II SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Recife, 11 a 13 de Setembro de 2007
AS MUITAS FACES DE DEUS:
Desafios do Pluralismo Religioso
ANAIS ELETRÔNICOS
Comissão Organizadora
Prof. Dr. Degislando Nóbrega de Lima
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão (coord.)
Prof. Dr. Luiz Carlos Luz Marques
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa
Prof. Dr. Sérgio Sezino Douets Vasconcelos
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
1
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
Pe. José Acrízio Vale Sales, S.J.
Presidente
Prof. Dr. Pe. Pedro Rubens Ferreira Oliveira, S.J.
Reitor
Prof. Dr. Junot Cornélio Matos
Pró-reitor Acadêmico
Prof. Luciano José Pinheiro Barros
Pró-reitor Administrativo
Profa. Fátima Breckenfeld
Pró-reitor Comunitário
Ficha Catalográfica
___________________________________________________________________________
__
J82R
II Simpósio Internacional de Ciências da Religião
Anais Eletrônicos. Recife, 11 a 13 de setembro de 2007 / Org. Universidade Católica de
Pernambuco.
-- Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2007.
785 p.
1. Ciências da Religião 2. Pesquisa Científica 3. Simpósio Internacional-UNICAP, 2007.
I. UNICAP II. Título.
CDU 5/6
___________________________________________________________________________
__
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem à autorização expressa desta editora.
Universidade Católica de Pernambuco
Rua do Príncipe, 526 – Boa Vista
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Diagramação: Lílian Costa
Capa: Lílian Costa
2
SUMÁRIO
O CORPO COMO ESPAÇO TEOLÓGICO NA ROMARIA
DE NOSSA SENHORA DE SALETTE
Adriana Weege ........................................................................................................................... 8
A “NOVA ERA”: Uma Contextualização Histórica
Aerton Alexander de Carvalho Silva........................................................................................ 19
ESPIRITISMO E CULTURA LETRADA NA FORMAÇÃO DA ELITE
JUIZFORANA
Alessandra Viana de Paiva ....................................................................................................... 27
...E O SUBSTANTIVO SE FEZ CARNE: Um Ensaio Teoliterário de Estética
Crítica a partir da Vida e Obra do Profeta Gentileza
Alessandro Rodrigues Rocha ................................................................................................... 40
MORTE DE DEUS E PENSAMENTO FRACO:
Contribuições da Filosofia Pós-Moderna à Vivência e Comunicação
da Espiritualidade Cristã
Alessandro Rodrigues Rocha ................................................................................................... 52
O DISCURSO RELIGIOSO DA TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
NUMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO
Alex Antonio Peña-Alfaro........................................................................................................ 66
COMUNICAÇÃO E RELIGIÃO: Os Programas Televisivos Religiosos
na Sociedade do Espetáculo
Alexandre Figueirôa Ferreira.................................................................................................... 79
AUTO-RETRATO: A Dimensão Psico-Religiosa a Partir da Arte
Ana Elizabeth Lisboa Nogueira Cavalcanti.............................................................................. 88
LITERATURA E RELIGIÃO NA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA
Anaxsuell Fernando da Silva.................................................................................................. 101
O ESPIRITISMO E A TRADIÇÃO CRISTÃ
André Andrade Pereira ........................................................................................................... 113
GRUPOS DE FLORESCIMENTO HUMANO: Olhares Acerca de um
Programa de Pesquisa-Intervenção em Promoção de Saúde Mental Integral
André Feitosa de Sousa; Francisco Silva Cavalcante Junior.................................................. 129
A RELAÇÃO DAS ECLESIOLOGIAS COM OS NOVOS PARADIGMAS
Antonio Carlos Ribeiro........................................................................................................... 144
PROTESTANTISMO DE IMIGRAÇÃO: Chegada e Re-orientação Teológica
Antonio Carlos Ribeiro........................................................................................................... 161
3
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA JUVENIL NUMA CULTURA
DA SUBJETIVIDADE
Antônio R.S. Mota S.J............................................................................................................ 175
O DECLÍNIO MORAL HUMANO E SUAS CONSEQUÊNCIAS EXISTENCIAIS:
Por uma Análise Existencial Agostiniana
Carlos Alberto Pinheiro Vieira
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa.................................................................................. 196
NIILISMO ORIENTAL E CRISTIANISMO: Reflexões a Partir do
Pensamento de Keiji Nishitani
Cícero Cunha Bezerra............................................................................................................. 206
SÃO BARTOLOMEU NO SINCRETISMO DA UMBANDA - SANTA
BÁRBARA E OXOCE
Cláudia Cristina Rezende Puentes; Claudia Maria da Silva Cruz .......................................... 214
O "EFEITO DE PRESENÇA" DA REPRESENTAÇÃO NA RELIGIÃO
Daniela Moura Queiroz .......................................................................................................... 224
A CRÍTICA À RELIGIÃO RACIONAL DE KANT, E A INCONSISTÊNCIA DA
PROPOSTA HEGELIANA EM DAS LEBEN JESU
Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa ...................................................................... 236
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PSICOLOGIA DO FUNCIONAMENTO
PLENO DA PESSOA A PARTIR DA ETNOGRAFIA DO JARDIM MÍSTICO
DE TERESA D’ÁVILA
Delnise Silva; Francisco Silva Cavalcante Junior .................................................................. 253
DÁDIVA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO DIVINO
NO NEOPENTECOSTALISMO
Drance Elias da Silva.............................................................................................................. 263
CAMINHO DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS:
Tentativas de Compreensão do seu Crescimento no Campo Religioso Brasileiro
Esdras Gusmão de Holanda Peixoto....................................................................................... 273
O MST E OS ESTUDOS DE RELIGIÃO NO BRASIL:
O Que Dizem as Pesquisas Sobre o Movimento
Fábio Alves Ferreira ............................................................................................................... 288
SOBERANIA DE DEUS E A LIBERDADE HUMANA NA PERSPECTIVA
CALVINISTA
Fábio José Barbosa Correia .................................................................................................... 298
DA RELAÇÃO ENTRE ESPIRITUALIDADE E A FORMAÇÃO
PROFISSIONAL DEADMINISTRAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE:
Um Estudo a Partir da Existência Humana e a Dimensão Psico-religiosa
Fábio Medeiros Cordeiro........................................................................................................ 312
4
NA GÊNESE DA COMUNIDADE DA ILHA DE SANTA TEREZINHA
NO RECIFE: A Contribuição de Pe. Bernard Bourassa S.J.
Fábio Silva de. Sousa; Andréa Moreira Gonçalves de Albuquerque;
Augusto Aragão de Albuquerque ........................................................................................... 323
NA ESTEIRA DE XENÓFANES: As Raízes Onto-teológicas da Filosofia
Fausto dos Santos Amaral Filho............................................................................................. 335
APROXIMAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE RELIGIOSA DOS JOVENS:
Uma Análise a Partir de uma Escola Confessional
Fernanda Maria Arruda dos Santos Andrade ......................................................................... 347
THOMAS MERTON: Sua Vida e o Diálogo com o Oriente
Francilaide de Queiroz Ronsi ................................................................................................. 362
NO PRINCÍPIO ERA A FEITIÇARIA:
A Feitiçaria Transformou-se Tecnologia e Habita Entre Nós
Francisca Niédja Barros Teixeira ........................................................................................... 378
A PROVIDÊNCIA DE DIVINA NÃO ANULA A
RESPONSABILIDADE HUMANA
Francisco da Silva Cardoso; Degislando Nóbrega de Lima ................................................... 386
CORTEJO DA FÉ: Águas dos Rios Sanhauá e Paraíba Recebem
a Virgem da Conceição
Francisco de Assis Azevedo dos Santos................................................................................. 400
ESPIRITUALIDADE E ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA:
A Dimensão Experiencial Humana da Relação Terapêutica
Helton Thyers Melo de Oliveira; Francisco Silva Cavalcante Junior .................................... 409
A UNIVERSITÁRIA CATÓLICA RECIFENSE E A CONSTRUÇÃO DE UMA
NOVA IDENTIDADE PSICOSSOCIAL E ÉTICO- RELIGIOSA
Janice Marie S. Albuquerque.................................................................................................. 422
A QUESTÃO SACRAMENTAL EM “SOBRE O CATIVEIRO
BABILÔNICO DA IGREJA”, DE MARTINHO LUTERO (1520)
João Henrique dos Santos....................................................................................................... 433
RELIGIÃO E INCLUSÃO SOCIAL: Uma Abordagem a Partir da
Tradição Judaico-Cristã
João Luiz Correia Júnior......................................................................................................... 439
A FACE DE DEUS E OS VALORES RELIGIOSOS SEGUNDO
OS JOVENS UNIVERSITÁRIOS DA CATÓLICA
José Carlos Costa Mourão Barbosa; Antonio R. S. Mota S.J.;
Luiz Alencar Libório .............................................................................................................. 455
5
CATÓLICOS E PROTESTANTES UNIDOS CONTRA O COMUNISMO:
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade no Recife
José Ferreira de Lima Júnior .................................................................................................. 471
O COMPORTAMENTO DOS TELESPECTADORES DIANTE DA
PROGRAMAÇÃOTELEVISIVA NEOPENTECOSTAL
José Guibson Delgado Dantas ................................................................................................ 483
BEATA VITA E EUDAIMONIA: O Problema da Continuidade e
Descontinuidade da Tradição Grega no Pensamento Agostiniano
Josemar Jeremias Bandeira de Souza ..................................................................................... 496
ELEMENTOS RELIGIOSOS NA OBRA LA TÍA TULA DE
MIGUEL DE UNAMUNO
Josilene Simões Carvalho Bezerra ......................................................................................... 508
SOMOS TODOS CRISTÃOS? Os Números do Pluralismo Religioso Brasileiro
Karla Regina Macena Pereira Patriota.................................................................................... 515
O SHOW DA FÉ: Religião, Mídia e Espetáculo
Karla Regina Macena Pereira Patriota.................................................................................... 525
A FACE DE DEUS NA POLÍTICA
Lúcia de Fátima Gomes da Silva............................................................................................ 540
O GESTOR-PESQUISADOR-REFLEXIVO E A ESCOLA CRISTÃ
Lúcio Gomes Dantas; Francisco Silva Cavalcante Junior...................................................... 551
DEUS COMO JUIZ E SALVADOR NA CONCEPÇÃO
ANTIGO-ORIENTAL E NA BÍBLIA
Maíse Pereira Barros; Paulo Ferreira Valério......................................................................... 566
DO ANÁTEMA AO ACOLHIMENTO PASTORAL: Da Condenação e
Exclusão Eclesial do Padre Cícero do Juazeiro à sua Reabilitação Histórica
Manoel Henrique de Melo Santana ........................................................................................ 572
A PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA NA CIDADE DE GOIANA:
Instrumento de Controle dos Bispos Romanizadores
Maria de Fátima Santana da Silva .......................................................................................... 585
DOM ADELMO MACHADO: Pesquisas de Uma Época
Maria Jeane dos Santos Alves ; Manoel Henrique de Melo Santana ..................................... 597
A MUDANÇA DE IGREJA DOS ADOLESCENTES E JOVENS
CATÓLICOS DO LICEU/UNICAP
Maristela Ferreira Silva Velozo.............................................................................................. 605
LIBERDADE HUMANA E GRAÇA DIVINA:
O Pluralismo dos Enfoques Agostiniano, Luterano e Neopentecostal
Marlesson Castelo Branco do Rêgo........................................................................................ 613
6
ENTRE A ROMANIZAÇÃO E O CATOLICISMO POPULAR:
Um Estudo Sobre a Ação do Pe. Franscisco Geraedts
Marlon Anderson de Oliveira ................................................................................................. 627
DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO: A Possibilidade Ética
Marlon Leandro Schock ......................................................................................................... 643
O LUGAR DA PLURALIDADE DE DEUSES EM OPOSIÇÃO AO
MONOTEÍSMO A PARTIR DE NIETZSCHE
Martha Solange Perrusi .......................................................................................................... 653
CARACTERÍSTICAS DA EDUCAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NOS
LIMIARES DO CONTEMPORÂNEO
Nilza Simões Corrêa de Albuquerque .................................................................................... 660
O EUDEMONISMO AGOSTINIANO:
Uma Reflexão para o Resgate de Nossa Espiritualidade
Ocilaine Silva de Moura; Marcos Roberto Nunes Costa........................................................ 674
A INFLUÊNCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA PRÁXIS
DA COMISSÃO PASTORAL DA TERRA
Pedro Henrique Pacheco da Silva........................................................................................... 685
FRAGMENTOS HUSSERLIANOS:
Elementos de uma Fundamentação Filosófica pra a Fenomenologia da Religião
Reinaldo da Silva Júnior......................................................................................................... 692
ENTRE O ÊXTASE E O DELÍRIO: Uma Distinção Entre a Experiência Mística e o
Transtorno Mental a Partir do Diálogo Entre a Fenomenologia e o Pragmatismo
Reinaldo da Silva Júnior......................................................................................................... 700
BONDADE ONTOLÓGICA DA NATUREZA:
A Concepção de Bondade do Cosmos em Santo Agostinho
Ricardo Evangelista Brandão; Marcos Roberto Nunes Costa................................................ 713
MEDIUNIDADE E MANUTENÇÃO DA SAÚDE EMOCIONAL:
Reflexões Acerca do Livro dos Médiuns
Rodrigo Silva Rosal de Araújo............................................................................................... 727
A PROJEÇÃO DO TEMPO SAGRADO NO IMAGINÁRIO SERTANEJO
Simone Rosa de Oliveira ........................................................................................................ 732
OUTROS NIVEIS DE REALIDADE NO ENSINO RELIGIOSO E FILOSOFICO:
Uma Leitura Transdisciplinar, Emancipadora,Reflexiva e Dialogal
Valéria Alvarenga Taumaturgo Silva ..................................................................................... 739
7
MENSAGENS RELACIONADAS AO SENTIDO DA VIDA QUE CIRCULAM NA
INTERNET ATRAVÉS DO CORREIO ELETRÔNICO:
Uma Visão da Biblioterapia e do Pensamento Logoterápico
Valter Luís de Avellar ............................................................................................................ 748
IDENTIDADES RELIGIOSAS NA PÓS-MODERNIDADE
Vanderlei Albino Lain; Sérgio Sezino Douets Vasconcelos .................................................. 764
A EXPRESSÃO DOS SÍMBOLOS NA RELAÇÃO HUMANA COM O SAGRADO
Wandekarla Bônia de Araújo; Luiz Alencar Libório ............................................................. 780
8
O CORPO COMO ESPAÇO TEOLÓGICO NA ROMARIA DE NOSSA
SENHORA DE SALETTE1
Adriana Weege2
RESUMO: Através deste artigo reflito possíveis compreensões de fé manifestas nos corpos dos
devotos de Maria de Salette e em que medida esses corpos tornam-se espaço teológico. A pesquisa
apresentada tem como um dos objetivos, estudar aspectos concernentes a corporalidade presente na
Romaria de Nossa Senhora de Salette, realizada anualmente em um pequeno município, do Rio
Grande do Sul, Marcelino Ramos. A aparição de Maria em La Salette na França ocorreu em 1846
tendo sido testemunhada por duas crianças trabalhadoras agropastoris. Em meu relato etnográfico
trago algumas percepções, entre elas a relação entre corpos dos devotos com a imagem de Maria em
que se configuram num mesmo espaço sagrado, o Fac-Símile da aparição, um espaço ritualmente
constituído onde o sagrado “se manifesta”. Aí ocorre a identificação sensorial, com a imagem sacra, o
que parece ser mais um rito dentro da romaria. Essa identificação sensorial-corporal do devoto com a
imagem de Maria se dá através do beijo, no abraçar, tocar as imagens, também nas imagens das
testemunhas da aparição. A sacralidade não está centrada no objeto, mas na relação estabelecida. Na
união com o sagrado, é através dos sentidos que se dá a identificação, a abertura e as possibilidades de
aproximação e vivência de experiências místicas. O corpo é foco fundamental em qualquer relação,
também na relação com o sagrado através das percepções sensoriais. Nesse sentido, lembro de Roberto
da Matta, quando este diz que, procurando ver o corpo, vemos a alma e procurando ver a alma
encontramos o corpo. Palavras-chave: romaria, Maria de Salette, corpo, teológico, Marcelino Ramos.
ABSTRACT: Through this article I reflect on the possible understandings of faith manifested in the
bodies of the devout followers of Maria de Salette and to what measure these bodies become a
theological space. The research presented has as one of its goals, to study the aspects related to the
corporality present in the Nossa Senhora de Salette Pilgrimage, which takes place annually in a small
municipality of Rio Grande do Sul, Marcelino Ramos. The apparition of Maria in La Salette in France
happened in 1846 and was witnessed by two shepherd children workers. In my ethnographic report I
present some perceptions, among which is the relation between the bodies of the devoted with the
image of Maria, which is configured within the same sacred space together with the Fac-Simile of the
apparition, a ritually constituted space where the sacred “is manifest”. There occurs a sensorial
identification with the sacred image, which seems to be another ritual within the pilgrimage. This
sensorial-bodily identification of the devoted with the image of Maria takes place through a kiss, or
hug, or touching the images, including the images of the witnesses of the apparition. The sacredness is
not centered in the object but in the relation established. In the union with the sacred, it is through the
senses that the identification, the openness and the possibilities of approximation and living out
mystical experiences occur. The body is the fundamental focus in any relationship and in the relation
with the sacred as well, through the sensory perceptions. In this sense, we are reminded of Roberto da
Matta, when he says that in seeking to see the body we see the soul and in seeking to see the soul we
find
the
body.
Key-words:
pilgrimage,
Maria
de
Salette,
body,
theological, Marcelino Ramos.
1
O presente artigo baseia-se em uma monografia apresentada no segundo semestre de 2006 elaborada a partir de
uma etnografia realizada na Romaria de Nossa Senhora de Salette, no município gaúcho de Marcelino Ramos.
2
. Graduada em Teologia, cursa mestrado em Teologia Prática, na linha de pesquisa Práxis teológica no contexto
pluralista sócio-religioso, no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação-Faculdades EST, em São Leopoldo-RS.
Participa também do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo-NEPP. Bolsista do CNPq. Bachelor in
Theology, presently in the Master’s program in Practical Theology. E-mail: [email protected]
9
Introdução
Neste artigo utilizo também o instrumental de literaturas que tratam da devoção ou
religiosidade popular em outras romarias brasileiras e, ainda, antropologia, a fim de analisar
alguns dos aspectos concernentes à posição ideológica ocupada pelo corpo na Romaria.
