1 FORA DOS LIMITES: Três autodidatas mineiros Curadoria: José Alberto Nemer Espaço Cultural Da Maya, Bagé, RS | 2013 A arte não vem dormir nas camas que se prepara para ela; ela escapa assim que se pronuncia seu nome: o que ela gosta é do incógnito. Seus melhores momentos são quando ela se esquece de como se chama. Jean Dubuffet Num momento em que o circuito da arte contemporânea exacerba seus mecanismos de controle e de manipulação visando, prioritariamente, o mercado, uma das questões que vêm à tona é a validade de uma obra. O público, em permanente processo de in/formação, acaba por confundir valor com preço. A história da arte está repleta de exemplos de consagrações de obras que, em tempos diferentes, tiveram preços irrisórios. O valor da obra de arte é dado, sobretudo, pelos atributos estéticos e antropológicos que ela, misteriosamente, encerra. O preço, por sua própria natureza, é circunstancial e permanentemente flutuante. O resultado desta equação é que o preço alto de uma obra não legitima automaticamente o seu valor artístico. Daí uma das confusões que pairam sobre a apreciação e as transações artísticas hoje. Discussões como esta, tão atual quanto necessária, jogam luz sobre a produção de artistas autodidatas, outsiders, pessoas que vivem e produzem à margem do ambiente artístico celebrado. Oriundos das classes menos favorecidas na escala social, desguarnecidos de uma formação escolar mediana, executando serviços pesados, mergulhados na luta pela sobrevivência elementar, conseguem ainda, movidos por uma força insuspeitada, criar obras de arte de indiscutível valor poético. E, na maior parte das vezes, sem qualquer objetivo a priori. A principal característica desta produção é que ela escapa às radiações das normas em voga e ao enquadramento institucional. Sua condição marginal em relação aos fatores de influência parece facilitar o florescimento de critérios de inventividade pessoal, de espontaneidade, nascidos do próprio impulso do artista face à atividade criadora. São obras que demonstram uma subversão intrínseca, um alto grau de desafio aos cânones tradicionais da atividade plástica. Isto se explica, em parte, pelo fato de os artistas populares não conhecerem esses cânones senão através da observação superficial e de sua interpretação longe de um raciocínio analítico. Mas se explica também por sua obstinada decisão de criar com seus próprios meios, de expressar sua sensibilidade rompendo inventivamente com o que poderia ser limitação técnica. Esta mostra reúne três artistas autodidatas de Minas Gerais que se dedicam à pintura sobre tela ou madeira: Célio de Faria, Lorenzato e Valmir Silva. Cada um dos artistas deverá ser representado por cerca de dez de suas criações, totalizando trinta obras. 2 Que não se espere desta exposição o impacto imediato e a grandiloqüência. Ela é antes uma mostra em surdina, singela, onde cada obra, por ser tão diferenciada do que se vê comumente, merece uma reflexão também diferenciada e amorosa. Estas obras falam mais à simplicidade do sentimento do que à complexidade do intelecto. À moda mineira, cabe ao espectador prospectar ouro na aparente rudeza. Célio de Faria, óleo sobre madeira, 35 x 65 cm 2012. Coleção particular, MG Estimulado pelo surgimento e crescente visibilidade do trabalho de Valmir Silva, seu vizinho, Célio de Faria (1947) animou-se a tirar do esquecimento seus pincéis e tintas e lançar-se de novo na aventura da criação. Ele tinha feito isto aos 9 anos de idade e, desde então, nunca tinha voltado ao desafio. Sua sensibilidade hibernou, mas não sucumbiu. Depois de trabalhar com vários ofícios, entre eles o de encadernador, pintor de parede, moldureiro e, neste último caso, conviver perifericamente com a arte, Célio de Faria concentra hoje sua produção em pequenas pinturas a óleo sobre madeira. Não tem um tema definido e nem se preocupa em tê-lo. O que importa para ele é a pintura, a pincelada, a relação das cores, a invenção de grafismos para definir uma árvore, uma estrada, uma parede. Há algo de silencioso e lírico em suas paisagens. Em certas naturezas-mortas, há profusão e delírio. Na maioria dos casos, há o que deve haver: pintura. 3 Amadeo Lorenzato, óleo sobre madeira, 50 x 40 cm, 1989. Coleção Pavilhão das Culturas Brasileiras, SP Amadeo Luciano Lorenzato (1900 – 1995) tem uma história de vida tão singular quanto sua pintura. Nascido praticamente junto com a sua cidade natal, Belo Horizonte, era filho de imigrantes italianos. Trabalhou como ajudante de pintor de paredes e como construtor de andaimes na construção civil. Em 1920, fugindo da gripe espanhola, a família volta para a Itália, onde Lorenzato ajuda a reconstruir a pequena cidade de Arsievo, devastada pela Primeira Guerra Mundial. Empreende uma longa viagem de bicicleta pela Europa, vendo museus e monumentos históricos, vivendo de pequenos expedientes e vendendo cartões desenhados por ele. De volta à Itália, às portas da Segunda Grande Guerra, alista-se na Brigada Civil e é recrutado para trabalhar num depósito de munição da Marinha alemã, em Hamburgo. Terminada a guerra, volta para o Brasil, instalando-se em Belo Horizonte, onde morre aos 95 anos. Ao longo da vida, nunca parou de pintar, acumulando suas obras ou oferecendo-as aos amigos. Em 1965, toma coragem e se apresenta carregado de telas em uma galeria da cidade. Seu trabalho ganha visibilidade, participando de exposições e prêmios. Hoje, a obra de Lorenzato desperta a atenção de artistas contemporâneos, sensibilizados por sua liberdade e 4 originalidade. Sua pintura é materialmente densa, com o uso de texturas redesenhadas com pente, vindas de seu ofício como decorador de paredes da arquitetura art-deco da Capital. Há uma singularidade de forma e de cor, manifestada numa espécie de síntese e tempo suspenso que beiram a metafísica. Os temas de seus quadros são os mais simples, banais mesmo, evidenciando um comportamento moderno, em que o tema, em si, é irrelevante, se comparado à invenção da linguagem plástica que o trata. Valmir Silva, acríica sobre tela, 100 x 140 cm, 2011. Coleção particular, MG Velho conhecido nas redondezas da Savassi - bairro comercial da zona sul de Belo Horizonte -, Valmir Silva (1964) começou a pintar em pedaços de madeira e telas improvisadas, transpondo as paisagens que ele desenha a lápis durante a jornada como lavador de carros. Muitas das pinturas abordam lugares típicos da cidade, como as praças da Estação e da Liberdade, os prédios altos com montanha ao fundo, o asfalto, os canteiros, os veículos. São conjuntos urbanos, vistos numa escala de quem está ali, vivenciando o lugar e sua trepidante inquietação. Entre largas pinceladas de cores fortes, o artista intercala pequenas variações cromáticas, 5 como se quisesse demorar um pouco no emaranhado impressionista que a vegetação sugere. Outras vezes, Valmir Silva se envereda por temas imaginários, cujas referências ele busca em fotos de lugares distantes. Como costuma acontecer com pintores autodidatas bem plantados em sua atividade criadora, a figuração nasce de uma necessidade maior de expressão que dispensa as regras compartilhadas, como as da perspectiva, por exemplo. No caso de Valmir Silva, os elementos da paisagem se lançam sobre a tela de forma aparentemente rude, mas nunca desengonçada ou embaraçada pela timidez. Há uma pulsão acrítica, um frescor quase infantil, uma liberdade intrínseca. Essa postura desarmada, tão desejada quanto rara, permite ao artista vôos elaborados no uso das cores arregaladas e fauves.