Lukács Fala Sobre sua Vida
e sua Obra*
Acontecimentos recentes na Europa recolocaram o problema da
relação entre o socialismo e a democracia. Quais são, para o senhor, as
diferenças fundamentais entre a democracia burguesa e a democracia
revolucionária socialista?
A democracia burguesa data da Constituição francesa de 1793,
que foi sua expressão mais alta e mais radical. Seu princípio constitutivo
é a divisão do homem em citoyen da vida pública, por um lado, e
bourgeois da vida privada, por outro — o primeiro dotado de direitos
políticos universais, o segando, a expressão de interesses econômicos
particulares e desiguais. Essa divisão é fundamental para a democracia
burguesa enquanto fenômeno historicamente determinado. Seu reflexo
filosófico se encontra em Sade. É interessante notar que autores como
Adorno se ocuparam muito de Sade, por ser ele o equivalente filosófico
da Constituição de 1793. A idéia diretriz de ambos era que o homem
* Entrevista concedida em 1969 a Perry Anderson e publicada no número
68 da revista New Left Review, julho de 1971. Para a presente tradução, utilizamos
a versão francesa publicada na obra de G. Lukács, organizada por Michael Löwy,
Litérature, Philosophie, Marxisme (1922-1923), PUF, Paris, 1978. Tradução de
Fátima Murad.
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é um objeto para o homem, que o egoísmo racional é a essência da socie­
dade humana. Hoje é evidente que qualquer tentativa de recriar essa
forma historicamente superada de democracia sob o socialismo é uma
regressão, um anacronismo. Mas isso não significa que as aspirações à
democracia socialista devam ser tratadas com métodos administrativos.
O problema da democracia socialista é um problema real e não foi ainda
resolvido. Pois ela deve ser uma democracia materialista e não uma
democracia idealista. Permitam-me dar um exemplo do que eu quero
dizer. Um homem como Guevara foi um representante heróico do ideal
jacobino; suas idéias penetraram sua vida e lhe deram um contorno pró­
prio. Esse não foi o único caso no movimento revolucionário. Leviné1,
na Alemanha, e Otto Korvin2, na Hungria, são outros exemplos. Há que
se ter um profundo respeito pela nobreza desse tipo humano. Mas seu
idealismo não é o do socialismo da vida cotidiana, que deve ter uma
base material, fundada sobre a construção de uma nova economia.
Devo ressalvar que o desenvolvimento econômico por si mesmo não
produz jamais o socialismo. A doutrina de Kruschev, segundo a qual
o socialismo triunfaria em escala mundial quando o nível de vida da
URSS superasse os dos Estados Unidos era absolutamente falsa. O
problema deve ser colocado de maneira totalmente diversa. Ele pode
ser formulado da seguinte maneira: o socialismo é a primeira formação
econômica na história que não produz espontaneamente o “homem
econômico” que lhe corresponde. E isso porque é uma formação tran­
sitória, uma etapa intermediária na passagem do capitalismo ao comu­
nismo. E, na medida em que a economia socialista não produz e reproduz
espontaneamente os homens que lhe correspondem, ao contrário da
sociedade capitalista clássica que engendra naturalmente seu homo
economicus — a divisão citoyen/bourgeois de 1793 e de Sade —, a fun­
ção da democracia socialista é precisamente a educação de seus mem­
bros para o socialismo. Essa função não encontra nenhum precedente,
nenhuma analogia, na democracia burguesa. É claro que o que é neces­
sário hoje é o renascimento dos soviets — o sistema de democracia ope­
rária que aparece sempre que há uma revolução proletária. Veja-se a
Comuna de Paris em 1871, a Revolução russa de 1905 e a própria Revo­
lução de Outubro. Mas isso não se dá de um dia para outro. O problema
1. Eugen Léviné: dirigente comunista da República dos Conselhos da Baviera,
assassinado pela direita em 1919 (nota do editor).
2. Otto Korvin: dirigente comunista da República Húngara dos Conselhos
Operários, executado pelo governo do Almirante Horthy em 1919 (nota do editor).
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é que nessa etapa os operários estão indiferentes: no início eles não
acreditarão em nada.