Devido ao espaço restrito para a apresentação do mesmo, restringir-me-ei aos principais
aspectos percebidos durante a referida romaria. Trago também, no decorrer do artigo,
compreensões de corpo, formação de corpo sócio-cultural e a forma como estas compreensões
manifestam-se na relação com o sacro. Na romaria de Salette, ocorre como em outras
romarias a busca por curas, encontros com imagens sígnicas do sagrado, busca por bênçãos,
alegrias, ao mesmo tempo em que são afirmadas estruturas sociais através de performances
corporais. O corpo é foco fundamental de qualquer relação. Pretendo trazer algumas idéias a
respeito de como romeiros através de seus corpos, de forma ambivalente relacionam-se com o
sagrado e apresentam sua cosmologia. Na medida do possível usarei a expressão ser humano,
mesmo que alguns textos citados utilizem a palavra homem, pois compreendo que assim
posso ser mais inclusiva ao falar do gênero humano na apresentação do artigo.
1 A romaria, o corpo, cultura e ação divina
As romarias e peregrinações têm seu embasamento bíblico a partir da maldição de
Caim que deveria como castigo pelo seu crime andar errante sobre a terra (Gn 4). Romaria é
algo como ritual, a viagem se dá como um ato de desempenho. Para católicos a romaria é
geográfica, ritual, enquanto para protestantes é uma forma de viver3, uma forma de encarar a
vida, nos seus valores de trabalho e relacionamento.
Num primeiro momento apresento alguns resultados da coleta de dados referente à
observação participativa da Romaria de Nossa Senhora de Salette. A aparição de Maria em
Salette, sudoeste da França deu-se em 19 de setembro de 1846, a duas crianças que
pastoreavam gado vacum nas montanhas. Em seu discurso Maria chora por causa dos pecados
da humanidade e traz ao conhecimento das crianças que é ela que impede o castigo dos céus e
em diversos momentos assume atributos do criador. A primeira peregrinação à Marcelino
Ramos foi incentivada por um pároco de Erechim, devoto de Nossa Senhora da Salette, em
cumprimento a uma promessa, em que ele mobilizou fiéis de sua paróquia para tal intento, em
1936. Dessa peregrinação surge a série de Romarias Penitenciais a Nossa Senhora da Salette
3
FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: Uma introdução às religiões populares. Editora
Brasiliense, 1982. p.108.
10
em Marcelino Ramos. O periódico “O Mensageiro” de novembro de 1937, utiliza a expressão
“1ª Romaria” ao noticiar a peregrinação que se deu junto à Escola Apostólica, já instalada em
um morro da cidade, entre os dias 25 e 26 de setembro de 1937. A Romaria Penitencial da
Salette é anunciada como sendo a segunda mais antiga do estado do Rio Grande do Sul. A
data é sempre o último final de semana de setembro. No primeiro dia, sábado, à noite realizase uma procissão à luz de velas e no domingo pela manhã uma segunda procissão. Ambas
partem da Igreja Matriz em direção ao alto do morro do Santuário. Carrega-se em andor a
imagem da Virgem de Salette em lágrimas, a única das originais que restou após um temporal
que atingiu a cidade na década de 40 e derrubou a matriz.
Durante o dia, após missa campal, existe o espaço para confissões e comunhões.
De acordo com o Pe. Fassini “o apelo evangélico à conversão e reconciliação define o perfil
da Romaria. Daí a dimensão penitencial que freqüentemente marca de maneira
impressionante a atitude dos peregrinos” 4.
As romarias de Salette a cada ano trazem um tema e um lema. Neste ano de 2006 o
lema foi: “Também sou teu povo Senhor”, e o tema foi “ Sacramentos”. Sacramentos são os
sinais da graça, isto é, os meios pelos quais Deus concede a sua graça à humanidade (perdão,
cura, bênçãos, pertença) 5.
Durante a romaria, ocorre grande feira na rua principal do centro da cidade com os
comerciantes ambulantes, contudo prevalecendo grande parte no interior do salão paroquial
da Igreja Matriz6 e nas vias principais de acesso ao morro do santuário.
O local do Santuário, uma parte elevada da cidade, é muito amplo e num dos seus
acessos encontrava-se uma faixa com os dizeres: “Da montanha descem a solidariedade e a
paz”. O espaço territorial do Santuário está ocupado com local de churrasqueiras, copa,
lanchonete, o templo, estacionamento, Fac-Símile7, Santuário de luz (lugar para acender
velas), e um lugar coberto para altar, e vasta área verde. Junto ao Fac-Símile uma fonte
4
Ático FASSINI, Crônicas de uma missão: 100 anos de presença saletina no Brasil. Berthier: Curitiba, 1ª ed.,
2001. p. 241.
5
Para a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) são sete sacramentos: Confissão de Pecados, Matrimônio,
Batismo, Crisma, Ordenação, Ceia ou Eucaristia e Unção de Enfermos (Extrema Unção). Um sacramento uma
vez realizado tem valor para sempre. Para os evangélico-luteranos os sacramentos resumem-se a dois: Santa Ceia
e Batismo, pois estes são mandamentos diretos de Jesus (Mt 26.26s; Mt 28.18-20) mais um sinal visível (água e
fruto da videira e pão).
6
Os ambulantes conhecidos como “camelôs”, comercializavam centenas de coisas: brinquedos, eletrônicos,
bijuterias, CD/ DVD’s, objetos de decoração, roupas, bebidas, comidas e imagens de diversos santos: Santa
Terezinha, Santo Antonio, São Jorge, Nossa Senhora Aparecida e, claro, Nossa Senhora Salette. Os camelôs
instalam-se como podem e, um dos lugares mais cobiçados é a via de acesso ao Santuário de Salette, incluindo aí
o pátio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
7
Fac-símile é a semelhança do fato, isto é, a recriação da aparição de Maria em La Salette através da sua
imagem e da imagem dos videntes em tamanho natural.
11
deágua que foi canalizada para completar o quadro da similaridade com a aparição de Maria
em Salette. A fonte neste dia está cercada e coberta, cabendo aos escoteiros de Erechim8 a
distribuição da água aos peregrinos que se colocam em uma longa fila a fim de recebê-la.
Nessa romaria testemunhei muitos gestos de devoção não pertencentes ao culto
cristão-católico, mas presentes na cultura popular, como saudações às imagens características
aos cultos afro-brasileiros.
Por diversos motivos as pessoas procuram participar de uma romaria: por votos,
em favor de alguém, crenças em milagres, graças alcançadas. A idéia de Romaria,
aparentemente, traz em si diversos significados como o “sacramento”, penitência e festa. Nela
o sacro pode reconhecido através da beleza, do show e do consumo. Steil em sua observação
da Romaria de Bom Jesus da Lapa lembra que para Turner “os santuários são como imãs
culturais que atraem símbolos de muitas espécies, verbais e não verbais polissêmicos e
multivocais, com os quais os peregrinos tentam compreender seu contexto social” 9.
Romaria é encontro de pessoas. Romaria é momento de corpos atuarem em relação
ao sagrado. É pelo corpo que a dimensão espiritual individual e coletiva manifesta-se. Por
isso, trago diferentes reflexões em relação ao corpo, a formação deste através da cultura e
sociedade, e a relação entre este e o sagrado.
Corpo é a estrutura física do ser animal, o primeiro e mais natural instrumento do
ser humano10. “O corpo humano, como instrumento, é considerado o mais importante meio de
geração de renda enquanto corpo saudável” 11.
O corpo, no caso, o humano, “pode ser comparado a um micreochip que registra as
mais diversas informações, tem memória, guarda em si as recordações produzidas pelas mais
variadas sensações”
12
, como por exemplo, a dor. A filosofia platônica classificou o corpo
humano como “prisão da alma” da qual todos devem se libertar, contudo a fé cristã não só
valoriza como gira em torno do corpo: encarnação, ressurreição e presença de Jesus na Ceia.
A palavra corpo também tem como asserção a compreensão de ser o conjunto
social, vários corpos formam um corpo, não só uma corporação, mas realmente os corpos em
contato social formam, moldam os corpos individuais, logo, o corpo é uma construção social.
8
Erechim é a cidade pólo da região norte do Rio Grande do Sul conhecida como Alto - Uruguai, com cerca de
85 mil habitantes.
9
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da
Lapa-Bahia. Vozes: Petrópolis, 1996.p.110.
10
MAUSS, Marcel. Técnicas corporais. In: Sociologia e Antropologia, VL II, Editora Pedagógica e Universitária
Ltda/ Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1974. p. 217.
11
RAACH, Lindomar. As curas sob perspectiva social e teológica. Trabalho Semestral. São Leopoldo, 1998.
p. 13.
12
MAZZUCCHI, Maria Letícia Ferreira. O retrato de si. In: Corpo e significado, 1995. p. 421.
12
O primeiro ambiente em que se forma o corpo é na família, logo ocorre à
intervenção da escola, amigos, clube, religião. O corpo “é também alvo de métodos de
disciplinarização e adestramento na sociedade moderna”
13
, nesse sentido basta lembrar da
ditadura da moda, das dietas ou como diferenciação de classes sociais através do ensino de
regras específicas de etiqueta, no modo de andar, etc. Habituamo-nos a absorver e reproduzir
características da cultura, inconscientemente como se aprende um idioma14. Aprende-se por
imitação. Como crianças, aprendemos a nos comportar observando os adultos, pessoas as
quais atribuímos autoridade e sabedoria, em quem confiamos15. O aprendizado da postura na
romaria, como por exemplo, o andar descalço, em fila, com passos lentos, com reverência,
com crianças trajadas como anjos, é também a apreensão por meio dos corpos de qual é o
espaço sagrado e qual é o profano, conforme, Roberto da Matta, “o corpo dos rituais
religiosos e das festas cívicas é um corpo destinado a manter espaços, posições e situações.
Trata-se de um corpo que sustenta o privilégio e a diferença social política entre as pessoas”16.
Apreende-se e aprendem-se compreensões de vida por meio de pessoas que têm
prestígio, dos padres, dos/as beatos/as, no contato entre romeiros/as e moradores da cidade.
Conforme Mauss:
É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado,
autorizado e provado, em relação ao individuo imitador, que se encontra
todo o elemento social. No ato imitador que segue, encontram-se todo
elemento psicológico e o elemento biológico17.
A experiência do corpo é sempre modificada pela experiência da cultura. A
percepção do corpo é função da organização da sociedade e do modo de relação do corpo com
as coisas e as práticas corporais são atualizações de representações mentais. No corpo está
simbolicamente impressa a estrutura social e a atividade corporal não faz mais do que torná-la
expressa18. No caso da romaria da Salette, poderíamos nos questionar: está se imprimindo no
corpo a hierarquia religiosa, do seu domínio sobre o sagrado e sobre quem pousa as suas
melhores classificações de valor (quem é anjo, quem vai à frente da procissão, quem é que
pode carregar o andor)?
O corpo e a sua formação relacionam-se intimamente com a cultura. Cultura é
como um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social, daí também
13
MAZZUCCHI, 1995, p. 421.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 4ª ed. 1986. p. 39.
15
MAUSS, 1974, p. 215.
16
Roberto Da Matta. O corpo brasileiro. In: Fotocópia, p. 85.
17
MAUSS, 1974, p. 215.
18
RODRIGUES, 1986, p. 125.
14
13
logicamente na religiosa. Puramente convencional esse mapa não se confunde com o
território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma lógica e as pessoas se
comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência19.
Levando em consideração que cultura não se resume aos valores e convenções sociais, mas
também a religiosidade, principalmente a religiosidade oficial, no caso a Igreja cristã,
[...] a cultura em padrões explícitos e implícitos de comportamento e para o
comportamento, adquiridos e transmitidos por meio de símbolos, e que
constituem as realizações características de grupos humanos, inclusive suas
materializações em artefatos; a essência mesma da cultura consiste em idéias
tradicionais (isto é derivadas e selecionadas historicamente) e especialmente
nos valores vinculados a elas; os sistemas culturais podem, por um lado, ser
considerados produtos de ação, por outro, elementos condicionadores de
ação posterior20.
É a sociedade em sua globalidade, e cada fragmento social em particular, que
decidem o ideal intelectual, afetivo, moral ou físico que a educação deve programar nos
indivíduos a socializar, e, tanto quanto no espírito, uma sociedade não pode sobreviver sem
fixar no físico de suas crianças algumas similitudes essenciais que as identifiquem e
possibilitem a comunicação, durante uma romaria não seria diferente, uma vez que é formada
por diversos ritos.
As técnicas de transmissão da “ordem natural” das coisas em uma sociedade
ocorrem através de atos técnicos, atos físicos, atos mágico-religiosos, todos de certa forma em
um mix nas mentes dos agentes21. Conforme Mauss, “técnica é: ato tradicional eficaz (não se
difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz”
22
. Os
membros de uma sociedade, em determinadas situações, precisam se conformar a certas
técnicas e regras que tornam os corpos uma expressão mais ou menos exata de algum
sentimento coletivo”23.
Conforme Daolio24, o ser humano, por meio de seu corpo, assimila e apropria-se
de valores e práticas sociais. Conforme Rodrigues25, é a estrutura biológica do ser humano
que lhe permite ver, ouvir, cheirar, sentir, pensar, enquanto a cultura lhe forneceria o rosto de
suas visões, os cheiros agradáveis ou desagradáveis, os sentimentos alegres ou tristes, os
conteúdos do pensamento
19
RODRIGUES, 1986, p. 11.
KROEBER, A.L.; KLUCKHOHN C. In: Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora Instituto
Getúlio Vargas, 1986. p. 290.
21
MAUSS, 1974, p. 217.
22
MAUSS, 1974, p. 217.
23
Da Matta O corpo brasileiro, p. 78.
24
DAOLIO, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas, SP. Papirus, 1995. p. 39.
25
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 4. ed., Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986. p. 21.
20
14
Mauss diz que: “Quando uma geração passa à outra a ciência de seus gestos e de
seus atos manuais, há tanta autoridade e tradição social quanto quando a transmissão se faz
pela linguagem”
26
. Na romaria, transmitem-se gestos, técnicas de contato com sagrado e
ações que vêm ao encontro de compreensões de Daolio:
Qualquer técnica corporal (...) pode, também, ser transmitida pelo
movimento em si, como expressão simbólica de valores aceitos na
sociedade. Quem transmite acredita e pratica aquele gesto. Quem recebe a
27
transmissão aceita, aprende e passa a imitar aquele movimento .
Em outros termos, o ser humano aprende e apreende a cultura por meio de seu
corpo. O corpo sofre ação, mas é agente. Rodrigues28 lembra que é preciso compreender os
símbolos culturais que estão representados no corpo.
Rodrigues29 considera o aprendizado de uma técnica corporal como parte da
construção do corpo, dotando-o, sobre uma base fisiológica, de uma prática cultural, logo, na
opinião deste, não há processos exclusivamente biológicos no comportamento humano, pois
ele é uma representação da sociedade.
O período de uma romaria abre espaço de liberdade que os romeiros não
encontram nos seus locais de origem, permite contato fora do controle oficial30, isto,
eventualmente pode-se perceber ao longo da romaria em que “mini rituais” são praticados à
margem e concomitantemente aos ritos oficiais, como, por exemplo, a saudação caracterizada
com a religiosidade afro-brasileira no contato com as imagens dos videntes dos
acontecimentos de Salette testemunhada por mim na participação desta. Nesse sentido,
conforme Steil, “a romaria traz contato com símbolos e sentidos que sustenta a cultura
imersa”31, ainda, “os rituais atualizam a mitologia que detalha a origem do culto e santificam
as normas que orientam a ação dos devotos”32.
Na romaria de Salette, o corpo é estimulado nos momentos de oração, bênção, as
pessoas são convidadas a estender braços, levantar braços, acenar mãos, o corpo é um espaço
para prestar homenagens, louvar e, de certa forma, entrar em sintonia com o todo através de
movimentos sincronizados na vivência da religiosidade/devoção.
26
DAOLIO, 1995, p. 47.
DAOLIO, 1995, p. 47.
28
RODRIGUES, 1986, p. 97.
29
GASTALDO, Edson Luis. A forja do homem de ferro. In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e significado.
Porto Alegre: Editora Universidade, 1ª ed. 1995. p.209.
30
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da
Lapa-Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 107.
31
STEIL, 1996, p. 113.
32
STEIL, 1996, p. 113.
27
15
Através dos corpos “sintonizados”, em rituais corporais, se podem estabelecer a
reconciliação. A eficácia de um ritual de devoção está relacionada à relação corporal entre
devoto e santo. A imagem sagrada não é adorada como imagem, mas justamente porque é
hierofania, porque “revela” algo que já não é imagem, mas o sagrado. Para aquelas pessoas
cujos olhos uma imagem se revela sagrada, sua realidade imediata transmuta-se numa
realidade sobrenatural. De acordo com Pereira, “acontece uma ‘alquimia’ de sentimentos,
uma mudança do ‘natural’ em ‘sobrenatural’, modificando o estado de espírito das pessoas”33.
Os corpos dos/as devoto/as e do santo se configuram num mesmo espaço sagrado,
local em que se configuram corpos reais (devotos/as) e corpos simbólicos (imagens dos
santos, no caso Maria e videntes de Salette), é um espaço ritualmente constituído onde o
sagrado se manifesta. A manifestação do sagrado se dá nesses espaços através da réplica do
corpo de uma divindade vítima de sacrifício34 ou de profundo sofrimento, como no caso, o
sofrimento de Maria em relação aos pecados da humanidade que se esqueceu dos favores de
Deus. Como resultado dessa doação e preocupação de Maria, os/as romeiros/as aos tocarem a
sua imagem, se emocionam, choram, sorriem.
A identificação sensorial, com a imagem da divindade parece ser mais um rito
dentro da romaria. Essa identificação sensorial-corporal do/a devoto/a com o santo se dá
através do beijo, no empreender romarias, no abraçar, tocar as imagens35. A sacralidade não
está centrada no objeto, mas na atitude, na relação estabelecida36. Os sentidos têm
fundamental importância na união com o sagrado, pois é através destes que se dá a
identificação, a abertura e as possibilidades de aproximação e vivência de experiências
místicas37.
No contato com a divindade manifestada na imagem corpórea do santo, o corpo do
devoto torna-se espaço teológico, ou seja, lugar da manifestação de Deus, reconhecido nas
“curas” e em outros “milagres” que os/as romeiros/as atestam ter testemunhado.
Entre povos antigos, as doenças eram tidas como vontade divina, como castigo.
Por volta de 400 a.C. Hipócrates, considerado o pai da medicina, passa a relacionar a doença
ao mau funcionamento orgânico38. Contudo, o povo tem suas próprias representações de
saúde, doença, corpo. A frágil política pública em relação à saúde para a população carente
33
PEREIRA, José Carlos. A Linguagem do Corpo na Devoção Popular do Catolicismo. Disponível em:
www.pucsp.br/rever, n. 3, 2003. Acesso em 11.12. 2006. p. 91.
