estabelecimento de uma organização
estatal.14 A Nação, sob este ponto de vista, seria uma forma de mediação ideológica
que faz com que homens e mulheres se sintam parte de uma comunidade política
maior.
A vida política se mostra, muitas vezes, distante do cotidiano das pessoas,
especialmente do povo comum. É o sentimento nacional que confere ao indivíduo de
pouca participação política a idéia de que ele faz parte de um todo coletivo. Neste
12
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. Trad. Lólio Oliveira. São Paulo: Editora
Ática,1989, p.14.
13
RICUPERO, Bernardo.O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p.9.
14
Idem.
15
sentido, as afirmações de Antonio Gramsci a respeito da relação entre Estado e
sociedade civil adquirem especial importância, uma vez que o autor atesta que a
política é uma combinação de força e consentimento. Sendo assim, pode-se dizer
que uma classe se torna hegemônica quando é capaz de elaborar um projeto
nacional-popular com o qual outras classes podem se identificar, formando assim,
um bloco histórico. No lugar de uma simples dominação, estabelece-se uma direção
intelectual que é capaz de congregar os demais.15
No caso do conjunto de idéias que formam aquilo que compreendemos como
nação, há um papel importante desempenhado pela categoria dos intelectuais, que
se tornam organizadores da cultura nacional. A identidade nacional se constitui
numa criação cultural e política, realizada no caso brasileiro, por intermédio dos
intelectuais. E se por um lado, há uma criação, por outro, há a necessidade dela
encontrar respaldo social.
Pode-se dizer, então, que a nação se estabelece a partir de um conjunto de
idéias homogeneizantes que constituem uma criação de ordem política e cultural,
mas na qual, necessariamente, o povo acredita. Dadas essas condições, não é de
se estranhar, que o processo de construção de uma identidade nacional brasileira
tenha sido tão dificultoso, uma vez que foi preciso pensar num modo de congregar
realidades brasileiras absolutamente distintas com a intenção de chegar a um ponto
em que homens e mulheres ditos “brasileiros” passassem a acreditar que fazem
parte de uma mesma comunidade e se unem através de seus signos e ritos.
2.2 POR UMA NAÇÃO BRASILEIRA:
Por volta de 1870, com o aparecimento do movimento republicano, é
colocada novamente no cenário brasileiro a questão da identidade nacional
brasileira. A questão não era nova e já tinha sido parte das preocupações dos
nossos intelectuais desde o início do século XIX, momento em que o Brasil se
tornava independente e por esta razão demandava a elaboração de uma teoria que
fosse capaz de demonstrar a unidade de nosso povo.
O movimento romântico no Brasil influenciou as artes e o pensamento político
e intelectual desde 1830 até cerca de 1870 e tinha como intenção deliberada o
15
FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004. pp. 323-324.
16
estabelecimento de uma identidade nacional, assim como ocorrera um pouco antes
no continente europeu. Neste mesmo período, os demais países da América latina
estiveram também empenhados no debate político-cultural acerca das definições de
suas identidades nacionais. Apesar do esforço de criação de uma nação não ser,
portanto, exclusividade do Brasil durante o romantismo, a identidade nacional
brasileira irá se definir de forma diferente das demais nações sul-americanas que
fazem fronteira com o país até mesmo porque após a independência no Brasil se
estabeleceu um império, ao passo que os outros países latino-americanos adotaram
o regime republicano.16
O nascente Estado Brasileiro apenas estaria consolidado no momento em
que existisse uma nação, ou seja: no momento em que os indivíduos que aqui
viviam passassem a se considerar brasileiros, donos de um legado cultural próprio
capaz de os distinguir das demais nações. Pois, como afirma Eric Hobsbawm, a
nação é um conjunto de tradições inventadas e mais do que isso: a crença nelas:
Tradição inventada é um conjunto de práticas, normalmente orientadas por
regras tácita ou abertamente aceitas e um ritual de natureza simbólica, que
visam incutir certos valores e normas comportamentais por repetição, o que
17
automaticamente implica em continuidade com o passado.
É uma criação dessa natureza que restava fazer no Brasil de então, recente
país independente. Necessitava-se inventar uma tradição e seus símbolos para
consolidar a própria independência. A partir de então, e sob a influência inicial do
Romantismo, buscar-se-á o forjamento de definir simbolicamente quem seria o
homem brasileiro.
No caso latino-americano, a palavra “civilização” adquiriu um peso especial
durante o Romantismo. Após a independência política, esses países buscarão se
tornar civilizados, compreendendo que a própria “civilização” seria uma forma de se
relacionar com o mundo capitalista. Esse ponto chama a atenção, uma vez que o
Romantismo Europeu estabeleceu-se justamente como uma reação ao mundo
capitalista. Curiosamente, quando o movimento chega ao Brasil e aos demais países
16
RICUPERO, Bernardo. Op. Cit. p. XIX.
17
HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984. p.1.
17
da América Latina, passa a cumprir o papel de promover o capitalismo.18 O
Romantismo brasileiro vê com simpatia o modo de produção capitalista, que mal
existia no país, o que significa que não compartilha exatamente com os mesmos
objetivos do da Europa, pois, nas palavras de Bernardo Ricupero:
É um Romantismo de meios, que proclama, como o Europeu, a
especificidade de suas sociedades nacionais, mas que pretende, ao fim do
19
caminho, encontrar a civilização européia.
Dessa forma, os intelectuais assumiram para si no período romântico, a
função de criar a nação brasileira. Deve-se observar, que o intelectual brasileiro do
período sentia-se um partícipe da cultura européia, uma vez que dada a carência de
instituições de ensino superior no Brasil, grande parte deles concluía seus estudos
na Europa, especialmente na França. O primeiro caminho encontrado para uma
discussão a partir da nossa nacionalidade foi o de afastamento de Portugal para que
assim fosse possível a incorporação positiva do nosso passado pré-colonial20.
Segundo as afirmações de Antônio Cândido em seu livro Literatura e
Sociedade, a literatura teria sido a atividade que mais cedo contribuiu para o
conhecimento do Brasil e de seu povo
21
. Segundo o autor, durante o Romantismo,
a nossa literatura teria adquirido caráter de sistema literário, articulando autores,
textos e públicos naquilo que se pode ter como uma tradição. Já neste período,
observa-se na própria crítica literária, a intenção de se construir uma literatura
nacional, o que de acordo com Cândido, teria de fato acontecido ao término do
período.
Pode-se perceber a tenacidade do debate que então se estabelece através do
ensaio Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade, da autoria de
Machado de Assis e publicado inicialmente em 24 de março de 1873 na revista
norte-americana O Novo Mundo. O próprio título do ensaio já chama a atenção, pois
ao utilizar a palavra “instinto”, o autor parece insinuar que a busca pela nossa
nacionalidade não se encontra completamente no campo do consciente, do
18
RICUPERO, Bernardo. Op. Cit. pp. XXVI – XXVII.
19
Ibidem. pp. XXVII – XXVIII.
20
Ibidem. p. XXX.
21
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo,
Ed. Nacional, 1985. p.81.
18
voluntário, mas que atende a algo que é instintivo, quase que natural. É desta forma
que o ensaísta apresenta a questão da identidade nacional na literatura da época:
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como
primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as
formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e
não há como negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e
22
abono de futuro.
Na leitura desse trecho, é possível observar que Machado de Assis coloca a
questão da formação da literatura nacional como algo ainda não realizado
totalmente, mas que aparece voluntária e involuntariamente. Como o autor
demonstra na última frase destacada, a presença deste “instinto” é um bom sinal
para o futuro, o que também quer dizer que ainda não se realizou algo de realmente
sólido. Podemos compreender, assim, o quanto o Brasil daquele momento estava
focado no futuro, no devir, pois, nas palavras de Abel Barros Baptista:
[...] o Brasil, enquanto território e enquanto projeto é ele próprio uma
invenção moderna, um espaço que nasceu com a modernidade histórica,
que se definia em função do futuro, de uma marcha no sentido do progresso
23
[...].
Na seqüência de seu texto, Machado de Assis afirma, a respeito da relação
entre a literatura e a busca da identidade nacional:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas
não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se
deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço. [...] Esta outra independência não tem Sete
de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas
pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração
24
nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.
Nessas palavras do ensaísta, Antônio Cândido reconheceu um ponto alto de
maturidade da crítica literária ao término do Romantismo, pois na sua interpretação,
22
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. Disponível em:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT4522147.html#[4]%20NOT%CDCIA%20DA%20ATUAL%
20LITERATURA%20BRASILEIRA.'. Acessado em: 11/11/2008.
23
BAPTISTA, Abel Barros. A Formação do Nome: duas interrogações sobre Machado de Assis.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.p.30.
24
ASSIS, Machado de. Op.Cit.
19
estava então cumprida a tarefa, ao menos por parte da literatura, de se pensar num
sentido e numa origem para a nação brasileira. Ocorre que, o assunto não se
encerrou no período romântico, nem do ponto de vista político, nem do ponto de
vista literário.
Para pensar na formulação e na diferenciação do povo brasileiro, os
românticos elegeram a figura do indígena como representação ideal. Trata-se da
solução encontrada para resolver o problema de encontrar uma característica
comum para um país com tamanhas diferenças regionais e, além disso, um modo de
manter o negro afastado dos temas literários num momento em que ainda éramos
fortemente
dependentes
da
escravidão.
Resolveu-se
assim,
e
apenas
temporariamente, o problema da origem brasileira que não podia ser identificada
com Portugal, nem com os negros escravos, menos ainda com a figura de um povo
mestiço. Esta foi, portanto, uma primeira formulação da identidade brasileira, a
menos arriscada para o período.
Dentre as diferentes etnias formadoras do brasileiro, elegeu-se aquela que
representaria o menor grau de ameaça à ordem constituída. O índio, pensado
apenas num passado mítico, e ignorado no presente, tornou-se a figura ideal para
pensar numa origem idealizada da nação.25
Para Márcia Regina Capelari Naxara, no processo de criação de uma
identidade nacional brasileira, que se estende por todo o século XIX, houve uma
ambigüidade fundamental, que ela define como o fato de que o Brasil de então
possuía uma cultura de raízes européias, voltada para valores e movimentos
também europeus e ao mesmo tempo, era ocupado por um povo latino, etnicamente
mestiço e influenciado por culturas primitivas, como a ameríndia e a africana.26 Num
primeiro momento, o constrangimento por essa ambigüidade foi resolvido no campo
da idealização da figura do índio europeizado em seus costumes como mito
fundador do Brasil. Em seguida, após o término do romantismo e próximo à
passagem do século, mudou-se o objeto dessas idealizações, que cada vez mais
passaram a se centrar na figura do caboclo, do sertanejo, do caipira. Ao mesmo
tempo, afirma, Naxara, essa busca pela nacionalidade na passagem do século se
25
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiros em sua própria terra: representações do
brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume, 1998. p. 113.
26
Idem.
20
desdobrou numa vontade dirigida para a denúncia e para a colocação das mazelas
brasileiras em evidência. E assim, através da discussão dos problemas da
sociedade de então:
[deixava-se] entrever uma complexidade insuspeitada do pensar a
realidade do Brasil na época, e da percepção dos diversos caminhos que
pareciam estar em aberto, prontos para serem escolhidos e trilhados na
procura do futuro. A idéia do Brasil, país do futuro, portador de uma
potencialidade a realizar é tão antiga quanto a sua história, do século XVI,
27
até os nossos dias .
Não podemos nos esquecer que na virada do século XIX para o XX a
sociedade brasileira passava por inúmeras modificações. Se até então já era difícil a
construção de uma identidade nacional que se baseasse em algum fator diferencial
porque éramos compostos por três diferentes etnias, agora, havia ainda uma grande
variedade de estrangeiros recém chegados ao país que de certo modo
representavam uma ameaça em função da sua acreditada superioridade racial e
intelectual28. Some-se a isso as diferenças regionais num país tão grande
territorialmente e o descompasso da modernização, que fazia com que as grandes
cidades crescessem aceleradamente, ocasionando alterações na política e na
própria vida cotidiana ao mesmo tempo em que no interior e nos sertões do país
houve poucas mudanças.29 Era, portanto, um cenário cada vez mais difícil para o
encontro de soluções possíveis para o problema de nossa identidade nacional.
A partir do estabelecimento da República, a questão da definição da nação se
desloca para um olhar maior sobre o povo brasileiro. A partir da década de 1870,
buscar-se-ia, portanto, uma representação possível para o homem brasileiro nas
produções intelectuais, artísticas e literárias. Nas palavras de Iara Carvalho Souza:
A partir da década de 1870, surge então um problema: a nação deve
conhecer seu povo, porque o próprio princípio Republicano, que se
27
Ibidem. p. 115.
28
Idem.
29
NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República: O Brasil na virada do século XIX para o
XX. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida. (orgs.). O Tempo do Liberalismo
excludente: da proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. (O Brasil Republicano, 3). p.15.
21
espraiava pela sociedade, procurava instalar um governo e em nome do
30
povo. Pensar a Identidade e a Nação significava também pensar o povo.