A descontinuidade na História
Um problema com relação a isso está na representação histórica
das transformações necessárias. Em debates filosóficos recentes, tem
havido muita discussão sobre a questão da continuidade ou da descon­
tinuidade na história. Eu tenho me pronunciado resolutamente pela
descontinuidade. Os senhores conhecem a tese conservadora de Tocqueville e de Taine, segundo a qual a Revolução Francesa não foi
absolutamente uma transformação fundamental na história francesa,
na medida em que ela representava simplesmente a continuação da
tradição centralizadora do Estado francês, que foi muito forte sob o
Ancien Régime, com Luis XIV, e que Napoleão e, depois dele, o
Segundo Império, levaram ao extremo. Essa perspectiva foi franca­
mente rejeitada por Lenin no interior do movimento revolucionário.
Ele não via jamais as transformações fundamentais e as novas saídas
como a simples continuação e o progresso de tendências anteriores.
Por exemplo, quando ele anunciou a Nova Política Econômica, em
nenhum momento afirmou tratar-se de um “desenvolvimento” ou um
“acabamento” do comunismo de guerra. Ele afirmava sempre, com
franqueza, que o comunismo de guerra tinha sido um erro, explicável
pelas circunstâncias, e que a NEP era uma retificação desse erro e uma
mudança total de orientação. Esse método leninista foi abandonado
pelo stalinismo que pretendia sempre apresentar as transformações
políticas — mesmo as mais importantes — como a conseqüência lógica
e o aperfeiçoamento da linha anterior. O stalinismo apresentava toda
a história socialista como um desenvolvimento contínuo e correto; não
admitia jamais a descontinuidade. Hoje essa questão é ainda mais vital
do que nunca, precisamente diante do problema das sobrevivências do
stalinismo. A continuidade com o passado deveria ser apresentada numa
perspectiva de progresso ou, ao contrário, a via do progresso deveria
ser uma ruptura profunda com o stalinismo? Creio que é necessária
uma ruptura completa. É por isto que a questão da descontinuidade
na história tem uma tal importância para nós.
O senhor aplicaria esse mesmo ponto de vista ao seu próprio desen­
volvimento filosófico? Como o senhor avalia hoje seus escritos dos anos
20? Qual a relação deles com sua obra atual?
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Nos anos 20, Korsch, Gramsci e eu mesmo, cada um a seu modo,
tentamos responder o problema da necessidade social e de sua inter­
pretação mecanicista, herdada da II Internacional. Herdamos esse pro­
blema, mas nenhum de nós - nem mesmo Gramsci, que era talvez o
mais dotado de todos - conseguiu resolvê-lo. Nós nos equivocamos,
e hoje não teria nenhum sentido tentar reviver as obras dessa época
como se elas ainda fossem válidas. No Ocidente, existe uma tendência
a erigí-las em “clássicos da heresia”, mas hoje não temos mais neces­
sidade delas. Os anos 20 representam uma época passada; são os pro­
blemas filosóficos dos anos 60 que nos devem preocupar. Estou traba­
lhando sobre uma Ontologia do Ser Social que, espero, resolverá os
problemas que foram colocados de maneira totalmente falsa em minhas
primeiras obras, em particular em História e Consciência de Classe.
Minha obra está centrada sobre a questão das relações entre a neces­
sidade e a liberdade ou, segundo minha expressão, entre a teleologia
e a causalidade. Tradicionalmente, os filósofos sempre construíram
sistemas fundados sobre um ou outro desses dois pólos; eles negaram
ora a necessidade, ora a liberdade humana. Meu objetivo é mostrar
a interrelação ontológica entre ambos e rejeitar os pontos de vista do
“ou... ou... pelos quais a filosofia representou tradicionalmente
o homem. O conceito de trabalho é a base de minha análise, pois o
trabalho não é determinado biologicamente. Quando um leão ataca um
antílope, seu comportamento é determinado por uma necessidade
biológica e somente por ela. Mas quando um homem primitivo se vê
diante de um monte de pedras, ele tem que escolher uma entre elas,
avaliando a que será mais apta para servir de ferramenta; ele escolhe
entre alternativas. A noção de alternativa é fundamental para a signi­
ficação do trabalho humano que é, portanto, sempre teleológico; ele
fixa um fim que resulta de uma escolha. Ele exprime assim a sua liber­
dade humana. Mas essa liberdade só existe quando se coloca em movi­
mento forças físicas objetivas que obedecem às leis causais do universo
material. A teleologia está, portanto, sempre relacionada com a causa­
lidade física e, de fato, o resultado do trabalho de todo indivíduo é
um momento da causalidade física para a orientação teleológica de
outros indivíduos. A teologia acreditava em uma teleologia da natu­
reza; a crença em uma teleologia imanente da história não foi fundada.
