NELSON RODRIGUES
INVENTÁRIO ILUSTRADO E RECEPÇÃO CRÍTICA COMENTADA
DOS ESCRITOS DO ANJO PORNOGRÁFICO
Por
Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de Souza
Departamento de Ciência da Literatura
Tese de Doutorado em Ciência da
Literatura
(Literatura
Comparada)
apresentada à Coordenação de Cursos de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Orientador: Professor Doutor Eduardo de
Faria Coutinho
Rio de Janeiro, 2o. semestre de 2006
1
EXAME DE TESE
SOUZA, Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de.
Nelson Rodrigues – Inventário Ilustrado e
Recepção Crítica Comentada dos Escritos do
Anjo Pornográfico. Rio de Janeiro, UFRJ,
Faculdade de Letras, 2006. 237 fl. mimeo.
Tese de Doutorado em Literatura Comparada.
Banca Examinadora
Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho (Orientador)
Professora Doutora Beatriz Resende
Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares
Professora Doutora Sonia Regina Aguiar Torres da Cruz
Professor Doutor Renato Cordeiro Gomes
Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho (suplente)
Professora Doutora Denise Jorge Trindade (suplente)
Defendida a Tese:
Conceito:
Em:
2
Para você novamente, Beth Wester
Ao meu pai, Milciades Mário Sá Freire de Souza
(In Memoriam)
3
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho, pela troca intelectual e
pelo privilégio da convivência dos últimos anos, bem como pela dedicação a esta Tese.
Aos professores do programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
UFRJ, pelas contribuições acadêmicas adquiridas ao longo do doutorado.
Aos companheiros de doutorado pelo convívio acadêmico.
Às professoras Angélica Maria Santos Soares e Sonia Regina Aguiar Torres da
Cruz pela ajuda com suas reflexões durante o exame de qualificação.
Ao pessoal administrativo da Secretaria de Pós-Graduação em Letras da UFRJ
pela atenção e auxílio.
Aos funcionários dos setores de pesquisa de periódicos de O Globo,
particularmente a Paulo Luiz da Silva Carneiro (guia no labirinto dos arquivos e dos
microfilmes digitalizados do jornal), e da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e do
Museu Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, pela presteza com que me receberam e
pela generosidade com que me auxiliaram.
Aos meus alunos de graduação em jornalismo da Universidade Estácio de Sá, que
discutiram muitos dos textos incluídos nesta Tese. Em especial, à Ana Carolina Landi e
José César Mulser Filho, que colaboraram com o levantamento dos textos de “A vida
como ela é...”.
Ao Cnpq, pela bolsa de pesquisa concedida.
Aos membros da Banca Examinadora.
À minha mãe, meus irmãos e meus sobrinhos.
À família Wester.
4
SINOPSE
Avaliação da produção de Nelson Rodrigues
como repórter, dramaturgo,
folhetinista,
contista e cronista, inventariando sua obra e
discutindo as características míticas, de
embate entre fato e ficção e da presença do
paradoxo em seus escritos, em investigação
literária que se ancora nos estudos em
Literatura Comparada.
5
Nelson Rodrigues: o Autor e a Obra
A trajetória profissional de Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980) é um retrato das
transformações por que passaram os meios de comunicação no Brasil do século XX.
Escritor profícuo e, apesar da fala arrastada, orador hábil, Nelson marcou presença e
ocupou com desenvoltura todas as mídias existentes e investiu prontamente pelos espaços
abertos com o surgir e a consolidação de novas media em terras brasileiras. Esteve
envolvido com o jornalismo impresso (jornal e revista), participando ativamente como
repórter, crítico, polemista, folhetinista (autoral e pseudonímico), contista, cronista
esportivo, cronista comportamental; marcou presença destacada em nossa cena
dramatúrgica, onde ficou conhecido como o autor que inaugurou o teatro moderno
brasileiro; associou-se, ainda que indiretamente, ao rádio, que veiculou seus contos e
folhetins (escritos para o meio impresso); participou da televisão em seus primórdios,
como autor de novelas, comentarista esportivo, apresentador-entrevistador; e teve ainda
presença marcante no cenário cinematográfico e televisivo com as incontáveis
adaptações, que aconteceram e que continuam a acontecer, de seus textos (peças,
folhetins, contos) para o cinema e para a TV. Vale acrescentar que boa parte de sua
produção para muitas das áreas assinaladas desdobrou-se e continua a se desdobrar em
um acontecimento de peso dentro do mercado livreiro.
Com sua família, como conseqüência de acontecimentos desencadeados pela
Revolução de 1930, alijada inesperadamente do clã das dinastias que se atiraram à tarefa
empreendedora de consolidação dos meios de comunicação no Brasil, teve de trabalhar
duro (embora alimentado por uma força incontrolável que o impelia à escrita) para vários
dos tycoons da media brasileira: de Roberto Marinho a Assis Chateaubriand, de Samuel
Wainer e Niomar Bittencourt a Adolpho Bloch. Entre os veículos freqüentados por seus
escritos figuram todos os jornais e revistas brasileiros de peso do século em que viveu. É
uma lista que inclui entre as folhas jornalísticas A Manhã, Crítica (esses dois primeiros
de sua família), O Globo, O Jornal, Última Hora (e no caderno semanal: Jornal da
Semana Flan), Jornal dos Sports, Diário da Noite e Correio da Manhã. E entre as
revistas: O Cruzeiro, A Cigarra, Manchete Esportiva, Manchete, Fatos e Fotos e
6
Realidade. Devem-se assinalar ainda os veículos de circulação mais restrita como as
publicações Para Todos e Brasil em Marcha.
A presente investigação pretende analisar a parte mais significativa dessa
trajetória profissional: a do jornalista, dramaturgo, escritor de obras ficcionais publicadas
em jornal e cronista. Ficam excluídas desde já a sua presença e passagem por meios como
o rádio, a televisão e o cinema (que aguardam estudo particularizado, abordagem
negligenciada pelos pesquisadores até o momento1). Foi nesse segmento de sua produção,
que Nelson Rodrigues inscreveu seu nome na linhagem dos grandes literatos que tiveram
que recorrer aos jornais para exercerem seu ofício. Os nomes são muitos e significativos
e não por acaso alguns deles se espalhariam por seus textos. Entre os mais expressivos,
pode-se citar: Daniel Dafoe, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas,
Alexadre Dumas Filho, Charles Dickens, Jack London, Émile Zola, Walt Whitman, José
de Alencar, Machado de Assis, Fiódor Dostoiévski, Euclides da Cunha, Lima Barreto,
João do Rio, Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, George Orwell, John Steinback,
Antonio Callado, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Truman Capote, Tom
Wolfe. Todos desempenharam papel importante no mundo limítrofe entre o jornalismo e
a literatura.
1
Uma exceção importantíssima é o brilhante estudo de Ismail Xavier sobre as adaptações de textos rodrigueanos por
cineastas brasileiros. Está em Xavier, Ismail. O olhar e a cena - melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues.
São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p.129-364.
7
SUMÁRIO
Sinopse........................................................................................................................... v
Nelson Rodrigues: o Autor e a Obra.............................................................................. vi
1. Introdução.................................................................................................................. 10
2. Escritos, Estudos e Pesquisas sobre o Autor e sua Obra...........................................
2.1 – O Dramaturgo.....................................................................................
2.1.1 – A Apreciação dos Jornais .........................................
2.1.2 – A Avaliação Universitária.........................................
2.2 – O Repórter, o Crítico e o Contista Iniciante.......................................
2.3 – O Folhetinista, o Contista Consagrado...............................................
2.4 – O Cronista...........................................................................................
2.5 – Considerações Acadêmicas sobre as Reportagens, os Folhetins, os
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Contos, as Crônicas ........................................................................... 73
2.5.1 – Reportagens Policiais e Faits Divers........................ 73
2.5.2 – Origens e Características dos Folhetins e das
Crônicas................................................................... 76
2.5.3 – A Avaliação Acadêmico-Universitária dos
Folhetins, Contos, Crônicas ....................................
2.6 – Os Primeiros Escritos, os Textos Perdidos e o Epistolário ...............
3. Centralidades na Escrita do Autor.............................................................................
3.1 – A Dimensão Mitológica......................................................................
3.2 – Os Limites entre Discurso Factual e Ficcional................................
3.3 – O Paradoxo como Meio de Expressão................................................
4. Narrativas Rodrigueanas............................................................................................
4.1 – Narrativas Dramatúrgicas...................................................................
4.1.1 – Peças Míticas..............................................................
4.1.2 – Peças Psicológicas e Tragédias Cariocas...................
4.1.3 – A Linguagem das Peças.............................................
4.2 – Narrativas do Repórter, do Folhetinista, do Contista.........................
4.2.1 – Repórter, Contista, Cronista Iniciante..........................
4.2.2 – Folhetinista Pseudonímico...........................................
4.2.3 – Repórter, Contista Consagrado e Folhetinista Autoral
4.2.4 – A Linguagem das Reportagens, dos Folhetins, dos
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149
Contos.........................................................................
4.3 – Narrativas do Cronista........................................................................
4.3.1 – Cronista Esportivo.......................................................
4.3.1.1– Personagens das Crônicas Esportivas................
4.3.2 – Cronista Mêmore-Confessional...................................
4.3.2.1– Personagens das Crônicas Mêmore-
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170
172
180
184
Confessionais.....................................................
4.3.3 – A Linguagem das Crônicas..........................................
5. Considerações Finais.................................................................................................
6. Fontes e Bibliografia..................................................................................................
203
207
219
228
8
Resumo.......................................................................................................................... 237
CD Anexo.............................................................................................................. Contracapa
1 — Introdução
I have been implying that criticism is or ought to be a cognitive activity
and that it is a form of knowledge. I now find myself saying that
if, as Foulcault has tried to show, all knowledge is contentious,
then criticism, as activity and knowledge, ought to be contentious too.
Edward Said
Como se faz para convencer leitores, e leitores de jornal, de que eles precisam de
forma imperiosa da imaginação? Se é verdade que a narrativa é “trans-histórica,
transcultural” e “está presente, como a vida”, como nos diz Barthes (2001: 104), há,
porém, o detalhe: como convencer esses leitores de que essa narrativa merece ser
conhecida e vivenciada como algo exacerbado como só se encontra em certos nichos
literários? Como, então, persuadir o leitor de textos jornalísticos a se filiar ao texto do
9
“escritor” em vez de ao texto do “escrevente”? A distinção é feita por Sartre no livro Em
defesa dos intelectuais (1994 [1972])2, no qual retoma as observações do Barthes de
Crítica e verdade (1999 [1966]). Para o filósofo, o “escrevente se serve da linguagem
para transmitir informação”, enquanto o escritor “é o guardião da linguagem comum, mas
ele vai mais longe, e seu material é a linguagem como não-significante ou como
desinformação; é um artesão que produz um certo objeto verbal através de um trabalho
sobre a materialidade das palavras, tomando como meio as significações e como fim o
não-significante” (Sartre, 1994: 59). Isto leva o filósofo a concluir que é por essa razão
que se diz com freqüência e de forma depreciativa: “É literatura”, com o intuito de se
observar que alguém “fala para não dizer nada” (Sartre, 1994: 59).
Era esse o desafio ao qual Nelson Rodrigues se entregaria e cumpriria com raro
talento em sua trajetória dentro do jornalismo brasileiro: fazer essa literatura, de que fala
Sartre, na mídia impressa. E certamente esse desafio não se colocou como uma questão a
priori. Nasceu de uma contingência. Qualquer um minimamente familiarizado com seus
escritos sabe como ele festejava os excessos do jornalismo do começo do século XX que
vivia então sua liberdade literária. E de fato, se nos voltarmos para textos de períodos
menos conhecidos da carreira jornalística de Nelson Rodrigues (publicados em A Manhã,
Crítica e O Globo), reconheceremos que havia uma liberdade para o jornalista cruzar as
fronteiras entre o fato e a ficção. Vejamos um trecho de uma reportagem que consta da
edição do dia 1o. de maio de 1928, à página 7 de A Manhã, jornal de propriedade de
Mário Rodrigues (pai de Nelson Rodrigues), sob o título “Um Açougueiro Sentimental –
2
Faz-se aqui uma apropriação pontual do livro de Sartre, cuja discussão central trata do papel do intelectual nas
sociedades modernas; entre colchetes assinala-se a data da primeira edição das obras comentadas. O tema discutido
por Sartre recupera assunto debatido anteriomente pelo autor. Ver Sartre, Jean-Paul. Que é a literatura?, São Paulo,
Editora Ática, 1999.
10
Agredido a Faca Quando Recitava Baudelaire” 3, que o pesquisador Caco Coelho acredita
de autoria do jornalista. Nele se lê:
O Manoel estava, ontem, sacudido de exaltações frenéticas. Desde que se erguera da cama,
uma ânsia, uma vontade de qualquer coisa, imprecisa e vaga, dominava-o, tornava-o febril e
arquejante.
Embora fosse açougueiro, isso não o impedia de ser um sentimental, um romântico, um
artista. Sua sensibilidade, finíssima, era um ninho de maviosas e cristalinas emoções estéticas.
Ser testemunha do amanhecer, da aurora cheia de sangue, era para Manoel um prazer
indefinível, enlouquecedor.
Acordava, de propósito, cedinho e ia alegre, feliz, assistir os toques da alvorada,
resplendendo na curva do horizonte, cheio de uma delicadeza tocante de cores. Diante da
manhã nascente, era de ver como o sentimental açougueiro se comovia e ficava afogado em
lágrimas românticas. Ele, em pé, heróico, grande, avultado, sobrelevado de si, desejava
mundos. Desejava palácios, ouro, diamantes, cristal, luz, prata, mulheres. Aquele rubor do
horizonte parecia-lhe uma grande pétala de rosa. E o sol, pouco a pouco, vagaroso, ainda com
a luz empanada pelo vermelho uníssono, escravizava todos os detalhes da manhã. (...)
O homem foi para o Mangue. Ali chegando, começou a enviar a toda figura feminina que
lhe passava ao lado ou à frente um exame meticuloso e penetrante. Chegava ao mais aceso da
pesquisa, quando apareceu a figura adequada. Então, Manoel, garboso, elegante, ativo,
mostrando a alvura cintilante dos dentes, recitou ao anjo de ternura uma multidão de versos
"Fleur du Mal" de Baudelaire.
A doce figurinha, que era uma mulata reforçada, dispôs-se a ficar melancólica. Quando,
porém, já ia suspirar e fitar o ocaso, apareceu-lhe o "coronel", temível capoeira. O
homenzinho apareceu no momento em que Manoel gemia Baudelaire. Vendo o sedutor da
pequena, ele se encheu de ira. Ficou terrível. E não conversou... Puxou de uma faca e feriu, no
peito, o sentimental açougueiro. Ato contínuo evadiu-se.
Reclamada a assistência, esta socorreu a vítima que é Manoel Ferreira da Silva, português,
residente na praça da Igrejinha. O palco do drama foi a rua General Pedra, esquina do Carmo
Netto. (Rodrigues, 2004: 169-71)
A notícia, com um longo “nariz de cera”, como se diz em linguagem jornalística,
é redigida com o lead no pé do texto, mostrando que o modelo da pirâmide invertida, a
técnica de redação jornalística que coloca os dados mais importantes na abertura da
reportagem, ainda não era considerada. A passagem, além disso, é farta em impressões e
digressões subjetivas.
Em suas crônicas o próprio Nelson Rodrigues mencionaria narrativas semelhantes
a esta publicadas no espírito do jornalismo da primeira metade do século XX –
3
Este texto faz parte da pesquisa “O baú de Nelson Rodrigues”, que será comentada adiante na seção 2.2. Todos
os escritos publicados em jornal e comentados nesta Tese aparecem coligidos e identificados pelo nome do
periódico em que foram publicados, pela data de sua publicação e pela página em que apareceram, em CD
anexado a este volume.
11
jornalismo que passaria por profundas transformações nas décadas de 1950 e 1960 com a
adoção pelos jornalistas brasileiros de marcas textuais de tom objetivo, traço que
assinalaria o espírito editorial de nossos jornais a partir de renovações iniciadas no
Diário Carioca pelos jornalistas Danton Jobim, Pompeu de Souza e Luís Paulistano (cf.
Sodré, 1998). Estas inovações trariam mudanças às práticas jornalísticas como o emprego
da técnica do lead e a utilização de uma linguagem mais direta e próxima do linguajar do
leitor. A preparação de textos noticiosos com lead e sublead (esta última prática uma
inovação do próprio Pompeu de Souza) começava uma ascensão rumo a sua consagração
como técnica de rigor obrigatório a ser ensinada nas futuras escolas de jornalismo4.
Dentro de seus textos, que apareceriam na imprensa nas décadas subseqüentes,
Nelson Rodrigues seguiria indiferente às mudanças que vinham se dando na imprensa
brasileira e, pelo contrário, se esforçando ao máximo por negá-las e por colocar qualquer
construção discursiva que investisse pelo terreno da veracidade em xeque e sob suspeita.
Essa prática, que já se insinuava no texto do repórter, pautaria toda a escrita do jornalistacronista. Ao mesmo tempo ocorria um processo inverso: o da contaminação de suas
criações ficcionais por fatos reais, num permanente questionamento sobre os limites entre
um discurso e outro. Havia ainda a busca de impregnar suas criações ficcionais com uma
linguagem próxima à usada nas ruas, cheia de coloquialismos.
Dentro da perspectiva do autor, a vida só merecia ser vivenciada de uma
perspectiva poética. Por isso, era necessário adensar liricamente o cotidiano. Nelson
trabalhava sua escrita de jornalista (repórter, crítico, cronista) no sentido oposto ao de sua
prática de escritor de obras ficcionais (dramaturgo, folhetinista, contista). Nestas, ele
aproximava sempre a dimensão poética (inerente ao jogo da fantasia ficcional) do real,
4
Para uma sistematização sobre as conceituações de lead, sublead, pirâmide invertida, consultar Pena, Felipe. Teoria
do jornalismo. São Paulo, Editora Contexto, 2005, especialmente p.41-9.
12
inserindo dados da realidade em suas peças, folhetins, contos. Nas reportagens, críticas e
nas crônicas, este último o filão em que se tornaria um especialista e onde realizaria
grande parte de seus textos, faria o contrário: os fatos de nossa realidade comezinha
exigiam o toque do escritor-estilista para adquirirem um sentido transcendente e com isso
alcançarem uma dimensão mítica.
Talvez por uma feliz caracterização do exposto acima, sua mais conhecida
produção ficcional jornalística, os contos diários que preparou durante dez anos para o
jornal Última Hora, apareceu na imprensa com o título de “A vida como ela é...”,
enquanto parte de suas crônicas esportivas, que acompanhavam o desenrolar dos
acontecimentos do mundo dos esportes, seria escrita amparada na rubrica “Meu
personagem da semana”. Em texto inédito apresentado por esta Tese, e publicado no
jornal O Globo, edição do dia 24 de novembro de 1939, às páginas 1 e 2 da seção
“Suplemento feminino”, Nelson chega mesmo a afirmar a sua percepção síntese de que
“A vida é literária”.
É a partir, portanto, desta constatação que se discutirá nesta Tese de
Doutoramento qual a contribuição intelectual e qual a intervenção no campo da cultura
que emerge da militância de Nelson Rodrigues por essa prática discursiva inventiva. De
sua obra serão destacados três pontos que parecem exercer centralidade em sua escrita e
que se fazem presentes em sua produção tanto de escritor de obras ficcionais como
jornalísticas. O primeiro deles, com base no que já foi comentado, se refere a esse esforço
por buscar a exacerbação do real para evitar qualquer tentativa de maquiar o mundo e
mostrá-lo como que sem a mediação de uma subjetividade e uno em sua veracidade. Um
outro aspecto central é o gosto do autor por trabalhar um pensamento paradoxal em seus
13
escritos. O interesse em deflagrar a polêmica e em questionar a tudo e a todos alimenta
essa característica de sua prosa. Essas duas facetas de sua prática como escritor são
trabalhadas pelo terceiro ponto que cabe ressaltar: o do interesse do autor por trafegar
discursivamente por uma dimensão mítica.
A abordagem aqui empreendida para salientar esses três traços fortes de sua
criação se concretizará através do destaque que será dado às narrativas do jornalista, do
ficcionista e do cronista, o que será feito de uma perspectiva que se funda na Literatura
Comparada.
Parte-se de início da constatação de que qualquer análise especulativa sobre a obra
de um escritor já deixa de forma indisfarçável se perceber um viés comparatista. De
sobremaneira, quando essa análise foca um escritor de uma cultura periférica como a
brasileira. Se na célebre introdução à Formação da literatura brasileira, Antonio
Candido (1975) era levado a afirmar que a nossa literatura “é galho secundário da
portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas (...)” (1975: 9),
esse panorama mudaria completamente com a forte influência que a literatura brasileira
passaria a exercer sobre outras literaturas. De qualquer jeito, se a troca e a interferência
recíproca de produções literárias de origens distintas converte o Comparatismo no estudo
literário em um truísmo, o desejo de destacar este ponto torna ainda mais instigante essa
investida. Sobretudo quando se traz à cena um autor com as características do que se
escolheu abordar, um escritor que faz com que fique por demais rica e complexa a
avaliação das inter-relações entre as produções intelectuais levadas a efeito no cenário do
que se convencionou chamar de “metrópole” e “periferia”.
14
Em suas reportagens, críticas, peças, folhetins, contos, crônicas, Nelson Rodrigues
produz uma escrita que se embebe na tradição da cultura literária ocidental. As
informações colhidas nessa literatura, no entanto, são projetadas para dentro da realidade
brasileira resultando em um produto cultural de qualidades genuínas. Trata-se de um
autor que incorpora o que há de melhor na cultura ocidental sem ser subserviente a ela.
Eduardo de Faria Coutinho (2003) nos lembra que o comparatismo de maneira
geral, e especialmente no caso latino-americano, sempre serviu-se de um ideário que
tentava provar a superioridade dos textos e das culturas-fonte. Comentando as
transformações por que passaram os estudos comparatistas na América Latina, observa
esse que é um dos mais proeminentes estudiosos do tema no Brasil:
A prática de se compararem autores, obras e movimentos já existia de há muito no continente,
mas por uma ótica tradicional, calcada, à maneira francesa, nos célebres estudos de fontes e
influências, que, além disso, se realizavam por uma via unilateral. Tratava-se de um sistema
nitidamente hierarquizante, segundo o qual um texto fonte ou primário, tomado como
referencial na comparação, era envolvido por uma aura de superioridade, enquanto o outro
termo do processo, enfeixado na condição de devedor, era visto com evidente desvantagem e
relegado a nível secundário. (Coutinho, 2003: 19)
Uma arqueologia sobre o nascimento do pensamento comparatista pode ser
encontrada em texto seminal de Hutcheson Macaulay Posnett (1886), as discussões sobre
o uso do termo, em René Wellek (1970), e um histórico sobre os desdobramentos por que
vem passando a disciplina, em ensaio de Eduardo F. Coutinho (2003) no livro citado há
pouco.
São três os campos tradicionais de investigação em literatura de modo geral e em
Literatura Comparada especificamente. A saber: o da Teoria, da Crítica e da
Historiografia literárias. A Teoria Literária se ocuparia com “os princípios da literatura,
suas categorias” (Warren e Wellek, 1949, apud Coutinho, 2003); a Crítica, com
15
parâmetros e critérios de avaliação respaldados em noções como as de literariedade e de
permanência; e a Historiografia, com o aspecto diacrônico, ou com uma abordagem das
obras “em sua série cronológica e como partes integrantes de um processo histórico”
(Coutinho, 2003: 76). Uma primeira e inocente passagem por essas definições pode levar
o leitor a imaginar que os três campos são monolíticos, o que não é verdade.
São muito próximas as relações entre essas três esferas de estudos, entre si, e
igualmente estreita é a ligação delas com a Literatura Comparada. O campo que esteve
mais associado diretamente à Literatura Comparada, pelo menos quando do aparecimento
do Comparatismo literário em seus primórdios, foi o da pesquisa historiográfica. Se
formos avaliá-la, no entanto, veremos que essa prática apresenta também e de maneira
indisfarçável, uma orientação teórica. De acordo com Silva (2001) em seu trabalho sobre
a história da historiografia: “deve-se observar que a própria listagem de autores e obras
não é neutra e, dificilmente, será exaustiva. Queiramos ou não ela supõe escolhas e traz
subjacente uma visão da história” (2001: 25). O teórico Luiz Costa Lima (1991) observa
mesmo como em Formação da literatura brasileira (1975), o tom descritivo adotado por
Antonio Candido, para elencar os nomes e os escritos dos autores românticos que analisa,
tenta encobrir a adesão do crítico ao ideário desses escritores.
Se é, portanto, pequena a distância entre a perspectiva historiográfica e a teórica,
igualmente tênue é o espaço que separa a Teoria e a Crítica.
Esses métodos de estudos literários, nos dizem Wellek e Warren:
(...) estão de tal maneira entrelaçados que tornam inconcebíveis a teoria literária sem a crítica
ou a história, a crítica sem a teoria e a história ou a história sem a teoria e a crítica.
Obviamente, a teoria literária é impossível, exceto com base em um estudo de obras literárias
concretas. Não podemos chegar a critérios, categorias e esquemas in vacuo. Inversamente,
porém, nenhuma crítica ou história é possível sem algum conjunto de questões, algum sistema
de conceitos, alguns pontos de referência, algumas generalizações. Naturalmente, não se trata
aqui de nenhum dilema insuperável: toda vez que lemos temos algumas idéias preconcebidas
16
e sempre mudamos e modificamos essas percepções depois de mais experiência com obras
literárias. O processo é dialético: uma interpenetração mútua de teoria e prática. (Wellek e
Warren, 2003: 38)
No presente estudo invisto pelas três vertentes entrelaçando-as com a dimensão
comparatista. Há o trabalho historiográfico na busca de definição do autor, da obra e da
inserção desta dentro da tradição literária brasileira (e indiretamente dentro da tradição
literária que se formou no Ocidente); há o trabalho teórico na busca de identificação da
escrita do autor, embasada em conceituação que sustente teoricamente essa tentativa; e há
o trabalho crítico na avaliação da produção do escritor. O viés comparatista está ligado às
três dimensões consideradas. A investida nestas três áreas de estudo será feita a partir do
confronto com o exercício de outros pesquisadores.
A Literatura Comparada nasce, da mesma forma que outros campos de estudos
científicos comparatistas, no século XIX, e sob a égide do etnocentrismo, e foi no muito
falado Orientalism (1979), que Edward Said abriu caminho para um esmerado trabalho
que visava a historicizar toda a dimensão política que acobertava os estudos
comparatistas desde o seu surgimento. De acordo com Said, o comparatismo lingüístico,
com ares científicos, desenvolvido no século XIX por Ernest Renan, por exemplo, mal
disfarçava o esforço em provar a superioridade das línguas e das culturas ocidentais.
Assim, comentando a produção do orientalista francês, o scholar de origem palestina
escreveu:
Leia-se praticamente qualquer página escrita por Renan sobre a língua árabe, o hebraico, o
aramaico, ou a língua proto-semítica e se estará lendo uma manifestação de poder, com a qual
o especialista em filologia orientalista angaria, a bel prazer, exemplos de fala humana, para
envolvê-los ali em uma suave prosa européia que aponta defeitos, virtudes, barbarismos, e
problemas na língua, no povo e na civilização. (Said, 1979: 142)5
5
Coube-me todas as traduções para trechos de obras utilizadas nesta Tese e que são citadas a partir da versão original.
17
Em suas críticas às idéias trabalhadas por Renan em sua Historie générale et
système comparé des langues sémitiques, complementa o ex-professor da Universidade
de Columbia nos Estados Unidos, um dos grandes pensadores comparatistas do século
XX:
Então de um lado há o processo orgânico, biologicamente regenerador, representado pelo
ramo lingüístico indo-europeu, enquanto do outro lado há o inorgânico, essencialmente
degenerativo processo, ossificado, do ramo semítico: acima de tudo, Renan deixa
absolutamente claro que esse julgamento imperioso é feito por um filologista, especialista em
oriente, no seu laboratório, para que fique evidente o fato de que as distinções com as quais se
ocupa não estão ao alcance e disponíveis para ninguém, a não ser o expert. (Said, 1979: 143)
Além das visões de Renan e de outros estudiosos, como o pioneiro Silvestre de
Sacy, que ampliaram e estenderam o interesse dos estudos europeus helenistas e latinistas
ao Oriente, Said destaca como as culturas árabe e semítica foram retratadas em obras
literárias, tratados políticos, textos jornalísticos, guias de viagem e estudos religiosos de
autores como Victor Hugo, Gustave Flaubert, François-René Chateaubriand, Caussin de
Perceval, Karl Marx e Alphonse de Lamartine. Mesmo com a entrada dos ingleses T. E.
Lawrence, Edward William Lane e Sir Richard Burton, vemos apenas a mudança, de
acordo com o autor, de uma perspectiva acadêmica para uma perspectiva instrumental no
trato com essa cultura nova para o horizonte europeu.
Orientalism (1979) deixava patente a necessidade de uma abertura da discussão
comparatista para o âmbito de uma reflexão maior e centrada na dimensão cultural do
fazer literário, o que viria a acontecer posteriormente com o livro que levou o título de
Culture and imperialism (1993). Deve-se destacar que Said, apesar de enfocar a literatura
neste seu trabalho, não se esquece, certamente tocado pela onda dos estudos culturais que
18
ganhavam força no cenário acadêmico nos anos de 1970 e 1980, de estender sua
discussão a outras searas artísticas, como o cinema, por exemplo 6. O cerne do estudo, no
entanto, mostra, no campo literário, uma nova avaliação sobre a construção discursiva
empreendida pelo olhar ocidental eurocêntrico em relação ao Oriente, a partir do ideário
construído através das letras européias e tendo como pano de fundo o cenário da
expansão imperialista européia (inglesa e francesa) e norte-americana.
A restrição que se pode fazer a Said é a de que o seu ponto de vista crítico não
foge à perspectiva a que o autor tanto anseia opor-se7. Em um ensaio publicado no jornal
Folha de São Paulo, o antropólogo Hermano Vianna, ainda que não comentando
especificamente os trabalhos de Said, chama a atenção para esse ponto problemático
dentro dos estudos que politizam a crítica da cultura:
A bibliografia dos mais militantes textos antiimperialistas é uma aula de
imperialismo. Os autores básicos são sempre os mesmos: Karl Marx, Theodor Adorno, Eric
Hobsbawm, Stuart Hall e por aí afora, ou melhor, cada vez mais para dentro de um certo
"cânone" ocidental, aquele que inventou a crítica do Ocidente. Quando aparece um nome
"fora-do-eixo", é fácil perceber as razões que motivaram sua escolha: ou leciona numa
poderosa universidade européia/norte-americana ou teve algum dos seus livros publicado por
essas universidades. Mesmo a recente onda dos estudos "pós-coloniais", com tantos nomes
aparentemente indianos ou africanos fazendo sucesso, foi produzida no âmbito das editoras,
revistas acadêmicas e seminários dessas universidades. (Vianna, 2003)
A crítica a Said não se circunscreve aos teóricos que o comparatista decide
destacar, mas diz respeito também às obras literárias que comenta: todas
confortavelmente situadas dentro desse cânone que ele tanto ataca. Apesar de deixar um
flanco sujeito à restrição e crítica, o teórico consegue, no entanto, apresentar
considerações bastante pertinentes, como ao lembrar-nos que:
6
Para uma reflexão sobre os embates entre as pesquisas em Literatura Comparada e os Estudos Culturais, ver “A
indisciplina dos Estudos Culturais”. In: Resende, Beatriz. Apontamentos de crítica cultural. Rio de Janeiro: AeroplanoFundação Biblioteca Nacional, 2002, p.9-54.
7
O autor é consciente disto e justifica sua posição principalmente na parte introdutória do livro Culture and Imperialism,
p. vi-xxviii. Ver a seção de Referências desta Tese para notação completa da obra.
19
(...) nunca estivemos tão conscientes como estamos agora de como as experiências culturais e
históricas são estranhamente híbridas, de como elas compartilham de muitos e contraditórios
domínios e experiências, como cruzam fronteiras nacionais, como desafiam a ação
policialesca do simples dogma e do barulhento patriotismo. Longe de serem coisas unitárias
ou monolíticas ou autônomas, as culturas na verdade assumem mais elementos “estrangeiros”,
alteridades, diferenças, do que conscientemente excluem. (Said, 1993: 15)
Mesmo tendo excluído de seus estudos sobre cultura e imperialismo os impérios
coloniais de Espanha e Portugal, esses comentários sobre as expansões imperialistas
britânica, francesa e americana, podem fornecer aparato teórico-analítico para se aplicar à
experiência cultural brasileira. Se fizermos uma leitura da obra de Nelson Rodrigues,
tendo como ponto de partida as idéias aventadas por Said, podemos chegar à conclusão
de que a prática discursiva do escritor brasileiro poderia colaborar para reforçar as
observações aventadas pelo eminente scholar comparatista. Afinal, os escritos de Nelson
Rodrigues nos apresentam aspectos bastante peculiares para uma avaliação da maneira
como a cultura que aparece na “colônia” incorpora elementos da “metrópole”.
Trata-se de um desses autores que recria com surpreendente desprendimento toda
a tradição cultural em que se formou como leitor. Seja no teatro, ao visitar e reatualizar
toda a tradição dramatúrgica grega com passagem pela corrente expressionista de
extração alemã, seja na crônica ou no folhetim, ao colaborar para imprimir cor local a
duas práticas de escrita de estirpe francesa. Se entendermos ainda os estudos
comparatistas como que participando dos Estudos Culturais, a troca da obra do escritor
com áreas artísticas como o cinema, as artes plásticas e a ópera, é também patente.
Outro aspecto a se salientar é que se uma das correntes fortes dentro do
Comparatismo hoje é aquela que, a partir de uma compreensão histórica sobre essa
abordagem dos estudos literários, politiza essa prática, não se estará fazendo outra coisa
ao focalizar um autor de uma cultura periférica. Mesmo que se tenha de reconhecer que
20
se trate, em certa medida, de um cânone dentro dessa cultura. Nelson Rodrigues está
entre os autores mais estudados no âmbito universitário brasileiro e já começa mesmo a
conquistar espaço em universidades estrangeiras (especialmente como dramaturgo). O
trabalho que será levado a efeito aqui é, sob esse aspecto, bastante “conservador”, uma
vez que não há nada mais tradicional no trato do tema do que uma investigação literária,
como a que aqui se fará, que reforça a definição e a delimitação de autor e obra.
Cuida-se no texto que se segue de destacar e dar uma visão abrangente sobre qual
a extensão e as particularidades da contribuição de Nelson Rodrigues como escritor:
jornalista, crítico, dramaturgo, folhetinista, contista e cronista. A investigação discute e
situa o leitor frente ao inventário dos textos do autor ao mesmo tempo em que comenta e
analisa sua produção publicada em periódicos impressos, escrita para ser encenada e
editada em livro.
São alguns os autores que assinalam a influência que a carreira e a prática
jornalística de Nelson Rodrigues exerceram sobre sua criação ficcional. Uns outros tantos
críticos não custaram a identificar uma troca constante entre os escritos ficcionais do
escritor-contista e suas peças de teatro, principalmente os escritos que assinava na coluna
“A vida como ela é...”. No campo da exegese acadêmica existe mesmo uma percepção,
recorrente por parte dos estudiosos que se voltam para a obra de Nelson Rodrigues, sobre
a inevitabilidade de ter de se considerar suas criações como um todo orgânico, separado
apenas pelas particularidades dos espaços de criação literária em que o escritor se
exercitou8.
8
Entre os estudiosos da obra de Nelson Rodrigues que enfatizam esse aspecto ver, em minha Referência Bibliográfica,
Rosolem, 1995, e Marques, 2000.
21
Em função de tal percepção é que a pesquisa que aqui se inicia se vê compelida a
dar conta da obra do escritor como um todo, ainda que isso venha a ocorrer com a
aquiescência de que não será possível incorrer em análises tão profundas como os estudos
que se restringem ao espaço particularizado de um dos segmentos de sua criação, ou
mesmo de algumas obras escolhidas de alguns desses campos.
A extensão do corpus da produção jornalística do autor, por si só, é tão vasta que
algumas delimitações com relação ao que será aqui considerado, para propósito de exame
e análise, se fazem necessárias. Qualquer um que se volte com detença para a obra de
Nelson Rodrigues publicada em jornal está se lançando à contemplação de um abismo, e
um abismo de proporções inimagináveis. Nelson produzia com velocidade e precisão
surpreendentes, o que fazia com que tudo que sua imaginação concebesse fosse direto
para a linha de montagem jornalística e para a subseqüente impressão com extrema
rapidez. Como escreveu diariamente (às vezes para dois, três veículos), erigiu uma obra
extensíssima (talvez a obra mais extensa de um autor brasileiro) que ainda deve tomar
alguns anos e o tempo de vários pesquisadores para ser totalmente arrolada. É possível
mesmo se dizer que teremos de aguardar muito tempo, talvez uns vinte anos, para termos
a edição completa de seus escritos.
Portanto, é necessário uma delimitação que coloque em patamares um pouco mais
plausíveis o presente empreendimento. Assim, tratar-se-á de tomar como base de análise
os textos do autor que tenham sido editados em livro até a conclusão do trabalho. Isso
não isenta a presente pesquisa de se ocupar do levantamento de fontes primárias que
sirvam ao propósito de confronto e discussão para o preciso estabelecimento do que se
22
encontra editado comercialmente e para o acréscimo de comentários que se julge
pertinentes.
Vamos a uma breve exposição que delineie o roteiro da Tese. Depois dessa
introdução que situa o quadro maior de inserção de meu estudo, dedica-se o segundo
capítulo a um apanhado sobre as investigações e estudos que dão conta da obra e da
fortuna crítica construída em torno de cada um dos segmentos da produção rodrigueana.
Contemplam-se dois planos distintos nesta investida: a discussão sobre o inventário dos
escritos do autor e a análise sobre os debates conduzidos por jornalistas, pesquisadores,
analistas, críticos, exegetas que se voltaram para a análise de seus escritos.
Do apanhado que inventaria a obra e a fortuna crítica, assinalam-se os pontos que,
a partir das leituras feitas, se destacaram como aspectos centrais na produção de Nelson
Rodrigues. São eles: o gosto por envolver suas narrativas em uma dimensão mítica, a
busca do questionamento sobre os limites entre os discursos factual e ficcional e o
interesse em trabalhar um pensamento que se apóia no paradoxo como forma de
expressão. Cada um desses aspectos foi em seguida aprofundado separadamente em
exame teórico pontual que desenvolveu cada tópico em um terceiro capítulo. Assim, para
discutir a dimensão mítica recorri principalmente ao Mircea Eliade de Mito e realidade
(2000 [1963]), ao Roland Barthes de Mitologias (2003 [1957]), e ao Umberto Eco de
Apocalípticos e integrados (2000 [1964]). No que diz respeito à discussão sobre os
limites em facto e ficção, partiu-se do Luiz Costa Lima de Dispersa demanda, 1981, e de
Terra ignota – a construção d´Os sertões, 1997, e recorreu-se ainda ao Leopoldo
Bernucci de A imitação dos sentidos (1995). A discussão foi complementada pelo
Foucault de A verdade e as formas jurídicas (2003 [1973]) e, para focar-se o aspecto
23
jornalístico, pelo Lage de Ideologia e técnica da notícia (2001 [1979]). Para discutir os
traços de um pensamento paradoxal servi-me de Gilles Deleuze e de sua obra A lógica do
sentido (2000 [1969]), do Paul Ricoeur de A metáfora viva (2000 [1975]) e do Umberto
Eco de Semiotics and the Philosophy of Language (1986 [1984]).
Os conceitos trabalhados e refinados neste capítulo foram projetados dentro da
obra do dramaturgo, do repórter, do folhetinista, do contista e do cronista, em um quarto
capítulo de análises. Esse é o momento de maior interesse para o leitor leigo. É quando se
assinala a riqueza da criação de narrativas admiráveis em sua diversidade, se inventaria a
galeria de personagens incontáveis que trafegam entre o real e o ficcional e a fonte de
máximas de um escritor que sabia como ninguém criar e recriar aforismos. Uma
discussão sobre as características da linguagem em que são expressas essas investidas do
autor foi desenvolvida no correr da análise para cada segmento de prática da escrita
rodrigueana. Há, por fim, as considerações finais e os encaminhamentos que surgem em
um quinto capítulo. Acompanha a Tese, em anexo, um CD que funcionará como um
inventário ilustrado com alguns textos assinados por Nelson Rodrigues e outros
supostamente de sua autoria, muitos deles inéditos em livro. O CD em anexo traz ainda
todo o material publicado em periódicos e usado na Tese e que seria de difícil acesso para
que se pudesse confrontar o que é comentado na pesquisa. Essas são em linhas gerais as
diretrizes do estudo que o leitor tem em mãos.
24
2 — Escritos, Estudos e Pesquisas sobre o Autor e sua Obra
The longer one studies life and literature, the more strongly one feels
that behind everything that is wonderful stands the individual.
Oscar Wilde
No ensaio em que historia o desenrolar da prática de Crítica Literária no Brasil,
Flora Süssekind (2002) narra em detalhe como se deu a passagem da crítica rasteira,
impressionista e enciclopédica, feita no rodapé dos jornais, para a crítica mais densa
elaborada dentro do âmbito do espaço universitário. A autora identifica e destaca o papel
paradigmático dentro desse quadro desempenhado por alguns intelectuais. De um lado,
menciona pessoas como Álvaro Lins e Oswald de Andrade, que representariam o crítico à
moda antiga, trabalhando suas resenhas e críticas com o ímpeto obstinado dos escritores
personalistas que gostavam de exibir erudição nos jornais. E de outro, Afrânio Coutinho e
Antonio Candido, representando o pensamento crítico saído dos bancos das primeiras
turmas das universidades de Filosofia brasileiras, que pregavam em seus escritos a
necessidade de se submeter a produção cultural a uma análise mais densa e amparada em
arsenal consagrado no meio acadêmico9.
9
Para um aprofundamento da questão discutida por Süssekind, consultar o relato de Antonio Candido sobre o concurso
à cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia de São Paulo, em 1944. Candido disputava a cátedra com
outros seis candidatos, entre eles Oswald de Andrade e Souza Lima. No concurso, Candido terminaria em primeiro lugar
junto com Souza Lima e este último seria o escolhido para efeito de desempate. Está em “Mário e o concurso”, In:
Candido, Antonio. Recortes. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.241-4. Consultar ainda as biografias de Álvaro
Lins e Afrânio Coutinho. Os dois concorreram e chegaram a cátedras de Literatura no Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro. Para tanto, checar a trajetória biografica desses dois ex-membros da Academia Brasileira de Letras no endereço
da instituição na Internet: http://www.academia.org.br/.
25
Afrânio Coutinho e Antonio Candido por sinal vão ser dois intelectuais
importantes para a difusão dos estudos literários no Brasil. Candido com a posição central
que teve na formação de quadros de estudiosos de Literatura dentro da Universidade de
São Paulo, e Coutinho por sua luta pela criação da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Dentro do panorama traçado por Süssekind, durante os anos de
1940 e 1950 houve uma queda de braço entre os críticos-jornalistas, que exercitavam sua
escrita em investidas personalistas, e os críticos-scholars, que desenvolviam estudos com
vistas à especialização acadêmica, com vitória para o segundo grupo. A supremacia da
perspectiva do crítico-scholar foi tão grande que levou, segundo a autora, os jornalistas
ao longo dos anos de 1960 a criarem uma barreira para restringir o acesso de especialistas
acadêmicos ao meio jornalístico com o decreto que regulamentava o exercício da
profissão.
O quadro descrito por Süssekind funciona como cenário para se entender como se
tem dado a apresentação, a apreciação e os estudos das obras do escritor Nelson
Rodrigues. Durante os anos de 1940, 1950 e 1960, as obras de Nelson foram discutidas
nos jornais. Nas décadas de 1970 e 1980, e com a consagração do espaço universitário
como o lugar para análises de maior complexidade, suas peças passam a ser objeto de
trabalhos monográficos, dissertações de Mestrado e teses de Doutorado. O final dos anos
de 1980, a década de 1990 e o novo século, assinalam o interesse pelas reportagens,
críticas, folhetins, crônicas e contos do autor.
2.1 – O Dramaturgo
26
É uma prática corriqueira no mundo inteiro o ato de se reverenciar os escritores
com alguma estatura dentro de certa tradição literária com a publicação de suas obras
completas. O autor com um mínimo de projeção dentro da vida cultural passa
rapidamente das compilações, antologias, analectos, para o espaço mais nobre dos
volumes integrais de seus escritos. Ana Cristina César (1999) já chamava a atenção, três
décadas atrás, para o fato de que a Literatura foi durante muito tempo a única
manifestação cultural que era ensinada como disciplina obrigatória na formação básica
das novas gerações de estudantes, o que explica e justifica indiretamente esse costume
editorial10.
O espaço mais consolidado dos estudos sobre os escritos de Nelson Rodrigues é,
também, o que em primeiro o escritor conheceu projeção: o universo de suas peças
teatrais. O seu teatro foi também o primeiro segmento de sua produção como escritor a
ganhar uma obra de maior fôlego e que açambarcasse suas criações. Coube a Pompeu de
Souza, em 1965, capitanear tal empreitada. Companheiro de Nelson Rodrigues em
trincheiras jornalísticas, Pompeu de Souza foi o responsável por preparar a apresentação
da edição do Teatro quase completo, de 1965. Além das peças que Nelson havia escrito
até então, a primeira antologia de suas obras teatrais vinha enriquecida por textos
jornalísticos e estudos curtos de vários críticos da época. Essa é uma tradição que seguiria
com cada nova edição das antologias e mesmo dos volumes integrais de suas peças.
Posteriormente e, desta feita, com o acompanhamento do autor, Sábato Magaldi
prepararia, na década de 1980, a edição definitiva do Teatro completo de Nelson
10
As considerações de Cesar estão circunscritas ao período que comenta: a grade curricular de ensino até a década de
1970, época em que preparava sua dissertação de Mestrado.
27
Rodrigues (em quatro volumes), que já teve várias edições pela editora Nova Fronteira
(sendo que uma novíssima está chegando ao mercado livreiro no momento em que esta
Tese é escrita) e uma pela prestigiada editora Nova Aguilar; todas enriquecidas por textos
jornalísticos e trechos de estudos universitários realizados sobre o dramaturgo e sua obra.
2.1.1 – A Apreciação dos Jornais
Antes da chegada do Teatro quase completo (1965), as peças rodrigueanas foram
muito discutidas nos jornais. Todas as peças de Nelson Rodrigues, especialmente após a
aclamação de Vestido de noiva, despertaram intenso interesse dos críticos à medida que
eram escritas. Era o que ocorria independentemente do fato de serem encenadas ou
censuradas. Como ganhou notoriedade com Vestido de noiva e como causou grande
polêmica com seu universo dramatúrgico a partir de então, suas peças foram sempre
assunto de muitos debates e críticas nos jornais.
Na verdade, desde sua estréia com A mulher sem pecado, em dezembro de 1942, a
produção dramatúrgica de Nelson Rodrigues já obteve a atenção dos jornais com a
alternância de resenhas positivas e negativas. Apesar de uma chamada entusiasmada
convidar os leitores de O Globo para acompanharem uma “jovem e certamente vigorosa
vocação de teatrólogo no Brasil” em uma peça escrita “com acentuada e persistente
investigação psicológica”, o crítico de teatro do jornal na década de 1940, Bandeira
Duarte, não se mostraria tão receptivo à estréia do dramaturgo em sua resenha à página 5,
do dia 11 de dezembro de 1942. O crítico se reportaria da seguinte forma ao drama
assistido:
(...) Nelson Rodrigues quis ser original sem refletir que o teatro é uma arte com três
mil anos de idade vividos entre aquelas três paredes fatais, regidos pelas mesmas regras e
pelas mesmas situações – e nisso está toda a sua beleza, toda a sua força. Esqueceu que
28
quando o palco perde o contato com a realidade, perde toda a sua razão de ser e todo o seu
encanto. Produziu uma obra “fora do comum”, como disse alguém atrás de nós e como diziam
as notícias, antes da estréia? Por que? ... Tudo o que ali está, pode ser encontrado alhures. Um
pouco de Pirandello, com sua humanidade abstrata; um pouco de Ibsen, na minúcia torturante
dos “Espectros”; um pouco de cinema para explicar e objetivar o fenômeno do pensamento.
Em posição diametralmente oposta e com muitos elogios, apareceriam os
comentários de um escritor de peso como Manuel Bandeira. Escreveu o poeta em A
Manhã, no começo de 1943, algumas semanas depois de a peça ter entrado em cartaz no
Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro:
A Mulher sem Pecado interessou-me desde as primeiras cenas. Senti imediatamente no autor a
vocação teatral.(...) Ao sair do teatro, tomei conhecimento da reação do público, que de lá saiu
discutindo, discordando, discorrendo. Remexido enfim. Bom teatro o que sacode o público.
Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos. (Bandeira, 1989: 389)
Com Vestido de noiva, que estreou em dezembro de 1943 (um ano depois de A
mulher sem pecado), o escritor conheceu uma consagração rara para um autor ainda
iniciante (tinha apenas 29 anos na época). Na revista O Cruzeiro, de 10 de junho de 1944,
Manuel Bandeira voltava a festejar o novo dramaturgo. Dizia o poeta, do texto que lera
em primeira mão antes de sua encenação, que aconteceria no Teatro Municipal, no centro
do Rio de Janeiro:
Conhecia-o então, só de leitura. No meio da emoção que me despertavam aquelas cenas
de tão profunda penetração no subconsciente humano, eu me perguntava, incerto como
Guarnieri com a partitura de Villa-Lobos se a peça de Nelson resistiria à prova do palco.
A resposta está dada com os aplausos entusiásticos do público que enchia o Municipal em
duas noites que se podem classificar de memoráveis na história do nosso teatro. Vestido de
Noiva ganhou cem por cento com a realização cênica, e não se diga que foi apenas um triunfo
da mise-em-scène de Santa Rosa e Ziembinski, e direção de Adaucto Filho, do talento dos
amadores, entre os quais cumpre destacar a atuação das duas protagonistas, as senhoras
Evangelina Rocha Miranda e Stela Perry. O drama em si adquiriu extraordinário revelo,
concretizou-se em inesquecíveis imagens plásticas, assumiu aos nossos olhos iluminados uma
realidade, ou antes, uma super-realidade mais forte, mais prestigiosa, mais humana.
(Bandeira, 1989: 392-3)
29
Com sua terceira peça, Álbum de família, e apesar do inconveniente da censura
que impossibilitou sua montagem, Nelson voltou a ter a adesão de uma parcela
significativa da intelectualidade brasileira, o que acabou por levar a obra, interditada em
17 de março de 1946, a ser editada em livro em julho do mesmo ano (junto com Vestido
de noiva). Um intelectual de prestígio como Prudente de Morais Neto, ou Pedro Dantas,
em texto de apresentação do livro, condena a censura reafirmando a excepcionalidade da
nova peça do autor e prega a liberdade criadora do artista:
Não se trata, pois de situá-lo no deserto, destacando-o pelo contraste, nem mesmo de
estudá-lo na sua técnica, tão extraordinariamente sugestiva, tão poderosa, criadora e
reveladora de humanidade e lirismo sobre a forma específica que o teatro exige e determina.
Trata-se, isso sim, de examinar mais uma vez a propósito deste Álbum de família, que é até
agora, a maior criação teatral, dele e nossa, o eterno problema ainda não resolvido do direito
de criação artística e suas limitações, por motivos de ordem moral e social. (Dantas, 1946: 9)
Se obtinha apoio de uma ala da intelectualidade, Nelson Rodrigues conheceria
também o ataque de críticos de renome como aquele que era apontado por Carlos
Drummond de Andrade como o imperador da crítica no período: Álvaro Lins. Muitos
estudos pecam em não assinalar a “isenção” dos ataques de Álvaro Lins. E na verdade o
futuro professor visitante da Universidade de Lisboa e embaixador brasileiro em Portugal
tinha motivos de sobra para investir contra Nelson em todas as latitudes. Ao criticar A
mulher sem pecado, comentou Lins:
Há três anos, quando publiquei a História Literária de Eça de Queiroz, um jornal
divulgava contra meu livro uma crônica alegre que me chamou a atenção. Vim a saber depois
que o seu autor era Nelson Rodrigues. Mas havia na crônica ao mesmo tempo tanto espírito e
tamanha leviandade que não me trouxe sensação de aborrecimento. Agora, um dia destes,
recebi os originais de uma peça de teatro de Nelson Rodrigues: A mulher sem pecado. A
circunstância de não ser crítico de teatro – isto, segundo creio, não me impede de transmitir a
impressão que me veio dessa leitura, em seguida da apresentação da peça no Teatro Carlos
Gomes pelos artistas da Comédia Brasileira.
Não se deve esquecer que teatro, antes de tudo, é literatura. Apresenta, além disso, a
realização de Nelson Rodrigues certos aspectos novos entre nós, e tão de acordo com os meus
30
ideais artísticos, que julgo como que um dever afirmar a significação dessa estréia. (Lins,
1963: 291-2)11
Em Vestido de noiva, Lins manteria o entusiasmo, mas de Álbum de família
afirmaria: “é vulgar na forma e banal na concepção”. Para acusar decisivamente: “(...) só
poderá despertar prazer ou interesse lascivo naqueles que estejam atingidos por alguma
perversão nos últimos graus da baixeza humana” (Lins, 1963: 324-31). Deve-se assinalar
que o crítico deixa claro que sua opinião não se traduz em censura à peça:
Amigo do Sr. Nelson Rodrigues – e mais do que isto: um crítico profundamente
interessado no destino da sua capacidade criadora dentro do teatro brasileiro – a minha
tristeza fica enorme ao sentir-me impossibilitado de oferecer solidariedade literária a uma
peça que se publica com a nota de que foi “interditada pela censura”. No entanto, de escritor
para escritor, no plano da ética profissional, desejo manifestar publicamente a minha
solidariedade ao Sr. Nelson Rodrigues, como faria em relação a qualquer autor, amigo ou
inimigo, cuja obra fosse atingida pelo veto de um poder incompetente e ilegítimo. E a censura
feita por simples funcionários do Estado, policiais ou não, constitui tipicamente um poder
incompetente e ilegítimo em qualquer matéria artística. (Lins, 1963: 324-35; aspas do
original)
Como bem salienta estudo recente (cf. Facina, 2004), o que começaria a
predominar na imprensa a partir de então é a polêmica em torno da interdição das obras
teatrais de Nelson Rodrigues (além de Álbum de família, o autor também teria censuradas
as peças Anjo negro e Senhora dos afogados) e os ataques e defesas das mesmas. E eram
polêmicas das quais o próprio autor participava com empenho. Na revista O Cruzeiro, de
10 de agosto de 1946, à página 24, podemos reconhecer Nelson Rodrigues recorrendo ao
espaço e à assinatura de Frederico Chateaubriand (sobrinho de Assis Chateaubriand) para
11
Localizei um artigo com uma resenha sobre a História literária de Eça de Queiroz, de Álvaro Lins, publicado em O
Globo. A resenha, no entanto, não apresenta essa “crônica alegre” de que fala Lins e nem tampouco parece saída da
pena de Nelson Rodrigues. Para ver o texto, consultar o CD anexo a esta Tese que traz este artigo publicado em O
Globo, no dia 28 de outubro de 1939, à página 4.
31
defender Álbum de família dos comentários, pouco elogiosos, que Álvaro Lins havia
dedicado à peça.
Conhece o leitor o rodapé do senhor Álvaro Lins sobre Álbum de Família? É uma página
rara e digna do nosso espanto e da nossa meditação. Página, digo mal: é antes um espetáculo
gratuito que o crítico oferece e que ninguém deve perder. Eis um julgador que se dispensa de
qualquer isenção, de qualquer equilíbrio e investe, alucinado contra a obra de arte. Nenhuma
medida, nenhuma lucidez, mas uma fúria cega, dessas que levam às piores gafes críticas.