A discussão da nacionalidade Brasileira esteve, portanto, presente nos
círculos artísticos e intelectuais durante todo o século XIX e ocorreu, sobretudo, na
cidade do Rio de Janeiro. A cidade, que era então a capital do país e passava por
uma série de reformas que pretendiam transformá-la num cartão postal a ser exibido
para os estrangeiros, era também perigosa pela grande presença de uma população
formada majoritariamente por negros, mestiços e pobres. Neste processo, os
homens de letras tomaram para si a tarefa de contar a cidade, ordenando-a através
de suas narrativas.31
A arte, de modo geral, constituía-se num recurso pedagógico empenhado em
expor o que o povo era e desvendar o momento histórico em que eles viviam e os
homens de letras, assim como Artur Azevedo, dedicaram-se a conhecer a nação e o
próprio povo brasileiro, a fim de poder desvendá-los, diagnosticando e projetando
um futuro para a nação, que em si mesma, era vista como algo que ainda estava por
vir.
2.3 EM BUSCA DE UM TEATRO NACIONAL:
Para o teatro, o período de transição entre o século XIX e o século XX foi
marcado por muitas expectativas e conflitos, resquícios de uma perspectiva de
atraso que perseguiu o teatro brasileiro desde o movimento romântico. Para os
autores vinculados ao teatro, produzir peças capazes de falar a respeito do Brasil
neste período significou não só atender a uma demanda intelectual de fundo político
e justificada pelo presente, mas também retomar questões que ficaram como que
mal resolvidas no período romântico.
Se na visão da crítica os autores vinculados à literatura foram capazes de
escrever algo significativo a respeito da identidade nacional brasileira no período do
Romantismo, uma vez que se produziu uma primeira imagem do que seria o
brasileiro, o teatro não obteve o mesmo sucesso. Não houve um movimento coeso
30
SOUZA, Iara Lis Stto Carvalho. Sobre o tipo popular – imagens do (s) brasileiro (s) na virada do
século. In.: SEIXAS, Jacy, BRESCIANI, Maria Stella e BREPOHL, Marion (orgs). Razão e Paixão
na Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 115.
31
Idem. pp. 116-117.
22
que se pudesse intitular romântico e tampouco que fosse capaz de conciliar a
estrutura estética desejável com uma temática de cunho nacional.32 Disso decorre a
perspectiva de atraso à qual me referi anteriormente. Permaneceu, portanto, nos
debates acerca das representações teatrais a aspiração romântica da busca pela cor
local, por um teatro que se mostrasse capaz de falar a respeito do Brasil, mesmo
quando o drama romântico já perdia terreno para a escola realista. Efetivamente, no
entanto, apenas a comédia de costumes mostrou-se capaz de trazer elementos de
brasilidade da forma como desejavam os românticos, mas se tratava de um gênero
menor, incapaz de atender às expectativas estéticas da crítica teatral do período.
A comédia de costumes pode ser considerada a única tradição teatral
genuinamente brasileira.33 Martins Pena influenciou diversos autores e entre eles
está Artur Azevedo, que será o principal autor do nosso teatro durante os últimos
anos do século XIX e primeiros anos do século XX, período no qual os gêneros
vinculados à comédia predominaram no cenário nacional. Este é um momento no
qual há um gradativo aumento da presença estrangeira em nossos palcos, e no que
concerne ao teatro brasileiro, a preferência do público volta-se para o teatro cômico
e musicado. A crítica teatral neste contexto lamentou profundamente este
movimento conclamando a necessidade de se formar uma tradição teatral brasileira
que estivesse em conformidade com as reconhecidas escolas artísticas européias,
ou seja, capaz de nos aproximar da civilização. 34
Aos olhos da crítica teatral da passagem do século, o teatro produziu muito
pouco daquilo que dele era esperado. O Brasil não era, portanto apenas um país
atrasado com relação aos demais, mas também um país que possuía um teatro
atrasado. Neste momento em que era retomada a preocupação com a identidade
nacional brasileira, nada mais natural do que exigir uma participação do teatro neste
projeto.
O desconforto dos críticos não era propriamente com o conteúdo das peças
teatrais que então eram produzidas, mas com o gênero cômico. Mesmo dentre os
comediógrafos do período, havia a crença de que o termo “arte dramática”
32
FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 78.
33
PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2003. p.138.
34
FARIA, João Roberto. Op. Cit. pp. 150 -160.
23
designava apenas a alta dramaturgia, compreendida como a tragédia neoclássica,
de modo que a comédia e seus congêneres populares estariam automaticamente
excluídos dessa definição.35 Mesmo antes do período republicano, a opinião da elite
intelectual negou constantemente a existência de um teatro de características
populares e no qual a maior parte da população brasileira via expressos seus
desejos e vivências e que portanto, estava mais próximo daquilo que se podia
compreender como o povo brasileiro, para o qual os autores do período voltavam os
olhos em função da necessidade de estabelecer uma definição da nossa identidade.
Uma das principais queixas dos críticos teatrais do período era a ausência de
público nas produções de dramas nacionais e outra, o excesso de subserviência aos
modelos do teatro estrangeiro. Neste sentido, é importante a observação de Bárbara
Heliodora:
[...] o teatro, é preciso que admitamos, não perdoa: ele reflete o ambiente
em que é escrito, quer queiramos, quer não queiramos e não adianta
ficarmos “falando mal” do teatro brasileiro da época, dizendo que ele imitava
o estrangeiro, quando na realidade era ao próprio Brasil que faltava essa
brasilidade: o teatro imitativo não fazia mais do que mostrar a força do
36
colonialismo cultural.
Bárbara Heliodora acerta no ponto, pois estamos falando de uma época de
busca pela definição do que seria a nação Brasil, ao mesmo tempo em que havia
uma certa obsessão pelo progresso, pela superação do atraso em que vivia o país.
E esse progresso, viria necessariamente das nações européias e não dos trópicos.
Daí a imitação de costumes, a ponto de se cometer alguns absurdos como usar
roupas inadequadas para o clima brasileiro unicamente para seguir à moda
francesa, como bem descreve Jeffrey Needell, em seu livro Belle Epoque Tropical.
Para críticos teatrais do período, no entanto, como a comédia em si mesma
não era admitida, havia uma sensação de ausência de peças nacionais nos palcos e
de invasão estrangeira. Disto decorre o desabafo de Machado de Assis no seu já
citado ensaio Instinto de Nacionalidade. Quando o autor se propõe a escrever sobre
o teatro (então visto como parte indissociável da literatura), afirma:
35
BRAGA, Claudia. Em busca da Brasilidade: teatro brasileiro na primeira república. São Paulo:
Perspectiva, 2003. p.29.
36
HELIODORA, Bárbara. Algumas reflexões sobre o teatro brasileiro. Porto Alegre: UFRGS,
1972. p.7.
24
Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente
teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça
nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de
traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional
quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau da
decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com
37
vocação para compor obras severas de arte.
Na visão do crítico, escritor e ensaísta, o teatro se afastava nesse momento
daquilo que se entendia como literatura, aproximando-se cada vez mais do
espetáculo. A visão foi compartilhada pelos demais autores da crítica de então a
ponto de se imputar àquele momento a pecha de “período de decadência” do teatro
brasileiro.
Ocorre que, o teatro, para além de atender às expectativas dos intelectuais,
precisava agradar também ao público, que tinha expectativas muito distantes das da
crítica teatral do período. Artur Azevedo foi reconhecido como o maior representante
deste movimento teatral em que prevaleceram gêneros cômicos, tendo se tornado
conhecido tanto pela sua extensa produção voltada para o teatro popular, quanto
pela escrita de textos de crítica teatral publicados em jornais. Homem de seu tempo,
considerava a comédia um gênero menor, mas era um pouco mais complacente e
acreditava numa convivência pacífica entre os gêneros que mais agradavam ao
público e aqueles que interessavam aos literatos, tanto que se aventurou por ambos
os caminhos. 38
Diversas vezes, Artur Azevedo viu-se obrigado a responder às críticas que
recebia por sua produção voltada para o teatro popular, explicando o motivo de suas
opções estéticas. Para ele, a acusação de ser o principal agente da decadência do
teatro nacional por atrair as atenções do público para o gênero cômico parecia
injusta, uma vez que ele mesmo sentia-se preocupado com a situação que lhes
parecia crítica, mas só acreditava numa solução mediada pelo governo, daí a sua
militância a favor da construção do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.39 A
esperança de que a situação se mostrasse melhor a partir da construção de um
37
ASSIS, Machado de.Op. Cit.
38
NEVES, Larissa Oliveira. As Comédias de Artur Azevedo: em busca da História. 458 p. Tese
(Doutorado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2006. p.41.
39
FARIA, João Roberto. Op. Cit. p.171.
25
novo teatro, ele expressa em sua peça teatral O Mambembe, encenada pela
primeira vez em 1904, através da fala de Frazão:
Não te entristeças por isso, filha: o nosso teatro, no estado em que
presentemente se acha, não deve seduzir ninguém. Espera pelo Teatro
40
Municipal.
Ao escrever suas comédias, Artur Azevedo tinha consciência de que produzia
peças em um gênero tido como divorciado da literatura, mas acreditava que mesmo
neles poderia haver um pouco de arte41, de forma que afirmava em sua defesa:
Se o gênero foi deturpado por alguns escritores bisonhos ou ineptos, não
me cabe nisso a menor culpa. Em todas quanto escrevi, sozinho ou de
colaboração com Moreira Sampaio, Aluísio Azevedo e Lino de Assunção, há
– quer queiram quer não queiram – certa preocupação de arte que as
separa de algumas baboseiras que sob o nome de revistas de ano se têm
42
exibido em nossos teatros.
Outro argumento comumente usado por Artur Azevedo em sua defesa, era o
de que não era ele o responsável pela decadência do teatro nacional, mas o próprio
público que preferia o gênero cômico. Assim o autor afirmou em 1904 no jornal O
País em artigo intitulado Em defesa:
[...] todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi
censuras, ápodos, injustiças e tudo isso a seco; ao passo, que enveredando
pela bombachata, não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e
proventos. Relevem-me citar esta última fórmula de glória, mas – que diabo!
43
ela é essencial para um pai de família de vive da pena!.
A diferença existente entre as expectativas do público, por um lado e dos
literatos, por outro, expressa os contrastes existentes no interior da própria
sociedade brasileira do período. Pode-se ainda observar o abismo que havia entre o
Brasil que se pretendia e aquele que de fato existia naquele momento.
40
AZEVEDO, Artur. O Mambembe: Edição especial para distribuição gratuita pela Internet, através
da
Virtualbooks.p.
91.
Disponível
em:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/o_mambembe.htm.
41
FARIA, João Roberto. Op.Cit. 171.
42
AZEVEDO, Artur. In.: A Notícia, 5 de março de 1896. Transcrito na Revista de Teatro da SBAT, nº
325, jan/fev. de 1962. p. 16.
43
AZEVEDO, Artur. Em Defesa. In.: O País. Rio de Janeiro, 16 de maio de 1904. Transcrito por
FARIA, João Roberto. In.: Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. Op. Cit. p.608.
26
O mais interessante é de observar em Artur Azevedo é que apesar do autor
ter assumido um compromisso com seu público antes de tudo, rompendo em certa
medida com aquilo que a intelectualidade esperava de um grande autor de teatro
naquele momento, jamais deixou de se preocupar com a qualidade do teatro
brasileiro.
44
Sua discordância com os demais críticos da época foi apenas com
relação ao gênero em si, pois acreditava que o que tornava uma peça inferior não
era necessariamente seu gênero, mas o modo como era escrita:
E as suas, pelo menos, sempre o foram com cuidado e muito trabalho,
tendo em vista agradar não à massa geral do público, mas a um grupo de
45
espectadores ‘que sabem dividir o joio do trigo’.
Ainda que aparentemente o autor tenha acreditado na negação da qualidade
de suas peças por parte da crítica do período, observamos em suas comédias uma
produção tipicamente brasileira. Num momento em que a crítica almejava um teatro
com autor e temática brasileira, suas comédias colocam em cena homens humildes
e homens letrados, negros, mulatos, caipiras. Os cenários das peças do autor
podem trazer a cidade do Rio de Janeiro modernizada que seduz pelas suas
belezas, pequenas cidadelas interioranas e suas festas populares, e ainda a
periferia e o povo marginalizado. A fala dos personagens é antes de tudo, o
português brasileiro e marcado por diferenças regionais, opondo-se assim, à
preferência do uso do léxico e da sintaxe lusitanas, presentes nas obras literárias da
época.
Para além da discussão à qual sua obra foi submetida pela crítica que lhe foi
contemporânea, Artur Azevedo interessa-nos neste momento, por se tratar de um
homem inscrito em dois mundos, o mundo da elite intelectual e o do povo. Dois
mundos estes, que em última instância são um só: o Brasil da virada do século.
44
BRAGA, Claudia. Op. Cit. p. 59.
45
FARIA, João Roberto. Op. Cit. p. 174.
27
3 HUMOR E NARRATIVA NACIONAL
“A maioria dos acontecimentos é indizível,
realiza-se em um espaço que nunca uma
palavra penetrou, e mais indizíveis do que
todos os acontecimentos são as obras de arte,
existências misteriosas, cuja vida perdura ao
lado da nossa que passa”.
Reiner Maria Rilke, Cartas a um Jovem poeta.
3.1 OS GÊNEROS CÔMICOS NO BRASIL DA PASSAGEM DO SÉCULO:
Ao longo da história do teatro brasileiro, a comédia foi sempre o gênero pelo
qual “desfilaram com maior felicidade os tipos característicos desta sociedade
brasileira”.46 Permanecendo distanciados das expectativas e por extensão dos
limites estreitos definidos pela crítica especializada, os nossos comediógrafos, cada
um a seu tempo, fizeram o povo rir através da crítica de costumes, vocação primeira
da comédia. Neste sentido, a pesquisadora Claudia Braga explica que o teatro
brasileiro, na virada do século, já tinha uma tradição voltada para a produção de
peças pertencentes aos gêneros cômicos, o que teria sido um motivo para o
conhecimento técnico teatral que possuíam os comediógrafos desse período47.