Mas existe uma teleologia em cada trabalho humano, intimamente inse­
rido na causalidade do mundo físico. Essa posição, que é o núcleo a
partir do qual desenvolvo minha obra atual, supera a antinomia clás­
sica entre necessidade e liberdade. Mas, gostaria de esclarecer que não
pretendi construir um sistema exaustivo. O título de minha obra —
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que está acabada e cujos primeiros capítulos estou revendo atualmente
- é Para uma Ontologia do Ser Social e não Ontologia do Ser Social3.
Os senhores podem notar a diferença. A atividade na qual estou empe­
nhado requer o trabalho coletivo de numerosos pensadores para que
se possa desenvolver. Mas espero que ela possa evidenciar a base onto­
lógica desse socialismo da vida cotidiana do qual falava.
A cultura inglesa radical
A Inglaterra é o único país europeu importante sem tradição filo­
sófica marxista própria. O senhor se deteve muito sobre um momento
de sua história cultural, a obra de Walter Scott; mas queremos saber
como o senhor vê o desenvolvimento mais geral da história política e
intelectual britânica e suas relações com a cultura européia desde a
época das Luzes?
A história britânica foi vítima daquilo que Marx chamava de lei
do desenvolvimento desigual. O radicalismo autêntico da Revolução
de Cromwell e, em seguida, a Revolução de 1688, assim como seu
êxito no estabelecimento de relações capitalistas na cidade e no campo,
tornaram-se a causa do retardamento ulterior da Inglaterra. Acho que
sua revista tem plena razão em assinalar a importância histórica da
agricultura capitalista na Inglaterra e suas conseqüências paradoxais
para o desenvolvimento ulterior desse país. Pode-se constatar isso, com
bastante evidência, no desenvolvimento cultural inglês. A dominação
do empirismo como ideologia da burguesia data somente de após 1688;
a partir daí adquire uma força enorme e deforma completamente toda
a história anterior da filosofia e da arte inglesas. Vejam o exemplo de
Bacon. Ele foi um grande pensador, bem mais significativo que Locke
a quem a burguesia tanto reverenciou posteriormente. Mas sua impor3. Lukács concluiu esta sua derradeira obra sistemática, dividida em duas
partes fundamentais (“A Situação Atual dos Problemas” — histórica,, “Os Com­
plexos Problemáticos Mais Importantes” - sistemática), sendo que os capítulos
III e IV (sobre Hegel e sobre Marx) da primeira parte foram publicados pela Livraria
Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1979. Insatisfeito com os resultados obtidos
nesta obra, Lukács às vésperas de sua morte, redigiu um longo prólogo de mais
de 150 páginas, intitulado “Questões de Princípio de uma Ontologia Hoje Tomada
Possível”, onde tentou superar a rígida dicotomia entre as partes histórica e siste­
mática. O aludido prólogo, juntamente com a segunda parte da sua Ontologia, com
exceção do capítulo sobre o trabalho, continuam inéditos (nota do tradutor).
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tância foi completamente ocultada pelo empirismo inglês. Hoje, se
vocês querem saber o que Bacon fez do empirismo, devem antes com­
preender o que o empirismo fez de Bacon — o que é totalmente dife­
rente. Marx foi um grande admirador de Bacon, como vocês sabem.
O mesmo ocorreu com um outro importante pensador inglês, Mandeville.
Ele foi um grande discípulo de Hobbes, mas a burguesia inglesa o esque­
ceu completamente. Marx, contudo, cita-o nas Teoria da Mais-Valia.
Essa cultura inglesa radical do passado foi ocultada e ignorada. Por outro
lado, Eliot e outros deram uma importância totalmente exagerada aos
poetas metafísicos — Donne, etc. — que são muito menos importantes
para o desenvolvimento histórico da cultura humana. Um outro episó­
dio revelador é o destino de Scott. Destaquei a importância de Scott
em meu livro sobre O Romance Histórico; ele foi o primeiro roman­
cista a compreender que os homens são modificados pela história. Essa
foi uma grande descoberta, imediatamente reconhecida como tal por
grandes escritores europeus como Puschkin, na Rússia, Manzoni, na
Itália, e Balzac, na França. Todos eles perceberam a importância de
Scott e muito aprenderam com ele. Coisa curiosa, contudo, na própria
Inglaterra Scott não teve discípulos. Também ele foi incompreendido
e esquecido. Há nisso uma ruptura com todo o desenvolvimento da
cultura inglesa, que é bem perceptível nos escritores radicais posteriores,
como Shaw. Este não tinha raízes no passado cultural inglês, porque
a cultura inglesa do século XIX rompera com a sua pré-história radical.