34
PEREIRA 2003, p. 89.
35
PEREIRA, 2003, p. 94.
36
RODRIGUES, 1986, p. 28.
37
PÓLVORA, Jaqueline Britto. O corpo batuqueiro: Uma expressão religiosa afro-brasileira. In: Corpo e
significado, 1995, p. 136.
38
RAACH, 1998, p. 13.
16
associada à religião como algo determinante no Brasil, levam à busca por cura mística,
miraculosa. A maioria do público na romaria é formado por mulheres que, diante de uma
situação de doença, muitas vezes, tendem a utilizar mais a medicina tradicional, isto é, os
curandeiros, as benzedeiras, recursos caseiros e religiosos39.
O corpo é sígnico. Um corpo saudável ou um corpo doente porta significados
sociais, como se fosse o reflexo da sociedade e não apenas a partir de processos biológicos40.
O indivíduo é doente ou saudável segundo a sua sociedade, segundo a sua cultura e de acordo
com os critérios e modalidades que ela fixa41. Conforme Ferreira, “a capacidade de sentir,
pensar e experimentar as mensagens corporais (sensações) está ligada à forma como corpo e
doença é representada em cada grupo social”42.
Também a cura é uma representação cultural, uma situação social. Numa romaria,
assim como em vários momentos de reunião social, ocorrem situações que “obrigam” de fato
e de direito certas posturas e sentimentos43, pois quem arriscaria dizer que voltou pior de uma
romaria devido ao excessivo esforço? Assim, seria a cura a reintegração das pessoas, antes,
enfermas nas suas sociedade de origem após essas empreenderem uma romaria?
A romaria-festa comporta a purificação, a reconciliação e a cura, sofrimento,
esforço, doação e auto-interesse44. Depois da “obrigação” religiosa vem a festa, o prazer. O
“regalo” do corpo.
Nas Romarias, de acordo com Francisco, “conjuram-se os pecados estruturais,
pede-se perdão, busca-se reconciliação, se expressa solidariedade para com os que estão
sendo injustiçados, e se festeja [grifo meu] por alguma vitória já alcançada, sempre como
antecipação imperfeita da reconciliação e libertação no Reino”
45
. A solidariedade que pude
presenciar nesta edição da romaria, foi o desmantelamento da quadrilha de ladrões que estava
vitimando peregrinos/as, em especial as pessoas vindas do interior.
O/a peregrino/a ao buscar lugares “sagrados” estaria procurando identificar-se de
alguma forma com àqueles que tornaram o lugar “sacro”? A insistência em tocar nas imagens,
inclusive levando bebês a tocá-las (se poderia pensar em busca de proteção divina a esta vida
39
FACHERL, Jandyra M.G. Corpo dado. In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e significado. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 1ª ed., 1995. p. 49.
40
FERREIRA, Jaqueline. Semiologia do corpo. In: Corpo e significado, 1995, p. 93.
41
FERREIRA, 1995, p. 94.
42
FERREIRA, 1995, p. 93.
43
Roberto da Matta. O corpo brasileiro. In: fotocópia, p. 77.
44
MENEZES, Renata de Castro. Devoção e diversão: A festa da Penha (RJ) como uma romaria. In: Revista
Eclesiástica Brasileira. vol/n. 232, Petrópolis: Vozes, p. 333.
45
FRANCISCO, Pe. Manoel João. Romaria: outra forma possível de celebrar o sacramento da Penitência. In:
Revista de Liturgia, jan/ fev, São Paulo: Paulinas, 1999. p. 33.
17
que está iniciando na “peregrinação” pela Terra)? Através da “entrega”, de cartas à Maria46 e
a longa fila para se pegar a água eu jorra da fonte próxima ao Fac-Símile poderia se
compreender que os peregrinos estariam tentando identificar-se com os pobres videntes de
Salette, que foram abençoados com a visão do sagrado, buscando também essa percepção de
sagrado?
Conclusão
Romaria é encontro de corpos. De forma especial no Brasil corpo é foco
fundamental das relações47, não só na relação dos corpos reais, como entre os corpos reais e
os corpos representativos do sagrado. O corpo é espaço para a ação do sagrado, através da
cura, do sentimento de proteção e bênção, alegria, prazer, sentimento de pertença e
solidariedade despertados na Romaria.
Este breve ensaio, na verdade, não é conclusivo. Este, diante dos aspectos e
conceitos levantados pretende ser o princípio de uma pesquisa ampliada a respeito da noção
de pessoa, do discurso formador, das performances, da formação de corpo, corporeidade nas
festas religioso-populares e nas expressões devocionais. O corpo é o meio de formação
teológica, social, de consciência na romaria. São através dos corpos que passam sensações,
desejos e necessidades que articulam, como se fosse um texto impresso, as diversas
compreensões cosmológicas formadoras de pessoa [grifo meu] em relação à divindade e a
sociedade. Retomando Roberto da Matta, também na devoção ao procurarmos ver o corpo,
vemos a alma e procurando ver a alma encontramos o corpo.
Referências
DAOLIO, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas, SP. Papirus, 1995.
FACHERL, Jandyra M.G. Corpo dado. In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e significado. Porto
Alegre: Editora da Universidade, 1ª ed., 1995.
FASSINI, Atico. Crônicas de uma missão: 100 anos de presença saletina no Brasil. Berthier:
Curitiba, 1ª ed., 2001.
FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: Uma introdução às religiões populares.
Editora Brasiliense, 1982.
FERREIRA, Jaqueline. Semiologia do corpo. In: In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e
significado. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1ª ed., 1995.
46
As pessoas tentavam encaixar cartas em diversos pontos da imagem, aos pés, ou em dobras como as dobras
dos braços.
47
Da Matta. O corpo brasileiro, p. 83.
18
FRANCISCO, Pe. Manoel João. Romaria: outra forma possível de celebrar o sacramento da
Penitência. In: Revista de Liturgia, jan/ fev, São Paulo: Paulinas, 1999.
GASTALDO, Edson Luis. A forja do homem de ferro. In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e
significado. Porto Alegre: Editora Universidade, 1ª ed. 1995.
KROEBER, A.L.; KLUCKHOHN C. In: Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora
Instituto Getúlio Vargas, 1986.
MATTA, Roberto da. O corpo brasileiro. In: Material Foto copiado.
MAUSS, Marcel. Técnicas corporais. In: Sociologia e Antropologia, VL II, Editora Pedagógica e
Universitária Ltda/ Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1974.
MAZZUCCHI, Maria Letícia Ferreira. O retrato de si. In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e
significado. Porto Alegre: Editora Universidade, 1ª ed. 1995.
MENEZES, Renata de Castro. Devoção e diversão: A festa da Penha (RJ) como uma romaria. In:
Revista Eclesiástica Brasileira. vol/n. 232, Petrópolis: Vozes.
PEREIRA, José Carlos. A Linguagem do Corpo na Devoção Popular do Catolicismo. Disponível
em: www.pucsp.br/rever, n. 3, 2003. Acesso em 11.12. 2006.
PÓLVORA, Jaqueline Britto. O corpo batuqueiro: Uma expressão religiosa afro-brasileira. In: Corpo
e significado, 1995.
RAACH, Lindomar. As curas sob perspectiva social e teológica. Trabalho Semestral. São Leopoldo,
1998.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 4. ed., Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 4ª ed., 1986.
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom
Jesus da Lapa-Bahia. Vozes: Petrópolis, 1996.
19
A “NOVA ERA”:
Uma Contextualização Histórica
Aerton Alexander de Carvalho Silva48
RESUMO: Este artigo busca contextualizar, sucintamente, os principais aspectos históricos do
fenômeno “Nova Era”, desde a sua gênese, passando pelo importante período da década de 1960
quando, dos Estados Unidos, irradia-se para todo o mundo numa nova onda, que chega até o
continente Latino Americano, até perceber como configura-se no Brasil dos dias atuais. Palavraschave: “Nova Era”, Religião, Sincretismo, História.
ABSCTRACT: This article has, as an object, a brief analyses of the context of the major historical
aspects of the New Age phenomenon, since its beginning, all the way down to the important period of
the 1960 decade when, in the United Estates, it spreads out all over the world in a wave, that arrives in
the Latin American continent, to nowadays time perception of it in Brazil.
Introdução
Já se fala há muito sobre a “Nova Era”. Parece-nos ser um campo de pesquisa que
está aberto e merece todo um esforço de interpretação e de aproximação da academia para se
conhecer melhor esse fenômeno.
O conhecimento da gênese e uma visão histórica do Fenômeno “Nova Era” pode
ser um caminho mais acertado de conhecimento e apropriação de tal fenômeno. A pesquisa
tende a ser mais rica e mais fundamentada se os aspectos como a origem, pessoas, locais e
datas ficarem definidas e claras.
Esse trabalho deseja ser um passo de aproximação e conhecimento do fenômeno
“Nova Era” numa visão histórica, obrigatória a quem se arvora a fazer ciência hoje,
conhecendo o topos e o tempo para dar sustentação ao nosso fazer ciência.
Buscaremos, portanto, num primeiro momento situar o que entendemos sobre
“Nova Era” e sob qual visão paradigmática e hermenêutica pode-se perceber esse fenômeno.
Em um segundo momento nos propomos a fazer um itinerário, mesmo que breve, sobre a
gênese do fenômeno “Nova Era”, seus primeiros expositores, encontros, bibliografias, em
síntese o chão donde nasce esse fenômeno. Por fim tentaremos dar uma visão panorâmica do
fenômeno “Nova Era” nos dias atuais como contributo para um melhor entendimento da
relação do homem com o sagrado em nossos dias.
48
Graduado em Filosofia. Mestrando do Curso de Ciências da religião – UNICAP. Professor da Faculdade
Damas e do Colégio Damas. E-mail: [email protected].
20
A pesquisa bibliográfica sob a preciosa ajuda das obras de Leila Amaral, grande
pesquisadora do fenômeno “Nova Era” e uma das principais expositoras desse tema em nosso
país, há de ser de fundamental importância para o desenvolvimento desse trabalho.
1 Situando o fenômeno “Nova Era”
Antes de abordarmos diretamente o itinerário histórico de surgimento e de
propagação da “Nova Era” desejamos brevemente esboçar como entendemos e o que vem a
ser, segundo estudos acadêmicos, este fenômeno.
Há que se abrir o leque interpretativo e investigativo para se perceber a “Nova
Era” já que se trata de um fenômeno da pós-modernidade com toda a sua gama de novos
paradigmas a serem interpretados. Leila Amaral, uma das maiores autoridades no estudo do
fenômeno “Nova Era” no Brasil afirma que:
O fenômeno identificado como Nova Era, cuja chave espiritual e ética está
ancorada na crença de que Deus, ou a perfeição, encontra-se no interior de
cada indivíduo e na busca da integração entre corpo, mente e espírito... é um
fenômeno heterogêneo... com um campo de discurso variado, mas em
cruzamento por onde passa (AMARAL, 1994, p.13).
A “Nova Era” tem um cunho de busca e aperfeiçoamento humano levando em
conta o transcendente, mas que inclui temas como ecologia, propostas terapêuticas,
comunidades alternativas, filosofias holistas e um grande leque de gestos, símbolos, rituais,
literatura, mídia, música, etc. que se fundem numa nova percepção do existir. A
heterogeneidade é uma de suas marcas principais. Onde há possibilidade de algo novo para
maior integração da pessoa consigo mesma, com o cosmos e com o transcendente, ali se está
vivenciando a “Nova Era”. Eis o motivo pela qual fala-se da “Nova Era” como fenômeno,
devido à sua emergência num mundo globalizado e aberto a novas possibilidades
psicológicas, sociais, antropológicas e, também, religiosas.
No livro Iniciação à visão Holística, Clotilde Santa Cruz Tavares deixa clara essa
visão holística que é característica da visão Neo-Esotérica e de forma especial no campo de
nosso estudo, a “Nova Era”:
Admite todas as religiões. Admite todos os sistemas filosóficos. Mas não os
mescla, não os mistura. Respeita o que cada um tem de importante e
entende que a diversidade é não somente aceitável como até recomendável e
essencial para a riqueza e a fertilização do pensamento. Não exclui, não
condena, não separa. Não nega em afirma. Trata, tão somente, de construir
pontes, de estabelecer nexos e correlações entre campos até então
considerados inconciliáveis como entre a Ciência e o Misticismo, a Arte e a
21
Filosofia, considera que em cada coisa está representado o Todo e que este
transcende a simples soma de suas partes (TAVARES, 1994, p. 63).
Longe de desejar ser uma religião aos moldes das instituições com seus dogmas e
ritos fechados e determinados, a “Nova Era” propõe-se a ser um perene desvelar de novas
possibilidades de encontro com o transcendente por meio da experiência pessoal. Thomas
Luckmann, em sua clássica obra “A religião invisível”, busca demonstrar que, ao lado da
religião tradicional, o indivíduo tem buscado, em nossos dias, uma forma de religiosidade que
venha responder aos seus interesses pessoais. A questão do sagrado passa a ter referencial
com a esfera da vida privada e com a biografia da cada indivíduo. Se antes o que ordenava a
vida social e pessoal eram as regras institucionais, agora, é a experiência individual, a autoexpressão, que determinará o cosmos sagrado de cada sujeito nesse seu desejo de formar uma
identidade (LUCKMANN, 1973, p. 121).
Portanto, ao falarmos de “Nova Era”, estaremos sempre sob o paradigma da
abertura a novas possibilidades de vivência pessoal, social e religiosa que permite associações
e cruzamentos antes inimagináveis, como é o caso de unir sistemas religiosos que em seus
fundamentos são díspares. Uma nova visão da realidade e do homem que leva a um processo
de entendimento de si como parte de um todo (cosmos) sagrado do qual o homem se percebe
como parte integrante e fundamental.
2 As origens do fenômeno “Nova Era”
Historicamente, convencionou-se situar o aparecimento da “Nova Era” por volta de 1970 e
1971, nos Estados Unidos, período em que é constatada uma busca maior pelo espiritual.
Se na década de 60 é marcada pela pelo boom da espiritualidade, esta década seguinte é
marcada pela crise da instituição religiosa e o florescimento da busca individualizada pelo
sagrado.
Houve uma convergência de símbolos e religiões orientais e místicas associados ao
pensamento ocidental. Tornou-se comum combinar técnicas diversas, mesmo que dissociadas
de seu contexto original e de suas estruturas teóricas, utilizando-as para uma maior
experiência pessoal de êxtase:
A Nova Era é uma espécie de espiritualidade caleidoscópica. Os diversos
elementos extraídos das diversas tradições culturais religiosas ou nãoreligiosas passam a ser combinados, através de correspondências analógicas
ad nauseum, manipulados e reapropriados, segundo circunstanciais
22
individuais ou de grupos específicos, sem que se pretenda nenhuma
sistematicidade ou síntese definitiva (AMARAL, 1994, p.134)
O momento histórico configurou-se de tal maneira que muitos demarcaram a
década de 70 como sendo o grande marco inicial desse fenômeno. Contudo, muito estudiosos
preferem datar o seu surgimento na fundação da sociedade teosófica, no ano de 1875, pela
russa Helena Blavatsky, em Nova York. Blavatsky oferece fundamentos teóricos para esta
configuração atual da Nova Era que podemos vislumbrar depois dos anos 70.
O Encontro de líderes de diversas religiões do mundo, em Chicago, no ano de
1893, tornou-se um marco no meio intelectual americano abrindo o caminho para novos
encontros, conferências e círculos acadêmicos, os quais tiveram bastante importância para a
configuração atual da “Nova Era”. Santa Bárbara, São Francisco e toda essa região dos
Estados Unidos viram emergir uma nova geração com bastante interesse pela força vital e por
uma grande celebração da unidade universal. Com o “transcendentalismo, o espiritualismo, a
Teosofia, a New Thought e a Christian Science” (Cf. AMARAL, 2000, p.21), juntamente com
a influencia da renascença Hindu, da qual foi apropriando-se, surgiu uma nova alternativa à
religião institucional ocidental, principalmente nos Estados Unidos, onde influenciou e
difundiu-se nos movimentos populares.
Em 1969, com o advento da psicologia transpessoal que vê na experiência
empírica um obstáculo para uma realização transpessoal do indivíduo, juntamente com a
psicosíntese, ambasados em sistemas filosóficos como o platonismo, sistemas religiosos como
o budismo e o hinduísmo, passa-se a considerar que:
A pessoa, ao tornar-se mais consciente dessa dimensão profunda do
inconsciente, torna-se, segundo Assiglioli, mais sintonizado com as forças
espirituais. Proviriam dessa ¨superconsciência¨ a intuição, a inspiração e as
experiências estética, ética, religiosa e mística, as quais, agindo com
eficácia na transformação dos mundos interiores e exteriores, levariam a
pessoa rumo à iluminação (AMARAL, 2000, p. 25).
O século XX traz essa marca de nova interpretação do homem, já não mais forjado
pelos grandes relatos da Idade pré-moderna muito menos pelos ideais da modernidade
cientificista. Num novo paradigma, história da natureza e história humana formam um todo no
mistério do universo. Não mais o dualismo platônico, muito menos o materialismo ou o
racionalismo, mas, uma visão de um todo, holística, onde o natural e o sobrenatural, o
humano e o divino se encontram e se somam.
Vive-se, portanto, uma “Nova Era” que pode ser dividida historicamente e
fundamentada na crença de que os ciclos divinos de evolução são desenvolvidos através de
23
diferentes eras astrológicas, cada uma com sua característica distinta. Acredita-se que a
humanidade evoluiu dentro das seguintes eras:
Era de Touro: de 4304 a 2154 a.C.
Era de Carneiro: de 2154 a 4 a.C.
Era de Peixes: de 4 a.C. a 2146 d.C.
Era de Aquário: 2146 a 4296 d.C.
A Era de Touro é atribuída à antiga cultura egípcia, que tinha a vaca como
deusa da fertilidade e a pecuária como principal cultura. Com o final da Era
de Touro, o domínio egípcio cessou e deu lugar ao Carneiro. A astrologia
afirma ter sido Israel que dominante nessa era, devido ao sacrifício do
cordeiro, o ritual mais marcante da religião de Israel, além da criação de
ovelhas, muito comum para os Israelitas. A fase de transição entre as duas
eras teria sido a saída de Israel do Egito, e que os hebreus ainda tentaram
preservar o poder de Touro, quando fizeram o bezerro de ouro no deserto,
mas Moisés (avatar da Era de Carneiro) os teria repreendido e inaugurado a
Era de Carneiro. Afirma-se que Jesus foi chamado de "Cordeiro de Deus"
(Jo 1.29) porque era filho do povo dominante da Era de Carneiro. Jesus
Cristo (avatar da Era de Peixes) teria, então, inaugurando essa era, dando
evidência disso ao chamar os apóstolos para serem pescadores de homens,
fazendo alusão à humanidade pisciana. Por causa de Jesus Cristo, o povo
dominante da Era de Peixes seria os cristãos. Uma prova de que o
cristianismo é o que domina Era de Peixes, é ao fato de que o mais antigo
símbolo cristão é o peixe. Terminando a Era de Peixes surge a de Aquário.