Fundamentalmente, dentre os subgêneros possíveis da comédia, aqueles que
se tornaram mais populares no Brasil da passagem do século foram os relacionados
ao teatro musicado. Artur Azevedo, que percorreu os gêneros cômicos “de alto a
baixo”48, soube encantar o público em espetáculos baseados na alegria e na música
ligeira. A comédia de costumes, que se iniciou nos primeiros anos do século XIX e
já contava com uma tradição de autores desde as bem sucedidas apresentações de
Martins Pena, continuou a chamar a atenção do público e aos poucos, foram
surgindo inovações estéticas que possibilitaram uma proximidade ainda maior do
público com as representações de caráter cômico. Essas inovações, no entanto,
46
BRAGA, Claudia. Em Busca da Brasilidade: teatro brasileiro na primeira república.São Paulo:
Perspectiva, 2003. p.55.
47
Idem.
48
Expressão utilizada por Décio de Almeida Prado, em História Concisa do Teatro Brasileiro,
fazendo menção aos diferentes subgêneros cômicos e à hierarquia presente neles. Aqui, utilizamos
o termo emprestado, mas destituído do tom pejorativo que adquiriu no texto do referido autor.
28
tornaram-se ainda mais mal vistas pela crítica, pois ocupavam um lugar na
hierarquia de gêneros inferior ao da própria comédia de costumes.
No final da década de 1850, fora representada na França a peça Orphée aux
Enfers, um tipo de peça teatral em que a música ganhava especial destaque, por
vezes se sobressaindo ao texto. Era a criação da opereta, gênero em que o enredo
cênico se misturava à música e à dança alegre, em que muitas vezes estava
presente o famoso cancã. No Brasil, abriu-se espaço para traduções, em que se
mantinha a música e algumas coreografias, mas a ação era transferida para o Brasil.
O gênero tornou-se extremamente popular e ao mesmo tempo em que as operetas
francesas eram encenadas em sua língua original no Alcazar49, as versões
brasileiras se multiplicavam. 50
Em 1876, Artur Azevedo teria produzido a sua primeira paródia de opereta, A
Filha de Maria Angu, que teve mais de cem representações naquele ano. Após ter
alcançado familiaridade com o gênero através das traduções, o autor escreveu
operetas originais, com texto e música brasileiros. É o caso de Os Noivos e a
Princesa dos Cajueiros, encenada em 1880. 51
Outro gênero de grande sucesso no período foi a mágica, no qual o texto
teatral serve como pretexto para uma encenação recheada de surpresas e truques.
O enredo em geral era cômico, mas também poderia ser alegórico ou de fundo
moralista e as personagens em sua maioria eram fadas, gnomos e outros seres
sobrenaturais. Era um tipo de representação em que o texto adquiria um caráter
bastante secundário diante do trabalho do maquinista e do cenógrafo, que
ganhavam destaque nos anúncios de jornais. Assim compreendem-se as
declarações de pesar por parte da crítica ao observarem o crescimento de gêneros
em que o texto (e a literatura) cada vez mais era colocado em segundo plano. 52
49
Segundo as explicações de Larissa Oliveira Neves, o Alcazar era uma casa noturna, que sob a
alcunha de teatro, trazia à cena cançonetas, danças, comédias ligeiras e, principalmente, a grande
novidade, a opereta. As atrizes do Alcazar, freqüentemente eram também prostitutas, o que gerava
uma confusão ainda maior e que fez com que as operetas em si fossem encaradas pela crítica
como mera diversão, completamente divorciada da literatura.
50
FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais: O século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.
p.146.
51
Ibidem. p. 147.
52
Ibidem. p. 148-150.
29
A verdade é que o teatro se afastava das ditas pretensões literárias na
mesma medida em que se aproximava de um novo público, completamente voltado
para o teatro de diversão. Esse tipo de teatro tornou-se um empreendimento
comercial muito lucrativo, a ponto de Larissa de Oliveira Neves afirmar que se
tratava de uma primeira indústria cultural brasileira, ainda que repleta de altos e
baixos para artistas e empresários. A arte teatral tornava-se então, e pela primeira
vez, comercializável, o que trouxe como conseqüência a não aceitação dos gêneros
ligeiros – a opereta, a mágica, as revistas de ano e as burletas – diante da alegação
de que atender ao gosto do público significava “rebaixar a arte dramática a uma
simples atividade de compra e venda”. 53
De forma geral, as companhias teatrais de então escolhiam seu repertório de
acordo com o tipo de espectador que freqüentavam os teatros e deste modo,
também os escritores dividiam-se entre aqueles que escolhiam escrever textos
capazes de agradar o “público” e aqueles que se preocupavam em produzir obras
consideradas de caráter elevado e que, portanto, atingissem as expectativas da
crítica teatral e da elite intelectualizada. Artur Azevedo foi um dos poucos escritores
que escreveu para os dois tipos de platéia, como afirma Neves: “Ao escrever uma
peça, ele sabia antecipadamente a quem o texto seria destinado; por conta disso,
encontramos em sua obra exemplos dos diferentes gêneros teatrais”. 54
Com a proximidade do final do século XIX, foi ocorrendo uma mudança com
relação às classes sociais daqueles que freqüentavam o teatro, pois a arte se
tornava cada vez mais popular. Segundo dados levantados por Neves, o valor dos
ingressos para as “gerais” na década de 1890 era comparável ao preço da
passagem de ida e volta de um bonde entre os pontos mais distantes da cidade do
Rio de Janeiro. O público, portanto, desses teatros populares provavelmente era
formado por trabalhadores especializados, funcionários públicos ou ambulantes,
pessoas de baixo poder aquisitivo, mas que poderiam pagar uma entrada no teatro
vez ou outra. 55
53
NEVES, Larissa Oliveira. As Comédias de Artur Azevedo: em busca da História. 458 p. Tese
(Doutorado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2006. p. 46.
54
Ibidem.p. 22.
55
Ibidem. pp. 22-23.
30
Se levarmos em consideração que nesse período um grande sucesso teatral
atingia cerca de cem representações com casa cheia e que a elite intelectualizada
desprezava esse tipo de espetáculo, podemos concluir que a grande maioria das
pessoas que tinham condições financeiras mínimas para tanto freqüentava o teatro.
Segundo dados levantados por Sylvia Damázio, nessa época, apenas 14% da
população sabia ler e escrever, o que significa que a maioria dos espectadores de
teatro do período não tinha qualquer instrução formal.56
Se a intenção era atingir o público pobre e analfabeto, era preciso que o texto
teatral fosse simples e que a representação chamasse a atenção pelos cenários,
pela música e pelos figurinos, pois, nas palavras de Larissa de Oliveira Neves:
O ‘público’ compunha-se, em grande parte, de pessoas humildes,
trabalhadores especializados, mas não formalmente educados, que
buscavam diversão após um dia de labor exaustivo. Desse modo, peças
prolixas, recheadas de diálogos espirituosos, com referências literárias ou
artísticas eruditas, não obtinham seu agrado. O ‘público’ analfabeto e
57
cansado, dificilmente entenderia as referências eruditas.
Essas são as características do público que se voltou para os gêneros
cômicos e de entretenimento como a opereta e as mágicas. Na década de 1880,
surgiria ainda uma outra novidade vinculada ao teatro ligeiro, eram as Revistas de
Ano, que passavam em revista os principais acontecimentos do ano anterior. Tudo
aquilo que fora importante ou que tivera repercussão popular era colocado em cena,
ganhando um tratamento cômico. O gênero nasceu na França, ainda no século
XVIII, no teatro que se fazia nas feiras, mas perdeu espaço para a opereta a partir
de 1860. Ainda assim, foi em Paris, onde esteve em 1882 que Artur Azevedo
encontrou o modelo a partir do qual escreveria sua primeira revista de ano O
Mandarim, que foi um grande sucesso. 58
A exemplo dos demais gêneros cômicos existentes na época, as revistas de
ano também incomodaram fortemente a crítica teatral de então. As revistas
encontraram forte apelo junto às platéias populares em função da sua “inegável
56
DAMAZIO, Sylvia F., Retrato Social do Rio de Janeiro na Virada do Século. Rio de Janeiro: Ed.
UERJ, 1996. p. 123.
57
NEVES, Larissa de Oliveira. Op. Cit. p. 25.
58
FARIA, João Roberto. Op. Cit. pp. 160-161.
31
brasileirice” 59 e foram o carro chefe da produção de Artur Azevedo entre os anos de
1884 e 1906, convertendo-se no gênero teatral mais popular do período. Neste
sentido, afirma João Roberto Faria:
Com a comicidade da farsa, da caricatura e da linguagem maliciosa; com
música brincalhona e alegre, apoiada em versos simples e comunicativos;
com cenários vistosos e arranjos cênicos extraordinários que culminavam
na apoteose final – um quadro de exaltação de uma personalidade, um
sentimento, uma idéia, um evento etc, - a revista de ano tornou-se o gênero
60
mais popular do teatro brasileiro dos últimos decênios do século XIX.
Para Flora Süssekind, que estudou em detalhes as revistas de ano escritas
por Artur Azevedo, a importância e o sucesso desse gênero na passagem do século
decorreu da sua capacidade de sintetizar e ordenar o meio urbano, que num
momento de modernização, modificava-se muito rapidamente, causando espanto e
desconforto para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Para a autora, as
pessoas viviam uma sensação de perda do controle sobre o ambiente pelo qual
circulavam diariamente e as revistas eram modos de se retomar esse controle:
A impressão que se tinha ao [...] assistir uma revista de ano era [...] de
súbito controle sobre a história e o espaço urbano, condensados nessas
miragens tranqüilizadoras da Capital, as revistas [...]. Nelas, é a cidade que,
dotada de movimento próprio, revive teatralmente diante do olhar espantado
do espectador. E acelerado o tempo, num único espetáculo é um ano inteiro
que passa. Assim como, condensada a representação da cidade, é num
61
simples palco italiano que cabem toda a Capital e sua História.
Os anos em que Artur Azevedo se dedicou às revistas, paródias de operetas
e operetas serviram para que no final do século fossem criadas as burletas, gênero
que, como explica Décio de Almeida Prado, é bastante indefinido e que por isso
mesmo poderia designar essas peças que consistiam numa mistura da comédia de
costumes, da opereta, da revista e da mágica.
62
Para a pesquisadora Larissa de
Oliveira Neves, foi nesse gênero que Artur Azevedo demonstrou maior maturidade
intelectual e cênica, pois:
59
BRAGA, Claudia. Op. Cit. p. 56.
60
FARIA, João Roberto. Op. Cit. p. 163.
61
SÜSSEKIND, Flora. As Revistas de Ano e a Invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. pp. 59-62.
62
PRADO, Décio de Almeida. Op. Cit. p. 148.
32
Nelas, os elementos do teatro musicado integram-se harmoniosamente: os
versos fáceis musicados, as fábulas engraçadas e satíricas, as personagens
cômicas das operetas, o ritmo acelerado, as mudanças de cenário a cada
quadro, as apoteoses, a alusão cômica aos assuntos nacionais das revistas
63
e os cenários deslumbrantes das mágicas.
Uma vez que nesse tipo de produção, vinculada ao teatro de entretenimento,
Artur Azevedo sentia-se livre para explorar os elementos da cultura popular
brasileira, diferentemente do que seria possível através de outros gêneros ou
mesmo das comédias “sérias”, foi nele que o autor melhor retratou o homem
brasileiro.
Além disso, nas burletas o uso da linguagem é feito de uma forma
inovadora para os padrões de então. A fala das personagens é o português
brasileiro, pois os próprios homens e mulheres brasileiros que o autor desejava
retratar, falavam um português muito distante daquele lusitano, de grande prestígio
literário. No próximo capítulo, analisaremos as suas três peças pertencentes a esse
gênero: O Cordão (1908), peça em que é colocada a questão da repressão aos
populares cordões carnavalescos que ocorriam no Rio de Janeiro; A Capital Federal
(1897), cujo texto se desenvolve em torno da vinda de uma família do interior de
Minas para o Rio de Janeiro, trazendo uma reflexão a respeito das diferenças entre
a vida da cidade e a vida no campo; e O Mambembe (1904), na qual o autor discute
a situação do próprio teatro de sua época através da história de um grupo de teatro
itinerante que apresenta espetáculos no interior do Brasil.
3.2 LITERATURA E HISTÓRIA – PAUSA NECESSÁRIA:
Para analisar as três referidas peças, foi necessário realizar algumas
reflexões de ordem teórica que orientaram nossa leitura dos textos de Artur
Azevedo. O primeiro passo foi estudar autores que investigaram a relação entre
História e Literatura, de modo a compreender de que forma o texto do autor se
comunica com o seu próprio tempo histórico.
História e literatura são essencialmente diferentes. Enquanto a história possui
um compromisso com a objetividade, com os fatos e com uma construção
verossimilhante do passado, a literatura está inscrita no terreno da subjetividade, da
criação e do prazer. Marilene Weinhardt, em seu texto Ficção e História: Retomada
de Antigo Diálogo, afirma que já houve um tempo em que um ficcionista poderia ter
63
NEVES, Larissa de Oliveira. Op. Cit. p. 49.