Quem duvidar que consulte o folhetim em apreço e diga se o tom de impetuoso mestre é ou
não passional? Parece-me evidente que simples motivos literários não produziriam jamais
singular furor. Há, no caso, outras razões, misteriosas, inconfessáveis, que talvez o Sr. Álvaro
Lins deseje levar para o túmulo. Uma dessas razões é o seu ódio ao Sr. Prudente de Morais
Neto – ódio que ele cultiva amorosamente, dia após dia. Querem prova? Digam ao novel
ensaísta recifense: “Hoje, eu vi o Prudente”. Não precisa mais, só isso. Tanto basta para que o
Sr. Álvaro Lins rilhe os dentes, dê patadas. “Por quê?”, indagará o leitor, meio assustado. É
simples: há tempos o Sr. Prudente de Morais Neto deu entrevista ao suplemento de O Jornal,
na qual entrevista declarou, dois pontos: que “a maior vocação crítica do Brasil” era o Sr.
Antonio Candido. O Sr. Álvaro Lins considerou isso um torpe insulto, a ele, Álvaro, uma
tenebrosa injúria, direta e crudelíssima. Dizem que uivou à lua – coisa que ainda está para ser
confirmada.
As provocações que se reconhecem nessa primeira polêmica, e nas muitas que se
seguiriam a ela, são importantes porque mostram que Nelson Rodrigues estava se
atirando ao debate aberto de idéias, iniciativa pela qual sempre nutriu muito gosto, ao
mesmo tempo em que questionava com suas criações os parâmetros estéticos e
comportamentais da época.
Outra pessoa com quem Nelson mediria forças, e que investiria contra o autor,
dando início a uma briga pessoal (um dos muitos duelos que Nelson travaria dentro da
imprensa), seria Paulo Francis no começo de sua carreira como crítico teatral do jornal
Diário Carioca. Francis resenhou a primeira peça após o ciclo mítico, Perdoa-me por
me traíres, que estreou em junho de 1957. O jornalista estava também debutando em suas
atividades de crítica teatral em substituição a Francisco Pereira da Silva, que ocupava
32
antes o posto de crítico de teatro do jornal12. Francis é ácido em seus comentários na
edição do dia 22 de junho de 1957 do Diário Carioca. Diz ele à página 6:
Não há defensores de Perdoa-me por me traíres que possam ser levados em
consideração. Nelson nada escreveu de tão chulo até hoje. Não nos referimos ao conteúdo.
Tudo é teatro desde que seja tratado como tal. Neste contexto, a obscenidade vale tanto
quanto quem a manipula. O exemplo disso Nelson já nos deu no passado: filho amava mãe na
Senhora dos afogados. Não escondia seus sentimentos e os anunciava em linguagem de
sarjeta. Mas que imagens! Poesia “suja”, se quiserem, mas poesia ...
Perdoa-me por me traíres está preso à sarjeta. Dela não se alça senão até o meio-fio.
Sucedem-se abortos, poluções, adultérios etc., com a crueza da “Vida como ela é ...”, mas,
não chegam até nós. Contemplamos indiferentemente a paisagem. Vemos as criaturas de
Nelson como se vêem a si próprias nada mais.
Não sem razão, a peça seguinte de Nelson, Viúva, porém honesta, escrita também
em 1957 e com estréia em setembro, traria entre seus personagens um crítico de teatro
débil mental (batizado com o nome da atriz Dorothy Dalton), um ex-interno do Serviço
de Assistência ao Menor (ou SAM, a Fundação de Assistência e Bem-Estar do Menor da
época). A nova peça seria objeto de outra investida da pena de Francis no dia 22 de
setembro de 1957, à página 4: “Há o diretor de jornal (baseado em quem por sinal?), que
“vende o Brasil” e demais clichês de pasquim, pai da viúva e responsável, pelo desenrolar
da trama. Nelson está visivelmente interessado nele, como prova de seu intelecto. O
resultado é consternador. Jamais saímos da polêmica do “Diário” de São João de Meriti.
E isto afeta a substância de comédia macabra do texto, o qual, aliás, o autor delegou o
segundo plano.”
Afora a controvérsia, a abordagem dos jornais faz as avaliações de praxe, com o
resumo do enredo e inevitáveis comentários sobre as qualidades técnicas da direção, do
cenário e dos atores. Mas as críticas jornalísticas vão aos poucos começar a se adensar
12
Para as informações sobre a trajetória de Paulo Francis como crítico de teatro consultar Francis, Paulo. Trinta anos
esta noite – o que vi e vive – 1964. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, particularmente p. 70-5.
33
quando surgem artigos mais extensos de intelectuais e críticos como Hélio Pellegrino,
Bárbara Heliodora, Sérgio Milliet e Paulo Mendes Campos, entre muitos outros.
Hélio Pellegrino, em artigo publicado em O Jornal, em 1961, em seguida à estréia
da peça Boca de Ouro, vai propor a divisão das obras teatrais de Nelson Rodrigues em
duas fases: a mítica e a balzaquiana. O que se dá na passagem de uma fase a outra,
confundindo os críticos da época, segundo Pellegrino, é que o autor faz com que “seus
personagens desçam do Olimpo e se plantem no chão do mundo” (Pellegrino, 2003: 217).
De acordo com o psicanalista, essa mudança irá acontecer, no entanto, sem que haja
prejuízo para a dimensão mítica.
Essa perspectiva que enfatiza a dimensão mítica,
endossada na mesma época pelo poeta e romancista Lúcio Cardoso (2003), seria ainda
retomada no futuro por Sábado Magaldi, quando da divisão proposta pelo hoje membro
da Academia Brasileira de Letras para a apresentação do Teatro completo de Nelson
Rodrigues (1981a, 1981b, 1985, 1989). Em comum acordo com o dramaturgo, que se
encontrava ainda vivo quando Magaldi iniciou o estabelecimento da obra dramatúrgica
do teatrólogo, ficou decidido que as peças seriam agrupadas sob as rubricas de míticas 13,
psicológicas e de tragédias cariocas.
Bárbara Heliodora em mais um artigo de fôlego sobre o teatro rodrigueano,
publicado no “Suplemento Literário”, do Jornal do Brasil, em duas partes, em 1961,
aproxima o Nelson Rodrigues de O beijo no asfalto do Kafka de O processo. Segundo a
decana da crítica teatral jornalística brasileira, em sua militância da década de 1960, tanto
13
A ênfase na dimensão mítica, assinalada por vários comentadores, está presente na peça e é destacada pelo próprio
Nelson Rodrigues, o que pode-se entender como um sinal de que o autor condiciona a recepção de sua obra. Essa
perspectiva será reforçada em relação aos dois outros tópicos a serem assinalados: o que trata sobre o embate entre
fato e ficção e sobre o gosto de Nelson pelo paradoxo. Na rubrica inicial, Nelson anota: “(Boca de Ouro, banqueiro de
bicho, em Madureira, é relativamente moço e transmite uma sensação de plenitude vital. Homem astuto, sensual e cruel.
Mas como é uma figura que vai, aos poucos, entrando para a mitologia suburbana, pode ser encarnado por dois ou três
intérpretes, como se tivesse muitas caras e muitas almas. Por outras palavras: diferentes tipos para diferentes
comportamentos do mesmo personagem. Ao iniciar-se a peça, Boca de Ouro ainda não tem o seu nome legendário”.
(Rodrigues, 1985: 261)
34
Arandir, protagonista do drama de Nelson, quanto Joseph, protagonista kafkaniano,
repartiriam o destino trágico dos heróis gregos, “porque ambos sofrem e morrem
tentando defender seu direito a viver de acordo com suas convicções, a despeito de todas
as pressões feitas para que abandonem, e defendendo a dignidade do homem, preferindo
morrer com dignidade do que viver sem ela” (Heliodora, 2003: 223).
Não dá para encerrar esse apanhado sem falar na contribuição de Pompeu de
Souza. Ele foi o primeiro a perceber algo que é por demais inovador na obra teatral
nelsonrodrigueana. Trata-se da intuição de como as peças do escritor foram concebidas
amparadas em uma percepção das várias cenas que parecem anteceder o próprio ato de
escrevê-las. Daí certamente deriva a dificuldade que um Manuel Bandeira teve de
entender como resultaria uma peça como Vestido de noiva, antes de sua montagem.
Pompeu de Souza chamava a atenção para o fato de que se trata de um autor teatral “que
“ouve” e “vê” o texto dramático que escreve” (Souza, 1989: 332), além de lembrar como
há em sua obra a incorporação de “técnicas “teatralizáveis” de outras artes: o cinema, o
rádio, as artes plásticas” (Souza, 1989: 332). Assinala ainda como as técnicas modernas
de palcos móveis são empregadas em paralelo à utilização de recursos dramatúrgicos
tradicionais como o coral, o coro e o corifeu do teatro grego.
2.1.2 – A Avaliação Universitária
Todo entusiasta da obra teatral de Nelson Rodrigues que deseje investigar seu
universo dramatúrgico deve começar seus trabalhos por um estudo crítico que é uma
verdadeira ducha de água gelada em qualquer euforia com relação ao universo do drama
35
rodrigueano. Trata-se do longo e detalhado ensaio de Ronaldo Lima Lins intitulado O
Teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia (1979), o primeiro trabalho
acadêmico de maior fôlego a escrutinar as peças do dramaturgo recifense (e não carioca
como o ensaísta repete por todo seu texto). O estudo, realizado em Paris, pretende
desnudar e questionar as idéias que o autor teatral se esforçaria em esconder nas
entrelinhas das falas de suas tragédias e dramas melodramáticos. A conclusão de Lima
Lins é uma só: por trás do grande artista se ocultaria um moralista implacável.
Ronaldo Lima Lins analisa cinco peças das dezesseis que Nelson Rodrigues havia
escrito quando o crítico iniciou seu estudo. São elas: Vestido de noiva, A falecida, Boca
de Ouro, Toda nudez será castigada e Os sete gatinhos. Em sua investigação, Lima Lins
desqualifica o excesso de entusiasmo pelas novidades formais da segunda peça de Nelson
Rodrigues. Diz o ensaísta: “Vestido de noiva não leva a ousadia de sua concepção formal
aos terrenos mais escorregadios do inconsciente ou do subsconsciente, como exigiria,
talvez, uma platéia mais habituada aos métodos freudianos e psicanalíticos de
interpretação da mente e da realidade. Se chegasse a tanto, teria criado, sem dúvida, um
exercício de surrealismo, demasiado avançado para ser aceito e aplaudido pelo Brasil de
1943” (Lima Lins, 1979: 63). O preconceito grassa solto nesta avaliação sobre a fruição
do público que freqüentava teatro na época. Como reagiriam Manuel Bandeira,
Drummond e outros representantes de nossa intelligentsia a esses comentários?
Mas o ponto central do longo ensaio de Lima Lins é bem outro. A intenção foi
fazer uma apreciação, de abordagem sociológica (a voga de então), que mostrasse as
fragilidades do drama rodrigueano: uma dramaturgia a serviço de uma moral
conservadora para o estudioso. Afirma o texto:
36
De fato, uma das características marcantes nos personagens de Nelson Rodrigues é a
compulsão pela vulgaridade, a impossibilidade de evitar excessos. Por um lado, representam
elas, em geral, pessoas de moral burguesa que, embora conscientes das normas corretas de
agir (têm o código na cabeça), não resistem a um impulso interior mais poderoso do que suas
noções puritanas e mergulham, esparramam-se em algum comportamento tido como sujo
dentro de suas próprias concepções. Quase sempre, o fenômeno que então vemos suceder é o
de uma moral extremamente puritana e ortodoxa rasgada e corrompida por aqueles que mais
se deleitam em defendê-la ou por pessoa ligada a este. Da parte do autor, isso não significa
uma crítica antipuritana à sociedade brasileira. A crítica pode estar implícita, mas em
momento algum de sua carreira adotará ele uma atitude revolucionária dentro de semelhante
perspectiva. O autor também é um moralista. (Lima Lins, 1979: 72)
Quando identifica uma aproximação das rubricas e preocupações formais da
dramaturgia rodrigueana com as de Bertold Brecht, no que se refere à desnaturalização
das encenações propostas por ambos os dramaturgos, por exemplo, o ensaísta corre em
socorro do segundo para separar o que em sua visão os difere:
Nelson Rodrigues, por outro lado, não tem em mente os mesmos objetivos do dramaturgo
alemão ao procurar neutralizar o fenômeno da empatia e despertar o público para uma atitude
ativa. (...) usa as teorias “não aristotélicas” filtradas por sua própria experiência e por sua
concepção pessoal de teatro. Quase sempre, deixa-se dominar, por exemplo, por aquilo que
constitui ao mesmo tempo o seu principal defeito, quando mal empregado, e sua qualidade
mais forte, quando usado com moderação: a tendência ao sarcasmo. (Lima Lins, 1979: 87)
Lima Lins aproxima Boca de Ouro de Macunaíma e de Serafim Ponte Grande
como parentes do plantel de anti-heróis nacionais que, segundo o autor, refletem a
tendência da sociedade brasileira para o masoquismo. Toda nudez será castigada e Os
sete gatinhos, por sua vez, nos mostram núcleos familiares em agonia. E para fechar seu
estudo que, deve-se destacar, apresenta a mais detalhada, minuciosa e bem definida
descrição dos enredos das estórias dramáticas rodrigueanas, Lima Lins conclui: “(...)
examinando seu teatro, inevitavelmente temos de pensar em termos globais de sociedade
e literatura. Nelson Rodrigues pode não ser a única. É sem dúvida uma das tendências e
proposições da realidade” (1979: 217).
37
Uma monografia, da jovem (Maria) Flora Süssekind, anterior aos trabalhos de
Lima Lins, que aparece entre as vencedoras do I Concurso Nacional de Monografias, em
uma iniciativa do MEC, da Funarte e do Serviço Nacional de Teatro, em 1976, já
mostrava a complexidade do teatro rodrigueano. Na “Nota da Autora”, Süssekind
anuncia: “Com este trabalho, o que se procurou foi um afastamento da posição
habitualmente moralista da crítica diante da obra teatral de Nelson Rodrigues. Em
nenhum momento houve um desejo de aproximação com relação a declarações, opiniões
relativas à própria obra ou qualquer outra intenção manifesta do autor estudado. Foi
unicamente a partir de suas obras que se tentou construir um ponto de vista crítico, outro
que não estritamente moralista” (Süssekind, 1976: 7).
Logo em seguida Süssekind esclarece suas proposições: “No teatro de Nelson
Rodrigues, o que se vê é uma abordagem crítica da estrutura social brasileira, cujo
sistema de relações e cujos valores de base têm sua aparente segurança abalada. Para os
que violam as regras dessa estrutura as saídas normalmente delineadas em suas peças são
a morte e/ou a loucura, ou seja, uma exclusão possibilitada por esse mesmo sistema
social” (Süssekind, 1976: 13).
O estudo ensaístico da autora leva em conta as quinze peças contidas no Teatro
quase completo. Devido a sua extensão (pouco mais de trinta páginas), no entanto, não
consegue aprofundar um universo dessa amplitude. De qualquer modo, Süssekind investe
por alguns tópicos que são pertinentes para o presente estudo. Vale a pena destacar quais
são eles. A autora discute, por exemplo, como são retratadas as relações interpessoais nas
peças do escritor no que toca a três aspectos: a traição (efetiva ou ideal), o antagonismo
38
(oposição entre os tipos retratados) e a exploração (sexual e econômica), todos
trabalhados por um “denominador comum” – a violência.
Depois de descrever as traições, nas várias peças, bem como os antagonismos
entre os personagens e mundos retratados, assinala como todas as interdições sexuais,
transmitidas socialmente, são violadas, no que toca ao relacionamento de pessoas de
raças e classes diferentes, e do mesmo sexo. Tudo o que é socialmente proibido. Nesse
quadro, a família surge como “elemento disciplinador” e por isso mesmo o
descumprimento do tabu do incesto também será assunto das peças.
Süssekind falará ainda de três outros tópicos que interessarão adiante. O primeiro
deles diz respeito à presença dos faits divers, que estão “disseminados em todo o teatro de
Nelson Rodrigues”; o segundo, ao fato de o dramaturgo retomar “benquistos temas da
dramaturgia ocidental” para desagregá-los (inversão dos triângulos das peças Hamlet, de
Shakespeare, e Fedra, de Racine, em Toda nudez será castigada); e, finalmente, a
identificação do uso de entimemas que serão “um dos procedimentos característicos na
construção de enunciados do teatro” do autor. Quanto ao último ponto, Süssekind nos diz
que, se o “silogismo retórico está presente no pensamento popular, no que é publicamente
aceito”, o entimema rodrigueano “denuncia o procedimento pelo qual se forma e reafirma
o senso comum”, dando “ao público a possibilidade de enxergar como, sendo gerados da
mesma maneira, seus pressupostos morais e opiniões podem esconder absurdos iguais”
(Süssekind, 1976: 32).
Coube a Sábato Magaldi elaborar dois dos mais importantes e respeitados
trabalhos sobre a dramaturgia rodrigueana: a extensa apresentação que preparou como
introdução a todas as peças do autor, e que abre cada um dos quatro volumes do Teatro
39
completo de Nelson Rodrigues (1981a, 1981b, 1985, 1989)14 e a tese de livre docência
Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações (1992), defendida na Universidade de São
Paulo. Magaldi menciona um dos tópicos centrais de minha pesquisa, ao assinalar, como
característica fundamental da escrita rodrigueana, o esforço do escritor por trabalhar um
pensamento paradoxal. É um dado que Magaldi aponta como presente na primeira peça
de Nelson e que, destaca o crítico, e nós iremos confirmar isso, se estende aos contos,
folhetins, crônicas e outras produções do escritor. Magaldi fala ainda do gosto do autor
pelo grotesco, pela distorção da realidade e insiste na proximidade do teatro rodrigueano
de suas outras criações ficcionais (folhetins e contos) e de uma influência recíproca aí
identificada.
O estudioso justifica ainda a sua divisão das peças do autor em míticas,
psicológicas e tragédias cariocas, reafirmando a ênfase de uma dimensão mítica nas peças
Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia e Senhora dos afogados, bem como destacando o
relevo psicológico de A mulher sem pecado, Vestido de noiva, Valsa no. 6, Viúva, porém
honesta e Anti-Nelson Rodrigues, e apontando todas as outras criações dramatúrgicas
rodrigueanas como espaço de expressão das tragédias cariocas. O crítico, porém,
reconhece as limitações de tal divisão:
Cumpre assinalar que a divisão tem ainda um intuito didático, porque as características nunca
se mostram isoladas, sob pena de empobrecer o universo do ficcionista. As peças psicológicas
absorvem elementos míticos e da tragédia carioca. As peças míticas não esquecem o
psicológico e afloram a tragédia carioca. Essa tragédia carioca assimilou o mundo psicológico
e o mítico das obras anteriores. (Magaldi, 1981a: 8-9)
Para diferenciar os escritos que abrem o Teatro completo de Nelson Rodrigues de
sua tese de livre-docência, que começou a ser escrita antes do longo ensaio que prefacia
14
O estudo de Sábato Magaldi pode ser apreciado em volume único em Magaldi, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson
Rodrigues. São Paulo, Global Editora, 2004.
40
as peças (embora tenha sido finalizada posteriormente a ele), Magaldi optou por
privilegiar, em seu segundo trabalho sobre o autor, a sua vivência como militante da
crítica teatral. Acompanhou assim o percurso, as personagens, os procedimentos, o
pensamento e as encenações do dramaturgo.
Há muitas questões presentes em Magaldi e na fortuna crítica construída em torno
das peças de Nelson Rodrigues que apresentam elementos importantes a serem
acrescentados aos debates sobre sua arte dramatúrgica. Um ponto central apontado por
muitos dos comentadores é a marca fundamental que o teatro rodrigueno representa em
termos de assinalar a inserção da dramaturgia brasileira na cena teatral moderna. Para
isso, críticos como Magaldi (1992), Leite Lopes (1993) e Adler Pereira (1999) examinam
a maneira extremamente sofisticada com que Nelson realiza tal empreendimento
retomando elementos originais da tragédia grega e atualizando-os.
Um termo de comparação utilizado para descrever esse quadro, apesar da
diferença geracional, é encontrado no teatro do norte-americano Eugene O´Neill. Tanto
Nelson quanto O´Neill têm interesse grande na retomada de marcas do drama grego e a
sua projeção na cena teatral contemporânea acentuando a tragicidade em suas respectivas
dramaturgias. Em comum, esses autores dariam, como salienta Adler Pereira (1999),
destaque ao emprego de recursos cenográficos como as máscaras.
No caso de Nelson, uma outra novidade seria trabalhada pela sugestão de uma
mise-en-scène de traço expressionista, inspirada nessa vertente de extração alemã. De
diferentes perspectivas, essa inovação presente nos dramas de Nelson e que acabou sendo
destacada em várias montagens de seus textos, foi assinalada por críticos como Leo
Gilson Ribeiro (1989) e Otto Maria Carpeaux (2005). Os dois por sinal não tardaram a
41
lembrar do nome de Franz Wedekind, muito admirado também pelo norte-americano O
´Neill.
Seria impossível arrolar todas as obras e textos escritos sobre o teatro rodrigueano
no meio universitário e fora dele. Muitos pesquisadores, estudiosos, jornalistas,
psicanalistas, diretores de teatro, cenógrafos, escreveram e continuam escrevendo sobre
aspectos peculiares à prosa teatral rodrigueana. É um grupo que inclui de Junito de Souza
Brandão, com sua análise de quatro mitologemas presentes em peças do autor, à
avaliação abrangente que Décio de Almeida Prado faz de toda a obra rodrigueana. Um
grupo que reúne ainda pessoas de projeção e de atuação distinta no meio intelectual como
Aderbal-Freire Filho, Maria Lúcia Pinheiro Sampaio e Mário Guidarini, em uma lista
interminável de críticos, encenadores e comentadores de renome. Privilegiei aqueles que
poderiam contribuir com os propósitos mais imediatos da presente investigação.
2.2 – O Repórter, o Crítico e o Contista Iniciante
As duas pessoas mais importantes para a divulgação e o estabelecimento do teatro
rodrigueano foram Pompeu de Souza e Sábato Magaldi, como vimos. Para o restante de
sua obra, esse papel coube, a partir do início da década de 1990, a Ruy Castro e, hoje, ao
pesquisador Caco Coelho, que tem dado continuidade à recuperação da produção de
Nelson veiculada em jornal. Depois que Castro trabalhou a reedição de parte da obra do
cronista, folhetinista e contista, bem como o romance O casamento, foi a vez de Caco
Coelho apresentar a grande novidade nas pesquisas recentes sobre Nelson Rodrigues: o
projeto O baú de Nelson Rodrigues (2000), já referido anteriormente, resultado de um
42
levantamento do pesquisador e diretor de teatro, que resgata reportagens, críticas,
crônicas e contos.
São textos assinados pelo próprio autor, outros sob pseudônimo e ainda textos
apócrifos, mas que, muito pertinentemente, o pesquisador oferece para que se julgue se
saíram da pena do escritor. Trata-se de escritos de Nelson Rodrigues cujo alcance de
fruição se havia restringido aos leitores que os leram à época de suas publicações em
periódicos que circularam nas bancas de jornal durante a segunda metade da década de
1920 e a primeira metade dos anos de 1930. O que veio a público com o livro O baú de
Nelson Rodrigues – os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35) (2004) é apenas
parte do trabalho de Coelho. O resultado completo do levantamento de fontes primárias
feito pelo pesquisador encontra-se guardado em um arquivo da Rio-Arte, órgão de cultura
da Prefeitura do Rio de Janeiro, em uma casa em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O
projeto ganhou, desta instituição, uma bolsa de auxílio-pesquisa no ano de 1998. O
trabalho foi complementado posteriormente por novos levantamentos de fontes primárias
que trouxeram a público folhetins e um romance.
A autobiografia que Nelson escreveu em forma de crônica no jornal Correio da
Manhã (está no livro A menina sem estrela – memórias, 1997) e as biografias de Ruy
Castro (1993) e de Stella Rodrigues (1986; uma das sete irmãs que Nelson Rodrigues
teve – eram quatorze irmãos na família) nos informam que o escritor começou a conhecer
o trabalho jornalístico ainda garoto, quando seu pai, Mário Rodrigues, jornalista
pernambucano que fez carreira no Correio da Manhã no Rio de Janeiro nas primeiras
décadas do século XX, tornou-se proprietário de um jornal que iniciou sua circulação em
dezembro de 1925 trazendo no frontispício o nome de A Manhã. Se Irineu Marinho
43
comandava um jornal vespertino de sucesso que atendia pelo nome de A Noite, a idéia de
um matutino com o nome de A Manhã deve ter parecido uma boa opção para aquele que
se candidatava a novo dono de jornal15.
Ruy Castro diz que a leitura de A Manhã entre dezembro de 1925, quando é
inaugurado o jornal, até fins de 1928, quando Mário Rodrigues (no mês de outubro
precisamente) cede suas ações para quitar dívidas com o sócio Antônio Faustino Porto e
abandona com os filhos o jornal, deixa patente a colaboração precoce de Nelson
Rodrigues (cf. Castro: 1993). O próprio autor diz que começou sua carreira
prematuramente, e que isso se deu por seus dotes: “(...) fizera minha iniciação jornalística
aos 13 anos. (...) Eu era tratado, desde os 13 anos, como um pequeno gênio. Mas morto
Mário Rodrigues e morta Crítica, os rodapés sumiram até o último vestígio. Ninguém era
amigo” (Rodrigues, 1997: 107).
Uma nota de aniversário pelos dezesseis anos do jovem jornalista, publicada pelo
pai ainda em seu primeiro jornal, A Manhã, no dia 23 de agosto de 1928 (fato que se
15
Ainda são obscuras as informações sobre a rápida passagem de Mário Rodrigues de jornalista a dono de jornal. As
pesquisas de Domingos Meirelles ajudam a construir o cenário sobre a imprensa carioca no começo do século XX e
sobre a pessoa de Mário Rodrigues. Baseado nos informes e relatórios reservados da Quarta Delegacia Auxiliar do Rio
de Janeiro, realizados entre 1927 e 1930, e encontrados no Arquivo Público do Estado do Ro de Janeiro, Meirelles
relata: “O relatório revelava que a imprensa do Rio levava uma existência “artificial, sem fontes de renda naturais”. A
maioria dos jornais vivia de “expedientes mais ou menos grosseiros”, e da cumplicidade com interesses inconfessáveis.
Muitas publicações eram financiadas pelo capital estrangeiro. A contabilidade de quase todas as empresas era caótica”
(Meirelles, Domingos. 1930 – os orfãos da revolução, Rio de Janeiro, Editora Record, 2005, p. 118). Sobre Mário
Rodrigues e seu jornal escreve especificamente: “Dirigido por Mário Rodrigues, A Manhã merecera especial atenção no
relatório. Inimigo confesso da polícia, Rodrigues fora qualificado como “esbanjador e perdulário”. Nas últimas eleições
federais, gastara mais de cinqüenta contos em sua campanha, sem conseguir se eleger. Era acusado de viver
nababescamente, de morar num verdadeiro palácio e “de levar, às claras, uma vida de esbórnia”. Ao vasculharem sua
vida pessoal, os secretas descobriram que tinha uma jovem amante, a quem presenteara recentemente “com um
Packard de elevado preço”” (Idem, ibidem, p. 119-20). Há os empréstimos conseguidos com João Pallut (o bicheiro “João
Turco”) e outros empresários para montar A Manhã e mencionados por Castro (cf. 1993, p.50). Com relação ao fim do
jornal A Manhã, a avaliação de Meirelles a partir dos relatórios a que teve acesso mostra um quadro de crise para o
jornal de Mário Rodrigues. “A Manhã estava às portas da falência, segundo o dossiê. O déficit da empresa chegava a
mais de 3 mil contos e até o fornecimento de papel fora suspenso por falta de pagamento. As chances de sobrevivência
eram bastante remotas” (...) “A anemia aguda que minava o jornal interrompera, inclusive, as obras da nova sede, o que
indicava estar o matutino perto do fim” (Meirelles, Domingos. 1930 – os orfãos da revolução, Rio de Janeiro, Editora
Record, 2005, p. 120-1). Mais adiante, no livro, Meirelles continua a descrever esse quadro e menciona a preparação
para o lançamento de Crítica: “Desde outubro de 1928 que Rodrigues não era mais o dono do jornal. Atolado em dívidas,
fora obrigado a transferir o controle acionário de A Manhã para o sócio Antônio Faustino Porto, que sempre fora seu
braço financeiro. Não recebera um tostão pelo negócio. Faustino assumira o comando da empresa em troca do passivo
para impedir que a publicação fosse à falência. Ao livrar-se dos credores, Rodrigues viu-se com liberdade para dedicarse à nova empreitada: lançar um jornal como só ele sabia fazer” (Idem, ibidem, p. 240).
44
repetiria um ano depois, em Crítica, segundo jornal de Mário Rodrigues), assinala o
surpreende pendor do pequeno Nelson Rodrigues para a escrita:
Nelson Rodrigues faz anos hoje. Nelson é uma inteligência ardente, desabusada, impetuosa. É
o mais jovem jornalista do Brasil, com uma irreverência deliciosa, uma agilidade psicológica
que impressiona na sua idade. A simples presença de Nelson desarma a austeridade dos
estilistas conservadores e a pretensão dos cavalheiros que teimam em ser das letras. Nelson
Rodrigues realiza o milagre de escrever aos dezesseis anos, hoje completados, com uma
graça, um encanto e uma fascinação que os medalhões de todos os tempos só conseguiriam, e
com esforço, após meio século de atividade. Não exageramos. Além de tudo, o querido
aniversariante de hoje é um bom e um puro. Alma alegre, coração generoso. Todos o
abraçarão com carinho porque Nelson é um amigo como poucos e um companheiro
esplêndido.
Caco Coelho identifica traços da escrita de Nelson, em textos-não-assinados, em
dezembro de 1927 (aqui vamos ter uma divergência entre Coelho e Castro, a ser
explorada adiante), mas só confirma a prática do jornalista de calças curtas no início de
1928, quando ele tinha quinze anos. É o período próximo ao aparecimento dos primeiros
escritos com a rubrica do autor (críticas, contos, crônicas), que surgem em fevereiro de
1928 e que garantem inapelavelmente suas investidas iniciais como escritor. Nelson
Rodrigues aparece em A Manhã com artigos publicados de início na página 3 do jornal,
reservada aos editoriais de Mário Rodrigues e aos textos opinativos. A pena do escriba
mirim vai conseguir aparecer em espaço em que se alternavam artigos de nomes como o
de Monteiro Lobato (há muito material de Lobato produzido para A Manhã), de
Agrippino Grieco, Gondin da Fonseca, Nise da Silveira e Prudente de Moraes Neto. Só
dois outros irmãos de Nelson Rodrigues assinariam artigos na página 3: Milton
Rodrigues, o primogênito, e Mário (Rodrigues) Filho, cinco anos mais velho que Nelson
Rodrigues (assim mesmo, um único artigo para cada um deles contra um número bem
significativo de artigos do irmão mais novo).
45
Castro (1993) menciona nove artigos, todos assinados, tendo início no dia 7 de
fevereiro de 1928 e se encerrando no dia 13 de setembro deste mesmo ano (o jornal,
como vimos, deixaria de pertencer à família Rodrigues em outubro). Coelho (2000)
acresce outros seis artigos não identificados e nem comentados por Castro. Castro (1993)
se engana ainda com a data do artigo intitulado ““Gritos bárbaros”...”, que aponta como
constante da edição do dia 14 de fevereiro de 1928, quando na verdade, e como pude
comprovar, aparece na edição do dia 15 de fevereiro de 1928.
Para facilitar o trabalho de futuros pesquisadores, reproduzo abaixo a listagem
completa com identificação de data e página dos escritos assinados por Nelson em A
Manhã16. À esquerda tem-se o título do artigo e à direita a data e a página referente a cada
texto. Um artigo dedicado a Rui Barbosa é o único desta lista a aparecer em duas partes.
Periódico - A MANHÃ
Título do texto
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
A tragédia da pedra...
“Gritos bárbaros”...
O elogio do silêncio
Uma história banal...
A felicidade
O rato...
A palavra do mar
Olegário
Rui Barbosa
Rui Barbosa...
Fabrino
O artista
Lucy
As cédulas...
Luiza
Zola
16
Data da
publicação
Página de
publicação
07/02/1928
15/02/1928
23/02/1928
01/03/1928
08/03/1928
16/03/1928
22/03/1928
08/04/1928
12/04/1928
19/04/1928
24/04/1928
11/05/1928
22/07/1928
12/08/1928
05/09/1928
13/09/1928
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
2
4
4
7
3
Todos os textos aqui catalogados seguem no CD que aparece anexado a esta Tese. Nele temos todos os escritos
assinados por Nelson Rodrigues, e alguns supostamente de sua autoria, feitos para os jornais A Manhã, Crítica e O
Globo, no período que vai de 1925 a 1943. Estas fontes primárias servem como comprovação do que é comentado pela
Tese. Têm ainda a intenção de facilitar a investigação de futuros pesquisadores e auxiliar os próximos estudiosos da
obra rodrigueana em seu escrutínio e exegese.
46
Dos textos de Crítica, Castro (1993) não menciona nenhum em específico (embora
informe que Nelson Rodrigues tenha trabalhado como repórter no jornal), mas Coelho
(2000) registra um total de oito artigos assinados (e sugere uns outros tantos sem
assinatura) entre novembro de 1928 e outubro de 1930. Repito com Crítica o mesmo
procedimento feito com A Manhã para os artigos assinados por Nelson no jornal. De
novo, à esquerda, está o título de cada um dos artigos publicados por Nelson em Crítica
e, à direita, a data e a página em que apareceram.
Periódico – CRÍTICA
Título do texto
Data da
publicação
Página de
publicação
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
15/12/1928
10/08/1929
22/08/1929
28/11/1929
15/12/1929
23/04/1930
11/07/1930
04/08/1930
5
2
2
3
6
2
2
2
Criticando
Vinte anos de circo
Um homem fora de moda...
O cinema falado
O homem que se destacou...
Uma agressão covarde
A paixão religiosa de Maria Amélia
Um artista
Quando a sede e as instalações de Crítica, que ficavam na rua do Carmo, no centro do
Rio de Janeiro, foram depredadas durante a Revolução de 1930, sofrendo seu
empastelamento como se dizia à época, Nelson, com o pai morto, se transferiu com seus
irmãos para O Globo. No jornal de Roberto Marinho, Nelson começou trabalhando na
seção de esportes. Em A menina sem estrela – memórias (Rodrigues, 1997), ele comenta
as dificuldades para seguir na profissão de jornalista e ingressar em O Globo depois do
fim dos jornais de sua família:
Fosse como fosse Roberto Marinho significava para nós uma esperança viva. Ao bater
essas notas, não me lembro se foi ele que nos chamou ou se fomos nós que aparecemos lá,
oferecendo o nosso trabalho. O certo é que o meu irmão Mário Filho interessava a O Globo.
Eu me lembro da nossa primeira conversa, na rua Almirante Barroso, na porta dos fundos do
jornal. (1997: 113)
Um pouco mais adiante, ele retoma:
47
Eu era então, cronista esportivo. E me humilhava, e me ofendia estar escrevendo sobre
futebol. Saíram vários retratos meus, mas ao lado de nadadores, de jogadores e do HomemPeixe. O Sodré Viana me dizia:-“Você tem que deixar o esporte, rapaz.” Uma tarde, levei o
Roberto Marinho para a sacada e pedi-lhe para ser crítico literário de O Globo. Ele achou, no
meu pedido, uma graça compassiva. E eu continuei fazendo futebol.” (Ibidem: 153)
Em O Globo, Nelson trabalharia de ínício com colaborações como repórter de
esportes. Esses textos não eram assinados e, portanto, para identificá-los é preciso apelar
para o reconhecimento de traços da escrita do autor ou recursos como as fotografias que,
por um costume adotado por Mário Filho, mostravam os repórteres do jornal ao lado de
seus entrevistados. Há a desconfiança de que ele também marcasse, de novo e como fez
em A Manhã e Crítica, presença no noticiário policial. Examinaremos adiante, na parte
de análise, algumas apostas em textos que trariam o seu crivo.
Além dos textos não assinados, Coelho (2000) apurou a partir de 1931, em O Globo,
várias colaborações com assinatura para a seção “O Globo nas letras” (escritos aos quais
Castro não faz alusão direta, embora registre que Nelson resenhasse livros
esporadicamente), o que demonstra que Nelson conseguiu chegar à seção em que tanto
ambicionava escrever. O levantamento de Coelho pára em 1935 (é onde se encerra
também o registro em microfilme de que dispõe a Biblioteca Nacional), embora se saiba
que Nelson prosseguiria colaborando com O Globo. A presente Tese completou, através
de levantamento dentro dos arquivos de O Globo, o rastreamento nos anos que vão de
1935 a 1943. Conseguiu-se assim acrescer alguns textos do autor não mencionados por
Castro nem por Coelho.
Há algumas afirmações imprecisas no livro de Castro (1993) como a de que Nelson
teria sido crítico de ópera do jornal O Globo. Na verdade o que se comprova, a partir de
48
uma revirada nos arquivos do jornal no período referente às décadas de 1930 e de 1940, é
uma única entrevista feita por Nelson com a contralto italiana Gabriela Bezansoni Lage,
no dia 5 de agosto de 1935. A matéria não é assinada por se tratar de uma entrevista, mas
fotos da primeira página da edição desse dia de O Globo, em que Nelson aparece lado a
lado com a diva que dividiu palcos com Enrico Caruso e Benamino Gigli, comprovam
sua atuação como repórter. Menos de um ano depois, no dia 30 de março de 1936,
surgiria uma crítica de Nelson Rodrigues para a ópera brasileira Esmeralda, de Carlos
Mesquita, que fora divulgada pela Rádio Jornal do Brasil. Mas isso é tudo.
Da mesma maneira como fiz com A Manhã e Crítica, reproduzo a seguir a listagem
com os escritos assinados por Nelson para O Globo até 1935. Alguns desses artigos
aparecem em duas partes (estão assinalados em algarismos romanos), editados em
edições de dias diferentes do jornal. Alguns dos textos ainda se estendem por mais do que
uma página.
Periódico - O GLOBO
Título do texto
Data da
publicação
Página de
publicação
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
12/10/1931
18/01/1932
12/12/1932
27/03/1933
24/04/1933
01/05/1933
12/06/1933
10/07/1933
18/09/1933
25/09/1933
23/10/1933
30/10/1933
5
7
5e6
5e6
5
5
5e6
5e6
5
5
5
5e6
A serenidade de Raul de Leone
Poemas da angústia alheia
A bailarina do Brasil
A tragédia de Hermes Fontes
O estilista do amor e da morte... (I)
O estilista do amor e da morte... (II)
A noiva de pan...
O sonho de Leviathan
A luz de Sortero Cosme (I)
A luz de Sortero Cosme (II)
O destino e a poesia de Felippe de Oliveira (I)
O destino e a poesia de Felippe de Oliveira (II)
49
Aos textos assinados por Nelson Rodrigues no jornal da família Marinho, e arrolados
pelo trabalho de Coelho, teria a acrescentar, a partir de pesquisas nos arquivos de O
Globo, as contribuições que são apresentadas a seguir. São uma entrevista, críticas,
contos, poemas e o primeiro capítulo de um romance inédito do autor, intitulado Cidade,
que é dado como perdido.
Periódico – O GLOBO
Título do Texto
37. A influência da arte num destino (Entrevista com
Gabriela Bezansoni Lage)
38. Opera brasileira
39. O Irmão... – capítulo do romance “Cidade” no prelo
40. A greve das fadas (O Globo Feminino)
41. Revelação (O Globo Feminino)
42. Menina de luto (O Globo Feminino)
43. A vida é literária (O Globo Feminino)
44. Retrato lírico do morro ... (O Globo Feminino)
Data da
Publicação
05/08/1935
Página de
Publicação
1e3
30/03/1936
25/04/1937
01/08/1937
24/03/1939
31/03/1939
24/11/1939
08/12/1939
8
11
2
2
2
1e2
1e2
Desse período inicial apurado por Coelho (2000) tem-se entre os textos assinados
por Nelson Rodrigues nesses três veículos: trinta e seis artigos no total (entre crônicas,
contos e críticas; alguns em duas partes). Desse somatório, foram editados no livro O
baú de Nelson Rodrigues – os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35)
(Rodrigues, 2004), dezenove artigos assinados e trinta e uma matérias jornalísticas não
assinadas (apenas parte da totalidade dos artigos levantados).
Os textos-não-assinados arrolados por Coelho em sua pesquisa original somam
mais de 650 e se iniciam um pouco antes do primeiro artigo com identificação de Nelson.
O primeiro texto-não-assinado do levantamento tirado de A Manhã vem com a
avaliação do ano policial e apareceu no dia 29 de dezembro de 1927. A aposta de Coelho
50
deve basear-se nas memórias autobiográficas de Nelson. No livro A menina sem estrela –
memórias (Rodrigues, 1997), o cronista consagrado rememora sua estréia como repórter:
[C]omeço a trabalhar no jornal de meu pai. Se bem me lembro, foi o meu
irmão Milton que me mandou para a reportagem policial. A Manhã saíra da rua
Treze de Maio, passara para a Avenida, em frente à Galeira Cruzeiro. Ainda me vejo,
na redação, com os meus treze anos, nome na folha de pagamento e ordenado de
trezentos mil-réis, escrevendo a minha primeira nota. (Rodrigues, 1997: 189)
No expediente de A Manhã, o endereço da Avenida Rio Branco, número 173,
aparece a partir do dia 3 de janeiro de 1928, confirmando essa época como certamente o
momento de início das atividades jornalísticas de Nelson Rodrigues, aos quinze anos de
idade. Isso apesar de Nelson, como vimos um pouco acima, afirmar que começou sua
carreira aos 13 anos. É provável que aos 13 anos ele já freqüentasse a redação do jornal
de seu pai embora ainda não contribuisse com material para as edições do matutino.
Junto com Ruy Castro (1993) não há como resistir a apontar duas reportagens que
não figuram no levantamento de Coelho, mas que mesmo que não tenham saído da pena
de Nelson merecem registro para a compreensão do ambiente em que se criou o futuro
literato. Uma delas surge no dia 8 de dezembro de 1926, à página 8 de A Manhã, um ano
antes do primeiro texto da pesquisa de Coelho. Em reportagem ilustrada por um desenho
do paginador do jornal, Andrés Guevara, temos a narrativa sobre um homem de preto e
cabelo ruivo que fora visto no subúrbio do Jardim do Méier: “suspendendo no dedo
indicador, uma gaiola, em forma de capela, onde um pássaro pula e canta, empapuçando
a garganta, contente”.
O detalhe é que o rapaz, de origem polaca, trouxe uma tradição, que diz ser
comum em Varsóvia e que consiste em cegar com alfinete o pequeno bicho com um fim
51
preciso: “passarinho cego não sabe quando é dia nem quando é noite! Canta sempre!”. O
interesse nasce do fato de atrocidades, com animais em geral e com pássaros em
particular, serem uma constante nas páginas escritas pelo Nelson Rodrigues ficcionista e
cronista.
A outra reportagem é típica do período. Trata-se do fait divers “Na Ilha dos
Amores...” que, depois de lembrar a tradição de Paquetá como o local preferido dos
amantes (desde o romance A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo), narra o caso de
uma moça, Helena Carvalho Ramos de Oliveira, casada, 21 anos de idade, com um rapaz
bem mais moço, Renato Roberto Machado, de apenas 15 anos. Seduzida pelo rapazola,
os dois embarcam em um pacto de morte que seria consumado na praia de Imbuca, onde
procuraram o suicído conjunto bebendo “sublimado corrosivo”.
A abertura do texto,
publicado na página policial de A Manhã, no dia 15 de outubro de 1926, traz mais um
extenso nariz de cera onde se lê:
Com toda a crise, com todo o pessimismo do momento, o amor surge ainda
em lances dramáticos, porque, para certas almas não é só a carne que alucina – o
espírito também tem desejos incompreensíveis que os amantes gravam em pedaços
de papel, contando já com a aparição da reportagem policial.
A reportagem seguiria com suite por algumas edições do jornal já que o casal
sobreviveu por alguns dias. Apesar da importância desse texto para descortinar possíveis
ilações sobre a atmosfera jornalística vivenciada por Nelson Rodrigues antes de chegar à
criação do universo de suas peças, seus contos, suas crônicas, elas não devem, em meu
entender, ser creditadas ao escritor17.
17
As reportagens às quais acabei de me referir foram incluídas no CD em anexo a esta Tese. Os textos levantados como
fonte primária foram transcritos para o corpo da Tese com a atualização da escrita em acordo com a norma culta
corrente.
52
Voltemos ao levantamento de Coelho para os textos-não-assinados. Ele é bem
abrangente e se alguns textos, como o citado na abertura desta Tese, têm marcas claras do
autor, outros não devem ter saído da pena do Nelson Rodrigues guri. De uma edição de
Crítica, a do dia 25 de novembro de 1928, por exemplo, o pesquisador chega a
transcrever seis artigos, o que é contribuição demais feita por um único repórter para um
dia de circulação de um jornal. Há ainda a transcrição de todas as reportagens que tratam
de crimes passionais e suicídios, o que pode ser questionado. Se passarmos os olhos pelas
folhas da época (outras que não aquela em que Nelson trabalhava), veremos que o País
dava a impressão de ser então um antro de “traídos homicidas” e de “suicidas em flor”,
para usarmos expressões rodrigueanas.
Parece de qualquer jeito melhor pecar pelo excesso do que pela falta de
indicação. Caberia então discutir as marcas e as características que nos levam a
identificar a prática rodrigueana. O próprio pesquisador em sua busca pelo
reconhecimento dos textos de Nelson Rodrigues nos dá várias dicas. Entre os elementos
que orientaram suas opções pela transcrição de textos-não-assinados está o recorrente
exercício de referência espelhada que percorre a obra de Nelson Rodrigues como um
todo. Aspectos estilísticos também foram considerados:
Um conjunto de indicações de autoria ganha contorno, determinado por uma prática
diária. A gradação, feita normalmente por uma seqüência de adjetivos, às vezes em períodos
compostos, repete-se de forma obsessiva. A pontuação, prenúncio da marcação teatral, da
especificidade de suas rubricas, é constante. O conjunto temático, exposto em suas colunas e
reproduzido nas matérias, é outro indício que permite sua identificação. (Coelho, 2004: 39)
Algumas reportagens selecionadas, assinala o pesquisador, não devem ter saído da
pena do autor. Caco Coelho chega mesmo a advertir: “É possível que algumas delas não
sejam de sua autoria” (Rodrigues, 2004: 40). E algumas, como as de esporte, parecem
53
claramente pertencer a Mário Filho. Coelho, nas páginas de apresentação de sua pesquisa,
lembra que Nelson Rodrigues aparece em fotos ao lado dos integrantes das “caravanas”
de repórteres policiais dos jornais de seu pai, mas que jamais figurou, nos tempos de A
Manhã e Crítica, nas fotos da página de esportes, ao contrário do que ocorria com seu
irmão Mário Filho e do que iria acontecer com o futuro dramaturgo em sua passagem por
O Globo nos anos de 1930. Se podemos ter dúvidas com relação aos textos-nãoassinados, não há o que se discutir com relação aos assinados.
Gilberto Amado classificou Crítica como um “foliculário catastrófico”. A tônica
deste jornal, como de A Manhã, eram as reportagens sensacionalistas, controvertidas e
polêmicas tão ao gosto de um jornalista irrequieto como Mário Rodrigues (algumas
páginas de A Manhã e Crítica e textos de Mário Rodrigues podem ser conferidos no CD
anexo a esta Tese). Nelson Werneck Sodré fala de Crítica como uma folha “terrível nos
ataques, violenta, agitada” (Sodré, 1998). Não custa lembrar que Roberto Rodrigues,
irmão de Nelson Rodrigues, foi assassinado pela jornalista Sylvia Seraphim, em 1929,
dentro da redação de Crítica, por causa de uma reportagem que revelava um caso de
traição conjugal por trás de uma ação de divórcio amigável.
Os textos iniciais da carreira de Nelson Rodrigues que agora vêm a público são
importantes para o entendimento dos desdobramentos posteriores por que passaria sua
obra. O próprio autor credita a sua experiência como repórter policial sua aquisição de
tarimba como escritor de obras ficcionais. São muitos também os críticos que assinalam a
influência das estruturas das reportagens no estilo dos faits divers em suas peças,
influência que se estenderá aos seus folhetins e contos.
54
2.3 – O Folhetinista, o Contista Consagrado
Nas páginas de A Manhã, do dia 23 de junho de 1928, lê-se a “carta” que se
segue:
Carta Aberta de uma Pecadora aos Homens Sérios (?) do Rio
O meu nome de batismo ninguém sabe. Mas quem não conhece Sadie. – Sadie que
todos vós achais a mais interessante, a mais espirituosa quando estais a sós com ela e que
fingis não conhecer quando passais solene pela avenida?
Que importa, pois, os meus papéis, o meu nome verdadeiro?
Sou uma delas, uma das que cobris de carinhos e de enfeites, de atavíos e mimos e
cuja alma desprezais porque não tendes almas e a vós vos basta um corpo de mulher, contanto
que ele seja belo.
Sou uma delas – uma das “pecadoras”, uma das “transviadas”, uma das que tomaram
o caminho que um homem, sim um homem! lhes indicou um dia para vê-lo, mais tarde, em
coro com os outros homens chamá-lo severamente “mau caminho”!
Quando se defrontam com essas linhas, os pesquisadores da obra de Nelson
Rodrigues entram em polvorosa. Quem sabe se elas não marcariam a sua primeira
tentativa de lançar um pseudônimo feminino na imprensa? Não, o jornal de Mário
Rodrigues não estava publicando qualquer sandice que saísse da pena de seus filhos.
Ainda que ousada, a investida guarda um pé nos acontecimentos da época. A Sadie é
Sadie Thompson, personagem de Somerset Maugham, que aparecia em tradução feita
para a tela pelo ator e diretor Raoul Walsh em filme estrelado por Gloria Swanson e
lançado comercialmente nos Estados Unidos em fevereiro de 1928 e que, portanto, pouco
depois, freqüentaria as telas brasileiras18. O texto publicado no jornal esclareceria tudo
em seu final:
(...) Todos almejam regenerar-me; um aposta-me o inferno, outro o seu amor, um
paraíso segundo diz – modéstia à parte ...
Porque não me ajudais – vós que tivestes tempo para ler isso tudo?
Porque não ajudais Sadie a resolver?
É o que vos peço. Assiste, porém, antes ao filme de Gloria Swanson para a United
Artists em que vos conto a minha história de pecadora cada vez mais seduzida pelo pecado!
Tem mesmo o título de “A sedução do pecado”, o filme que o Capitólio vai exibir
segunda-feira.
18
Para a data de lançamento do filme de Raoul Walsh nos Estados Unidos, ver Karney, Robin (ed.). Cinema – year by
year 1894-2004. London: Amber Books, 2004, p.194-5.
55
Sadie19
Ao comentar com Ruy Castro sua iniciação sexual com prostitutas na zona do
Mangue no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues não mencionou nada sobre esse texto,
embora tenha assinalado que em suas relações com profissionais do sexo se sentisse
como o pastor do conto “A chuva”, de Maugham (cf. Castro, 1993). Mas o que põe por
terra a hipótese do “primeiro texto sob pseudônimo” é o fato de a passagem ter sido
publicada não como matéria jornalística, mas como um anúncio em destaque em relação
às reportagens corriqueiras do jornal. De qualquer jeito fica a suspeita: quem seria o autor
dessa propaganda que com muita certeza foi redigida dentro da redação de A Manhã?
Depois de Sadie, viriam Suzana Flag e Myrna. O material escrito para jornal por
Nelson sob esses pseudônimos a partir de meados da década de 1940 marca a sua
consagração como autor folhetinesco em seguida à consagração como autor teatral. Desta
vez, no entanto, não seriam os críticos que iriam consagrá-lo, mas o público leitor,
fazendo com que os veículos onde seus folhetins eram publicados atingissem marcas
surpreendentes de tiragem.
Accioly Netto, de início secretário de redação e, depois, diretor e redator-chefe de
O Cruzeiro, trabalhou com Nelson Rodrigues na revista que também viria a divulgar seus
folhetins. Conta Accioly Netto, em seu livro sobre o período, da convivência com Nelson
na revista:
Trabalhamos juntos em O Cruzeiro e lembro-me ainda quando ele, às vésperas da estréia de
sua peça Vestido de noiva, andava de um lado para o outro, nervoso como um estudante antes
do exame. Foi a meu pedido que ele escreveu um romance notável, Meu destino é pecar, sob
o pseudônimo de Suzana Flag, vendendo mais de cem mil exemplares. (Accioly Netto, 1998:
157)
19
Este anúncio também consta da compilação de artigos digitalizados que segue em CD anexo a esta Tese.
56
Há um pouco de confusão nas memórias de Accioly Netto. Em fevereiro de 1944,
Nelson Rodrigues passa a trabalhar com Frederico Chateaubriand nos Diários
Associados e inicia em O Jornal a publicação de seus folhetins como Suzana Flag.
Primeiro, Meu destino é pecar, que se estendeu de 17 de março até 17 de junho de 1944.
Com seu enorme sucesso, Meu destino é pecar foi editado em livro pela Empresa Gráfica
Cruzeiro, ainda no ano de 1944.
Se Meu destino é pecar vendeu realmente cem mil exemplares, como afirma
Accioly Netto (Castro falaria em trezentas mil cópias), trata-se de uma marca vultuosa e a
que poucos autores hoje em dia, mais de sessenta anos depois, conseguem chegar.
Depois, a veia folhetinesca teve seqüência sob a pele de Suzana Flag com um novo
folhetim, Escravas do amor, segunda série assinada sob pseudônimo. “Escravas do
amor” seria publicada em O Jornal, entre os dias 25 de junho e 26 de setembro de 1944.
Em 1946, surge o terceiro folhetim pseudonímico ainda sob a alcunha de Flag, o
“romance autobiográfico” Minha vida, que é editado na revista A Cigarra. O folhetim
circularia nessa revista mensal entre julho de 1946 e fevereiro de 1947. Escravas do
amor e Minha vida receberiam o mesmo tratamento de Meu destino é pecar e sairiam em
livro, em 1946, pela mesma editora de O Cruzeiro.
Dois anos depois se inicia “Núpcias de fogo”, o quarto folhetim de Suzana Flag,
que estreou simultaneamente em O Cruzeiro e O Jornal, mas seguiu seriado apenas no
segundo veículo entre os dias 4 de agosto e 12 de setembro de 1948. Ao contrário dos
folhetins anteriores, este ficou inédito em livro por quase 50 anos.
57
Em 1949, Nelson Rodrigues sairia de O Jornal e passaria a freqüentar as páginas
do Diário da Noite, onde criaria um novo heterônimo, o de Myrna. A trajetória da
segunda autora pseudonímica teria vida mais curta, apenas oito meses. Primeiro um
consultório sentimental para responder às cartas de leitoras aflitas com a coluna “Myrna
Escreve”, que circularia nas páginas do Diário da Noite, entre os dias 21 de março e 5 de
outubro de 1949. Sob a pele de sua segunda persona feminina assinaria também o
folhetim “A mulher que amou demais”, veiculado entre os dias 18 de julho e 18 de
agosto de 194920.
Todos esses folhetins tiveram reedições e alguns sua primeira edição
recentemente: Meu destino é pecar teve um relançamento pela Ediouro Publicações, em
1998. Escravas do amor e Minha vida ganharam reedição pela Companhia das Letras em
1997 e 2003, respectivamente. O primeiro foi organizado por Ruy Castro, e o segundo
como resultado de novos levantamentos de Caco Coelho que passou a recuperar outras
produções esquecidas de Nelson Rodrigues que não figuravam no seu projeto original
aqui já muito referido. Uma seleção das colunas do consultório sentimental de Myrna
saiu no livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo (2002a), bem como o
romance A mulher que amou demais (2003), ambas as edições organizadas mais uma vez
por Caco Coelho.