Aquário é um signo regido pelo planeta Urano, que foi descoberto em 1781,
coincidindo com a Revolução Francesa (OLIVEIRA, 2007).
O fenômeno “Nova Era” surge, segundo sugere Leila Amaral, dessa liberdade de
interpretação da história com um cunho místico, mas que leva em conta duas questões
fundantes: exploração de novos sistemas espirituais e uma visão global transformadora da
cultura, do sistema político ou religioso. Papel importante da difusão desse fenômeno foram
publicações de revistas e livros como a “East-West Journal” no ano de 1968 e do considerado
primeiro livro da “Nova Era” escrito por Baba Ram Das, “Be Here Now”, e de publicações
importantes nos anos de 1972, “Year One Catalogue”, 1976 “Spiritual Community Guide” e,
em 1980, “A Conspiração aquariana”, de Marillyn Ferguson. Essas obras alavancaram o
conhecimento do fenômeno “Nova Era”, ao mesmo tempo em que o popularizou nos Estados
Unidos e difundiu-se no mundo (AMARAL, 2000, p. 21-32).
24
3 A “Nova Era” nos dias atuais
Nos dias atuais vê-se configurar no fenômeno “Nova Era” um novo horizonte.
Enquanto nos idos de 60 e 70 surgiam centros holísticos, mesmo sem apresentar uma
organização central, muito menos um único líder mundial, emergindo pontos de encontros
que possibilitavam uma pluralidade de atividades religiosas, filosóficas, místicas,
psicológicas, artísticas, ecológicas e de cultos, hoje há uma tendência de surgirem
organizações que trazem em seus programas de treinamentos atividades cuja finalidade é o
acordar da própria criatividade e dos poderes ocultos do indivíduo restaurando qualquer
dificuldade de junção do mundo espiritual com o material.
O movimento da “Nova Era” tem alguns pontos fundamentais (cf. AMARAL,
2000, P.31):
Interpretação religiosa do universo;
Sacralidade do universo, tanto humano como o divino;
Reconciliação e paz com o Universo;
Religião e arte como canais de imanentização da realidade;
Percepção de uma infinitude presente em todas as coisas.
A “Nova Era” tem encarnado, de modo especial, esse momento da subjetividade e
tornado visível essa cultura religiosa, cuja forma de expressão espiritual tem sido dominada
pela metáfora da transformação e pelo experimentalismo religioso. Há uma busca do religioso
em termos de espiritualidade, de mística. Psicologia e ecologia são linhas adotadas por essa
nova ótica, desde que o religioso perpasse tal pensar. Ecletismo e sincretismo são símbolos
dessa nova onda. Combinam-se símbolos e práticas originários de distintos sistemas
religiosos, científicos, estéticos e culturais, regidos pelo critério da conveniência pessoal.
Emerge um novo tipo de gnose, de esoterismo, apresentando o saber, não como uma doutrina
a ser criada, mas como fonte de salvação pela via da iniciação.
É comum encontrar nos adeptos da “Nova Era” a linguagem do self-religiosity,
que afirma uma realidade interior, o verdadeiro eu, que é fonte de tudo que é bom na vida
como o amor, a sabedoria, a iluminação e o poder. Nesta concepção, toda religião seria a
expressão desta mesma realidade interior que pode ser encontrada em tradições religiosas que
aparentam ser diferentes.
Através de um prisma que une o expressivismo psicológico e a espiritualidade,
percebe-se o desejo de busca de uma nova subjetividade que liberte o homem de tudo o que o
25
impede de viver sua condição fundamental busca emergir do estado de mera latência
possibilitando a atualização de sua potencialidade. Concomitantemente, permanecendo nesta
noção de liberdade, busca-se alcançar a individualidade autêntica pelo cultivo interior no
alargamento do self que leva a uma busca de auto-aprimoramento.
Percebe-se a encarnação de um momento histórico, subjetivista, que deseja
desfrutar da religião sob a forma de espiritualidade.
A facilidade para incorporar e combinar estilos tão heterodoxos parece
realizar-se, assim, através da flexibilidade plástica das performances,
sugerindo que o pleno potencial de vida e criação não se encontre fechado em
cada tribo, sociedade ou grupo social, ou mesmo em cada língua, estilo
artístico ou religião (AMARAL, 2000, p.129).
Quebradas as ortodoxias, qualquer indivíduo, em qualquer lugar, pode usar as
ferramentas que levem ao aprimoramento espiritual. Antes de afirmar-se como um
movimento de fragmentação, a “Nova Era” percebe-se, e vai se impondo como sentido de
totalidade, aberta à vida, e vida em pleno potencial.
Numa visão holística, que se refere à inter-relação dos aspectos da vida (corpo,
mente e espírito), entendida como maneira pela qual cada um sustenta e reflete a si e aos
outros, tem-se buscado a sinergia que perpassa todas as coisas. Mais que dispersão, um
excesso de disponibilidade e onipresença de forças criativas (de vida ou pleno potencial de
vida e criação, o sagrado) no mundo natural e humano.
Essa nova onda afirma trazer consigo a possibilidade de realização identitária em
plenitude, pois forja o novo ser humano que atingiu sua origem cósmico-divina mediante a
transformação de uma nova subjetividade, muitas vezes reduzida às experiências do cotidiano,
sem necessariamente amarrar-se às formas de identidades tradicionais que ligavam os
indivíduos às instituições estabelecidas.
Nada fica definido nesse novo prisma. Novas possibilidades e novos hibridismos
estão pululando nesse instante configurando uma “Nova Era” sempre aberta ao que está por
vir.
Conclusão
Ao estudar um fenômeno como a “Nova Era” há que se perceber toda a
complexibilidade que o envolve e não desistir no desvelar de novas facetas ainda encoberta s
sob o signo imediato do desconhecimento. Nesse itinerário científico o retorno às fontes
históricas e o acompanhamento dos passos dados dia a dia pela humanidade tornam-se de
26
suma importância para que o fazer ciência possa ter fundamentos sólidos, e leve a conclusões
mais exatas.
Assim, esse trabalho, faz entender que a busca histórica eleva a qualidade da
pesquisa e leva ao aprofundamento sobre da “Nova Era”. As pistas encontradas sobre a
gênese e a situação atual desse “movimento”, tornam-se de fundamental importância no
processo de pesquisa e construção de novos conceitos na pesquisa de um fenômeno tão atual.
A atualidade e as possibilidades que a cada momento multiplicam-se na história,
as novas formas de religiosidade e os novos formatos que tomam a “Nova Era” a cada
instante, instigam os pesquisadores a compreenderem esse perene processo de mutação, ao
mesmo tempo que o faz buscar entender as mais novas formas de conviver com o mundo que
circunda o homem de nosso tempo.
Cabe, por fim, permanecer no caminho investigativo, elaborando novas estratégias
de pesquisa, solidificando o que já foi construído e buscando sempre com o auxílio da
história, da antropologia, da sociologia, da teologia, da filosofia e das demais ciências afins,
perseguir o propósito das ciências da religião de entender o homem e seu desejo de infinito
sempre e sob novos paradigmas.
Referências
AMARAL. Leila, Carnaval da alma: comunidade essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis:
Vozes, 2000. 230p.
______; KUENZLEN, Gottfried; DANEELS, Godfried. Nova Era: um desafio para os cristãos. São
Paulo: Paulinas, 1994. 138p. (coleção: atualidade em diálogo).
LUCKMANN, Thomas. La religión invisible: el problema de la religión en la sociedad moderna.
Trad. Miguel Bermejo. Salamanca – Esp.: Ediciones Sigueme, 1973. 129 p.
LUZ, L. A. Deus é Pop: sobre a radicalidade do trânsito religioso na cultura popular de consumo. In:
Paulo Siepierski; Bendito Gil. (Org.). Religião no Brasil: enfoques dinâmicas e abordagens. São
Paulo: Paulinas, 2003.
OLIVEIRA, Elias R. Nova Era: História. Disponível em: http://www.vivos.com.br - acessado em 22
de Janeiro de 2007.
TAVARES, Clotilde. Iniciação à visão holística. 3. ed. Rio de janeiro: Nova Era, 1996. 167p
(coleção iniciação).
27
ESPIRITISMO E CULTURA LETRADA NA FORMAÇÃO DA ELITE
JUIZFORANA
Alessandra Viana de Paiva49
RESUMO: O êxito do Espiritismo num país que por séculos foi oficialmente católico resulta de uma
história que teve início na segunda metade do século XIX, trazida por meio das obras de um pedagogo
francês, Hippolyte Léon Denizard Rivail, com pseudônimo Allan Kardec, que começaram a circular
entre membros da elite brasileira. Na cidade mineira de Juiz de Fora, encontram-se registros que
mostram a presença da Doutrina Espírita desde o final do século XIX, conseguindo a mesma, alcançar
a partir dos anos 50, uma posição de destaque no campo religioso juizforano. Atualmente, em Juiz de
Fora, o Espiritismo tornou-se um elemento promotor de destaque para algumas pessoas, uma vez que
o fato de ser espírita está intimamente ligado à idéia de ser também intelectual, ou seja, a doutrina
acaba, de certa forma, representando um status social. A pesquisa terá como fio condutor a noção dos
conceitos de cultura letrada e de ritual que nos serão de fundamental importância para um maior
entendimento acerca da estreita relação da Doutrina Espírita com a cultura, uma vez que o Espiritismo
é considerado uma religião dos livros, da leitura e da escrita, que não somente supõe a passagem pela
escola como também presume uma representação idealizada de suas regras, por meio dos grupos de
estudo e de palestras, parte fundamental de sua vida ritual. Palavras-chave: Espiritismo, Cultura
Letrada, Ritual
ABSTRACT: The success of the Spiritualism in a country that for centuries was officially catholic
results of a history that had beginning in the second half of century XIX, brought by means of the one
workmanships pedagogo French, Hippolyte Léon Denizard Rivail, with pseudonym Allan Kardec, that
they had started to circulate it between members of the Brazilian elite. In the mining city of Juiz de
Fora, registers meet that show the presence of the Spiritualist Doctrine since the end of century XIX,
obtaining the same one, to reach from years 50, a position of prominence in the juizforano religious
field. At the present time, in Juiz de Fora, the Spiritualism became a promotional element of
prominence for some people, a time that the fact of being spiritualist is intimamente on to the idea of
being also intellectual, or either, the doctrine finishes, of certain form, representing a social status. The
research will have as conducting wire the notion of the ritual and culture concepts scholar that in them
will be of basic importance for a bigger agreement concerning the narrow relation of the Spiritualist
Doctrine with the culture, a time that the Spiritualism is considered a religion of books, the reading
and the writing, that not only assumes the passage for the school as also presumes a idealized
representation of its rules, by means of the groups of study and lectures, basic part of its life ritual.
Key-words: Spiritualism, Scholar Culture, Ritual
Introdução
O texto a seguir tem o propósito de apresentar, de forma sintética, a Doutrina
Espírita e suas principais características, abordando desde seu nascimento na França até sua
chegada ao Brasil , dando ênfase à cidade de Juiz de Fora. O objetivo da pesquisa é perceber a
estreita ligação do Espiritismo com a cultura letrada, ou seja, com a prática do estudo e da
leitura, e, consequentemente, com a elite intelectual. Diante disso, o intuito é melhor conhecer
a forma com que a Doutrina Espírita/cultura letrada e a elite de Juiz de Fora se relacionam.
49
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – Universidade Federal de Juiz de Fora,
[Rua Tom Fagundes, 20/301 – Cascatinha – Juiz de Fora MG- CEP: 36033300 ([email protected])].
28
1 Uma breve apresentação da doutrina espírita
Hippolyte Léon Denizard Rivail, nasceu na França no ano de 1804 e fez carreira
como pedagogo. Toda a atividade didática realizada por ele caminhava juntamente com a
necessidade de se buscar o conhecimento do psiquismo humano e da transcendência da
alma.50 Foi ele o responsável por dar início a um movimento espiritualista moderno surgido
no século XIX. Ao começar a publicar seus escritos espíritas adotou o pseudônimo de Allan
Kardec que, segundo ele, teria sido seu nome em uma existência anterior.51
Na Europa, em meados do século XIX, o que havia de novidade eram as intensas
tentativas de comunicação com o mundo dos espíritos, o que acabava ocasionando grande
alvoroço nos ambientes freqüentados pela burguesia. É comum atribuir à origem desse
movimento espiritualista a fenômenos que aconteceram nos Estados Unidos em 1848 com as
irmãs Fox. 52
Margaret e Katie Fox criaram mecanismos para a comunicação com os espíritos e
passaram a interpretar ruídos sem explicação plausível para os mesmos. Tais acontecimentos
despertaram então grande interesse por esses fenômenos. Na década de 1850 a manifestação
mais comum se dava por meio das mesas girantes, nas quais um grupo de pessoas se reunia
em volta de uma mesa, pousava as mãos sobre a mesma e se concentrava. Entendia-se que a
partir do movimento da mesa era possível obter informações dos espíritos.53 Em meio a essa
onda espiritualista internacional, Allan Kardec já organizava em Paris sessões espíritas com
médiuns cuidadosamente escolhidos.54
Kardec apresentou ao mundo o que chamou de Terceira Revelação, em seqüência
ao Judaísmo e Cristianismo, e registrou em uma série de livros o que lhe teria sido transmitido
por espíritos superiores com o intuito de fundamentar uma nova religião, uma nova ciência e
uma nova filosofia.55 Coube a ele a tarefa de compilar, sistematizar e editar as inúmeras
mensagens, reunidas nas obras O Livro dos Espíritos (1857), o primeiro da chamada
Codificação ou Terceira Revelação, depois seguido pelo Livro dos Médiuns, Evangelho
50
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 43.
51
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7.
52
Ibid., p. 7.
53
Ibid., p. 7-8.
54
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 178.
55
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 7.
29
Segundo o Espiritismo, O Céu e Inferno, Gênese, e outros. Allan Kardec é considerado
apenas o codificador dessas obras, o que torna, para seus adeptos, o Espiritismo uma doutrina
legítima, já que não é uma criação humana.56
Seus livros apresentam uma doutrina completa a respeito da origem, situação e
destino dos homens, seus graus de desenvolvimento progressivo (evolução), seus nexos entre
a conduta moral do indivíduo e a trajetória espiritual em diferentes existências, sobre a vida
após a morte, assim como sobre os processos de comunicação entre vivos e mortos. Kardec
destaca que o Espiritismo é, acima de tudo, uma doutrina moral que concilia uma raiz cristã
racionalista com outra, secular e cientificista.57
Em O Livro dos Espíritos, foram lançados os princípios da doutrina a respeito da
imortalidade da alma, da natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, das leis
morais, da vida presente e futura e do destino da humanidade. O Livro dos Médiuns apresenta
a teoria sobre as manifestações e suas diversas modalidades, as condições favoráveis à
ocorrência dos fenômenos espirituais, o desenvolvimento e o exercício da mediunidade. No
Evangelho Segundo o Espiritismo encontramos os ensinamentos de Jesus Cristo à luz do
Espiritismo, que tem como objetivo conciliar e aplicar os ensinamentos morais cristãos à vida
do homem na terra. Em O Céu e Inferno temos a idéia da causalidade das penas e
recompensas por meio da exemplificação de vários Espíritos, encarnados e desencarnados, e
de suas condições de existência, vistas como conseqüência de seus atos anteriores. O livro
Gênese é uma espécie de resumo das principais obras de Kardec, que destaca o aspecto
científico da fenomenologia espírita.58
No Espiritismo a codificação de Allan Kardec ocupa um lugar central. Sua grande
importância pode ser percebida em vários planos:
1- É o que unifica o Movimento Espírita, permitindo sua diferenciação de “outras
formas de Espiritualismo”;
2- Constitui-se na fonte última de autoridade em discussões a respeito da doutrina;
3- Nas várias sessões e atividades espíritas, a sua leitura, estudo e comentário
ocupam um lugar importante.59
56
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 178.
57
Ibid., p. 178-179.
58
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 46-47.
59
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 22.
30
A Doutrina Espírita é considerada um sistema religioso que se inclui no quadro
maior das religiões mediúnicas. É ela própria que fundamenta a existência dos Espíritos e suas
formas de comunicação com o mundo visível. A mediunidade, a possibilidade de
comunicação entre o mundo espiritual e o mundo material, aparece desde sempre como um
ponto central desse sistema.60
Em suas obras, Kardec sustenta a idéia de que os espíritos existem antes e depois
da vida na terra. Como conseqüência desse pensamento, os espíritas entendem a morte como
uma circunstância pela qual o espírito abandona definitivamente o corpo físico, o que é
chamado, por eles, de desencarnação. Para ele, a relação dos espíritos com a terra não se dava
apenas por suas encarnações (nascimentos) e reencarnações. Teríamos também interferências
freqüentes dos espíritos na vida cotidiana, afetando a saúde e a existência dos terrestres, seja
para o bem ou para o mal. Assim, a comunicação com o mundo espiritual era vista como
possível e desejável, uma vez que permitiria enfrentar influências negativas e conseguir apoio
e orientação de espíritos tidos como evoluídos.61
Como a Doutrina Espírita foi elaborada numa conjuntura em que o pensamento
filosófico e científico estava dominado pelo racionalismo e pelo evolucionismo, os ideais da
razão, opostos às noções de mágico e sobrenatural, são encontrados de forma bastante
explícita nas obras da codificação. As idéias de revelação e experiência que são comumente
entendidas como contrárias, no Espiritismo se apresentam combinadas, isto é, a crença tanto
na razão quanto nos espíritos (inconciliável para o discurso científico), é perfeitamente
conciliável para Doutrina Espírita.62
Allan Kardec, no início, tinha uma forte preocupação em demonstrar um método
de comunicação com os espíritos, à maneira da ciência experimental, que pudesse ser repetido
e que colocasse sob controle possíveis distorções das mensagens dos espíritos. Daí a grande
importância que deu aos médiuns, que considerava veículos das manifestações espirituais.63
O Espiritismo é um sistema religioso composto por suas crenças (representações) e
práticas (rituais). Esse entendimento da religião acaba por separar o sistema religioso em dois
planos nos quais a análise vai ocorrer: o plano do pensamento, do intelecto (as
representações); e o plano do comportamento, das ações humanas (os rituais).64
60
Ibid., p. 9 e 23.
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 9.
62
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 23.
63
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 9.
64
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 9, 31.