33
invejado um historiador por não compartilhar de sua intimidade com os documentos,
para atingir o que se supunha ser a verdade. “A crença na transparência da
referencialidade histórica e na neutralidade do discurso dito científico era
incontestável, desprezando-se ou fingindo-se ignorar as sombras que turvam essa
translucidez”.
64
Por outro lado, o trabalho do ficcionista não poucas vezes pode ter
sido o objeto de desejo por parte dos historiadores, pelo seu aparente
descompromisso com o mundo por ele criado e isto num momento em que os
estudiosos da literatura buscaram elaborar um instrumental que lhes permitissem o
acesso à objetividade científica. A relação entre literatura e história, no entanto, não
se faz apenas de contradições, pois ambas se materializam por meio do trato com
as palavras, através da narrativa.
História e narrativa estiveram afastadas durante muito tempo, em função do
processo de cientificização da história, que possui importante marco no Iluminismo.
Antonio Paulo Benatti explica que a recusa da narrativa na historiografia moderna,
esteve ligada a uma “vontade de verdade” na cultura ocidental que visava a
transformação da história num saber racional, de caráter científico e, portanto,
afastado de qualquer resíduo imaginativo ou fantasioso. No século XIX, a história
estabelece-se enquanto disciplina acadêmica e por parte dos historiadores
permanece a recusa à narrativa, numa estratégia de vincular o discurso histórico à
idéia de veracidade e de relação imediata com o passado. O positivismo, desta
forma, investiu no combate às formas literárias de escrita da história, sendo o papel
do verdadeiro historiador o de descrever o mundo de forma rigorosa, distante dos
ornamentos literários e das afirmações sem provas.
Durante o século XX, o afastamento entre História e Narrativa se manteve,
ainda que em nome de novos argumentos. A narrativa foi identificada com um relato
meramente cronológico dos acontecimentos e em nome de uma ciência histórica
estrutural e processual, combateu-se “a ingenuidade epistemológica da história
factual”.
65
Sob diferentes formas, esta crítica esteve presente tanto em
64
WEINHARDT, Marilene. Ficção e História: Retomada de antigo diálogo. In: Revista Letras. Nº.
58. Curitiba: Editora UFPR, 2002.p. 106.
65
BENATTI, António Paulo. História, Ciência, Escritura e Política. In.: RAGO, Margareth. GIMENES;
Renata A. de Oliveira (orgs). Narrar o Passado, Repensar a História. Campinas: Unicamp,
2000.p. 76.
34
considerações de historiadores marxistas, quanto daqueles relacionados à história
dos Annales.
O renascimento da narrativa ocorre com a crise dos modelos da ciência. O
termo é o utilizado por Lawrence Stone em 1979, com o ensaio O renascimento da
narrativa: reflexões sobre a velha nova história, em que o autor detectava na
produção historiográfica uma tendência para o retorno da forma narrativa de escrita,
face ao esgotamento dos modelos deterministas e monocausais, ao declínio do
marxismo e do compromisso ideológico dos intelectuais e mesmo, às preocupações
com a ampliação do público leitor e o crescente interesse pela história das
mentalidades.
66
As reflexões realizadas a partir de então sobre o conhecimento histórico, seja
pela filosofia, pelos estudos literários, ou mesmo pela história intelectual levaram à
compreensão de que toda e qualquer forma de história é dependente de
procedimentos de composição próprios à narrativa. A respeito destas questões, é
interessante a colocação de Paulo Benatti que afirma que nunca houve um
abandono da narrativa na prática historiográfica, simplesmente porque este seria
impossível, uma vez que a história é um tipo de escrita. O que teria ocorrido, para o
autor, seria uma camuflagem, um recalcamento face à necessidade dos
historiadores estabelecerem seu trabalho como científico.
Hayden White e Dominick La Capra levaram essa discussão às suas últimas
conseqüências, estando ambos preocupados em questionar a legitimidade das
fronteiras que separam a história da literatura e da filosofia, em enfatizar o papel
decisivo da linguagem em nossas descrições e concepções da realidade histórica.
Para os autores, a história permanece imersa em paradigmas literários e científicos
do século XIX, num momento em que a literatura e a ciência já superaram esta fase.
Para Hayden White, a interpretação histórica seria um procedimento distante
da ciência que se constrói recorrendo ao recorte inconsciente e consciente do que
ocorreu no passado para efetuar uma narração e a historiografia teria, portanto, um
“estranho
recalque
ao
elemento
literário
que
lhe
seria
intrínseco”67.
As
considerações de White vão no sentido de restringir as diferenças entre história e
66
Ibidem. p. 83.
67
CARDOSO Jr., Hélio Rabello. Tramas de Clio, convivência entre filosofia e História. Curitiba:
2001. p. 22.
35
literatura ao conteúdo ao qual os textos se referem, anulando, assim, a distinção
formal entre as narrativas históricas e ficcionais e relegando-lhes ao status comum
de construções verbais. As colocações do autor causaram polêmica entre os
historiadores, que consideraram que seus argumentos desqualificavam a história ao
reduzi-la à narração.
As reflexões de La Capra giram em torno da idéia de que a escrita da história
impõe um desafio à coerência que as estruturas da narrativa literária e filosófica
procuram padronizar. Para o autor, a historiografia permanece presa ao século XIX
em função daquilo que ele chama de hegemonia da história social, que seria
“caracterizada por uma tendência a ler os textos e documentos de modo
unidimensional, sem abrir-se para o pluralismo de vozes que nele se mesclam,
desafiando toda pretensão de unidade ou padrão significacional”.68 A proposta de
cruzamento entre História e literatura se faz no sentido da crença de que a literatura
auxiliaria o historiador a transcender os limites da história social, reconstruindo as
categorias históricas tradicionais.
Numa outra via de interpretação, encontra-se a idéia de que a narrativa e os
fatos se relacionam através de um sujeito de ação que cria uma unidade. E.P.
Thompson, historiador de tradição marxista, encara a narrativa como forma
adequada de expressão de processos sociais como lutas políticas, cultura popular e
vida cotidiana. A volta à narrativa, não representa, no entanto para o historiador, que
os procedimentos científicos inerentes ao fazer história sejam descartáveis, pois:
O conhecimento histórico é, por sua natureza, (a) provisório e incompleto
(mas, não por isso inverídico), (b) seletivo (mas não, por isso, inverídico), (c)
limitado e definido pelas perguntas feitas à evidência (e os conceitos que
informam essas perguntas), e, portanto, só “verdadeiro” dentro do campo
assim definido. Sob esses aspectos, o conhecimento histórico pode se
afastar de outros paradigmas de conhecimento, quando submetido à
investigação epistemológica. [...] Embora qualquer teoria do processo
histórico possa ser proposta, são falsas todas as teorias que não estejam
em conformidade com as determinações da evidência. [...] embora o
conhecimento histórico deva ficar sempre aquém da confirmação positiva
(do tipo adequado à ciência experimental), o falso conhecimento histórico
69
está, em geral, sujeito à desconfirmação.
68
Ibidem. p.23.
69
THOMPSON, Edward Palmer. Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987. pp. 49-50.
36
Também Natalie Zemon Davis se inscreve nas discussões acerca das
relações entre história e narrativa literária a partir da publicação de O retorno de
Martin Guerre, em 1983. No livro, que atingiu grande sucesso editorial por
relacionar-se ao filme de mesmo título dirigido por Jean Claude Carrière (cujo roteiro
contou com a colaboração da autora) conta a história de Martin Guerre, camponês
casado com Bertrande de Rols que após um desentendimento familiar, muda-se
para a Espanha deixando a esposa e o filho retornando anos mais tarde. Ocorre que
este que retorna e é acolhido pela família, não é o verdadeiro Martin Guerre, mas um
impostor, como fica claro ao fim de inúmeras reviravoltas que ocorrem na história. A
análise que Davis realiza desses acontecimentos causou polêmica entre os
historiadores por se dar através de uma narração de estrutura romanesca e que se
permite inventar. A documentação disponível para a investigação do caso era
bastante escassa e em busca de reconstruir aqueles acontecimentos, a historiadora
recorreu à análise das conjecturas ao mesmo tempo que se permitiu utilizar verbos
no condicional, formulando hipóteses a respeito daquilo que poderia ter acontecido.
Em resenha desse livro Ana Paula Vosne Martins atestou que Natalie Davis
ao escrever este livro “problematizou a relação entre provas e possibilidades, entre
invenção e criação, entre verdadeiro e verossímel”.70 Davis recebeu duras críticas
em função da forma pela qual optou em escrever o livro e teve que responder às
acusações de suas análises não se sustentarem em evidências. A invenção
defendida pela autora, no entanto, não é ingênua e estabelece-se como uma
armação metodológica para o trabalho da autora e deste modo, o preenchimento
das lacunas deixadas pelas fontes se faz num momento em que Davis já possui
vasta experiência a respeito da sociedade e da cultura camponesas no século XVI.
Para pensar na relação entre a obra de Artur Azevedo e o seu tempo
histórico, as idéias que mais nos pareceram pertinentes, foram as elaboradas pelo
chamado Novo Historicismo, grupo que dedicou atenção peculiar à relação texto –
contexto e que tem em Stephen Greenblatt seu principal representante. O corte texto
– contexto histórico é criticado por Greenblatt não no sentido de banir a distinção,
mas numa tentativa de explicar que há relações complexas entre o texto e as
diversas formas de produção social. História e literatura, para o autor, são forças
70
MARTINS, Ana Paula Vosne. Reflexões sobre a narrativa e pesquisa histórica à luz do livro “O
Retorno
de
Martin
Gerre”
de
Natalie
Zemon
Davis.
Disponível
em:
http://people.ufpr.br/~andreadore/leiturasdahistoria/programa.html. Acessado em: 11/11/2008.
37
criativas que perpassam todos os domínios da atividade humana. Greenblatt, neste
sentido, está interessado na relação entre as realidades referenciais e as escritas
tanto da história quanto da literatura. Um texto seria assim, um tecido composto por
estes dois fios (história e literatura) entrelaçados.
O Novo Historicismo interessa-nos ainda, pelo fato de ter retomado algumas
idéias de Herder, filósofo alemão do final do século XVIII, que foram descritas por
Isaiah Berlin sob a denominação de expressionismo. Em linhas gerais, trata-se de
uma teoria baseada na idéia de que “as atividades humanas em geral, e a arte em
particular, expressam a personalidade completa do indivíduo e do grupo social em
que foram produzidas”.
71
Isso quer dizer que toda e qualquer obra humana está
necessariamente vinculada a seu criador e também a seu povo e assim sendo,
através da expressão artística, têm-se o acesso ao modo de pensar de cada grupo
social, seus desejos e necessidades. É importante dizer que para Herder, o
processo ocorre de forma natural, ainda que não haja a intenção do autor. O Novo
Historicismo, por seu turno, busca nos textos a compreensão de significados que
aqueles que o produziram nunca pensaram que poderiam ser articulados, pois, nas
palavras de Catherine Gallagher e Stephen Greenblatt: “[...] buscamos algo mais,
algo que os autores por nós estudados não lograriam capturar por falta de
distanciamento de si próprios e de sua época”. 72
Tais idéias relacionam-se muito diretamente com a produção de Artur
Azevedo, pois o autor escreveu peças que ele mesmo entendia como distantes das
buscas estéticas do período, mas que ainda assim, expressavam através de seu
texto algo de genuinamente nacional. Neste ponto, há uma relação possível entre
esse ideário e as comédias de Artur Azevedo, pois nelas estão expressos os
costumes, as pessoas e o pensamento de seu tempo, ainda que não possamos
afirmar que tenha existido alguma intenção do autor em fazê-lo.
A partir do expressionismo herderiano, o Novo Historicismo manifesta a idéia
de que “as fontes mais profundas da arte” não se encontram na habilidade individual
de quem a produz, mas nos recursos íntimos de um povo em determinado tempo e
71
BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Brasília: Editora da UnB, 1982. pp. 139-140.
72
GALLAGHER, Catherine; GREENBLATT, Stephen. A Prática do Novo Historicismo. Bauru:
Edusc, 2005. p. 21.
38
lugar.73 Essa afirmação faz menção à polêmica já bastante debatida em torno do
conflito existente entre a concepção de textos literários como produções autônomas
e a idéia de que o texto é translúcido historicamente, de modo que a arte seria uma
confirmação de acontecimentos, um signo cujo significado é direto e facilmente
encontrável.
A proposta do Novo Historicismo aponta, numa terceira via de interpretação,
para as complexas relações entre o texto literário e as demais atividades humanas.
Se a natureza da obra literária é essencialmente paradoxal (uma vez que ao mesmo
tempo em que ela é signo de uma história, ela é resistência a esta história) é preciso
dessacralizá-la, localizando-a no tempo para compreender que a viabilidade da obra
não decorre apenas da genialidade de seu autor, mas de condições históricas. É
preciso, portanto, ir além da sensação de veneração que a obra nos causa, para
compreender o quanto ela é capaz de ressoar o seu momento histórico.A postura de
reverência diante da obra de arte é substituída no Novo Historicismo pela sensação
de encantamento, que se compreende como o poder que a arte tem de “pregar o
espectador em seu lugar, de transmitir um sentimento arrebatador de unicidade, de
evocar uma atenção exaltada”.74
A idéia de encantamento, assim como a de ressonância é um conceito-chave
para a compreensão da proposta novo historicista. Por ressonância, compreende-se
o poder que o objeto tem de conseguir transcender os seus limites formais,
evocando “forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais
pode ser considerado pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque”.75
Como o Novo Historicismo não está preocupado apenas com o estudo das
grandes obras literárias, questões que se referem às hierarquias estéticas não são
relevantes. As obras primas artísticas, que já foram estudadas e ovacionadas pela
crítica continuam sendo estudadas, mas também interessam outros textos, mesmo
aqueles considerados não-literários (como as revistas, operetas e burletas de Artur
Azevedo). 76 Pois, existe a preocupação em:
73
HERDER, Johann Gottfried Von. Apud. GALLAGHER, Catherine; GREENBLATT, Stephen. A
Prática do Novo Historicismo. Bauru: Edusc, 2005. p.17.