O hábito de publicar ficções de forma seriada em jornal seguiria na década de
1950, quando Nelson vai ajudar Samuel Wainer no lançamento de um novo jornal que
sacudiria a cena política brasileira, o Última Hora. Antes de investir e voltar à prática
ficcional, Nelson retorna à reportagem com investigações como as que aparecem sob o
20
Como será visto no capítulo de análise, seção 4.2.2, há dúvidas quanto a autenticidade das cartas endereçadas à
Myrna, que parecem em sua maioria terem sido escritas pelo própria Nelson Rodrigues na pele de Flag e Myrna.
58
título geral de “No cemitério das mulheres vivas” 21. Uma série de três reportagens que se
iniciam com a edição do dia 12 de junho de 1951. Revelam encontros do repórter com
internas do Presídio Feminino de Bangu, onde ele colhe narrativas dramáticas que passa a
oferecer aos leitores.
Seguem-se duas outras reportagens até o dia 31 de julho quando Nelson
Rodrigues inaugura um novo folhetim de Suzana Flag: “O homem proibido”, que durará
79 capítulos até o dia 3 de novembro de 1951.
Paralelamente à escrita do novo folhetim de Flag, e a partir do dia 17 de setembro
de 1951, Nelson ganha uma coluna intitulada “Atirem a primeira pedra”. Em seu livro de
memórias, Minha razão de viver – memórias de um repórter, Samuel Wainer narra o
surgimento da coluna:
Chamei Nelson Rodrigues, meu redator de esportes e perguntei-lhe se aceitava escrever uma
coluna diária baseada em fatos policiais. Nelson recusou. Resolvi enganá-lo, e contei que
André Gide já fizera isso na imprensa francesa. Defendi também a tese de que, no fundo,
Crime e castigo, de Dostoiévski, era uma grande reportagem policial. Eu apenas queria que
ele desse um tratamento mais colorido, menos burocrático, a um certo tipo de notícia. Nelson
afinal cedeu. Sentou-se à máquina e, pouco depois, entregou-me o texto sobre o casal que
morrera no desastre de avião. Era uma obra-prima, mas notei que alguns detalhes – nomes,
situações – haviam sido modificados. Chamei Nelson e pedi-lhe que fizesse as correções.
- Não, a realidade não é essa – respondeu-me. – A vida como ela é é outra coisa.
Eu me rendi ao argumento e imediatamente mudei o título da seção. Deveria chamar-se “Atire
a primeira pedra”, mas ficou com o título de “A vida como ela é”, que considero um dos
melhores momentos do jornalismo brasileiro. (Wainer, 1987: 152-3)
O que se vê da prática de Nelson Rodrigues como repórter e jornalista no começo
do Última Hora são contribuições parcimoniosas como as reportagens mencionadas
acima. O que nos mostra que ele devia andar ocupado na função de redator de esportes do
jornal, ainda que não haja contribuições suas como cronista nesse período. Quanto à
coluna que segundo Wainer “deveria se chamar “Atire (sic) a primeira pedra””, na
21
Diante da impossibilidade de repetir, como foi feito com as reportagens, críticas e crônicas de A Manhã, Crítica e O
Globo, a listagem dos textos publicados no jornal Última Hora (excluídas as colunas esportivas), dada a sua extensão,
optou-se por colocar o arquivo com o levantamento no CD anexo a esta Tese.
59
verdade ela perdurou com o nome de “Atirem a primeira pedra” no correr de perto de
cinqüenta edições do jornal, entre os dias 17 de setembro e 15 de novembro de 1951 (o
Última Hora não circulava aos domingos nesta época).
O primeiro texto de “Atirem a primeira pedra” a ser publicado é a extensão de
uma vasta reportagem sobre o desabamento do teto de um cinema em Campinas que
deixou centenas de crianças mortas (o assunto ganhou a primeira página do jornal e se
espalhou por reportagens internas). É a única peça jornalística nessa coluna que ainda
trará resquícios das atividades do pretenso repórter. Nelson, a partir já do segundo escrito
dessa coluna, investirá abertamente pelo campo ficcional com a criação diária de contos.
Sob o título de “Atirem a primeira pedra” teremos perto de cinqüenta estórias (nesse
período, os escritos de Nelson falharam em um único dia; há ainda, a partir da coleção da
Biblioteca Nacional, uma edição perdida: a do dia 2 de novembro de 1951), até o dia 16
de novembro de 1951, quando o título da coluna será mudado para “A vida como ela
é...”.
O texto que inaugura “A vida como ela é...” intitula-se “O homem do cemitério”
e, como se tornaria rotina, está em destaque com a ilustração do rosto de Nelson
Rodrigues, o mesmo que saía desde sua estréia nesse jornal no alto de suas produções na
página 8. Ao contrário de “Atirem a primeira pedra”, ao lado de “A vida como ela é...” já
não aparecem mais as notícias policiais, o que põe por terra a identificação dos textos de
Nelson com as reportagens de polícia. Passa-se, desta forma, a se assumir seus textos
como de ordem estritamente ficcional.
“A vida como ela é...” sofre várias interrupções, e não apenas nos períodos de
doença do autor, como nos faz crer Ruy Castro (1993). Há momentos, como nos anos de
60
1955, 1956 e o primeiro semestre de 1957, em que são esporádicas as colunas. Nelson
nessa época passa a se ocupar da coluna “Sua lágrima de amor”, a repetição do
consultório sentimental de Myrna, agora com a assinatura de Suzana Flag. A coluna é
semanal a partir de 3 de janeiro de 1955 e vai até o mês de março, quando passa a ser
diária. Seguirá diária até o mês de maio de 1955. Em junho, Nelson Rodrigues fará
Suzana Flag assinar também contos de “A vida como ela é...”, deixando de esconder do
público a verdadeira face de sua persona pseudonímica. Mas são poucos, três contos, no
final do mês de junho. Em julho de 1955, somem os escritos de Flag, e Nelson vai fazer
uma coluna no caderno de esportes.
Apesar de persistir até Nelson pedir demissão do jornal em 1961, a periodicidade
de “A vida como ela é...” não segue, como afirmei, uma sistematicidade. Na orelha da
primeira coletânea dos contos dessa coluna, organizada para a editora Companhia das
Letras, Ruy Castro faz a sua avaliação da extensão das criações do Nelson Rodrigues
contista:
Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson Rodrigues escreveu sua coluna A
vida como ela é... para o jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Seis dias por
semana, chovesse ou fizesse sol. A chuva podia ser “a do quinto ato de Rigoletto” e
o sol, “de derreter catedrais”, segundo ele. Todo dia, com uma paciência chinesa e
uma imaginação demoníaca, Nelson escrevia uma história diferente. E quase sempre
sobre o mesmo assunto: adultério. Desse tema tão simples e tão eterno, ele extraiu
quase 2 mil histórias”. (Rodrigues, 1999)
A partir do que foi inventariado pelo presente estudo em apanhado no acervo em
microfilme da Biblioteca Nacional, acervo esse que é bastante completo (apesar de
algumas falhas, como no ano de 1954 que não apresenta as páginas de números 5 e 6 –
aquelas em que Nelson também publicava seus contos), conta-se metade das “2 mil
histórias” que constam da apreciação de Ruy Castro. São, portanto, para efeito de
61
avaliação, perto de mil estórias. Isso, mesmo incluindo os contos seriados. Encontram-se,
entre setembro de 1957 e março de 1958, estórias de “A vida como ela é...” seriadas em
seis capítulos semanais, de segunda à sábado. São perto de vinte e cinco estórias (o
número correto não pode ser precisado, pois nos registros de microfilmes da Biblioteca
Nacional, além das páginas mutiladas, falta o mês de dezembro de 1957).
“A vida como ela é...” reaparecerá em setembro de 1961 e permanecerá até julho
de 1962 no Diário da noite e, no ano de 1966, terá sua última sobrevida no Jornal dos
Sports (cf. Castro, 1993). Não foi possível à presente pesquisa recensear a extensão e o
número preciso dessas criações de Nelson. Fica como indicação, portanto, para futuros
pesquisadores de sua obra.
Outra produção de Nelson do período é o romance-folhetim autoral “A mentira”,
veiculado de forma seriada no Jornal da Semana Flan, em 1953. No Flan (título
escolhido por Wainer por sua sonoridade), que surge em abril de 1953, esse romancefatiado em dezoito capítulos figurou entre junho e outubro de 1953 (Rodrigues, 2002a).
Dentro do Flan circulariam ainda os contos da coluna “Pouco amor não é amor”, entre
outubro de 1953 e o começo de 1954 (justamente o período em que somem as colunas de
“A vida como ela é...”). Há ainda um outro romance-folhetim autoral, o famoso “Asfalto
Selvagem – engraçadinha seus amores e seus pecados”, impresso em um caderno à parte
no Última Hora, de setembro de 1959 – e não agosto, como consta da apresentação de
Castro (Rodrigues, 1995) – a fevereiro de 1960.
A Companhia das Letras, sob orientação de Ruy Castro, editou em livro alguns
destes textos. Lançou A vida como ela é... – o homem fiel e outros contos (1999a) e A
coroa de orquídeas – e outros contos de A vida como ela é... (1999b) que reúnem 95
62
histórias dentre as cerca de mil escritas por Nelson para o Última Hora. Foi editado da
mesma forma o folhetim Asfalto Selvagem – engraçadinha seus amores e seus pecados
(1995), como um romance. A série da Companhia das Letras seguiu ainda com novos
lançamentos a partir do trabalho do pesquisador Caco Coelho com a edição do romance
A mentira (Rodrigues, 2002b) e da coletânea de contos, do Flan, Pouco amor não é amor
(Rodrigues, 2002c).
Há ainda edições antigas para Asfalto Selvagem – engraçadinha seus amores e
seus pecados (uma da J. Ozon Editor, de 1961, e outra da editora Nova Fronteira, de
1980, as duas em dois volumes) e O homem proibido (distribuído pela Nova Fronteira em
1981) (1981c). E ainda o lançamento de seleções da coluna A vida como ela é... em
edição de dois tomos pela J. Ozon Editor, com data de 1961, com 58 estórias que não
aparecem nas duas compilações feitas por Castro. A edição de contos de 1961 acaba de
ganhar relançamento, no momento em que esta Tese é escrita, pela editora Agir (cf.
Rodrigues, 2006).
2.4 – O Cronista
Em 1957, Adolpho Bloch sugeriu que Nelson Rodrigues desse um título para as
crônicas que o jornalista vinha publicando semanalmente na revista Manchete Esportiva.
O título aventado pelo editor e empresário foi “Meu personagem da semana”,
prontamente encampado pelo colunista. Além do trabalho no jornal Última Hora, o
escritor incansável vinha escrevendo suas colunas de crônica esportiva desde o final de
1955 em Manchete Esportiva, revista semanal que criou junto com seus irmãos (Mário
63
Filho, Augusto e Paulo Rodrigues) com o aval de Bloch, o que prosseguiria fazendo nas
edições subseqüentes. Castro (1993) nos diz que, antes disso, Nelson contribuiu apenas
com textos esporádicos para o Jornal dos Sports, diário do qual seu irmão Mário Filho
passou a ser acionista a partir de 1936 e alcançou a posição de sócio majoritário em 1949,
e para o jornal Última Hora, na seção de esportes do vespertino que começou a circular
em junho de 1951 (cf. Castro, 1993).
Investigações em busca de fontes primárias confirmam apenas em parte as
afirmações de Castro. No jornal Última Hora, Nelson é visto com crônicas esportivas a
partir de 1955 em contribuições constantes. As colunas esportivas do Última Hora,
inéditas em livro, se estendem de maio de 1955 até meados de julho de 1958. No Jornal
dos Sports, só se identificam textos de Nelson Rodrigues em julho de 1958, quando ele
inaugura sua colaboração como cronista para o diário de seu irmão. Algumas dessas
contribuições, que se estenderam pelas décadas de 1960 e 1970, aparecem compiladas
nas coletâneas Fla-Flu ... e as multidões despertam (1987) e O Profeta tricolor – cem
anos de Fluminense (2002c), mas o grosso permanece inédito em livro.
A coluna “Meu personagem da semana” de Manchete Esportiva, ainda antes do
fim da revista em setembro de 1959, passará rapidamente pelo jornal Última Hora. Mas
são apenas duas colaborações, uma do dia 6 de julho de 1959 sobre Maria Esther Bueno e
outra, uma semana depois, no dia 13 de julho, sobre o quíper Zé Tainha. A coluna
aparecerá com esse título no Diário da Noite, entre setembro de 1961 e julho de 1962.
Essa informação é apresentada por Castro (1993), mas não pôde ser checada. “Meu
personagem da semana” terá longa carreira ainda em O Globo, onde aparece no correr
dos anos de 1960 e 1970.
64
Com relação à Manchete Esportiva, as coleções da Biblioteca Nacional, no Rio
de Janeiro, e do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, ambas
com falhas na seqüência de edições da revista (que por felicidade se complementam),
ajudam a delimitar a extensão dos números do magazine: 191 edições, se iniciando em
novembro de 1955 e se encerrando em setembro de 1959.
Embora fosse um assíduo colaborador, pois além de colunista era o redatorprincipal, Nelson Rodrigues esteve ausente de alguns números por motivos de saúde. De
qualquer modo participou com suas crônicas de 163 edições da revista. Há uma
transcrição dessas crônicas em um dos dois tomos da dissertação de Daisi I. Vogel, feita
na Universidade Federal de Santa Catarina e intitulada “Fábulas do gol: as crônicas
esportivas de Nelson Rodrigues” (1997). Trata-se de um trabalho realizado a partir da
coleção dos números de Manchete Esportiva que Ruy Castro adquiriu de Augusto Falcão
Rodrigues (irmão de Nelson Rodrigues) quando da preparação da biografia O Anjo
Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues (1993). Minha investigação de campo em
busca de fontes primárias no Museu Hipólito José da Costa encontrou, no entanto, sete
colunas que não constam desse levantamento. As colunas, que eram apontadas como de
156 em seu total, sofrem com essa pequisa esse pequeno acréscimo22.
Dos 163 textos publicados em Manchete Esportiva, 57 escritos aparecem nos
livros de crônicas esportivas: À sombra das chuteiras imortais (Rodrigues, 1994) e A
pátria em chuteiras (Rodrigues, 1996). Menos, portanto, que 1/3 do total de colunas
perpetradas pelo escritor para este veículo. De início a coluna aparece só com uma
caricatura e a identificação: “Nelson Rodrigues escreve”. Mas, a partir de 1957, recebe o
22
Todas as colunas escritas por Nelson Rodrigues para Manchete Esportiva foram fotografadas e seguem em arquivo
em CD anexo a esta Tese.
65
título sugerido por Bloch e logo em seguida passará a ter uma diagramação requintada e
de grande efeito visual e chegará a ocupar duas páginas inteiras da revista.
Para entendermos com propriedade as peculiaridades que a crônica esportiva irá
adquirir com Nelson Rodrigues, precisamos olhar para a imprensa brasileira da década de
1940 e 1950. O jornalismo brasileiro estava, durante aquele momento, vivendo sob
alguns aspectos o seu ápice de refinamento. Um acompanhamento das edições do Jornal
dos Sports no correr dessas décadas aponta para um fato curioso. Apesar de ser um jornal
voltado para os esportes, como seu nome assinala, seus horizontes iam muito além dos
fatos estritamente relacionados aos desportos. O jornal dava conta assim, e com
surpreendente zelo, dos assuntos culturais também. Sua segunda página era sempre
dedicada às críticas teatrais (assinadas por Jota Efegê) e cinematográficas, e suas edições
traziam ainda informações sobre os eventos culturais da cidade (a vida social, o rádio, a
televisão, e até os acontecimentos de interesse do público feminino na coluna “Notas
Femininas”).
O leitor de hoje que se defronta com as coleções microfilmadas do diário chega à
conclusão de que a prática jornalística dos editores dos jornais esportivos de então era por
demais cosmopolita. O Jornal dos Sports, que contava com a colaboração, ainda que
parcimoniosa, de gente do gabarito de José Lins do Rego, não estava sozinho em sua
cruzada. Uma folheada no hebdomadário Flan, editado por Samuel Wainer como braço
cultural do seu Última Hora, nos leva à percepção de que o tablóide comandado por Joel
Silveira trabalhava em um sentido inverso ao do Jornal dos Sports. Apesar de a atenção
do Flan, revolucionário dentro da imprensa brasileira, se voltar para a vida cultural
(cinema, teatro, televisão, comportamento, ou, mundanismo, como eles preferiam), o
66
tablóide não conseguia fugir às reportagens sobre os jogadores de futebol e atletas de
projeção em esportes como o hipismo (um grande acontecimento social à época), por
exemplo.
O Flan chega às bancas em 1953. Manchete Esportiva é lançada, mais de um ano
e meio depois, nos últimos meses de 1955, e parece ser a versão esportiva do tablóide
onde brilhavam o jornalismo de Jean Manzon, de Nássara, as charges do cartunista Lan
(que também se tornaria um colaborador assíduo de Manchete Esportiva) e os folhetins
romanceados do próprio Nelson Rodrigues. Se Flan abria suas páginas para os
“ektachromes” das pin-ups hollywodianas, a Manchete Esportiva, secundando um
formato presente no tablóide (que nesta altura já tinha desaparecido das bancas), dedicava
sempre sua última página por completo para uma pin-up esportiva. Escolhia-se uma atleta
que era fotografada e aparecia em página inteira tendo ao fundo a paisagem de algum
recanto do Rio de Janeiro. Não podemos esquecer ainda que a revista O Cruzeiro, que
começou a ser publicada em 1928 como Cruzeiro, vinha inovando e explorando o mesmo
tipo de jornalismo (não por acaso, o time de jornalista de O Cruzeiro - Millôr Fernandes,
Nássara, Jean Manzon e o próprio Nelson Rodrigues - integraria o corpo de jornalistas
responsáveis por esses novos veículos de informação).
É no espaço da Manchete Esportiva que Nelson inaugura um estilo de crônica
singular que mistura comentários sobre o esporte com observações comportamentais.
Aqui parece ser necessário comentar também o que caracterizava o trabalho do “chronista
sportivo” na primeira metade do século XX. Sua prática tem relação mais estreita com o
que Afrânio Coutinho, como veremos mais adiante na seção 2.5.2 desta Tese, entende
pela rotina do jornalista que se exercita no gênero da “crônica-informação”. O “chronista
67
sportivo” era tão somente o jornalista que fazia o acompanhamento dos acontecimentos
do mundo dos esportes junto aos clubes. Isso quer dizer que qualquer “foca” de primeira
hora podia receber o rapapé de ser chamado de “chronista sportivo” sem que redigisse
crônicas que se enquadrassem dentro da acepção mais nobre do gênero. Nelson, por sinal,
trabalhou por várias anos como esse “chronista sportivo” na década de 1930 em O
Globo, uma ocupação que, como vimos, odiava.
Quando parte para escrever suas crônicas em Manchete Esportiva, Nelson
Rodrigues já é um escritor tarimbado. Ele traz a sua experiência de ficcionista para esse
mundo e passa a misturar aos eventos do dia-a-dia do mundo dos esportes uma boa dose
de ficção. Sai-se assim com crônicas admiráveis que são reflexões comportamentais que
têm apenas os fatos do esporte como motivação e que mostram em um novo meio,
portanto, o lastro literário de um gênero que teve José de Alencar, Machado de Assis,
Olavo Bilac, Lima Barreto, João do Rio e Mario de Andrade como seus expoentes.
No dia 22 de julho de 1958, ainda antes do fim de Manchete Esportiva, Nelson
Rodrigues inaugura sua coluna de cronista no Jornal dos Sports. Era o deslanchar de sua
terceira experiência como colunista esportivo na imprensa e seus escritos apareciam sob o
título de “Nelson Rodrigues dá bom-dia”. Na primeira coluna, o jornalista anuncia sua
estréia falando sobre o time campeão do mundo: a seleção brasileira que acabara de
ganhar seu primeiro campeonato mundial. Nelson aparecia com a coluna diariamente,
com folga às segundas-feiras. A coluna seguiria com constância surpreendente e cinco
anos depois, no dia 4 de abril de 1963, mudaria de nome: primeiro para “Football e
gente”, sofrendo a partir já do dia seguinte, o aportuguesamento de seu título e passando
a “Futebol e gente”. Essa seria uma das colunas que ele manteria pelo resto de sua vida,
68
perfazendo mais de vinte anos de colunismo esportivo no jornal carioca impresso em
papel cor de rosa.
A edição de O Globo da sexta-feira 23 de março de 1962 trazia a seguinte
chamada de capa:
Nélson Rodrigues em O Globo
Foi na seção esportiva de O Globo que Nelson Rodrigues, que depois se tornaria um dos mais
fecundos, vigorosos e discutidos teatrólogos brasileiros, fez, em companhia de outros irmãos
seus, algumas das primeiras armas da sua carreira jornalística.
Será decerto motivo de satisfação para os leitores de O Globo saber que Nelson Rodrigues
regressa na próxima segunda-feira às colunas deste jornal dando sua presença e o brilho
conhecido de sua pena a mesma seção em que outrora exerceu as suas atividades. Caber-lhe-á
a responsabilidade de assinar diariamente uma coluna na página esportiva, na qual com seu
inegável talento e dentro das normas de isenção e critério que os leitores se habituaram a
encontrar nas páginas de O Globo irá oferecer-lhes as crônicas cheias de interesse e vibração
que dele justamente se [espera]23.
O Globo anunciava em nova chamada de capa a estréia na segunda-feira, dia 26
de março.
Meu Personagem da Semana
Garrincha, o famoso e desconcertante “Seu” Mané, foi o escolhido por Nélson Rodrigues para
inaugurar a sua galeria com tanta expectativa aguardada do “Meu Personagem da Semana”.
Afirmando que dos pés do imprevisível ponteiro poderá nascer a flor do bicampeonato,
Nélson Rodrigues acentua o franciscanismo de Garrincha em sua primeira e sensacional
crônica que os leitores encontraram na última página da segunda seção.
O título, que como vimos foi sugerido por Adolpho Bloch, seguiria como cavalo
de batalha de Nelson Rodrigues. As cinco primeiras colunas saem sob o título de “Meu
personagem da semana”, mas logo começam inusitadamente a se alternar com outros
títulos como “A batalha”, “Retrato antigo”, “Futebol é paixão”, “Os bandeirinhas também
são anjos” e “À sombra das chuteiras imortais”. As duas coletâneas de crônicas
esportivas mencionadas anteriormente trazem, além de textos da Manchete Esportiva,
seleções das colunas esportivas de O Globo, publicadas entre os dias 5 de junho de 1962
23
Recorri aos colchetes quando era impossível reconhecer trechos do original no microfilme digitalizado.
Entre colchetes inseri suposições pessoais sobre o conteúdo do que foi publicado.
69
e 22 de junho de 1970. Há ainda nessas compilações escritos para as revistas Fatos e
Fotos, Manchete e Realidade, o que mostra que Nelson Rodrigues também fazia
colaborações esporádicas para outros periódicos impressos.
Paralelamente, no começo dos anos de 1960, e anteriormente a sua estréia em O
Globo como colunista esportivo, Nelson Rodrigues vinha arriscando artigos esparsos para
o semanário Brasil em Marcha e para a revista Manchete. Essas crônicas, que
classificaria como comportamentais, são apontadas como o embrião das crônicas
memorialistas e confessionais que amadureceriam com a passagem do escritor pelo jornal
Correio da Manhã e que seguiriam com ele a partir daí e pelo resto de sua prática como
cronista, principalmente em O Globo.
Nelson Rodrigues foi incumbido no Correio da Manhã de escrever suas memórias
que se iniciaram em 18 de fevereiro de 1967 e se encerraram na octogésima coluna em 31
de maio deste mesmo ano, por desentendimentos no que diz respeito à remuneração
(Castro, 1997). Tratava-se de narrativas memorialistas que seriam posteriormente
reiniciadas em O Globo como as Confissões.
Em sua primeira página, no dia 2 de dezembro de 1967, O Globo anuncia o início
das colunas comportamentais de Nelson para esse veículo. Usando um trecho de uma das
futuras “Confissões”, diz o texto de apresentação:
- Não gosto de nortista!
- Por quê? - perguntaram ao bêbedo.
- Porque nasci em mão de parteira. Não sou qualquer um.
A cena, testemunhada por Nélson Rodrigues, num boteco do Rio, acordou
no escrtitor, em “flashback”, a sua época favorita: o Rio da “espanhola”, de Pinheiro
Machado, das apóstrofes de Rui e das perorações em geral.
O desenvolvimento da história está num dos capítulos das “Confissões” de
Nelson, que O Globo vai publicar a partir de 2ª.-feira.
Na ilustração acima, o bêbedo aparece de suspensórios, o que não é usual,
mas, no caso, corresponde, com flaubertiana verdade, aos fatos.
Leiam as “Confissões de Nélson Rodrigues” em “O Globo”, a partir de
segunda-feira, dia 4.
70
E assim eram lançadas as “Confissões” que também durariam, como as crônicas
de esportes feitas para o Jornal dos Sports e O Globo, o restante da vida do escritor.
Algumas destas “Confissões”, que se estenderiam pela segunda metade da década de
1960 e pela década de 1970, aparecem originalmente nos livros O óbvio ululante (1968),
A cabra vadia (1970) e O reacionário (1977) e ganhariam reedições reordenadas por Ruy
Castro. Castro não se limitou a reeditar esses livros. Estabeleceu a data dos escritos,
acrescentou notas, expurgou crônicas repetidas, fez apresentações para cada um dos
volumes e preparou um elaboradíssimo índice remissivo.
Em relação ao título Memórias de Nelson Rodrigues – a menina sem estrela,
editada em 1967 pela editora do jornal Correio da Manhã, uma das obras mais raras do
escritor e difícil de ser encontrada mesmo em sebos hoje, às 39 crônicas do volume
original foram acrescidas 41 crônicas que cobriam todas as colaborações do cronista para
o jornal. O resultado foi o livro A menina sem estrela – memórias (1997). Todo esse
trabalho de Ruy Castro foi um fator essencial para o efetivo conhecimento da evolução da
obra do cronista. Castro aproveitou ainda para reunir crônicas não publicadas em um
livro inédito que levou o título de O remador de Ben-Hur (1996).
Em suas crônicas comportamentais, Nelson Rodrigues repetiria o procedimento
adotado com as crônicas esportivas. Agora, no entanto, os “personagens” retratados eram
pessoas proeminentes da vida cultural brasileira e mundial: escritores, compositores,
filósofos, cineastas, diretores de cinema e teatro, bem como tipos populares
desconhecidos (a maioria reais, mas alguns talvez ficcionais, pois não se pode precisar)
com quem apenas o escritor tinha alguma intimidade.
71
2.5 – Considerações Acadêmicas sobre as Reportagens, os Folhetins, os Contos, as
Crônicas
Cabe desenvolver nessa seção uma discussão de ordem teórica sobre os estudos
que focam o segmento da produção intelectual de Nelson Rodrigues nos jornais. Trata-se
de práticas que englobam uma variedade grande de exercícios discursivos por parte do
escritor, mas que parecem no fundo apresentar alguns elementos de contato. Começarei
pelas reportagens,
e me estenderei às discussões sobre o folhetim, os contos e as
crônicas. O debate deve ter seu ponto de partida na natureza discursiva dos faits divers
que estão relacionados com a prática de Nelson Rodrigues em sua passagem pela
reportagem policial. Posteriormente, veremos o entrelaçamento dessa sua experiência
com o exercício de contista e folhetinista.
2.5.1 – Reportagens Policiais e Faits Divers
Ainda não há uma reflexão acadêmica consistente sobre a produção jornalística de
Nelson Rodrigues como repórter em função da novidade desse material, uma vez que
apenas a partir de 2004 seus textos dessa vertente de sua prática escritural começaram a
vir a público com a edição de O baú de Nelson Rodrigues – os primeiros anos de crítica
e reportagem (1928-35) (Rodrigues, 2004). Há muitos pesquisadores, no entanto, a
indicarem a influência que as reportagens policiais escritas por Nelson, e toda sua
experiência dentro do quadro de repórteres dos jornais de seu pai, têm sobre sua prática
como ficcionista. Os comentadores mencionam principalmente o papel central
72
desempenhado aí pela escrita jornalística policial que se filia ao que ficou conhecido
como o fait divers.
Monestier (2004) esclarece que apesar de o termo fait divers datar de meados do
século XIX, trata-se de uma narrativa cujas feições fundamentais podem de um lado
remeter a passagens bíblicas e, de outro, às reportagens dos jornais que tematizam a
violência e o crime nos dias de hoje. Para uma reflexão sobre a natureza dos faits divers,
deve-se, no entanto, recorrer a estudo seminal de Roland Barthes (1999) que enumera
várias de suas características: assinala, por exemplo, o fato de eles serem acontecimentos
totais que não exigem ancoragem em uma realidade específica para serem entendidos. O
fato de tratar-se de acontecimentos que querem significar, se entendemos que faz parte da
natureza humana a busca de um sentido, uma explicação para o extraordinário. Nos diz o
ensaísta francês com suas palavras:
Quanto ao crime misterioso, conhece-se sua fortuna no romance popular; sua relação
fundamental é constituída por uma causalidade diferida; o trabalho policial consiste em
preencher de trás para diante o tempo fascinante e insuportável que separa o acontecimento de
sua causa; o policial, emanação da sociedade inteira sob sua forma burocrática, torna-se então
a figura moderna do antigo decifrador de enigmas (Édipo), que faz cessar o terrível porquê
das coisas. (Barthes, 1999: 61; grifo do autor)
Um outro aspecto importante destacado por Barthes são os desvios de algumas
causalidades. Trata-se de aspecto, já destacado quando comentei o teatro rodrigueano
amaparado em Süssekind, muito explorado por Nelson em seus contos e peças: “(...)
espera-se uma causa, e é outra que aparece: “uma mulher esfaqueia seu amante”: crime
passional? não, “eles não se entendiam bem em matéria de política”. “Uma empregada
rapta o bebê de seus patrões”: para obter um resgate? não, “porque adorava a criança””
(Barthes, 1999: 62). É bom assinalar neste momento que Barthes entende todos esses
elementos dos faits divers como “paradoxos da causalidade”. Barthes destaca, por fim,
73
um outro tipo de vinculação que se pode encontrar nos faits divers e que guarda analogia
com os escritos de Nelson: “a relação de coincidência”.
Os aspectos salientados por Barthes podem ser complementados por Marlyse
Meyer para assinalarem pontos importantes da presente pesquisa no que se refere aos
limites entre fato, acontecimento jornalístico e material ficcional. Quando vai falar da
terceira fase do folhetim francês, Meyer menciona um autor como Émile Zola e sua
proximidade da corrente literária naturalista e lembra:
O romance-folhetim era então a grande narrativa dos “dramas da vida”, para retomar
o subtítulo que Xavier de Montépin deu ao conjunto de sua obra. Ele imita a vida, que por sua
vez imita o folhetim, se atentarmos para os temas recorrentes dos faits divers, ambos
ilustrados com figuras quase intercambiáveis no seu gosto pelos episódios sanguinolentos e
espetaculares (mulher cortada em pedacinhos, outra atirada pela janela, flagrada em pleno
vôo, o assassino apontando com o revólver etc.), não sabendo onde começa um e termina o
outro. (...)
Mas o folhetim “naturalista’, como já disse, também revisita o velho melodrama,
gênero teatral tão bem definido por Chevalier: “É a coisa representada em carne e osso; a
coisa em ação, coberta apenas por alguns trapos, tremendo de fome, de frio, com o inverno, a
injustiça, o horror, o cárcere, o algoz!”, concretiza no palco os temas do folhetim e do fait
divers, através de personagens de carne e osso, dinamiza as violentas imagens que saltam das
páginas dos ilustrados para o palco, dando vida às mesmas situações e exprimindo-as com a
mesma intensidade e paixão. Gênero do “excesso” os três.
Gêneros do excesso também porque, se a época é a dos grandes enquadramentos na
usina, no lar, na escola, o que não se consegue trancar é a exteriorização dos grandes
sentimentos, dos grandes sofrimentos, das paixões avassaladoras, que levam ao crime até,
infinitamente repetidas na mesmice do fait divers e nas seqüências do folhetim-romance: ódio,
paixão, ciúme, desejo, ganância, ambição, fome, morte, luxúria, loucura.
A invenção ocorre por conta do labirinto do enredo, redundante, repetitivo,
previsível no retorno de temas, situações, coincidências, mas sempre imprevisível na sua
sucessão, no suspense, no nascido do hábil entremear das narrativas paralelas, que o tornam
sempre – até hoje para os maníacos do gênero – um objeto palatável.
Excesso, redundância, mau gosto, vulgaridade, dirão “os finos”, mas nem por isso
esse folhetim deixa de remeter a seu modo – um modo que nem Maupassant nem Zola
ignoraram – ao cotidiano de uma época que, não se sabe bem por quê, se chamou Belle
Époque, desmitificada talvez por esta ficção que não era digna de ser exibida nas vitrines
resplandecentes dos grands magasins. (Meyer, 1996: 233-34)
Meyer assinala, portanto, a proximidade dos faits divers dos folhetins por sua
exposição de temas de mau gosto, que investem pela redundância e pelo excesso. São
vivências que Nelson teve a oportunidade de experimentar na prática da redação dos
jornais de seu pai e de Roberto Marinho e cujos sinais mais significativos acabou
74
incorporando a sua obra ficcional, em suas peças, folhetins, contos e mesmo em algumas
de suas crônicas.
2.5.2 – Origens e Características dos Folhetins e das Crônicas
Tanto o folhetim como a crônica têm suas origens dentro da prosa francesa do
século XIX e, certamente como reflexo da centralidade que essas duas práticas
discursivas desempenham dentro da cultura brasileira, já existe uma significativa
produção ensaística tratando do assunto. Identifica-se de início uma confusão
terminológica causada por uma indefinição sobre as diferenças entre folhetim e crônica.
Em artigo publicado no jornal O Globo, Wilson Martins (2003) deixa explícito o
lastro da dúvida. O crítico e resenhista cobrava, então, de duas compilações distintas e
recém-editadas à época, uma reunindo escritos jornalísticos de José de Alencar e outra de
Machado de Assis, publicadas sob o título de “melhores crônicas”, precisão
terminológica. Para o então colunista do caderno “Prosa e Verso” do jornal O Globo,
Alencar e Machado escreveriam em periódicos como o Correio Mercantil e O Espelho,
não crônicas, mas folhetins. Martins usa uma definição do próprio Machado para embasar
sua argumentação. O texto, escrito em 1859 pelo Bruxo (Machado, 1997), quando
contava apenas vinte anos, já tinha sido caracterizado por Marlise Meyer (1992), em
estudo anterior ao definitivo Folhetim (1996), como evasivo o suficiente para não
enunciar com exatidão absolutamente nada.
No artigo em que tenta deslindar o assunto, Meyer se esforça por páginas e
páginas na busca por esclarecer o assunto até que entrega, ao final, os pontos e decide por
75
não ser mais realista que o rei, se referindo à dificuldade que o próprio José de Alencar
teria em definir ao certo o que era o folhetinista, um novo animal no cenário de nossas
letras (referência à imagem de um colibri, utilizada por Machado para descrever o autorfolhetinista). O texto de Meyer aparece em uma célebre compilação de estudos acerca da
crônica (Candido et al., 1992) que foi o desdobramento de um dos grandes seminários
que tiveram lugar na Fundação Casa de Rui Barbosa e em que se discutiu em detalhe o
tópico.
Entre os muitos debates ocorridos à época tentavam-se assinalar algumas das
características desse gênero literário que parece ser mesmo o gênero brasileiro por
excelência. Ele começa a se constituir durante o período de formação de nossa literatura,
uma época em que a afirmação de um corpo de obras literárias coincidia com a busca de
definição de um Estado-nação independente. Foi durante o período romântico que a
crônica brasileira começou a sua gênese singular. Antonio Candido nos fala sobre as
origens da crônica da seguinte forma:
(...) ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou cotidiano, de
tiragem relativamente grande e teor accessível, isto é, há uns 150 anos mais ou menos. No
Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero
brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se
desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de
rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da
seção “Ao Correr da Pena”, título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia
semanalmente para o “Correio Mercantil”, de 1854 a 1855. (1992: 15)
Marlyse Meyer no seu Folhetim (1996) ajuda a esmiuçar o assunto.
De início, ou seja, começos do século XIX, le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o
rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé – geralmente o da primeira página. Tinha uma
finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao entretenimento. E pode-se já antecipar,
dizendo que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é,
76
desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal, deliberadamente
frívolo, oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza a que obrigava
a forte censura napoleônica. (...) Quem sabe se traçar a crônica do folhetim não é um pouco
fazer o folhetim da crônica! (Meyer, 1996: 57)
Portanto, e como nos esclarece também Afrânio Coutinho, o termo folhetim era usado
num primeiro momento “para designar mais a seção, na qual se publicavam não só
crônicas senão também ficção e todas as formas literárias” (Coutinho, 1997: 122). Só
posteriormente é que uma distinção clara no emprego do termo seria feita, com folhetim
passando a se referir apenas às estórias ficcionais publicadas de forma seriada e, crônica,
aos artigos que abordavam um assunto específico e que não se estendiam por mais do que
uma edição do jornal.
Folhetim ou crônica, o gênero discursivo de origem francesa iria no correr da
segunda metade do século XIX e durante o século XX adquirir uma cor local
especialíssima e acabar por cativar muitos leitores no Brasil24. Já sem dúvida sobre
quando estava escrevendo uma crônica ou folhetim, Nelson Rodrigues foi um dos
escritores que ajudaram a definir características próprias para os dois gêneros no Brasil,
e, mesmo, a difundir, no cenário de nossas letras, as duas formas de criação literária.
Afrânio Coutinho (1997) propõe uma tipologia para se distinguir as nuanças da
crônica na cena literário brasileiro. Sua categorização subdividiria a crônica em: crônica
narrativa – “aquela cujo eixo é uma estória ou episódio” (Fernando Sabino seria um
exemplo); crônica metafísica, - “constituída de reflexões pessoais de cunho mais ou
menos filosóficos” (Machado e Drummond representariam este segmento); crônica
poema-em-prosa, - de “conteúdo lírico, mero extravasamento da alma do artista ante o
espetáculo da vida” (Manuel Bandeira, Rubem Braga, Raquel de Queiroz, simbolizariam
24
Para uma abordagem histórica do folhetim no Brasil, ver o interessante estudo de José Ramos Tinhorão. Está em
Tinhorão, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo, Livraria duas Cidades, 1994.
77
essa vertente); crônica-comentário – a que trata “dos acontecimentos, que tem, no dizer
de Eugênio Gomes, ”o aspecto de um bazar asiático”” (um número significativo das
crônicas de Machado e de Alencar se enquadrariam neste grupo); e a crônica-informação
- “é a que divulga fatos, tecendo sobre eles comentários ligeiros. Aproxima-se do tipo
anterior, porém é menos pessoal” (Coutinho, 1997: 133). Coutinho alerta para o fato de
que não há uma divisão estanque entre as várias modalidades e que freqüentemente, pelo
contrário, elas se fundem.
Ao projetar-se essa abordagem para a análise do texto rodrigueano, me vejo
obrigado a uma apropriação particular dessa nomenclatura. O que Coutinho entende por
crônica narrativa, aproximaria do que chamaria de crônica-conto; a crônica-informação,
identificaria com a crônica-crítica ou crônica-resenha; a crônica-comentário, que aparece
muito na prosa de nosso autor, se associa à crônica-metafísica e à crônica poema-emprosa.
2.5.3 – A Avaliação Acadêmico-Universitária dos Folhetins, Contos, Crônicas
Existem alguns trabalhos universitários a investir pela análise do folhetim
rodrigueano. Um exemplo é a dissertação de Mestrado “Nelson Rodrigues, um moderno
autor folhetinesco – a tragédia nossa de cada dia”, de Izabel de Oliveira Cruz (1997), que
discute os folhetins pseudonímicos de Myrna e Suzana Flag e os contos de “A vida como
ela é...”. Cruz trata da proximidade entre os folhetins e os faits divers e os relaciona com
o melodrama e drama francês do século XIX. Nos folhetins pseudonímicos de Nelson,
identifica o trabalho com os arquétipos e temas do melodrama (as vilãs, as mulheres
78
comuns nos papéis de heroínas, os amores eternos, as buscas de vingança e de sucesso a
todo custo). Mostra o desprendimento com que Nelson Rodrigues transita por essa
literatura de má reputação que se opõe à literatura que festeja o belo e o sublime. Cruz
assinala ainda a oralidade como ponto central do romance-folhetim dessa produção
rodrigueana.
Um outro estudo importante é a tese de doutorado “Nelson Rodrigues, leitor de
Dostoiévski: a retórica do romance” (2002), de Adriana Armony, que tem como objetos o
folhetim autoral Asfalto selvagem – engraçadinha seus amores e seus pecados e o
romance O casamento (Rodrfigues, 2002e). Armony investe por várias frentes que
encampo em meu trabalho. Se dou mais atenção às discussões sobre a poética aristotélica,
a autora, por outro lado, centra suas elaborações de ordem teóricas na retórica de
Aristóteles. Nos encontramos de qualquer jeito ao tratarmos do ponto central que o
paradoxo tem dentro da escrita de Nelson.
Facina (2004) dedica um capítulo inteiro de sua tese ao segmento dos contos de
“A vida como ela é...”, centrando sua investigação na reflexão concernente às
representações do espaço urbano nas criações literárias em geral e nas criações literárias
rodriguenas especificamente. A autora parte dos estudos de seu orientador, o antropólogo
Gilberto Velho, para tecer suas considerações. As representações da cidade em “A vida
como ela é...” serão estendidas por Facina a digressões sobre suas marcas no teatro e na
crônica rodrigueanas. Entre os tópicos em foco estão os contrastes na representação que o
conto rodrigueano constrói entre os mundos das Zonas Norte e Sul da cidade do Rio de
Janeiro. A modernização das cidades, por sua vez, se aplicará na análise que a
79
historiadora faz do impacto dessas mudanças para a criação do ficcionista e cronista.
Facina, por fim, voltará a discutir esse aspecto dentro do espaço de algumas das peças do
autor.
Quanto às crônicas de Nelson Rodrigues, especificamente, elas têm uma fortuna
crítica maior. Elas vêm sendo analisadas de duas maneiras distintas principalmente: no
que se refere às discussões e interpretações que suscitam, e no que diz respeito a suas
estruturas narrativas e aspectos formais. Há uma tendência geral a se designar
prontamente as crônicas esportivas de Nelson Rodrigues como crônicas futebolísticas. As
duas coletâneas organizadas por Ruy Castro, que foram os dois veículos que funcionaram
como meio maior de divulgação dessas crônicas esportivas, talvez sejam indiretamente as
responsáveis por ensejar essa identificação, pois que tratam, como assinalam em seus
subtítulos, de reunir apenas “crônicas de futebol”.
Os estudiosos (alguns deles assumidamente amantes do velho esporte bretão)
confirmam essa tendência, mas os ressentidos de qualquer outro esporte, que sofrem com
a “ditadura do futebol”, não tardarão em perceber que essa é uma falsa impressão que
precisa ser de alguma forma corrigida. Já falei de como o Jornal dos Sports das décadas
de 1930, 1940 e 1950 era cosmopolita na variedade de assuntos de que tratava (do esporte
ao cinema, passando pelo teatro). Se a revista Manchete Esportiva, ao contrário, não
fugia do esporte em função do formato em que foi concebida, se percebia, por outro lado,
e por toda ela, uma celebração de todos os esportes, sem distinção. É claro que em um
momento em que o futebol brasileiro se sobressaiu no mundo a revista teve de dedicarlhe maior espaço e aderir à tendência.
80
Mas é preciso mesmo do registro de uma revista como essa para se saber que em
1959 o Brasil sagrou-se bi-campeão sul-americano de beisebol, esse esporte cuja
contagem nenhum brasileiro entende muito bem como é feita. Essa volta toda é para
lembrar que as crônicas rodrigueanas não eram exclusivamente “crônicas de futebol”.
Deve-se mencionar que trabalhos acadêmicos como “Fábulas do gol: as crônicas
esportivas de Nelson Rodrigues” (1997), O futebol em Nelson Rodrigues (2000) e “Com
brasileiro não há quem possa!” (2004), sem demérito algum de suas sofisticações
analíticas e qualidades intelectuais, pecam em não assinalar aos olhos do leitor esse
aspecto.
Um dos assuntos identificados por Marques (2000) como tendo se iniciado com as
crônicas do período de Manchete Esportiva é o que trata do talento dos atletas brasileiros.
Segundo o pesquisador, Nelson se lança em suas crônicas em defesa das qualidades do
futebol praticado em terras brasileiras querendo curar uma crise identitária do brasileiro
que se refletia em uma ausência de auto-estima. Segundo o autor paulista, Nelson
buscava ajudar o brasileiro a superar o “complexo de vira-latas” que nos marcara
profundamente desde a perda da Copa do Mundo de 1950.
O recorte que o mestre pela PUC-SP faz para sustentar sua postulação, que é
apenas uma das teses de seu refinadíssimo trabalho de pesquisa, se inicia com as crônicas
de Manchete Esportiva, embora tenha continuidade com os textos de Nelson publicados
no Jornal dos Sports e em outras publicações. Para focar sua análise, o pesquisador ainda
escolhe períodos específicos: as Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1966 e alguns
campeonatos nacionais referentes a períodos próximos a esses mundiais. Passa então a
verificar como se deu o acompanhamento desses eventos por parte do cronista e em
81
defesa do talento dos jogadores brasileiros, pouco valorizados em função de nossa
“carência de admiração”, de nossa “vivência de um narcisismo às avessas”, que resultava
no “complexo de vira-latas”.
O problema de tais postulações é que elas, apesar de válidas, em meu entender,
reduzem o alcance do que a escrita rodrigueana nos propõe. E isso se dá porque entendo
que essas asseverações escondem o fato de os escritos de Nelson Rodrigues nos
convidarem na verdade, e através de sua ambivalência, para uma permanente reflexão
sobre crenças identitárias que não são exclusivas do brasileiro. É aí que ele coloca em
xeque todo o ódio que vem a reboque de qualquer pregação nacionalista. Seus escritos
mostram os equívocos das posições dogmáticas. E, neste quadro, demonstram que
podemos ultrapassar as limitações de nossas visões sectárias. As nossas identidades,
nossas visões de mundo, nossas crenças, passam a ser móveis e a se recompor a todo
momento por meio de sua ambivalência.
A análise de Marques de qualquer modo toca em um assunto que é tematizado de
maneira recorrente na escrita rodrigueana: a nacionalidade. Esse é também o assunto do
trabalho de Fátima Martins Rodrigues Ferreira Antunes embora sob um enfoque
sociológico (na verdade uma tese de Doutorado de 1999 - anterior à pesquisa de
Marques, portanto - que apenas foi editada posteriormente). Fora do espectro da crônica
futebolística, o assunto foi discutido por Rosolem (1995) ao estudar as crônicas
memorialistas-confessionais do autor (publicadas em um período posterior à época de
Manchete Esportiva). O título da dissertação de Rosolem, feita no mestrado da ECOUFRJ, por sinal, se refere a isso. O verde-amarelo, símbolo identitário de nosso
82
nacionalismo, é entendido pela pesquisadora como tendo, na prosa do escritor, a
variedade de cores de um arco-íris.
No que diz respeito aos aspectos formais da crônica rodrigueana, eles são tratados
com maior requinte por Marques (2000). O pesquisador começa por chamar a atenção, a
partir das considerações do cubano Severo Sarduy, para o vínculo da prosa rodrigueana
com a vertente literária do neobarroco hispano-americano, e indica a força literária dessa
corrente dentro da tradição das letras latino-americanas. Mas não pára aí. Desce ainda a
filigranas textuais e discute os “gramas fonéticos” trabalhados nos textos do autor em
anagramas e em efeitos de aliteração. O pesquisador se lança assim em um tipo de análise
que anda muito fora de moda e que parece ter perdido terreno para as investigações de
cunho sociológico. Dentro da análise de Marques, o que chama a atenção é a ausência de
qualquer comentário sobre o uso de adjetivação tríplice que é recorrente em Nelson
Rodrigues e que se enquadra dentro dos recursos da prosa do neobarroco apresentados
pelo pesquisador.
Às análises formais, Rosolem (1995), em um desses estudos que infelizmente
permanecem confinados aos limites dos bancos de monografias, dissertações e teses das
universidades, prefere explorar as estratégias discursivas trabalhadas por Nelson
Rodrigues em suas crônicas. No começo da presente Tese, assinalei as peculiaridades da
mistura de realidade e ficção nos escritos do cronista, resultado das constatações de um
ensaio meu que deu origem ao presente estudo (Souza, 2002). Disse então que Nelson, ao
lançar mão deste recurso estilístico em um veículo voltado para a difusão de informação
(os jornais), estava convidando o leitor a optar pela prosa do escritor em oposição à prosa
do escrevente dentro das categorizações propostas por Barthes (1999). Rosolem, no
83
entanto, leva essa ponderação mais adiante e nos diz que Nelson estava na verdade
questionando os “estatutos da verdade”. Trabalhando a partir das idéias que Süssekind
aplicou para a discussão do teatro rodriguiano, que já vimos anteriormente, Rosolem as
lança para analisar as crônicas do escritor. Apresenta, assim, uma abertura das mais
singulares para a compreensão do texto do Nelson Rodrigues cronista, abertura para o
assunto que encampo e volto a explorar nesta Tese25.
2.4 – Os Primeiros Escritos, os Textos Perdidos e o Epistolário
Depois de assinalar o que já foi pesquisado e levantado dos escritos rodrigueanos,
devo anotar ainda o que aparece identificado e registrado de forma dispersa e o que resta
por se pesquisar. O livro Documentos autógrafos, de Pedro Corrêa do Lago (Lago, 1997),
apresenta entre os registros de sua coleção particular reprodução fac-símile de um texto
manuscrito de Nelson Rodrigues, escrito aos treze anos. Nele, Nelson, que por
indisciplina nunca conseguiria completar instrução escolar formal, defende o espírito de
dedicação dos escoteiros. “Toda criança deve entrar no escoterismo, porque lá cresce o
espírito amoldado nas prescrições do bem” (Lago, 1997: 190). Depois de elogiar a
bravura da participação dos escoteiros na Primeira Guerra Mundial, o Nelson Rodrigues
adolescente afirma: “escoteirismo é a instituição mais pura, mais perfeita que existe na
história da humanidade” (Ibidem).
O mesmo livro reproduz a capa de uma edição do jornalzinho Alma Infantil
(Lago, 1997: 148) rodado, pelo Nelson Rodrigues adolescente, na gráfica do jornal A
25
Assim como o elemento mítico abordado na seção 2.1.1, essa percepção do confronto entre fato e ficção, apontado
por Rosolem e por mim, parece também ter origem explicitamente no próprio texto do autor. Mais uma vez, portanto, o
escritor afigura-se como condicionador da recepção de sua obra.
84
Manhã, de seu pai. São cinco o total de números do tablóide (cf. Castro, 1993) e foram
preparados em seguida a sua expulsão do Colégio Baptista no bairro da Tijuca no Rio de
Janeiro. Tem de mencionar-se também os textos perdidos, como a famosa composição
juvenil que Nelson escreveu ainda nos bancos escolares da Escola Prudente de Morais,
que é comentada pelo próprio autor em passagem que trata de suas reminiscências:
A vida como ela é... é muito anterior à Última Hora, a Samuel Wainer, data de 1922;
nasceu de um plágio, na sala do quarto ano primário da escola pública. Com oito anos
incompletos, eu contava um adultério, com todos os matadouros. O marido saía e a mulher, nas
barbas indignadas dos vizinhos, chamava o amante.
Eu era um moralista feroz. E não fui, confesso, nada compassivo. Um dia, o marido
volta mais cedo. Ao entrar em casa, vê aquele homem saltar da janela, pular o muro e sumir. A
mulher caiu-lhe aos pés, soluçando: - “Na me mate! Não me mate!”. O marido agarrou-a pelos
cabelos. E o que houve, em seguida, foi uma carnificina. Lembro-me de que a composição
terminava assim:-“Acabou de matá-la a pontapés”. (Rodrigues, 1997: 143)
Trata-se da composição que trazia um plágio de célebre frase de Raimundo
Correia saído de “As pombas” em que o poeta constrói uma imagem lúgubre: “raia
sangüínea e fresca a madrugada”. A frase, que Nelson posteriormente descobriria ter sido
“pilhada”, como diz, por Raimundo Correia de Théophile Gautier, foi transcrita
integralmente e entrou assim mesmo naquela que é apontada como a sua primeira estória
juvenil (cf. Rodrigues, 1997a: 142). Também perdidos ficaram os sketches preparados no
período de internação do escritor no sanatório para turbeculosos em Campos do Jordão,
no Estado de São Paulo. O texto, usado pelo escritor para entreter seus companheiros de
condição enferma é referido por Castro (1993).
O epistolário rodrigueano ainda espera um extenso projeto de pesquisa que
depende necessariamente da colaboração de familiares, pessoas que conviveram com o
escritor e amigos que tenham interesse em divulgar a correspondência do autor. Em seu
livro sobre a dramaturgia rodrigueana, Sábato Magaldi (1992) apresenta reprodução de
uma correspondência curta de Nelson Rodrigues para seu irmão Mário Filho (que é
85
tratado pelo apelido de Lula no bilhete), quando o futuro dramaturgo se encontrava
internado em um sanatório em “Campos do Jordão, em 1935” (1992: 66). Outras cartas
particulares trocadas pelo escritor com a atriz Eleonor Bruno, com quem Nelson teve uma
aventura amorosa, serviram de inspiração para a montagem da peça Dorotéia minha,
estrelada pela atriz Beth Goulart (neta de Eleonor), em 2002.
Nelson Rodrigues Filho, em depoimento durante o evento “Nelson 25 anos”,
ocorrido nos meses de maio e junho de 2005 na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL),
revelou que possui cartas pessoais de seu pai e que pretende coligi-las para edição em
livro.
86
3 — Centralidades na Escrita do Autor
Even the lover of myth is in a sense a lover of Wisdom, for the myth is composed of wonders.
Aristóteles
Chamam-me psicólogo; não é verdade,
sou apenas um realista no mais alto sentido, ou seja,
retrato todas as profundezas da alma humana.
Dostoiévski
O sujeito que escreve deixa de ser ele
mesmo. Uma simples frase nos falsifica
ao infinito.
Nelson Rodrigues
Ao proceder a um apanhado da obra e a uma avaliação global da recepção crítica
dos escritos de Nelson Rodrigues, pude perceber que três pontos têm centralidade nas
observações dos jornalistas, pesquisadores, estudiosos e comentadores que se dedicaram
a analisar sua produção como escritor. Trata-se do reconhecimento de uma narrativa com
fortes traços mitológicos que se desenvolve turvando os limites textuais operados pelos
discursos ficcional e factual e amparada em um pensamento que tem o paradoxo como
fonte. Em função disso, me estenderei individualmente e de uma perspectiva teórica por
cada um desses tópicos.
3.1 – A Dimensão Mitológica
A ascensão do pensamento filosófico grego foi durante muito tempo assumida
como um momento de declínio do pensamento mítico. Essa percepção, no entanto, é
críticada por Mircea Eliade em um dos clássicos dos bancos universitários (Mito e
realidade, 2000), em que o pensador nos mostra que a abertura do pensamento grego para
a reflexão de caráter metafísico-racional não significou necessariamente uma negação
87
decisiva do mito. O mito, segundo Eliade, e ao contrário da idéia que prevaleceu através
dos séculos, sempre narrou uma “história verdadeira” e não uma “fábula”, “invenção” ou
“ficção” e trata de assuntos que também pautariam as preocupações filosóficas: a origem
do mundo e as perspectivas de um tempo futuro.
A filosofia ao invés de negar o pensamento mítico, portanto, partiria
fundamentalmente das mitologias. “(...)[P]ode-se dizer que as primeiras especulações
filosóficas derivam das mitologias: o pensamento sistemático esforça-se por identificar e
compreender o “princípio absoluto” de que falam as cosmogonias, em desvendar o
mistério da Criação do Mundo, em suma, o mistério do aparecimento do Ser”, afirma o
pensador (Eliade, 2000: 101; aspas do autor). E complementa: “[A] “desmitificação” da
religião grega e o triunfo, com Sócrates e Platão, da filosofia rigorosa e sistemática, não
aboliram definitivamente o pensamento mítico” (Eliade, 2000: 101; aspas novamente do
autor).