61
31
No Espiritismo o sistema ritual é composto por três pólos que são o estudo, a
caridade e a mediunidade. No estudo destaca-se a intelectualidade dessa religião, a
valorização da investigação racional e da pesquisa experimental. Na caridade a ênfase é dada
ao seu caráter cristão e, na mediunidade, destaca-se a relação entre homens e Espíritos. Esses
pólos estão inter-relacionados, já que a mediunidade engloba também a caridade e o estudo. O
estudo e a caridade, por sua vez, como formas de estabelecimento de relação com o mundo
espiritual, são também mediunidade.65
O estudo, na Doutrina Espírita, está diretamente ligado à noção de cultura letrada,
reconhecida aqui na perspectiva do autor Bernardo Lewgoy no que diz respeito a uma cultura
escrita, uma vez que ele se refere ao Espiritismo não apenas como uma “Religião do livro”,
mas sim como uma religião dos livros, da leitura e da escrita, que não somente supõe a
passagem pela escola como também presume uma representação idealizada de suas regras,
por meio dos grupos de estudo e de palestras, parte fundamental de sua vida ritual. Portanto,
cabe ressaltar que, juntamente com os rituais mediúnicos, a Doutrina Espírita realiza a todo o
momento algumas práticas culturais letradas, como a leitura, erudição, citação, crítica,
comentários de textos, narrativa e retórica, e outros.66
O Espiritismo, como doutrina, foi desenvolvido com muito cuidado a partir de
algumas mensagens e muitas sessões de perguntas e respostas com vários espíritos, por meio
de médiuns psicógrafos renomados. Alguns espíritos que deram testemunho foram o Espírito
da Verdade, São Vicente de Paulo, São Luís, Santo Agostinho, Sócrates e Platão. As respostas
adquiridas (de espíritos desencarnados que não possuíam nem a sabedoria nem a ciência
supremas) não revelavam uma verdade absoluta, mas somente as verdades relativas ao nível
de conhecimento de cada um, sendo, dessa forma, suscetível de revisão. A partir dessas
informações Kardec passou a ordenar e a selecionar as perguntas e respostas dotando, enfim,
de coerência interna a doutrina que ia elaborando.67
Uma vez que o Espiritismo é resultado do conhecimento de muitos autores
(encarnados e desencarnados) com limitações inerentes, Allan Kardec o considerava uma obra
inacabável, que deveria incorporar os avanços nos diversos ramos do conhecimento à medida
em que a ciência fosse evoluindo.68
65
Ibid., p. 132.
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 183-184.
67
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 30.
68
Ibid., p. 30-31.
66
32
2 O espiritismo no Brasil
O Brasil apresenta uma forte tradição espiritualista já desde os tempos coloniais. O
chamado catolicismo luso-brasileiro, ligado ao regime do padroado69, tinha como
característica um baixo grau de controle eclesiástico sobre os cultos religiosos que eram
praticados à margem da Igreja. 70
Ocorreu aqui um diversificado processo de encontros culturais e sincretismos entre
as crenças em orixás e eguns das religiões africanas, trazidas pelos escravos, com o
espiritualismo xamanístico dos índios e com as crenças católicas populares em santos, anjos e
almas penadas. Dessa forma, essas crenças e práticas de contato com o sobrenatural através de
rituais de feitiçaria e transe de possessão criaram como que uma língua franca espiritualista
que rapidamente se universalizou na colônia.71
No Brasil, o Espiritismo chega ainda na segunda metade do século XIX, vindo
como um entre outros modismos da época, uma vez que a França exercia uma forte influência
no imaginário intelectual e estético das elites brasileiras do período. Em pouco tempo a
doutrina transformou-se em alternativa religiosa de vanguarda, cujo atrativo estava em sua
particular conjugação entre ciência experimental e fé revelada, agregada a um anticlericalismo
que agradava a um público de opositores ilustrados do Império, sobretudo os abolicionistas e
republicanos.72
Inicialmente o Espiritismo era praticado no Rio de Janeiro pelos grupos de
imigrados franceses. Seu desenvolvimento ganhou maior impulso a partir da tradução das
obras de Allan Kardec, realizada, a princípio, pelo jornalista baiano Luiz Olimpio Teles de
Menezes na década de 1860. Neste período, o Espiritismo ganhou importantes adesões de
membros da elite imperial, como médicos, advogados, jornalistas e militares.73
Foi também na década de 1860, sob a liderança de Teles de Menezes, que se
organizou o primeiro núcleo espírita do Brasil. Tal núcleo foi criado com o intuito de se
69
Padroado: instituição criada pelas monarquias ibéricas a partir do século XIII, para estabelecer alianças com a
Santa Sé. Graças a essa instituição as coroas ibéricas exerciam grande influência na administração eclesiástica de
seus impérios ultra-marinos. Através do padroado, a monarquia promovia, transferia ou afastava clérigos;
decidia e arbitrava conflitos nas respectivas jurisdições das quais ela própria fixava os limites. Com exceção dos
temas e assuntos pertinentes ao dogma, a Igreja colonial, pelo padroado, ficava sob o controle permanente do
Estado. No Brasil, o padroado só foi extinto na república. (AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário
de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 340.).
70
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 180.
71
Ibid., p. 180-181.
72
Ibid., p. 181.
73
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 181.
33
estudar, praticar e também difundir o movimento espírita. As atividades organizadas do
Espiritismo não pararam desde então, tornando assim, o movimento espírita cada vez mais
conhecido no nosso país.74
A chegada da República trouxe consigo o princípio constitucional da liberdade
religiosa. Neste momento então, o Espiritismo consagrou-se como uma doutrina da caridade e
da assistência aos pobres (tradicional bandeira da Igreja Católica), principalmente
através da prescrição mediúnica de receitas homeopáticas a uma população carente de
assistência médica. Graças a sua característica mágica-terapêutica, juristas e médicos se
posicionaram contra os espíritas, aos quais também se aliaram os clérigos católicos. É nesse
processo conflituoso, de posicionamentos agressivos ao chamado “baixo-espiritismo” de
tendas e terreiros, que vai se constituir um ponto de congregação entre espíritas e intelectuais
laicos da República.75
Com o passar do tempo, houve a definição de um modelo para a organização de
centros espíritas, onde a terapia de passes, a fluidificação de água, o atendimento fraterno e a
desobsessão76 ultrapassaram a ênfase anterior no receitismo mediúnico sem, contudo, eliminálo. O Espiritismo dirigiu-se para uma clientela de adeptos das camadas médias urbanas
letradas, afinando-se, de forma gradual, com os desafios de construção nacional no Brasil do
início do século XX. Sua mensagem conseguiu atingir, de forma significativa, alguns
segmentos profissionais urbanos, como o dos militares, advogados, funcionários públicos,
médicos e jornalistas, muitos dos quais em franca oposição ao controle de suas consciências e
projetos por parte das autoridades católicas. O Espiritismo kardecista foi um dos poucos
espaços de uma religiosidade reflexiva e internalizada77, devido ao fato de se tratar de uma
religião completamente pautada na razão e no livre-arbítrio.78
É necessário ressaltar também, que a Doutrina Espírita é pautada por um ethos de
discrição, seriedade, controle, solicitude e paciência para com o próximo.79
74
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 11.
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 182.
76
A sessão de desobsessão é considerada o ponto alto dentro do grupo espírita. Nessa sessão, os médiuns entram
em contato com todo o tipo de espíritos sofredores. A intenção é doutrinar esses espíritos fazendo com que os
mesmos se arrependam. (CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema
ritual e noção de pessoa o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 123.).
77
Entende-se por religião internalizada a escolhida pelo fiel que pensou nela encontrar a satisfação de suas
necessidades e uma experiência de adesão à verdade. (CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo
e Umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1961, p. 59.).
78
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no
Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 182.
79
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 69.
75
34
Os primeiros grupos espíritas se organizavam de maneira familiar, agrupando
parentes e amigos com o intuito de discutir textos e questões relativas ao mundo dos espíritos,
além de realizarem sessões de comunicação com o mundo espiritual.80Bem no início da
penetração do Espiritismo no país, essas reuniões eram realizadas nas próprias casas, o que
atualmente não é aconselhável.81 Essa é a origem mais comum dos centros espíritas do
Brasil.82
No Rio de Janeiro, diversos grupos se sucederam, em conseqüência do aumento da
quantidade de adeptos e das controvérsias internas sobre a direção que o movimento espírita
deveria tomar. As disputas se davam entre os que queriam dar um status de ciência para o
Espiritismo e os que reforçavam seu aspecto religioso. Tal divisão conduzia a ênfases
distintas nas práticas espíritas. A corrente científica beneficiava as pesquisas de fenômenos
espíritas. A corrente religiosa preocupava-se com o recebimento de mensagens e instruções
dos espíritos voltadas para o aperfeiçoamento moral.83
Embora estivesse ocorrendo uma expansão da Doutrina Espírita, as disputas
internas acabavam por enfraquecer o movimento num ambiente hostil onde o catolicismo
ainda predominava.84
Essa situação conduziu os espíritas à intenção de fundarem uma entidade que
viesse representar a todos. No ano de 1884, na cidade do Rio de Janeiro, foi criada a
Federação Espírita Brasileira (FEB), que tinha a clara intenção de filiar todos os núcleos e
tendências espíritas, independente de suas discordâncias, isto é, pretendia ser a representante
do Espiritismo no Brasil.85
Após esse período, o Espiritismo acabou se afirmando, definitivamente, como um
movimento religioso que, inclusive, se apresentava como um aprofundamento do
cristianismo. Foi dessa forma, como religião, que a Doutrina Espírita cresceu
significativamente e se multiplicou em núcleos pelo país. A partir de então, o Espiritismo, de
fato, se inseriu na dinâmica cultural brasileira. Quanto à corrente científica, esta não
conseguiu empolgar a direção do movimento e sempre se manteve longe de conseguir
hegemonia nas práticas espíritas. 86
80
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 16.
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 51.
82
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 16.
83
Ibid., p. 17.
84
Ibid., p. 19.
85
Ibid., p. 19.
86
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p. 27.
81
35
È de essencial importância ressaltar que, a vitória da tendência religiosa na
organização do Espiritismo brasileiro não excluiu a atenção à racionalidade interna de suas
idéias e a preocupação de estar atualizado com o conhecimento científico. Havia uma
preocupação em apresentar o mundo dos espíritos como uma realidade objetiva que não se
chocava com outras realidades objetivas de que as ciências se ocupavam.87
A perseverança de tal proposta, baseada em textos organizados sistematicamente e
atenta às tendências do conhecimento da época, facilitou, sem dúvida, o enraizamento da
Doutrina Espírita em setores sociais com acesso à educação formal e a sua penetração em
grupos profissionais de formação acadêmica.88
3 A doutrina espírita conquista Juiz de Fora
Na cidade mineira de Juiz de Fora, encontram-se registros que mostram a presença
do Espiritismo desde o final do século XIX. Já a partir da segunda década do século XX, os
Centros Espíritas começaram a se organizar de forma mais sistematizada, formando assim, o
bloco hegemônico da organização do movimento. Com o passar do tempo, a doutrina foi
adquirindo maior estabilidade e inserção social, definindo-se como uma opção religiosa
racionalizada, dedicada à assistência aos necessitados, por meio da caridade espiritual e
material. Durante o período em que tentavam conseguir sua legitimação, os adeptos
enfrentaram oposições, em especial com a Igreja Católica, porém conseguindo alcançar, já
nos anos 50, uma posição de destaque no campo religioso juizforano.89
Juiz de Fora era considerada pioneira em muitos empreendimentos no estado de
Minas Gerais além de possuidora de grande poder econômico. Sua elite era composta
basicamente por proprietários de terras, advogados, banqueiros e comerciantes. Possuía uma
sociedade urbana constantemente preocupada em manter e produzir eventos culturais tão
interessantes e atraentes quanto os que ocorriam na cidade do Rio de Janeiro.90
No que diz respeito à educação, Juiz de Fora era mencionada como a cidade da
instrução por excelência, comportando aqui, inclusive, vários estabelecimentos de ensino. Sua
87
Ibid., p. 28.
Ibid., p. 28.
89
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”,
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 150-151.
90
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”,
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 137.
88
36
diversificação no âmbito da cultura era notória. Os juizforanos dispunham de uma imprensa
muito ativa, além de teatros, casas noturnas e cinemas.91
Localizada em um ponto geográfico e economicamente estratégico, servindo de
entreposto comercial entre o interior de Minas Gerais e o Rio de Janeiro, a cidade de Juiz de
Fora absorvia, dessa maneira, tanto a cultura quanto o dinheiro de ambos os pólos. Além
disso, nossa cidade recebeu, já no ano de 1850, um número significativo de imigrantes92, o
que acabou por contribuir, de forma considerável, para sua diversificação cultural. A
mentalidade européia trazida pelos imigrantes foi, aos poucos, se introduzindo na sociedade
local e, consequentemente, contribuindo para as alterações comportamentais em todos os
setores sociais.93
Em Juiz de Fora a religiosidade também foi marcada por características diferentes
daquelas encontradas nas demais cidades mineiras da época. O tradicional catolicismo tinha
pouca afinidade com os padrões modernos tão aspirados pelos juizforanos. A maioria dos
imigrantes que chegavam à cidade, principalmente os alemães, abraçava o Protestantismo.
Nesse contexto, também não demorou muito tempo para que diferentes crenças religiosas,
incluindo a Doutrina Espírita, se revelassem de maneira pública na cidade de Juiz de Fora.94
Atualmente, a presença da Doutrina Espírita na cidade é significativa e no âmbito
social ela ocupa lugar de destaque. Os adeptos da doutrina desfrutam de grande prestígio e
estão sempre representados nos diversos cultos e encontros que são realizados. São
promovidos com freqüência, na cidade, variados eventos culturais ligados ao Espiritismo, tais
como peças teatrais, congressos e palestras.95
Juiz de Fora apresenta um expressivo número de Centros Espíritas. Até o final da
década de 1950, a Aliança Municipal Espírita (AME) apresentava os registros de
funcionamento de quinze Centros Espíritas, número atualmente estendido para quarenta e
nove.96
91
Ibid., p. 137.
Sobretudo alemães e italianos. (OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à
consolidação de uma “religião”. In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas
das devoções: diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 138).
93
Ibid., p. 138.
94
Ibid., p. 138.
95
Ibid., p. 136.
96
Nem todos os Centros são cadastrados na AME, sendo possível que o número seja maior do que o citado aqui.
(OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”, In:
TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade religiosa
em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 136.).
92
37
Já centenário, o Espiritismo de Kardec ocupa um lugar de destaque entre as
religiões da cidade mineira de Juiz de Fora. Isso ocorre tanto no fator de visibilidade quanto
no fator quantitativo.97
Essa visibilidade corresponde à capacidade publicitária ou de divulgação, que é
reconhecida principalmente através das colunas específicas em jornais de grande circulação
municipal; nos jornais das comunidades espíritas; nos médiuns e escritores reconhecidos
nacionalmente; nas livrarias especializadas em obras espíritas; nos programas de rádio e de
televisão. Somam-se também a essas atividades, outras que colocam o Espiritismo em contato
direto com a sociedade de Juiz de Fora, como palestras, seminários, festas e eventos
promocionais98, além das obras assistenciais. Já o fator quantitativo é confirmado pelo Censo
2000, que mencionou o Espiritismo como o terceiro maior agrupamento religioso no país,
sendo que em Juiz de Fora essa mesma posição também é observada.99
Conclusão
Atualmente, em Juiz de Fora, o Espiritismo tornou-se um elemento promotor de
destaque para algumas pessoas, uma vez que o fato de ser espírita está intimamente ligado à
idéia de ser também intelectual, ou seja, a doutrina acaba, de certa forma, representando um
status social.100 Isso tudo, segundo Maria Laura V. Cavalcanti, salienta o fato de que religião
não apenas “expressa” ou “traduz” outras realidades, como também representa uma matriz de
produção de valores, de maneira de pensar e se relacionar com a realidade social.101
Para os espíritas de Juiz de Fora, a classificação do Espiritismo como “uma
doutrina de elite” ocorreu, sem dúvida, devido ao fato desta parcela da sociedade sempre ter
tido contato com o mundo intelectual, freqüentando, inclusive, as melhores escolas, sobretudo
entre o final do século XIX e início do XX. No entanto, eles reforçam que aqueles que não
97
PAVAM, Daniel; SOUZA, Petrônio G. de. Diversidade identitária no movimento espírita em Juiz de Fora. In:
TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade religiosa
em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 157.
98
Existem eventos na cidade que fazem parte do calendário anual como por exemplo a “Semana de Kardec”
promovida pelo Centro Espírita A Casa do Caminho. (OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora:
do surgimento à consolidação de uma “religião”. In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres
(Org). Minas das devoções: diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 136).
99
Ibid., p. 157-158.
100
Ibid., p. 153.
101
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 10.
38
pertencem à elite mas se dedicam ao estudo, conseguem, certamente, se tornar “grandes
espíritas”. 102
A dificuldade em atingir as classes sociais menos letradas é um problema que
preocupa os adeptos do Espiritismo, tanto que nos últimos dez anos, ocorreu um reforço no
trabalho de divulgação da doutrina nos bairros mais afastados da cidade de Juiz de Fora.103
O Espiritismo é uma religião de leigos. Seus praticantes são donas de casa,
professores, médicos, enfermeiros, bancários, assistentes sociais, comerciantes, funcionários
públicos, militares, aposentados. Não existe em sua organização um clero espírita. As bases
do movimento se organizam de forma autônoma e giram em torno de centros espíritas
espalhados por todo o Brasil.104
O crescimento da Doutrina Espírita no país se deu incentivando e enfatizando a
leitura, as referências a textos, o aperfeiçoamento pelo estudo da doutrina e a circulação de
mensagens espirituais.105
A história do Espiritismo no Brasil destacou o aspecto da religiosidade como
alicerce fundamental do movimento, procurando, entretanto, fugir de excessos místicos, assim
como, tentando manter a preocupação com a racionalidade das concepções originadas de sua
crença básica no mundo espiritual. Em decorrência de tal atitude, o Espiritismo conseguiu se
apresentar, aos que dele se aproximam, como uma religião racional.106Na prática religiosa dos
centros espíritas, a natureza racional do Espiritismo é encontrada, sobretudo, na forte
valorização da fala, da leitura e do estudo.107
O Espiritismo é, antes de mais nada, um sistema religioso que valoriza
intensamente a harmonia, o respeito às posições estabelecidas, a tolerância e o controle. Em
compensação, ele se manifesta contra a rebeldia, o conflito e o descontrole de maneira
geral.108
O Atlas da Filiação Religiosa nos informa que os espíritas estão presentes em
maior número nas áreas urbanas, incorporam mais mulheres do que homens e também
102
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma “religião”,
In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções: diversidade
religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003, p. 153 – 154.