74
GREENBLATT. Stephen. O Novo Historicismo: ressonância e encantamento. In. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, vol.4, n.8, 1991. p. 8.
75
Idem.
76
GALLAGHER, Catherine; GREENBLATT, Stephen. Op. Cit. p. 20.
39
[...] deslocar parcialmente o foco da obra de arte, que é seu objeto formal,
para práticas correlatas aduzidas ostensivamente com o fito de iluminar
aquela obra. É difícil manter essas práticas num pano de fundo quando se
77
está questionando o próprio conceito de pano de fundo histórico.
As idéias Novo Historicistas servem de inspiração a esse trabalho, como que
um modo de chamar a nossa atenção para uma leitura das obras de teatro que não
se restrinja àquilo que já foi dito pela crítica e pela historiografia literárias; tendo sido
de crucial importância para que pensemos a relação entre o texto teatral e o
contexto histórico em questão.
3.3 HUMOR E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA:
Outra via de interpretação possível para a obra de Artur Azevedo encontra
respaldo nas afirmações de Elias Thomé Saliba relacionadas ao humor, que
segundo o autor, participa ativamente do processo de criação da imaginação
nacional construindo tipos visuais e verbais e criando estereótipos que confluem
para a formação do que se poderia compreender no momento como uma imagem do
homem brasileiro.
Ora, não é possível falar a respeito de Artur Azevedo sem tocar no problema
do humor. Provavelmente se o autor tivesse escrito apenas dramas ou mesmo
óperas, não teria sido submetido às críticas exacerbadas que recebeu. Ocorre que
em vez disso, escreveu para os gêneros voltados para o entretenimento. Assim
como afirma Claudia Braga, o problema que colocava a sua obra em discussão e
que o fez ser considerado o culpado pela situação de “decadência da dramaturgia
nacional”
78
pela crítica de seu tempo e pela história literária que foi construída a
partir de então, não foi propriamente a música, mas principalmente o riso.79
77
GREENBLATT. Stephen. Op. Cit. p. 7.
78
O período em que escreve Artur Azevedo foi designado pela historiografia literária como “período
de decadência” do teatro brasileiro. Atualmente, pesquisadores como Flávio Aguiar e Claudia Braga
têm se esforçado para repensar essa classificação, localizando-a no seu tempo histórico. Ainda
assim, observamos na grande maioria dos textos de autores que trabalham com a história do teatro
brasileiro, que o nome de Artur Azevedo aparece freqüentemente ao lado da palavra “decadência”.
Um exemplo, é no livro Idéias Teatrais, de João Roberto Faria, que trata do autor numa parte de
seu texto que se intitula: “Artur Azevedo e a Decadência do Teatro Brasileiro”.
79
BRAGA, Claudia. Op. Cit. p. 62.
40
O riso era em si mesmo, no período do qual tratamos, um problema para
aqueles homens letrados e preocupados com o futuro da dramaturgia nacional. E
assim era porque pretendia agradar e estava distante das questões “sérias” da vida,
como já dissemos anteriormente, e também porque possuía forte apelo popular. Se
civilização e progresso foram grandes lemas da Bella Époque brasileira,
compreende-se que os grupos dominantes não mediram esforços para realizar seus
objetivos. Ao mesmo tempo que se mostrava necessário reformar a cidade através
da modernização e da higienização do Rio de Janeiro, era preciso rever o universo
cultural, estimulando a difusão do saber erudito, aproximado do saber e da ciência,
afastando-se das crenças e práticas populares, que representavam um mundo que
precisava ser suplantado pela modernidade. 80
A presença física dos indivíduos identificados como pertencentes às classes
populares era indesejável, assim como as suas manifestações, nas quais estava
freqüentemente presente a marca do elemento negro81. Existia, portanto, um
panorama fortemente discriminatório especialmente na cidade do Rio de Janeiro,
onde atuava a elite intelectual brasileira. Nesse contexto, é natural que os gêneros
cômicos ligeiros fossem encarados pela crítica teatral como desprovidos de qualquer
utilidade , pois eram produzidos “com o fito único de agradar, e o que é pior, agradar
ao [...] tipo de platéia para a qual escrevia Artur Azevedo”.82
O que aos olhos da crítica não parecia de modo algum perdoável na comédia
é que ao mesmo tempo que ela serve para construir modelos identitários, ela pode
também destruí-los, e no caso, quando da formulação de uma imagem do brasileiro
através da comédia não se encontrou aquela imagem desejável pela elite. E isso
ocorre tanto pelas características fluídas da própria comicidade, quanto pela tradição
teatral da comédia de costumes, então existente no país que, nas palavras de
Claudia Braga:
[...] se propôs ao longo de sua história tanto ao objetivo de fazer rir, de
agradar, quanto ao de corrigir, pela exposição ao ridículo, diferentes
‘desvios de conduta’, peculiares a grupos ou indivíduos que lhe fossem
80
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos do carnaval carioca da Belle Epoque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 48.
81
Idem.
82
BRAGA, Claudia. Op. Cit. p. 63.
41
contemporâneos. O que não se lhe perdoou, portanto, foi que o ‘espelho’, a
‘imitação’ a que se tivesse proposto fosse da vida e dos costumes das
83
platéias populares, e não do Brasil ideal que se queria inventar.
Quando Elias Thomé Saliba discorre acerca da representação humorística,
comenta que o humor, não só no teatro, mas também nos jornais, foi tratado no
período como artigo ao qual cabia ocupar notas de rodapé, cantos de páginas, de
forma quase que marginal, pois o riso em si mesmo implicava uma certa
marginalidade. Face à rigidez do modelo proposto, o cômico aparecia como um
modo de “dizer o que não convém”. 84
Ocorre que a representação humorística não se define apenas como uma
percepção e sentimento de ruptura e de contrariedade, mas também como uma
“epifania da emoção” e, assim sendo, é capaz de produzir um discurso alternativo de
identidade, elucidando outras possíveis narrativas das nacionalidades.85 Se o próprio
sentimento nacional é baseado na idéia de distinção do outro, o humor por
característica produz também seus tipos e estereótipos “concisos, sintéticos e
rapidamente inteligíveis, mas também cheios de subtendidos, de omissões, de
silêncios, de não-ditos”.86
Segundo Saliba, concisão e condensação são características do humor que
fazem com que ele seja capaz de participar ativamente do processo de invenção do
imaginário social e, portanto, da própria identidade nacional de um país, pois:
Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é
a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma
função social. Digamo-lo desde já: essa será a idéia diretriz de todas as
nossas reflexões. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em
87
comum. O riso deve ter significação social.
Num momento em que pensar o Brasil, sua identidade e seu povo se
mostrava de grande importância para os nossos intelectuais, é compreensível que a
representação humorística participasse desse processo, ainda que fosse, para em
83
Idem.
84
Termo usado por Henri Bérgson em seu livro O Riso: ensaio sobre a significação do cômico.
Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
85
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle
Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 31.
86
Idem.
87
Ibidem. p. 22.
42
alguns momentos, destruir as expectativas da elite letrada. Como já dissemos
anteriormente, esse foi um momento em que nos discursos identitários se procurou
olhar para o povo. Ocorre que nesse olhar, descobriu-se um povo que não era
necessariamente aquilo que se queria ver e é justamente isso que o cômico, sempre
próximo do popular, não poderia e não deixou passar.
43
4 ARTUR AZEVEDO E A IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA
“LAUDELINA — Como o Brasil é belo! Nada lhe
falta!
FRAZÃO — Só lhe falta um teatro”.
Artur Azevedo, O Mambembe.
4.1 ARTUR AZEVEDO:
Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão em
7 de julho de 1855, passando mais tarde a assinar apenas Artur Azevedo. Segundo
o que nos conta seu mais famoso biógrafo, Raimundo Magalhães Júnior, é filho de
David Gonçalves de Azevedo, que fora vice-cônsul de Portugal em São Luís e Emília
Amália Pinto de Magalhães. Sua mãe já tinha sido casada anteriormente com um
comerciante e o deixou para viver com seu pai com quem teve ao todo cinco filhos
(três meninos e duas meninas). Anos mais tarde, o primeiro marido de sua mãe
morrera de febre amarela e seus pais puderam finalmente se casar. 88
Desde criança Artur demonstrava inclinação para o teatro, gostando muito de
brincar de escrever e adaptar peças que às vezes montava e exibia para seus
familiares. Aos nove anos de idade o autor teria escrito sua primeira peça, cujo texto
e montagem foram acompanhados por seu pai, que lhe sugeriu uma mudança de
título. Aos treze anos, foi colocado para trabalhar no comércio, mas logo fora
demitido por se importar mais com o teatro que com as mercadorias. Então seu pai
arrumou-lhe um outro emprego na administração provincial, onde ocupou o cargo de
amanuense (copista de textos a mão). Trabalhava enquanto escrevia suas primeiras
comédias que foram encenadas no teatro de São Luís, mas logo foi novamente
demitido por ter escrito e publicado versos satíricos em que alfinetava os sujeitos
mais importantes da cidade. 89
Ainda em São Luís participou de um concurso público, concorrendo à vaga de
amanuense da Fazenda e, conseguindo a classificação, transferiu-se para o Rio de
Janeiro, no ano de 1873. Em pouco tempo passou a trabalhar no ministério da
Agricultura, tendo também se dedicado ao magistério, ensinando língua portuguesa.
88
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Artur Azevedo e sua época. 4ª ed. São Paulo: Livros
Irradiantes S. A., 1971. pp. 4-5.
89
Ibidem. pp. 6-14.
44
Foi no jornalismo, no entanto, que fez carreira, tendo atuado nas mais diversas
funções. Ao longo de todos os anos em que trabalhou na imprensa, fundou inúmeras
publicações e fez parcerias com escritores de relevo, como Machado de Assis, junto
com o qual fora colaborador do periódico “A Estação”. 90
Manteve colunas em diferentes jornais para os quais escrevera sobre teatro e
outros eventos artísticos. As principais foram: A Palestra, no jornal O País; De
Palanque, no Diário de Notícias; e O Teatro no A Notícia. Juntamente com Lopes
Cardoso, dirigiu a Revista do Teatro desde 1879. Além das peças teatrais, nas quais
atreveu-se a escrever sobre os mais diversos moldes e gêneros, publicou contos,
histórias curtas, poesias e crônicas.
Iniciou de fato no teatro como tradutor de peças estrangeiras, tendo muitas
vezes alterado o sentido das frases dos textos traduzidos para melhor adaptá-las
para a realidade brasileira. Nas palavras de Magalhães:
Como quase todos os tradutores, Artur Azevedo, foi às vezes, traidor. Se
desconfiava do êxito de um texto, numa versão literal, tangenciava,
adaptando-o, deformando-o, parodiando-o, imitando-o, a fim de manter-lhe
ou realçar-lhe a graça, os efeitos cômicos, a vivacidade, que de outro modo
91
se desvaneceriam.
Através de uma viagem à França tomou conhecimento do gênero teatral da
revista e uma vez de volta ao Brasil, passou a escrever revistas de ano, inicialmente
em conjunto com Moreira Sampaio. As revistas de ano se transformaram num dos
gêneros teatrais de maior sucesso e poder de atração de público na virada do século
e Artur Azevedo tornou-se ainda mais conhecido por elas. Apesar de ter acreditado
na hierarquia de gêneros existente em seu tempo, tornou-se um artista popular, além
de crítico admirado pela sua erudição, pois possuía grande talento para o humor
direto, para os textos escritos para serem representados e para a paródia. 92
Na Academia Brasileira de Letras, foi o fundador da Cadeira de número 29,
cujo patrono é Martins Pena, outro importante comediógrafo do nosso teatro.
Durante muitos anos militou em prol da construção do Teatro Municipal do Rio de
90
Ibidem. pp. 18-27.
91
Ibidem. p. 30.
92
NEVES, Larissa Oliveira. As Comédias de Artur Azevedo: em busca da História. 458 p. Tese
(Doutorado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2006. p. 19.
45
Janeiro, cujas paredes chegou a ver subir, mas não viveu para ver a inauguração.
Faleceu no dia 22 de outubro de 1908, de um reumatismo que já o acompanhava
desde 1896.
Artur Azevedo foi um grande observador dos hábitos e costumes das pessoas
que viviam no Rio de Janeiro de sua época. Tudo aquilo que ocorria nas ruas, nas
casas, nos bares, nas praças, nos jogos, serviu de tema para as suas peças. No
teatro ligeiro a personagem principal ora foi a capital brasileira, envolta em
mudanças tão aceleradas quanto o próprio ritmo das peças, ora foi a gente de todas
as origens que por ali circulava. O autor aproximou-se do povo afirmando que essa
era sua única possibilidade, pois vivia de sua escrita, mas como veremos, não
poucas vezes demonstrou uma simpatia pelos hábitos populares que era no mínimo,
incomum entre os homens de letras de seu tempo.