A mitologia poderia assim ter sido superada, mas não suprimida, conclui. Em
função disso, e como nos confirma Emmanuel Carneiro Leão (2002), especialista no
assunto em terras brasileiras, o mito é também uma etiologia. Essa perspectiva poderia,
assim, acabar por marcar na contemporaneidade o vislumbre de um possível encontro
entre o pensamento filosófico moderno e uma espécie de nova infância, representada pelo
mito, uma vez que as reflexões que surgem em seu interior se identificam com traços do
período mítico. Carneiro Leão desenvolve o tema ao discutir um dos mitos que mais
resistiram ao tempo: o que versa sobre a Árvore do Conhecimento (cf. Carneiro Leão,
2002).
Mesmo em um campo como o das historiografias há a identificação de traços
mitológicos remanescentes. Do período de fundação da historiografia com gregos e
88
romanos às diferentes filosofias da história que apareceram com Agostinho, Gioachino da
Fiore, Vico, Hegel e Marx, passando pela busca de construção do “homem perfeito” e
exemplar em sua vida cívica e moral, com Tito Lívio e Plutarco, a anamnesis
historiográfica “prolonga, embora em outro plano, a valorização religiosa da memória e
da recordação. Não se trata mais de mitos nem de exercícios religiosos. Mas subsiste um
elemento comum: a importância da rememoração exata e total do passado. Rememoração
dos eventos míticos, nas sociedades tradicionais; rememoração de tudo o que se passou
no Tempo histórico, no Ocidente moderno” (Eliade, 2000: 122; grifo do autor).
Além de terem funcionado como elemento capital na influência que exerceram
sobre nascentes ciências como a filosofia e a historiografia, as narrativas mitológicas
também impregnaram o espaço da poesia épica, da tragédia e da comédia e mesmo das
artes plásticas. Amparadas na força da escrita, atravessaram ainda os séculos e chegaram
a nós. A necessidade da vivência propiciada pelas narrativas que derivaram da
experiência mítica é tão fundamental que encontra, em época mais recente, sua
continuação na fruição do romance e, como afirma Mircea Eliade, “O que deve ser
salientado é que a prosa narrativa especialmente o romance, tomou, nas sociedades
modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades
tradicionais e populares” (Eliade, 2000: 163). As características que assinalariam essa
homologia seriam, segundo o autor, a fuga do tempo histórico e pessoal e o lançar-se em
um tempo fabuloso, trans-histórico, embora com o recurso de práticas profanas e
dessacralizadas distintas assim das narrações míticas.
Para passar a uma avaliação da presença de um pensamento mítico nas sociedades
modernas deve-se, no entanto, recorrer aos estudiosos que dedicaram maior atenção ao
89
tema: Umberto Eco (2000) e Roland Barthes (2003). As abordagens são muito distintas,
já que Barthes está decidido a proceder a uma crítica escancarada às práticas ideológicas
burguesas, enquanto Eco, ainda que sem deixar de lado esse aspecto, se detém com maior
ênfase e cuidado no aparecimento de sinais míticos em uma sociedade movida pelo
aparato dos meios de comunicação de massa e de uma indústria da cultura, identificando,
por parte dos críticos, posições apocalípticas ou integradas com relação a esse quadro.
De início, Eco se preocupa em trabalhar uma definição para a mitificação e chega
à caracterização de sua marca como a daquela experiência de “simbolização incônscia”
que produz a “identificação do objeto com uma soma de finalidades nem sempre
racionalizáveis” (Eco, 2000: 239). Prossegue acrescentando que se trata de uma
“projeção na imagem [do objeto da mitificação] de tendências, aspirações e temores
particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda uma época
histórica” (Eco, 2000: 239). Se vivemos um período de desmitificação, entendido como
um momento de enfraquecimento do plano sagrado, devemos reconhecer também e ao
mesmo tempo uma espécie de transferência dessas manifestações para outras práticas de
nossas vivências pessoais.
Para Eco, confirmando as ponderações de Eliade, é possível se perceber nas
narrativas oferecidas por uma sociedade moderna e dominada pelos meios de
comunicação de massa semelhanças com as narrativas do período mitológico:
Numa sociedade de massa, na época de civilização industrial, observamos, de fato, um
processo de mitificação afim com o das sociedades primitivas, mas que freqüentemente
procede, de início, segundo a mecânica mitopoiética posta em prática pelo poeta moderno.
Isto é, trata-se da identificação privada e subjetiva, na origem, entre um objeto, ou uma
imagem, e uma soma de finalidades, ora cônscias ora incôscias, de maneira a realizar-se uma
unidade entre imagens e aspirações (e que tem muito da unidade mágica na qual o primitivo
baseava sua operação mitopoiètica). (Eco, 2000: 242)
90
Segundo o professor de semiótica, um dos aspectos a ser ressaltado é o da
imutabilidade das narrativas míticas que contrastam com a dinâmica do padrão narrativo
que surge com a civilização do romance. Enquanto a narrativa do herói mitológico, assim
como as muitas narrativas sagradas de um período histórico posterior (Eco menciona o
período da primeira cristandade, da cristandade medieval e mesmo do Catolicismo
contra-reformista), já é conhecida do seu fruidor e revisita uma sucessão de eventos
sabidos, o romance incursiona por terreno novo.
A tradição romântica, e mesmo se considerarmos que essa tradição aflora antes do
Romantismo, nos apresenta “uma narrativa em que o interesse principal do leitor é
deslocado para a imprevisibilidade do que acontecerá, e portanto, para a invenção do
enredo, que passa para um primeiro plano. O acontecimento não ocorreu antes da
narrativa: ocorre enquanto se narra, e, convencionalmente, o próprio autor não sabe o que
sucederá” (Eco, 2000: 249: grifos do autor).
Essa imprevisibilidade vai ser por sinal um dos expedientes que distinguirão e
caracterizarão profundamente o feuilleton oitocentista francês. Outro ponto a salientar é
o da minoração do grau mítico do herói, que na maioria dos casos passa a encarnar o
cidadão comum. Nas palavras de Eco:
A personagem do mito encarna uma lei, uma exigência universal, e deve numa certa
medida, ser, portanto, previsível, não pode nos reservar surpresas; a personagem do romance,
pelo contrário, quer ser gente como todos nós, e o que lhe poderá acontecer é tão imprevisível
quanto o que nos poderia acontecer. Assim, a personagem assumirá o que chamaremos de
uma “personalidade estética”, espécie de co-participabilidade, uma capacidade de tornar-se
termo de referência para comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos nós,
mas não assume a universalidade própria do mito, não se torna hieróglifo, o emblema de uma
realidade sobrenatural, que é a universalização de um acontecimento particular. Tanto isso é
verdade que a estética do romance deverá reverdecer, para essa personagem, uma velha
categoria, de cuja existência nos damos conta justamente quando a arte abandona o território
do mito: e é o “típico”. (Eco, 2000: 250; grifo e aspas do autor)
91
O exemplo que Umberto Eco vai escolher para ilustrar suas reflexões é o
representado pelas histórias em quadrinhos que versam sobre as aventuras do SuperHomem. A escolha do Super-Homem com sua dupla personalidade, de pacato contador
americano e de super-herói, funciona perfeitamente para a exemplificação pretendida.
Para mim também interessará essa construção do arquétipo, mais do que as questões
bastante curiosas mencionadas pelo autor ao lembrar as dificuldades enfrentadas pelos
roteiristas que, no caso do Super-Homem, devem lidar com um personagem que não dá
um passo sequer para a morte26.
A menção ao romance policial vem mais à mão neste momento, com os tópicos
que se repetem fixamente e por um outro elemento muito peculiar para o que irei
considerar dentro em pouco em nossa análise: o papel desempenhado pela redundância.
É no momento em que contrasta os quadrinhos do Super-Homem com os
quadrinhos dos Peanuts de Charles M. Schulz, que Umberto Eco procede a sua crítica dos
valores difundidos por cada uma dessas criações no ambiente dos mass media. Se o
Super-Homem opera a partir de uma pedagogia que reforça os mitos e os valores que
prevalecem na sociedade, os personagens de Schulz surgem na sutileza das linhas desse
artista do desenho para espelhar a nossa condição humanamente cômica.
Extremamente polêmica será, no entanto, a proposta de Barthes (2003) que quer
reconhecer no mito uma semiologia. É o que a parte teórica, a segunda parte de seu livro,
nos propõe. Trata-se de uma investida intelectual tão problemática quanto a que o
cineasta Pier Paolo Pasolini (2005; certamente influenciado pelo semiólogo francês)
tentou fazer ao se esforçar por apresentar o futebol como um sistema elaborado de signos.
26
Chama a atenção o fato de Umberto Eco não comentar que o mesmo acontece com os Peanuts de Charles M. Schluz,
dos quais ele fala a seguir.
92
O livro de Barthes passeia pelas mitologias do cotidiano, do casamento à capa da revista
Paris Match, do tour de france ao cérebro de Einstein, e nos mostra como os valores que
aí aparecem são o reflexo de uma sociedade burguesa, de como ela se representa em sua
posição de classe hegemônica, e como essa classe se expressa semiologicamente.
Ainda que as observações de Barthes no campo teórico sejam problemáticas, e o
próprio Umberto Eco, em estudo que comentaremos em seguida (seção 3.3), destaque
como o ensaísta francês confundiria em seus estudos semiológicos códigos como
processos de semiose infinita e com o que viria a ser chamado de intertextualidade, elas
mostram a presença de traços mitológicos no imaginário de uma sociedade burguesa.
3. 2 – Os Limites entre Discurso Factual e Ficcional
Cabe desenvolver nessa seção um tópico no qual nos iniciamos há pouco ainda
que sem confrontá-lo diretamente: os limites entre o discurso factual e o ficcional. Podese começar o debate servindo-se de um autor cuja obra tem causado embaraços grandes
quanto à discussão sobre os limites entre o discurso histórico, verídico, e o discurso de
viés literário: Euclides da Cunha. Depois que “dormiu desconhecido para no dia seguinte
acordar famoso”, Euclides da Cunha, que nunca poupou esforços para alcançar projeção
no cenário intelectual brasileiro (da luta por sua candidatura para ingresso na Academia
Brasileira de Letras ao esforço por seu concurso à vaga da Cátedra de Lógica do Colégio
Pedro II), ficaria surpreso em ver a repercussão que sua trajetória intelectual causou e
ainda causa em todos os horizontes letrados no Brasil e no Exterior.
93
Estudiosos embarcam em ônibus e carros e rumam para São José do Rio Pardo, no
interior de São Paulo, pesquisadores de renome vencem os céus, em aviões de carreira,
em direção a Austin, no Texas, todos com o objetivo de discutir a obra do escritor natural
de Cantagalo, Rio de Janeiro. Houve até o caso trágico de um pesquisador apontado pela
crítica como dos mais talentosos em assuntos euclidianos, Roberto Ventura27, que morreu
ao colidir com seu veículo no retorno de um dos encontros, em São José do Rio Pardo.
A discussão central sobre o texto euclidiano que me interessa explorar é aquela
que trata dos limites entre, de um lado, o factual-histórico, e de outro, o ficcional. Com
relação a Euclides, há o grupo que aposta direta ou indiretamente no caráter ficcional de
sua obra máxima, Os sertões. Ele congregou no passado nomes de peso no meio
acadêmico como o de Afrânio Coutinho e, mais recentemente, teve uma adesão ainda que
não de todo explícita de estudiosos como o historiador Nicolau Sevcenko.
Com bases em estudos que eram desenvolvidos na década de 1950 por pessoas
como Eugênio Gomes e que traziam à cena documentos que comprometiam a precisão
factual do texto euclidiano, Afrânio Coutinho não tinha receio em afirmar que eles
colocavam por terra a face histórica do trabalho do escritor cantagalense:
E confirmam outrossim, a tese aqui aventada pelo autor desta nota, de que a
organização de Euclides era menos de um historiador e homem de ciência do que um
ficcionista; e de que Os sertões eram antes uma obra de ficção do que um ensaio históricosociológico. À luz de tais estudos parece indiscutível que Os sertões são um poema épico em
prosa, a ser classificado na linha da Ilíada e da Canção de Rolando. (Coutinho, 1995: 65)
Embora não confronte diretamente o assunto, Sevcenko (1988) apresenta seu
estudo sobre a obra de Euclides da Cunha e Lima Barreto como voltada para a
investigação da atuação desses autores no campo literário. Na introdução do livro chega
27
Ver texto póstumo com trecho das pesquisas de Roberto Ventura sobre Euclides da Cunha. Aparece em edição
luxuosa dos Cadernos de Literatura editados pelo Instituto Moreira Salles. Checar em Ventura, Roberto. “À frente da
história”. In: Galvão, Walnice Nogueira e Ventura, Roberto (consultores). Cadernos de literatura brasileira – Euclides da
Cunha. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2002, p.14-48.
94
mesmo a recorrer à conhecida distinção de Aristóteles para diferençar o trabalho do
historiador e o do poeta e em seguida concluir: “Ocupa-se portanto o historiador da
realidade, enquanto que o escritor é atraído pela possibilidade. Eis aí, pois, uma diferença
crucial, a ser devidamente considerada pelo historiador que se serve do material literário”
(Sevcenko, 1998: 21). Ou seja, Sevcenko já assume de saída os textos de Euclides da
Cunha e de Lima Barreto como literários em oposição ao texto do historiador.
Mais adiante em seu trabalho ele cairia em contradição aparente ao afirmar em
relação à escrita de Euclides: “A transparência de seus textos com relação à realidade dos
fatos que animam a ação social do período é quase que total. Esse realismo
premeditadamente intoxicado de historicidade e presente é uma das características mais
típicas de sua literatura e o afasta em proporção visível de seus confrades de pena,
europeus e nacionais” (Sevcenko, 1988: 131). Não se está aqui querendo apontar falhas
na tese excepcional que Nicolau Sevcenko defendeu na USP. Pelo contrário, aceita-se
com extrema naturalidade essa ambigüidade de seu trabalho. Mesmo porque poderia terse aqui um autor trabalhando como um historiador-literato como indica a apreciação de
Luiz Costa Lima, que comento a seguir.
Luiz Costa Lima está entre os que veementemente não aceitam o texto euclidiano
como ficcional. Um repórter do Jornal Folha de São Paulo flagrou Costa Lima em uma
inusitada troca de idéias sobre o tema com a estudiosa Sara Castro-Klarén, do
departamento de estudos latino-americanos da Universidade Johns Hopkins nos Estados
Unidos, em um simpósio internacional que comemorava o centenário do lançamento da
obra euclidiana de 1902. Em sua reportagem, no caderno Mais!, de 26 de outubro de
2003, à página 14, conta o repórter Adriano Schwartz:
95
Depois de se cumprimentarem, ela disse que havia relido recentemente “Os Sertões”
e ficara novamente espantada com a qualidade narrativa do engenheiro e que julgava muito
curioso o fato de se considerar um historiador. O brasileiro retrucou: “Mas ele é um
historiador”. “É claro que não é”, disse ela; “é claro que é”, disse ele; “não, não é” …
(Schwartz, 2003)
Leopoldo M. Bernucci, diretor do departamento de Português e Espanhol da
Universidade de Austin, acompanha o ponto de vista de Costa Lima (longa e
minuciosamente orquestrado pelo ensaísta maranhense em capítulo de seu livro O
controle do imaginário - razão e imaginação nos tempos modernos, de 1989), embora
com restrições à maneira como enceta sua argumentação. Para Bernucci (1995), ao se
servir de entrevistas, cartas e pronunciamentos críticos de Euclides da Cunha e não da
própria narrativa de Os sertões, para justificar seu posicionamento sobre o tema, Costa
Lima acaba tornando fraca sua argumentação.
Para justificar sua perspectiva, Bernucci se vale de qualquer jeito da observação
categórica de Luiz Costa Lima que afirma sem rodeios: “Discurso da realidade, Os
sertões é dominantemente uma obra de sociologia” (Costa Lima, 1989: 239). Costa Lima
afirma, entretanto, que isso não significa que “o especialista em literatura não tenha o que
fazer com Os sertões” (Costa Lima, 1989: 239). E continua:
Todo o contrário: além de permitir o exercício de se pensar como a sua
mimesis dominada pode inverter sua posição – exercício recentemente cumprido por
Vargas Llosa, em La Guerra del fin del mundo (1981) –, possibilita ser visto como a
conseqüência mais radical de uma direção que vimos começar a se mover nas
primeiras décadas do século XIX. Apenas esta fecundidade parece comprometida se
insistimos em chamá-lo obra literária ou até ficcional sem nos propormos a indagar o
que de fato dizemos quando assim dizemos. (Costa Lima, 1989: 239)
Para explorar Os sertões como obra científica e literária, Costa Lima trabalharia,
anos depois, em Terra ignota: a construção de Os sertões (1997), uma refinada
elaboração conceitual que o levaria a passear por uma cena esboçada com “operadores
científicos” e uma subcena congregando imagens que funcionam como uma “máquina da
96
mimesis”. Euclides deixaria a literatura figurar em Os sertões, mas como “ornato”, e um
“ornato que não se infiltrasse no quadro principal” (Costa Lima, 1997: 138). Caberia,
assim, a uma parte central de Os sertões ser trabalhada por uma descrição científica,
enquanto os dados periféricos, ilustrativos, se inclinariam especialmente a um rendimento
propriamente de ordem literária.
De acordo com o autor de A imitação dos sentidos (Bernucci, 1995), o que em
geral se reconhece naqueles que encaram Os sertões como exercício de ficção é a
confusão entre os conceitos de literariedade e de ficcionalidade, que são tópicos díspares
e não necessariamente intercambiáveis. De início, Bernucci (2001) nos aponta a
separação entre ficção e história.
Bernucci (2001) lembra que os estudos das poéticas antigas aprimoraram os
conceitos que separam verossimilhança e verdade, associando o primeiro à ficção
(tragédia, comédia, lírica e épica), por sua preocupação com a aparência de verdade, e o
segundo à história, por seu interesse pela veracidade factual. Algumas marcas textuais
assinalariam um apego à ficção, enquanto outras marcariam laços mais estreitos com a
história. E finaliza: “Com as várias leituras, acumuladas no decorrer do tempo, cria-se um
consenso sobre como se realizam as obras ficcionais e as historiográficas” (Bernucci,
2001: 43).
Esse consenso resulta, sob a perspectiva enviesada por Michel Foucault (2003), de
um embate nada cordial. O conhecimento, entendido como busca da verdade, é
conseqüência de uma guerra no entender do filósofo francês. Foucault fala da produção
da verdade no campo do conhecimento e do saber, mas seria possível estendê-la à
produção da verdade factual:
97
Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em
sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas dos políticos,
devemos compreender quais são as relações de luta e poder – na maneira como as coisas entre
si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer,
uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o
conhecimento. (Foucault, 2003: 23)
Algumas páginas depois, o filósofo francês conclui no final da primeira de uma
série de conferências que proferiu na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
no ano de 1973: “Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de
verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se
formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade” (Foucault, 2003:
27)
Sem discordar, portanto, de Bernucci, deve-se assinalar de forma explícita a
maneira como se formam os “consensos” de que o pesquisador fala. E o interesse tanto de
sua parte como da de Luiz Costa Lima em apresentar uma resposta definitiva para o
assunto é parte constitutiva desse quadro. Identifica-se, assim, um embate permanente
entre ficção e verdade, discurso literário e discurso científico-histórico, e as noções que
os movem. É um confronto que uma avaliação isenta apontaria como um jogo
permanente entre esses dois pólos.
A discussão sobre os limites entre ficção e realidade, leva ainda ao debate sobre o
que seja a verdade jornalística, outra área que também diz respeito à discussão do texto
rodrigueano e do autor de Os sertões. Nelson Rodrigues trabalhou como repórter e
cronista diário de eventos esportivos. Foi como correspondente do jornal O Estado de
São Paulo, por sua vez, que Euclides da Cunha chegou ao tópico de seu livro. Posso
então neste ponto me servir de quem se dedica, há várias décadas, à inquirição sobre o
98
que caracteriza o trabalho jornalístico no Brasil: Nilson Lage, professor da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Lage, no seu Ideologia e técnica da notícia (2001), e depois de discutir a verdade
científica e histórica (apoiado no mesmo Michel Foucault de A verdade e as formas
jurídicas, de que me servi há pouco), se deparou com a necessidade de delimitar o espaço
da verdade na práxis jornalística. E assim investiu sobre o tema:
Devemos falar, agora, não de um saber sobre (como os das ciências), mas de um
saber fazer dos jornalistas. No quadro das relações entre conhecimento e verdade, temos
aqui uma nova dimensão. Falaremos de uma verdade comprometida com uma prática,
confessadamente interessados em averiguar o que essa prática pode render para o
esclarecimento útil da relação entre os muitos conceitos de verdade. (2001: 148)
No subtópico intitulado “Notícia e aparências”, concluiria seu encaminhamento
sobre a questão:
Notícias são relatos de aparências codificadas (a) pelo código semiológico (ou
lingüístico), (b) pelas técnicas de nomeação, ordenação e seleção, (c) por um estilo.
Obedecidas essas três ordens de restrições ao elenco de possibilidades do enunciado, a
verdade se apresenta como conformidade do texto com o acontecimento aparente. Tal
conformidade, supostamente, qualifica o jornalista como correto, honesto; a inconformidade o
qualificaria como incorreto, desonesto. A obediência ao código e à técnica mede sua
competência e domínio da expressão. (2001: 148; grifo do autor)
Depois de destrinchar a técnica do fazer jornalístico em busca da verdade
noticiosa, Lage lembra que isso não pode ser tudo na experiência jornalística: “Daí outro
conceito de competência do jornalista: sua capacidade de refletir a realidade de maneira
mais justa (ou verdadeira) vencendo todas essas limitações através de domínio superior
da técnica e das convenções da língua” (Lage, 2001: 149).
Essas observações complementam o que o jornalista já havia comentado
anteriormente em seu trabalho. Falando mais do veículo do que do jornalista, ele
mencionara um ponto importante a ser considerado quando a discussão esbarra na
veracidade do texto jornalístico: a confiabilidade e o prestígio que os veículos adquirem
99
quando o receptor identifica justeza na transmissão da informação (Lage, 2001) – traços
que devem ser estendidos ao jornalista.
De novo, e como se deu na parte em que se tratou do mito, a verdade e a
veracidade factual são objeto de disputa. Se a delimitação do espaço entre o ficcional e o
real é problemática na discussão de uma obra como Os sertões, de Euclides da Cunha, ela
se torna ainda mais complexa ao nos confrontarmos com os escritos de Nelson
Rodrigues, pois trata-se de um autor que deliberadamente testa as crenças nos limites
entre essas duas construções narrativas sobre o cotidiano. Como foi observado no começo
desta Tese, Nelson trabalha sua prosa inserindo elementos do cotidiano em seus textos
ficcionais e dados ficcionais em suas narrativas não-ficcionais.
Mais do que o interesse em delimitar rigorosamente esses campos da vivência,
Nelson se mostra fascinado pelas possibilidades de questionamento que eles abrem para
uma reflexão sobre a nossa condição histórico-humana. É claro que para tanto, nosso
autor teve de inaugurar, servindo-se de sua prodigiosa verve, um campo específico para
sua atuação dentro dessa imprensa. Isso aconteceu desde seus primeiros textos e durante
toda a sua trajetória dentro do jornalismo brasileiro. Nelson foi abrindo espaço e não se
intimidando em escrever o que queria e como queria. Suas brigas, seus ditos espirituosos,
suas inumeráveis pilhérias, que questionam os que se apegam ao factual e às verdades
definitivas, são sinais desse enfretamento.
3.3 – O Paradoxo como Meio de Expressão
100
Após as considerações acima, pode-se avançar em um terceiro tópico de
postulações teóricas para a análise de nosso autor e proceder-se a uma aproximação de
um outro elemento que também é importante para distinguir e marcar os traços de sua
escrita. Trata-se da investida e exploração por parte do escritor de um pensamento que
descreveria como de matiz fundamentalmente paradoxal28. Em meu entender, a escolha
por privilegiar essa perspectiva, que se insinua de forma notável no autor, se vincula ao
fato de Nelson Rodrigues buscar com insistência deflagrar e trabalhar a polêmica em seus
escritos. Para polemizar é necessário inverter expectativas e afirmar o inesperado, e o
paradoxo é um recurso fundamental e imprescindível para isso.
Quem nos dá uma primeira abertura para o tema do paradoxo, de uma perspectiva
filosófica, é o francês Gilles Deleuze em sua obra A lógica do sentido (2000). Segundo
Deleuze: “O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido
único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades
fixas” (2000: 3). O filósofo prossegue mais adiante e no mesmo livro elaborando essas
suas postulações iniciais. “Os caracteres sistemáticos do bom senso são pois: a afirmação
de uma só direção; a determinação desta direção como indo do mais diferenciado ao
menos diferenciado, do singular ao regular, do notável ao ordinário”. Trabalhando de
forma distinta, o paradoxo “(...) segue outra direção oposta ao do bom senso e vai do
menos diferenciado ao mais diferenciado” (2000: 79). A força do paradoxo, nos diz o
28
Essa abertura para o tema é registrada por Magaldi. Comentando a primeira peça de Rodrigues, “A mulher sem
pecado”, nos diz esse que é um dos mais fundamentais analistas da obra rodrigueana: “Olégario emite paradoxos que se
tornarão a marca registrada do cronista e memorialista”. In: Magaldi, Sábato. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues.
São Paulo, Global Editora, 2004, p.14. Pode-se, no entanto, imaginar, como já foi feito em relação ao aspecto mítico e de
confronto entre o factual e o ficcional, que o próprio autor condiciona essa percepção de sua obra. No final da peça “Boca
de Ouro”, temos o seguinte diálogo entre um locutor e o repórter Caveirinha: “Locutor (que não pode abandonar a sua
subliteratura) -“Caveirinha”, o que é que você me diz do paradoxo cruel desse crime? Caveirinha – Por que paradoxo?
Locutor- Pelo seguinte: esse povo veio ver o “Boca de Ouro”, o célebre “Boca de Ouro”. Entra no necrotério e encontra,
em cima da mesa, um cadáver desdentado! Caveirinha (com um sorriso de espanto) -Desdentado? Locutor (com sua
fixação de pobre de espírito)- Sem um mísero dente! Não é um paradoxo? É um paradoxo! Um homem existe, um
homem vive por causa de uma dentadura de ouro. Matam esse homem e ainda levam, ainda roubam a dentadura da
vítima! (quase agressivo) Paradoxo, “Caveirinha”!”. In: Rodrigues, 1985, p.338; grifos do original. O tema, como veremos
adiante, é explorado por Armory, 2002.
101
filósofo, “não consiste absolutamente em seguir a outra direção, mas em mostrar que o
sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direção ao mesmo
tempo” (2000: 78). Deleuze discute com maior atenção a presença de elementos
paradoxais nas obras de Lewis Carroll e de Antonin Artaud, embora trabalhe suas
considerações se servindo de outros escritores também.
Para completar e projetar o foco das observações do filósofo francês para o
âmbito mais geral da análise literária, deve-se recorrer ao professor Eduardo Portella. Em
uma de suas preleções no curso da cadeira de Teoria Literária que teve como título
“Ascenção e queda do intelectual na modernidade” (ministrada como parte do currículo
do programa de Pós-Gradução da Universidade Federal do Rio de Janeiro), o professor
emérito desta instituição discorreu sobre o que marcaria uma prática literária que
inaugura e passa a tomar o paradoxo como um recurso estilístico recorrente.
Segundo o ensaísta, e seguindo anotações feitas em suas aulas que ocorriam no
espaço muito especial do gabinete da presidência da Biblioteca Nacional, no amplo
espectro do campo literário, os aspectos mais salientes de semelhante intervenção nos
levam à percepção da instauração de rupturas, onde a tradição literária buscava a síntese,
da procura de uma lógica do aleatório, onde se identificava o empenho por uma lógica do
necessário, e a tentativa de imputação do choque e da alteridade, onde a arte se debatia
por obter harmonia e conformidade.
Portella, que por uma feliz coincidência para o presente estudo foi alçado por
Nelson à condição de persona ficcional em Asfalto selvagem – engraçadinha seus
amores e seus pecados, julga que essas qualidades se evidenciam em obras de literatos de
três séculos atrás, principalmente na escrita de autores como Victor Hugo, Edgar Allan
102
Poe e Charles Baudelaire, que levaram os leitores à convivência com anti-heróis, com o
grotesco e com o kitsch29. As observações do membro da Academia Brasileira de Letras,
que em meu entender são evidentes também dentro da produção literária de Nelson
Rodrigues, podem ser enriquecidas pelas conhecidas ponderações sobre a ruptura de
gêneros comentadas por Haroldo de Campos (1977). Na avaliação de Haroldo de Campos
sobre a prática poética, a passagem do Classicismo ao Romantismo marcaria o fim da
preocupação com o emprego de palavras nobres, com as restrições de ordem formal e a
idéia fixa do gênero puro.
Superada a rígida tipologia intemporal, com propensões absolutistas e prescritivas, a
teoria dos gêneros passa assim, na poética moderna, a construir um instrumento operacional,
descritivo, dotado de relatividade histórica, e que não tem por escopo impor limites às livres
manifestações da produção textual em suas inovações e variantes combinatórias. (1977: 11-2)
Com o advento da difusão de uma imprensa em larga escala, Haroldo de Campos
fala de um hibridismo de gêneros e de uma mídia que interfere nesse quadro:
Um dos pontos cruciais no processo de dissolução da pureza de gêneros e de seu
exclusivismo lingüístico foi a incorporação, à poesia, de elementos da linguagem prosaica e
conversacional, não apenas no campo do léxico, frisado em especial por Mukarovsky, mas
também no que diz respeito aos giros sintáticos. (1977: 14)
Assim assiste-se à canonização de gêneros inferiores (“infraliterários”), “gêneros
híbridos” como “as memórias, as cartas, reportagens, folhetins, aos produtos da cultura
popular que vivem uma existência precária na periferia da literatura, ao jornalismo, ao
“vaudeville”, à canção gitana e à história policial, para explicar através deles as
inovações de autores como Puchkin, Niekrássov, Dostoiévski e Blok” (Id. Ibidem: 15).
Deve-se chamar a atenção para o fato de que essas propostas de exercício
discursivo surgem antes do projeto de uma arte moderna e atravessam impávidas a
movimentação Modernista. São retomadas ainda, em alguns de seus traços, pela corrente
29
Para uma reflexão sobre kitsch e cultura de massa, ver “A estrutura do mau gosto”. In: Eco, Umberto, 2000, p.69-128.
103
pós-moderna. Se no modernismo reconhecemos a investida nas narrativas de jaez
totalizante no desejo de instaurar um exercício discursivo que ambicionava elevar a arte
ao patamar do sublime, no Pós-Modernismo é possível reconhecer, pelo contrário, a
valorização das narrativas fragmentadas, avessas a qualquer fechamento e partidárias da
perturbação de uma plenitude estética.
Há ainda, como salientou Haroldo de Campo, um último aspecto: a quebra com a
camisa de força que se traduzia na delimitação rigorosa e estanque dos gêneros. Os
praticantes de uma estética paradoxal reagem a essa situação trabalhando seus escritos em
investidas que misturam os gêneros - um ataque evidente, portanto, à tirania
demarcatória.
A opção por recorrer ao grotesco e ao kitsch é por demais patente na obra de
Nelson Rodrigues, ainda que essa mesma obra não deixe de externar outros sinais
paradoxais evidentes. São eles que garantem, por exemplo, o elemento inesperado para o
desfecho de inúmeras de suas narrativas. A inversão de expectativas está presente,
também, em um número incontável de passagens e de frases lapidares que o escritor
escolhia para rechear suas crônicas. Nelas, Nelson Rodrigues criava narrativas curtas e
com afirmações que abusavam do paradoxo.
Contra-sensos surgiriam também nas
passagens das crônicas escritas pelo escritor e em toda sua criação de modo difuso.
A fascinação e interesse do escritor Nelson Rodrigues pelo paradoxo se expressa
em outras peculiaridades da tessitura mais aparente de seu texto. São elementos que
reforçam a intensidade do pensamento paradoxal. Esta é uma discussão complementar à
inaugurada acima e para se chegar a ela deve-se recorrer a outros teóricos. Comecemos
por Paul Ricoeur e pelo exaustivo arrazoado que faz sobre a metáfora no livro intitulado
104
A metáfora viva (2000), em que procede a uma revisão extensa sobre o conceito dessa
figura de linguagem.
A definição inicial de Aristóteles na Arte poética que estabelece as quatro
categorizações clássicas para a metáfora como: “a transposição do nome de uma coisa
para outra” (transposição esta que se daria “do gênero para a espécie, ou da espécie para
o gênero, ou de uma espécie para outra, [ou] por via da analogia”; Aristóteles, s∕d), vai ser
acompanhada e confrontada em seus desdobramentos em cotejamento com os estudos
retóricos europeus de Pierre Fontanier, no século XIX, e, já no século XX, com as
investigações semânticas e semióticas de Émile Benveniste e Roman Jakobson, com as
considerações de I. A. Richards, Max Black, Monroe Beardsley, Stephen Ullman e
Nelson Goodman e com a pragmática de Austin e Searle.
Depois da análise inicial que estabelece o tropo metafórico como um desvio,
Ricouer vai se perguntar se podemos avançar deixando de tomar a metáfora como uma
“denominação desviante” para encará-la como uma “predicação impertinente”, passando
da semântica da palavra para a semântica da frase. De uma metáfora circunscrita à
palavra, chegaríamos desse modo a vê-la relacionada com a oração e, em seguida, um
novo passo poderia ser dado em direção a sua inclusão na dimensão maior do discurso.
Por fim, e como derradeiro lance, Ricoeur nos proporia estendê-la ainda à origem
do pensamento por colocar em movimento o raciocínio analógico, o que a identificaria
com o começo da especulação teológico-filosófica. Ao chegar a esse ponto, no entanto, o
autor francês acha que essa simplificação não é profícua e opta pela afirmação de uma
“descontinuidade entre discurso especulativo e discurso poético” (2000: 392). E termina
citando Heidegger para reforçar seu ponto de vista: “Para findar, gostaria de conservar,
105
do último Heidegger, apenas esta admirável declaração: “Entre ambos, pensar e poetar,
impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e
por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois
“moram nas montanhas mais separadas””30 (2000: 481).
De qualquer jeito, Ricouer nos diz que recorremos às metáforas com maior
insistência em tarefas prosaicas do dia-a-dia do que imaginamos. Não nos damos conta
delas por se tratarem de metáforas mortas. As metáforas vivas, que por sinal proliferam
nos escritos de Nelson Rodrigues, se destacam por sua novidade e por marcarem um
“desvio” em relação às metáforas já saturadas pelo uso corriqueiro. A figura de
linguagem que corresponde ao paradoxo é conhecida como oxímoro. Eles evidentemente
estão presentes nas obras de Nelson Rodrigues. Na obra rodrigueana aparecem tanto
circunscritos à palavra como neste trecho: “Disse não sei quem que há santos canalhas”
(1997: 34; grifo nosso), como se manifestam no âmbito da oração, como na seguinte
passagem: “(...) a solidão nasce da convivência humana” (2000: 60; grifo nosso mais uma
vez). Esses exemplos nos levam a pensar se o choque provocado pelas proposições desses
enunciados não se enquadrariam no “desvio” mencionado por Ricoeur e apontado como
uma característica da metáfora em sua análise. Poder-se-ia, assim, entender que esses
sinais paradoxais, presentes nestes casos, fariam com que se aproxime o oxímoro da
metáfora como mais um caso onde se tem o primeiro como uma espécie, da qual a
segunda é o gênero.
Desse modo, temos na tessitura mais aparente do texto de Nelson Rodrigues uma
proliferação de oxímoros e metáforas vivas que revelam, em nosso entender, o gosto do
autor pela exuberância discursiva desses recursos de linguagem, um gosto muito próximo
30
Ricouer se refere ao Heidegger de Que é isto – a filosofia? (o tradutor de Ricoeur cita Heidegger a partir da tradução
de Ernildo Stein. São Paulo, Nova Cultural, 4ª. edição, 1989, p.23. Coleção Os pensadores).
106
daquele que o autor parece ter pelo paradoxo. É com extrema criatividade que o cronista
recria e torna vivas algumas metáforas desgastadas pelo tempo. Além de proliferarem
essas e outras metáforas, ainda aparecem hipérboles e símiles em profusão no texto do
autor.
A incursão de Umberto Eco (1986) pelo tema da metáfora é bem distinta da de
Ricouer - e feita na verdade anos depois. Ela está relacionada ao projeto do teórico
italiano de investigação sobre os códigos semióticos de que nos servimos diariamente.
Desde A estrutura ausente (1976), Eco começou a elaboração de seu grande estudo
semiológico na incansável busca pelo reconhecimento sobre como se organizariam os
códigos comunicacionais. Os resultados mais refinados desses esforços aparecem em
uma obra que revê etapas anteriores e que ganhou o título de Tratado geral de semiótica
(2000). Semiotics and the Philosophy of Language (1986) ainda pisa o terreno da
semiologia, mas de uma perspectiva diversa: a partir de uma abordagem focada no
aspecto cognitivo. O capítulo que trata da metáfora tem uma posição central em seu
estudo.
Eco repisa o que já disse anteriormente para traçar a trajetória do tropo metafórico
desde sua origem em Aristóteles. Desinteressado, ao contrário de Ricouer, em debater a
dimensão filosófico-teológica, o teórico italiano tem curiosidade pela metáfora como uma
ferramenta de conhecimento e, citando o historiador Venerável Bede, do século VIII, diz
mesmo que salientar esse tropo é “falar da atividade retórica em toda sua complexidade”.
O capítulo dedicado à metáfora retoma os anteriores onde o autor havia discutido o signo
e feito a distinção entre a cognição como um processo que se parece mais com o
conhecimento adquirido em uma enciclopédia (com sua “cadeia polidimesional de
107
propriedades”) do que em um dicionário (onde o conhecimento fica restrito à definição
sinonímica). Preparam ainda terreno para as discussões que se seguirão sobre símbolo,
código, a categoria de isótopo e considerações esclarecedoras sobre as relações entre
espelhos e significação.
O grande avanço trazido pelo estudo de Eco é o de destrinchar a razão pela qual as
caracterizações aristotélicas da metáfora têm causado tantos embaraços. E para chegar-se
a tal compreensão é lembrado que três entre os quatro exemplos de metáfora
apresentados por Aristóteles, os que tratam da transferência de sentido de gênero para
espécie, de espécie para gênero e de espécie para espécie (que operam, portanto, em
relação hiperonímica, hiponímica e de identidade, próprias a um dicionário), não
mostram mais do que como a metáfora é feita. Ao passo que a transferência por analogia,
o quarto caso, com o exemplo que aproxima e alterna a taça de Dionísio com o escudo de
Ares, sinaliza o que a metáfora diz e como ela nos ajuda a reconhecer nossa experiência
cognitiva (uma compreensão não mais dicionarizada, mas enciclopédica).
Deve-se ainda destacar do estudo de Eco alguns aspectos. O primeiro deles é o de
chamar a atenção para o fato de que o grande escândalo da metáfora é o de se apresentar
como uma manifestação do espírito que aparece em todos os sistemas semióticos. E isso
é particularmente fundamental para minha pesquisa, pois, como assinalou Pompeu de
Souza, Nelson Rodrigues é um escritor que parece antever e visualizar o que escreve (o
que aproxima seu teatro - e podemos ampliar tal perspectiva para outros de seus escritos de outras artes). Com relação à aplicação à análise dos escritos rodrigueanos, há ainda a
percepção da evocação por parte do tropo aristotélico de “uma experiência visual, aural,
táctil, olfativa”. Ao mostrar que a prática metafórica apresenta elementos que testam os
108
limites entre os vários códigos semióticos, Eco nos coloca diante desse “híbrido visual e
conceitual”, que aparece ainda nas imagens oníricas, que proporciona as piadas e que se
insinua como um “convite à intertextualidade” (elementos também presentes na escrita
rodrigueana). Com isso, a metáfora diz algo mais, que escapa à verdade literal. As
similaridades das comparações metafóricas exibem ao mesmo tempo dissimilitudes, a
claridade e o enigma, em uma condensação (uma apropriação por parte do autor do termo
freudiano) de opostos (os dois sentidos mencionados por Deleuze como propriedade do
paradoxo).
4 — Narrativas Rodrigueanas
Toda literatura pessimista encontra uma resistência fantástica;
leitores e críticos não gostam disso.
Sentem vagamente que arte e pessimismo se contradizem.
Otto Maria Carpeaux
They can´t hurt you
Their style will never desert you
Because they are all safely dead
109
I wish I´d gone down
Gone down with them
To where mother nature makes their bed
Morrissey
A alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
Gilberto Gil e Torquato Neto
Há uma tendência de se apontar a obra ficcional rodrigueana como com
um traço acentuadamente pessimista, enquanto a obra do cronista apresentaria de maneira
diametralmente oposta um tom otimista. Teríamos desse modo os dois elementos
antagônicos de sua prática escritural. Ainda que a recorrência a passagens trágicas e a
desfechos violentos acompanhe a grande maioria de suas peças e de seus contos, onde o
dado desventuroso, funesto, terrível, predomina, essa leitura poderia nos encaminhar para
uma polarização que acaba comprometendo o reconhecimento de nuanças importantes de
sua obra.
Assim, várias de suas peças e contos apresentam momentos farsescos e satíricos,
bem como muitas de suas crônicas nos colocam frente a frente com passagens de extrema
tragicidade. Para tentar delinear com mais exatidão cada um dos campos incursionados
por sua escrita, minha análise irá examinar detidamente as diferentes e diversificadas
tintas empregadas pelo autor, e relacioná-las a cada um dos pontos ressaltados nas seções
dedicadas às ponderações de ordem teórica. Para efeito de análise, as narrativas
rodrigueanas serão submetidas a um exame que incluirá o estudo da linguagem no que
diz respeito às estruturas lexicais, frasais e oracionais dos textos do dramaturgo, repórter,
contista, folhetinista e cronista e que ascenderá ao âmbito mais
geral do discurso
manifesto em seu teatro e seus outros escritos. Observarei as divisões dos diferentes
110
gêneros em que incursionou como literato e jornalista. A opção por tal ordenação se deve
ao fato de se querer manter a sistematização adotada desde o começo de meu estudo.
4.1 – Narrativas Dramatúrgicas
Seguindo as avaliações circunspectas de um crítico criterioso e dedicado como
Harold Bloom (1998), Shakespeare escreveu trinta e oito peças, embora Hamlet, com
suas quase quatro mil linhas de texto, possa corresponder a três dramas ou mais. Nelson
Rodrigues nos legou apenas dezessete títulos dramatúrgicos, alguns deles, como Valsa
no. 6 e A serpente, extremamente curtos. Sua vontade era, entretanto, ter feito um número
maior de dramas. Em depoimento particular, registrado por sua irmã Stella Rodrigues, o
autor se lamenta: “Meu coração, eu preciso sobreviver e as crônicas esportivas, as
confissões, é que me dão dinheiro. Se eu pudesse ganhar bastante para só escrever peças
e romances. Minhas crônicas vão por esse Brasil afora e me dão o pão” (Rodrigues, 1986:
102). Se o bardo inglês, nascido em Stratford Upon-Avon e cuja vida dramatúrgica se
desenvolveu toda em Londres, é o inventor do que é universalmente humano, o bardo
brasileiro, nascido em Recife e cuja vida dramatúrgica se desenvolveu toda no Rio de
Janeiro, é o inventor do homem universalmente carioca.
A conhecida divisão proposta por Magaldi (1981), que aponta as obras
dramatúrgicas rodrigueanas como identificadas e agrupadas dependendo de suas
características mais marcantes como peças míticas, psicológicas e tragédias cariocas, é,
como o próprio crítico reconhece, uma abstração didática. O que há na verdade é a
preponderância de um desses dados. Vou recorrer a essa divisão pelo mesmo aspecto
111
didático e porque assim poderei confirmar a pertinência de semelhante abordagem, bem
como checar suas limitações.
4.1.1 – Peças Míticas
Vários são os fatores que contribuem para que se enfatize em uma obra uma
dimensão mítica. O mero convite à fruição de uma narrativa que privilegie o espaço de
uma vivência lúdica, semelhante ao proposto pelos romances nas sociedades modernas, já
seria, como assinalado na seção teórica, um sinal que dotaria uma experiência de
prerrogativas míticas. Outros aspectos, como, por exemplo, o interesse em retratar e
trabalhar elementos que pouco tangenciam ambientes que distinguem nossa experiência
cotidiana, assinalam a opção por enfatizar essa tendência. Em uma narrativa, são os
nomes de lugares, de pessoas e a proximidade de fatos historicamente situados que fixam
indícios de uma temporalidade demarcada. O escritor que procura eliminar ou amenizar
as marcas que distinguem uma ordem de representação que assinale um lugar, uma
época, um momento histórico específico, está propondo ao leitor o campo mítico como
alternativa.
Dentro da categorização de Magaldi, as peças míticas rodrigueanas são as que
apresentam um maior grau de coesão e parecem mesmo marcar um momento particular
na trajetória do dramaturgo. Foram todas escritas em uma fase específica e curta do
percurso teatral do autor, circunscrita à segunda metade da década de 1940: Álbum de
família, a primeira delas, é de 1945, e Dorotéia, a última, é de 1949, ficando Anjo negro,
de 1946, e Senhora dos afogados, de 1947, entre essas duas obras. Nesta época, além das
112
peças, Nelson escrevia apenas seus folhetins para os jornais e revistas de Assis
Chateaubriand.
O dramaturgo trata de ambientar suas peças de traço mais acentuadamente mítico
em espaços aistóricos. Álbum de família se passa em uma fazenda situada em um lugar
inexistente fisicamente: S. José de Golgonhas. Há indicações, durante o correr da ação,
de uma Três Corações próxima, e, assim, nos acharíamos eventualmente no estado
brasileiro de Minas Gerais. O nome, no entanto, é fictício e mistura a Gólgota, de Cristo,
com a Congonhas do Campo, do Aleijadinho, segundo sugestão de Sábato Magaldi.
Em Anjo negro não há em momento algum a designação clara sobre onde se situa
a casa de Ismael e Virgínia, palco de toda a ação dramática. É Um lugar “sem nenhum
caráter realista”, segundo nos indica a rubrica inicial, e onde, assinala a notação que
precede o primeiro quadro do terceiro ato, depois de se passarem dezesseis anos, “nunca
mais fez sol. Não há dia para Ismael e sua família. Pesa sobre a casa uma noite
incessante” (Rodrigues, 1981b: 169).
Durante o transcorrer da estória o dramaturgo fará surgir em cena um grupo de
negros que “falam com um acento de nortistas brasileiros, mas os gritos lembram certos
pretos do Mississipi que aparecem no cinema” (Rodrigues, 1981b: 176). Por um
raciocínio excludente, a notação nos faria, portanto, pensar que estamos longe da parte
Norte brasileira. Adiante, a personagem Virgínia confirmará novamente essa sugestão em
uma de suas falas ao externar seu desejo e atração pelo mundo masculino com a seguinte
imagem: “Me lembrei de quatro pretos, que eu vi, no Norte, quando tinha 5 anos –
carregando piano, no meio da rua ... Eles carregavam o piano e cantavam ...” (Rodrigues,
113
1981b: 189). Essas indicações de qualquer maneira não nos revelam com precisão o lugar
em que se passa o drama.
O ambiente de uma casa é também escolhido como palco das duas últimas peças
míticas: Senhora dos afogados e Dorotéia. A casa dos Drummond em Senhora dos
afogados é apresentada como contígüa ao mar com “um farol remoto” que cria “a
obsessão da luz e da sombra” (Rodrigues, 1981b: 259). É este o ambiente que marca o
cenário em que transcorre a maior parte da peça. A residência da família Drummond se
alterna apenas com a cena de um café de cais, um espaço de prostituição a ser visitado
pela matriarca da família.
Dorotéia, protagonista de um drama que se apresenta como uma “farsa
irresponsável”, retorna à casa das tias, lugar em que se passa toda a peça, depois de uma
vivência mundana em um quarto próximo ao mar onde tivera uma aventura e servira a
soldados embarcadiços. É sob o teto da residência e na companhia de três tias viúvas, que
vivem em permanente luto, que se desenrola a estória.
A preocupação com ambientes intemporais, portanto, parece ser uma qualidade
que distingue em sua peculiaridade o ciclo de peças míticas. Passemos agora aos
comentários sobre como Nelson Rodrigues batizou seus personagens dessa fase. Tudo
indica ter havido uma predileção por nomes bíblicos. Desde Jonas, o patriarca de Álbum
de família, cuja conotação bíblica se estende a sua identificação com a figura de Jesus
Cristo em passagens do enredo, até Rute, outra das personagens da peça. Outros nomes
bíblicos que pontificam em suas peças do período são Ismael e Elias (de Anjo negro) e
Misael (de Senhora dos afogados).
114
Grande admirador do dramaturgo Eugene O´Neill, Nelson batizou a família de
Senhora dos afogados como Drummond em referência à família Mannon de Electra
enlutada, trilogia escrita pelo escritor norte-americano. A menção se estende ainda à
figura de Agamenon, personagem do panteão mitológico grego, e dramatis persona de
drama homônimo de Ésquilo. Esses elementos foram assinalados por Sábato Magaldi que
percebeu por puro acaso a sutil analogia trabalhada sem alardes por Nelson Rodrigues.
Mesmo em suas peças mais nitidamente míticas, Nelson não resistiu a recorrer a
um procedimento que marcaria profundamente toda a sua ficção e não apenas as suas
realizações teatrais: a menção a acontecimentos e fatos de um cotidiano imediato. Ainda
estamos em uma fase em seu teatro em que isso seria feito de maneira tangencial e sem a
forma forte e direta que adquiriria em suas investidas futuras quando passaria a jogar com
a sua imagem pública, a de seus amigos e a de seus companheiros de trincheiras
jornalísticas.
A paixão pelo cinema e pelos símbolos da cultura de massa, um interesse sempre
zombeteiro e satírico, o faria rechear as notações de suas peças com referências a ícones,
personagens e passagens conhecidos do grande público e que fazem parte do nosso
imaginário coletivo. Jonas, protagonista de Álbum de família, deve ter “cabelos à Búfallo
Bill”, Nonô, seu filho, “lembra Lon Chaney Jr” e Ana Maria, de Anjo negro, terá um
estranho túmulo de vidro, numa “sensível analogia com o caixão de Branca de Neves” (a
despeito do túmulo de vidro pertencer na verdade à Bela Adormecida).
Outros flashes de uma vida contemporânea cortam momentaneamente a ordem
temporal mítica de Álbum de família. Jornalista responsável por reportagens esportivas
durante boa parte de sua vida profissional pregressa, o que se daria também em sua vida
115
subseqüente, Nelson faria um cortejo fúnebre atravessar um campo de futebol no meio da
peça. Ainda nesse primeiro drama mítico não deixaria de aparecer o personagem
recorrente do jornalista: no caso um pretenso redator-chefe do “Arauto de Golgonhas”.
Além de assinalar as transições de tempo, um Speaker será usado em Álbum de
família para inserir elementos que denunciam uma época. De D. Senhorinha dirá: “Uma
mãe assim é um oportuno exemplo para as moças modernas que bebem refrigerante na
própria garrafinha!”. Depois iria elogiar Nonô por sua dedicação à mãe e dizer: “Que
diferença entre um filho assim e os nossos rapazes de praia que só sabem jogar voleibol
de areia” (Rodrigues, 1981b: 95).
O Speaker faria ainda alusão a fatos históricos. Sabemos através dele, por
exemplo, que o conservador Jonas escrevera um telegrama ao Presidente Artur Bernardes
dizendo que a revolução de São Paulo era reprovável e impatriótica e naquele cenário
“[n]ada lhe entibiava o civismo congênito” (Rodrigues, 1981b: 108).
Em Senhora dos afogados também vê-se o emprego de expediente semelhante. A
rubrica de abertura diz: “Época: quando quiser”. No correr da peça, no entanto,
saberemos que Misael é um juiz com aspirações a se tornar ministro. Duas personagens
prosaicas, a de um rapaz, que “assobia feito gente grande” e que se chama Sabiá, e a de
um vendedor ambulante, pontificam o enredo que traz a reincidente presença da
administradora de bordel com seu sotaque estrangeiro. Em Dorotéia, a protagonista teve
um filho com um índio, que, na verdade, corrige a personagem: “era um paraguaio”. Pelo
caráter acentuadamente mítico dessas peças, porém, esse recurso de apelo à atualidade
dos fatos, que por sinal se tornaria marca registrada do autor, não sobressai.
116
4.1.2 – Peças Psicológicas e Tragédias Cariocas
São quatro os textos indicados por Sábato Magaldi, em comum acordo com o
autor, como “peças míticas”. As outras cinco “peças psicológicas” e sete “tragédias
cariocas” poderiam perfeitamente aparecer agrupadas sob esta última designação. Na
verdade, quando as escreveu, Nelson Rodrigues usou o título de “tragédia carioca”
apenas para apresentar três títulos: A falecida, Boca de Ouro e O beijo no asfalto. As
outras peças foram qualificadas como “dramas” (A mulher sem pecado), “tragédias”
(Vestido de noiva, Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados), “farsa
irresponsável” (Dorotéia e Viúva, porém honesta), “divina comédia” (Os sete gatinhos),
“tragédia de costumes” (Perdoa-me por me traíres), “obsessão” (Toda nudez será
castigada). Ou ainda e simplesmente “peça em um ato” (A serpente), “em dois atos”
(Valsa no. 6) e “em três atos” (Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária).
A adjetivação “carioca” indica o local predileto de ambientação de suas peças.
Apaixonado pela cidade do Rio de Janeiro, a ponto de, como Machado de Assis, não se
interessar em conhecer outros lugares (viajou apenas a Brasília e a São Paulo, na primeira
cidade a convite do presidente Juscelino Kubitschek para a inauguração da nova capital
da República, e a segunda a convite do presidente Garrastazu Médici) as cercanias
cariocas viraram palco predileto das ações dramáticas desse recifense que chegou em
1916 à capital federal de então, ainda muito garoto com quatro anos de idade
incompletos.
Em todas as peças psicológicas e tragédias cariocas, com uma única exceção
(Toda nudez será castigada), há a menção a espaços da cidade do Rio de Janeiro. A
personagem Lídia, A mulher sem pecado do primeiro drama de Nelson, morava no
117
Grajaú antes de se casar com um dos Otelos rodrigueanos mais ciumentamente doentios,
Olegário. As dúvidas de Olegário sobre a infidelidade da esposa se devem principalmente
ao fato de Lídia passar suas tardes, sempre acompanhada por um grupo de amigas, na
Confeitaria Colombo (tradicional casa de chá carioca).
O Rio de Janeiro surge, dentro da arrojada concepção de Vestido de noiva, nos
três planos em que se alterna a ação. No plano da realidade, Alaíde é atropelada em frente
ao relógio da Glória e, nos informará um Speaker, havia se casado na Candelária (lugar
para onde o mesmo Speaker, nos momentos finais da trama, nos convidará para a missa
de sétimo dia da protagonista). No plano da alucinação, a protagonista revela que
descobriu em um diário encontrado no sótão de sua casa que Madame Clessi costumava
passear nas Paineiras. Do que emana do plano da alucinação, ficamos sabendo ainda que
Alaíde tinha o hábito de freqüentar a Biblioteca Nacional para conhecer a vida pregressa
da cafetina estrangeira. No plano da memória, Madame Clessi é convidada por um
adolescente, que se apaixonou perdidamente por ela, para ir a um piquenique em Paquetá,
onde juntos se matariam31.
Nesta como em outras peças psicológicas a referência ao Rio seria menos direta
comparativamente com o ciclo das “tragédias cariocas”, o que certamente explica a opção
da nomenclatura sabatomagaldiana. No monólogo Valsa no. 6, Sônia, a defunta
narradora, se lamenta de não ter acompanhado suas colegas à Quinta da Boa Vista
quando teve a oportunidade de fazê-lo. E é essa a única referência a um espaço da cidade
do Rio de Janeiro. Em Viúva, porém honesta, há a notação inicial que indica: “Época;
atual – ação: Rio de janeiro”. Em outra passagem a Cidade é trazida à baila quando o Dr.