103
Ibid., p. 154.
104
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 69.
105
Ibid., p. 70.
106
Ibid., p. 81.
107
Ibid., p. 19.
108
Ibid., p. 58.
39
pessoas acima de 31 anos de idade109 de cor branca. O nível de educação e de renda está
acima da média nacional, sendo que os setores mais escolarizados do país estão, em sua
maioria, representados no movimento.110
Referências
AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e umbanda. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1961.
CAVALCANTI, Maria Laura V. de Castro. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de
pessoa o espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões
no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.
OLIVEIRA, Simone G. de. O espiritismo em Juiz de Fora: do surgimento à consolidação de uma
“religião”. In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das
devoções: diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003.
PAVAM, Daniel; SOUZA, Petrônio G. de. Diversidade identitária no movimento Espírita em Juiz de
Fora. In: TAVARES, Fátima R. Gomes; CAMURÇA, Marcelo Ayres (Org). Minas das devoções:
diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003.
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997.
109
Grande parte dessas pessoas é classificada como empregador. (LEWGOY, B. Incluídos e letrados. In:
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 174.).
110
Ibid., p. 174.
40
...E O SUBSTANTIVO SE FEZ CARNE:
Um Ensaio Teoliterário de Estética Crítica a partir da Vida e Obra do Profeta Gentileza
MSc. Alessandro Rodrigues Rocha111
RESUMO: Essa comunicação propõe uma leitura teológico-literária do profeta Gentileza
(personagem marcante da urbanidade fluminense), a partir de sua atividade profética: fala, estética e
escrita. Estabelece, uma relação entre a encarnação (evento teológico) e a encenação (evento estético),
mostrando a aproximação que acontece na figura (bíblica ou não) do profeta. Palavras-chave:
Teologia, literatura, Gentileza, estética-crítica.
ABSTRACT: This communication provides literary-theological reading of Prophet Gentileza
“gentleness” (A real important figure of urban scene of Rio de Janeiro) since of your prophetical
activity: Speaking, esthetic and writing. Establish a relation between incarnation (theological event)
and setting (esthetical event), showing an approach that happens in figure (biblical or not) of the
prophet. Key-words: Theology, literature, gentleness, esthetical-critic
Introdução
A encarnação do Cristo de Deus é um dos mais densos mistérios da fé cristã.
Como que o não-homem se faz o homem...? E se fosse possível responder ainda ficaria a
questão mais difícil: por quê? A esta última interrogação, a teologia arrisca uma resposta da
qual depende sua existência e relevância: GRAÇA. O que poderia responder o porquê é
também o que incide maior dramaticidade paradoxal sobre o evento da encarnação. A Graça
pressupõe uma realidade não meritória, que quanto mais aguda for mais a solicita. Na Graça o
não-mérito é assumido a partir de dentro. Tudo é cristificado.
Remetendo-nos a esse evento pleno da Graça, tateamos teoliterariamente o que
estamos chamando de Estética Crítica. A existência profética, anterior ou posterior a
encarnação da Palavra, é também uma evento encarnatório. Nela acontece a superação da
dicotomia estética/ética que pauta a falação literária e teológica. A existência profética, que
rasga o discurso literário com expressões incontidas de fulgor, integra o estético (entorno,
ambiência, realidade na qual vive determinada personagem, inclusive ela própria) e o ético
(posicionamento diante de tal realidade...) num est-ético.
A existência profética é sempre encarnatória. O não-mundo para qual ela se dirige
é assumido gratuitamente, numa demonstração de gentileza, para ele mesmo testemunhar a
possibilidade de um mundo-pleno. O ético será proclamado desde as interioridades mais
interiores do estético, não como um estranho a ele, mas como um com ele. O substantivo se
111
Doutorando em teologia pela PUC-Rio, coordenador acadêmico da FATERJ ( Faculdade Teológica
Evangélica do Rio de Janeiro)
41
faz carne tornando substantiva nossa existência. Esta é a novidade da existência profética que
o profeta Gentileza anuncia na companhia de outros companheiros seus de “ministério”.
Sobre essa experiência teoliterária nos debruçamos, tentando desde a escrita, comungar do
mistério encarnatório estético-crítico
1 “Estética crítica” como chave para o “universo Gentileza”
Cada elemento de uma obra nos é dado na resposta que o autor lhe dá, a
qual engloba tanto o objeta quanto a resposta que a personagem lhe dá (uma
resposta à resposta); neste sentido, o autor acentua cada particularidade da
sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida,
os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós
respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos
rodeiam; na vida, porém, essas respostas são de natureza dispersa, são
precisamente respostas a manifestações particulares e não ao todo do
homem, a ele inteiro; e mesmo onde apresentamos definições acabadas de
todo o homem – bondoso, mau, bom, egoísta, etc. - , essas definições
traduzem a posição prático vital que assumimos em relação a ele, não o
definem quanto fazem um certo prognóstico do que se deve e não se deve
esperar dele, ou, por último, trata-se apenas de impressões fortuitas do todo
ou de uma generalização empírica precária; na vida não nos interessa o
todo do homem mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na
prática e que nos interessam de uma forma ou de outra (...) Já na obra de
arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se
baseiam numa resposta única ao todo da personagem, cujas manifestações
particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como
elemento da obra. É especificamente estética essa resposta ao todo da
pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações
ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual
singular e único e também semântico112.
Mikhil Bakhtin, introduzindo o capítulo O autor e a personagem113, observa que
há uma topografia própria para a vida e outra para a arte. À vida se destina o fragmentário: os
atos alheios que nos interessam por que são também os nossos; à obra de arte, porém, dirigese a ocupação com o todo, mesmo que se a partir do particular, na perspectiva de integração
estética da personagem.
Este acento topográfico marca certa descontinuidade entre ação-reflexão e a
contemplação, e, por decorrência, entre ética e estética. Esta descontinuidade, porém, e o que
é mais grave, não se dá em seguimentos distintos e distanciados, mas no próprio indivíduo
que percebe seu ser cindido entre o que é e o que cria; naquilo que é, o é fragmentarimente
ético e eticamente fragmentário. Mas, no que cria... Seria esse o drama próprio do ser artista?
112
113
BAKHTIN, Mikhil. Estética da Criação Verbal. p. 3-4. grifo nosso.
Esse é o primeiro capítulo, pp. 3-21.
42
A preservação dessa segura topografia, onde se pode transitar do autor à
personagem, do criado ao vivido, parece uma forma justa de preservar certa lucidez frente a
mundos tão distintos (?). Evitasse dessa forma incorrer no risco da loucura - de ser chamado
louco - que consiste em eliminar as barreiras entre o real (que foi elegido como tal) e o
imaginário (o realmente desejado para o real). Nesse colo-tópos somos embalados por certa
cantiga lingüística que nos convence, porque assim desejamos, da preservação da cisão, onde
ao autor e sua personagem cabem discursos e procedimentos diferentes, e conseqüentemente
julgamentos diferentes. Em qualquer caso contrário as instituições policialescas, que vigiam e
punem, agem sem demora.
1.1 A “estética crítica” como superação da descontinuidade “ética estética”
Essa descontinuidade entre estética e ética, contemplação e ação, criado e vivido,
presente nas diversas formas de discurso artístico, em alguns momentos, toca em seus limites
últimos. Surge uma nova forma de ser no mundo, um outro jeito de lidar com a realidade (que
agora é tanto aquela determinada quanto a que se imaginava imaginária). Nasce um outro tipo
de discurso que rompe com o esteticamente aceitável e com o topograficamente seguro. Uns
diriam que nesse momento (que não é aquele instante, mas uma eternidade que encarna um
tempo concreto) nasce um louco, outros (mais sábios quem sabe), testemunhariam o vir-a-ser
de um profeta.
Essa ação discursiva que emana da integralidade do ser do louco/profeta, marca
certa fusão da vida e da obra de arte, que se encontram em tal coerência que uma e outra são
tanto éticas quanto estéticas. A este momento limiar de superação lingüístico-existencial
chamamos Estética Crítica. A distância entre a vida do “autor” e de seu “personagem”, é
resumida ao espaço de um devir onde é a mesma a topografia do vivido e do criado. O criado
é a exteriorização do vivido (ou do desejo de), e o vivido é a própria ontologia do criado:
Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos
horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em
qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar
em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e
diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu
próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão - , o mundo atrás dele,
toda uma série de objetos e relações que, em função dessa e daquela relação
de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele.
Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos
nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo
43
essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundirse em um todo único e tornar-se uma só pessoa114.
Na existência de um profeta essa “urgente fusão” do vivido e do criado, da ética e
da estética, acontece definitivamente, marcando no mundo um lugar possível a ela. O profeta
toma toda realidade cindida, a integra em sua existência (não como quem representa) e,
mostra ao mundo a possibilidade de integração. No mundo surge um não-mundo que o chama
a converter-se àquilo que deveria ser. Por isso o profeta precisa ser um louco, ao menos para
os que desejam permanecer em sua “sanidade”. Pois seu ser-no-mundo afirma que o nãomundo é precisamente o mundo-pleno.
Aqui se encontra o peso da existência profética: sua fala não é lançada ao futuro,
ela não se dirige ao não-tempo que se poderia apreender pela descomprometida contemplação.
Antes, ela fala do, e, sobretudo, para o agora, no sentido de chamá-lo a conversão, a fim de
que se constitua num devir kairológico:
O termo “profeta” – tomado do grego para designar uma condição estranha
à cultura grega – nos enganaria se nos convidasse a fazer do nabi aquele
que diz o futuro. A profecia não é apenas uma fala futura. É uma dimensão
da fala que a compromete em relações com o tempo muito mais importantes
do que a simples descoberta de certos acontecimentos vindouros. Prever e
anunciar algum futuro é pouca coisa, se esse futuro se insere no curso
ordinário da duração e se exprime na regularidade da linguagem. Mas a fala
profética anuncia um futuro impossível, que não poderíamos viver e que
deve transtornar todos os dados seguros da existência. Quando a palavra se
torna profética, não é o futuro que é dado, é o presente que é retirado, e toda
a possibilidade de uma presença firme, estável e durável115.
Compreendemos que é exatamente a Estética Crítica que possibilita ao profeta
tomar aquilo que estava destinado à relação estética, portanto contemplativa, e, vazando-a
pela dimensão ética, apresentá-la como o devir kairológico que constitui o mundo-pleno. O
estético e o ético, na perspectiva da Estética Crítica, formam o binômio ontológico da
existência profética. Mais do que isto, estético e ético fundem-se num “uninômio”: est-ética.
Segundo a Estética Crítica a existência profética é “uninômica”, assumindo nela
mesma o “mundo impossível”, o não-mundo, e fazendo deste, numa dinâmica integradora, a
única possibilidade de vivencia do mundo-pleno. “o profeta de Deus é um louco, o homem
inspirado é um maluco”.
114
115
Ibidem. p. 21.
BLANCHOT, Maurice. O Livro Porvir. p. 114.
44
1.2 “Estética crítica” como chave hermenêutica para a existência profética: visitando
Gentileza e seus companheiros
A Estética crítica, que estamos propondo, é uma ferramenta para a crítica
teoliterária, uma perspectiva de abordagem à literatura capaz lidar com determinados espaços
(ou as vezes gêneros) literários limítrofes, onde o fulgor revela sua densidade teológica, que
consciente ou não, irrompe no discurso, marcando-o em sua totalidade.
Esta ferramenta constitui-se também numa hermenêutica teoliterária. Há, portanto,
um lugar de leitura específico a ser afirmado, um ponto de vista sobre a discursividade
literária (em suas experiências de fulgor) que marca a superação do binômio estética–ética,
pela expressividade sintético-integradora est-ética.
A Estética Crítica, como hermenêutica da experiência teoliterária, tem um olhar
específico sobre a vivência profética e toda a discursividade que dela advém. Tendo dito que
o profeta (o Gentileza, mas antes dele vários outros companheiros seus) assume a
dramaticidade de seu espaço de missão, integrando-a em sua existência, para a partir dela
criticar esse espaço, propondo um outro como o próprio da vida plena, é preciso ainda
afirmar, que a interpretação desta existência deve superar a leitura simbólica.
A experiência do profeta com a realidade não é simbólica, isso já seria afirmar
uma percepção dicotômica acerca do real. Antes, o profeta e sua profecia devem ser lidos com
a força densa da concretude de sua visão e, de suas atitudes:
A leitura simbólica é provavelmente o pior modo de ler um texto literário.
Cada vez que somos incomodados por uma leitura mais forte, dizemos: é
um símbolo. Esse muro que é a Bíblia se tornou, assim, uma suave
transparência em que se colorem de melancolia as pequenas fadigas da alma
(...) Entretanto, se as palavras proféticas chagassem até nós, o que elas nos
fariam sentir é que não contém nem alegoria nem símbolo, mas que, pela
força concreta do vocábulo, elas desnudam as coisas, nudez que é como a
de um imenso rosto que não vemos e que, como um rosto, é luz, o absoluto
da luz, assustadora e encantadora, familiar e inapreensível, imediatamente
presente e infinitamente estrangeira, sempre por vir, sempre por descobrir e
mesmo por provocar, embora tão legível quanto pode ser a nudez do rosto
humano: nesse sentido somente, figura. A profecia é uma mímica viva116.
É exatamente essa literalidade, que marca o profeta em seu ser-no-mundo, que
precisa estar presente na atitude hermenêutica de quem se coloca diante de seus textos, ditos,
artefatos, silêncios...É isso que queremos fazer a partir da est-ética do profeta Gentileza, e de
116
BLANCHOT, Maurice. Op. Cit. p. 122.
45
um seu companheiro de missão117. Começaremos por este último: Oséias. Nossa intenção,
com esse exercício, não é outra senão perceber brevemente a superação do distanciamento
entre o estético e o ético, do autor (entorno) e de sua personagem (missão).
O quadro no qual Oséias desenvolveu sua existência profética era o seguinte: o
povo estava se desviando de sua relação com Javé e sua lei e, adorando outros deuses. Esse
afastamento significava todo um processo de corrupção no seio daquela sociedade. Airton
José da Silva percebe três categorias negativas relacionadas com o entorno da profecia de
Oséias:
• A falta de conhecimento de Deus, que se manifesta como ausência de
fidelidade e solidariedade;
• As desordens sociais, causadas pela falta de conhecimento: perjúrio, mentira,
assassínio, roubo, adultério, homicídio;
• A morte, com a degradação do universo. As feras, pássaros e os peixes
desaparecem. O homem fenece118.
Essa situação é descrita pelo profeta nos seguintes termos:
O vinho e o licor tiram a razão.
O meu povo consulta um pedaço de madeira, e seu bastão lhe dá uma resposta, porque
um espírito de prostituição os extravia e eles se prostituem, afastando-se do seu
Deus.
Vivem oferecendo sacrifícios nos altos dos montes, queimando incenso sobre as
colinas ou debaixo de um carvalho, de um salgueiro ou de um terebinto, cuja sombra
lhes agrade. Por isso, as filhas de vocês se prostituem e as suas noras cometem
adultério.
Eu não vou castigar suas filhas por se prostituírem, nem suas noras por cometerem
adultério, pois vocês mesmos andam com prostitutas e sacrificam com as prostitutas
sagradas. Um povo sem entendimento caminha para a perdição.
Se você se faz de prostituta, ó Israel, que não caia Judá no mesmo pecado! Deixem
de fazer romarias a Guilgal (...) Efraim se aliou aos ídolos, e se fez acompanhar de
beberrões; entregaram-se a prostituição, preferiram a desonra à dignidade119.
Esse é, portanto, o entorno no qual o profeta estava vivendo sua missão. É o nãomundo que Oséias deveria assumir, não só em sua mensagem, mas na vida, como experiência
sua, para somente a partir daí poder formular seu discurso profético. Não há uma realidade a
ser contemplada para a qual se poderia dirigir um juízo ético. A realidade deveria ser
assumida em sua própria estética, pois só desta forma a fala de Oséias representaria uma fala
profética.
117
Esse exercício hermenêutico poderia ser feito com outros profetas bíblicos, senão todos, sobretudo, com
Isaías (que viveu três anos nu para demonstrar o pecado do povo), e Jeremias (que andou com uma canga no
pescoço para mostrar ao povo sua condição de escravidão). Nossa escolha de Oséias se dá pela dramaticidade de
seu serviço profético, bem como, pela necessidade de delimitação.
118
SILVA, Airton José da. A Voz Necessária: Encontro com os Profetas do Século VIII. p. 76.
119
Oséias 4. 11-18.
46
Esse não-mundo de Oséias é identificado pelo texto que citamos acima, pela
prostituição. Prostituição é a categoria de vida que tanto o povo quanto o Estado estavam
vivendo: “...vocês mesmos andam com prostitutas...”, ...você se fez de prostituta ó Israel...”.
esta é a realidade que deveria ser tocada pela fala profética. Esse era o não-mundo que deveria
ser tornado mundo-pleno. Como fazê-lo?
Começo das palavras de Javé por intermédio de Oséias. Javé disse a Oséias: “Vá! Tome
uma prostituta e os filhos da prostituição, porque o país se prostituiu, afastando-se de Javé.
E Oséias foi e tomou Gomer, filha de Deblaim. Ela ficou grávida e lhe deu
um filho120.
O não-mundo de Oséias não está somente em seu entorno, sua própria condição
passa a se identificar com sua exterioridade. Nem seria mais adequado falar de exterioridade e
interioridade, não há mais entorno e vivência privada. Toda a realidade se constitui num nãomundo, que o é em função da condenação de Deus.
Ouçam a palavra de Javé, filhos de Israel!
Javé abre um processo contra os moradores do país, pois não há mais fidelidade, nem
amor, nem conhecimento de Deus no país.
Há juramento falso e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência; e sangue
derramado se ajunta a sangue derramado.
Por isso, a terra geme e seus moradores desfalecem; as feras, as aves do céu e até
peixes do mar estão desaparecendo121.
O profeta não contempla esse não-mundo, antes ele o faz seu (ou dele é feito em
virtude de sua existência profética), não simplesmente para condená-lo, mais para exortando-o
lhe mostrar o mundo-pleno, que mesmo parecendo impossível, ganha lugar na história a partir
da vida mesma do profeta. Aos que perguntarem se seria mesmo possível viver tal coisa, o
profeta pode testemunhar de sua possibilidade mostrando-a concretamente em sua própria
vida.
Diante de todo o povo de Israel Oséias vive os sabores e dissabores daquela
relação-evento122, mostrando os caminhos para a superação de toda desordem causada pela
prostituição (em todas as suas formas de presença), a partir de seu convívio com Gomer. O
não-mundo foi cedendo espaço ao mundo-pleno, mesmo que vivenciado nuclearmente no
horizonte existencial de Oséias.