4.2 DICOTOMIAS: CAMPO X CIDADE; ELITE X POVO:
Se num primeiro momento, como explicamos anteriormente, os discursos
acerca da identidade nacional brasileira foram construídos em torno da figura do
indígena idealizado, com o alvorecer da república e com a decorrente necessidade
de desvendar o povo brasileiro (em certa medida para poder controlá-lo), a nova
figura eleita foi o caipira, o caboclo, o sertanejo, diferentes nominações para
designar o homem brasileiro que vive no interior.
93
Ao mesmo tempo, nas
representações literárias do final do século, surgiu uma vontade de denunciar e de
retratar os problemas da sociedade brasileira.
Para Roberto Romano, o pensamento literário que surgiu no final do século,
de certa forma, recuperava o do período romântico, mas com uma diferença
fundamental. Ao retratar as mazelas do país e da população, não se tratava de
cultuar o sofrimento das pessoas, mas de um deslocamento por parte dos próprios
escritores, que então se transformavam em “cirurgiões”, desejosos de pensar a
93
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiros em sua própria terra: representações do
brasileiro, 1870-1920. São Paulo: Annablume, 1998. p.114.
46
realidade do Brasil para poder identificar os caminhos possíveis para seguir a partir
de então, trilhando um novo futuro. 94
No Brasil retratado por Artur Azevedo, nos deparamos com a grande
diversidade de classes sociais, de origens, de cor de pele, de modos de falar. Ao
que nos parece, diferente da maioria dos demais intelectuais de sua época, Artur
Azevedo demonstra uma simpatia por essa diversidade e pela parcela da população
que estava excluída do projeto de modernização que estava posto. Para seus
críticos, cuja escolha pela comédia popular era condenável por si só, havia ainda o
problema da própria diversidade brasileira. Num país que se desejava encaminhar
para o progresso, assumir a presença do elemento negro, por exemplo, não era
possível nesse período para a cultura ocidental. 95
Tal pensamento excludente levou romancistas e escritores da passagem do
século a valorizar em suas obras o urbano, identificado com a civilização. Quando
eram feitas comparações entre cidade e campo, o que mais agradava ao público
leitor eram as diferenciações que ironizavam o atraso do homem rural. Era
ridicularizado seu modo de falar, de vestir, de se portar. O contraponto era realizado
pelo homem da cidade, que se vestia bem e falava corretamente, agindo segundo os
padrões europeus, ou seja: de forma civilizada. 96
Um leitor desatento de Artur Azevedo pode acreditar que o autor agia em
conformidade com essas concepções aqui explicitadas. Percebemos, no entanto,
que o autor, talvez por lidar com um público completamente diferente daquele com o
qual estavam habituados os romancistas, demonstra em diversos momentos maior
simpatia aos costumes populares e ao ambiente rural, a ponto de em A Capital
Federal a apoteose final ser dedicada à vida no campo.
A Capital Federal pode ser considerada a peça de maior sucesso de público
da virada do século, excluindo-se as revistas. Baseada na revista de ano O Tribofe
escrita em 1892 e que permaneceu em cartaz por dois meses no Rio de Janeiro, a
burleta causou grande burburinho na imprensa, mesmo antes de estrear. Numa
época em que peças brasileiras consideradas de qualidade eram escassas, os
anúncios atraíram também o público ilustrado, uma vez que o gênero aproximava-se
94
ROMANO SILVA, Roberto. Corpo e Cristal: Marx Romântico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. p.
115.
95
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Op. Cit. p. 115.
96
Ibidem. pp. 115 – 116.
47
da comédia de costumes. A imagem de Artur Azevedo também já estava
consolidada pelos seus escritos em jornais e por suas comédias sérias, o que fez
com que nas primeiras representações houvesse um ambiente de encontro social. 97
Como ocorria sempre que Artur Azevedo apresentava uma peça de sucesso
que não estava vinculada às revistas de ano, houve especulações nos jornais a
respeito de uma possível regeneração do teatro brasileiro. A esses comentários, o
autor sempre respondeu de forma negativa, afirmando que o teatro brasileiro nunca
poderia ser construído com bases na comédia. A estréia foi em 1897 e rendeu mais
de cem representações na primeira temporada. Depois foram realizadas excursões
pelo Brasil e em 1902 houve uma representação em Portugal, voltando aos palcos
do Rio de Janeiro em 1908. 98
A peça conta a história da família de seu Eusébio, que vem para o Rio de
Janeiro em busca de Gouveia, que prometeu casamento a sua filha, Quinota.
Moradores do interior de minas, as personagens são ingênuas e acabam caindo em
trapaças e artimanhas armadas por alguns moradores desonestos da capital. O
ritmo cênico é bastante rápido, de modo que personagens e cenários se revezam no
palco em freneticamente. Como Artur Azevedo escreve para o palco, o formato da
peça exige uma atenção especial, pois têm influência direta no resultado final. Ao
longo da peça surgem pequenas histórias paralelas, que são amarradas apenas nas
últimas
cenas,
tornando
o
enredo fragmentado,
repleto
de
encontros
e
desencontros.
O tema do caipira na cidade adquire algumas características diferenciadas na
narrativa de Artur Azevedo se o compararmos com as imagens produzidas pela
literatura de seu tempo. A cidade do Rio de Janeiro é vista através do olhar dessa
família interiorana e assume sua identificação com o progresso, com a modernidade.
Em diferentes passagens são exaltadas as belezas naturais e as construções da
capital federal, através dos passeios que a família realiza na cidade. Ao mesmo
tempo, a capital aparece como o espaço do imoral, da malandragem, da
desonestidade. É essa segunda imagem que prevalece ao final da peça e que dá
sustentação à apoteose à vida rural:
Fortunata – Que terra! Eu bem não queria vi no Rio de Janeiro!
97
NEVES, Larissa de Oliveira. Op. Cit. pp. 153-155.
98
Ibidem. p.157.
48
Quinota — Que vida tão diversa da vida da roça! (A Gouveia.) Não
ficaremos aqui depois de casados.
Gouveia — Por quê?
Quinota — A vida fluminense é cheia de sobressaltos para as verdadeiras
mães de família!
Fortunata — Olhe seu Eusébio, um home de cinqüenta ano, que teve até
agora tanto juízo! Arrespirou o á da capitá federá, e perdeu a cabeça!
Gouveia — Apanhou o micróbio da pândega!
Quinota — Aqui há muita liberdade e pouco escrúpulo... faz-se ostentação
99
do vício... não se respeita ninguém... É uma sociedade mal constituída!
Convencidas de que o ambiente da capital federal não é propício para a sua
vida familiar, as personagens concluem que é no campo que o país encontraria de
fato o progresso:
Eusébio — Quem não sabe é como quem não vê. (Alto.) A vida da capitá
não se fez para nós... E quem tem isso?... É na roça, é no campo, é no
sertão, é na lavoura que está a vida e o progresso da nossa querida Pátria!
(Mutação.)
Quadro XII (Apoteose à vida rural.)
100
O riso, no texto dramático, é suscitado pela incompatibilidade das
personagens com aquele mundo com o qual passam a conviver. O riso surge do
estranhamento, dos comportamentos contrastantes. Para o público que assistiu
primeiramente a peça, e que vivia na capital federal, as cenas se tornavam cômicas
porque os caipiras desconheciam as normas da vida na cidade. Nas palavras de
Vladimir Propp:
Se todo povo possui suas próprias normas exteriores e interiores de vida,
elaboradas no decorrer do desenvolvimento de sua cultura, será cômica a
101
manifestação de tudo aquilo que não corresponde a essas normas.
Benvinda, mulata que era empregada da família mineira e vem com eles para
o Rio de Janeiro, tenta se tornar uma dama, mas acaba gerando o riso pela sua
incapacidade de se adaptar ao ambiente:
99
AZEVEDO, Artur. A Capital Federal. In.: ARAÚJO, Antônio Martins de (org).Teatro de Artur
Azevedo. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1983 - 1995. v. 1. Edição especial para
distribuição
gratuita
pela
Internet
através
da
Virtualbooks.
Disponível
em:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/a_capital_federal.htm. Acessado em: 11/11/2008. pp. 8283.
100
Ibidem. p. 94.
101
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Editora Ática, 1992. pp. 60-61.
49
Benvinda — Inté logo.
Figueiredo — Que inté logo! Até logo é que é! Olha, em vez de inté logo,
dize: Au revoir! Tem muita graça de vez em quando uma palavra ou uma
expressão francesa.
Benvinda — Ó revoá!
102
Figueiredo — Antes isso! [...]
Do mesmo modo, Eusébio, que é seduzido por Lola, uma cortesã oportunista,
busca um encaixe naquela sociedade, o que não é possível, e então é ridicularizado
pelo seu modo de vestir. Observe a legenda que introduz uma das cenas em que
estão presentes Lola e Eusébio: “Eusébio, ridiculamente vestido à moda, prepara um
enorme cigarro mineiro. Lola, deitada no sofá, lê um jornal e fuma”.
Outro fator de comicidade nas cenas que envolvem Lola e Eusébio é o
engodo ao qual o mineiro é submetido. Ingênuo, ele se aproxima de Lola para se
certificar de que o romance que até então ela mantinha com Gouveia, noivo de sua
filha, estava acabado. Espertamente, ela finge-se de desolada e ele a consola, mas
acaba seduzido. Ela então passa a pedir presentes e se diz endividada, fazendo
com o que o caipira gaste seu dinheiro com ela. As cenas em que os roceiros são
enganados se tornam cômicas não apenas para a elite intelectualizada, acostumada
a esse tipo de construção narrativa, mas também aos demais espectadores dada a
comicidade intrínseca às cenas de engano. Conforme Propp, fazer alguém de bobo,
é um dos modos mais usados pelos cômicos para incitar o riso:
Analisando as tramas das comédias é possível estabelecer que o fazer
alguém de bobo constitui um dos sustentáculos fundamentais. Um
trapaceiro profissional é ludibriado por trapaceiros mais espertos do que ele.
[...] na mesma situação pode cair um herói positivo ao se ver em meio a
103
pessoas que lhe são opostas por caráter, costumes e convicções.
O “herói” positivo, no caso, é Eusébio, vítima dos perigos que cercam a
capital federal, juntamente com sua família. Problemas como a falta de habitações,
pouca higiene e desonestidade são denunciados por Artur Azevedo ao longo da
narrativa. O crescimento da cidade do Rio de Janeiro torna-se um problema diante
da ausência de mudanças significativas para a melhoria de vida dos habitantes.
102
AZEVEDO, Artur. A Capital Federal. Op. Cit. p. 36.
103
PROPP, Valdimir. Op. Cit. pp. 100-101.
50
Quando chega na capital, a família de Eusébio procura um lugar para morar,
mas são enganados por uma “agência de alugar casas” e acabam locando um lugar
em péssimas condições. Os problemas sociais tomam corpo ao longo da narrativa e
a cidade aos poucos vai perdendo a atmosfera de encanto com a qual surge no
princípio. A população que mais sofre com esses problemas, é a população pobre:
Já não se encontra casa decente,
Que custe apenas uns cem mil-réis,
E os senhorios constantemente
O preço aumentam dos aluguéis!
Anda o povinho muito inquieto,
E tem — pudera! — toda a razão;
Não aparece nenhum projeto
Que nos arranque desta opressão!
Um cidadão neste tempo
Não pode andar amarrado...
A gente vê-se, e adeusinho:
Cada um vai pro seu lado!
[...]
Das algibeiras some-se o cobre,
Como levado por um tufão!
Carne de vaca não come o pobre,
E qualquer dia não come pão!
Fósforos, velas, couve, quiabos,
Vinho, aguardente, milho, feijão,
Frutas, conservas, cenouras, nabos,
104
Tudo se vende pr’um dinheirão!
A cidade retratada, portanto, está longe de ser aquela idealizada, presente em
outras manifestações literárias da época105. Em oposição a essa concepção e
também como sinal de que era preciso remodelar essa cidade modernizada é que a
apoteose que finaliza a peça é dedicada à vida rural. Em Artur Azevedo, elite e
cidade não eram vistos necessariamente como elementos próprios de um novo
Brasil, da civilização possível. Pelo contrário, também possuíam grandes problemas
que eram identificados, em oposição ao pensamento elitista de então.
A imagem que a elite intelectual tinha no período do homem do campo,
relacionado com o atraso, com a preguiça e com a incapacidade foi generalizada
para as populações citadinas pobres. Nas palavras de Márcia Regina Capelari
Naxara:
104
AZEVEDO, Artur. A Capital Federal. Op. Cit. p. 76.
105
Sobre as posturas dos demais escritores do período, ver: BOSI, Alfredo. História concisa da
literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
51
Ambos [populações rurais e pobres] eram vistos como evidência do atraso,
para quem se preconizavam medidas educativas e disciplinadoras. [...]
Existia uma tendência a identificar rural e povo como portadores do atraso e
da barbárie, e cidade e elite como elementos portadores dos novos tempos
106
[...].
Foi esse pensamento excludente que justificou a realização das reformas
urbanas e as proibições de manifestações populares tais como os cordões
carnavalescos, que são tema de O Cordão, peça teatral de Artur Azevedo datada de
1908, ano de sua morte. A peça, bem mais curta que A Capital Federal, foi escrita
numa época em que o teatro já concorria com o cinematógrafo e por essa razão,
passou-se a encenar várias peças menores num único dia e sob um único ingresso.
O texto surgiu de um episódio da revista de ano Comeu!, de 1902 e ficou durante um
mês em cartaz, com cenários e figurinos reaproveitados daqueles utilizados na
revista107.