Essa foi, evidentemente, a grande debilidade de Shaw.
Hoje os intelectuais não deveriam mais se contentar em simples­
mente importar do exterior o marxismo; eles deveriam reconstruir uma
nova história de sua própria cultura: essa é uma tarefa indispensável
para eles, que só eles podem realizar. Eu escrevi sobre Scott e Agnes
Helles sobre Shakespeare, mas são os ingleses principalmente, que
devem redescobrir a Inglaterra. Também nós, na Hungria, conhecemos
numerosas mistificações sobre nosso “caráter nacional”, como vocês,
na Inglaterra. Uma verdadeira história da sua cultura destruirá essas mis­
tificações. Nisso, vocês talvez sejam auxiliados pela profunda crise eco­
nômica e política inglesa, que é produto da lei do desenvolvimento
desigual do qual falava. Wilson é, indubitavelmente, um dos políticos
burgueses mais astutos e oportunistas de hoje, apesar do seu governo
ter sido o fiasco mais completo e mais desastroso. Isso também é um
sintoma da profundidade e da irreversibilidade da crise inglesa.
Como o senhor vê hoje suas primeiras obras de critica literária,
em particular a Teoria do Romance? Qual foi sua significação histórica?
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A Teoria do Romance expressa meu desespero durante a Primeira
Guerra Mundial. Quando a guerra eclodiu, eu me dizia que a Alemanha
e a Austro-Hungria provavelmente venceriam a Rússia e destruiriam
o czarismo; isso seria bom. A França e a Inglaterra provavelmente
venceriam a Alemanha e a Austro-Hungria e destruiriam os Hohenzolern
e os Habsburg; isso seria bom. Mas quem nos salvaria então da cultura
inglesa e francesa? Meu desespero em relação a isso não encontrava res­
posta e é esse o plano de fundo da Teoria do Romance. A resposta vem
com a Revolução de Outubro. A revolução russa foi a solução histórica
para o meu dilema: ela impediu o triunfo da burguesia inglesa e fran­
cesa que eu temia. Mas devo dizer que a Teoria do Romance, com
todos seus erros, clamava pela transformação do mundo que produzia
a cultura que ela analisava. Ela compreendeu a necessidade de uma
transformação revolucionária.
Weber
Nessa época, o senhor era amigo de Max Weber. Qual o julgamento
que faz dele hoje? Seu colega Sombart acabou se tornando nazista.
O senhor acredita que Weber, se estivesse vivo, teria pactuado com o
nacional-socialismo ?
Não, jamais. Vocês devem compreender que Weber era uma pes­
soa extremamente honesta. Ele tinha um grande desprezo pelo impera­
dor, por exemplo. Ele costumava nos dizer, confidencialmente, que o
grande mal da Alemanha era que, contrariamente aos Stuarts ou aos
Bourbons, nenhum Hohenzolern tinha sido jamais decapitado. Vocês
devem levar em conta que ele não era um professor qualquer, que
pudesse afirmar uma coisa dessas em 1912. Weber era inteiramente dife­
rente de Sombart; ele jamais fez qualquer concessão ao anti-semitismo,
por exemplo. Permitam-me recordar uma história que o caracteriza
muito bem. Uma universidade alemã lhe pediu que fizesse uma indi­
cação para uma cadeira nova que ia ser criada. Weber respondeu enviando
três nomes, por ordem de merecimento. E acrescentou: “Nenhum dos
três seria uma escolha absolutamente apropriada, pois os três são exce­
lentes; mas vocês não escolherão nenhum, porque os três são judeus.