Lupicínio, um psicanalista que tem “no consultório até vitrola caça-níqueis, com disco de
31
Conferir o fait divers “Na ilha dos amores...” no CD anexado a esta Tese e comentando anteriormente na seção 2.2.
118
churrascaria”, comenta ter visto o Diabo da Fonseca, cuja ocupação é encarnar um
Belzebu que tem preferência pelas viúvas, em um espetáculo de revista na Praça
Tirandes.
Nas tragédias cariocas, as referências à cidade são evidentemente mais diretas.
Em A falecida, uma notação introdutória assinalará: “Local: Rio de Janeiro”. Os
protagonista desse drama suburbano, Tuninho e Zulmira, moram em Aldeia Campista, e a
peça se encerra em um jogo no Maracanã. Em Perdoa-me por me traíres, Gilberto, outro
ciumento contumaz da galeria de personagens rodrigueanos, desconfia que a esposa
Judite o esteja traindo com “aquele cara da praia, que tu olhaste? Ou aquele do Iate
Clube? Fala! ou aquele da fila do Metro?” (Rodrigues, 1981a: 150). O personagem, em
conseqüência de sua paixão doentia, acabará internado na Casa de Saúde da Gávea.
O subúrbio carioca será o cenário predileto e central em várias peças desse ciclo
rodrigueano: Grajaú em Os sete gatinhos e O beijo no asfalto, Madureira em Boca de
Ouro, Muda e Tijuca em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária. Em vários
dramas o subúrbio servirá também para contrastar com a vida nas regiões de maior
riqueza da cidade. Em Anti-Nelson Rodrigues, Quintino é onde mora a secretária Joice
que é alvo do interesse de Oswaldinho, filho de Gastão, dono da indústria de confecções
Beija-Flor. Não há referência direta ao lugar onde Oswaldinho e seus pais moram,
embora ele seja caracterizado como um rapaz frívolo e baderneiro no estereótipo dos
garotões da Zona Sul carioca.
Em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, se dá o mesmo: Werneck,
um magnata, e sua filha Maria Cecília, moram em um palacete na Gávea. Maria Cecília
reside, portanto, em um ponto mais sofisticado do que sua rival Ritinha, com quem
119
disputará a predileção de Edgar que deve optar pelo amor da segunda ou casar com a
menina rica. Ritinha, como o duro Edgar, vive na Tijuca, em um edifício onde a falta de
água é constante. Boca de Ouro, o rei do jogo do bicho em Madureira na peça que leva
seu nome, e Bibelot, o malandro do Grajaú de Os sete gatinhos, se mandam para
Copacabana apenas para ter encontros amorosos fortuitos.
É corrente a idéia de que a Zona Sul representaria na obra dramatúrgica de Nelson
Rodrigues o espaço privilegiado para traições e transgressões de todo ordem. Mas aceitar
isso seria esquecer da mística da Floresta da Tijuca e do Alto da Boa Vista como lugares
onde ocorreriam encontros às escondidas e como pontos de prevaricação dentro da
criação teatral do dramaturgo.
Os nomes escolhidos para batizar os personagens das peças psicológicas e
tragédias cariocas são invariavelmente pouco usuais mesmo para a época em que esses
dramas foram escritos. Saudosista incontido, Nelson seleciona com dedicação rara a
forma como nomeia seus personagens: Olegário, Inézia, Alaíde, Zulmira, Dr. Borborema,
Oromar, Crisálida, Timbira, Pimentel, Gastão, “Seu” Noronha, Silene, Dr. Bordalo,
Aprígio, Dália, Selminha, Guiomar, Alírio, Osíris, Dinorá, Herculano, Geni, Patrício.
Essas escolhas só seriam batidas pelo festival de nomes inusitados dos personagens dos
folhetins rodrigueanos e da galeria de “A vida como ela é...”. Há ainda os nomes em tom
mais abertamente de pilheria. A peça Viúva, porém honesta coleciona o maior número
deles. Ali aparecem o Diabo da Fonseca, Dr. Sanatório, Dr. Lambreta, Tia Assembléia,
Tia Solteirona, Pardal e o já referido crítico de teatro de araque, Dorothy Dalton.
120
O gosto por aproximar as narrativas das peças psicológicas e tragédias cariocas de
acontecimentos do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro faria com que Nelson Rodrigues
se esforçasse por marcar passagens de seus dramas com a lembrança de seus amigos,
companheiros de trabalho, da imprensa e de passagens e fatos de uma época passada ou
mesmo do momento em que foram escritas, o que aproxima o plano factual do ficcional.
Antes de ser alçado à condição de personagem do dramaturgo, Boca de Ouro foi
motorista de lotação. Nelson Rodrigues o conheceu em suas baldeações pela cidade como
passageiro da linha 115 que ligava Laranjeiras à Estrada de Ferro. No comando do
lotação estava invariavelmente Rubem Francisco da Silva, que costumava exibir com
orgulho os vinte e sete dentes de ouro que colecionava em sua arcada: “Abria a boca no
ponto final da rua General Glicério e dizia: “Olha só! Pode contar, um por um! E não é
coroa, é maciço! Ouro 24!”” (Castro, 1993: 311).
O atropelamento de O beijo no asfalto, deflagrador de toda a ação dramática,
partiu de um episódio ocorrido com o jornalista Pereira Rêgo, seu colega de redação em
O Globo, que, após ter sido colhido por um “arrasta-sandália” (o lotação da década de
1930) e à beira da morte, teria pedido um beijo a um(a) transeunte no Largo da Carioca,
onde ficava a sede do jornal32.
32
Há diferentes versões para esse incidente. Em A menina sem estrela - memórias, Nelson narra: “Lembro-me de certo
episódio da minha vida jornalística que me feriu para sempre. Imaginem vocês que tive, no Globo, um companheiro
admirável:- Pereira Rêgo. Não me lembro do primeiro nome (talvez Alfredo). Disse “admirável” e preciso explicar.
Inteligência mediana, nada brilhante, Pereira Rêgo limitava-se a escrever notas de aniversário, casamento, batizado,
missas. Mas era de uma bondade fascinante. Como gostava de servir e repito:- servia como um santo. Tinha o sorriso
mais doce que já vi na terra.
Uma tarde, Pereira Rêgo vai empenhar uma jóia, ali, na Caixa Econômica da rua Treze de Maio. Foi lá a pé e
voltou a pé, para o Globo. Ao atravessar, na altura do “Tabuleiro da Baiana”, foi atropelado. Havia na época um tipo de
ônibus que o povo batizara de “Arrasta Sandália”. E foi esse justamente, que apanhou o meu companheiro. Dizem que o
“Arrasta Sandália” passou por cima. Não sei. Houve corre-corre na rua. Um crioulo, que chegou antes de todos, apanha
a cabeça do atropelado e a pôs no regaço. E, então, veio, com sangue pisado, o apelo de Pereira Rêgo:-“Me beija, me
beija”.
(O episódio me tocou tanto que, anos depois, escrevi O beijo no asfalto, encenado no Teatro dos Sete. Todo o
núcleo lírico dramático da peça é um beijo pedido por um atropelado.) No instante de morrer, Pereira Rêgo pediu o
121
Na peça o incidente é transferido para a Praça da Bandeira e o atropelado externa
seu último desejo no pedido de um beijo a um homem: Arandir, que passa a ser o
protagonista do drama rodrigueano. Arandir justifica o inesperado de seu ato pela
situação extrema. Quem vai vislumbrar malícia na situação é um inescrupuloso repórter
do jornal Última Hora, Amado Ribeiro, homônimo de um companheiro de redação de
Nelson no período em que trabalhava neste jornal. O entrecho ainda serviria para que
fosse trazida à baila a pessoa de Samuel Wainer, dono do jornal.
Outras peças incluiriam pessoas conhecidas do autor. O amigo Salim Simão seria
enquadrado no papel de pai da jovem Joice, a secretária da empresa de Gastão e de seu
filho Oswaldinho em Anti-Nelson Rodrigues. Gastão por sua vez se consulta sobre seus
problemas cardíacos com um certo Dr. Murad, homônimo do cardiologista do
dramaturgo. Armando Nogueira contou que quando, em 1963, o teatro Maison de France
iluminou seu letreiro com o nome de Otto Lara Resende como título de uma nova peça de
Nelson Rodrigues, Helena Lara Resende, esposa de Otto Lara, um dos amigos mais
próximos de Nelson Rodrigues,
proibiu terminantemente o marido de falar com o
dramaturgo por um bom tempo.
A citação de produtos da cultura de massa continuaria se fazendo presente como
nas obras míticas. Em Vestido de noiva, Alaíde mistura tudo: o enredo da Traviatta com
passagem do filme E o vento levou. Em Boca de Ouro, a suburbana Celeste vive
amigo, sonhou com o amigo. Eis o que eu queria dizer:- desde garotinho eu quis o amigo como um atropelado”
(Rodrigues, 1997: 232-3). Em Castro a versão é outra: “Ao ver-se no chão, perto de morrer, Pereira Rego pedira um beijo
a uma pessoa que se debruçara para socorrê-lo. Só que essa pessoa era uma jovem” (Castro, 1993: 314). Consultei O
Jornal que cobre o incidente, mas nada comenta sobre o beijo. O Globo, de sábado, dia 2 de outubro de 1943, registra o
atropelamento ocorrido na tarde do dia anterior, mas também nada fala sobre o beijo. Embora traga em sua reportagem
à página 2, com chamada de capa, o trecho que se segue: “Enquanto isso, junto a passarela subterrânea da avenida
Almirante Barroso e, cercado já por verdadeira multidão, nosso saudoso companheiro se achava entre a vida e a
morte.Já haviam acorrido para prestar-lhe os primeiros socorros, vários companheiros das oficinas, da redação e da
caixa do Globo. Uma enfermeira, que no momento passava pelo local, espontaneamente, num gesto cativante e
comovedor, secundava nossos esforços, enquanto não chegava a assistência, logo chamada insistentemente. Já então,
sentíamos que seu estado se apresentava irremediável. E, com efeito, embarcado na ambulância, falecia ainda em
caminho para o hospital”. A integra da reportagem, bem como a chamada de capa, segue no CD anexado a esta Tese.
122
sonhando com a atriz Grace Kelly que viu em uma capa da revista O Cruzeiro. Uma grãfina que idolatra o protagonista perguntará: “o “Boca” não é meio neo-realista?”. Para em
seguida concluir: “O De Sica ia adorar o “Boca”!”, em referência ao diretor italiano
Vittorio de Sica.
Em Os sete gatinhos, algumas referências periféricas, mas que guardam relação
com o mundo dos atores hollywoodianos, também se fazem presentes. Ao retornar à casa
de seus pais, Silena fica sabendo por sua irmã Arlete que uma conhecida sua, a
“magricela” Celeste, arranjou um namorado “parecido com o Vitor Mature”. Silene por
sua vez contará para a irmã Aurora que Bibelô, o malandro que ao fim da estória
descobrirão é o objeto do desejo das duas, se parece com o “gângster de Lana Turner”,
“o que a filha da Lana Turner matou! Stampanato, não: Strompanato! Apareceu lá a
revista e eu vi o retrato. Parecidíssimo, só você vendo!” (Rodrigues, 1985: 242).
Jornais como Luta Democrática, Tribuna da Imprensa e O Pasquim também
seriam mencionados. Há ainda a presença do jornalismo radiofônico através dos informes
do Repórter Esso da Rádio Nacional e do jornalismo da emissora Continental inseridos
em algumas das peças.
As narrações sobre a vida comezinha da classe média carioca marcariam as
primeiras peças psicológicas, mas aos poucos o foco vai mudando de direção e se
centrando na vidinha ainda mais anônima e esquecida dos moradores do subúrbio e dos
bairros mais pobres do Rio. Essa vida suburbana ganha assim um grau de importância
inesperado aos olhos do público. O cidadão comum de que falou Umberto Eco na seção
teórica de meu trabalho passa a ter uma imprevista atenção do dramaturgo que com isso
alça esses personagens para o centro de seus interesses.
123
Por outro lado, essa vida de um cotidiano sem graça será revirada de cabeça para
baixo pela imaginação do dramaturgo (e, como veremos adiante, do contista também).
Não há, sob a perspectiva do escritor, como viver sem as paixões extremas, sem que cada
instante, cada acontecimento, por menor que seja, não se torne digno de ganhar ares
transcedentes. As paixões vorazes devem assim marcar a vida de todos obrigatoriamente
e pontuar suas existências.
Ao mesmo tempo que alça esses personagens a uma condição mítica, Nelson
recorre a notações, rubricas, apontamentos que desnaturalizam o espetáculo e que
aproximam o público da realidade mais imediata do ato teatral. Esses dados estabelecem
uma tensão interna no drama e abrem possibilidades interessantes para as encenações e
dão um sabor particular à leitura de seus dramas.
4.1.3 – A Linguagem das Peças
Um elemento que contribui para marcar o interesse de Nelson por assinalar e
reforçar a identificação do grupo social sobre o qual escreve é o emprego de uma
linguagem extremamente coloquial, cheia de gírias e expressões que se repetiriam de
peça a peça e que são características do ambiente retratado. Esse aspecto seria enfatizado
por vários dos comentadores da obra do dramaturgo33.
Ao mesmo tempo em que por vezes recorre a uma linguagem coloquial, Nelson,
em outros momentos, coloca seus personagens a falarem com certa formalidade. É
possível se verificar assim um contraste entre uma linguagem que se quer em certas
33
Os comentários sobre o coloquialismo dos diálogos do teatro de Nelson Rodrigues começam com Manuel Bandeira
que diz sobre a peça de estréia do dramaturgo: “O diálogo era de classe – rápido, direto, e por ser assim, facilitava aos
atores a dicção natural” (Rodrigues, 1989: 389). Magaldi complementava: “A técnica traz inovações que valorizam
sempre a pesquisa formal do dramaturgo. O diálogo já é direto, enxuto, isento de literatice, como bem observou Manuel
Bandeira. O ritmo agiliza-se, as cenas duram o necessário para armar a situação e definir as psicologias, os cortes
injetam um novo alento nos episódios” (Rodrigues, 1981: 11).
124
ocasiões culta, literária, e em outras próxima de uma fala cotidiana. Olegário, a certa
altura de A mulher sem pecado, diz: “Sabes o que eu acharia bonito, lindo, num
casamento? Sabes? Que o marido e a mulher, ambos, se conservassem castos – castos um
para o outro – sempre, de dia e de noite” (Rodrigues, 1981a: 71). A formalidade diz
respeito ao emprego da segunda pessoa, que caiu em desuso no português coloquial,
principalmente na região sudeste do Brasil, lugar onde transcorre a ação da peça.
Esse emprego, comum a todos os dramas escritos pelo autor, contrasta com uma
linguagem coloquial como a utilizada pelo motorista de Olegário, Umberto, que ao pedir
demissão de seu trabalho informa sua saída com uma construção mal-ajambrada: “Dr.
Olegário, muito obrigado. Desculpe de qualquer coisa” (Rodrigues, 1981a: 101).
Um diálogo também coloquial se dá na “sala de imprensa” de Vestido de noiva
quando se toma conhecimento da gravidade do estado de Alaíde:
1º. Fulano (berrando) – Diário!
2º. Fulano (berrando) – Me chama o Oswaldo?
1º. Fulano – Sou eu.
2º. Fulano – É pimenta. Toma nota.
1º. Fulano – Manda
2º. Fulano – Alaíde Moreira, branca, casada, 25 anos. Residência, Rua Copacabana. Olha ...
1º. Fulano – Que é?
2º. Fulano – Essa zinha é importante. Gente rica. Mulher daquele camarada, um que é industrial,
Pedro Moreira.
1º. Fulano – Sei, me lembro. Continua.
2º. Fulano – Afundamento dos ossos da face. Fratura exposta do braço direito. Escoriações
generalizadas. Estado gravíssimo.
(Rodrigues, 1981a: 157: grifos do autor)
Nesse trecho, Nelson se serve sem medida de coloquialismos e gírias: “Me
chama”, “Toma nota”, “Manda”, “Olha ...”, “Essa zinha”, “Mulher daquele camarada”.
Ao dar seqüência à prática de uma escrita com um coloquialismo extremado, o autor
acabaria se servindo de uma língua portuguesa fora de padrão, o que sobressairia em
passagem de Valsa no. 6. No trecho em análise, a menina Sônia refaz mentalmente,
125
dentro de seu monólogo, uma cena ocorrida em uma madrugada, quando acordou
sobressaltada em sua casa. Reparem no coloquial “evém” ao fim da passagem:
Fui acordar mamãe. Mãe, vem, mamãe!
(irritação materna)
Mas que foi minha filha? Você até assusta!
(riso, apontando)
Ali, mamãe!
Ali, onde?
(irritação doentia)
Será possível que a senhora não veja, oh mamãe!
(...)
Eu sentia uma dor cravada na minha fronte!
(fazendo coro para si mesma)
Chamem a Assitência!
Médico!
Assistência!
Dr. Junqueira!
Nossa mãe!
Dr. Junqueira vem já! Evém! Evém!
(Rodrigues, 1981a: 176-7: grifos do original)
Em seu texto, Sonia voltaria mais adiante em diapasão culto para narrar suas
fantasias e se imaginar envolvida em uma disputa por uma figura masculina:
Que aconteceu entre nós, Paulo? Deve ter acontecido alguma coisa!
(súplice)
Que fizeste, Paulo?
(com enleio e volúpia)
Me beijaste, foi, querido?
(feroz)
Ou me traíste?
(cultivando a hipótese)
E quem sabe se com Sônia?
(já no piano dá violento acorde)
Só não queria que fosse com Sônia!
(Rodrigues, 1981a: 192: grifos mais uma vez da notação original)
O emprego em revezamento entre o registro culto e por vezes formal e o coloquial
e por vezes chulo seguiria e surgiria mesmo em um ciclo tão específico como o que
corresponde à fase mítica do teatro rodrigueano. Na primeira peça do ciclo, Álbum de
família, o autor chega a ser tão cuidadoso que assinala com aspas o coloquialismo no
diálogo que marca o encontro dos irmãos Guilherme e Glória em uma igreja.
126
Glória (com surpresa e certo medo) – “Que dê” papai? Você não disse que
ele estava esperando – aqui?
Guilherme – Vem já! Não demora!
(Rodrigues, 1981b: 87: grifos do original)
No drama que marca o penúltimo texto mítico, Senhora dos afogados, o
personagem Vendedor de Pentes, que atende pelo nome que designa sua função, é quem
entra em chave chula. Recorre à dupla negativa, deixa de observar concordância
apregoada pela norma culta para o verbo “ser” e ataca com o popular “madama”.
Dona (para o noivo) – É o vendedor de pentes ...
Morena – ... e de grampos.
Vendedor de Pentes – Coisa rápida
Dona (categórica) – Não pode serr!
Vendedor de Pentes (ofendido) – Não lhe pedi opinião, dona! E nem nunca
fui com sua cara!
Dona – Melhorr!
Vendedor de Pentes – A coisa que mais me invoca aqui – o senhor não faz
idéia (vira-se para o noivo) – é as pernas dessa dona
Dona – O doutorr me ensinou uma pomada – um remédio formidável ...
Vendedor de Pentes – Até causa má impressão ... E lá porque a Madama
(refere-se à cafetina) tem prédios e uma avenida ...
Dona (prática) – ... com meu dinheiro!
Vendedor de Pentes – ... não é razão para me destratar. (num crescendo)
Afinal de contas, estou na minha terra! E é um desaforo que uma gringa me queira
faltar com o respeito ... Lhe devo alguma coisa, Madama?
(Rodrigues, 1981b: 313-14: grifos do original)
Além da alternância entre coloquialismo e linguajar formal, a passagem assinala o
sotaque estrangeiro da cafetina Dona, que puxa nos erres. O interesse de Nelson por
lançar mão de vários registros prosseguiria como uma opção estilística em seus dramas
futuros e se tornaria mesmo o atrativo central de várias de suas tragédias cariocas.
Nelson não apenas se apropria de palavras e expressões corriqueiras, mas as
incorpora tão insistentemente a seus diálogos que elas passam a ser identificadas com o
autor. Citem-se algumas palavras e expressões prediletas de seu repertório: “batata”,
“espeto”, “meus pára-choques”, “os colarinhos”, “chispa”, “sossega o periquito” (com
variações com “sossega leoa”), “nossa amizade”, “toca o bonde” (com a variante: “tomou
o bonde errado”), “até aí morreu o Neves”, “lamba os dedos”, “desinfeta”, “algum
127
bode?”. Há ainda os estrangerismos: “big”, “cáspite”, “flirt”, “bye”, “so long”, “darling”,
“merci”, “mon cherri”.
O autor também cria expressões e designações neológicas: “arrancos de cachorro
atropelado”, “um elenco de Cecil B. DeMille”, “lagartixa profissional”, “óbvio ululante”,
“barítono de igreja”, “V-8”, “Drácula de Madureira”, “Crioula das Narinas Triunfais”,
“ex-contínuo”. À exceção dos dados que estão especificamente relacionados à trama de
um drama específico, essas expressões neológicas seriam repetidas e empregadas pelo
autor em seus contos e crônicas. Algumas nasceram mesmo nas crônicas e contos e
migraram posteriormente para as peças. Outras fizeram o caminho inverso. O emprego
repetido de algumas dessas expressões cria um grau de previsibilidade e de redundância
nos textos do escritor, o que é um fator que estabelece empatia com o leitor/ouvinte.
Certamente esse foi um dos elementos que fez haver uma identificação do público
com os dramas desse período do autor. Pode-se dizer que um dos fatores que levaram as
tragédias cariocas de Nelson Rodrigues a gozarem de enorme popularidade, o que
contrastou com outros de seus trabalhos dramatúrgicos anteriores, foi o impacto e o gosto
que o público nutria por sua linguagem popularesca.
Se pelo que já foi comentado anteriormente pode-se ver saliente a presença de
uma intertextualidade intersemiótica nas apropriações que Nelson faz do universo do
cinema e da ópera, através dessas palavras e expressões neológicas pode-se ver manifesto
aquele “híbrido visual e conceitual” comentado por Umberto Eco e referido entre as
ponderações de ordem teórica da seção 3.3. Mais adiante observar-se-á como esse
aspecto é trabalhado no texto do cronista, quando a ação dramática amparada em diálogos
128
cede lugar e abre possibilidades para uma elaboração estilística maior do texto do
escritor-narrador.
Nas obras teatrais também encontram-se sinais paradoxais que são em meu
entender o traço mais marcante da escrita do autor. Eles se insinuam no âmbito das frases
do dramaturgo (que, tomadas separadamente, podem ser entedidas como máximas ou
aforismos per se) e na dimensão maior do discurso.
Frasista de mão cheia, a ponto de já ter ganho uma antologia de seus ditos
espirituosos no livro Flor de obsessão - as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues
(1997), organizado por Ruy Castro, Nelson também salpicou alguns de seus dramas com
suas máximas. Em algumas delas identifica-se o traço paradoxal evidente. Em A mulher
sem pecado, por exemplo, Olegário nos diz: “Eu acho que a fidelidade devia ser uma
virtude facultativa” (Rodrigues, 1981a: 65). O que se manifestaria em outras como: “O
fato de você mesma olhar o próprio corpo é imoral. Só as cegas deviam ficar nuas”
(Rodrigues, 1981a: 87).
Em A falecida Zulmira conjectura com sua mãe: “Nenhuma mulher devia
pertencer a homem nenhum!”. Para então ouvir a réplica: “Nem ao marido?”. E
confirmar peremptória: “Nem ao marido!” (Rodrigues, 1985: 72). Perdoa-me por me
traíres talvez seja a que congrega no universo de seu teatro os melhores dizeres. Entre as
frases aparecem: “O verdadeiro defloramento é o primeiro beijo na boca” (Rodrigues,
1985: 160), “(...) é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível” e “Amar é ser
fiel a quem nos trai!” (Rodrigues, 1985: 163) .
No âmbito maior do discurso também identificam-se sinais paradoxais. Muitas
das narrativas dos dramas rodrigueanos se aproximam dos faits divers, típicos das
129
reportagens policiais. Se forem destacadas duas peças como Vestido de noiva e O beijo
no asfalto, por exemplo, escritas com um lapso de tempo de quase vinte anos, a primeira
é de 1943, e a segunda, de 1961, ver-se-á que em ambos os textos o que desencadeia a
ação é algo tão corriqueiro como um acidente de trânsito, embora com o agravante de
terem sido acidentes fatais. Esses acidentes, no entanto, e por paradoxal que possa
parecer, não são investigados. Pelo contrário, abrem-se como espaço para a mais pura
fabulação.
4.2 – Narrativas do Repórter, do Folhetinista, do Contista
É significativo o número de escritores consagrados que tiveram sua trajetória
marcada pela passagem pelo jornalismo. Além de, em muitos casos, terem feito literatura
no jornal publicando “romances fatiados”, em forma de folhetim, bem como contos,
poemas e escrita literária diversa, vários autores de renome em uma lista que inclui
Daniel Defoe, Charles Dickens, Jack London, Walt Whitman, Ernest Hemingway,
Euclides da Cunha, George Orwell, marcaram presença em fileiras jornalísticas
produzindo o que hoje é conhecido como hard news, ou reportagem jornalística
propriamente dita.
O grau de adesão ao factual varia de intensidade dependendo do autor e da forma
como realizou a cobertura jornalística. Há o inglês Daniel Defoe, por exemplo, o faz-tudo
da revista The Review, que incursionou pelo jornalismo tradicional, com direito a
entrevistas e encontros face a face com o foco de sua investigação, em reportagem sobre
o larápio Jonathan Wild, enforcado por causa de seus golpes de extorsão na Inglaterra do
130
século XVIII. Jack London quis conhecer o submundo do East End londrino e foi
conviver com os excluídos socialmente e o resultado foi a reportagem The people of the
abyss, que virou um dos trabalhos dos quais mais se orgulhava34. Inspirado em Jack
London, George Orwell faria uma incursão semelhante à de seu guru em Na pior em
Paris e Londres (Orwell, 2006).
Entre os americanos, tem-se investidas extensas como a do poeta de Folhas de
relva, que escreveu muito sobre a Guerra de Secessão, ainda que distante quilômetros do
front e a partir do relato dos soldados feridos nas frentes de batalha e recolhidos em
hospitais de campanha em Washington. O relato de Whitman figura entre os escritos
reunidos em “Specimen days” (Whitman, 1968). Hemingway também cobriu assuntos
policiais pelo jornal Star, de Kansas City, no começo de sua carreira, mas sem gosto
nenhum pelo que estava fazendo e louco para produzir o jornalismo que considerava mais
nobre. Alguns anos depois iria forçar a publicação de narrativas menos cruas em sua fase
em Toronto com os escritos que ganhariam as página do Star Weekly no Canadá35.
Nelson Rodrigues engrossa a lista dos escritores que experimentaram a prática do
hard news, com o detalhe adicional de ter-se iniciado em idade recorde nesse meio, como
visto anteriormente. Estava, como alguns dos nomes citados, apenas de passagem, e,
repetindo Hemingway, com vontade de sair desse mundo que fecha a possibilidade de
vôos altos. Não deixou de inscrever seu nome entre os que se rebelam contra as amarras e
limitações do jornalismo informativo.
34
Partes dessas reportagens podem ser conferidas em Kerrace, Kevin e Yagoda, Ben. The art of fact – a historical
anthology of literary journalism. New York, Touchstone, 1997.
35
Para a prática jornalística de Ernest Hemingway, ver Stephens, Robert O. Hemingway´s non-fiction – the public voice.
Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 1968, e Burril, William. The Toronto years. Toronto, Doubleday
Canada Limited, 1995.
131
4.2.1 – Repórter, Contista e Cronista Iniciante
O que se percebe nos textos que se podem considerar, uma vez que são apócrifos,
como pertencentes ao Nelson Rodrigues repórter policial é uma reação forte, ou aversão
intensa mesmo, às limitações impostas pelos dados factuais, traço que, como se viu no
item 3.2 da seção teórica desta Tese marcaria sua trajetória. Para comprovar esse indício
de sua escrita, as pretensas coberturas jornalístico-policiais realizadas pelos jornais A
Manhã e Crítica, que apresentam traços de peças jornalísticas rodrigueanas, serão
contrastadas com as coberturas feitas por outros veículos (escolheu-se O Globo,
principalmente, como termo de comparação)36.
Algumas reportagens de A Manhã e Crítica, apontadas como escritas por Nelson
Rodrigues, sequer foram objeto de inquirição jornalística por parte de outros jornais, o
que leva a supor que sejam pura invencionice rodrigueana. As conseqüências trágicas da
recitação faceira de Baudelaire feitas pelo português Manuel Ferreira da Silva, exemplo
predileto desta Tese, já referido desde a Introdução, foi assunto de investigação apenas de
A Manhã, não figurando nas páginas de folhas concorrentes como O Jornal e O Globo.
Ao folhear-se estes veículos em datas próximas ao incidente narrado por A Manhã, não se
vê nem o registro desse fato e nem da facada de que o açougueiro foi vítima.
Ao analista da obra rodrigueana essa peculiaridade faz pensar se um sujeito que
leva a vida cortando carnes merecia sofrer na própria pele as investidas do imaginário
ficcional de um futuro escritor consagrado. O que parece justificar o incidente
aparentemente fictício é a arte de fingimento de um autor que infestaria seu espaço
ficcional futuro com giletes, navalhas, punhais e outros objetos cortantes. Contra essa
36
Todos as reportagens usadas como termo de comparação em nossa análise aparecem incluídas no CD anexado a
esta Tese.
132
hipótese tem-se o fato de que os açougueiros sumiriam para sempre das preocupações e
intenções estilísticas do autor. Nunca mais foram vistos.
Alguns assuntos se apresentaram como pauta tanto dos jornais de Mário
Rodrigues quanto de O Globo. É neste momento que se percebe a diferença significativa
entre as coberturas jornalísticas desses veículos, e onde ainda se pode vislumbrar com
quase total certeza a mão do escritor mirim se manifestando. Será comentado de início
um fait divers que foi acompanhado simultaneamente por Crítica e O Globo, numa época
em que Nelson Rodrigues trabalhava no primeiro destes veículos. A reportagem de
Crítica consta da edição do dia 8 de junho de 1929, à página 7, com um título bem
extenso, como era corriqueiro à época. A manchete acenava para o leitor com uma
reportagem emocionante: “O desfecho de sangue e desespero da manhã de ontem fixa a
tragédia de um amor que culminou em uma rajada de ódio e loucura”.
Trata-se de uma tentativa de homicídio, seguida de um impulso suicida, ambos
mal sucedidos. Antes de chegar ao ato extremo, há toda a história da aproximação dos
protagonistas do drama: Murilo Lopes e Maria da Glória de Andrade. A narrativa de
Crítica começa como um conto ou abertura dos romances e folhetins de Nelson. É
notável como o repórter floreia o incidente:
Apaixonou-se doidamente por aquele tipo de homem forte, másculo, atlético,
que vira pela primeira vez em um baile de regatas.
Dançando com maestria, simpático, bonito mesmo, aquele rapaz, a quem
todos homenageavam pelos seus grandes dotes esportivos, também impressionou-se
ela. E, nos compassos lentos do tango, unidos pelo mesmo amplexo de simpatia, quase
amor – eles deslizavam embevecidos.
Ato contínuo, vão crescendo as confidências e a identificação entre o casal:
Frases exaltadas. Promessas de eternas felicidades. Juras quentes. E nasce para
aquelas duas almas um mundo novo, cheio de ilusões, cheio de belezas, cheio de
encanto. Moços, na idade em que a vida se nos apresenta pelo róseo prisma da
felicidade, eles, os namorados venturosos, se fizeram noivos.
133
Coroando o noivado chega-se a um casamento com requinte suburbano ao qual
não faltam “flores de laranja”:
Queriam as famílias dos nubentes emprestrar àquele ato um brilho invulgar.
Glorinha, como chamavam a noiva, na intimidade, estava linda vestida de noiva. Flores
de laranja engrinaldavam-lhe a fronte. Roçagantes véus lhe envolviam o corpo de
sereia. Murilo, vestido de branco, feliz, era todo sorrisos, todo alegria.
Nas primeiras rugas do casal surge a tradicional bofetada e o narrador, fugindo a
toda objetividade, nos avisa: “O estalido de uma bofetada prenuncia sempre uma
tragédia”. Tem-se enfim a carta acompanhada por novos desentendimentos entre o casal
o que levará o leitor ao “desfecho sangrento” prometido na manchete. Murilo Lopes atira:
fere a cunhada, a esposa, e, em seguida, tenta se matar.
O vespertino O Globo já tinha saído com a notícia sobre o incidente no dia 7 de
junho, antes do matutino Crítica, portanto. Apresentava a seguinte, e muito comedida,
manchete: “União infeliz entre dois jovens – casado apenas há seis meses e há três meses
separado da esposa, um conhecido sportman tentou assassiná-la e suicidar-se em
seguida”. A abertura da reportagem seguia o mais moderado possível para a época:
O populoso bairro do Estácio movimentou-se hoje, com a notícia de uma
cena de sangue desenrolada na casa de no. 59, da rua Rodrigues dos Santos. À
detonação seguida de vários tiros de revólver sucederam-se as versões sobre o
caso, fazendo-se grande ajuntamento em frente àquela casa, residência da viúva
Belmira de Andrade [mãe de Glória de Andrade].
Bem mais curto que a reportagem de Crítica, o texto de O Globo guarda as
referências ao idílio amoroso e ao casamento para o final. Somos levados direto às brigas
e desentendimentos entre o casal e a afirmação por parte de Murilo Lopes de que preferia
134
““coabitar com uma mulher de vida má do que com a esposa””.
Em seguida nos
defrontamos com a cena violenta:
Hoje, os moradores da rua Rodrigo Santos entregavam-se aos seus afazeres
habituais. Seriam aproximadamente 9 horas, quando ali chegou Murilo Lopes que
entregou uma petição de divórcio à Dona Belmira. Esta senhora, como nos afirmou,
predispunha-se a dar sua assinatura ao papel, quando ouviu o genro dizer para sua filha
Haydée de Andrade [cunhada do rapaz], de 24 anos, noiva de Mario Vieira da Silva,
empregado da casa “A Fama”.
- Toma o que mandou seu noivo.
Viu, diz aquela senhora, Haydée aproximar-se confiante, e Murilo de revólver
em punho, detoná-lo contra ela. A jovem correu para a sala, sendo acompanhada por
nossa informante.
Inteiramente desvairado, Murilo perseguiu-as, atirando por duas vezes, nessa
ocasião, contra Glorinha, a quem avistara, atingindo-a.
No desfecho tem-se o comparecimento ao local de um policial atraído pela
algazarra:
Esse policial, chegando à sala de jantar, defrontou o protagonista da cena
de sangue.
De pistola em punho - pois desconhecia-lhe às intenções, - deu-lhe voz de
prisão.
O criminoso rápido, voltou a arma contra si mesmo, à altura do ouvido
direito, fazendo a última detonação.
Os feridos foram removidos para o Hospital do Pronto Socorro, onde ficaram
internados. A reportagem de O Globo ainda conseguiu falar com Glorinha, colocar curtas
declarações da moça e fazer um brevíssimo antecedente da briga do casal na parte final
da reportagem.
Veja-se um outro exemplo a título de confirmação das diferenças entre os textos
escritos por Nelson e publicados nos jornais de seu pai e a cobertura feita por O Globo. A
reportagem trata de um dos corriqueiros pactos de morte de então. Desta feita entre uma
mulher adúltera, Eunice Moreira, e seu namorado, Manoel Martins de Mello. A tentativa
de suicídio conjunto se mostrará no entanto frustrada, revelando que a vontade de matar e
135
morrer nem sempre era tão grande assim. A abertura, outra vez, se parece mais com o
deslanchar de um romance do que com uma notícia:
A Quinta da Boa Vista é o recanto pitoresco para os que querem morrer pelo amor.
Os seus quadros bucólicos são cenários deslumbrantes para essas tragédias
passionais. Os seus lagos, na quietude mansa das suas águas, as suas alamedas, os grandes
canteiros, são molduras maravilhosas para as grandes tragédias do amor.
Periodicamente, os que sentem a vida asfixiante, torturados ou atenazados pelas
dúvidas que canseram a alma, ou pelas desilusões na sucessão dos dias, procuram as sombrias
mas graciosas alamendas, os mais verdejantes recantos e de permeio cenários da natureza
pujante e panoramas lindíssimos vão ao gesto extremo. (Rodrigues, 2004: 224)
Em lugar de criar, através de cuidadosa descrição, o ambiente propício para o
transcorrer de uma narrativa que mais parece a de um romance, encontra-se em O Globo,
em edição do dia 25 de junho de 1929 na primeira página com foto, e em contraste com
os primeiros parágrafos de Crítica, uma abertura que desce logo seu foco sobre os
acontecimentos da manhã em que se deu o incidente narrado. Há ainda muito enfeite
como era comum então, mas logo surge o casal que decide se matar na Quinta da Boa
Vista e, antes de consumar o ato, se deixa fotografar por um lambe-lambe:
Desde cedo as pessoas que se encontravam na Quinta da Boa Vista, vinham se
interessando por um casal de jovens, decentemente trajados e que, muito unidos um ao outro,
percorriam alegremente as alamedas do lindo parque. Pareciam dois noivos em idílio.
As crianças, principalmente, que àquela hora brincavam no parque, não perdiam um
movimento do garrulo par, seguindo-o onde quer que fosse. Tinham-no visto já no pequeno
bosque onde se acha uma mesa de pedra, na gruta, apreciando a cascata e depois num
demorado passeio de barco pelo lago.
A seguir, os jovens chamaram um fotógrafo ambulante e escolhendo o recanto que
mais lhe parecia agradar, tomaram posição ante a objetiva, batendo o profissional uma chapa.
A passagem que trata dos antecendentes do envolvimento da moça com o rapaz
tem uma narrativa curta e direta:
Falamos a Martins. Disse-nos ele que Eunice, por seu gênio volúvel, fôra
abandonada há dois meses pelo marido, de nome Bastos. Vindo a conhecê-la por essa
época, tornaram-se amantes.
Há dias, Eunice lhe dissera que o marido vinha propondo-lhe reconciliação e ela,
sem saber que atitude deveria tomar, resolvera suicidar-se.
136
Para a reportagem de Crítica, esse resumo do imbróglio é muito enxuto. É preciso
acrescentar outros detalhes. Voltemos em companhia da folha de Mário Rodrigues um
pouco atrás na cronologia dos fatos e conheçamos os incidentes que precederam o
encontro entre os dois jovens protagonistas:
[Eunice] ao passar todas as tardes por aquele botequim de Nilópolis, fixava,
ardente e apaixonada, aquele guapo rapaz, que sempre no estabelecimento atendia à
freguesia. Ele (...) se lhe afigurava o tipo perfeito de amante. Jovem ainda, olhar faiscando
concupiscência, tipo Pã modernizado, sentiu também os furtivos olhares da rapariga, onde
havia tons de meiguice e laivos de luxúria. (Rodrigues, 2004: 225)
O remate do caso, para os que por acaso se interessarem por sabê-lo, se deu com a
sobrevivência do casal aos disparos.
Ainda cabe uma última reportagem de A Manhã em um desfile de exemplos que
poderia nunca terminar. Trata-se de uma tentativa de matricídio, seguida da consumação
de um suicídio. Uma jovem mãe, cujo namorado e pai de sua filha pequena não quis
reconhecer a paternidade da criança, atenta contra a vida de sua menina e se mata. O que
é reforçado aqui, e que já se insinuava em passagens comentadas anteriormente, é a
presença de um narrador onisciente:
Era pobre e vivia uma vida miserável.
O ordenado que o emprego lhe proporcionara era insuficiente e não bastava par dar à
pobre jovem um mínimo conforto. Sofria as mais pungentes necessidades. Vivia atormentada
por cruéis privações.
Entretanto, como era forte e animosa, não se desesperava.
Nos momentos culminantes da desventura, procurava alívio na esperança florida de
uma vida melhor. Seu espírito era sadio e novo. Não se abatia. Pelo contrário. Quando a
desdita golpeava-o, enchia-se de novas forças e demais robusta mocidade. E as dores de tão
habituais e comuns acabaram por revigorá-lo e enrigecê-lo.
Marcelina de Oliveira afagava os mais lindos sonhos. Ante seus olhos extasiados
desfilavam as mais risonhas perspectivas. Um dia... (Rodrigues, 2004: 184)
As reticências constam da reportagem, algo impensável nos dias de hoje, e criam
expectativa pelo que virá.
137
Os textos-não-assinados de O Globo arrolados por Coelho somam apenas
dezessete, e, dois deles estariam, a nosso ver, “assinados” por apresentarem fotos que
mostram o “repórter em ação”. São duas entrevistas: uma com o célebre técnico de
futebol Mr. Taylor, que comandou o Fluminense no tri-campeonato de 1917, 1918 e 1919
e que retornava ao clube em 1934 (Rodrigues, 2004: 293-6), e outra com o pintor
Cândido Portinari (Rodrigues, 2004: 297-301)37.
Em outras, Nelson deve figurar como redator apenas. A reportagem, que leva o
título de “A “garçonette” que matou o amante – a tragédia que abalou Porto Alegre”, que
saiu em O Globo do dia 13 de julho de 1931 à página 6, foi inclusive apurada e enviada
da capital sul-riograndense, o que elimina a possibilidade de ter sido feita por Nelson
exclusivamente (embora tenha muito de fabulação que um redator poderia acrescentar).
“As lamentáveis conseqüências de um conchilo de Fígaro”, da edição de O Globo do dia
19 de novembro de 1931 à página 3, sobre um furto a uma barbearia quando o barbeiro
tirava uma pestana é outra que parece ter redação rodrigueana sem que o texto da
reportagem aponte para ele como autor. Teria dúvida ainda quanto a um último caso: “Eu
sou o Jaguarão, o preto que tem shoot de branco”, publicada no dia 17 de junho 1931 à
página 18, que narra passagem com esse goleiro que foi uma das figuras do esporte mais
queridas de Mário Filho.
Se os exemplos aqui ilustrados não saíram da pena de Nelson Rodrigues, pelo
menos se teve conhecimento da “escola” em que nosso autor se formou como repórter e
na qual inaugurou seu aprendizado na arte de escrever. Servem assim como panorama
informativo sobre como se deu sua iniciação como escritor.
37
Para confronto das reportagens com ilustração fotográfica ver CD anexo.
138
Desses anos primeiros da vivência jornalística de Nelson Rodrigues, tem-se ainda
os textos assinados. São contos, críticas, resenhas, artigos opinativos.
Em vez de ter
exercitado sua escrita estritamente em um desses rincões de prática jornalística, o escritor
estava no fundo sempre tecendo uma crônica, ainda que esta se insinuasse como um
conto, como uma resenha, como uma crítica, como um artigo opinativo. Por isso parece
mais apropriado buscar apoio na nomenclatura proposta por Afrânio Coutinho (exposta
na seção 2.3.1 da presente Tese).
Poderia se ter assim, e seguindo a tipologia de Afrânio Coutinho, o exercício da
crônica narrativa, da crônica-informação, da crônica metafísica, da crônica-comentário e
da crônica-poema-em-prosa. Para tipificar a crônica narrativa, deve-se recorrer a escritos
como “A tragédia da pedra...”, “O elogio do silêncio” , “Uma história banal...”, “Lucy” e
“A paixão religiosa de Maria Amélia” (as quatro primeiras de A Manhã e a última de
Crítica), onde há uma clara narrativa fabular orientando a escrita do autor. Aqui podemse identificar amostras limítrofes entre a crônica narrativa e a crônica metafísica, já que o
conto serve muitas vezes de instrumento para uma digressão de ordem filosóficoexistencial. Uma das preocupações mais presentes nesses textos, por exemplo, se refere à
discussão sobre o poder corruptor do dinheiro.
Com relação à crônica-informação, onde se enquadra a resenha, tem-se a crítica
de um livro de Brasil Gerson (“Vinte anos de circo”), de traduções de poemas de Oscar
Wilde e Edgar Allan Poe, por Gondin da Fonseca (“Poemas da angústia alheia”), e de
uma ópera brasileira (Esmeralda, de Carlos de Mesquita).
Apesar de Nelson Rodrigues se proclamar monoglota e ser apresentado como tal,
em seu artigo para “O Globo nas Letras”, no dia 18 de janeiro de 1932, à página 7,
139
Nelson comenta a tradução para The ballad of Reading gaol, de Wilde, feita por Gondin
da Fonseca. O poema de Wilde havia saído em edição junto com O corvo, de Edgar Allan
Poe, no volume Poemas da angústia alheia. É admirável que uma resenha literária, se
mostre tão literária, farta em impressões e sugestões poéticas. Sobre a tradução do poema
de Wilde, diz Nelson no papel de crítico literário em uma crônica-informação:
Nada perdeu a “Balada do Cárcere de Reading”, de Oscar Wilde, na tradução de
Gondin da Fonseca. Relendo-a não sei porque me veio ao espírito a imagem de um
violino em transe. Ignoro se me expressarei bem. Mas, logo depois de iniciado o
poema, não nos parece ver e ouvir os arquejos, os relâmpagos, as arestas
vermelhas, os reptos bruscos, as rajadas de insânia, o formidável e glorioso
desespero do divino histérico que é o violino?(...) Wilde surge, para o nosso
assombro, exalçado, sublimado pela dor.
A crônica-comentário pontua um número grande de textos. É quando Nelson
emite opiniões sobre personalidades da vida intelectual brasileira e estrangeira como Rui
Barbosa, Émile Zola, Sortero Cosme, Eros Volúsia, Felippe de Oliveira e seu irmão
Roberto Rodrigues. Todos esses comentários tocam nas obras desses autores, embora
alguns polemizem mais o que representou cada uma dessas personalidades para o
momento cultural de sua época.
Entre elas está uma famosa diatribe que se estenderia por duas edições (distantes
uma semana uma da outra) na qual Nelson, com o maior topete, dizia querer provar que
Rui Barbosa não era um gênio. A sua argumentação até que é bastante convincente.
Afirmava o pequeno jornalista, com convicção e verve surpreendente, no dia 12 de abril
de 1928, à página 3, de A Manhã, que Rui Barbosa é “grande orador, cultura formidável,
inteligência estupenda .... Mas, gênio não” . E na semana seguinte, no dia 19 de abril de
1928 e na mesma página, continuava:
Por que Rui Barbosa não é um gênio?
140
Depois de muito meditar, sempre digo: Ruy não é um gênio porque nada criou,
porque não deixou obras. Todos os gênios criaram e deixaram farto legado. Assim
aconteceu com Milton, Byron, Dante, Homero e outros.
Ruy nada deixou.(...)
Leitor: o único gênio do Brasil foi Euclydes da Cunha. Esse sim, esse deixou uma
obra verdadeira. Nos “Sertões” ele criou. Nesse volume admirável enfrentou
problemas, discutiu fatos, confrontou e descreveu figuras, previu, pintou com cores
fartas e sinceras os cenários deslumbrantes e desoladores de nossa flora, traçou em
linhas precisas e fiéis a psicologia do brasileiro.
Se com Rui Barbosa, o garoto era incisivo, o mesmo não se daria com outros
nomes que figurariam entre os assuntos que pautariam essas suas crônicas em tom de
crítica. Para outros intelectuais como J. Fabrino e Zola, guardaria palavras menos duras.
Com relação a Zola, por exemplo, chegaria mesmo a fazer uma verdadeira ode ao
escritor. O cronista mirim chegaria mesmo a vaticinar:
Mais tarde, quando o homem deixar de ser o homem de hoje, quando a vida
sofrer uma transformação completa e se despojar de qualquer vestígio da vida atual,
os livros de Zola terão um precioso valor histórico. Porque definem uma época e um
homem extintos... (Rodrigues, 2004: 104)
Na prosa do Nelson Rodrigues cronista, já foi identificado o rendimento de
recursos poéticos em efeitos de aliteração e assonância, dado comentado na seção 2.5.3.
Nelson, que chegou a publicar pelo menos algumas estrofes localizadas entre as suas
contribuições para a seção “O Globo feminino” no ano de 1939 ( “A menina de luto” e
“Revelação”; cf. estes poemas no CD anexo a esta Tese), também se exercitou no que
Afrânico Coutinho identifica como a crônica poema-em-prosa. As investidas de sua
escrita por essa prática, sobressaem justamente quando o cronista-resenhista se põe a
comentar os versos de algum poeta. Há poucos foi mencionado como a crítica para as
traduções de Wilde e Poe, feita por Gondin da Fonseca, surgiu apresentada em escrita
poética. Algo semelhante acontece quando Nelson comenta a obra de outros poetas. Ele
escreveu crônicas cometário em tom de crônica poema-em-prosa sobre a poesia dos
141
seguintes autores: Moacir de Oliveira (dois escritos: “Gritos bárbaros” e “O artista”),
Olegário Mariano, Raul de Leone, Hermes Fontes, Juana de Ibarborou e Felippe de
Oliveira. De Moacir de Oliveira chegou a digressionar em tom de poema-em-prosa:
O artista tem, como ele disse [no seu poema “Gritos bárbaros”],
em seu poder, nas mãos de sua fantasia ardente e ampla, todo o mundo. Dentro do
crânio colossal existem alvoradas, ou apoteóticas ou doentias, dentro do crânio,
manhãs fecundas e luminosas, fortes e atléticas, nuas e resplandecentes, gritam a
glória alucinante da luz, gritam a glória majestosa da juventude, arrebatada e pura,
gritam a glória da força e da liberdade; dentro do crânio clamam mares; mares azuis,
mansos, lisos, ou desvairados e torvos; e a noite apaga o sol e entra envolta em
labaredas brancas; e os mistérios trágicos dos abismos e das florestas maviosas
seduzem e empolgam. (Rodrigues, 2004: 83)
Visivelmente seduzido pela figura da poetisa uruguaia Juana de Ibarborou, em
crônica sobre sua poesia, publicada com bela ilustração do rosto da escritora nas páginas
5 e 6 de “O Globo nas Letras”, do dia 13 de junho de 1933, Nelson comenta da seguinte
forma os escritos da autora:
As suas cores têm nostalgias, sonhos, lirismos, delíquios. Os seus coloridos
dão a idéia de que sangram, esplendem, riem. Impõe a uma só cor, um movimento
de gradações infinitas. Há nos seus versos o lampejo terrível de opalas cindidas. O
seu azul é singrado de nuanças como a pupila de um tigre.
Foram apresentados alguns exemplos onde a crônica poema-em-prosa se fez mais
evidente, mas a poesia parecia habitar o cronista resenhista em seus primeiros escritos e
esse traço poderia ser replicado em um número grande de outros casos.
4.2.2 – Folhetinista Pseudonímico
142
A produção folhetinesca pseudonímica de Nelson Rodrigues, com os heterônimos
de Suzana Flag e Myrna, aparentemente marca uma negação do choque permanente que o
autor estabelece entre ficção e realidade. Não há em nenhum dos romances-folhetins de
Flag (cinco no total: Meu destino é pecar, Escravas do amor, Minha vida, Núpcias de
fogo e O Homem proibido) ou Myrna (apenas um: A mulher que amou demais) qualquer
menção a fatos de uma realidade imediata, de uma situação histórica específica. À
semelhança do ciclo teatral mítico, temos que procurar aqui por detalhes para recortarmos
um momento histórico particular ou associarmos a narrativa a um espaço físico peculiar,
já que o elemento trabalhado com ênfase é a fabulação.
Deve-se lembrar, no entanto, que há razões para isso. Nelson Rodrigues estava
querendo afastar essa sua produção de qualquer vestígio que pudesse ligá-la a sua
persona intelectual. Quando começou a escrever como Flag, e anos depois como Myrna,
Nelson já era um autor teatral festejado por seus pares e orgulhoso de seu feito com
Vestido de noiva. Era natural portanto que se recusasse a envolver seu nome com uma
literatura considerada menor como a dos folhetins. Ainda que a sugestão do uso de
pseudônimo tenha vindo de Frederico Chateaubriand, é difícil saber se Nelson assinaria
embaixo a sua produção folhetinesca dessa fase.
Essa atitude é oposta à que terá com sua produção autoral, como já foi visto e
como se voltará a ver adiante. Quando assina seus escritos, Nelson não resiste a jogar
insistentemente com sua imagem pública, bem como com a de seus afetos e desafetos no
campo intelectual. E não só isso: trabalha também a todo momento com sua trajetória
pessoal. A escolha do autobiografismo que surge em suas crônicas é uma confirmação
clara dessa opção do escritor.
143
Pode-se, no entanto, identificar algumas marcas no texto do folhetinistapseudonímico que nos apontam, ainda que de maneira discreta e tangencial, o cenário das
ações e a origem e situação histórica retratada pelo autor. Meu destino é pecar abre a
série de folhetins pseudonímicos em atmosfera rural. Como em Álbum de família, peça
escrita no mesmo período, o primeiro romance-folhetim da mais famosa persona
feminina rodrigueana se passa em uma propriedade do interior, a Fazenda Santa Maria,
próxima de uma cidade de nome fantasioso: Nevada. Há, porém, um bar a pouca
distância dali que leva o nome de Flor de Maio, uma flor característica da região onde se
localiza o estado do Rio de Janeiro.
As ações do segundo folhetim, Escravas do amor, e do último, O homem
proibido, se passam no Rio de Janeiro. É, no entanto, preciso prestar atenção a detalhes
para se reconhecer a indicação de que o Rio de Janeiro é o cenário desses folhetins. Nos
outros folhetins não há menção ao espaço da ação. Em Minha vida, a autobiografia de
Suzana Flag, o terceiro folhetim, somos informados de que os pais de Flag são de origem
canadense e francesa, muito embora nada mais na trama possa ter alguma relação com a
nacionalidade dos pais suicidas da pretensa escritora. Em A mulher que amou demais, só
há a indicação de uma lagoa e de um mar, próximos ao local em que transcorre o enredo.
Durante o correr de Núpcias de fogo, fica-se sabendo que uma irmã do padrasto da
protagonista, veio da cidade de Aimorés que, ainda que não seja dito, fica no estado de
Minas Gerais. Essas são insinuações esparsas e casuais: nunca se vê a presdisposição da
“autora” em assinalar o ambiente de seus folhetins.
Na orelha do livro Escravas do amor, Ruy Castro comenta que a “delícia do livro
é o seu sabor tipicamente anos 40: os trajes de banho são maiôs de borracha ou
144
sarongues, as mulheres usam cinta, combinações e meias, e um beijo na boca significa
um compromisso eterno. Mas não se iluda: a inocência é só aparente. Por trás da moral de
ferro que sufoca os personagens, respira-se o tempo todo a violência e as obsessões
sexuais das narrativas de Nelson Rodrigues” (Rodrigues, 2001). A bem da verdade, devese dizer que a ambientação nos anos de 1940 é por demais comedida, embora o restante
contido nas observações do biógrafo de Nelson seja exemplarmente correto.
O detalhe fundamental é que quem se apresenta sempre como personagem
transgressora no cenário desses folhetins pseudonímicos são as mulheres. Desde Lena, o
foco da ação de Meu destino é pecar, identifica-se a predileção que as heroínas ganharão
no texto ficcional pseudonímico rodrigueano. Se elas já aparecem como personalidades
fortes em suas peças escritas até então, iriam acima de tudo dominar a cena em seus
romances-fatiados. Apesar de toda a celeuma e aura machista que as declarações públicas
do escritor causaram, em seu universo ficcional foi ele um dos grandes afirmadores do
desprendimento feminino.
Sob a pena de Flag e Myrna, as mulheres fazem e acontecem. Nada comedidas,
espreitam, sem constrangimento, rubor ou timidez, o homem sedutor em todo lugar. E
mais, se atiram sem pensar e sem censura em seus braços. Fazem ainda joguete de seus
objetos do desejo ao sabor de seus interesses pessoais. Em vez de serem submissas ou
sofrerem por aqueles que desejam, se movem em busca da realização de suas paixões
individuais. Mesmo quando aceitam casamentos por conveniência, se rebelam contra essa
situação e se lançam logo aos braços de novos amores, trabalhando a disrupção de uma
perfeita e tranqüila ordem conjugal.