O texto ao mesmo tempo em que faz uma representação dos excessos dos
foliões cariocas da época, realiza uma apologia às tradições populares do carnaval
de rua. O namoro entre Florinda e Alfredo e Gastão e Rosa é um pretexto para a
exposição dos costumes e dos modos de pensar das classes instruídas e das não
instruídas. Na história, Alfredo apaixona-se por Florinda, uma moça humilde que
mora na periferia com a irmã e o pai, um participante de um grupo de cordão que
gosta de contar vantagens para os amigos sobre uma inventada participação na
guerra do Paraguai. O rapaz vai visitar a moça às escondidas de seu pai e leva
consigo o amigo Gastão, que acaba se apaixonando por Rosa, irmã de Florinda.
As duas moças foram educadas pelo padrinho e vêem com maus olhos os
hábitos do pai. Os rapazes, então, decidem assistir o ensaio do grupo de cordão,
para avaliar melhor a situação. Chegando lá ficam chocados com as bebedeiras,
com a presença de negros capoeiristas e considerando o ambiente imoral para as
moças, resolvem levá-las para viver na casa de um amigo, autoridade local, até o dia
do casamento. Ao final do texto, casam-se com elas e nas últimas cenas vão ver o
carnaval, mas se retiram no momento em que terminam os desfiles da elite. O pai
das moças fica para ver o restante e reencontra seu grupo de cordão, juntando-se a
eles, num final que coroa o carnaval popular.
106
107
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Op. Cit. pp. 116- 117.
NEVES, Larissa de Oliveira. Op. Cit. p. 216.
52
Os cordões eram grupos formados por populares que pulavam atrás dos
desfiles das ricas sociedades dançando de forma gingada. Eram mal vistos pelas
elites pelas bebedeiras e bagunças que acompanhavam o desfile. De certa forma, o
carnaval era um momento que unia ricos e pobres durante dias de folia, mas os
intelectuais e a população mais rica em geral, consideravam os bailes organizados
nas altas sociedades superiores à desordem vista entre os pobres. O interesse da
elite de civilizar a nação brasileira passava, portanto, pelo ato de moderar a
balbúrdia do teatro dos desfavorecidos. Nas palavras de Nicolau Sevcenko:
O carnaval que se deseja é o da versão européia, com arlequins, pierrôs e
colombinas de emoções comedidas, daí o vitupério contra os cordões, os
batuques, as pastorinhas e as fantasias populares preferidas: de índio e de
108
cobra viva.
Neste sentido, os ricos tinham uma visão negativa sobre o carnaval popular,
que indicava, sobretudo, o olhar preconceituoso das elites com relação ao próprio
povo e qualquer manifestação que o tornasse visível. Ao mesmo tempo, como nos
mostra a peça, os pobres carregavam o desejo de se parecerem com as grandes
agremiações das sociedades. É o caso do personagem Salustiano, que tenta o
tempo inteiro falar de forma culta, não conseguindo e gerando o riso do público e
das personagens vinculadas à sociedade. Ele também, apesar de sua condição de
pobre e excluído, busca enquadrar-se nos modos de vida civilizados. Assim ele
afirma quando os dois jovens falam que desejam conhecer os ensaios do cordão:
Salustiano – Vossas senhorias não são do nosso pessoal. Vão encontrar
naquela vivenda, certas incoerências fatais... uns em chinelos, outros em
trajes menores, vulgo... mangas de camisas... e ouvir palavras pouco
109
amenas e abstratas!
Em outra passagem, quando a figura do Conselheiro, que acolhe as moças
em sua casa conversa com o pai delas, indicando autoridade, fica bastante clara no
texto a postura elitista de condenação dos hábitos populares, tidos como imorais:
Conselheiro - Vocemecê não se dá ao respeito. [...] Vocemecê... tem duas
filhas, menos mal educadas, não pelo pai, mas pelo padrinho, um general
108
109
SEVCENKO, Nicolau.Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira
República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 47.
O Cordão. In.: Revista de Teatro SBAT. Rio de Janeiro, n. 305, caderno 51, set./out.1958. p. 6.
53
de quem vocemecê foi ordenança. Em vez de resguardar suas filhas e
afastá-las do mal, vocemecê leva-as a um dêsses antros denominados
cordões carnavalescos, em casa de um homem de má vida, onde se
110
reúnem bêbados e desordeiros.
Quando as filhas se casam, Remígio afasta-se de seus antigos amigos e
passa a viver junto delas e dos genros na alta sociedade. No dia do carnaval, há um
reencontro com seus amigos e ele se junta ao cordão, que é visto com simpatia por
Artur Azevedo, que retrata a população pobre como espontânea e alegre, ainda que
analfabeta e indesejada pelas camadas sociais elevadas. A cena final marca a
coroação do carnaval do povo, o “carnaval bem entendido” 111:
Remígio – Tirei a sorte grande... mas que vejo! ... o meu ex-cordão!
Salustiano – Olhem, é ele! Nosso incomensurável Remígio! Viva o
Remígio!
(O cordão entra cantando e dançando).
Todos – Viva! Entra! Entra! Fecha!
(Põem Remígio no centro e dançam todos)
112
Remígio – Não arresisto! Oh, o cordão! O cordão do povo! (dança).
Com isso, apesar de durante o texto Artur Azevedo ter retratado as opiniões
da elite, ele realiza, da mesma forma que fez na finalização de A Capital Federal,
certa oposição ao ideal civilizador, colocando em cena um texto que demonstra um
posicionamento avesso ao ideário preconceituoso da elite letrada. Nisto,
percebemos a ação do cômico, capaz de construir estereótipos e ao mesmo tempo
de os destruir, como quem brinca com as concepções vigentes.
4.3 PERSONAGENS BRASILEIRAS:
Num momento em que se buscava falar a respeito do povo brasileiro, Artur
Azevedo foi atrás das classes populares, encontrando-as e as contrapondo à elite.
110
Ibidem. p. 13.
111
Ibidem. p. 6.
112
Ibidem. p. 15.
54
Observou as diferenças e colocou em cena a diversidade cultural brasileira, sem
jamais se atrever a afirmar que assim contribuía para a formação daquilo que
desejavam os literatos. Os brasileiros retratados, diferentes entre si, foram retratados
através de tipos que segundo o que afirma Flora Sussekind “apresentam contornos
bastante elásticos e ‘universais’”
113
de forma que fosse possível para a platéia
reconhecê-los mais facilmente.
Esses tipos (o português, o carioca, o sábio, a mulher-fatal, o malandro, o
homem da cidade, o homem do interior, a moça ingênua) além de conferir
comicidade à obra, contribuem para o desejoso encontro com o povo brasileiro de
então. No texto e na encenação as diferenciações entre as personagens são dadas
pelas várias formas de se falar. Neste ponto, pode-se dizer que Artur Azevedo
colocou em cena o modo de falar do brasileiro, com seus sotaques e palavras
“incorretas” características da oralidade, de modo a conferir maior realismo às suas
peças.
Em O Mambembe, peça que conta a história de uma companhia de teatro
itinerante que viaja pelo interior do Brasil realizando seus espetáculos, o encontro de
personagens com a fala muito diferente rende algumas cenas muito engraçadas. A
peça, encenada pela primeira vez em 1904, não obteve êxito de bilheteria conforme
o esperado. O sucesso viria apenas em 1959, depois de uma montagem pela
companhia Sociedade Teatro dos Sete e os estudiosos afirmam que a má
interpretação teria sido a causadora do insucesso nas primeiras representações.
Através das aventuras do grupo, Artur Azevedo retratou festas e costumes
característicos de pequenas cidades, como a festa do divino, por exemplo.
Na história, que também faz um apelo para a melhora das condições de
trabalho no teatro brasileiro, Laudelina, filha adotiva de Dona Rita, participam de um
teatrinho de bairro quando a moça é convidada para participar do mambembe pelo
empresário honesto Frazão.
Entre dificuldades para conseguir patrocínio para
realizar a excursão e depois para voltar ao Rio de Janeiro, as personagens vão
conduzindo a história que fala dos problemas pelos quais passa uma companhia
teatral, dos preconceitos contra os artistas e do amor às artes dramáticas.
113
SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986. p. 95.
55
No diálogo de Eduardo, noivo de Laudelina que se junta à troupe para
defender a amada, com um dos carreiros responsáveis pelo transporte da
companhia, percebemos o estranhamento das personagens diante da diversidade
de modos de falar brasileiros:
Bonifácio — Vancê tá assistino aqui?
Eduardo — Está o quê?
Bonifácio — Pregunto se vancê tá assistino aqui ... sim, se é ospe dela?
Eduardo — Hospe dela? Sou.
Bonifácio — Nó vê que eu queria falá co ela pro morde a cumpanhia de
114
treato qui tá qui.. ou com seu Frazão...
O tipo social e a origem das personagens são dados pelos modos de falar. A
própria relação entre as diferentes classes sociais se faz presente pela linguagem.
Dessa forma, percebemos que o escritor não se furta da possibilidade de utilizar
falares regionais misturando-os com o coloquial padrão, atitude frente à linguagem
que segundo afirmações de Larissa de Oliveira Neves é bastante inovadora para o
período, uma vez que os escritores (mesmo os de teatro) tinham por hábito o uso da
linguagem e da sintaxe lusitanas.
Nesse sentido, em A Capital Federal, chama a atenção uma parte em que a
personagem Benvinda tenta aprender o francês, que era freqüentemente usado em
conversas da alta sociedade carioca. Uma vez aprendido a despedir-se em francês,
a mulata passa a repetir as palavras a todo momento, caindo em erros que levam o
espectador a pensar sobre o ridículo de se preferir falar o francês ao português no
Brasil:
Figueiredo — Minhas senhoras e meus senhores, apresento a Vossas
Excelências e Senhorias, Dona Fredegonda, que — depois, bem entendido,
das damas que se acham aqui presentes — é a estrela mais cintilante do
demi-monde carioca!
Todos (Inclinando-se.) — Dona Fredegonda!
Figueiredo (Baixo a Benvinda.) — Cumprimenta.
Benvinda — Ó revoá!
Figueiredo (Baixo.) — Não. Au revoir é quando a gente vai-se embora e
115
não quando chega.
114
115
AZEVEDO, Artur. O Mambembe. In.: ARAÚJO, Antônio Martins de (org).Teatro de Artur Azevedo.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1983 - 1995. v. 1. Edição especial para
distribuição
gratuita
pela
Internet,
através
da
Virtualbooks.
Disponível
em:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/o_mambembe.htm. Acessado em: 11/11/2008. p. 56.
AZEVEDO, Artur. A Capital Federal. Op. Cit. p. 53.
56
Deste modo, o autor defende a língua portuguesa, ridicularizando os
francesismos da época. Outra passagem na mesma peça deixa tal crítica ainda mais
evidente:
O Gerente — Ainda não. Mas com licença: vou mandar chamar o tal
Gouveia. (Chamando.) Chasseur. (Entra da direita um menino fardado.) Vá
ao quarto nº 135 e diga ao hóspede que está uma senhora no salão à sua
espera. (O menino sai a correr pela escada.)
Figueiredo — Chasseur! Pois não havia uma palavra em português para...
O Gerente — Não havia, não senhor. Chasseur não tem tradução.
Figueiredo — Ora essa! Chasseur é...
O Gerente — É caçador, mas chasseur de hotel não tem equivalente. O
Grande Hotel da Capital Federal é o primeiro no Brasil que se dá ao luxo de
116
ter um chasseur!
Ainda em A Capital Federal, percebemos as diferenças do modo de falar dos
habitantes do Rio de Janeiro e da família interiorana em praticamente todas as
passagens. As personagens que vêm do interior falam omitindo algumas sílabas,
trocando letras e usam expressões que lhes são peculiares, tais como “janota”, que
indica uma pessoa bem vestida, elegante, no vocabulário típico mineiro:
Eusébio
—I—
Sinhô, eu sou fazendeiro
Em São João do Sabará,
E venho ao Rio de Janeiro
De coisas grave tratá.
Ora aqui está!
Tarvez leve um ano inteiro
Na Capitá Federá!
Coro
Ora aqui está! etc...
Eusébio
— II —
Apareceu um janota
Em São João do Sabará;
Pediu a mão de Quinota
E vei’ se embora pra cá.
Ora aqui está!
Hei de achá esse janota
Na Capitá Federá!
Coro
117
Ora aqui está, etc...
Não só os tipos do interior são distinguidos dos demais pela linguagem nas
peças de Artur Azevedo, mas também assim são diferenciados elite e povo, como
observamos em O Cordão. Ao contrário do núcleo das personagens da sociedade,
116
Ibidem. p. 9.
117
Ibidem. p. 14.
57
que usam a fala formal, dentre os participantes do cordão aparecem os mais
diferentes tipos de linguajar. O exemplo mais caricato é o de Salustiano, que
tentando falar corretamente, acaba por incorrer em erros vergonhosos tais como:
Salustiano: O nosso estandarte. (lendo) – “Grupo Carnavalescos Foliões
do Itapirú”. A primeira idéia foi filhos, e não foliões. Filhos do Itapirú... Mas
filhos prestava-se à anfibilogia fantástica e preliminar! Ficou Foliões! Que tal
118
acham a pintura?
O modo de falar, risível para os que conhecem a língua formal, era admirado
pelos companheiros de cordão, como se percebe nesta fala de Emerenciana:
Emerenciana: Você é muito bom home, seu Salustiano, é um home
119
inteligente que até fala dificel, mas tem um defeito...