Por isso eu acrescento uma lista com três outros nomes, dos quais
nenhum vale pelos que recomendei, mas vocês, sem dúvida nenhuma,
aceitarão um deles, porque eles não são judeus.” Contudo, vocês devem
se recordar que Weber era um imperialista absolutamente convicto;
seu liberalismo se sustentava apenas na sua crença na necessidade de
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um imperialismo eficaz; e somente o liberalismo podia garantir uma tal
eficácia. Ele foi um inimigo declarado das Revoluções de Outubro e de
Novembro4. E foi, ao mesmo tempo, um pensador extraordinário e
um profundo reacionário. O irracionalismo que começou com o último
Schelling e Shopenhauer encontrou nele uma de suas mais importan­
tes expressões.
Como ele reagiu à sua conversão à Revolução de Outubro?
Ele teria dito que em Lukács a mudança deve ter correspondido
a uma profunda transformação nas suas convicções e nas suas idéias,
enquanto que em Toller era simplesmente uma confusão de sentimentos.
Mas não mantive relações com ele a partir desse momento.
Após a guerra, o senhor participou da Comuna húngara como
Comissário do Povo para a Educação. Como o senhor avalia a experi­
ência da Comuna, cinquenta anos depois?
A causa essencial da Comuna foi a nota de Vyx5 e a política da
Entente na Hungria. Desse ponto de visa, a Comuna húngara é com­
parável à Revolução russa, onde a questão do fim da guerra desempenha
um papel fundamental na eclosão da Revolução de Outubro. Uma vez
que a nota de Vyx foi emitida, a conseqüência foi a Comuna. Os socialdemocratas nos atacaram posteriormente, criticando-nos por ter pro­
clamado a Comuna, mas nesse período do pós-guerra não havia nenhuma
possibilidade de se manter nos limites do quadro político burguês; era
necessário fazê-lo explodir.
Os líderes bolcheviques
Depois da derrota da Comuna, o senhor foi delegado ao III Con­
gresso do Komintern em Moscou. Lá reencontrou os líderes bolche­
viques. Quais foram suas impressões a seu respeito?
Vocês não podem esquecer que eu era um membro pouco impor­
tante de uma pequena delegação. Eu não era absolutamente uma figura
4. Revolução de Novembro: a que, em novembro de 1918, derruba a monar­
quia e instaura a República de Weimar na Alemanha (nota do editor).
5. Nota de Vyx: ultimato apresentado em março de 1919 pelo coronel Vyx,
representante da Entente na Hungria, exigindo o abandono de uma larga parte
do país aos aliados (nota do editor).
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importante nessa época, e não tive a oportunidade de entabular longas
conversas com os líderes do partido russo. Contudo, graças a Lunacharski, pude ficar perto de Lenin, o que me deixou completamente
fascinado. Com isso, eu pude observar seu trabalho nas comissões do
congresso. Devo dizer que eu achava antipáticos os outros dirigentes
bolcheviques. Minha primeira impressão de Trotsky foi péssima; eu o
achava presunçoso. Há, como vocês sabem, uma passagem nas memó­
rias sobre Lenin, de Gorki, em que Lênin, após a revolução, reconhe­
cendo os sucessos organizacionais de Trotsky durante a guerra civil,
diz que havia nele algo de Lassale. Zinoviev, cujo papel no seio do
Komintern eu vim a conhecer posteriormente, era um mero manipu­
lador político. Minha apreciação sobre Bukharin está contida no artigo
que consagrei a ele em 1925 e onde critico seu marxismo - nessa época
ele era, depois de Stalin, a maior autoridade russa em questões teóricas.
Não me recordo de Stalin no congresso; como tantos outros comunistas
estrangeiros, eu desconhecia sua importância real no partido russo.
Conversei longamente com Radek. Ele me disse que considerava meus
artigos sobre a ação de março na Alemanha o que havia de melhor a
esse respeito e que os aprovava inteiramente. Mais tarde, quando o par­
tido condenou a ação de março ele mudou de opinião e me criticou
publicamente. Em contraste com os outros, Lenin me causou pro­
funda impressão.
Qual foi sua reação diante das críticas de Lênin a seu artigo sobre
a questão do parlamentarismo?