145
As heroínas jovens que ainda não casaram namoram, por sua vez, à revelia da
opção dos pais e parentes. Sempre envolvidas em disputas e rivalidades com irmãs,
primas, mães, elas trocam de par a todo instante e nunca sabem bem ao certo que homem
de fato desejam (parecem na verdade desejar a todos). Até as mulheres mais velhas e as
solteironas, que também povoam as narrativas, são mulheres permanentemente movidas
por suas paixões.
A ousadia maior dessas heroínas são os beijos. Beijam por iniciativa própria essas
personagens. E são os beijos o momento máximo dessas narrativas. As grandes
personagens femininas dos folhetins dos anos de 1940 e início dos anos de 1950 só
seriam superadas no desprendimento de suas atitudes, posturas e comportamentos, pelas
personagens dos contos e folhetins autorais que se seguiriam a essas produções do autor.
Em contraste com as mulheres que repetidamente se enamoram de sua
feminilidade em frente ao espelho, temos a aparição, em todos os romances-folhetins
desse período, dos defeituosos físicos, dos mutilados, dos desfigurados. Uma escrita
seduzida pelo paradoxo, não poderia deixar de explorar o contraste que nossas
construções culturais estabelecem entre o belo e o feio. O Victor Hugo dos trópicos
povoa assim seus escritos com personagens que seguem a linhagem do Quasímodo
hugoniano: Netinha e sua perna mecânica estão em Meu destino é pecar, professor Jacob
e sua tenebrosa cicatriz facial e o jardineiro Bob, o “Fantasma da Ópera” (deformado por
Mag; uma das onças de estimação do professor Jacob), em Escravas do amor, Cláudio e
sua perna de pau, em Minha vida. É a própria protagonista Joyce quem fica cega durante
o correr da ação de O homem proibido. Isso não privará, é bom que se diga, esses
peronagens, que parecem saídos de uma fita B de cinema, de despertarem paixões fortes.
146
A narrativa de Meu destino é pecar é (muito) levemente inspirada no livro
Rebecca, da escritora Daphne Du Maurier, publicado na mesma época e em seguida
adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock (no Brasil, Rebecca, a mulher
inesquecível). Nele temos o surgimento de mais um tipo feminino irresistível e que
pautaria os escritos da época: as mortas-vivas. Ao contrário da Rebecca de Du Maurier,
as mulheres dadas como mortas nas tramas de Flag e Myrna somem por decisão própria
para viver alguma paixão em paz. Ressurgem sempre para dar fôlego às indispensáveis
reviravoltas rocambolescas, rendendo algumas laudas a mais para o redator.
Guida, a primeira delas, que teria sido devorada por cães raivosos, inaugura o tipo
em Meu destino é pecar. Ela seria seguida por duas outras mortas-vivas: Helena, em
Núpcias de fogo, e Virgínia, em A mulher que amou demais. Ainda que seja uma mortaviva, Helena, de Núpcias de fogo, acabará morrendo de fato em um acidente de carro.
Depois de sumir em um passeio de barco e reaparecer, ela será atropelada por Carlos, seu
ex-noivo no passado e com quem reatara após sua reaparição (o acidente ocorre para dar
curso ao romance entre a protagonista, Dóris, e seu par).
Com a morte de Helena tem-se mais um sinal do diálogo dos escritos
folhetinescos, mesmo aqueles escritos sob heterônimos, com as peças, contos e romances
de Nelson. Do mesmo modo como iria acontecer a Arandir, o protagonista da peça O
beijo no asfalto, Helena ao ser atropelada pede um beijo (pedido que será correspondido)
a um transeunte desconhecido, como último desejo. Antes disso, ela solicitara ainda para
ser enterrada vestida de noiva, como o Eusebiozinho, do conto “O delicado”, de “A vida
como ela é...”. A rivalidade entre mulheres (entre irmãs, entre primas e entre mães e
147
filhas), bem como as insinuações incestuosas são elementos que marcariam as narrativas
folhetinescas e também permeariam boa parte das peças, contos e romances.
Dentro da produção pseudonímica de Nelson como Flag e Myrna, há três escritos
que merecem consideração pontual. O primeiro deles é o folhetim Minha Vida, a
autobiografia de Suzana Flag; os outros dois são os “consultórios sentimentais”, como
têm sido chamados, dos heterônimos femininos do autor. Ao se propor a redigir a
autobiografia de uma autora inexistente, uma narrativa tão mirabolante e delirante quanto
os enredos que a pretensa escritora assinava, e ao criar, com as colunas “Myrna escreve”
e “Uma lágrima de amor”, publicadas respectivamente nos jornais Diário da Noite e
Última Hora, personalidades públicas que respondem às cartas de leitoras angustiadas em
suas relações amorosas, Nelson volta a jogar com as noções sobre os limites entre ficção
e realidade. E pouco importa que as cartas nos pareçam ser em sua vasta maioria
inventadas pelas próprias “colunistas”.
4.2.3 – Repórter, Contista Consagrado, Folhetinista Autoral
Se em suas primeiras reportagens como “jornalista-foca”, Nelson Rodrigues não
se constrangia, como visto, em projetar sua imaginação para além dos dados factuais, nos
textos do jornalista-repórter, escolhido por Samuel Wainer para ser uma das estrelas do
diário que faria história na imprensa brasileira, essa opção apareceria como uma
prerrogativa indiscutível. As reportagens do Última Hora, assinadas pelo escritor,
reforçam essa tendência de suas produções como repórter.
148
Em sua atuação na reportagem do Última Hora, Nelson fez a ronda da cidade do
Rio de Janeiro a bordo de uma radiopatrulha, recebeu a visita e conversou na redação do
jornal com ex-combatentes brasileiros da Segunda Guerra e incursionou por uma casa de
correção carioca em Bangu (esta última reportagem resultou em uma série de três
relatos). Se saiu com narrativas surpreendentes, nas quais não resistiu a tentação de
deixar patente sua perspectiva pessoal. Na reportagem sobre a ronda policial, em uma
matéria não assinada, mas que pode ser identificada por uma fotografia do “repórter em
ação”, na edição do dia 16 de julho de 1951 à página 8, tratou da paixão, segundo ele, do
carioca pelo serviço de rádio patrulha:
Primeiro houve o namoro da cidade com a Rádio-Patrulha. Nós a conhecíamos do
cinema. E quando ela se inaugurou entre nós, não houve nenhum esforço de
assimilação. Era como se os carros e as respectivas antenas se transferissem,
diretamente, da tela para a realidade carioca. E foi um [amor], uma paixão, um
exagero. Qualquer coisinha chamavam a Rádio-Patrulha. Brigas de família, discussões
[de casais] e até parto, davam margem ao chamado. E os carros apareciam
instantaneamente, de uma maneira quase surrealista. Mas essa prodigiosa eficiência
não durou muito. A RP começou a falhar. Às vezes não atendia, ou custava a atender.
Até que chegou o momento em que passou a ser um espectro de si mesma.
Essa a abertura da reportagem que seguirá acompanhando a ronda de um serviço
de Rádio Patrulha que, sob o comando do major Bruno Fraga Ribeiro, se reestrutura para
atender novamente com eficiência ao cidadão carioca. Com o repórter e o fotógrafo
sentados no banco de trás de uma viatura e tendo contato com os incidentes
testemunhados pelos policiais em uma noite de sábado, acompanha-se um acidente de
carro na Presidente Vargas que feriu um jovem gravemente e tirou a vida de um rapaz e
de uma moça. O leitor é levado à cena pelo repórter:
Súbito irrompe alguém do carro, cambaleia e estaca, num deslumbramento. É
um homem pintado da cabeça aos pés, pelo próprio sangue. Parte do couro cabeludo
desprendido. Tão escarlate seu sangue – tão berrante – que mais parece tinta,
maquilage mal feita de carnaval ou de teatro. Fala, isto é, soluça palavras que ninguém
entende. E parece, sobretudo, espantado, como se fossemos espectros diante dele ou
149
como se ele fosse espectro diante de nós. A guarnição da RP, diligente, dinâmica,
eficaz, cumpre sua função. No fim de tudo, um dos seus membros dirá,
impressionadíssimo:
- Olha só o tamanho desse carro.
Sobre as agitadas noites do fim de semana, registra a pena do escritor que se
esconde na pele de réporter:
(...) São fatos que estavam contidos durante a semana e se desembestam no
sábado e no domingo. Paixões, frenesis, bodas secretas e impossíveis, ódios e os
íntimos desgostos libertam-se no fim de semana. (...) Voltaria sábado, sim. Para
completar as 24 horas de RP. E, naquele momento, uma moça de 19 anos deixara de
ser e, no mármore parnasiano do necrotério, estava enfim tranqüila, a boca sem rictus,
a vaidade esquecida, enterrada na sua morte como num claustro para sempre.
De sua incursão por um presídio feminino, em reportagens que inauguram sua
atuação no jornal de Wainer, trouxe os dramas das detentas Dinaura Amorim Cruz, Léa
Costa de Albuquerque e Alzira Smovischi, que aparecem na série intitulada “No
cemitério das mulheres vivas”, que circulam nos dias 12, 13 e 25 de junho na página 12
do jornal38. De Dinaura, o repórter nos conta que ela foi presa por sua colaboração
passiva no assassinato do marido (cometido por um amante da moça) e posterior
ocultamento do crime. Antes de presenciar a cena do crime, nada fazendo, a detenta
sofreu com as pressões do esposo que desconfiava do romance e que prometia
insistentemente matá-la.
Nelson relata a história à sua moda, floreando o episódio. Do drama de Dinaura
nos fala como narrador onisciente incontido que, como já se comprovou em outras
reportagens, gosta de ser:
[E]la sem querer e sem sentir, foi pensando nessa morte que antecipavam [ela
e o amante] com uma certeza tão absoluta. De noite, no quarto, imaginava-se morta.
Umas idéias puxavam outras: não era o fato de morrer que a espantava e assustava: era
ser enterrada. Pensava que os mortos são mais dóceis e, na verdade, deixam fazer tudo
com uma doçura, uma resignação que nunca tiveram na vida. Sob sugestão do “rapaz”
38
Conferir o CD anexo desta Tese para apreciação, confronto e preciso conhecimento de todos esses textos
que aparecem também identificados em listagem ali alocada.
150
[seu amante], imaginava, quantas vezes, o momento em que fecha o caixão e ... O outro
interpelava:
- Você quer morrer?
- Não!
- Pois parece.
A extensão do apego do repórter aos fatos pode ser questionado pelo leitor atento
quando este esbarra em um segundo drama, este protagonizado por Lea Costa de
Albuquerque, que matou o marido. Os atos de crueldade com animais, que permeiam
muitas narrativas rodrigueanas, aparecem aqui nas atitudes da filha de Lea Costa, que foi
pega a quebrar pernas de passarinho. Descontente com o comportamento da filha, o pai
da menina decide aplicar-lhe um castigo, o que desperta a ira incontrolável da esposa, que
o mata. Alzira Samovischi fará o mesmo com o marido, depois que este resolve extorquila, ameaçando levar a filha do casal caso ela não emprestasse uma quantia em dinheiro.
Uma última reportagem do Nelson Rodrigues repórter é apresentada com o título
de “Os mendigos da Pátria – romance de três pracinhas”, surge na edição do dia 19 de
junho na costumeira página 12, e narra a vida de medicância a que os soldados brasileiros
que foram enviados à Europa durante a Segunda Guerra tem de se submeter depois da
volta. Após o encerramento das atividades do jornalista-repórter, é a hora de assumir a
pena o contista.
Nelson diz que os folhetins da fase pseudonímica serviram de ensaio para suas
pretensões de escritor. Além do aprimoramento de sua técnica narrativa, ajudaram-no no
refinamento da prática de elaboração de diálogos. A maturação desse projeto nós iríamos
ver extraordinariamente realizada nos contos e folhetins que assinou com seu próprio
nome e que se iniciaram nos anos de 1950 dentro do jornal Última Hora. São os contos
das seções “Atirem a primeira pedra”, “A vida como ela é...” e “Pouco amor não é amor”,
151
e ainda os folhetins “A mentira” e “Asfalto selvagem”, dos quais nos ocuparemos a
seguir.
Com os contos e folhetins autorais, esta Tese adentra a sua vertente mais
deliciosamente aprazível. Um espaço onde a reportagem rudimentar, o choque do que
ficou conhecido como o “teatro desagradável” (a fase pesada das peças míticas), a
narrativa arrastada dos folhetins pseudonímicos, cedem lugar à concisão de contos
brilhantemente escritos, ricos em sua variedade de perspectivas e de abordagem. É o
momento também em que se pode avaliar os limites do trágico dentro da produção do
autor.
A estréia daquela que seria sua coluna de contos, que começa com o título de
“Atirem a primeira pedra” para depois de perto de cinqüenta edições assumir o título
definitivo de “A vida como ela é...”, ainda seria feita, como já visto, a partir de um
incidente real: o desabamento de um cinema em Campinas, quando um número grande de
crianças, que assistia à matinê da fita de mocinho Os salteadores, em sessão dupla com
Amar foi minha ruína (Leave her to heaven, em inglês), no cine Rink, acabou vitimada.
Mas já na segunda coluna, com o conto “Inútil vestido de noiva”, sobre uma noiva que vê
seu parceiro sumir no dia do casamento, o espaço assumiria a feição dos textos de todas
as contribuições subseqüentes do autor para o jornal.
Com relação à questão do trágico, deve-se dizer que se o autor, em em seus
contos, não consegue abandonar por completo a morbidez, ele de qualquer jeito assumirá
o papel de um cômico de mão cheia. O lado farsesco, picaresco, burlesco, domina a pena
do escritor (tintas estas que também respingariam indiscriminadamente o quadro do
teatro das tragédias cariocas). Se for feita uma avaliação geral dos contos rodrigueanos
152
do período, se verá que o lado cômico do autor predominava. Com base nas três
coletâneas que são objeto da presente análise e no material por mim consultado em
microfilme e anexado a esta Tese, é possível constatar essa tendência em sua escrita. O
entrecho zombeteiro, rico em troças, satírico, comanda as narrativas da grandissíssima
maioria das estórias. Se Magaldi destaca o desfecho trágico como característica do teatro
rodrigueano e ele também está presente nos contos, deve-se trabalhar essa visão de forma
mais comedida em relação a outros segmentos de sua escrita.
Isso porque, se há casos de narrativas como as de “Delicado” e “As gêmeas”, dois
entrechos assombrosamente sinistros, muitas estórias, entretanto, têm um tom
indisfarçavelmente cômico. É o caso de “A eterna desconhecida” (Rodrigues, 1999b:
142). Ao descrever Andrezinho, protagonista desse conto, o narrador dá o tom da
narrativa.
Perguntava por toda parte: “Sou ou não sou bonito?”. A princípio, fazia isso
por brincadeira. Mas, pouco a pouco, pela repetição, aquilo tornou-se um hábito, um
vício. E acontecia, não raro, uma coisa interessante: apresentado a uma pessoa, em
vez de dizer “muito prazer”, perguntava:
- Sou ou não sou bonito? (Rodrigues, 1999b: 143)
O restante do enredo se passará com um amigo do protagonista, Peixoto, um
defeitoso físico, desafiando Andrezinho a conquistar uma pequena que, garante, não daria
a mínima para o garboso galã. O protagonista acabará, com a morte de Peixoto,
inconsolável por não ter podido conhecer a dama inconquistável. Como este, vários
outros contos têm um desfecho trágico tão caricato, que nada apresentam de dramático.
Há outros desenvolvidos com a exposição de uma situação trágica, mas cujo
desenlace também é cômico. É o caso de “O grande viúvo”, que se aproxima bastante do
enredo do primeiro escrito de “A vida como ela é...”, intitulado “O homem do
153
cemitério”, e de uma estória posterior, que levou o título de “O mausoléu”. Neles, um
viúvo inconsolável deixa seus familiares preocupados com a sua obsessão com a morte
da mulher. Todos passam a procurar uma solução para demover os viúvos dessas estórias
de suas fixações doentias com suas ex-mulheres. A solução aventada em todas essas
narrativas é sempre a invenção de um amante para macular a imagem da esposa morta.
No caso de “O grande viúvo”, há o agravante de que o viúvo anuncia reiteradamente que
quer dar cabo à própria vida. Quando a família consegue um primo conhecido para
“passar pelo amante”, vem a grande reviravolta, o viúvo ao invés de ódio mortal ao
suposto amásio de sua ex-esposa, diz ter finalmente encontrado alguém com quem pode
conversar de igual para igual sobre sua mulher.
O paradoxo da situação e do desfecho é evidente e é traço repetido em outros
contos. Um segundo caso seria a estória de “Para sempre fiel” (Rodrigues, 1999a: 31),
que de novo é emblemática do que se procura assinalar aqui. O conto narra a tentativa do
personagem Odilon de convencer a namorada Odaléia de que era melhor uma separação
entre os dois porque ele não acreditava na possibilidade de uma fidelidade incondicional
e eterna por parte de sua amada. O paradoxo já surge na própria proposição do
enamorado. Odilon diz a certa altura:
- Você deve me chutar enquanto é tempo. Eu não interesso nem a você, nem a
mulher nenhuma. Agora mesmo, neste momento, eu estou pensando que você há
de me trair um dia. Isso deve ser doença. Eu sou um doente mental. – Num esgar
de choro, pede: - Arranja outro namorado, arranja um sujeito que acredite em ti.
(Rodrigues,1999a: 33)
A apreensão do rapaz com a traição, como se vê, não envolve em momento algum
sua consideração pessoal e privada sobre a condição de traído. Em vez disso, Odilon está
preocupado com a pessoa que por ventura poderá vir a traí-lo, e enxerga mesmo um
aspecto doentio em sua descrença na fidelidade. Odilon acha que Odaléia deve viver sua
154
fantasia de credulidade na lealdade amorosa com alguém que compartilhe devaneio
semelhante.
Odaléia se sente ofendida e diz que vai provar que nunca o trairá. E eis que ao
final da breve narrativa ela o faz se matando. Não comete o suicídio, no entanto, sem
antes deixar suas últimas palavras para o namorado nos dizeres: “As mortas não traem”
(Rodrigues, 1999a: 34). O elemento paradoxal deste conto está presente em tudo: no
inusitado da situação apresentada, no inesperado da conclusão da estória e na frase que
confirma que, de fato, a moça nunca mais trairá a pessoa amada, ainda que isso não
venha a acontecer porque ela não estará viva para fazê-lo.
Com o primeiro folhetim autoral, A mentira (2002), publicado originalmente no
Jornal da Semana Flan (encarte que circulava aos domingos com o jornal Última Hora) e
editado como resultado do trabalho de recuperação dos escritos perdidos de Nelson
Rodrigues feito pelo pesquisador Caco Coelho, tem-se outro exemplo. A falsa gravidez
de uma adolescente, fruto de um diagnóstico errôneo, segura a trama do começo ao fim.
Um pai, apaixonado por sua filha menor (uma nova incursão do autor pelo tema,
reincidente em sua escrita, de problematização da interdição do incesto), supõe, em
conseqüência da inépcia de um médico esclerosado, que a menina está grávida. Passa,
como todos na trama, a viver a gravidez imaginária como um fato. E, ao invés de
recriminar a garota (que mora com a mãe, outras três irmãs e respectivos maridos sob o
mesmo teto), tem a reação inicial de alertar a todos os familiares para a necessidade de
compreensão e proteção adicional para com a menina em função do inconveniente
ocorrido com ela.
155
A ausência de recriminação não é o único dado inesperado em um ambiente
conservador. A ambivalência das atitudes do pai é patente. Ele pode ser sensato como na
passagem descrita acima, ou pode ser capaz do disparate de, ao descobrir no correr da
estória que a filha não é legítima, dar graças aos céus pela possibilidade de viver a
fantasia de um dia talvez ter um caso com a menina (o que será desenvolvido,
obviamente, com requinte na trama).
Os paradoxos do autor extrapolaram a própria estória. Na época do lançamento do
folhetim ainda nos anos de 1950, Nelson Rodrigues deu entrevista ao Jornal da Semana
Flan para divulgar o romance seriado e se saiu com um sortimento de afirmações
totalmente em desacordo com o que se entende por senso comum. A mentira, cuja
condenação está enraizada no pensamento popular e que é sempre preterida frente à
verdade, ganhou um inesperado interesse do escritor. Passou, em função disto, a ser vista
mesmo como uma dádiva. Na entrevista que concedeu na ocasião, o autor comentava: “A
mentira mantém a máquina do mundo e impede que ela seja destroçada. As relações
humanas, mesmo as mais íntimas, se constroem sobre a mentira e dela extraem sua
melhor carga de poesia. Chego mesmo a pensar que a verdade é uma coisa hedionda,
feita para habitar os asilos de psicopatias incuráveis” (Rodrigues apud Pires, 2002). Não é
preciso dizer que nada disso tem relação alguma com a estória presente no folhetim. Lá a
mentira é o elemento que move o conflito e que traz instabilidade para a narrativa.
O paradoxo nos leva a um outro elemento muito explorado por Nelson que é o
contra-senso. Rosinha, personagem do conto “Marido fiel”, garante: “Pois fique sabendo.
Confio mais em meu marido do que em mim mesma” (Rodrigues, 1999a: 144). Marlene,
no conto “Despeito”, diz, em tom cômico, que seu marido Rafael “é um caso sério”.
156
“Não me dá uma folga. Faz uma marcação tremenda. Desconfia até de poste!”
(Rodrigues, 1999a: 174). A personagem Vilma de “Traído por ser bom” vive um
“adultério sem sobressaltos, sem correrias, sem incidentes” que “pouco diferia da rotina
matrimonial”. E chega mesmo à conclusão: “Não tenho amante. Tenho dois maridos”
(Rodrigues, 1999b: 235).
Em “Anemia perniciosa”, o protagonista Alcides recebe uma carta anônima
informando sobre as traições de sua mulher, que julgava a mais fiel das esposas. Como
era a primeira carta sem assinatura que recebia em seus trinta e seis anos de vida, resolve
pedir ajuda informal a um amigo, Godofredo, que diz: “- Respeito muito as cartas
anônimas. São as únicas que dizem a verdade!”. O amigo gagueja incrédulo, para ouvir
de Godofredo: “- Claro! O fato de não ser assinada é uma garantia de veracidade. O
anônimo não mente!” (Rodrigues, 1961a: 168).
Citou-se há pouco o entrecho de “A eterna desconhecida” (Rodrigues, 1999b:
142) e entre as falas do personagem-galã Andrezinho, um conquistador às voltas com o
fato de não saber quem é a mulher inconquistável mencionada por um amigo, pode-se
colher mais um nonsense rodrigueano. Diante da dificuldade de vir a saber quem seria a
mulher, o protagonista chega à conclusão: “Estou apaixonado e não sei por quem. Vê se
pode?” (Rodrigues, 1999b : 145). Adiante o narrador definirá a situação do rapaz como a
de alguém “condenado a amar uma mulher que jamais conheceria” (Rodrigues, 1999b :
146).
Como nos folhetins pseudonímicos, as mulheres são as grandes personagens dos
contos. Fazem e acontecem. Só que dos folhetins de Suzana Flag e Myrna para os textos
autônimos, elas se tornaram mais ousadas e traem com uma desinibição, audácia e
157
atrevimento como nunca vistos até aqui nos escritos do autor. A Jandira de “Sem caráter”
(1999 a: 52) não esconde do amante que está noiva. É quando o rapaz em seu raciocínio,
embebido em contra-senso, faz a constatação inesperada de que o noivo dela é um paxá e
de que ele, o amante, não passa de um pobre coitado. Pede, assim, que ela termine seu
noivado. No entanto, tem de ouvir o seguinte comentário inescrupuloso da moça:
“Desmanchar com meu noivo para quê? Não está tão bom assim?”, observação que será
completada pela frase audaz: “Eu continuarei contigo, bobo!”. Ao que
o amante
retrucará: “Mesmo depois do casamento?”. Para ouvir: “Claro” (1999 a: 55). Numa
sociedade patriarcalista, machista, como a brasileira, chama a atenção uma amante
desinibida. Por outro lado, nessa mesma sociedade, só um amante rodrigueano poderia
aparecer como um pobre coitado.
Muitos críticos, a partir de declarações do próprio autor, destacam a proximidade
dos contos rodrigueanos desse período com algumas das peças rotuladas de “tragédias
cariocas”39. E, de fato, Nelson Rodrigues experimentou algumas idéias em seus contos
antes de desenvolvê-las em suas peças. Há como se identificar, por exemplo, as origens
de A falecida nas estórias de “A incrível Madame Esmérie” e de “A cartomante”. Tratase de dois contos do período de “Atirem a primeira pedra”, que já trazem a praticante de
cartomancia que vaticina o horror em suas clientes. O enredo de A falecida seria mais
desenvolvido ainda no conto “Um miserável”, do dia 27 de novembro de 1951, nono
texto de “A vida como ela é...”, quase dois anos antes, portanto, de a peça estrear, em
junho de 1953.
Se em suas peças e folhetins produzidos até aqui o foco de interesse era a classe
média, Nelson nesses contos escolhe também retratar, como em suas tragédias cariocas, a
39
Entre eles deve-se citar especialmente Magaldi, Sábato (op. cit, 2004).
158
vida comezinha de uma população suburbana localizada em um degrau ainda mais abaixo
na escala social. É o cenário do subúrbio carioca das classes operárias que será
especialmente mitificado e dramatizado pelo contista. A classe média ascendente, os
novos endinheirados, aparece como elemento de contraste. Há o estabelecimento de uma
oposição entre a vida de personagens ricos, perdulários, e o destino daqueles que são
destituídos de quase tudo. A riqueza comum a todos é a paixão, e seu fulgor é dependente
do elemento que traz instabilidade e move o andamento de todos os contos: a traição (ou
a possibilidade de sua concretização). É o que justifica as ações extremadas, apaixonadas
e cegas dos personagens.
A inserção de dados factuais em seus contos desse período surgirá de novo como
aspecto importante. Nelson segue, por exemplo, exercitando seu gosto e despudor em se
apropriar de imagens da cultura de massa. De novo temos referências a óperas, ao cinema
e aos símbolos dessa cultura: Cavalleria rusticana, King Kong, Tarzan, havaiano de filme,
Cecil B. De Mille. Surgem também as divergências intelectuais e os ataques aos seus
desafetos na cena intelectual brasileira do período. Em seus contos, Nelson não se
constrange em recorrer a sua pena ficcional para desferir estocadas nas opiniões de
pessoas como Carlos Drummond de Andrade e Gustavo Corção.
É através de seu personagem, dr. Eustáquio, que, por exemplo, investe contra o
poeta de Itabira. No conto “Covardia” (Rodrigues, 1999 a: 16), a personagem Rosinha
queria apenas um amor espiritual com Agenor, mas resolve prevaricar depois que
Marcondes, seu marido, se mostra um frouxo quando um padeiro a desacata. No dia em
que vai ao encontro do pretenso amante aparece o dr. Eustáquio, justo quando ela
159
aguardava o amante, e se oferece para fazer-lhe companhia enquanto Rosinha espera
“uma amiga”. Dr. Eustáquio, então, comenta:
- A minha amiga tem lido o Drummond, o Carlos Drummond de Andrade? O poeta!
Pois é. A gente vive aprendendo. O Drummond é contra Brasília. Meteu o pau em
Brasília. Acompanhe o meu raciocínio. Se Drummond não aceita Brasília, é um falso
grande poeta. Não lhe parece? A senhora admitiria um Camões que não aceitasse o
mar? Um Camões que, diante do mar, perguntasse: -“Pra que tanta água?”. Pois, minha
senhora, creia. Recusando Brasília, o Carlos Drummond revela-se um Camões de
piscina ou nem isso: - Um Camões de bacia!
Desatinada, Rosinha via o tempo passar. O dr. Eustáquio fazia-lhe outra pergunta
amável: -“Gosta de poesia?”. Quase chorando, diz: -“O Araújo Jorge aprecio”. (...)
Esperaram ali, dez, vinte, trinta, quarenta minutos. O dr. Eustáquio não parava; é estava
dizendo: - “Nós tivemos um Homero. O Jorge de Lima. Morreu. Brasília está lá,
profetizada, em “Invenção de Orfeu”. Subitamente, Rosinha corta:
- Minha amiga não vem mais. Vou-me embora. (Rodrigues, 1999 a: 19)
No caso de Corção, vê-se um ataque tão cáustico quanto os que faria em suas
crônicas da década seguinte em relação a nomes como o de Dom Hélder Câmara e de
Tristão de Athayde (ou Alceu de Amoroso Lima). O conto “Sórdido” apresenta as
seguintes falas em seu trecho inicial:
Começa perguntando:
- Topas uma farrinha hoje?
Do outro lado, Camarinha boceja:
- Hoje não posso. Outro dia.
E Nonato:
- Escuta seu zebu. Tem que ser hoje. Vamos hoje. Escuta, Camarinha. Eu acabo de
ler o Corção. Deixa eu falar. E quando leio o Corção tenho vontade de fazer bacanais
horrendas, bacanais de Cecil B. De Mille! (Rodrigues, 1999 a: 62)
Ao examinar-se o caso de Asfalto selvagem - Engraçadinha, seus amores e seus
pecados (1995), que retoma a prática folhetinesca nas páginas do Última Hora, agora
enriquecida pela experiência de contista, se constatará que Nelson Rodrigues faz de novo
entrar em sua trama seus companheiros de redação do jornal de Wainer, bem como
personalidades da vida cultural brasileira como Guimarães Rosa, José Carlos de Oliveira,
Wilson Figueiredo, Tristão de Athayde, ou mesmo Eduardo Portella, um jovem crítico
160
literário então, alguns deles tratados de forma tão ácida e cáustica como nos contos. Além
disso, o autor trouxe mais uma vez referências culturais da época. Há, por exemplo, a
menção recorrente ao filme Les amants, de Louis Malle (a película predileta de um dos
protagonistas) e as movimentações políticas com a eleição de Jânio Quadros.
4.2.4 – A Linguagem das Reportagens, dos Folhetins, dos Contos
O século XX viu aparecerem as preocupações literárias que se traduziam em
experimentações de ordem técnica e formal. O desafio à ordem cronológica da narrativa
tradicional, a criação de uma atmosfera complexa, a representação da subjetividade e a
escrita como um jogo cerebral marcaram essa tendência literária. No contexto do
Modernismo, e do seu desdobramento no Pós-Modernismo, vimos escritos que recriaram
inventivamente o suporte mesmo com o qual os escritores se exprimem, às vezes para
produzir efeito narrativo como na passagem abrupta do discurso direto para o indireto e,
às vezes, trabalhando o efeito da escrita em seu aspecto mais elementar: sua expressão
gráfica. As novidades formais nessa área podiam surgir num romance de James Joyce,
que começa com letra minúscula, num texto de Clarice Lispector, que se inicia com uma
vírgula e termina em suspenso com dois pontos, ou no encerramento de uma epopéia
rosiana, assinalado pelo símbolo de infinito.
No campo jornalístico nos anos de 1960, ninguém trabalhou as possibilidades
expressivo-gráficas de maneira mais exuberante do que o escritor Tom Wolfe. Wolfe foi
um dos que se utilizou de uma escrita rica em grafismo para expressar principalmente
suas conhecidas onomatopéias. Os dois recursos gráficos trabalhos por Nelson são o
161
ponto de exclamação e as reticências. Nelson era saudosista do tempo em que os jornais
salpivam suas chamadas com o “grito gráfico”, como dizia, do ponto de exclamação. As
passagens comentadas no fim da seção anterior, que tematizam os ataques de Nelson a
Carlos Drummond e a Gustavo Corção, podem ser apreciadas justamente por
apresentarem um excessivo uso do ponto de exclamação.
Mas sua mania eram, principalmente, as reticências. São incontáveis os textos
assinados por ele, em que elas aparecem. Nos títulos dos primeiros textos de A Manhã
temos: “A tragédia da pedra...”, “”Gritos bárbaros”...”, “Uma história banal...”, “O
rato...”, “Palavras ao mar...”, “As cedulas...” e “Rui Barbosa...”. Dos tempos de Crítica
surgem duas: “Um homem fora de moda...” e “O homem que se destacou...”. Em O
Globo, durante a década de 1930, a mania prosseguiria: “O estilista do amor e da
morte...”, “Sonho de Leviathan...”, “A noiva de Pan...”, “Retrato lírico do morro...” e até
no título (“O irmão...”) daquele que deveria ser o capítulo inicial de “A cidade”, seu
primeiro romance, nunca publicado. Finalmente, as reticências aparecem inevitavelmente
no título de sua coluna mais falada: “A vida como ela é...”. Este gosto surge ainda no
próprio corpo do seu texto, como já devem ter notado os leitores mais atentos.
Cristiane Costa, em seu
Pena de aluguel (2004), trata da chegada dos
modernistas brasileiros e de sua influência sobre a linguagem jornalística que marcaria o
século XX, acentuando o papel desempenhado nesse contexto por escritores como
Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade. Depois de
lembrar a trajetória de mestre Graça, Drummond e Oswald, e como esses três literatos
tiveram atuação na imprensa brasileira da era que antecedeu a chegada da televisão,
162
associa a participação dos três na definição de uma nova linguagem para os jornais. Da
prática de Graciliano, nos diz especificamente:
Impopular, logo ganharia no jornal um apelido: neurótico da língua. (...) Só
respeitava o substantivo, riscando o adjetivo, que ele chamava de miçanga literária.
Era contra “reticências porque é melhor dizer do que deixar em suspenso”.
Exclamações também não usava: “não sou idiota para viver me espantando à toa”.
(Costa, 2004: 93)
As críticas de Graciliano trazem para a autora uma condenação do estilo que
vingou entre os jornalistas brasileiros enquanto éramos uma “provícia da França” (ou
seja, até as primeiras décadas do século XX). Costa destaca as observações de Nelson
Werneck Sodré que caracterizou o período como “marcado pela ênfase, na fascinação
pela palavra sonora, pela expressão desusada, pela orgia de adjetivos e pela pletora das
metáforas” (Sódre, apud Costa, 2004: 99). Todos estes elementos eram queridos a Nelson
que, além de ter nos adjetivos sua “tara estilística”, como destaca Cristiane Costa,
abusava dos superlativos (outro recurso de escrita condenado por mestre Graça).
Os traços explorados pelo texto do repórter, seguiriam como característica dos
folhetins e contos, onde se fariam novamente presentes. Vejamos essas duas vertentes
ficcionais nelsonrodrigueanas. De início é importante ver o que significa para um
dramaturgo o exercício ficcional nesses outros dois campos de criação literária. O teatro é
conhecido como a literatura dos analfabetos. Ainda que eventualmente um dramaturgo
lance mão do coro, do corifeu, da voz em off, de um personagem-narrador (e Nelson
Rodrigues muitas vezes usou alguns desses recursos), o que marca fundamentalmente a
dramaturgia é a narrativa amparada em uma sucessão de diálogos. O que se perceberá,
em termos de ordem estrutural de organização da escrita rodrigueana, na passagem do
teatro para o folhetim e o conto, é justamente a presença de um narrador, primeiramente,
163
nos folhetins, discreto, mas logo em seguida, nos contos, personalíssimo com um papel
fundamental e decisivo para o tom desses escritos. Esse aspecto é importante para se
compreender o passo que será dado em seguida, quando o autor for fazer suas crônicas,
gênero no qual se tornou um especialista na tradição dos grandes nomes do gênero.
Pode-se observar uma mudança significativa na passagem do folhetim para o
conto na presença de um narrador personalíssimo, como dito. Uma das características
mais marcantes do narrador rodrigueano como contista, por exemplo, é a maneira como
ele, em referência ao próprio ato de escrever, demonstra hesitações que expõem ao leitor
o próprio ato da escrita.
Trata-se de uma constante nos contos de “A vida como ela é...”. Quando narra,
por exemplo, o caso de Sandoval e Dorinha no conto “Amor próprio”, o narrador, como
se estivesse pensando alto, nos diz que “Enquanto Sandoval, paulista de quatrocentos
anos, com bandeirantes no sangue, era um aristocrata autêntico, a pobre da Dorinha era
filha de um contínuo da Câmara. Morava no posto 3 ou 4.” (Rodrigues, 1961: 54; grifo
meu). Outro caso de hesitação, que torna explícito o caráter ficcional do texto, bem como
e indiretamente aponta o ato da escrita, pode ser identificado em “O beijo”, quando se
tem a descrição da protagonista que registraria em seu passado uma vida mundana: “E, de
fato, Aída tinha um passado tenebroso; dizia-se a seu respeito, o diabo; que andava com
todo mundo; que fôra vista não sei onde, de madrugada, com o dono de uma tinturaria”
(Rodrigues, 1961: 285; grifo meu, novamente).
Haveria como citar outros tantos casos semelhantes como nas aberturas da
narrativa de “Agonia” e de “O dilema”. Nesses dois casos deixa-se bem mais explícita a
presença de um narrador que, descortinando o ato da escrita, expõe a subjetividade que
164
teria criado o texto. A primeira traz em suas primeiras linhas o comentário: “Uma semana
antes do casamento, foram os dois ao cinema ver um filme, se não me engano, de Clark
Gable” (Rodrigues, 1961: 19; grifo por mim acrescido); já o narrador de “Senhora
honesta” nos traz o cotidiano desinteressante do mirrado Valverde, cuja esposa está sendo
assediada por um rapaz esbelto, como algo para lá de sem graça. Sem acreditar no
assédio a sua esposa, Valverde vai a certa altura fazer a tradicional “fezinha” no bicho. O
narrador nos apresenta a inocência de Valverde: “O marido saiu, muito alegre, dizendo
que ia jogar no bicho; sonhara com não sei que animal e planejara o jogo” (Rodrigues,
1999a: 116; grifo meu).
Sobre essas “imprecisões”, o próprio Nelson se manifestaria com mais um
sortimento de comentários evasivos em um dos textos da própria coluna, intitulado “Não
tenho culpa que a vida seja como ela é”, publicado à página 8, na edição do dia 13 de
junho de 1952, no jornal Última Hora. Depois de um ano publicando contos abertamente
ficcionais, Nelson mais uma vez opta por evasivas e por sugerir aos leitores a
possibilidade de seus relatos basearem-se em incidentes reais:
Outra característica da seção: suprimir nomes e residências dos
personagens. Meus personagens têm sempre um domicílio vago ou não têm nenhum.
Posso admitir a indicação sumária de bairro; de rua, nunca. O que me importa são os
atos e, mais que os atos, os sentimentos. Com a eliminação do endereço e nome reais, a
seção atinge, em cheio, um resultado, qual seja o de atenuar a vergonha dos
personagens. Ninguém os identificará debaixo do disfarce criado. Só não altero, nem
falsifico as suas paixões e os seus crimes.
Há ainda outros comentários de um narrador auto-referente. Em “A inocente”
(Rodrigues, 1961: 29), o personagem Balduíno, que enxergava “até demais!”, “começou
a ter uma série de perturbações visuais. Eram pequenos pontos na visão que, com o correr
165
dos dias, se multiplicaram. Assustou-se. E vamos e venhamos: quem não tem medo de
ficar cego?” (Rodrigues, 1961: 29; grifo meu, mais uma vez).
Outra característica que irmana os contos e as crônicas rodrigueanos é o emprego
insistente de marcadores de discursos e de imagens de extremo vigor, verdadeiras
metáforas vivas, como quer Ricouer, que recheariam o texto do contista e depois
reapareceriam como recurso de destaque nos escritos do cronista. Há ainda a presença da
redundância, típica de uma escrita do excesso.
Existem dois livros muito interessantes a tratar da relação entre escritores e seu
repertório linguístico. Escritos pelo doutor em letras Deonísio da Silva, levam os títulos
de A vida íntima das palavras (2002) e A vida íntima das frases (2003). Neles, esse
estudioso da língua portuguesa discute o emprego de itens lexicais e frases por escritores
consagrados.
Muitos são os escritores que se utilizam de vocábulos, frases, expressões, com tal
insistência, que parecem mesmo ser donos delas. Jornalistas como Elio Gaspari, por
exemplo, têm o seu jargão próprio. Além de criar personagens como Madame Natasha, a
professora de português que odeia música, e Eremildo, o idiota, Gaspari recorrentemente
emprega vocábulos, neologismos, que são identificados com sua escrita: tigrada, patuléia,
choldra, ervanário, a bolsa da viúva (em referência ao dinheiro público) e outras mais.
Antes de Gaspari, e como inspirador dele e de outros jornalistas como Paulo Francis,
Nelson Rodrigues também criou seu idioleto.
Da paixão por termos como “arquejar”, “ulular”, “idílio”, “bofetada”, “terno”,
“sentimental”, chegando aos de índole mais agressiva como “canalha”, “besta”, “bestafera”, “débil mental”, Nelson estabelecia o seu repertório particular. Esse repertório seria
166
acrescido de imagens fortes como “atirar patadas no assoalho”, apresentar alguma
característica como algo “nato e hereditário”, ter um “choro grosso como um mugido”,
estar “mais sujo do que pau de galinheiro”, ter o “olho rútilo e o lábio úmido”, entre
outras.
Para caracterizar, por sua vez, os personagens de seus contos se apropriava de
expressões como “Rainha de Sabá” ou criava outras como “escorpião de banheiro” e
“escravo etíope”.
É possível reconhecer também, reforçando a adesão a um pensamento paradoxal,
um sortimento de oxímoros em frases e expressões do autor. São passagens como
“caprichava no desleixo” (Rodrigues, 1999b: 116), “sentou-se e continuou o velório do
marido vivo” (Rodrigues, 1999 a: 223), “não ganho nem para morrer de fome”
(Rodrigues, 1961, vol. II: 113), “a mais recente paixão imortal” (Rodrigues, 1999 a: 35) e
“Não trairia o homem que amo, nem com meu marido!” (Rodrigues, 2002: 166).
Nelson Rodrigues sempre foi muito elogiado pela rapidez e correção de sua
escrita, mas se pode, depois de longa convivência com seu texto, identificar alguns
poucos e raros tropeços do autor. No texto de abertura desta Tese, tem-se uma
reportagem não assinada que é atribuída a Nelson. A convicção do acerto dessa opção no
que se refere a sua linguagem se deve em parte ao uso de expressões como “um
sentimental, um derramado” para caracterizar o açougueiro que é foco da notícia. Essa
convicção pode ser fortalecida com o reconhecimento de um erro de grafia que apareceria
anos depois nos contos de Nelson. Trata-se da palavra “xuxu”, grafada com “x”, que
figuraria em muitos contos em sua grafia correta com “ch”, mas que no conto “O
malandro” (Rodrigues, 1961: 200) surgiria escrita com “x”. Outros problemas
167
ortográficos que se repetem ao longo dos contos são: “encima” (duas vezes em
Rodrigues, 1961: 74 e 278), “cotucava” (Rodrigues, 1961: 70), o estragerismo “by, by”
(Rodrigues, 1961: 212) e “socega” (no conto “O miserável”, em anexo). Mais adiante nas
crônicas o autor também confunde repetidamente os prefixos “anti” e “ante”.
De novo, como nas peças, Nelson se alterna entre os registros formal e coloquial
do idioma. Os diálogos reincidem assim no emprego por parte dos personagens de falas
na 2ª. pessoa do singular, para marcar uma dicção literária, que se revezam com gírias e
expressões extremamente coloquiais. Os diálogos em “tom lisboeta” (expressão
empregada pelo autor) com “tu vais”, “tu gostavas”, “Hás de ser”, se alternam com
expressões e vocábulos como “a senhora é um xarope”, “vá lamber sabão”, “você é uma
bola”, “bucho”, “carambolas”, “papagaio”, “chispando”, etc.
Falou-se que a redundância é uma das marcas de uma escrita do excesso. Com
Nelson Rodrigues temos a repetição de sobejo em sua narrativa de algumas expressões.
Citem-se algumas. É comum ocorrer a utilização daquilo que poderia classificar como
suas pontuações textuais em expressões como “dir-se-ia”, “uma vez foi até interessante”,
“basta dizer o seguinte...”. Ou, ainda, do recorrente “entre parêntesis”, que anuncia um
comentário pontual.
Como chiste, chacota, zombaria adicional, Nelson batiza com raro esmero seus
personagens. Ou com alcunhas de uma invencionice a toda prova, ou com nomes que já
caíram em desuso, mas que, para efeito de sua pena galhofeira, decide reavivar. Assim
desfilam por seus contos: Filadelfo, Elesbão, Analecto, Galatéia (aparece para nomear
personagens de dois escritos), Epaminondas, Hildegardo, Balduíno, Asdrúbal, Abigail,
168
Eustáquio, Gervásio, Malva, Ismênia, Edgardina, Borborema, Amádio, entre outros
nomes esdrúxulos, ou se preferirem, pouco usuais.
4.3 – Narrativas do Cronista
As crônicas da maturidade rodrigueana são divididas em crônicas esportivas,
crônicas memorialistas e crônicas confessionais, o modo como cronologicamente os
textos dessa vertente de sua escrita foram sendo apresentados aos leitores a partir de
meados da década de 1950. Desde o ínicio, no entanto, quando começou com as crônicas
esportivas no jornal Última Hora, e logo em seguida na revista Manchete Esportiva, suas
colunas de cronista já apresentavam manifestações em tom confessional, bem como
capitulações memorialistas.
Muito embora tragam eventualmente dados factuais e enfoquem um evento
jornalisticamente relevante, essas crônicas do autor lembram pouco o que Afrânio
Coutinho caracterizou na seção teórica da presente Tese como crônica-informação. O que
marcaria essa prática seria a divulgação de fato, o que raramente aparece entre as
preocupações centrais das crônicas que estarão aqui sendo analisadas. Um número
significativo dessas crônicas segue o modelo do que, de novo recorrendo a Afrânio
Coutinho, deve-se classificar como crônica narrativa. Trata-se de crônicas que se
aproximam do conto. Pode-se identificar desse modo a contaminação das crônicas pela
prática do contista, comentada na seção anterior. Existem alguns textos que são
169
autênticos contos atemporais e que poderiam ter sido desenvolvidos como tal, pois
trazem até mesmo personagens já tipificados nos escritos do contista.
Há crônicas que trabalham, finalmente, pela vertente da crônica-comentário e da
crônica metafísica. É uma espécie de exercício que está presente desde os primeiros
escritos rodrigueanos, nos textos do cronista iniciante, e que volta agora. Ele nos mostra
um Nelson Rodrigues divagando sobre questões pontuais, às vezes em tom mais
abertamente filosófico, às vezes exibindo observações críticas de ordem comportamental.
Uma caracterização para melhor definir as crônicas como um todo, por sinal, é a de
serem sempre um comentário comportamental, a despeito de apresentarem uma
conotação política mais explícita em algum momento, ou abertamente cultural em outro.
A monografia de Elaine Silveira Teixeira (2006), em seu apanhanhado sobre os
aspectos comuns às crônicas brasileiras, aponta os seguintes elementos como sempre se
manifestando nesses textos: o humor, a utilização da metadiscursividade e a escolha da
cidade do cronista como palco de seus relatos. Como se viu na seção de análise anterior,
que cuidou principalmente do universo ficcional do contista Nelson Rodrigues, esses são
aspectos presentes também em seus contos, e que voltarão a ser tematizados, como será
visto adiante, nas crônicas.
Se as crônicas rodrigueanas sempre foram o espaço de escrita do autor mais
francamente otimista, também não faltarão a elas retratar passagens dramáticas
vivenciadas pelo escritor. No teatro existe um recurso narrativo, empregado por muitos
dramaturgos, que é o de buscar apoio, no desenrolar de um drama, naquilo que se
convencionou chamar de comic relief. A intenção é que os espectadores tenham alguma
forma de alívio de estórias mais difícies de serem fruídas. Presente no teatro rodrigueano
170
através da narração de entrechos cômicos, esse recurso pode ser identificado numa
espécie de inversão na obra do cronista, quando narrativas que festejam e glorificam os
feitos de atletas surgem entremeadas por episódios dramáticos. Será visto que esse foi
outro aspecto trabalhado com empenho pelo cronista.
Foi, por fim, no espaço de suas crônicas que Nelson criou seus personagens mais
conhecidos. Explorando o limiar entre o acontecimento jornalístico e a invenção literária,
povoou o imaginário de seus leitores com tipos que ficaram famosos: o Sobrenatural de
Almeida, o Gravatinha, o padre de passeata, os idiotas da objetividade, a grã-fina das
narinas de cadáver, as estagiárias de jornal, o príncipe etíope de rancho, o rei do futebol.
Alguns desses personagens eram de ordem estritamente fabular, outros inspirados em
contrapartida real. Foram eles os protagonistas incessantes de suas crônicas.
4.3.1 – Cronista Esportivo
Falemos primeiramente das crônicas esportivas. Ao afirmar-se que as crônicas
esportivas também apresentam traços memorialistas e confessionais, tem-se em mente a
atmosfera autobiográfica que Nelson imprime a seus relatos. Das crônicas esportivas que
escreveu para o jornal Última Hora e para a revista Manchete Esportiva, a partir de
meados da década de 1950, dez anos antes portanto de aparecerem as crônicas
memorialistas e confessionais, podem-se destacar vários textos com essa característica.
Na crônica “Assassinato do Sanduíche”, em Manchete Esportiva, edição do dia 10 de
dezembro de 1955, o autor nos fala sobre a inauguração de uma tribuna de imprensa no
campo sede do Botafogo de Futebol e Regatas, no Rio de Janeiro, ocasião em que foram
171
oferecidos aos jornalistas comes e bebes. No entusiasmo de sua desgustação, o cronista
acaba mergulhando proustianamente em um retrospecto memorialista:
Comparada às outras tribunas de imprensa – a do Botafogo tem um luxo
asiático de consultório de psicanalista. Vi colegas perplexos, desconfiados e, mesmo,
temerosos. Mas não foi só. Houve mais:- houve champanhe, houve guaraná,
biscoitos e sanduíches. Num ambiente cordialíssimo, confraternizaram jornalistas e
paredros. Em dado momento, irrompe um garção irrepreensível, com uma bandeja de
sanduíches. Aceito um deles.Vejam vocês:- o sanduíche desencadeou em mim um
processo proustiano. Recuei no tempo e vi-me a comer outro sanduíche, há trinta
anos atrás, num campo de futebol, também. Naquele tempo, certos clubes ofereciam,
uma vez por outra, um lanche à imprensa nos intervalos dos jogos. Hoje, o cronista
esportivo conquistou um nível social e econômico vertiginoso. Pode olhar um
mísero, um franciscano sanduíche com um desprezo de rajá. Naquela época era
diferente:- o repórter especializado andava de taioba e morria fisicamente de fome.
Duas colunas a deixarem mais patente o memorialismo do autor foram publicadas
sob os títulos de “Bocage no futebol” e “O craque na capelinha”, respectivamente nos
dias 14 de janeiro de 1956 e 11 de fevereiro de 1957, na mesma Manchete Esportiva. Na
primeira coluna, Nelson nos conta sobre o “impacto criador e libertário” do “nome feio”,
não só em conversas corriqueiras, mas também e especialmente no futebol. Trata-se de
crônica em que ele se colocará a rememorar o caso do jogador Jaguaré, goleiro com
passagens esportivas folclóricas40, que não se adaptou a jogar na Europa, porque os
palavrões que conhecia não produziam impacto algum em campos estrangeiros. Para
abrir a narrativa sobre o atleta, Nelson escolhe a clave memorialista:
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado da minha
casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava
com a minha. E justiça se lhe faça:- não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na
minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados:-“Não brinca
com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos, as
proporções feéricas de um drácula, de um Nero de fita de cinema. (Rodrigues, 1994:
17)
Se serve, de início dessa abertura, para chegar, por fim, ao episódo com Jaguaré, e
relembrar ainda em sua recordações passadistas a pessoa desse atleta que não conseguiu
40
Para conhecer as narrativas sobre Jaguaré, ver Filho, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1964. Para o episódio mencionado por Nelson Rodrigues consultar especialmente p. 191-3. Há
uma edição nova desse livro pela Mauad Editora (Rio de Janeiro), 2004.
172
atuar “desfalcado” da sua “pornografia luso-brasileira”. Jaguaré voltaria para o Brasil
para jogar e morrer sem dinheiro, depois da dificuldade de adaptação na Europa: “Aqui,
agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma
próprio, seus últimos palavrões terrenos” (Rodrigues, 1994: 18).
Em “O craque na capelinha”, escrito que fala sobre o “frívolo desamor à morte e
aos mortos”, de nossa época, a recapitulação da infância surge no meio do escrito. Nelson
menciona que no passado o morto permanecia no aconchego do lar e não, como hoje, no
ambiente melancólico das capelinhas:
Lembro-me de uma menina que morreu, de febre amarela, quando eu tinha
meus cinco anos. Pois bem. A mãe da morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a
cabeça nas parede; derrubava cadeira; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que
ser contida, amordaçada, quase amarrada. Todos haviam parado de gemer, de chorar,
para espiar essa dor maior. Houve um momento em que só ela gemia, só ela chorava,
como uma insuperável solista.
Hoje isso não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu conteúdo
poético dramático e, direi mesmo, histérico.
O propósito da crônica é falar de um craque, ou segundo a avaliação indecisa do
cronista “um perna de pau” (não identificado nominalmente), que surge anônimo na
capelinha após uma “agonia fétida e terrível” que o levou à morte.
O memorialismo nesse e em outros escritos se avizinhava do saudosismo, como
em uma outra crônica que se inicia rememorando um clube de futebol que já não existia
quando o cronista se pôs a escrever. Contou ele em texto do dia 1 de julho de 1953,
publicado no jornal Última Hora:
Conheci ontem um torcedor fanático do Mangueira. Lembro-me que no ato
da apresentação fiz espanto:-Do Mangueira? E, com efeito, custava a crer que
existisse alguém que torcesse por um clube que não existe, que deixou de existir há
uns bons trinta, trinca e cinco anos. Entramos num bar e o homem, atrelado ao
grande assunto de sua vida, só me falava do Mangueira. Conversa vai, conversa vem,
e no fim de meia hora, ele se tornara meu mais recente amigo de infância. Estivemos
juntos comendo batatinha frita e bebendo chop, umas duas horas, no mínimo. Pois
bem. Eu fui, ali, durante essas duas horas, um mero, um reles, um platônico ouvinte.
Não consegui dizer uma frase, uma palavra, nada. Porque o homem impunha-se
173
como um solista absorvente, tentacular, implacável. Só no fim é que ele bate na testa
e bufa:-“Ih, minha mulher morreu e eu tenho que tratar do enterro.”
A abertura dessa crônica, com seus tons fabulares, torna patente, além do
exercício memorialista e passadista, a investida do autor no exercício da crônica narrativa
que, como se disse, aproxima a crônica do conto. Em um outro texto, feito para o jornal
Última Hora, algumas semanas depois, tem-se mais um indicativo dessa prática. Agora
deve-se destacar o traço de crônica narrativa. Ele levou o título de “Pancada de mulher”,
e apareceu à página 8, da edição do dia 30 de julho de 1955. Primeiramente vêm os
ataques à reportagem, semelhantes aos que já havia feito dias antes, à “falsidade”,
segundo o cronista, contida em todo texto jornalístico. Nelson inicia suas digressões:
Eu já disse, aqui mesmo, por várias vezes, que a reportagem é cega, surda
e muda. Em verdade, ela não vê, não ouve, não fala, as coisas essenciais. O
jornalismo é a arte de omitir tudo que possa caracterizar e explicar os fatos e as
pessoas. Por exemplo:- Há na imprensa o tabu de não mexer na vida particular de
ninguém. Critério erradíssimo como se vê.
Seguirá um pouco adiante citando um caso específico para corroborar seus
comentários:
Ainda outro dia, eu li uma imensa reportagem sobre o ambiente
doméstico de um craque famoso. Era o jogador sem uniforme, fora de campo, em
trajes, civis de marido, chefe de família e dono de casa. Aparecia o homem em
várias poses, ao lado da esposa, senhora rotunda, cujo busto opulento faria pensar
no próprio seio de Abraão. Em todos os flagrantes, marido e mulher pareciam
irradiar a mais perfeita e compacta felicidade conjugal. Mas o que me
impressionou, acima de tudo, foi o equívoco patente:- Um casal de, apenas, duas
pessoas, ou seja marido e mulher.