Nas falas de Zeca e de Emerenciana, o que observamos é a ausência de uma
educação formal, pois como está indicado no texto, nenhum deles freqüentou a
escola. Em outro personagem da peça, o negro Cazuza, percebemos a presença de
gírias da época, usadas pelos grupos de capoeiristas, como a palavra “sangagú”,
que significava “briga”, “confusão”:
Cazuza (entra esbaforido, como que perseguido por alguém. Gastão e
Alfredo assustam- se). Aqui estou seguro... que sangagú de massadas!
120
Que sangagú onça, seu Salú!
Por outro lado, a fala do personagem Conselheiro indica autoridade, através
de um linguajar muito culto:
Conselheiro: Sente-se. Vocemecê está em presença do Conselheiro Faria,
velho funcionário, com quarenta anos de serviço... Conselheiro e Oficial da
Rosa pelo Império, e tenente-coronel honorário do exército pela
121
República.
A partir desses exemplos, é possível notar que a fala das personagens de
Artur Azevedo foi antes de tudo, marcada pelo uso do português brasileiro em suas
118
AZEVEDO, Artur. O Cordão. Op. Cit. pp. 8-9.
119
Ibidem. p. 7.
120
Ibidem. p. 9.
121
Ibidem. p. 13.
58
diversas variantes. Se por um lado o recurso simplifica o texto, tornando-o inteligível
para uma camada da população distante da elite letrada, por outro, nisto
percebemos a inclinação do autor para a crítica à atitude predominante dos
intelectuais de transformar os modos de vida do povo, a fim de aproximá-lo da
civilização européia. Para Antonio Martins Araújo:
Ao deixar falar no próprio dialeto fazendeiros mineiros, matutos piauienses,
negociantes lusitanos do Norte, preto-minas, mulatos citadinos, coronéis
baianos, tias velhas analfabetas, Artur Azevedo realiza, no palco, uma
síntese que começa a ferir de morte o conservadorismo lingüístico pregado
pela gramática novecentista brasileira, que via no literário lusitano o padrão
122
a seguir.
Através do modo como Artur Azevedo utiliza a linguagem, pudemos obter
indicações mais precisas do modo como ele viu o ato de retratar o povo brasileiro.
Aproximando-se das classes populares, que foram suas personagens e seu público,
o autor deu voz a um português brasileiro, carregado de diferenças como o próprio
povo que constituía essa nação que se queria criar e tornar, de alguma forma:
brasileira.
122
ARAÚJO, Antônio Martins, Artur Azevedo: a palavra e o riso. Rio de Janeiro: Editora Perspectiva,
1988. p. 146.
59
5 CONCLUSÃO
O século XIX foi marcado por uma busca quase que compulsiva pelo encontro
de uma identidade nacional brasileira, problema de solução difícil num país marcado
por tantos contrastes e que, além disso, carregava a chaga de ser mestiço numa
época em que se acreditava em ideais de pureza racial. A cultura dos homens
letrados brasileiros identificava-se com o pensamento europeu e mais do que isso,
desejava transforma o próprio Brasil num país europeu, ou ao menos, civilizado
como os países pertencentes àquele continente.
Para o teatro, o braço mais popular da literatura e que por isso mesmo
deveria exercer uma função pedagógica com relação ao povo, pensar o Brasil e seu
povo seguindo os moldes estéticos consagrados na Europa, se transformou num
problema ainda maior, pois o teatro para funcionar precisava de um público. E esse
público, formado na sua grande maioria por analfabetos, cansados de jornadas de
trabalho árduo, não estava nem um pouco interessado nas aspirações da crítica,
tampouco desejava civilizar-se à maneira européia. O que o público queria era se e
para isso é que pagava ingresso.
Apesar das lamentações da crítica teatral, o teatro que fez sucesso na
passagem do século foi aquele voltado para a diversão, para o riso, para a distração
e não para as aspirações literárias. Artur Azevedo, afirmando que precisava viver de
seu teatro, comprou a proposta de escrever para o povo e não apenas para os
literatos. Nisto, o autor deu voz ao povo, convertendo-o não apenas em público, mas
também em personagem.
Num momento em que a crítica reclamava a existência de um autor brasileiro
que escrevesse peças com temática e público nacionais, ali estava Artur Azevedo,
traduzindo em seu texto as ambigüidades brasileiras através das mais distintas
personagens. Aos olhos de hoje, poderíamos dizer que Artur Azevedo apontou
soluções para o problema da época, encontrando o Brasil e o homem Brasileiro.
Ocorre que naquele momento, olhar para essa produção com mais atenção não foi
possível em decorrência dos preconceitos estéticos que cercavam a comédia e
também por causa do preconceito existente contra o próprio povo que Artur Azevedo
retratava.
60
O Brasil encontrado nas classes populares foi visto de forma positiva por Artur
Azevedo, mas nunca o seria pela elite intelectual brasileira. Tanto que as demais
narrativas a respeito do homem brasileiro produzidas na época identificaram o
caipira à figura do preguiçoso, do incapaz. Foi essa a visão que perpetuou e que foi
tida como verdade durante parte do século XX, criando o mito do Jeca Tatu. E
assim, as qualidades de alegria, de espontaneidade e de honestidade que Artur
Azevedo viu nas classes populares, não foram lembradas por muito tempo,
desaparecendo à medida que suas peças foram deixando de ser encenadas e
aplaudidas por esse mesmo povo: brasileiro.
61
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68
9 APÊNDICES:
APÊNDICE 1: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS
PERSONAGENS DE “A CAPITAL FEDERAL”..........................................................69
APÊNDICE 2: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS
PERSONAGENS DE “O MAMBEMBE”......................................................................69
APÊNDICE 3: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DOS NÚCLEOS AOS QUAIS
PERTENCEM AS PERSONAGENS DE “O CORDÃO”............................................71
APÊNDICE 4: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS DE
“O CORDÃO “.............................................................................................................71
69
APÊNDICE 1:
QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS
PERSONAGENS DE “A CAPITAL FEDERAL”.
PERSONAGEM
DESCRIÇÃO
LINGUAJAR
Lola
Cortesã espanhola que finge estar
apaixonada para obter vantagens
financeiras dos homens que seduz.
Malandro carioca, admirador de
mulatas que ele lança à vida
mundana no Rio.
Amante de Lola, viciado em jogo que
deixou na roça uma noiva pela qual
ainda tem sentimentos.
Pai de família que resolve vir ao Rio
de Janeiro em busca do noivo da
filha.
Esposa de Eusébio.
Formal
Figueiredo
Gouveia
Eusébio
Fortunata
Quinota
Juquinha
Benvinda
Filha de Eusébio e de Fortunata, que
procura o noivo Gouveia, pelo qual
se apaixonara.
Filho de Eusébio e de Fortunata.
Mulata, empregada da família
mineira.
Formal
Formal
Informal, com a presença de
expressões características do linguajar
do interior de Minas Gerais da época.
Informal, com sotaque mineiro. Ao
longo da peça tenta aprender a falar
francês sem sucesso, o que gera
situações bastante risíveis.
QUADRO 1- CARACTERIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS PERSONAGENS: “A CAPITAL FEDERAL”
(1897)
FONTE: A autora (2008).
APÊNDICE 2: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS
PRINCIPAIS
PERSONAGENS DE “O MAMBEMBE”.
PERSONAGEM
DESCRIÇÃO
LINGUAJAR
Eduardo
Jovem ator de teatrinhos de bairro, apaixonado
por Laudelina. Quando atua, faz papeis de galã e
também é o galã da peça O Mambeme.
Madrinha de Laudelina, que se mostra bastante
preocupada com a inclinação para o teatro da
moça. Deseja que ela se case com Eduardo,
mas quando ela se envolve com a companhia de
Frazão, decide acompanhá-la na viagem. Nas
peças, representa as personagens femininas
caricatas e em O Mambembe também tem essa
característica.
As personagens que
participam da companhia
falam de forma mais
próxima ao português
formal da época, pois são
todas letradas. Os
estranhamentos vinculados
à linguagem ocorrem
quando há o encontro
dessas personagens com
homens do interior e de
classes sociais distintas.
Dona Rita
70
PERSONAGEM
DESCRIÇÃO
LINGUAJAR
Frazão
Empresário honesto que vê grande talento em
Laudelina e a convida para participar de sua
companhia. Ao longo da história passa por
diversos problemas e precisa demonstrar sua
idoneidade com freqüência por causa do
preconceito da época com a classe artística.
Jovem apaixonada pelas artes dramáticas que
se torna a primeira dama da companhia de
Frazão. É a mocinha, a ingênua nos papéis que
representa e também na peça de Artur Azevedo.
Cômico do grupo teatral mambembe, que faz
todos rirem nos palcos, mas é depressivo na
vida real. O contraste entre as características da
personagem faz com que seja um dos mais
engraçados da peça.
Homem vaidoso, autoritário e libertino que
persegue Laudelina. O nome da personagem faz
alusão a um tipo da Commedia dell’Arte,
transformado pelas farsas portuguesas quando
passou a denotar a figura do velho safado.
Sapateiro e maestro de uma banda da cidade
de Tocos.
Carregador que deseja cobrar o uso dos carros.
As personagens que
participam da companhia
falam de forma mais
próxima ao português
formal da época, pois são
todas letradas. Os
estranhamentos vinculados
à linguagem ocorrem
quando há o encontro
dessas personagens com
homens do interior e de
classes sociais distintas.
Laudelina
Vieira
Pantaleão
Carrapatini
Bonifácio
Madama
Chico Inácio
A fala indica educação
formal, mas contém
algumas palavras que
fazem referência ao
linguajar interiorano.
Sotaque italiano indicado no
texto.
Fala extremamente popular,
com omissões de sílabas e
vocabulário bastante
restrito. Uso freqüente de
expressões como “nhô”
(senhor), “vancê” (você).
Antiga atriz que deixou o teatro no Rio de Janeiro Presença de algumas
para se casar com Chico Inácio.
expressões em francês,
adquiridas nos espetáculos
que interpretava na capital.
Homem rico e influente da cidade de Pito Aceso, Formal.
que depois descobre ser o pai de Laudelina.
QUADRO 2- CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS: “O MAMBEMBE” (1904)
FONTE: A autora (2008).
71
APÊNDICE 3: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DOS NÚCLEOS AOS
QUAIS PERTENCEM AS PERSONAGENS DE “O CORDÃO”.
NUCLEO DA
SOCIEDADE
NÚCLEO DO
CORDÃO
DESCRIÇÃO
PERSONAGENS PERTENCENTES
Personagens com educação formal que
repudiam o modo de vida dos habitantes
da periferia.
Pobres e analfabetos, pertencentes à
periferia social urbana e por isso,
indesejáveis pela sociedade. Por outro
lado, são também alegres e
espontâneos.
Gastão, Alfredo, Florinda, Rosa e
Conselheiro.
Remígio, Salustiano, Emerenciana,
Zeca, Cazuza, Gaudêncio.
QUADRO 3 - CARACTERIZAÇÃO DOS NÚCLEOS DAS PERSONAGENS: “O CORDÃO” (1908)
FONTE: A autora (2008)
APÊNDICE 4: QUADRO COM A CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
DE “O CORDÃO”:
PERSONAGEM
DESCRIÇÃO
LINGUAJAR
Alfredo
Jovem empregado de uma repartição
que se apaixona por Florinda.
Jovem, amigo de Alfredo, que o
acompanha em visita a Florinda e
acaba se apaixonando por sua irmã,
Rosa.
Moça honesta pobre, mas educada
por um padrinho. Deseja sair da casa
do pai, pois considera inadequado
que ele leve ela e a sua irmã aos
ensaios de um cordão. Apaixonada
por Alfredo.
Irmã de Florinda, educada como ela
e que compactua com suas
concepções a respeito do lugar onde
vivem com o pai. Apaixona-se por
Gastão.
Pai de Rosa e Florinda. Participa do
cordão e costuma inventar histórias
sobre sua participação na Guerra do
Paraguai, para contar vantagens aos
amigos.
Presidente do cordão Grupo
carnavalesco foliões de Itapirú. Tem
problemas com bebida e já foi preso
algumas vezes por esse motivo.
Formal
Gastão
Florinda
Rosa
Remígio
Salustiano
Formal
Formal
Formal
Simples, mas destituída de vícios ou
sotaque.
Busca falar de forma culta, mas
incorrendo em erros grotescos. Por
esse motivo é ridicularizado pelos
integrantes do núcleo da sociedade,
mas aplaudido pelo núcleo do cordão.
72
PERSONAGEM
DESCRIÇÃO
LINGUAJAR
Emerenciana
Esposa de Salustiano e dona de
casa.
Zeca
Filho de Salustiano e Emerenciana.
Tem treze anos e nunca foi à escola,
pois não tem roupas e sapatos para
isso.
Negro capoeirista que se envolve em
confusão por exibir suas habilidades
publicamente (o que era proibido).
Maestro do cordão, que não toca
sem beber.
Figura de autoridade, que recebe as
moças em sua casa, onde elas ficam
até o casamento.
Demonstra em sua fala a ausência de
educação formal. Omissão de letras em
algumas palavras indicando problemas
com concordância nominal e verbal.
Demonstra em sua fala a ausência de
educação formal. Omissão de letras em
algumas palavras indicando problemas
com concordância nominal e verbal.
Fala popular com algumas palavras
características do dialeto dos
capoeiristas da época.
Sotaque português.
Cazuza
Gaudêncio
Conselheiro
Altamente formal.
QUADRO 4- CARACTERIZAÇÃO DAS PRINCIPAIS PERSONAGENS: “O CORDÃO” (1908)
FONTE: A autora (2008).
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