Eu estava completamente equivocado nesse artigo, e renunciei
sem hesitação às minhas teses. Devo acrescentar que eu já tinha lido
O esquerdismo, doença infantil do comunismo de Lenin antes de ele
criticar meu artigo, e já estava totalmente convencido por seus argu­
mentos sobre a questão da participação no parlamento; assim, sua crí­
tica ao artigo não mudou muita coisa para mim. Eu já sabia que ele era
falso. Vocês se recordam do que Lenin dizia no Esquerdismo: que os
parlamentos burgueses estão completamente superados no sentido
histórico, com a criação de organismos revolucionários do poder prole­
tário, os soviets, mas que isso não significa que estejam superados no
sentido político imediato, na medida em que as massas ocidentais
ainda acreditam neles. É por isso que os comunistas devem trabalhar
tanto dentro como fora desses parlamentos.
Em 1928-1929, o senhor desenvolveu, nas célebres teses de Blum
para o III Congresso do Partido comunista húngaro, o conceito de dita­
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dura democrática dos operários e camponeses, como fim estratégico do
Partido comunista húngaro nessa época. Essas teses foram rejeitadas
como oportunistas e o senhor foi excluído do comitê central por causa
delas. Que avaliação faz das teses hoje?
As teses de Blum foram minha ação de retaguarda contra o secta­
rismo do terceiro período que considerava a social-democracia como
irmã-gêmea do fascismo. Essa linha desastrosa era acompanhada, como
vocês sabem, do slogan de classe contra classe e do apelo à instauração
imediata da ditadura do proletariado. Ressuscitando e adaptando a
palavra-de-ordem de Lenin de 1905 — a ditadura democrática dos ope­
rários e camponeses — tentei encontrar uma saída para a linha do
VI Congresso do Komintem, pela qual pudesse ganhar o partido hún­
garo para uma política mais realista. Minha tentativa foi malograda.
As teses de Blum foram condenadas pelo partido e Bela Kum e sua facção
me excluíram do Comitê Central. Fiquei completamente isolado no
partido nessa época. Não consegui convencer nem mesmo aqueles que
partilhavam dos meus pontos de vista na luta contra o sectarismo de
Kum no partido. Então fiz minha auto-crítica em relação a essas teses.
Era uma atitude absolutamente cínica, que as condições da época me
impunham. Na verdade não mudei de opinião e estou convencido de
que tinha plena razão, pois o curso posterior da história confirmou
totalmente as teses de Blum. O período 1945-1948 na Hungria foi,
com efeito, a realização concreta da ditadura democrática dos operá­
rios e camponeses que eu tinha defendido em 1929. É claro que depois
de 1948 Stalin cria algo completamente diferente, mas isso é uma
outra história.
As relações com Brecht
Quais foram suas relações com Brecht nos anos 30 e logo após a
guerra? Como o senhor avalia sua postura?
Brecht foi um grande poeta e suas últimas peças - Mãe Coragem,
A boa alma de Setchouan e outras — são excelentes. Mas suas teorias
dramáticas e estéticas eram totalmente falsas e confusas. Eu já coloquei
esses problemas no Realismo Crítico Hoje. Mas isso não diminui a quali­
dade de sua obra do último período. Em 1931-1933, eu me encontrava
em Berlim, trabalhando com a União dos Escritores. Nessa época — na
metade da década de 30 para ser mais preciso — Brecht escreveu um
artigo contra mim para defender o expressionismo. Mas, mais tarde,
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quando eu estava em Moscou ele passou pela União Soviética, na sua
viagem da Escandinávia aos Estados Unidos, e foi me visitar. Na ocasião
me disse: “Há pessoas que tentam me influenciar contra você, e há pes­
soas que tentam influencia-lo contra mim. Vamos estabelecer um acordo
para evitar as disputas.” A partir daí, mantivemos sempre boas relações
e, após a guerra, todas as vezes que estive em Berlim — o que ocorreu
com muita freqüência — fui visitá-lo e tivemos longas discussões. No
final, nossas posições eram muito próximas. Como vocês sabem, sua
esposa me convidou para discursar nos seus funerais. Lamento não ter
escrito um ensaio sobre Brecht nos anos 40; isso foi um erro resul­
tante de minhas preocupações com outras obras da época. Sempre
tive um grande respeito por Brecht. Ele era muito talentoso e tinha um
grande senso de realidade. Nisso era muito diferente de Korsch, a quem
conheceu bem. Quando Korsch deixou o partido alemão, se afastou
do socialismo. Compreendo que ele se afastou porque se tornou impos­
sível para ele colaborar no trabalho da União dos Escritores na luta anti­
fascista em Berlim, nessa época; o partido não teria o permitido. Brecht
era totalmente diferente. Ela sabia que nada poderia ser feito contra
a URSS, à qual permaneceu fiel até o fim da vida.