120
Ibidem. 1. 2-3.
Ibidem. 4. 1-3.
122
Os capítulos dois e três de Oséias narram as dificuldades que o profeta encontra para viver sua relação-evento
com Gomer.
121
47
Foi na superação da dicotomia estética/ética, que pode ser instaurada outro tipo
realidade possível. A partir da existência profética de Oséias, Javé pode anunciar a Israel (sua
própria noiva prostituta) aquilo que já havia visto na vida de seu profeta.
Agora, sou eu que vou seduzi-la, vou levá-la ao deserto e conquistar seu
coração.
(...) Nesse dia, farei deles uma aliança com as feras, com as aves do céu e
com os répteis da terra. Eliminarei da terra o arco, a espada e a guerra; e, então, vou
fazê-los dormir em segurança.
Eu me casarei com você para sempre, me casarei com você na justiça e no
direito, no amor e na ternura.
Eu me casarei com você na fidelidade e você conhecerá Javé123.
A existência profética é o espaço de antecipação da fala profética. O mundo-pleno
acontece antes mesmo de ser anunciado. Seu anuncio é de tal forma impactante, porque há
uma realidade que o antecede. A existência do profeta é um devir Kairológico que dá
autenticidade a sua fala.
A existência do profeta gentileza é um devir kairológico que dá autenticidade a sua
fala. O cenário de sua existência profética foi a cidade do Rio de Janeiro, com todos os
desencontros (e alguns encontros) que fazem de uma metrópoles um espaço fértil para o
cultivo dos não-lugares, das não-pessoas, das não-identidades. Nessa cidade os encontros, os
toques, se dão mais por atropelos do que por afagos. A presença de tão numerosa multidão
não se converte em companhia, por vezes, faz mesmo é aprofundar o vazio da solidão.
O conhecido bom humor do carioca vem cedendo espaço, a muito, a certo ar de
desconfiança, que teme a violência desmedida. O gesto afável é confundido coma abordagem
fortuita. A beleza presente em todo lugar (todo = lugares acessíveis a certa classe social)
encontra-se em abraço promiscuo com os não-lugares onde vive (apesar de) boa parte da
população dessa cidade maravilhosa. Pena que esta maravilha esteja cada vez mais vinculada
como reluzir do vil metal.
Nesta ambiência “o profeta Gentileza semeou bondade nos corações de quem o
conheceu124”. Desde sua presença na terra ressequida do circo queimado, pode-se notar a
superação da dicotomia estética/ética, própria da existência profética. Em sua própria
interpretação sobre o incêndio, já é possível perceber sua visão integradora da realidade: “(...)
123
124
Oséias 2. 16, 20-22.
OLIVEIRA, Maria José. Gentileza nas palavras de um profeta urbano. p. 2.
48
A derrota de um circo queimado em Niterói é um mundo representado, porque o mundo é
redondo e o circo arredondado125”.
Ao assumir aquele não-lugar com seu mesmo, ele o transformou em um paraíso,
“o paraíso Gentileza126”. Não palavreou sobre o incêndio, não assuntou sobre suas causas, não
apregoou nenhuma palavra religiosa, em suma não precipitou nenhum juízo ético distanciado,
como quem contempla de fora uma situação. Foi para aquele não-mundo destruído e o recriou
solidariamente construindo um poço, um jardim, uma horta, elementos de vida presentes nas
mais tradições religiosas. O não-mundo tornou-se protologicamente um mundo pleno.
As palavras de João a respeito de Jesus podem ser parafraseadas para o profeta
gentileza: Ele assumiu a “nossa” condição e armou sua tenda (caminhão) entre nós. Depois de
mostrar um mundo-pleno possível construído a partir do não-mundo, Gentileza “tomou uma
barca e foi para o outro lado do Rio”. Lá chegando pôs-se a anunciar a boa nova do Reino:
gentileza gera gentileza. Esse não é qualquer anuncio, não constitui qualquer palavra daquelas
que são ditas sem maior importância nas esquinas ou nos botecos. Gentileza é palavraconteúdo; mundo-pleno contra o não-mundo.
Aos poucos foi assumindo em sua existência profética, da mesma forma que
Oséias foi recebendo sua amada prostituta, os traços da urbanidade. Assumiu-os
ressignificando-os. Só quem vê como é tratado um morador de rua (embora o profeta não o
fosse de fato) no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar, pode imaginar o que o José, o
enviado da trindade, viveu nos primeiros momentos de sua trajetória profética.
Certamente acolheu em si mesmo a agressividade urbana que se radicaliza
naqueles que menos podem reagir, e, condenou-a como a ruína da sociedade atual. Porém, sua
condenação não toma a estratégia do agressor, antes, a subverte; estampado em sua túnica
estava o veredicto: “ Gentileza é o remédio de todos os males, amorrr e liberdade”, “Não
usem problemas, não usem pobreza, usem amorrr Gentileza”127.
Ele próprio, na totalidade est-ética de sua existência profética, era o devir
kairológico que conferia peso e densidade a sua fala. Comentando outra síntese discursiva
presente em sua túnica, Leonardo Guelman afirma:
Em Gentileza É Recordação só podemos recordar algo que não mais está
presente ou plenamente visível no mundo. É este o seu reclame. O profeta
visa a devolver ao mundo um princípio de totalidade calcado na
cordialidade e na convivialidade enquanto uma expressão afetiva das
relações entre os homens, à luz de uma primordialidade divina. Embora a
125
GUELMAN, Leonardo. Op. Cit. p. 45.
Cf. ibidem. p. 28.
127
Ibidem. p. 62.
126
49
gentileza se concretize numa pessoa, ela não se constitui num objeto de
adoração128.
Sua pré-sença reclama a superação do não-mundo. Seu léxico inicial: Gentileza e
agradecido, em relação antitética com o léxico superficial da vida urbana: por favor e
obrigado, provoca numa ação afetiva concreta, a pré-sença do mundo-pleno. Na verdade, a
pré-sença do Gentileza já é a pré-sença do mundo-pleno por ele anunciado.
A integralidade est-ética assumida na existência do Profeta está presente em todos os seus
gestos, atos, objetos e escritos. Nenhum elemento é supérfluo, nenhuma palavra é prolixa,
nenhum objeto é descartável. Com lucidez advinda de sua íntima relação com o univvverso,
que ele entende como trinitário, Gentileza revela o significado de parte dos elementos que
compõe seu mundo plenificado protologicamente.
As flores é porque eu sou o jardim ambulante. Vocês são flor do meu
jardim... tem que se entregar ao dono do jardim. Tem que passar o visto no
jardim.
Depois de eu passar o visto no jardim, vocês vão ser os jardineiros(...)
Agora o catavento é para refrescar a mente da humanidade. Para que todo o
mundo ande coma mente fresca e positiva(...)
E a bandeira, a nossa bandeira brasileira, é a mais linda do
universo (...)
E o profeta é patriota até no pé129.
A esta última referência: “o profeta é patriota até no pé”, poderia se acrescentar o
que se disse o outro profeta: “como são belos os pés do mensageiro que anuncia a paz...130 .
Os pés do profeta, seus sapatos, revelavam a origem e o destino de suas pegadas. Neles estava
grafado o mesmo que em sua certidão de nascimento: as letras F P E , Pai, Filho e Espírito
Santo. Quem sabe esse seja o elemento teológico de mais densidade na existência profética do
Gentileza.
É, porém, a sua grafia (seu estilo, mas principalmente o local escolhido para sua
escrita) que mais radicalmente revela a integração est-ética de sua existência profética. Sobre
o estilo e a codificação de sua escrita, o trabalho de Leonardo Guelman é insuperável131. O
que gostaríamos de frisar aqui é o lugar que essa escritura, sobretudo as “tábuas sagradas” do
viaduto do Caju, estão grafadas.
Do ponto de vista de nossa proposição acerca da Estética Crítica, as 55 “tábuas
sagradas” que formam o cânon profético-urbano do Gentileza, tomam o não-lugar para fazer
dele um lugar sagrado.
128
Ibidem. p. 63.
Ibidem. p. 57.
130
Cf. Isaías 52. 7.
131
GUELMAN, Leonardo. Op. Cit. p.72-94.
129
50
Aquelas pilastras marcam duas cenas que cada pessoa é capaz de reconhecer: a
primeira faz parte da construção da urbanidade; aquelas pilastras sustentam a vida apressada
pouco dada aos contatos pessoais. Cada uma delas pode contar as histórias de tantos nãohomens que deixaram parte de suas vidas partidas para a construção de uma cidade que só fez
rejeitá-los atirando-os às favelas. Cada pilastra sustenta o toldo de concreto que não permite
que o sol toque o não-solo impermeabilizado por grossas camadas de asfalto por histórias
desumanizadoras. Elas são guardiões de uma cultura de superficialidades, de desencontros, de
relações rasas como as poças de urina que regam suas bases.
A segunda cena é incomodamente paradoxal. Aquelas pilastras que simbolizam
com tanta concretude as superficialidades e desencontros da vida urbana servem também de
único teto para muitas não-pessoas que se escondem do frio, da chuva e do abandono a que
são sujeitas. Não-pessoas fazem desses não-lugares um não-mundo que lhes relega a uma
não-existência. Possivelmente a única relação afetiva constante que mantêm, se dá com os
muitos cachorros que teimam, contra toda a lógica, em permanecer-lhes fiéis.
Esse espaço não-espaço, marcado por tantas contradições, é assumido e integrado
na existência profética do Gentileza, para então ser denunciado. Quem passando por ali, vir a
um só tempo as Palavras Sagradas do Profeta e as superficialidades das relações que atiram as
pessoas às margens da vida, não pode deixar de ser tocadas. E este toque semeia o mundopleno, fazendo-o então existir concretamente (melhor seria substantivamente).
O não-lugar se auto-denuncia. O não-mundo exige forçadamente sua superação. O
mundo-pleno se impõe pela força da integração est-ética. Nisto consiste o peso e a densidade
da existência profética. Ela rasga o presente com uma pré-sença que não deixa iludir quanto à
possibilidade de um real para além do que imposto. O real é também tudo aquilo que é
interditado e nomeado como imaginário.
Essa pré-sença é tão forte que não se pode deixar de vê-la, de ser tocado por ela.
Ela é tão radical que a vida trata de protegê-la, porque desta forma, ela está protegendo a si
mesma. Os mecanismos de proteção são vários: Oséias foi escolhido na fé e na experiência de
um povo que com ele se identifica, e nele ressignifica sua própria existência (o que seria a
canonização senão a resposta oficial a esta vivência profunda?). Gentileza foi agarrado por
certa sensibilidade que indica que suas palavras são uma das únicas saídas para o caos em que
estamos nos empurrando uns aos outros. Também ele tem sido canonizado. Suas palavras têm
inspirado seguidores, fermentado nossa cultura, provocado um senso crítico sobre nossa
existência urbana. Em suma “céus e terras passarão, mas as palavras (substantivos) que
tomam carne numa existência integrada, nunca passarão”.
51
Referências
BAKHTIN, Mikhil. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BLANCHOT, Maurice. O Livro por Vir. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SILVA, Airton José da. A Voz Necessária: Encontro com os Profetas do Século VIII. São Paulo:
Paulinas, 1998.
OLIVEIRA, Maria José. Gentileza nas palavras de um profeta urbano. Publicado em
http://reposcom.portcom.intercom.org.br/handle/1904/18282
GUELMAN, Leonardo. Brasil: tempo de Gentileza. Rio de Janeiro: Eduff, 2000.
Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1997,
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1991.
52
MORTE DE DEUS E PENSAMENTO FRACO:
Contribuições da Filosofia Pós-Moderna à Vivência e Comunicação da Espiritualidade
Cristã
MSc. Alessandro Rodrigues Rocha132
RESUMO; O que haveria em comum entre “morte de Deus”, “pensamento fraco”, “teologia” e
“espiritualidade”? E o que estas coisas tem haver com a pós-modernidade, e sta com o cristianismo?
Queremos enfrentar essas questões no sentido de pensar uma aproximação ao tema da espiritualidade,
da mística e da teologia. Esse percurso que pretendemos fazer será dirigido por dois autores: Friedrich
Nietzsche e Gianni Vattimo. No primeiro, buscamos o advento da pós-modernidade e, no segundo esta
seu estado maduro. Desses autores tomaremos principalmente as categorias “morte de Deus”, “superhomem”, “libertação da metáfora” e “pensamento fraco”. Palavras-chave: Teologia, espiritualidade,
pós-modernidade, Nietzsche, Vattimo
ABSTRAC: What would have in common between “God’s Death”, “Weak thought”, “theology” and
“spirituality”? And what is the relation of these topics with pos-modernity, and Christianity? We want
to face these questions in sense of thinking in an approach to the spirituality, mystic and theology.
Two authors will direct this way that we aim to do: Friedrich Nietzsche and Gianni Vattimo. In the
first we seek the advent of pos-modernity, and in the second is in you mature state. We will take from
these authors mainly, the categories “God’s death”, “superman”, “metaphor’s liberty” and “weak
thought”. Key-words: Theology, spirituality, pos-modernity, Nietzsche, Vattimo
Introdução
O que haveria em comum entre “morte de Deus”, “Pensamento fraco”, “teologia”
e “espiritualidade”? E o que estas coisas teriam haver com a pós-modernidade, e esta com o
cristianismo? Queremos enfrentar essas questões no sentido de pensar uma aproximação ao
tema da espiritualidade, da mística e da teologia.
Nossa intuição principal é que a pós-modernidade apresenta questões importantes
à experiência da fé cristã, ao mesmo tempo oferece um horizonte original e desafiador para o
cristianismo. Essas questões e oferendas chamam o cristianismo a uma conversão, um retorno
à radicalidade neotestamentária do rebaixamento de Deus.
Nesse rebaixamento (kenosis) encontramos um duplo princípio: em primeiro lugar
está o necessário desmascaramento de toda estrutura de estabilidade e a-historicidade; em
segundo lugar está o decorrente enfraquecimento do pensamento, que deriva diretamente do
enfraquecimento do Ser, que não é estabilidade, antes, evento, diálogo e encontro.
Esse percurso que pretendemos fazer será dirigido por dois autores: Friedrich
Nietzsche e Gianni Vattimo. No primeiro buscamos o advento da pós-modernidade e, no
132
Doutorando em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-RIO.
Coordenador da FATERJ (Faculdade Teológica Evangélica do rio de Janeiro).
53
segundo, esta em seu estado maduro. Desses autores tomaremos, principalmente, as categorias
“morte de Deus” , “super-homem”, “libertação da metáfora” e “pensamento fraco”.
Queremos conseguir ao final desse percurso apontar caminhos para a
espiritualidade e a teologia nesse rico e paradoxal horizonte pós-moderno. Percebemos a
limitação desse intento, bem as fronteiras que essa reflexão nos apresenta.
1 A Morte de Deus como pluri-fontização da experiência e comunicação da fé cristã
O Deus que morreu, e que teve sua morte anunciada na aurora do século XX, é
aquele que nasceu do coito entre a religião cristã e a cultura helênica, sobretudo platônica. O
legado desse Deus foi a afirmação de um dualismo intransponível entre mundo do ser e
mundo do devir.
A morte de Deus, segundo expôs Nietzsche, é a morte de uma estrutura
epistemológica lingüístico-religiosa sobre a qual foram erigidos os cânones da Teologia
Cristã, sobretudo dogmática, ao longo de quase todo o cristianismo. Também sobre essa
estrutura foi construída a radical separação entre teologia e espiritualidade, entre pensamento
e experiência, derivando daí a marginalização da mística, tida como expressão de ignorância
ou loucura133.
Ao falar dessa batalha a partir do pensamento nietzschiano, PENZO diz: “A
polêmica com o cristianismo decadente revela-se, no fundo, como conseqüência lógica da
polêmica com a concepção platônica, que afirma a distinção entre mundo do ser e mundo do
devir”.134 E ainda: “Na concepção platônico-cristã, o devir ver-se-ia privado de sua intrínseca
perfeição e seria rebaixado à condição de realidade imperfeita relativamente à realidade
mítico-metafísica, a que se atribui toda a perfeição”.135
A morte declarada é, portanto, de uma representação lingüístico-religiosa de Deus.
Porém, o discurso teológico, sobretudo o dogmático, forçou tal identificação dessa
representação com o Deus cristão que qualquer ataque àquele recai inevitavelmente sobre
este136.
A constatação da morte de Deus é, portanto, uma grande bênção para a teologia e
para a espiritualidade, à medida que liberta seu discurso das amarras da metafísica platônica,
133
O resultado dessa marginalização da Mística é tão evidente que podemos percebê-lo em sua radical recepção,
por meio daquilo que chamamos senso comum. Nos ambientes religiosos, a expressão “mística” evoca
“crendices”, “ignorância”, ou até mesmo charlatanismos.
134
PENZO, Giorgio (org). Deus na Filosofia do Século XX. P.29.
135
Id. Ibid. P.30.
136
Cf. ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno. P. 125.
54
que, cristalizada, gestou tão somente uma discursividade excludente. O ocaso do Deus
metafísico pode significar a libertação da dimensão metafórica da linguagem, possibilitando
um renovado falar teológico, que encontra na experiência da fé um lugar privilegiado.
A questão fundamental aqui é dar as boas vindas a essa declaração de morte137,
percebendo que ela representa “o universo perdendo seu centro”138 e ainda que “o mundo
supra-sensível não tem poder eficiente”139 no sentido de responder às questões encontradas no
horizonte existencial dos homens e mulheres concretos140.
É a partir da recepção da morte de Deus e da compreensão de que ela significa a
libertação da dimensão metafórica do discurso teológico que se torna possível abrir-se à
multiplicidade, à concretude da vida, onde efetivamente ocorrem as experiências humanas, e
dentre elas, aquela que poderia ser dita como a mais humana: a espiritual ou mística
1.1
A morte de D’EU’S e do ’EU’ como princípio para vida do ’EU’s: morte da
metafísica e vivificação do discurso possível
A morte de Deus, que em Feuerbach, Marx e Freud aparece como uma tarefa, em
Nietzsche se transforma no simples anúncio de boa nova.141
De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que o “velho
Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso
coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa –
enfim o horizonte nos parece novamente livre, embora não esteja limpo,
enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo
perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o
conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e
provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.142
Nietzsche não mata Deus, ele constata sua morte. Essa constatação de que “Deus
morreu” está intimamente ligada à história da cultura ocidental. Dizer “Deus morreu” é
declarar o fim de um fundamento último, onde até então orbitavam certos valores morais e
religiosos. A morte de Deus é a morte de um paradigma, uma verdadeira mudança epocal143.
137
Cf. HAMILTON, William. A morte de Deus. Cit. P.41.
Id. Ibid.