Quando nós pensamos que um casal se constitui somente de marido e
mulher, estamos, na verdade, incidindo em um erro numérico. Nós contamos duas
pessoas, onde existem três, quatro e, às vezes, cinco. Eu conheci um marido que
era amante de uma amiga íntima da esposa. Um dia, eles foram a um passeio na
Cascatinha. Lá, apareceu um lírico fotógrafo lambe-lambe. E o cínico, descarado,
pousou entre a mulher e a amante. Estava certa a fotografia: era um casal de três.
Se, por ventura, tivesse omitido a amante, então o casal estaria incompleto,
desfalcado, amputado. Também conheci um lar em que eram elas por elas:-traía o
marido por um lado, traía a esposa por outro. E, assim, constituiam um casal de
quatro.
174
Não custa lembrar que idéia semelhante foi desenvolvida em um conto que
explora já desde o seu título o oxímoro trabalhado acima: “Casal de três” (cf. Rodrigues,
1999a: 26). Ainda podem-se citar dois escritos do cronista esportivo, preparados
respectivamente para a revista Manchete Esportiva e para o jornal O Globo, que seriam
casos mais taxativos de crônica narrativa. O primeiro abre novamente com a inflexão
típica do memorialismo rodrigueano:
Nunca me esqueço de um vizinho que tive na minha infância profunda. Era
um santo da cabeça aos sapatos ou, melhor dizendo, da cabeça às sandálias. Do berço
ao túmulo, não praticou uma má ação. Era todo amor, todo bondade. E só me admira
que não andasse com um passarinho em cada ombro.
Pois bem:-um dia, casou-se. Para usar uma velha imagem minha, direi que
entrou por um cano deslumbrante. Já os conhecidos diziam-lhe:-“Cuidado, que um
dia tua mulher te dá bola de cachorro”. E, certa vez, na presença de visitas, ela o
destratou de alto a baixo:-“Eu queria um marido, não um santo”. E ainda
completou:-“Tenho nojo de tua bondade”. Em outra ocasião, a víbora
explodiu:-“Arranja um defeito ou me desquito”. Não foi possível. A perfeição do
infeliz aumentava de quinze em quinze minutos.
Até que se separaram. E quando um inocente do Leblon perguntou à víbora
se ele a maltratava, ela urrou:-“Aquela besta é um santo!”. Por aí se vê, a virtude
exagerada, em vez de favorecer o amor, pode liquidá-lo. Estou farto de ver sujeitos
que são amados pelos seus defeitos. (Rodrigues, 1994: 152)
Reparem que estamos diante de uma crônica publicada em uma revista esportiva.
E Nelson Rodrigues se põe a narrar mais uma vez um entrecho que poderia perfeitamente
ter sido desenvolvido como um conto. Atitude idêntica por parte do escritor tem-se com
o texto que se vê a seguir e que foi editado não em uma revista esportiva, mas, de
qualquer jeito, na seção de esportes de um jornal. É de uma fase bem posterior, e Nelson
parece não saber mais se está fazendo uma crônica esportiva, uma crônica mêmoreconfessional, uma vez que já as havia iniciado, ou mesmo se está escrevendo mais um
texto de “A vida como ela é...”. A crônica é de junho de 1970. Nelson abre o relato:
“Quando era garoto, na altura aí de 1920. (Já chego ao futebol. Vocês não perdem por
175
esperar) Mas em 1920 as pessoas tinham honra. E, então, lavava-se a honra a tiros,
lavava-se a honra a bengaladas” (Rodrigues, 1994: 176).
Lança em seguida a tradicional afirmação-tese, que, presente em muitos dos seus
contos, era geralmente enunciada por um protagonista. Nas crônicas essa iniciativa
caberá ao cronista-narrador. Ele afirma: “Como sempre digo, todo casal exige uma
vítima, assim como exige um algoz. Para o bom equilíbrio da casa, é preciso que a vítima
aceite o seu papel e que o algoz como tal se comporte” (Rodrigues, 1994: 176). A
ilustração virá com o caso de um senador que era “uma cabeça” e cuja retórica “tinha um
nível de Rui Barbosa”. Porém, “onde acabava o grande tribuno começava o marido
crudelíssimo”.
Sobre a esposa do senador nos contará:
Aquela vítima era bonita, um pouco fanada, mas bonita. Ao mesmo tempo,
sabia que a beleza é um prazo. Dizia às amigas:-“Estou ficando velha, estou ficando
velha”. Até que, um dia, apareceu-lhe um antigo namorado. Aproveitando um
minuto, o ex-namorado disse-lhe, de passagem:-“Eu sou o mesmo”. A mulher quase
desfaleceu. Sentiu-se atravessada de luz, sei lá. Mas passou. Até que uma manhã, por
causa de um botão que faltava na camisa, o senador disse, quase doce:-“Vai buscar a
vara de marmelo”. (...)
Não sei se no mesmo dia, ou no dia seguinte, ela apareceu no escritório do
antigo namorado. Começa, ofegante:-“Você ainda me quer?”. Ele, fora de si, disse
tudo:-“Não te esqueci um minuto. Hei de te amar sempre, sempre”. (...) Quando
chegou em casa, estava o marido. Ele disse, com um ódio sem exaltação:-“Você foi
vista, no Alto da Boa Vista, com um homem”. Pausa. Repete:-“Pode me explicar o
que estava fazendo com um homem no alto da Boa Vista?”. Nesse momento, ela teve
um leve sorriso, de ironia quase compassiva:-“Só podia estar traindo você”.
Desta vez não foi vara de marmelo, mas bengala. (Rodrigues, 1994: 177)
O caso é replicado, nessa longa crônica, em uma narrativa sobre um casal,
Otacílio e Odete, que também passou por estremecimentos em seu relacionamento por
causa de traição feminina. Como se trata de uma crônica esportiva, o episódio teve seu
clímax durante o campeonato do mundo de 1958, que será o pano de fundo da parte final
dessa crônica narrativa.
176
As crônicas esportivas às vezes partiam de um episódio factual, mas não se
limitavam a ele e investiam pela vertente da crônica-comentário e da crônica metafísica.
Não se diferenciavam, assim, nem mesmo das outras crônicas mêmore-confessionais
rodrigueanas no que tange à busca de vislumbrar algo de transcendente no que é
cotidiano. As observações eram em geral abertamente comportamentais, e para isso
Nelson se servia da galeria de tipos do mundo do esporte, aos quais acrescia retoques de
sua imaginação.
Trataria assim do juiz ladrão, que dinamiza uma partida, e de sua antítese, o juiz
imparcial, capaz de tirar o brilho de um clássico; dos cronistas pouco inspirados, que não
souberam, por exemplo, festejar a vitória do Brasil no Campeonato Pan-Americano de
1956, e que contrastam em sua atitude com um outro modelo de repórter, aquele que com
suas mentiras alcança um admirável resultado poético e dramático; da torcida que, em seu
furor, é capaz de forçar a escalação de um atleta, e do lúgubre torcedor botafogense, que
comparece ao estádio para emanar o seu “pessimismo imortal”.
Entre as crônicas-comentário, com tons de crônica metafísica, podem-se citar duas
colunas escritas em seguida uma à outra e publicadas em Manchete Esportiva. Nelas, um
acontecimento extra-campo levava o escritor a divagar sobre o suicídio. Isso aconteceu
quando da morte de Maneco, um esquecido jogador do América que diante do declínio
profissional e de uma dívida insolúvel se matou ingerindo formicida. O cronista tomou
um ato, que sempre foi socialmente condenado, como uma decisão sublime. Escreveu ele
à época:
Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou
não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre
em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o
nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio. (Rodrigues,
1996: 21)
177
Na coluna seguinte, um novo suicídio forçou Nelson a seguir com o assunto. Já
tendo sido chamado no passado de Filósofo41, o cronista divaga sobre as nossas relações
com aqueles que dão cabo à própria vida:
Na última crônica, escrevi, por outras palavras, o seguinte: - o suicídio tece
entre o morto e os demais um útil, mas irresistível parentesco. O sujeito que se
enforca, que toma formicida, que se atira da barca, não é jamais um estranho, um
desconhecido. Torna-se profundamente irmão de todos nós e de cada um de nós.(...)
Mas um suicídio não é um ato como há tantos. Eis a verdade: ele é em si
mesmo tão persuasivo e autêntico que não sabemos como resistir-lhe. (Rodrigues,
1996: 23)
A abertura é para falar de um colega de clube de Maneco, o também ex-jogador
do América Itim que, uma semana depois do suicídio do amigo, se matou de forma
idêntica ao seu companheiro de clube. Sobre o duplo episódio, comenta Nelson:
Seria um erro separar os dois fatos. Na realidade, aquele que se mata está
chamando, está aliciando os outros, todos os outros, para um abismo só. E os casos
de Maneco e Itim parecem demonstrar que há entre os suicídas uma compreensão
secreta, um idioma próprio e intraduzível, uma fidelidade inefável. Nós, que vivemos
a nos trair uns aos outros, que somos infiéis por vocação, por destino, precisamos
invejar Maneco e Itim. Imaginem a cena:- Itim velando o amigo morto, fazendo
quarto e, depois, acompanhando o enterro a pé, debaixo da chuva. Se todo suicida
deixa um apelo a cada um de nós, um cálido apelo, eis a verdade:- Só um, entre
todos os que estavam ali, recebeu o apelo de Maneco. (Rodrigues, 23-4)
Nelson viu na decisão de Itim um exemplo de amizade. Disse ele: “Vejam vocês a
imagem vil que formamos uns dos outros:-admitimos que um semelhante se mate por
amor, por dinheiro, por jogo, por desemprego ou, até, por tédio. E não queremos aceitar,
nem por hipótese, que se possa morrer por amizade” (Rodrigues, 1996: 24).
Se essas duas crônicas, e mesmo trechos citados anteriormente, não sinalizam
para a presença de passagens dramáticas, mesmo entre as crônicas esportivas, pode-se
41
Sobre a pecha de filósofo, Rodrigues conta: “Certa vez, descia as escadas de O Globo e cruzo com um boxeur e meu
amigo de infância, o Camarão. Ele solta um berro jucundo e fraternal:-“Filósofo! Filósofo!”. Os outros também me
chamavam de “filósofo” por causa de meu desleixo agressivo e constrangedor. E ainda outros perguntavam, numa
curiosidade séria:-“Esse cara é maluco?” (Rodrigues, 1997: 122)
178
conferir a narrativa de uma coluna de Manchete Esportiva, que aparece na edição do dia
15 de fevereiro de 1958, para se reforçar essa visão.
Na coletânea À sombra das chuteiras imortais, ela recebeu o título de “Vestido de
fogo”, repetindo as incorrigíveis alusões à peça maior de Nelson. O assunto comentado é
a tragédia ocorrida com o jogador Tommy Taylor, que, junto com toda uma delegação do
Manchester United, feneceu após um desastre aéreo em Munique. Nelson, em sua crônica
publicada uma semana após o acidente, traduz “nossos” sentimentos em face desse
acontecimento e rememora uma partida da seleção inglesa contra o escrete brasileiro
(ocorrida dois anos antes, em 9 de maio de 1956, no estádio de Wembley). A coluna é
dedicada ao goleador do Manchester, que provocou a ira da torcida brasileira ao
converter dois gols para os ingleses nesse célebre confronto.
4.3.1.1 – Personagens das Crônicas Esportivas
Muitas foram as alcunhas, epítetos, codinomes que Nelson criou para se referir
aos protagonistas de suas crônicas esportivas. Em 1958, a seleção brasileira fez, durante a
Copa da Suécia, a campanha que confirmaria o seu favoritismo, já ensaiado
anteriormente na Copa de 1950, como uma das grandes forças do futebol no mundo. Uma
das estrelas desse campeonato foi Edson Arantes do Nascimento, que contava apenas 17
anos na ocasião. Jogando na Europa e frente à realeza européia, Pelé acabou sendo
chamado de rei do futebol, um codinome que o acompanharia pelo resto de sua história
dentro do mundo esportivo. Nelson credita, não se sabe se de forma fantasiosa, a alcunha
à reportagem da revista Paris-Match, embora o próprio cronista já houvesse se referido à
179
realeza de Pelé e de outros jogadores brasileiros antes do torneio em que o Brasil chegou
ao seu título inaugural de campeão do mundo.
Como bem lembra José Castelo, Nelson mencionou pela primeira vez a realeza de
Pelé meses antes da Copa de 1958. A primeira referência foi em um jogo entre Santos e
América, sobre o qual o cronista escreveu uma coluna publicada em edição da revista
Manchete Esportiva, mais precisamente a do dia 8 de março de 1958. Nela o cronista
comenta:
Pois bem:- Verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma
dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se
imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender
mantos invisíveis. Em suma:- ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade
dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E
Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável:- a de se sentir rei,
da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla o adversário, é como quem
enxota, quem escorraça um pebleu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma
tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram:-“Quem é
o maior meia do mundo?”. Ele repondeu, com a ênfase das certezas eternas:-“Eu”.
Insistiram:-“Qual o maior ponta do mundo?”. E Pelé:-“Eu”. Em outro qualquer, esse
desplante faria rir ou sorrir. (Rodrigues, 1996: 42)
Antes de Pelé, o cronista já havia estabelecido outros epítetos nobres para os
protagonistas de seus escritos. Didi, craque do Botafogo, aparecia em algumas crônicas
esportivas de Nelson sob o codinome de príncipe etíope de rancho, em outras, como
imperador Jones. Outros atletas, que não alcançariam a fama de Pelé e Didi, também
ganharam a reverência do escritor. Denílson, jogador do Fluminense na segunda metade
dos anos de 1960, era ora príncipe Zulu, ora rei Zulu.
Se para os atletas há pouco referidos, Nelson gostava de assinalar o caráter nobre
de suas atuações, para outros sua imaginação escolhia imagens ainda mais elaboradas.
Assim, aos olhos do cronista, o alvinegro Amarildo era o possesso, Zagalo, também
alvinegro depois de ter atuado como atleta rubro-negro, era o Coração de Leão, e Bellini,
180
capitão do Brasil na vitória de 1958, era, defendendo a camisa cruzmaltina, o Javali do
Vasco.
À sua galeria de personagens verdadeiros, Nelson haveria de acrescentar suas
criaturas fabulares como o Sobrenatural de Almeida, o seu antípoda, o Gravatinha, o
Ceguinho, a grã-fina das narinas de cadáver e o Profeta. A primeira manifestação do
Sobrenatural de Almeida, ainda sem o sobrenome que o consagraria e a identificação com
o escrete tricolor, data de um escrito de Manchete Esportiva, da edição do dia 10 de
novembro de 1956.
Em um jogo decisivo para o clube que quisesse levar o
tetracampeonato, Vasco e Flamengo se enfrentaram. O Vasco podia perder. O Flamengo
tinha que vencer a todo custo para alentar o quarto título, que ficaria no final das contas
com o time cruzmaltino.
O jogo seguia empatado até os instantes finais quando o escrete flamenguista
converteu um gol. Para realizar tal feito, o time rubro-negro contou, segundo o cronista,
com forças externas: “O Flamengo tinha, porém, um elemento extra-tático, extraesportivo, em que os outros não acreditavam e ele sim. Refiro-me ao apelo ao
sobrenatural que, na luta do tetra, o rubronegro vem renovando, com apaixonada
tenacidade”. Anos depois, o Sobrenatural de Almeida surgiria, já devidamente
identificado por nome e sobrenome, a se encarregar de tentar influir nos resultados em
favor do Fluminense e de levar má sorte aos adversários.
Outros protagonistas fabulares são o Gravatinha, o Ceguinho e o Profeta.
Enquanto o Gravatinha trata apenas de trazer bons fluídos para o escrete tricolor, o
Ceguinho, personagem terno, se embevece em assistir aos jogos do time das Laranjeiras.
181
O Profeta, por fim, cuidava de vaticinar as vitórias do Fluminense para depois sofrer
horrores quando suas previsões não se confirmavam.
A aversão de Nelson Rodrigues aos grã-finos levaria o escritor à criação de um
dos protagonistas mais falados de suas crônicas esportivas: a grã-fina das narinas de
cadáver. Data da peça Boca de Ouro, de 1959, a repulsa rodrigueana por pessoas de
hábitos requintados. Trata-se de um sentimento que chegaria às crônicas esportivas e que
se estenderia às crônicas mêmore-confessionais. Uma primeira manifestação dessa
ojeriza à opulência e à ostentação dos endinheirados surgiu no texto do cronista, em
coluna do dia 12 de maio de 1962, em O Globo, à página 3.
Ainda ontem, dizia eu que apareceram, no Maracanã, as caras mais
inesperadas. E os grã-finos não faltariam, porque têm o que eu chamaria de faro
histórico. Amigos, eles não falham no grande acontecimento. Há uma Revolução
Francesa? O grã-fino compra seu ingresso e lá comparece. Imensamente divertido,
vê a turba acabando com Maria Antonieta, a pauladas. Há Hiroshima? Pois bem. E o
grã-fino, com turístico elã, e cintilante curiosidade, percorre as mutilações
hediondas.
Vi pequenas lindas, perguntando quem era a bola. E tinha tanta gente que o
sujeito pensava: “Não ficou ninguém em casa!”
Estendeu-se a citação acima, porque caberia à grã-fina das narinas de cadáver, e
não às jovens mencionadas há pouco, a célebre pergunta: “Quem é a bola?”. Mas, por
curioso que possa parecer, a personagem fez sua estréia nas crônicas confessionais do
escritor. Primeiro em uma crônica de meados de 1968 (Rodrigues, 1997: 151) e depois
exemplarmente caracterizada em escrito do início de 1969:
Uma noite, entro no Estádio Mário Filho. Iam jogar Santos e Botafogo.
Retifico:- era outro jogo. Talvez Fluminense com não sei quem. Não me lembro.
Passo pelas borboletas, entro no hall dos elevadores, tomo o meu lugar numa das
filas. E súbito, vejo uma grã-fina. Como já escrevi, as grã-finas não são, via de regra,
nem bonitas, nem interessantes. Mas fingem ambas as coisas.(...)
E, súbito, ela, que ia na minha frente, volta-se para ver um conhecido. Seu
rosto é uma máscara amarela. Mas a cor era o de menos. (van Gogh adorava o
amarelo.) Tantas se pintam assim, em qualquer país e em qualquer idioma. Mas
aquela grã-fina tinha, sim, um sinal exterior que a distinguia de tudo e de todos:- as
narinas de cadáver. O Marcello Soares de Moura ia comigo. Baixei a voz:-“Olha
182
aquela ali”. O amigo olhou. Perguntei-lhe:- “Não tem narinas de cadáver?”. O
Marcello deu quase um pulo:-“É mesmo! é mesmo!”. (Rodrigues, 1995: 23)
Depois de sua apresentação, a grã-fina passaria a ser personagem assídua das
crônicas esportivas. Além dos personagens comentados, há outros de presença menos
precisa e de comparecimento mais difuso em seus escritos. Nos referimos aos idiotas da
objetividade, aos cretinos fundamentais e aos lórpas e pascácios. Nelson também tinha
fascinação pelos cáprulas em geral, uma galeria onde explode em sua riqueza a “irisada, a
multicolorida variedade do vigarista”, segundo o autor.
Nesse grupo estavam os juízes gatunos, os goleiros desonestos, que facilitavam a
vitória dos times adversários, os banderinhas artilheiros, que convertiam gol para a
equipe vencedora, e os canalhas. Esses últimos surgiram nos contos de “A vida como ela
é...”,
mas marcaram presença nas crônicas esportivas e depois iriam aparecer nas
crônicas memorialistas e confessionais na figura do Palhares, o que atacaria, sem pudor
algum, as próprias cunhadas.
4.3.2 – Cronista Mêmore-Confessional
Vejamos o início da seguinte crônica:
Muita gente não entende o nome de minha peça. Sujeitos perguntam, numa
amarga perplexidade:-“Por que Otto Lara Resende?”. Entendo o espanto, entendo o
escândalo. Normalmente, só os defuntos e, ainda assim, só os defuntos monumentais
é que entram na ficção. Mas o Otto está aí, escandalosamente vivo e contemporâneo.
Nós podemos apapá-lo, farejá-lo e até pedir dinheiro emprestado. (Rodrigues, 1996:
16)
Façamos o mesmo com o trecho que se segue:
Amigos, na minha crônica de ontem fiz uma pequena meditação sobre a
mulher bonita. Marilyn Monroe morrera, na véspera, dessa enfermidade terrível que
183
é a beleza. Enfermidade, disse eu. E, de fato, a beleza causa na mulher um desgate
interior, macio, incidioso, fatal. E, no fim de certo tempo, a mulher bonita se volta
contra si mesma, com tédio e ira de todos os seus dons plásticos. (Rodrigues, 1996:
29)
E, por fim, com essa última passagem, um pouco mais longa:
Amigos, eu gosto muito de falar de mim mesmo. Sempre que conto uma
experiência pessoal, sinto que nasce, entre mim e o leitor, toda uma identificação
profunda. É como se, através do meu texto, trocássemos um imaterial aperto de mão.
Pois bem. Eu queria referir, hoje, uma dessas experiências individuais que implicam
todo o ser humano. Trata-se da minha peça Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas
ordinária.
O fato é que a escritora Clarice Lispector foi assistir à minha nova tragédia
carioca. Entre parênteses, preciso dizer quem é Clarice, porque o povo quase não
conhece os seus artistas, os seus poetas, nem os seus profetas. É a maior escritora do
Brasil e da América. Mas Clarice assistiu à Bonitinha e saiu do teatro
impressionadíssima com o autor! O bonito, o realmente lindo, foi a imagem que ela
formou de mim.
Segundo a escritora, eu sou um menino. Vejam vocês:- Um menino que
acaba de olhar pelo buraco da fechadura uma cena monstruosa! (Rodrigues, 1996:
35)
Todos os textos acima estão na compilação intitulada O remador de Ben-Hur
(1995), que reúne as “crônicas culturais” de Nelson Rodrigues, assim identificadas por
seu organizador, Ruy Castro. Foram, no entanto, e sem exceção, publicados
originalmente na seção de esportes de O Globo. Saíram em edições do jornal da primeira
metade dos anos de 1960, antes das crônicas mêmore-confessionais começarem a ser
escritas.
Lidas na íntegra, essas três crônicas invariavelmente acabam chegando
transversalmente ao esporte (e ao futebol especificamente; já que era esse o assunto ao
qual estavam associados seus escritos de cronista feitos para o jornal O Globo, nessa
época), mas mostram o autor tentando forçar observações de ordem comportamental em
seus escritos esportivos.
Das crônicas esportivas para as autênticas crônicas memorialistas e confessionais,
que surgirão na segunda metade dos anos de 1960, veremos mudar os motivos originais e
184
os protagonistas, mas os escritos ainda manterão uma proximidade com os textos
anteriores. Sobretudo porque o repertório linguístico, os marcadores de discurso e as
peculiaríssimas metáforas criadas pelo autor, permeavam, e continuarão permeando, os
seus textos jornalísticos de maneira indiscriminada. E, acima de tudo, Nelson agora não
terá de forçar as suas observações de ordem comportamental e poderá investir por elas
em grande estilo.
Para falar sobre as crônicas-comentário que surgem dentro dessa produção do
autor é pertinente que se estenda e se discuta um pouco sobre a pessoa pública de Nelson
Rodrigues. Com esse fito é crucial recorrer a tese de Doutorado de Facina (2004), que se
preocupou especialmente em traçar um perfil intelectual do escritor. Uma das conclusões
importantes desse estudo é que não vale a pena confundir a trajetória de um autor,
traduzida eventualmente em obras revolucionárias, com seus posicionamentos politícos.
Apesar de todos as polêmicas que causou com suas obras, sempre foram muito
claras as opções políticas de Nelson Rodrigues, algumas expressas em seus próprios
escritos, outras destacadas por pessoas como seu biógrafo, Ruy Castro. Elas
apresentavam um escritor que sempre combateu abertamente qualquer opção política que
significasse uma guinada à esquerda no cenário da vida pública brasileira. Em suas
escolhas privadas, Nelson foi, por sua vez, um eleitor de opções conservadoras: sempre
votou, por exemplo, na UDN, uma das facções políticas brasileiras mais tradicionais, que
teve um de seus ativistas de destaque na pessoa de Carlos Lacerda (intelectual tão
contraditório quanto o dramaturgo, mas que, assim como ele, sempre apoiou e, mais do
que o cronista, empenhou-se politicamente em favor de um ideário conservador).
185
Nelson aparecerá atuando na imprensa como contista e cronista de peso em
momentos extremamente conturbados da vida política nacional. Durante a década de
1950, o jornal Última Hora, onde trabalhava, esteve no centro de uma crise política que
levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas e a um estremecimento da ordem
democrática. Na década de 1960, sua prática será cercada pelos acontecimentos
desencadeados pelo movimento golpista de 1964 e pelos cenários de mudanças políticas e
culturais no Brasil e no mundo.
A segunda metade da década de 1960 e os anos de 1970, o período em que estarão
sendo escritas as crônicas que estarei comentando nesta seção, são momentos de
produção intensa para o escritor-cronista e de grandes mudanças no mundo. Os
movimentos hippie e feminista, a liberação sexual, as iniciativas revolucionárias em
busca de transformações políticas à esquerda e à direita, aparecerão como pano de fundo
nesse momento.
Nelson se insere nesse quadro disposto a causar celeuma. Com sua escrita
irascível povoará suas crônicas-comentário (às vezes, em versão híbrida com arestas de
crônica narrativa), discutindo e atacando todos esses assuntos. Sempre com sua visão
crítica, se colocará a debater e a investir por temas como a Psicanálise, as movimentações
e manifestações políticas, a luta de minorias por direitos igualitários, as mudanças
radicais de comportamento por parte principalmente da juventude, entre outros tópicos.
Para diferir de estudos anteriores, vou primeiramente acompanhar as crônicas
mêmore-comportamentais de Nelson estabelecendo contraponto com acontecimentos
específicos de ordem político-cultural no cenário brasileiro e internacional. Essa
abordagem favorecerá a percepção de seus escritos em relação a alguns eventos e
186
episódios comentados, o que é de sobremaneira importante para se avaliar quais os
posicionamentos que adotará em seus textos.
Não há como se dizer ao certo se Nelson Rodrigues apoiou de fato o golpe militar
de 1964, embora seja possível vislumbrar que houve de sua parte uma simpatia pela
tentativa de barrar uma radicalização à esquerda no Brasil, nesse período agitado e
dramático da história brasileira. No primeiro volume do longo estudo de Gaspari (2002),
se confirma a percepção corrente de que houve uma ausência de poder que ensejou o
Golpe. A obra de Gaspari descortina toda a luta interna e a divisão que se encontrava no
interior do movimento golpista.
Havia uma facção de militares moderados e outra de militares linha dura.
Orquestrada como uma ação conjunta entre essas duas forças internas, o golpe militar de
1964 acabará por consagrar a vitória da segunda delas. A radicalização à direita, com a
cassação e perseguição a políticos, a professores e intelectuais e atos arbitrários como o
fechamento de entidades representativas da sociedade civil como a UNE, levará a um
movimento de reação forte da esquerda, que, por sua vez, se entregará à organização de
grupos de guerrilha.
Os anos de 1960 marcam um período também de efervescência na vida cultural
brasileira. É a época dos Centro Populares de Cultura (os CPCs), da Bossa Nova, do
movimento renovador do Cinema Novo, dos festivais da canção, do Tropicalimo, da
experimentação concretista e das novidades nas artes plásticas brasileiras. No cenário
internacional temos a vivência da geração flower power, as agitações dos estudantes nas
universidades americanas e européias, a música de protesto e a busca de experimentações
sensorias com o uso de drogas. O ano de 1968, por si só, com a ofensiva norte-vietnamita
187
do Tet e a repercussão do desastre da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, a invasão da
ex-Tcheco-Eslováquia, por tropas do Pacto de Varsóvia, a Primavera de Praga e as
célebres barricadas nas ruas de Paris, marcou um momento de agitação em todo o mundo.
Como se comportará o Nelson Rodrigues cronista frente a esses acontecimentos
todos? Suas colunas memorialistas começam a ser escritas após a promulgação da
Constituição de 1967, que viria a substituir a redigida em 1946. Apesar de ser encarado
como um adesista ao Golpe Militar de 1964, Nelson surgiu com uma irreverente crônicacomentário, em um de seus primeiros textos. A nova Constituição brasileira, gerada no
bojo do movimento golpista, foi votada no dia 24 de janeiro de 1967, por um congresso já
expurgado de muitos de seus representantes, cassados pelo Golpe. A coluna de estréia de
Nelson é publicada no dia 18 de fevereiro, antes, portanto, da promulgação da nova Carta
Constitucional, que só aconteceria no dia 15 de março de 1967.
Em sua primeira crônica, extremamente irreverente, o escritor volta-se para esse
assunto delicado e que poderia ter evitado. Em seu texto inaugural, Nelson se vê no
centro da cidade do Rio de Janeiro, perseguido pela voz de um camelô que anuncia o
produto que tem à venda: “a nova Prostituição do Brasil”. Irônico, o cronista finge
confundir o produto autêntico, a nova Constituição Brasileira, com essa surpreendente e
inesperada mercadoria:
Para mim, era uma experiência inédita:- pela primeira vez, via uma
prostituição promovida como sabonete, coca-cola ou grapete. Já na outra calçada,
estaco. O que eu reclamava de mim mesmo era todo o espanto que não sentia. Sim,
eu devia estar espantado, todos deviam estar espantados. De outra calçada, ainda
vejo o camelô com sua euforia absurda. E o povo passando. (Rodrigues, 1997: 13)
Mais adiante, segue com suas indagações:
Tomando meu leite, faço as minhas reflexões de leiteria. Sem querer, e por
causa de um engano acústico, eu descobria o seguinte, dois pontos:- o que nos falta é
o que chamaria de “espanto político”. Aqui, as coisas espantosas deixaram de
188
espantar. Se um camelô brotasse de uma alucinação, invadisse a vida real e berrasse
a “nova Prostituição do Brasil” – ninguém cairia ferido de assobro.
Vejamos outra hipótese. Se baixassem um decreto mandando a gente andar
de quatro – qual seria a nossa reação? Nenhuma. Exatamente:- nenhuma. E ninguém
se lembraria de perguntar, simplesmente perguntar:-“Por que andar de quatro?”.
Muito pelo contrário. Cada um de nós trataria de espichar as orelhas, de alongar a
cauda e ferrar o sapato. (Rodrigues, 1997: 13-4)
É necessário assinalar que Nelson foi muito perseguido por iniciativas de ordem
censória, que atingiram muitas de suas peças e, no ano anterior, haviam alcançado seu
romance de estréia, O casamento, proibido de ser comercializado por portaria de Carlos
Medeiros da Silva, Ministro da Justiça do Governo Castello Branco. Em uma época em
que a censura desenfreada do período pós-Ato Institucional Número 5 (AI-5) ainda não
grassava, Nelson tinha motivos de sobra para se mostrar ressabiado com os possíveis
ditames de uma nova Constituição, e podia externar seus posicionamentos sobre o
assunto sem maiores riscos e conseqüências.
Um dos incidentes cruciais para o desenrolar de muitas das manifestações
políticas de rua que fizeram parte da vida carioca na segunda metade dos anos de 1960,
foi a morte, no dia 29 de março de 1968, do estudante secundarista Edson Luís de Lima
Souto, vítima de um tiro no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Sobre a morte de
Edson Luís, Elio Gaspari avalia que surgia com esse episódio o primeiro e mais central
entrave entre o regime militar e os estudantes. Depois que uma bala atingiu e matou o
rapaz, houve por parte da PM a tentiva fracassada de levar Edson Luís para o Instituto
Médico Legal, para reduzir a repercussão do caso, mas os estudantes conseguiram
carregá-lo até à Assembléia Legislativa, onde ele ficou exposto em uma mesa para o
registro dramático de fotógrafos, o que trouxe desdobramentos políticos importantes.
Nelson também escreveu uma crônica-comentário sobre essa passagem da história
brasileira.
Sua indignação, além do ato em si, se estendeu à frieza da cobertura
189
jornalística feita pelo Jornal do Brasil. A crônica comenta primeiramente a imagem de
Edson Luís que ilustrou vários jornais, inclusive a capa do Jornal do Brasil e, depois,
chega à crueza da objetividade do texto que acompanhou a fotografia publicada na
primeira página do JB. Diz o cronista:
Na fotografia aparece seminu, como um santo. Lá está o peito varado. E eu
começo a pensar. Seria parecido com quem? Uma senhora veio me mostrar o retrato,
trêmula de beleza:-“É Ofélia, não é Ofélia?”. Fez uma pausa e completou:-“Lindo
como Ofélia!”. E começou a chorar.
Vejam vocês. Fora a fotografia, toda a cobertura foi, para o leitor, uma
amarga frustração. Falo, sobretudo, das primeiras páginas. Ah, eu ainda apanhei a
última geração romântica da imprensa. Uma manchete era, por vezes, uma solução
em oito colunas, em tipos garrafais.(...)
Vejamos ao acaso, o Jornal do Brasil. O fuzilamento do menino era uma
catástrofe. Mas a catástrofe não foi tratada como tal. De modo algum. Fui ler a
primeira página do velho órgão. Eis os termos em que se apresenta a tragédia: “A
morte do estudante Edson Luís de Lima Souto – baleado no peito, às 18h30m de
ontem, durante um conflito da PM com estudantes no restaurante calabouço”. E só.
Tenham paciência. Mas esse tom impessoal, sumário, desumano, seria apropriado
para noticiar um atropelamento de cachorro. O leitor tem vontade de bater para o
Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil e lembrar-lhe:-“Vocês estão falando
de um estudante, um menino, um ser humano”.
E assim o patético da fotografia não existe no texto. Uma objetividade
idiota arranca do fato as suas entranhas ou, se preferirem outra imagem, castra todas
as potencialidades do fato. (Rodrigues, 2000: 198-9)
Desde 1966, o descontentamento com a situação política vinha desencadeando
manifestações de rua. O incidente com Edson Luís levou ao paroxismo esse embate,
principalmente porque uma confusão, em uma missa na Igreja da Candelária em favor de
sua memória, também degringolou em novo confronto entre a força policial e os
estudantes (cf. Ventura, 2006). A uma breve calmaria, em seguida a esse episódio,
sucederia um novo confronto, desta vez entre a Polícia Militar e estudantes universitários
que ocuparam a Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na ocasião muitos
manifestantes foram espancados e as fotos nas primeiras páginas dos jornais no dia
seguinte causaram desconforto para a classe média que viu universitários serem
humilhados pela força policial. A esse episódio se seguiria outra manifestação com
190
mortos no centro do Rio de Janeiro. As demonstrações de rua vinham assim se
transformando em verdadeiras batalhas campais com policiais perseguindo manifestantes
a cavalo e pessoas atirando objetos do alto dos prédios (cf. Gaspari, 2002).
É nesse momento que começa a se ensaiar a maior de todas as manifestações, a
que entraria para a história brasileira como a Passeata dos Cem Mil. Com uma diferença
em relação às demonstrações anteriores: tinha caráter pacífico e incluía uma gama grande
de representantes de diferentes setores da sociedade, como artistas, intelectuais,
religiosos, deputados. A Passeata dos Cem Mil reuniria uma esquerda dividida. Havia a
ala moderada, com os intelectuais que seguiriam externando de forma pacífica seu
descontentamento com a situação política, e os radicais, que se encaminhavam para a luta
armada.
As divisões dentro da esquerda brasileira não se davam apenas na esfera de
atuação política. No ambiente cultural isso podia ser percebido dentro da Música Popular
Brasileira, por exemplo, nas apostas estéticas de compositores com experiências artíticas
tão diferenciadas como Geraldo Vandré, Chico Buarque de Hollanda e os integrantes do
movimento que ficou conhecido como a Tropicália42. O espaço dos festivais da canção
foi o lugar onde essas opções estéticas antagônicas apareceram de maneira mais evidente,
com a platéia participando e, através da vaia, consagrando seus ídolos e tentando
constranger os supostos rivais de suas escolhas artísticas, principalmente os que do ponto
de vista dessa platéia simbolizavam o entreguismos a uma cultura estrangeira.
Sobre as manifestações de rua, a Passeata dos Cem Mil e os festivais da canção,
Nelson escreveu várias crônicas. As menções às passeatas foram antecedidas por
42
Ver Hollanda, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde 1960-70. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2005. Especialmente capítulos 1 e 2. As divisões dentro da música popular brasileira surgem ainda em
maiores detalhes em meio as lembraças memorialísticas de Caetano Veloso sobre o movimento musical da tropicália.
Consultar Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
191
comentários sobre o maio de 1968 francês. Nelson discute, dentro do cenário político da
Europa, o fim da figura do herói, que estaria em decadência para dar lugar a uma
multidão amorfa:
Em nosso tempo, só conhecemos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se
viu uma Joana D´Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E,
depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício,
uma assembléia, uma unanimidade.
Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar,
os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, berram por nós.
Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão.
Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. As
maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de
onipotência. (...)
Ainda há pouco, viu-se a França se levantar contra De Gaulle. Lembrome de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos
arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. (...)
Mas como ia dizendo:-o país se levantou contra o mito. Estudantes
levavam cartazes assim:-“De Gaulle assassino”, “Fora De Gaulle” etc. etc. E o
prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria
França é o passado. Diante de nós está a anti-França.
No momento em que o país se matava em greves. De Gaulle fez um
pronunciamento. Disse:-“Eu sou a revolução”. Mas vejam a obstinação com que
ele diz “eu”. (...)
O que se passou entre ele e seu povo é uma incompatibilidade
irremediável, fatal. A França das assembléias, das maiorias, das unanimidades, não
aceita mais o herói solitário e formidável. De Gaulle não sabe que está morto, e faz
discursos. (Rodrigues, 1997: 132-3)
Pode parecer pelas linhas acima que Nelson estivesse distante e mesmo contra as
mobilizações da sociedade contra os atos arbitrários do governo, o que não é verdade. Em
fevereiro de 1968 ele havia participado, por exemplo, de um protesto nas escadarias do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, contra a censura de peças de Tennesseee Williams,
Roy Jones e Jorge de Andrade e a suspensão de uma atriz (Maria Fernanda) e de um
produtor teatral (Oscar Araripe)43. Esteve também, a se confiar na veracidade de seus
relatos, na passeata dos Cem mil. Só que, tocado pelas idéias do Ibsen de O inimigo do
povo, não se conteve em exibir pouco entusiasmo pela manifestação. Ao mesmo tempo
43
O episódio é referido por Ventura, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006,
p.105.
192
queria polemizar trabalhando uma idéia que iria se transformar em um dos seus aforismos
mais famosos e citados, aquele que diz que toda unanimidade é burra e que, quem pensa
com essa unanimidade, não precisa pensar.
E de fato, se a esquerda estivesse atenta a algumas das ponderações de Nelson
teria visto que elas eram sob alguns aspectos até pertinentes. Poderia ter constatado, por
exemplo, um dado essencial que só foi perceber anos mais tarde: o de que estava, em seus
sonhos revolucionários, sozinha e distante dos movimentos populares. Observador
arguto, Nelson comentou sobre a passeata dos Cem mil:
Fui testemunha auditiva e ocular da marcha. Como sou uma “flor de
obsessão”, não me saía da cabeça a ausência do negro.(...)
O fato é que no dia seguinte, falando com o meu amigo Guilherme da
Silveira Filho, fazia um escândalo amargo:-“Nem um preto, Silverinha! Nem um
desdentado! Nem um favelado! Nem um torcedor do Flamengo! Nem um
assaltante de chofer”. (...)
A coisa era tão antipopular que não apareceu nem um batedor de carteira.
Onde há povo, são obrigatórias uma série de figuras:- o vendedor de laranjas, de
mate, de chica-bom, de mariola. Quando o povo sentasse, acabaria a passeata e
começaria o piquenique. Palavra de honra, eu ficaria radiante se, de repente,
aparecesse uma mãe plebéia. Sim, uma santa crioula, que tirasse o seio negro e
generoso e desse de mamar ao crioulinho sôfredo.
Não tinha a mãe plebéia. Em compensação, vi duas grã-finas que ficaram
em pé. Um cineasta que ali estivesse havia de anotar o valor plástico da coisa:duas em pé e os Cem Mil, ou Cinqüenta Mil, ou Vinte ou Cinco Mil sentados. O
leitor há de perguntar por que uma e outra não fizeram como os demais. Explico:uma, porque estava vestida à Saint-Laurent, e outra porque tinha uma saia tão
apertada que não dava jeito. (Rodrigues, 1995: 28-9)
Mas a par essas considerações que de fato são válidas para a discussão sobre o
cenário dessas manifestações, o objetivo maior de Nelson era mesmo ridicularizar aquele
grupo que se tornaria seu saco de pancadas predileto: a intelectualidade. Pode-se perceber
que o cronista começava a não resistir a empregar sua pena para atacar especialmente a
esquerda. Em julho de 1968, ainda no calor do debate sobre as demonstrações de ruas e a
passeata dos Cem mil, escreveu:
193
Hoje, queria pingar duas palavras sobre a inteligência nas passeatas.
Reparem:- qualquer um pode falhar, menos o intelectual. Não houve chuva em
nenhuma marcha. Mas, se fizesse um mau tempo de quinto ato de Rigolleto e já
estaria ele, firme, inarredável, inexpugnável. Mas escrevi “intelectual” e cabe uma
especificação:-falo do escritor, romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que
depende sempre de um leitor.
(...) Mas o escritor não tem possibilidade nenhuma de massas. Bem que
gostaria de ser lido , no Estádio Mário Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.
Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul
Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul crispa no meu
braço:-“Olha lá! Ali”. Virei-me, e confesso o meu deslubramento. Primeiro, vi a
tabuleta:-“Intelectuais”. Sempre tive a impressão injusta, a impressão iníqua de que
há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço
reservado à “inteligência”, se concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me
ocorreu a hipótese paranóica de que o Brasil tivesse tantos intelectuais.(...)
Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia:-“Viste como o
Brasil é inteligente?”. De fato, a evidência numérica estava a demonstrar que somos
uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul
Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ouvidor de olho
no romancista. E em outros romancistas, e ensaístas, e poetas, e cronistas, e
sociólogos (cada vez me convencia mais da insuportável inteligência do Brasil).
Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce.
(Rodrigues, 1997: 141-2)
É relevante assinalar entretanto que apesar de parecer que Nelson estivesse
sempre agindo com parcialidade, isso não era necessariamente obrigatório. Algumas das
considerações do cronista sobre os acontecimentos em pauta eram bastante contraditórias.
Assim, foi implacável com a Passeata dos Cem Mil, mas se desdobrou em elogios ao
líder-mor dessas manifestações, Vladimir Palmeira, que, aos 18 anos, era o símbolo
maior do que se entendia então como “poder jovem”, outro dos tópicos prediletos para o
chiste do autor. Vale a pena ver o que ele disse sobre Vladimir Palmeira:
E vejam como nasce um líder. De repente, a cidade começou a falar em
“Vladimir”. Nas esquinas e botecos, o simples nome ia passando de um para o outro.
(...)
Eu próprio só o vi na passeata. E fiz fulminante constatação:- é, sim, um
líder. Imaginem um jovem que sobe num pára-lama e, com um gesto, faz a
unanimidade. Eu o vi trabalhar a multidão. Dizia:- “Vamos fazer isso, aquilo e aquilo
outro”. Até pessoas que não tinham nada com a passeata, simples transeuntes,
entravam na disciplina. Mesmo os inimigos da passeata eram tocados e convencidos.
E foi impressionante no fim da marcha. De repente, Vladimir falou (com irresistível
simplicidade, sem nenhuma ênfase). Disse:- “Estamos cansados”. Ninguém estava
cansado. E completou:-“Vamos sentar”. E todos sentaram, como na passagem bíblica
(não há tal passagem. Desculpem). Assim ficamos, sentados, como se estivéssemos
de joelhos. Senhoras, mocinhas, intelectuais, estudantes, avós, cada qual se sentou no
meio-fio, no asfalto, na calçada. E foi um maravilhoso quadro plástico. Não sei,
194
ninguém pode saber, qual será o destino desse rapaz. Mas sei que é esta coisa cada
vez mais rara:- um homem. (Rodrigues, 2000: 283-4)
Em tempo, o destino do rapaz, e o de outros intelectuais de esquerda também,
seria os cárceres da ditadura, que Nelson logo testemunharia com a prisão de amigos
próximos, mas cuja existência seguiria desconsiderando ou fazendo pouco caso de sua
existência. Palmeira foi preso várias vezes entre 1967 e 1968 por sua atuação nessas
manifestações e só viria a ser libertado quando do seqüestro do embaixador norteamericano Charles Burke Elbrick.
Com relação aos festivais, se deu algo semelhante. Comparou a atitude da
esquerda que vaiou Caetano Veloso em um desses eventos, com as práticas nazistas e
chegou mesmo a escrever:
Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu
uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de
salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um
artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia.
A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um
concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar. Mas os jovens centauros não
deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista – a queima de
livros. (1995: 242-3)
Apesar disso, achou a composição de Geraldo Vandré, concorrente que disputava
com o músico baiano o festival, mais autêntica. A música de Veloso, inspirada na frase
“É proibido, proibir”, que povoara as ruas no maio de 1968 parisiense, era aos olhos de
Nelson pouco inspirada. O cronista se perguntava por que o compositor teve de recorrer à
tradução. E dizia que a composição de Vandré era, ao contrário, de uma “fascinante
originalidade” e que ficou comovido com sua “integridade autoral”.
Em dezembro de 1968 temos a decretação do AI-5, e começam os anos negros da
ditadura. É o período em que o cidadão brasileiro enfrentará o duro cerceamento às suas
195
liberdades individuais em uma das mais vergonhosas passagens de nossa história. Nelson
chegou a escrever uma crônica muito irônica sobre uma das medidas que definiram o
fechamento do Congresso e o fim do que ainda restava de convivência democrática. Na
primeira edição do livro O reacionário (1977), há uma crônica que se volta para a
discussão do AI-5, mas trata-se mais de uma crítica à passividade do poder legislativo
que, diante desse Ato Institucional, se limitou a se manifestar acanhadamente com um
telegrama ao presidente, do que com um ataque ao dispositivo em si (cf. Rodrigues,
1977: 371-4).
Após o AI-5, Nelson Rodrigues seguirá atacando, e com peso dobrado, o grupo
que mais vinha sofrendo as conseqüências das medidas casuísticas que o Ato
institucionalizava: a esquerda. A época era de atitudes extremadas e Nelson não cansava
de se auto-proclamar anticomunista. Apesar de poder ser questionado se a época era
pertinente aos ataques e divisões propostos por Nelson, o fato é que ele preferiu se
prender à liberdade de poder manifestar suas opiniões e afirmar tudo em que acreditava a
contemporizar. Nelson Rodrigues já vinha se desentendendo até mesmo com os próprios
amigos, muitos esquerdistas incorrigíveis. Isso ocorria porque levava até o fim suas
posições por mais desagradáveis que fossem e independentemente do número de
desafetos que trouxessem.
Passaria em seguida a viver sua vida em pólos extremos, o que o faria transitar
por ambientes antagônicos, principalmente quando de sua aproximação a alguns dos
militares que estavam por trás dos desdobramentos recentes do Golpe. Por seus interesses
esportivos comuns, conheceu o presidente Emílio Garrastazu Médici, simbolo maior do
período ditatorial. Conviveu e viajou com ele de avião para acompanhar partidas de
196
futebol (cf. Rodrigues, 1995) e não mediu elogios a sua pessoa. Essa proximidade dos
militares que tinham contribuído para a criação do cenário dos anos de chumbo no Brasil
acabou por depor historicamente contra uma arte libertadora como a pregada por seus
escritos44.
Um biógrafo como Ruy Castro mantém o álibi de que Nelson desconhecia as
torturas do governo militar e que realmente só veio a tomar ciência de perto do lado mais
cruel da ditadura quando encontrou o próprio filho preso (cf. Castro, 1993). Tornando
suas atitudes mais inesperadas ainda, Nelson Rodrigues ajudou, ao mesmo tempo, e em
negociação com os militares que conhecia, intelectuais próximos como Hélio Pellegrino e
Zuenir Ventura, a serem liberados pelas forças da repressão. O incidente ocorreu na
esteira do AI-5, quando vários intelectuais com ativa atuação política foram
encarcerados. Entre eles estava um dos grandes amigos de Nelson Rodrigues, o
psicanalista Hélio Pellegrino, de quem o cronista chegou a declarar que se tivesse que
optar entre a humanidade e o amigo, ficaria com o segundo.
O episódio da prisão de Hélio Pellegrino é revisitado por Ventura em seu livro de
memórias jornalísticas:
A primeira vez que Nelson foi nos visitar na prisão dei-lhe as costas e disse
ao Hélio que não queria conversar com quem escrevia a favor da ditadura. Ele era o
único intelectual importante que apoiava abertamente o regime militar e continuou
apoiando mesmo depois que seu filho Nelsinho foi preso. Dele, eu queria distância.
Mas como, se eu estava confinado na mesma cela do Hélio e Nelson ia
visitá-lo todos os dias, inclusive no carnaval, durante os três meses em que ficamos
encarcerados?
A verdade é que Nelson nunca deu muita confiança ao meu amuo, e aos
poucos Hélio foi me ensinando a entender aquele personagem contraditório,
complexo e riquíssimo. Em três meses, havíamos estabelecido uma relação tão
afetuosa que ele acabou intercedendo para que o general Assunção Cardoso, chefe do
Estado-Maior do I Exército, ao libertar Hélio, me soltasse também. Hélio havia dito
que só saía se eu saísse junto.
44
A proximidade do presidente militar Emílio Garrastazu Médici está em Rodrigues (op. cit., 1995), nas páginas 132-3.
Rodrigues foi assistir à inaguração do Morumbi e conta que a pedido de Médici acabou voltando de São Paulo no avião
presidencial, vencendo o medo que o fez evitar as viagens aéreas até esse dia. Por ironia, quem o levou a São Paulo, foi
Nelson Rodrigues Filho, pouco antes de entrar para a cladestinidade como militante do movimento de guerrilha.
197
- Hélio, mas você garante que essa doce figura não vai botar uma bomba no
Palácio? – perguntou Nelson bem à sua maneira, desmoralizando ele mesmo, com
humor, sua cômica suspeita. (Ventura, 2005: 161-2)
Não foram apenas Pellegrino e Ventura as únicas pessoas que o dramaturgo se
empenhou, em negociações com os militares, a ajudar a escapar à prisão: o diplomata
Miguel D´Arcy de Oliveira e o teatrólogo Augusto Boal também entraram nessa lista (cf.
Castro, 1993). Sobre a aproximação de Nelson Rodrigues com o presidente mais
identificado com o período ditatorial, Ricardo Beserra da Rosa Oiticica (1988) levanta
uma hipótese persuasiva: evitar que seu filho, Nelson Rodrigues Filho, fosse morto.
Nelson Rodrigues Filho havia entrado para o grupo de guerrilha Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) no final dos anos de 1960 e iria permanecer na
clandestinidade entre fevereiro de 1970 e março de 1972, quando foi capturado. A atitude
de Nelson favoreceu o filho, como se comprova em Castro (1993): os militares que o
perseguiram tinham ordens expressas de evitar a sua morte.
Assim, ganha embasamento a tese de que a aproximação a Médici fosse um caso
de manobra pessoal para evitar que o pior acontecesse a seu filho. Com o filho condenado
a setenta anos de exclusão, Nelson Rodrigues faria de um dos seus últimos escritos uma
“Carta pela anistia”, publicada pelo Jornal do Brasil, em 13 de junho de 1979, e
endereçada ao então presidente da República João Baptista Figueiredo. Nela, Nelson
primeiro rememora quando conheceu Figueiredo em uma comitiva de Médici em uma
carona depois de um jogo no Maracanã. Em seguida, conta o seu drama pessoal e suplica
pela anistia que vinha sendo prometida pelo governo. É o momento em que começavam a
aparecer os primeiros sinais do que ficaria conhecido como o período de abertura política.
É o seguinte o tom da carta aberta ao presidente:
198
Quis o destino que meu filho, Nelson, na altura dos 24 anos, entrasse na
clandestinidade. Talvez, um dia, eu escreva todo um romance sobre a clandestinidade e a
prisão do meu filho. A prisão não é tudo. (Preciso chamar você, novamente, de senhor.)
O senhor precisa saber que meu filho foi torturado. Isso me foi ocultado por Nelsinho,
por causa do meu estado de saúde.
Ora, um presidente não pode passar como um amanuense. Há uma anistia. Tem
que ser uma anistia histórica. O que não é possível é que seja uma anistia pela metade.
Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de
uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso
chegando a boca de cena para anunciar:- “Senhores e senhoras, comunico que fui quase
anistiado”.
Não se faz isso para uma platéia internacional abismada. Que se dirá em todas as
línguas e sotaques? E que dirá o próprio Deus? Bem, nunca se acreditou tão pouco em
Deus. Mas não importa, nada importa, o que importa é o que disse Dostoiévski, certa
vez:-“Se Deus não existe, então tudo é permitido”. (Rodrigues, 1996: 289-90)
Da leitura dessa carta se depreende que o aspecto pessoal não era desprezível.
Principalmente no caso de Nelson Rodrigues. É sabido que duas das pessoas mais
atacadas pelos escritos do cronista foram Dom Hélder Câmara e Alceu Amoroso Lima
(ou Tristão de Athayde). E é notório também que o que levou Nelson a voltar sua
artilharia contra essas duas vozes muito importantes dentro do quadro político do período
ditatorial foram questões de ordem pessoal.
Tanto Dom Hélder Câmara quanto Alceu de Amoroso Lima estiveram em foco
em crônicas narrativas de Nelson. Quando a pena do autor-ficcionista já não resistia aos
limites das
crônicas-comentário, Nelson investia pelas crônicas de feição narrativa.
Nosso cronista elegia, entre outros, os seguintes lugares para situar e desenvolver suas
crônicas deste filão: um terreno baldio, onde, em companhia de uma cabra, entrevistava
uma personalidade conhecida, as dependências do Antonio´s, conhecido bar da boemia
carioca, o ambiente de um sarau de grã-finos, que acontecia sempre em alguma área
nobre da cidade, o meio da rua, onde o cronista era abordado por um transeunte
desconhecido, ou, ainda, a redação do jornal em que o jornalista trabalhava, onde recebia
visitas, telefonemas, cartas, de pessoas que queriam externar suas aflições.
199
Sobre as crônicas narrativas com o que ele chamava de “entrevistas imaginárias”,
o próprio escritor conta como lhe ocorreu a idéia. Diz de início que a entrevista
verdadeira é sempre falsa, daí a inevitabilidade de transformá-la em um acontecimento
fabular. Segundo o cronista, “aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as
verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto”
(Rodrigues, 1997: 50). Entre os entrevistados figuraram jogadores, dirigentes, literatos e
Dom Hélder Câmara e Alceu Amoroso Lima. Do encontro com o então arcebispo de
Olinda resultou o diálogo em que se percebe o deliberado sarcasmo:
Faço a pergunta:-“Que notícias o senhor me dá da vida eterna?”.
Riu:-“Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara
de vida eterna?”. No meu espanto, indago:-“E o senhor acredita em Deus? Pelo
menos em Deus?”. O acerbispo abre os braços, num escândalo profundo:-“Nem o
Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”.
Ele continuava:-“O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca
encheu barriga de ninguém”. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele
que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d.
Hélder da vida real. E disse mais:-“Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e
outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do
Nordeste?”
Esse era o tom das incontáveis troças que Nelson desferia contra Dom Hélder
Câmara. E justo ele, que representava a ala mais progressista dentro da Igreja Católica
no Brasil. Dom Hélder Câmara apareceria ao lado de Alceu Amoroso Lima em novo
encontro no terreno baldio. Eles surgem no papel de co-adjuvantes e bajuladores de um
jovem canalha. Ambos eram conhecidos pela afirmação da importância de uma nova
geração de brasileiros na influência que teriam nos destinos políticos do País. A narrativa
tem início na redação do jornal quando o telefone toca:
(...) O contínuo pergunta:- “Quem quer falar com ele?”. Pausa. O contínuo
repete:-“Quem? O Canalha?”. Alguém que se dizia “o canalha” queria falar comigo.
Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse
eu solicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha. Do outro
lado da linha, diz alguém:-“Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar uma entrevista
200
imaginária. Pode ser?”. Fiz-lhe a pergunta:-“Quem é o senhor?”. E o outro, com voz
de quem está mascando chicletes:-“Já disse. Sou o canalha”.(...)
(...) Pergunto:-“Afinal, que idade tem o senhor?”. Eis a
resposta:-“Dezessete anos”. (...)
Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno baldio:-“Sou eu. Manda
providenciar papel picado e listas telefônicas. Vamos receber a mais ilustre visita de
toda a história do terreno baldio”. Pergunta, pálido, o contra-regra:-“Quem?”.
Imaginou, por certo, que seria um rajá montado em um elefante. Disse-lhe:-“O
jovem canalha!”(...)
É, súbito, a cabra põe a boca no mundo:-“Evém o jovem canalha!”. Era a
pura verdade. Vinha ele e com costeletas ao vento. Mas não vinha só. Uma massa o
seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro:-“Já ganhou! Já ganhou!”. De um
lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos
abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o patife entrou no
terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr. Alceu forrou o chão com o próprio
paletó para o jovem pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.
(Rodrigues, 1997: 230-1; grifos do original)
Em uma única crônica, Nelson decidia destilar sua ironia sobre todos aqueles que
havia eleito para execrar publicamente: o jovem, o ativista das passeatas, Dom Hélder
Câmara e Alceu Amoroso Lima. Outros que estiveram no alvo de seus ataques foram os
cineastas e público de correntes vanguardistas no cinema. Eles podiam aparecer
simbolizados na pessoa de um diretor inovador como o francês Jean-Luc Godard e na
platéia de seus filmes representada pelo que ficou conhecido como a “geração
paissandú”.
Outras crônicas narrativas tratariam da Igreja Progressista, da educação sexual, da
nudez, do sexo livre, da psicanálise, do pensador Jean-Paul Sartre, do dramaturgo Bertold
Brecht, todos temas de discussão nos anos de 1960 e 1970. É impressionante como a
leitura dos escritos de Nelson nos revela um cronista antenado com todos os assuntos
mais queridos à intelectualidade naquele momento (e indiretamente podemos imaginar
que queridos a ele também). Para ridicularizar a pose daqueles que eram identificados, e
por ele especialmente, como a “esquerda festiva”45, dizia que os intelectuais compareciam
45
Ventura credita a invenção do termo “esquerda festiva” ao cronista Carlos Leonam em uma festa organizada pelo
cartunista Jaguar. “Leonam, um atento cronista do comportamento carioca, estava dançando quando teve a idéia. Correu
para a mesa de Ziraldo e disse: “Tem outra esquerda, é a esquerda festiva.” No dia seguine, ele [Ziraldo] noticiava sua
descoberta na coluna que mantinha no Jornal do Brasil. Estava inaugurada uma expressão que teria presença
assegurada no léxico e no espectro ideológico da política nacional” (op. cit., 2006, p.53).
201
a reuniões de grã-finas que só liam as orelhas dos livros de Herbert Marcuse (pensador
alemão que tinha enorme projeção no pensamento das universidades americanas), que
recorriam à psicanálise e tinham um poster de Che Guevara46 na parede do quarto de
dormir.
4.3.1 – Personagens das Crônicas Mêmore-Confessionais
Como suas crônicas mêmore-confessionais tinham como alvo a esquerda
brasileira e todos os representantes de correntes com aberta militância política e
abordagem questionadora da realidade social, Nelson reservou a eles o espaço para dar
vida a uma galeria de novos personagens que nasceram do embate entre fato e ficção. O
cronista não se limitou aos ataques nominais a Dom Hélder Câmara: criou, para gerar
desconforto no arcebispo e em outros religiosos de esquerda que haviam participado das
mobilizações e manifestações públicas, as figuras dos padres de passeata. A
ridicularização seria estendida às mulheres religiosas, naquelas que seriam identificadas
pelo escritor como as freiras de mini-saia.
Nelson iria argumentar que os padres de passeata extrapolaram o momento das
manifestações de rua e continuaram sua militância em outros ambientes (especialmente,
poderia ter acrescentado, em suas crônicas). Flagrou um dos representantes dessa ala
avançada da Igreja em uma aparição televisiva, justo quando o cronista aguardava por
mais uma reprise dos bangue-bangue que gostava de ver. Pode-se aproveitar a passagem
para observar as voltas que a escrita do autor dá para trabalhar um pensamento que se
46
Para uma avaliação da implicância de Rodrigues com os próprios amigos vale checar o registro de Paulo Roberto
Pires em seu perfil de Hélio Pellegrino. Quando Hélio Pellegrino se encontrava foragido por suas atitudes políticas, no
período pós-AI-5, sua casa foi invadida por policiais. Na passagem que registra a investida das forças da repressão,
Pires menciona um detalhe que acaba nos revelando quem Rodrigues tinha em mente em suas investidas fabulares:
“Revistaram tudo, desconfiados da empregada, que já avisara que o doutor Hélio não estava. Decidiram esperar. Com o
tempo, a situação tensa, a empregada resolve dar uma de Hélio Pellegrino e desabafa:- Por que vocês não procuram aí
debaixo do sofá pra ver se o doutor Hélio está, hein? Os policiais acharam graça e resolveram ir embora. Deixaram de
encontrar, justamente embaixo daquele sofá, todos os livros considerados proibidos e, o que seria um troféu máximo, um
pôster de Che Guevara” (Pires, Paulo Roberto. Hélio Pellegrino – perfis do Rio. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998,
p.70)
202
sustenta em um contra-senso argumentativo em sua parte final. O cronista quer
questionar se “desenvolvimento”, essa palavra tão em voga na ocasião, significaria
necessariamente a “paz”:
Pois bem. Na expectativa do faroeste, calhou-me ver uma entrevista com
um “padre de passeata”. Quando liguei na emissora, vi aquela figura de Falstaff com
terno da Ducal.(...)
Os “idiotas da objetividade” pensam que os “padres de passeata” acabaram
com as passeatas. Doce ilusão. Já existiam antes das passeatas e continuam depois
delas. Imaginem uma sinistra figura anticatólica, anticristã, antimística etc. etc.
Assim é, se me exprimo bem, o “padre de passeata”. E o da televisão era uma
almofadinha ou, como se dizia no tempo, um janota gordo. Eis a palavra exata, tão
inatual, tão obsoleta:-janota.
Vocês querem saber, decerto, o que pensou e disse a papada.
Disse:-“Desenvolvimento é paz”. Não sei se vocês repararam na pose de certas
bobagens. São solenes, enfáticas, bem-postas, como se vestissem casaca, com Legião
de Honra e outras. E o “desenvolvimento é paz” figura entre as mais enfáticas
bobagens do século XX. E com efeito, não há a menor relação entre a paz atribuída
ao Desenvolvimento e os fatos de cada dia. Pode-se dizer, inversamente, que o
Desenvolvimento é angústia, é ódio, é tédio, é desespero, é frustração, é solidão.
Começarei pela Suécia. Segundo tudo o que sabemos, é desenvolvida. Pois a Suécia
bate todos os recordes de suicídio. Lá, um dos passatempos mais amenos é estourar
os miolos, atirar-se do Pão de Açucar e beber formicida na Casacatinha. Não há povo
mais triste, mais dilacerado, de uma solidão mais brutal. (Rodrigues, 1996: 159-60)
Uma instituição como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro surgiu
como fonte de mais personagens para o autor. Padres-professores, professores e alunos
dessa Universidade, que sempre teve um papel combativo no campo das idéias e das
ações, seriam colocados na mira de suas investidas. Um dia uma leitora chegaria mesmo
a perguntar ao cronista o que ele tinha contra a Instituição. Nelson deveria andar com
saudades do consultório sentimental de Myrna e Suzana Flag, pois o tom da carta, como
o das missivas endereçadas às personas pseudonímicas do autor, parecia ser inventada.
Como as leitoras dos consultórios sentimentais do escritor, a leitora de suas crônicas
recentes queria questionar as opiniões manifestas no texto do cronista em relação à PUC
do Rio de Janeiro.
203
É mais uma crônica narrativa que visa a ridicularizar as mulheres que tentavam
escapar à submissão que representava terem de desempenhar o papel de donas de casa.
Nelson conta a estória de uma jovem aluna de psicologia da PUC, que conhecera e que
andava descontente com tudo e com todos e com pensamentos lúgubres, e que, por fim,
teria encontrado a felicidade voltando a cuidar do lar e cumprindo tarefas como cozinhar,
lavar roupa, arrumar a casa, tudo o que era contestado então no papel da mulher. E
conclui:
Já escrevi que nunca mais apareceu na PUC? Pois é:- nunca mais. O que
tenho a declarar, em minha defesa, é outro óbvio, ou seja:- em todas as comunidades,
há de tudo. O sujeito quer um santo? Há um santo. Quer um pulha? Há um pulha.
Um gênio? Bem. O gênio, não sei por que, é mais difícil que o santo ou o pulha. Em
suma:- na PUC há um elenco imenso, diversificado e, mais, altamente representativo
da nossa desgraçada e ilustre condição humana. (Rodrigues, 1996: 263)
A grã-fina, agora sem as narinas de cadáver da personagem das crônicas
esportivas, e acompanhada por seu marido endinheirado surgiria em crônicas narrativas
como a anfitriã nos salões onde a “esquerda festiva” ia desfilar sua pose. Reparem como
o Reacionário fica sensibilizado e tocado pela foto de Che Guevara, uma imagem que há
décadas vem sendo reproduzida à exaustão sem perder o efeito sobre o imaginário de
várias gerações:
Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma
estátua nua que, nas noites frias, morre gelada.) Seu palácio saiu nos “mais belos
interiores” de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte. Outro
dia, fui visitar um casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia
inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi a bica. Enxuguei as
mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo:-“Que bica! Que
bica!”. E ele, na sua flamejante modéstia:-“Ouro maciço!”.
Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa
vez, dizia, lânguida, meio alada:-“Eu sou amante espiritual do Guevara”. Em
seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do “Che” em sua alcova.
Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase
infantil. Pois bem. E foi justamente a “amante espiritual” de Guevara que telefonou,
ontem, para mim.
Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato do Guevara ia bem de saúde etc.
etc. Zangou-se, risonhamente:-“Cada vez mais reacionário!”. E eu:-“Pelo amor de
204
Deus!”. Mas ela estava com pressa e foi dizendo:-“Vem hoje aqui em casa, ouviu?”.
Criou um mistério, um suspense:-“Tenho uma surpresa”. Resisti de puro charme.
Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos.
Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe:-“E a surpresa?”. Brincou com a
minha curiosidade:-“Calma, calma”. Acabou dizendo que a surpresa era um padre.
Assustei-me:-“Padre de passeata?”. Fez espanto:-“Que história é essa de padre de
passeata? Isso não existe!”. Expliquei-lhe que o padre de passeata era um fato
concreto e histórico. Acabou admitindo realmente, o sacerdote comparecera a duas
passeatas; e acrescentou:-“Uma cabeça. E olha. Mais inteligente que d. Hélder”. (...)
(O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas.
Especializara-se em sexo e Guevara.) Daí a pouco, sou chamado:-a “cabeça” ia falar.
A anfitriã fizera um teatrinho, com cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao
nível da platéia. Alguém me sussurou:-“Uma cultura!”. E. Justamente, a “cultura”
começava a falar. (Rodrigues, 1997: 194-5)
O mais célebre personagem das crônicas mêmore-confessionais foi o crápula, o
vil, o infame Palhares. Transvestido de canalha, ele surgiu nos contos de “A vida como
ela é...”, passou pelas crônicas de Manchete Esportiva e chega agora às crônicas
comportamentais. Em crônica de junho de 1968, Nelson repassa os antecedentes desse
personagem e observa que o próprio já declarou: “-Desde garotinho, sempre fui Palhares,
e só Palhares!”. O cronista prossegue lembrando a lenda que o personagem teria
construído em torno de si:
Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nosso herói é
conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior
feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio:- certa vez, o Palhares
cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo
no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha. Não sei se por inconfidência de
quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho
estarrecido:-“O que não respeita nem as cunhadas!”. (Rodrigues, 1997: 115)
Num momento em que se começava a falar da importância de esclarecimentos
sobre questões sexuais mesmo para a população mais jovem (às vezes, como currículo
obrigatório em algumas escolas), era esperado que Nelson escolhesse o Palhares para
atacar mais essa tendência que ganhava apelo e repercussão na sociedade. Voltemos
portanto à mesma crônica:
205
Mas nunca me ocorrera, nem por hipótese suicida, que, um dia, o Palhares
viesse a explodir como revolucionário da educação sexual. Bati o telefone:-“Escuta,
Palhares. Que negócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por cima?”.
Fiz-lhe a pergunta contudente:-“Desde quando deixaste de ser analfabeto?”
Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável:-não reage.
Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso
impudor:-“Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete”. Fiz a
pergunta impaciente:-“Mas qual é o teu colégio?”. Ao ouvir falar em colégio,
Palhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua:-“Colégio, me achas com
cara de colégio?”. Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava:-“Faço
educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio”. (Rodrigues, 1997: 115-6)
Os amigos de Nelson Rodrigues receberiam alcunhas variadas. O jornalista e
futuro produtor musical Nelson Motta seria um Werther, a desfilar em plenos trópicos o
seu “perfil diáfano” que nunca viu uma praia, o psicanalista Hélio Pellegrino e o
jornalista Cláudio Mello e Souza, seriam os nossos Dantes, a derramar suas culturas para
deleite de platéias boquiabertas nos salões da cidade, o romancista Antonio Callado, o
único inglês da vida real, era o Doce Radical, e o jornalista de esporte de origem
espanhola Hans Henningsen, por seu porte físico, o Marinheiro Sueco.
4.3.2 – A Linguagem das Crônicas
Se se podem condenar muitas das opiniões e atitudes políticas do Nelson
Rodrigues cronista mêmore-confessional, deve-se aplaudir a intuição visionária do
cronista esportivo que celebrava as potencialidades dos atletas brasileiros. No lastro do
texto de ambos não há como resistir à graça e sofisticação da linguagem trabalhada pelo
autor em suas crônicas de modo geral. Ao longo das análises feitas anteriormente,
entramos em contato com um escritor de rara inventividade no trato com a linguagem,
um autor que trabalha uma escrita do excesso.
206
Nas crônicas, veremos esse autor, que gosta das metáforas fortes, vivíssimas, e
que recheia seus textos com imagens de impacto, seguir descortinando novos horizontes
fabulares para adensar ainda mais a riqueza de sua prática escritural. Em contraste com o
que vimos em seu teatro, seus folhetins, seus contos, observaremos a presença de um
narrador-autor que trabalha uma abordagem fabular dos acontecimentos do mundo dos
esportes e dos eventos sociais. As crônicas se irmanariam, portanto, com as reportagens
do autor, embora os giros fabulares ocorram em uma voltagem bem mais elevada.
Esse narrador-autor-cronista lançará mão de alguns recursos semelhantes aos já
trabalhados em sua obra ficcional, com a intenção de estabelecer empatia com o leitor.
Recorrerá novamente ao emprego de
uma linguagem informal. Nas crônicas
rodrigueanas, isso será assinalado de diferentes maneiras. Pode transparecer, por
exemplo, pela escolha de um vocativo como “amigos” para figurar na abertura de muitos
de seus escritos de colunista esportivo. Nelson tinha por hábito iniciar suas crônicas
esportivas se dirigindo aos leitores com essa popular saudação.
Ela se tornaria sua marca registrada e faria escola sendo seguida por outros
jornalistas no passado e no presente. Cronistas de gerações tão distintas como João
Saldanha e Matinas Suzuki Jr. a empregariam no jornalismo impresso, e, mesmo no meio
televisivo, um comentarista como Galvão Bueno recorreria em suas narrações a uma
expressão semelhante, “bem, amigos”, para iniciar as transmissões de jogos na Rede
Globo de televisão (a expressão batizaria também o programa de variedades esportivas do
locutor, o que assinala outra manifestação tributária ao estilo de Nelson).
Para que essa intimidade ficasse mais patente e presente, o cronista poderia ainda
escolher tratar em seus escritos de muitos incidentes e casos que afirmava terem ocorrido
207
com pessoas de suas relações. Ao longo desta Tese já tivemos a oportunidade de citar
várias passagens que tipificam esse recurso. Essas e outras narrativas que ele repartia com
o fruidor de seus escritos surgem, por outro lado, envoltas em uma atmosfera de
confidência, o que garante um maior grau de envolvimento entre o cronista e seu público.
A intimidade é reforçada pela inclusão de passagens com conteúdo autobiográfico, o que
faz com que compartilhemos de detalhes de sua vida pessoal.
Como também já
comentei muito sobre o autobiografismo rodrigueano em passagens anteriores, vou
dispensar-me de fazê-lo aqui.
Um outro fator a funcionar como índice da proximidade entre cronista e leitor é,
segundo Teixeira (2006), a presença da metadiscursividade. Segundo a mestre em letras,
o cronista está tão à vontade que se sente livre para tratar até mesmo da falta de assunto
ou da dificuldade para achar o que dizer em sua crônica do dia. Nelson também repete
essa graça comum a outros cronistas, mas em seus escritos a metadiscursividade, o
metatexto, se refere menos à falta de assunto, do que ao fato de deixar transparecer o
próprio ato da escrita.
Já mencionei o gosto do autor por esse recurso metadiscursivo em seus contos:
agora pode-se ver o metatexto rodrigueano revelar o ato da escrita nas crônicas. Aqui, é
possível mesmo sentir um processo levemente inspirado na revolucionária técnica de
expressão do fluxo de consciência, revelando o momento mesmo de produção do texto.
Vejamos uma exemplificação no trecho a seguir. Nelson esquece o nome de uma estrela
do tempo do cinema mudo e registra isso na crônica. Em seguida assinala a lembraça
inesperada do nome da atriz:
[N]os bons tempos do cinema mudo, todo o elenco, da mocinha ao
mordomo, do vilão ao vampiro, todo o elenco, repito, era lindo. Não me lembro de
nenhuma versão muda do Corcunda de Notre-Dame. Na hipótese afirmativa, creiam
208
que o Quasímodo seria uma beleza. Pois bem. E, naquele tempo, havia uma atriz que
inspirava as paixões mais desvairadas. O nome era... Como é mesmo? Não me
lembro como se chamava. Daqui a pouco me lembro. O certo é que foi um dos
amores da minha infância.
Agora me lembro do nome:-Dorothy Dalton. Isso mesmo:-Dorothy Dalton.
Qualquer filme de Dorothy Dalton tinha uma bilheteria de A vida de Cristo.
(Rodrigues, 1996: 138)
Outro aspecto a ser observado é o da proximidade da linguagem do cronista à
oralidade. Além da informalidade de seu linguajar, pode-se identificar o trabalho desse
aspecto através do emprego de conjunções que classificaria como fracas e que se afastam
da formalidade do texto escrito. Tome-se como exemplo uma crônica esportiva em que a
conjunção aditiva “e” é utilizada bem na abertura do texto, o que mostra mais um fator de
empatia: o leitor inicia sua leitura como se entrasse no meio de uma conversa, como se a
conjunção aditiva assinalasse que algo foi dito antes. Transcrevo o exemplo a seguir:
E, súbito, a CBD toma uma providência patética:- baixa uma ordem
impedindo que qualquer jogador leve a mulher à Suécia. Ora, a finalidade da medida
é de uma cândida transparência. Só um cego de nascença não vê que se trata de
separar Didi e Guiomar, de obstar que ela o acompanhe ao próximo Mundial. Está
claro que Didi pagaria todas as despesas de Guiomar; está claro, do mesmo modo,
que ela ficaria fora da concentração, apenas como torcedora de Didi e do Brasil.
Ainda assim, a entidade máxima faz finca-pé. Didi está diante do dilema: ou a Suécia
ou Guiomar. (Rodrigues, 1994: 45)
Nelson está discutindo um assunto que viraria a tônica dos bastidores de muitos
mundiais de futebol dos quais o Brasil participou: se a presença das mulheres dos atletas
durante um torneio importantíssimo funcionaria como elemento perturbador influindo no
desempenho do grupo. Com relação à linguagem especificamente, pode-se reparar que
Nelson também emprega o sinal gráfico de ponto e vírgula como um substituto para a
conjunção aditiva comentada.
Para cativar o leitor, um outro recurso é o da redundância. Isso se aplica tanto aos
entrechos que são recontados com pequenas variações, como às expressões que são
usadas repetidas vezes, bem como às imagens que são empregadas de maneira exaustiva.
209
Tem-se a ocorrência de um retorno permanente de temas, de situações, de coincidências,
o que é possível se reconhecer presente também nas crônicas.
De todos os indícios de redundância mencionados, as imagens serão a grande
atração das crônicas. Vejamos como elas são trabalhadas pelo escritor em seus escritos de
cronista. Trata-se do elemento mais inovador deste segmento de sua produção. Voltemos
primeiro ao teatro rodrigueano. Já comentamos como Pompeu de Souza destacava no que
se refere ao teatro do autor o fato de ele ser por demais influenciado por outras artes. A
estruturação de seus espetáculos, desde a inovação da concepção de palco de Vestido de
noiva, ao fato de as cenas parecerem serem visualizadas antes de escritas, assim como o
namoro com as artes plásticas, em uma peça como Dorotéia, bem como a utilização
inventiva do som em vários dramas e especialmente em Toda nudez será castigada, são
sinais mais evidentes desse interesse do autor.
Há outros. Uma notação que impressiona muito em sua dramaturgia é aquela que
determina rigorosamente as alternâncias de iluminação no palco e a que indica que se
jogue vez por outra a platéia nas trevas do teatro e a deixe na escuridão para que a cena
seguinte volte com impacto.
Alguns comentarista do teatro rodrigueano lembram ainda a influência da estética
expressionista na concepção de seus dramas. Identifica-se como origem disso o papel que
a arte do seu irmão Roberto Rodrigues exerceu sobre o dramaturgo. Nelson chegou
mesmo a escrever dois artigos externando sua admiração pelo traço de seu irmão
(Rodrigues, 2004: 153-65). Esses dados comentados, mostram a origem da importância
que o autor dava ao elemento visual em seus espetáculos.
210
Assim como vimos no teatro e nos contos, nas crônicas rodrigueanas há, por outro
lado, o que chamaria de uma constante “intertextualidade intersemiótica” na apropriação
e menção de obras cinematográficas, operísticas, teatrais, pictoriais. As referências vão
dos personagens de Tom Mix às superproduções hollywoodianas. Esses elementos todos
devem nos levar a perceber a contaminação que acontece na escrita rodrigueana por esses
vários códigos semióticos, assunto já abordado a partir de Umberto Eco na seção teórica
desta Tese.
Há nos textos do autor a insistente menção àqueles que na visão poética do
escritor são verdadeiros “remadores de Ben-Hur” dado o esforço com que desempenham
seus ofícios. É uma imagem que de tão importante deu título a uma compilação póstuma
de crônicas. A metáfora intersemiótica se funda por referência a um filme do diretor
americano Cecil B. de Mille e mostra o rendimento através da contaminação de códigos
semiológicos distintos.
Em uma menção aos vitrais que são comuns em muitas igrejas, Nelson constrói
uma outra imagem de extremo apelo ao imaginário do leitor. Ele a usa em várias
crônicas, inclusive uma em que fala da homenagem prestada por seu escritor favorito,
Dostoiévski, a um conterrâneo russo, o poeta Pushkin: “Eis o que eu queria dizer:-num
aniversário da morte de Pushkin, o romancista fez-lhe um discurso. Falou uma hora,
duas, sei lá. E o discurso foi uma alucinação. O olhar de Dostoiévski vazava luz como o
de um santo” (Rodrigues, 2000: 119).
Há metáforas cuja beleza está na sua própria concepção inventiva, embora o efeito
visual em nossa imaginação não possa ser menosprezado. Na crônica “A caveira no
espelho” tem-se um exemplo pontual: em vez de fazer a mulher “beber o sangue” do
211
marido, essa metáfora já castigada pelo tempo, o narrador vai fazê-la “chupar” a carótida
do esposo “como laranja” (Rodrigues, 1994: 110). Outras metáforas de extremo vigor
podem ser identificadas em passagens que falam em “atirar patadas no assoalho”, em
cumprir uma tarefa “como uma lagartixa profissional”, em ter “as sombrancelhas tão
ásperas e eriçadas como as cerdas bravas do javali”, no registro de um calor com “um sol
de rachar”, ou alternativamente, “um sol de derreter catedrais”, em ter uma saúde de
“vaca premiada”, ou na identificação irônica em alguma coisa de uma profundidade tão
grande que “uma formiguinha atravessaria a pé com água pelas canelas”, entre muitas
outras.
A intertextualidade com a obra de outros literatos foi fonte na construção de
outras criações imagísticas. Nelson se apropriava das sugestões advindas da leitura de
alguns dos autores que prezava para utilizar como material criativo para suas próprias
imagens. Um dos escritores brasileiros mais lembrados por Rodrigues em suas citações
foi Machado de Assis. Em muitas crônicas do escritor, pode-se, por exemplo, ver a
referência a uma certa vizinha sua, “gorda e patusca como uma viúva machadiana” (cf.
2000: 66). As referências são, como neste exemplo, sempre jocosas e superficiais e sob
alguns aspectos contrariam até mesmo um pouco do mundo ficcional que é recriado.
Assim, se é verdade que as viúvas proliferam nos livros do bruxo do Cosme Velho, devese advertir que por vezes elas apresentavam um estereótipo distinto deste. Basta nos
lembrarmos de Lívia, de Ressurreição (Machado, 1993), para nos depararmos com uma
viúva machadiana charmosa e cheia de encantos e distinta da imagem sublinhada por
Nelson.
212
Citações que investem por superficialidades similares marcam ainda muitas das
visitas feitas por Nelson Rodrigues aos escritos de literatos como Dostoiévski, Tolstoi e
Flaubert. De Dostoiévski, a referência é sempre Sônia e Raskolnikov (de Crime e
castigo), e de Tolstoi e Flaubert, Ana Karenina e Madame Bovary (dos romances
homônimos). Estes são os personagens mais famosos e conhecidos desses autores, e,
como em Machado, fica-se, portanto, na superficialidade da contribuição literária desses
escritores.
De forma semelhante, o personagem mais conhecido de Daniel Defoe, Robinson
Crusoé, é objeto de várias blagues de Nelson. Nelson comenta em uma crônica, por
exemplo, que um estado brasileiro, o Piauí, “é tão só, na comunidade brasileira, tão só
como um Robinson Crusoé sem radinho de pilha” (Rodrigues, 1995: 68). E em outra
oportunidade repeteria a imagem da solidão com o personagem de Defoe: “(...) eu escrevi
que o brasileiro é ainda maior quando solitário. Ponham o brasileiro numa ilha deserta.
Ele sozinho, como um Robinson Crusoé, ou apenas com uma arara no ombro. E o
brasileiro bebendo água em cuia de queijo Palmira (...).” (Rodrigues, 1994: 89).
Um outro pesquisador da obra de Nelson Rodrigues, o já mencionado José
Carlos Marques, ainda que para destacar as características da prosa que marcariam traços
do neo-barroco hispano-americano e que estão presentes nos textos do escritor, nos ajuda
com dois outros exemplos. O primeiro deles acontece com uma troca intertextual com o
poema mais celebrado de que se tem notícia em língua portuguesa: Os Lusíadas, de Luís
de Camões. Nelson se apropria do episódio de Inês de Castro e o lança de maneira
inusitada em uma de suas crônicas esportivas. Nela o cronista narra um dos
engarrafamentos que enfrentou nos momentos que precederam sua entrada no Maracanã
213
para assistir a mais um dos jogos que acompanhava: “Antes de chegar ao Maracanã,
pasmei para a loucura dos automóveis e das buzinas. Nem no enterro de Inês de Castro
teve tantos carros. Eles subiam nas calçadas, ou trepavam nas árvores como macacos e
quase pulavam os muros” (Rodrigues, 1996: 93).
Com Edgar Allan Poe tem-se um segundo exemplo curioso: as menções que
Nelson faz ao escritor norte-americano recaem sempre no poema mais conhecido e
popularizado do autor. E o detalhe é que vamos dar única e exclusivamente no refrão de
de “O Corvo”. É verdade que tudo é feito, mais uma vez, acentuando o lado cômico
como já assinalei antes. Na crônica que comenta a derrota da seleção brasileira no
mundial da Inglaterra de 1966, Nelson “confunde” o corvo de Poe com um urubu que não
se cansa de repetir para o capitão da seleção inglesa (vitoriosa na competição): “nunca
mais, nunca mais!” (1996: 125). Em uma outra crônica, o mote de Poe é recriado por
Otto Lara Resende que sai a propalar mecanicamente: “O Poder Econômico! O Poder
Econômico!” (1996: 32) para se referir a um amigo que era poderoso funcionário de um
banco. As aparições do pássaro de Poe poderiam se dar ainda nas situações mais
inusitadas como em uma crônica em que Nelson discutia a inépcia dos médicos
burocratas que diante dos males mais evidentes são capazes de repetir: “Não é de
urgência”, “Não é de urgência”, “Não é de urgência” (Rodrigues, 1995: 315).
Além dessas referências diretas, tem-se outras que se incorporam à tessitura
textual de maneira mais elaborada. É famosa uma passagem de Ibsen de Um inimigo
do povo em que o personagem Dr. Stockmann afirma:
214
Não! A maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já se disse! Todo
o cidadão livre deve protestar contra ela. Quem se constitui na maioria dos habitantes
de um país? As pessoas inteligentes ou os imbecis? Estamos todos de acordo, penso
eu, em afirmar que, em se considerando o globo terrestre como um todo, os imbecis
formam uma maioria esmagadora. E este é um motivo suficiente para que os imbecis
mandem nos demais. Sim, vocês podem gritar mais alto do que eu, mas não podem
me responder. A maioria tem o poder, infelizmente! Mas não tem razão! (Ibsen,
2002: 127)
Nelson, que ficou famoso como frasista e autor de máximas antológicas, em
meu entender, recria com extrema criatividade a frase do teatrólogo norueguês no seu
muito falado aforismo: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa como a unanimidade
não precisa pensar”. Apesar de não ser uma apropriação literal dos dizeres de Ibsen,
não há como não reconhecer um parentesco entre as idéias trabalhadas pelos dois
dramaturgos. É bom que se diga também que a idéia de que “os imbecis formam uma
maioria esmagadora” aparece em várias crônicas do escritor brasileiro. Nelson,
entretanto, associa à figura do imbecil a do idiota. Em uma crônica de 1968, por
exemplo, comenta:
Há quinze ou vinte dias atrás, escrevi sobre o grande tema de nossa época.
Não sei se vocês lembram. Falei da ascensão do idiota. No passado, eram os
“melhores” que faziam os usos, os costumes, os valores, as idéias, os sentimentos
etc. etc. Perguntará alguém: - “E que fazia o idiota?”. Resposta:- Fazia filhos.
Mas vejam: - o idiota como tal se comportava. Na rua passava rente às
paredes, gaguejante de humildade. Sabia-se idiota e estava ciente da própria inépcia.
Só os “melhores” sentiam, pensavam, e só eles tinham grandes esposas, as grandes
amantes, as grandes residências. E, quando um deles morria, logo os idiotas tratavam
de erguer um monumento ao gênio.
E, de repente, tudo mudou. Após milênios de passividade abjeta, o idiota
descobriu a própria superioridade numérica. Começaram a aparecer as multidões
jamais concebidas. Eram eles, os idiotas. Os “melhores” se juntavam em pequenas
minorias acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz;
ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista
plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é prêmio Nobel, é dramaturgo, é
professor, é sacerdote. Aprende, sabe, ensina.
No presente mundo ninguém faz nada, ninguém é nada, sem o apoio dos
cretinos de ambos os sexos. (Rodrigues, 1997: 92)
215
De início Nelson identifica o idiota com o “imbecil” de Ibsen. E assim, as idéias
que movem a argumentação dos dois autores me parecem próximas. Teria apenas de
lembrar que para o personagem de Ibsen, a imbecilidade é um estado permanente. Nas
confabulações de Nelson, a idiotia é um fato recente. Mas isso se explica com a
lembrança de que, para o cronista brasileiro, a grande época foi uma época passada,
romântica, em que tínhamos os gênios criadores.
Nelson ficou conhecido pelas afirmações polêmicas, semelhantes à que acabei
de mencionar. Uma das marcas da retórica que busca polemizar é a ênfase hiperbólica.
Quando Alfredo Bosi comenta a escrita de outro ilustre polemista brasileiro, Rui Barbosa,
o professor da USP nos diz:
Não só a matéria subordinava-se às exigências do polemista, também a
forma estruturava-se consoante as necessidades da oratio: Rui propunha, desenvolvia
e perorava, ainda quando o gênero não fosse o oratório. Carecendo, porém, de gênio
autenticamente dialético, o seu processo de composição caminhava à força de
amplificar. Partindo sempre de uma convicção apriorística, Rui passava a provar,
justapondo palavras, frases, períodos; de onde a prolixidade e a ênfase como vícios
inerentes a muitas de suas páginas.
A cadeia de sinônimos constituíam, por isso, seu titulo de honra; e sabe-se
o que de econômico lhe valeu a cópia de vocábulos com que nomeou as meretrizes
na Pornéia e os azorragues na Rebenqueida.
Um dos recursos mais consentâneos com o estilo polêmico-enfático é a
enumeração triádica. Rui dele usou e abusou. (Bosi, 1975: 288)
É de se observar como Nelson incorpora à tessitura de seu texto justamente essa
enumeração triádica tão característica de Rui Barbosa. É muito recorrente o recurso da
enumeração triádica na prosa rodrigueana e vou lançar mão de alguns exemplos para
caracterizar a opção estilística do autor. No primeiro exemplo, ele comenta um
desentendimento com o crítico Paulo Francis: “Súbito, começo a pensar no meu exinimigo Paulo Francis. Já nos chamamos de “palhaços”, de “analfabetos”, de “burros”.”
216
(Rodrigues, 1997: 79). Em outra crônica, ao fazer menção à decadência do jornalismo à
época em que escrevia, Nelson diz: “São duzentas, trezentas, quatrocentas figuras, entre
redatores, repórteres, estagiárias. Todavia falta alguém na selva humana. É o “grande
jornalista”” (Rodrigues, 1995: 95). Existe mesmo uma adjetivação tríplice que se
repetiria por demais em seus textos e sempre na mesma ordem. Nelson gostava de repetir
incansavelmente que algo lhe parecia “difuso, volatizado, atmosférico”. Tem-se um
exemplo em crônica em que fala da época de sua primeira peça, Vestido de Noiva.
Escreveu ele sobre o período: “Era ainda a época de Pirandello. Qualquer autor, que não
fosse um débil mental de babar na gravata, tinha que ser “pirandelliano”. Pirandello
estava por aí, difuso, volatizado, atmosférico.” (1995: 285).
Esses são alguns dos escritores e estilistas com os quais a prosa de Nelson trava
contato e dialoga insistentemente em sua intertextualidade. Um último e derradeiro ponto
a tratar, antes de dar por encerrada as análises, é o do gosto do autor pelo emprego de
prefixos: “ex-”, “anti-” e “ante-”, são os mais freqüentes. Marques (2000), que produziu
um dos estudos mais interessantes a que tive acesso sobre a linguagem de Nelson
Rodrigues comenta o assunto em mais profundidade. Cabe-me aqui apenas assinalar e
registrar que, como já mencionei, Rodrigues confunde por distração a correta utilização
dos prefixos “anti-” e “ante-”. Vogel (1997) menciona alguns casos dessa confusão
rodrigueana, à qual pode-se acrescentar passagem da crônica publicada sob a rubrica de
“Futebol e paixão”, no dia 9 de maio de 1962.
5 — Considerações Finais
No artist has ethical sympathies.
An ethical sympathy in an artist is
an unpardonable mannerism of style
Oscar Wilde
217
Da perspectiva de seu estímulo inicial, a tese, que aqui chega ao seu fim, teve seu
começo em uma visita a uma livraria, mais precisamente à Livraria da Travessa, em
Ipanema, no Rio de Janeiro, onde a coleção da então ainda recente edição em dez
volumes dos escritos jornalísticos de Nelson Rodrigues pela editora Companhia das
Letras (em suas primeiras, segundas, terceiras e até mesmo sétimas e nonas
reimpressões), mais o romance O casamento (Rodrigues, 2003) e a seleção de máximas
Flor de obsessão – as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues (Rodrigues, 1997),
bem como dos, naquele momento, novíssimos lançamentos que traziam os folhetins de
Flag e Myrna, pareciam acenar como um convite a um mergulho no universo
rodrigueano.
De um ponto de vista prático, a pesquisa se iniciou como um ensaio. Na mesma
época da visita à Livraria da Travessa, cursava a cadeira de Teoria Literária I, dentro do
currículo da pós-graduação em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, ministrada pela professora e pesquisadora Beatriz Resende, que discutia o papel
do intelectual nas sociedades modernas. Como trabalho de final de curso escrevi o texto
que acabou sendo o ponto de partida para a Tese que o leitor vê agora se encaminhar para
o seu fechamento. Essa opção levou à mingua uma pesquisa de Doutorado que versaria
sobre a tradução de autores brasileiros para a língua inglesa, tentativa de prosseguir com
os estudos sobre o campo tradutório que marcou o meu Mestrado e ao qual um dia
pretendo retornar.
Edward Said tem um escrito de fôlego que surpreende justamente por tematizar
um assunto aparentemente prosaico e banal como o relatado acima: como se começa, se
218
inicia, se dá a partida em um projeto intelectual. Não se trata, no entanto, de uma
investida aleatória sobre o tema por parte do ensaísta. Said escreve um tratado de lastro
teórico admirável na área dos estudos literários e que iria deslanchar a carreira que o
consagraria como um dos grandes pensadores da Literatura Comparada no mundo.
Beginnings – intention and method (1985) focaliza a prática e a discussão sobre como e a
partir de que impulso ou razão teórica se marca o início de um texto literário ou crítico.
Dessa obra, o que se deve aproveitar para essas considerações finais é a discussão
levantada pelo ensaísta sobre como o cânone que se construiu nas letras no Ocidente
sempre privilegiou, em sua prática literária, a produção do romance de formação e a
autobiografia, e, em seu criticismo literário, a definição de autor e obra e sua inserção em
um quadro histórico determinado. Os pontos levantados pelas ponderações de Said
podem ser identificados no ambiente em foco neste estudo, tanto na maneira como
Nelson Rodrigues trabalhou sua criação, explorando o autobiografismo, como na forma
com que críticos, pesquisadores e estudiosos de seus escritos vêm procedendo ao
levantamento e à exegese de sua obra, num esforço pela sua delimitação.
Um dos momentos de confluência entre as visões teóricas de Edward Said e de
Harold Bloom encontra-se na maneira como esses dois grandes críticos afirmam a
incontestável singularidade do autor, essa entidade de quem Roland Barthes já tentou até
mesmo declarar a morte. Da parte de ambos, essa perspectiva se configura em uma crítica
ao pensamento de Michel Foucault. Bloom (2002) é rasteiro em seus comentários e
afirma que o assunto é puro jogo de retórica do pensador francês. Said prefere uma
abordagem mais comedida. Comenta então na introdução do seu Orientalism:
(...) eu acredito que todos os textos são temporais e circunstanciais de
(claro) diferentes maneiras que variam de gênero para gênero, e de período histórico
para período histórico.
219
Ainda assim, e diferente de Michael Foucault, a cujo trabalho sou
profudamente devedor, eu acredito na marca singular de escritores em sua
individualidade sobre um corpo coletivo e anônimo de textos que constituem uma
formação discursiva (...). (Said, 1979: 23)
Foram destacados no correr desta Tese os nomes de Pompeu de Souza, de Sábato
Magaldi, de Ruy Castro e de Caco Coelho, como importantes e centrais para o
estabelecimento do legado rodrigueano. Entre esses nomes, apenas o de Sábato Magaldi
encontra-se relacionado diretamente com o espaço de discussão acadêmica. De qualquer
maneira seria injusto e, mais do que injusto, impreciso, menosprezar o impacto que o
trabalho de Ruy Castro e de Caco Coelho (este último, especialmente para a presente
Tese) tiveram e ainda vão ter em investigações vindouras dentro dos estudos
universitários sobre a obra de Nelson Rodrigues.
A astúcia desses trabalhos-não-acadêmicos se faz presente na maneira como
intuitivamente e fora do âmbito universitário esses escritores e pesquisadores,
confirmando a pertinência das ponderações de Said e Bloom, acabam por reafirmar a
singularidade desse autor excepcional que foi Nelson Rodrigues, identificando sua escrita
onde quer que ela apareça, e dando tanto destaque a sua trajetória quanto reconhecendo e
acentuado a importância de seus escritos. Ruy Castro foi o precursor. Primeiro com uma
biografia que é referência obrigatória e citação insistente em todos os trabalhos
universitários consultados para a elaboração desta Tese. Longe dos rigores acadêmicos,
ainda que bem próximo dos rigores tanto jornalísticos como de estilo, Castro aparece,
com o seu livro biográfico e com seu empenho pelo relançamento dos escritos
rodrigueanos em reedições rebuscadíssimas, como o grande divulgador da obra
rodrigueana47.
47
Em todo o trabalho excepcional de Castro, os pesquisadores hão de lamentar talvez apenas a ausência de alguns
detalhes. Por exemplo, a falta de identificação das faturas dos contos de “A vida como ela é...”, uma espécie de cuidado
220
Walnice Nogueira Galvão (2004) já destacou o memorialismo e o seu
ressurgimento no que chamou de “novo biografismo”, a partir dos anos de 1970, como
uma experiência fundamental dentro das letras brasileiras. Deu relevo ainda ao fato de os
melhores e mais empenhados autores dessa nova tendência terem incorporado suas
experiências como militantes da imprensa brasileira para realizarem seus trabalhos. E
Castro desponta como o melhor entre os biógrafos. Para o meio acadêmico, o mérito
maior de Castro foi, além de ter divulgado detalhes sobre a vida de Nelson Rodrigues, ter
procedido ao estabelecimento preciso de boa parte da produção do autor, ter mostrado a
extensão da obra e o quanto desconhecíamos dos escritos do jornalista. Caco Coelho
seguiu os passos do biógrafo e ajudou a melhor descortinarmos o que ainda temos por
conhecer.
A partir do contato com o trabalho de Coelho, acabei constatando
inadvertidamente uma situação gravíssima que desconhecia quando iniciei essa pesquisa.
Havia, então, de minha parte a crença de que a obra de Nelson Falcão Rodrigues já fosse
em sua completude do conhecimento e divulgação pública via mercado livreiro.
Imaginava assim que uma pesquisa sobre o autor se resumiria a investigar como se deu a
recepção dos escritos e como se construiu a fortuna crítica nos textos dissertativos que no
correr de mais de meio século foram aparecendo como comentários à instigante e sempre
perturbadora obra do jornalista e ficcionista. Qual não foi a surpresa ao constatar que
ainda estamos longe, muito longe mesmo, de termos a edição dos escritos completos do
Anjo Pornográfico.
que não ficou de fora da apresentação das crônicas e que ajudaram no preciso estabelecimento da produção do autorcronista. No que se refere às crônicas, note-se apenas um leve deslize: a repetição de uma coluna de O óbvio ululante
(Rodrigues, 2000, p. 207-9) em O remador de Ben-Hur (Rodrigues, 1996, p.277-9).
221
O levantamento de fontes primárias de Coelho deixou patente como a
extensíssima obra do autor necessitaria de muitos pesquisadores e muitos anos de estudo
até ser alinhavada em toda sua amplitude. Esta investigação cumpriu assim o papel de
ajudar nesse esforço, comum a vários estudiosos, de proceder a um melhor
estabelecimento da vastíssima obra nelsonrodrigueana. Espero ter contribuído, ainda que
parcimoniosamente, para uma melhor definição desse legado.
Todo pesquisador de fontes primárias se sente um pouco como a Marlyse Meyer e
o seu Sencler das ilhas. Corre bibliotecas e centros de pesquisa na tentativa de encontrar
uma indicação que leve a uma pista de um escrito, de um autor. No caso particular desta
Tese, esse enigma era uma peça jornalística, um texto-não-assinado, e por isso esquecido,
uma crônica inédita. E nada se compara à sensação de encontrar um escrito que, em vez
da vida amorfa que tem nos livros, pode ser contemplado na beleza de sua diagramação
nas páginas dos periódicos onde foi originalmente publicado. É possível assim conferir,
por exemplo, o destaque que as páginas duplas de Manchete Esportiva, em toda sua
sofisticação gráfica, davam aos escritos de Nelson. Nessas páginas, os textos surgem para
o pesquisador envoltos na aura de um novo ineditismo. O material aqui apresentado e de
fato ainda inédito em livro, procurei, dentro do possível, privilegiar no momento da
análise. Mas nem sempre isso foi passível de ser posto em prática. Aqueles escritos,
entretanto, que foram levantados e não foram usados seguem em anexo e ficam à
disposição dos olhos curiosos e da sensibilidade crítica de futuros pesquisadores.
Lembro, no entanto, que ainda há muito material a ser recenseado. Imagino que uns trinta
por cento de seus escritos ainda sejam inéditos em livro e não foram sequer listados. A
busca e escrutínio desse material fica, portanto, como uma indicação de encaminhamento.
222
Se essa foi a contribuição deste estudo ao inventário do escritor, espera-se que a
sistematização da fortuna crítica tenha um papel complementar ao que vem sendo
discutido. Tratou-se de privilegiar e dar destaque às três aberturas que se mostraram as
mais evidentes para a obra de Nelson Rodrigues e de aprofundá-las individualmente. O
empenho dos comentadores, cada um a seu modo, em destacar o aspecto mítico, o choque
entre as dimensões real e ficcional e o paradoxo, como traços da escrita rodrigueana foi
incorporado e aprofundado a partir de aparato consagrado no meio acadêmico. Ainda que
esses três pontos já venham sendo destacados por vários comentadores, a esta Tese coube
trabalhá-los com uma abordagem nova e investindo por um quadro teórico que a
recepção crítica rodrigueana ainda não havia explorado.
Ao mesmo tempo não se trata de desconsiderar as outras contribuições pessoais
com que críticos, scholars, estudiosos, investiram por outros temas. Espera-se até mesmo
que a perspectiva desta Tese tenha incorporado, ainda que sem atacar diretamente em
detalhe, algumas dessas visões. Observações extremamente cruciais, como os
comentários de Pompeu de Souza, que convergiram para o interesse mais imediato da
investigação, puderam ser assimiladas até mesmo durante a análise.
O que foi comentado até aqui, dá conta das discussões no campo historiográfico e
da Teoria Literária. Faltaria, assim, uma manifestação com relação à Crítica ou valoração
da escrita rodrigueana. Um pouco desse debate emergiu quando foram confrotadas as
visões de Lima Lins e de Süssekind na seção 2.1.2. desta Tese. Viram-se duas posições
divergentes: a primeira, de Lima Lins, que identificava o teatro rodrigueano como
expressão de um escritor moralista. E a segunda, de Süssekind, que procurava afastar a
223
persona polêmica do autor – cuja atuação controvertida ao longo dos anos de 1960 e
1970 bem acompanhamos na seção de análise –, do caráter questionador de seus dramas.
Mas Lima Lins não está sozinho. Sua visão é compartilhada, ainda que de
maneira mais sutil, por pelo menos dois outros comentadores da obra de Nelson
Rodrigues que tiveram a seu lado a “distância histórica” para procederem às suas
avaliação: Ismail Xavier (2003) e Adriana Facina (2004). Ao contrário de Lima Lins, os
dois não se limitam ao teatro do dramaturgo. As observações de Xavier, por exemplo, se
estendem aos folhetins. Antes de chegar às discussões sobre as adaptações
cinematográficas feitas a partir dos escritos de Nelson Rodrigues, Ismail Xavier comenta
as peças do teatrólogo. Para o crítico de cinema, o universo ficcional de Nelson nos traz
um:
Congresso de filhos da culpa, habitantes de um mundo à deriva porque
separado de um estado de pureza ideal que nenhuma experiência histórica pode
ensejar. No entanto, pureza que permanece como referência do dramaturgo a
alimentar uma observação inconformada da experiência possível. Diatribe de
moralista cujo horizonte é a religião mas cuja sintaxe é a de um inconsciente feito
superfície, paisagem familiar que funciona como uma fábula encomendada por Freud
à procura de ilustrações que, não raro, deslizam.
A ficção de Nelson Rodrigues é essa recorrência. Personagens, situações,
motivos se entrelaçam e se completam num jogo de ser e aparência que se repõe a
cada peça ou romance-folhetim. São Glorinhas perversas a manipular primos (talvez,
irmãos) ou noivos de aluguel, são pequenos Noronhas ou Olegários a produzir o que
parecem temer, ou destruir o que parecem preservar, minando a família por dentro.
Burgueses insolentes como Werneck ou J. B. Albuquerque, a funcionar como pais
corruptores para provar que a humanidade não presta (ou o Brasil é medíocre).
(Xavier, 2003: 161)
Tem-se, portanto, mais um crítico a identificar os escritos de Nelson Rodrigues
como a manifestação de um autor moralista. Isso não é tudo. Para Ismail Xavier não há
ponto de escape viável no universo do escritor. O crítico recorre ao próprio autor para
justificar o pessimismo extremo dessas criações:
O progresso dissolve valores e faz avançar a “mais cínicas de todas as
épocas”, nas palavras de Nelson Rodrigues; nada de melhor, portanto, coloca à
vista em substituição a uma ordem patriarcal desmoralizada pelos novos costumes
224
e minada por dentro, seja por figuras de pais incapazes de cumprir o papel que a
tradição lhes reserva, seja por uma galeria de maridos fracos cuja mediocridade,
moralismo ou paranóia arruínam a vida conjugal. Por essas e outras vias, o escritor
desenha a crítica incisiva do presente, conduzindo o processo da família a partir de
um pressuposto: modernidade rima com decadência. (Xavier, 2003:162)
Embora o que seja comentado por Xavier proceda, essa simplificação pode
compromenter outros aspectos igualmente essenciais na escrita do autor. Quando esbarra
no caso de Arandir em O beijo no asfalto, por exemplo, um personagem a quem não se
aplicam essas observações, o crítico de cinema prefere concluir que o tipo apresentado “é
a exceção que confirma a regra” (cf. Xavier, 2003: 162). Essa opção, que desconsidera
também outros modelos importantes do plantel de personagens rodrigueanos, como o
Edgar de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, acaba funcionando única e
exclusivamente como uma alternativa para contornar os entraves inconvenientes que
comprometem tais simplificações. Há ainda a questão dos folhetins e contos que teimam
em negar essas visões sobre a escrita rodrigueana. É o que vai prejudicar também a
avaliação de Facina, que, ao contrário de Xavier, incluiu os textos de “A vida como ela
é...” em suas análises. Ainda assim, a historiadora e professora da Universidade Federal
Fluminense, junta sua voz à do crítico paranaense:
Nelson desconfia profundamente da capacidade da civilização
em produzir seres humanos melhores e mais felizes, pois a coerção da civilidade
não conseguiria domar os instintos, especialmente os sexuais, que tenderiam a
gerar, entre os homens, mais canalhas do que santos. Portanto, a redenção humana
dependeria de uma educação dos sentimentos e do desenvolvimento de talentos
individuais que pudessem expressar, como cultura, o que há de melhor, a metade
santa da coletividade. Surge daí a sua visão do amor romântico como o sentimento
capaz de tornar bons os seres humanos, assim como a sua crença na capacidade
libertadora do futebol, que pode fazer cada brasileiro sentir-se “desagravado de
velhas fomes e santas humilhações”. (Facina, 2004: 315; aspas do original)
Entender as personagens rodrigueanas como expressão da “coerção da civilidade”
por não conseguirem “domar os instintos, especialmente os sexuais” (pensem
principalmente nos tipos femininos de “A vida como ela é...”), é um ponto de vista com o
225
qual é difícil concordar e que parece em franco desacordo com o que interessa ao autor
retratar. Para fugir à uma condenação rigorosa do escritor, Facina reconhece uma ordem
de coisas mais complexa:
Não há nessas proposições de nosso autor nenhuma ilusão de que uma
harmonia permanente e duradoura fosse possível, ou mesmo desejável. Se a
bondade pode ser despertada nesse processo de educação dos sentimentos, também
seria preciso reconhecer que os demônios interiores são constitutivos da natureza
dos homens. Na ótica de Nelson Rodrigues, é nessa tensão permanente entre a
“metade Deus” e a “metade Satã” que residiria a humanidade dos seres humanos.
Se os canalhas absolutos são desumanizados, os santos absolutos também o são. O
horizonte da reconciliação da natureza humana não implicaria suprimir essa
dualidade, sim assumi-la, de modo radical, em toda sua complexidade. (Idem,
ibidem, 316; aspas de novo do original)
Às ponderações restritivas, Facina se vê forçada a corrigir o rumo de suas
observações. Não parece de todo modo interessante ficar à caça de mensagens nas
entrelinhas da escrita de Nelson Rodrigues e nem tampouco confinar seus enredos a
esquemas reducionistas que tentam esgotar sua força dramática. Mesmo porque, Nelson
Rodrigues nunca falou em “santos e canalhas”. Para o Anjo Pornográfico, criador de
obras incomparáveis em sua síntese do lado cruel, perverso, e do lado puro, sublime, do
ser humano, a conjunção reduz a força daquilo que seus escritos querem comunicar e
comunicam.
6 — FONTES E BIBLIOGRAFIA
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Periódicos
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supostamente de sua autoria. Tem como base as colaborações do escritor para os
jornais A Manhã, Crítica e O Globo entre 1925 e 1935. Encontra-se disponível
para consulta apenas no setor de bolsas de pesquisa da Rio-Arte, Rio de Janeiro.
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RESUMO
Esforço de síntese sobre o inventário e a recepção crítica da obra
de Nelson Rodrigues, esta Tese procede a uma avaliação de sua
produção como repórter, dramaturgo, folhetinista, contista e
cronista, destacando três pontos que exercem centralidade em sua
escrita: o interesse por explorar discursivamente uma dimensão
mítica em seus textos, o questionamento permanente sobre os
limites entre fato e ficção e o gosto em trabalhar um pensamento
que tem o paradoxo como matriz. Esses três aspectos são
destacados através de análise das reportagens, peças, folhetins,
contos, crônicas, em exame que discorre sobre a linguagem
trabalhada no âmbito mais amplo do discurso e em detalhes
formais na estrutura dos períodos, orações, frases e mesmo do
repertório vocabular do texto nelsonrodrigueano. É nesse momento
que encontramos um criador de narrativas ricas em sua diversidade
de abordagem de temas recorrentes, um escritor com raro dom
para o estabelecimento de imagens de efeito surpreendente, além
de deflagrador de expressões e repertório lexical personalíssimos.
Por trás de toda a discussão levada a efeito nesse longo ensaio,
temos uma perspectiva que se ancora nos estudos em Literatura
Comparada.
236
SOUZA, Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de. Nelson
Rodrigues – Inventário Ilustrado e Recepção Crítica
Comentada dos Escritos do Anjo Pornográfico. Rio de
Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. 237 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Literatura Comparada.
ABSTRACT
A summary on the legacy and critical reception of Nelson
Rodrigues´s works, this dissertation conducts an assessment of his
production as a reporter, playwright, columnist and writer of
installments and short-stories, singularizing three prominent
aspects of his writings: the exploitation of a mythical atmosphere,
the deliberate will of confronting the limits between fable and fact
and the pleasure of incurring on a narrative whose origins are
embedded in a paradox matrix. These three aspects are highlighted
through the analysis of news stories, plays, installments, shortstories, columns, in a survey which delves into Nelson´s use of
language from the overall perspective of discourse to the closerange examination of words, phrases, clauses and sentences. It is at
this point that Nelson is unveiled as a spinner of tales which are
rich in their diverse approaches to recurring themes; a writer with a
unique gift to create surprising images as well as a very personal
lexical repertoire. Informing the analytical study developed
throughout this dissertation is a perspective anchored in the field of
Comparative Literature.
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Nelson Rodrigues - Programa de Pós