O senhor conheceu Walter Benjamin? Acredita que ele teria evo­
luído no sentido de um engajamento firme e revolucionário face ao mar­
xismo se tivesse vivido mais tempo?
Não, por várias razões eu nunca estive com Benjamin, embora
tenha encontrado Adorno em Frankfurt em 1930, antes de viajar para
a União Soviética. Benjamin era extremamente dotado e tinha uma
visão profunda de inúmeros problemas inteiramente novos. Ele explorou
seus problemas de diversas maneiras, mas nunca encontrou saída.
Acredito que, se ele tivesse vivido, seu desenvolvimento teria sido total­
mente incerto, apesar da amizade com Brecht. Vocês devem se recor­
dar como aquela época era difícil — os expurgos dos anos 30, depois
a guerra fria. O próprio Adorno se tomou o representante de uma
espécie de “conformismo não conformista” nesse clima.
Depois da vitória do fascismo na Alemanha, o senhor trabalhou
no Instituto Marx-Lenin na Rússia, com Riazanov. Que tipo de trabalho
vocês desenvolveram?
Durante minha estada em Moscou em 1930, Riazanov me mos­
trou os manuscritos que Marx tinha escrito em Paris em 1844. Vocês
podem imaginar minha excitação: a leitura desses manuscritos mudou
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totalmente minha relação com o marxismo e transformou meu ponto
de vista filosófico. Um especialista alemão da União Soviética traba­
lhava sobre esses manuscritos preparando sua publicação. Os ratos
tinham roído esses papéis e havia várias partes em que faltavam letras
ou até palavras. Dados meus conhecimentos filosóficos, eu trabalhei
com ele, determinando letras ou palavras que faltavam. Muitas vezes
havia palavras que começavam, digamos, por um “g” e que termina­
vam por um “s”; era necessário advinhar o que havia entre essas duas
letras. Acho que a edição que acabou sendo publicada estava muito
boa — e sei porque eu colaborei nela. Riazanov, responsável por esse
trabalho, era um grande filólogo: não um teórico, mas um grande
filólogo. Após sua destituição, o trabalho do Instituto entrou em
completo declínio. Eu lembro que ele tinha me dito que havia dez
volumes de manuscritos de Marx sobre O Capital que não tinham sido
ainda publicados. Inclusive Engels nos prefácios aos livros II e III diz
que estes representavam apenas uma seleção dos manuscritos que Marx
havia redigido para O Capital. Riazanov projetava publicar todo esse
material. Mas até hoje isso não foi feito.
No início dos anos 30 se realizavam debates filosóficos na URSS,
mas eu nunca participei deles. Tratava-se então de um debate em que
se criticava notadamente a obra de Deborine. Eu, pessoalmente, acho
que muitas críticas eram justificadas, mas seu objetivo era unicamente
estabelecer a preeminência de Stalin como filósofo.
Mas o senhor participou nos debates literários na URSS nos
anos 30.
Eu colaborei durante seis ou sete anos no jornal Literarny Kritik
e nós levamos uma política muito conseqüente contra o dogmatismo
desses anos. Fadeyev e outros combatiam a RAPP6 e tinham vivido na
Rússia, mas apenas porque Averbach e outros na RAPP eram trotskistas.
Após sua vitória, eles continuaram desenvolvendo sua própria forma
de rappismo. A Literarny Kritik sempre resistiu a essas tendências. Eu
escrevi vários artigos para essa revista e nenhum deles tinha menos de
três citações de Stalin — isso era uma exigência intransponível nessa
época — e nenhum se dirigia diretamente contra a concepção stalinista
de literatura. Mas seu conteúdo era sempre dirigido contra o dogma­
tismo stalinista.
6. RAPP: organização oficial dos escritores revolucionários da URSS, de orien­
tação sectária, dissolvida em 1932 (nota do tradutor).
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A carreira política de Lukács
O senhor foi politicamente ativo durante dez anos de sua vida,
de 1919 a 1929, e depois acabou abandonando completamente essa
atividade. Isso deve representar uma transformação muito grande para
um marxista convicto. O senhor se sentiu limitado (ou, ao contrário,
liberado) por essa virada abrupta em sua carreira em 1930? Como essa
fase de sua vida se liga à sua juventude e à sua adolescência? Por quem
o senhor foi influenciado então?
Eu não lamentei absolutamente o fim da minha carreira política.
Pois, vejam vocês, eu estava convencido de que tinha plena razão nos
debates internos do partido em 1928-1929, e nada jamais me levou a
mudar minha opinião sobre isso; contudo, como eu já tinha esgotado
todas minhas tentativas para convencer o partido da justeza de minhas
idéias, eu me disse então: se eu tenho plena razão, e estou, contudo, com­
pletamente derrotado, isso significa apenas que não tenho qualquer
capacidade política. Renunciei, assim, sem nenhuma dificuldade, ao
trabalho político prático. Cheguei à conclusão que não tinha capaci­
dade para isso. Minha exclusão do comitê central do Partido húngaro
não modificou em nada minha convicção que mesmo com a política
sectária e desastrosa do Terceiro período, somente se poderia levar uma
luta eficaz contra o fascismo nos marcos do movimento comunista. Eu
não modifiquei minha opinião a esse respeito. Eu sempre achei que a
pior forma de socialismo era melhor que a melhor forma de capitalismo.
Minha participação no governo de Nagy, em 1956, não foi con­
traditória com minha renúncia à atividade política. Eu não partilhava
da concepção política geral de Nagy, e quando os jovens tentaram nos
aproximar nos dias que precederam outubro, eu respondi: “O passo
que eu tenho que dar em direção a Imre Nagy não é maior que o que
ele tem que dar na minha direção.” Quando me convidaram para ser
Ministro da Cultura em outubro de 1956, tratava-se de uma questão
moral para mim, não de uma questão política, e eu não podia recusar.
Quando fomoso afastados e presos na Romênia, camaradas dos parti­
dos rumeno e húngaro vieram me visitar e pediram minha opinião sobre
a política de Nagy, conhecendo de antemão meus desacordos com ele.
Eu lhes disse: “Se tanto eu como ele estivéssemos livres nas ruas de
Budapeste, eu com prazer formularia aberta e detalhadamente meu
julgamento sobre ele. Mas enquanto continuo preso, minha única rela­
ção com ele é de solidariedade.”
Vocês me perguntaram quais foram minhas impressões pessoais,
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quando renunciei à carreira política. Eu devo lhes dizer que talvez eu
não seja um homem muito contemporâneo, pois eu jamais senti frus­
tração ou qualquer outro tipo de complexo em minha vida. É claro
que eu sei o que isso significa em função da literatura do século XX
e a partir da leitura de Freud. Mas jamais tive essa experiência. Quando
percebo meus erros ou falsas direções na minha vida, já estou disposto
a revê-los; eu nunca tive dificuldade em proceder assim ou em mudar
de direção. Entre os 15 e os 16 anos, escrevi peças modernas, no estilo
de Ibsen ou de Hauptmann. Aos 18 anos, eu as reli e achei muito ruins.
Cheguei então à conclusão de que jamais me tomaria um escritor e quei­
mei essas peças. Não tive remorsos. Essa experiência precoce me foi
útil mais tarde, enquanto crítico literário, porque todas as vezes que eu
me deparava com um texto que eu mesmo poderia ter escrito, sabia
que essa era uma evidência infalível de que se tratava de um mau texto:
esse era um critério verdadeiramente seguro. Minhas primeiras influên­
cias políticas vieram da leitura de Marx, à época em que freqüentava
o Liceu e, mais tarde — a mais importante de todas — da leitura do grande
poeta húngaro Ady. Eu me sentia muito isolado como adolescente
entre meus companheiros e Ady me causou profunda impressão. Tra­
tava-se de um revolucionário muito entusiasmado com Hegel, embora
não aceitasse de modo algum o aspecto de Hegel que eu mesmo rejeitei
desde o início: sua Versöhnung mit der Wirklichkeit: sua reconciliação
com a realidade. Ignorar Hegel é uma das grandes debilidades da cultura
inglesa. Eu nunca deixei de admirar esse pensador e acho que o traba­
lho empreendido por Marx — a materialização da filosofia de Hegel —
deve ser prosseguida, além mesmo de Marx. Eu tentei fazê-lo em certas
passagens da minha Ontologia. Somente três grandes pensadores oci­
dentais se tomaram incomparáveis a todos os outros: Aristóteles, Hegel
e Marx.
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Lukács fala sobre sua vida e sua obra