139
TROTIGNON, Pierre. Heidegger. P.83.
140
Henrique C. de Lima Vaz, em seu livro Experiência mística e filosofia na tradição ocidental faz a seguinte
afirmação:Do ponto de vista do sujeito, a experiência mística tem lugar num plano transracional, ou seja, onde
cessa o discurso da razão:inteligência e amor convergem na fina ponta do espírito – o apex mentis – uma
experiência inefável do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da alma. P.10.
141
ALVES, Rubem. Deus morreu – Viva Deus. . P.29.
142
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. P. 234.
143
Aqui pareça bastante adequada a tese de Carlos Palácio que indica que o que estamos vivendo é mais do que
um novo paradigma, mas uma verdadeira “mudança epocal”. Segundo ele “ a teologia nunca saiu do âmbito da
razão ocidental, seja da razão antiga (nos primeiros séculos e até a síntese de Santo Tomás), seja da razão
138
55
Como disse Heidegger: “Assim, a expressão ‘Deus morreu’ significa: O mundo suprasensível não tem poder eficiente. Não desperdiça nenhuma vida. A Metafísica, ou seja, para
Nietzsche, a filosofia ocidental entendida como platonismo, chegou ao fim”.144
O que vinha definhando, embora fosse envidado todo esforço para que isso não
acontecesse, era uma matriz cultural que havia sido cristalizada, uma mediação cultural
transformada em norma, tanto para a reflexão teológica, quanto para as experiências da fé.
Mesmo percebendo que a declaração nietzschiana tem um alcance ainda mais
vasto
145
, pode-se dizer que ela se volta contra um discurso teológico que identificou o Deus
cristão com uma representação cultural. Essa identificação foi tão radical que a representação
tomou o trono da divindade.
Penzo ainda afirma que: “Nietzsche não mata Deus, mas limita-se a constatar a
ausência do divino na cultura de seu tempo, acusando, pelo contrário, por essa ausência e
morte, o pensamento metafísico”.146 Essa é uma questão que a teologia ainda não enfrentou
com a profundidade necessária.147 Como disse o próprio Nietzsche: “Deus está morto; mas tal
como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada
– quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra”.148
Compreender a profundidade das implicações dessa da morte de Deus introduz a
teologia e a espiritualidade cristã numa “nova época”. Como observa Machado: “A expressão
‘morte de Deus’ é a constatação da ruptura que a modernidade introduz na história da cultura
com o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino”.149
A contribuição fundamental do ataque nietzschiano à metafísica, própria da razão
ocidental, consiste questionamento de abordagens essencialistas. Desta forma, o discurso e a
experiência humana sobre qualquer realidade, mesmo a divina, deverão assumir sua
irredutível condição existencial150.
moderna (desde o século XVI até hoje)” . Novos paradigmas ou fim de uma era teológica? In Teologia aberta
ao futuro. P. 79
144
TROTIGNON, Pierre. Op. Cit. P.83.
145
A crítica de Nietzsche não se dirige só à religião cristã com seu aparato de moralidade. Ela também se destina
à modernidade com sua idéia de progresso. Ele se volta contra toda expressão metafísica, tanto religiosa quanto
científica.
146
Id. Ibid. P.32.
147
Mesmo após do interior de um cárcere ter gritado a necessidade de superação da metafísica que transformou
Deus numa hipótese desnecessária, Bonhoeffer só seria levado a sério por um pequeno grupo de teólogos
radicais que propuseram uma teologia da morte de Deus, que hoje não é mais do que um capítulo da história da
teologia ao qual se dispensa pouca importância.
148
NIETZSCHE, Friedrich. Op. Cit. P.135.
149
MACHADO, Roberto. Zaratustra. P.48.
150
Cf. ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno. P. 130.
56
Nenhuma fala pode pretender uma identificação com a realidade que não seja
aquela que circunda quem a propõe. As narrativas estão condenadas aos limites daqueles que
as pronunciam. Nenhuma força divina potencializa qualquer discurso, conferindo-lhe alcance
universal e uma decorrente univocidade.
2 Libertação da metáfora como inauguração do Pensamento Fraco
Não há mais um centro de gravidade, como lugar estável, seguro e regulador a
partir do qual se erija a realidade. É necessário negar o jogo da metafísica que se funda e se
constrói a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranqüilizadora151.
É nesse sentido que se encontra o pensamento de Gianni Vattimo.152 Vattimo
trabalha o pensamento nietzschiano da morte de Deus como uma abertura à possibilidade de
crer em Deus, sobretudo, a partir de seu enfraquecimento ou “kenotização” . Trabalha
também o conceito de libertação da metáfora e negação das metanarrativas filosóficas ou
teológicas, apontando dessa forma novas possibilidades à teologia e à espiritualidade,
principalmente na valorização da encarnação como ponto de partida.
2.1 Libertação da metáfora
Com relação à possibilidade de crer, aberta pela declaração nietzschiana da
morte de Deus, Vattimo começa dizendo:
O anúncio de Nietzsche, segundo o qual “Deus morreu”, não é tanto, ou
principalmente, uma afirmação de ateísmo, como se ele estivesse dizendo:
Deus não existe. Uma tese do gênero, a não-existência de Deus, não poderia
ter sido professada por Nietzsche, pois do contrário a pretensa verdade
absoluta que esta encerraria ainda valeria para ele como um princípio
metafísico, como uma “estrutura” verdadeira do real que teria a mesma
função do Deus da metafísica tradicional.153
De forma muito simplificada, creio poder dizer que a época na qual
vivemos hoje, e que com justa razão chamamos pós-moderna, é aquela em
que não mais podemos pensar a realidade como uma estrutura ancorada em
151
Cf. ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno. P. 132.
Gianni Vattimo trabalha o pensamento nietzschiano em várias de suas obras: Crer em Acreditar, da editora
Relógio D’água; O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-moderna, da editora Martins
Fontes; Introdução à Nietzsche, da Editorial Presença; A Religião da Estação Liberdade. Mas é em Depois da
Cristandade onde seu pensamento volta-se fundamentalmente para a relação da teologia com o pensamento
nietzschiano, sobretudo no capítulo da morte de Deus como libertação da metáfora.
153
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. P.9.
152
57
um único fundamento, que a filosofia teria a tarefa de conhecer e a
religião, talvez, a de adorar.154
Batendo a golpes de martelo naquilo que se pretendia constituir como o
“fundamento único” para toda a realidade, Nietzsche, na perspectiva de Vattimo, está
liberando a experiência religiosa e seus discursos mais ou menos elaborados, para se
expressar a partir de outros núcleos culturais e lingüísticos. Diz ele: “Sob a luz da nossa
experiência pós-moderna, isto significa que justamente porque este Deus fundamento último,
que é a estrutura metafísica do real, não é mais sustentável, torna-se novamente possível uma
crença em Deus”.155
Contrário a toda negação que faz a metafísica quanto à legitimidade do múltiplo,
do plural, o pensamento de Vattimo possibilita encontrar no pluralismo um princípio, além de
legítimo, fecundo para a experiência da fé. Cessa-se a negação da existência como não-ser e a
tendência de afirmar estruturas essenciais.
Com base na experiência do pluralismo pós-moderno, podemos somente
pensar o ser como um evento, enquanto a verdade não mais pode ser o
reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histórica que
devemos ouvir e à qual somos chamados a dar uma resposta. Uma tal
concepção da verdade não é válida apenas para a teologia e a religião, mas,
igualmente, para grande parte das ciências hoje.156
Na relativização contida no plural está o princípio de afirmação do outro. Não
como extensão do eu e de sua verdade - isso possibilitaria o discurso unívoco (o outro seria
um eu exteriorizado) - mas como ser autônomo, histórico, cultural e religioso. Esse outro pode
não orbitar do mesmo eixo do eu. Isso quer dizer que os discursos não estão contrapostos num
binômio verdadeiro x falso, pois não há um absoluto ao qual deva corresponder o primeiro ou
negar o segundo, mas eles encerram as compreensões acerca da realidade própria de seus
horizontes culturais157.
Nessa direção afirma-se ainda a contribuição de Vattimo, quando elabora aquilo
que ele chama de libertação da metáfora.
E, pois bem, hoje parece que um dos principais efeitos filosóficos da morte
do Deus metafísico e do descrédito geral ou quase, em que caiu todo o tipo
de fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um terreno fértil
para uma possibilidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade
retorna (...) por meio da libertação da metáfora. É um pouco como se, no
final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a criação de muitos novos
deuses: na Babel do pluralismo de fins da modernidade e do fim das
154
Ibidem. P.11.
Ibidem. P.12.
156
Ibidem. P.13.
157
ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno. P. 135.
155
58
metanarrativas, se multiplicam as narrativas
hierarquia.158
sem
um centro ou uma
Vattimo observa que a libertação da metáfora é a libertação da experiência em
perspectiva plural. É a possibilidade de dizer a própria experiência não com os signos dos
dominadores, mas a partir da própria realidade. Na libertação da metáfora nega-se a
hegemonia do discurso unívoco, que se pretendia regulador de toda discursividade.
A apologética, enquanto aparelho de coerção, foi enquadrando toda discursividade,
harmonizando-a sob pena de sanções pesadíssimas, de anatematizações vexatórias e
finalmente da rotulação de heresia. Teorizando sobre essa dinâmica de controle, Vattimo
observa:
Somente ao se estabelecer uma sociedade e uma casta de dominadores
nasce a obrigação de se “mentir segundo uma regra estabelecida”, ou seja,
de se usar, como única língua “apropriada”, as metáforas dos dominadores,
fazendo com que as outras linguagens sejam degradadas a condição de
puras linguagens metafóricas, ao campo poético.159
Naturalmente, a libertação da metáfora de sua subordinação a um sentido
próprio só aconteceu em linha de princípio, pois na prática, na sociedade
pluralista, ainda estamos longe de ver realizada uma perfeita igualdade
entre as formas de vida (culturas diversas, grupos, minorias, etc., de vários
tipos) expressas pelos diferentes sistemas de metáforas.160
É exatamente no sentido de dar continuidade a esse processo que Vattimo diz estar
incompleta, que se toma aqui a questão da libertação da metáfora como “pano de fundo” para
a proposição de uma nova aproximação ao “universo” da espiritualidade e da mística num
tempo pós-moderno. Nesse “pano de fundo” inserimos outros dois importantes elementos do
pensamento de Vattimo: O conhecido Pensiero Debole e, sua interpretação sobre a Kenosis.
Porém, não se pode sair desse momento sem levar em consideração os
desdobramentos da fixação de tal pano de fundo. Como diz Vattimo:
O reconhecimento de direitos iguais para as culturas outras que no plano
político ocorreu com o final do colonialismo e no plano teórico com a
dissolução das “metanarrativas” eurocêntricas, no caso das Igrejas cristãs
exige o abandono dos comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão
de levar ao mundo pagão a verdade única. O reconhecimento da verdade
das outras religiões... requer um esforço intensificado para desenvolver a
leitura espiritual da Bíblia e também de tantos dogmas da tradição
eclesiástica, de maneira a que se possa colocar em evidência o cerne da
revelação ou seja, a caridade, mesmo à custa,
obviamente,
do
158
VATTIMO, Gianni. Op. Cit. P.25.
Ibidem.
160
VATTIMO, Gianni. Op. Cit. P.26.
159
59
enfraquecimento das pretensões de validade literal dos textos e de
peremptoriedade do ensinamento dogmático das igrejas.161
2.2 Pensamento fraco
A proposta teórica de Vattimo quanto ao “Pensiero Debole”, procura uma
interpretação do mundo pós-moderno, nas formas de secularização, na evolução dos regimes
democráticos, o pluralismo e a tolerância. Fortemente marcado por sua formação religiosa, no
seu livro Credere di credere reivindicou seu próprio pensamento, que qualifica de “filosofia
cristã para a pós-modernidade”162. Neste mesmo livro, quando fala do pensamento fraco
afirma o seguinte:
“Pensamento débil” (...) significa não tanto, ou não essencialmente, uma
idéia do pensamento mais consciente dos seus limites, que abandona as
pretensões das grandes visões metafísicas globalizantes, etc.; mas sobretudo
uma teoria do debilitamento como traça constitutivo do ser na época do fim
da metafísica163.
Na introdução do livro Il Pensiero Debole, VATTIMO descreve da seguinte forma
sua tese acerca do pensamento fraco:
A expressão “pensamento débil” constitui, sem nenhuma dúvida, uma
metáfora e um certo paradoxo. Porém em nenhum caso poderá transformarse na sigla emblemática de uma nova filosofia. Se trata de um maneira de
falar provisória, e inclusive, talvez, contraditória, porém que assinala um
caminho, uma direção possível: uma “lanterna” que se separa do que segue
a razão-domínio – traduzida e camuflada de mil modos diversos - , porém
sabendo que ao mesmo tempo que um adeus definitivo a essa razão é
absolutamente impossível164.
Seu pensamento, portanto, se centra numa revisão do papel da filosofia em nossa
sociedade e a transformação da capacidade do pensar e das funções e efeitos sociais desse
pensamento nas práticas cotidianas.
Mas talvez isso também seja, ademais de um procedimento tradicional do
discurso filosófico (...), um modo, mesmo que “fraco”, de vivenciar a
verdade, não como objeto de que nos apropriamos e que transmitimos, mas
como horizonte e pano de fundo no qual, discretamente, nos movemos165.
161
Id. Ibid. P.64.
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Editora Relógia D’água.
163
Ibidem. p. 25.
164
VATTIMO, Gianni. El Pensamiento Débil. P. 16.
165
VATTIMO, Gianni. O Fim da Metafísica.. p. xx.
162
60
O “pensamento fraco”, portanto, conduz o discurso sobre a realidade, de uma fala
unívoca, que fundada sobre a metafísica pode reclamar extensão e profundidade universais, a
uma forma fraca de “experimentar” a realidade, onde história e cultura situam todo discurso,
impedindo-o de qualquer pretensão de falar para além do próprio horizonte. Há, portanto, um
deslocamento de uma matriz metafísica geradora de um pensamento forte, a uma matriz
hermenêutica geradora do pensamento fraco.
Numa realidade complexa, onde se reconhece a diversidade em todos seus matizes,
não se deve mais evocar um pensamento forte, que baseado num fundamento último e
imutável, exclui a diferença identificando-a como erro. Essa nova sociedade pós-moderna é,
conseqüentemente, menos dogmática, conhecedora da diversidade e participante de uma nova
cultura da tolerância. E antecipando essa nova sociedade, quando Nietzsche fala da morte de
Deus, está falando do fim da metafísica, está intuindo o fim do pensamento forte
Esse caminho do “pensamento fraco” pelas sendas da hermenêutica é descrito por
Vattimo nos seguintes termos:
a) (...) O conhecimento é sempre interpretação e nada mais que isso166.
b) A interpretação é o único fato de que podemos falar (...) Na interpretação
dá-se o mundo, não há apenas imagens “subjetivas”. Mas o ser (a realidade
ôntica) das coisas é inseparável do ser-aqui homem167.
c) (...) A interpretação, quanto mais queremos captá-la em sua autenticidade
, mais ele se revela como eventual, histórica168.
d) Se mesmo o fato de que não existem fatos, apenas interpretações é –
como Nietzsche lucidamente reconheceu – uma interpretação, ela só poderá
se realizar como resposta interessada a uma situação histórica
determinada169.
Se assim os “fatos” revelam que não são mais do que interpretações, por
outro lado a interpretação se apresenta, ela mesma, como o fato: a
hermenêutica não é uma filosofia, mas a enunciação da própria existência
histórica na época do fim da metafísica170.
A novidade apresentada por Vattimo, no que diz respeito ao tema da teologia e da
espiritualidade, é que ele percebe que esse movimento de enfraquecimento do pensamento
tem suas raízes no próprio cristianismo, sendo mesmo o cerne da mensagem cristã.
O cristianismo introduz o princípio da interioridade, com base no qual a
realidade “objetiva” perderá pouco a pouco o seu peso determinante. A
frese de Nietzsche “não há fatos, apenas interpretações” e a ontologia
166
VATTIMO, Gianni & RORTY, Richard. O futuro da Religião. P. 64.
Ibidem.
168
Ibidem. p. 65.
169
Ibidem.
170
Ibidem.
167
61
hermenêutica de Heidegger não farão mais do que levar tal princípio às suas
conseqüências extremas.171
Se reconhecer que o sentimento redentor da mensagem cristã desdobra-se
precisamente na dissolução das pretensões da objetividade , a Igreja poderia
finalmente sanar até mesmo o confronto entre verdade e caridade que a tem
como assediado no curso da história (...) A verdade, que segundo Jesus, nos
tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem mesmo a verdade
da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia não é
também um manual de antropologia ou de teologia. A revelação escritural
não é feita para nos fazer saber sobre o cosmo, como Deus é, quais são as
“naturezas” das coisas ou as leis da geometria – e para salvar-nos, assim,
por meio do “conhecimento” da verdade. A única verdade que as Escrituras
nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma
desmistificação – visto que não é um enunciado experimental, lógico,
metafísico, mas sim um apelo prático – é a verdade do amor, da caritas172.
O “pensamento fraco”, que opera numa época hermenêutica, pode oferecer à
teologia e à espiritualidade um retorno radical à sua condição original. Com o horizonte
marcado pela libertação da metáfora, o “pensamento fraco” oferece à experiência da fé cristã
e pesada oportunidade de recuperar sua historicidade, e com ela a única forma de ser
universal: sendo situada nas últimas conseqüências do que isso significa.
Isso coloca diante da tradição cristã um chamado a conversão, um apelo ao
abandono de estruturas epistemológicas objetivas e objetivantes, onde a experiência da fé e
esvaziada de sua fertilidade, para servir tão somente como argumento de plausibilidade diante
de uma im-possível teodicéia.
Para Vattimo, entramos em um cenário, onde a realidade é representada.
Nele vemos a marca da superação da modernidade dirigida pelas concepções unívocas dos
modelos fechados, das grandes verdades, de fundamentos consistentes, da história como
pegada unitária do acontecer. A pós-modernidade abre o caminho, segundo Vattimo, à
tolerância, à diversidade. É o passo do pensamento forte, metafísico, das cosmovisões
filosóficas totalizantes, das crenças verdadeiras, ao ‘pensamento débil' (fraco).
Nesse cenário o cristianismo identifica traços que lhe são constitutivos. Sobretudo,
identifica a gênese mesmo de todo o processo de enfraquecimento do pensamento, que não é
mais do que a história do enfraquecimento do ser que se revela no mistério cristão da
encarnação, da kenosis.
171
172
Ibidem. p. 67.
Ibidem. p. 71.
62
2.3 Espiritualidade kenótica
A kenosis é o lugar pós-moderno por excelência, tanto para a teologia, quanto para
a espiritualidade cristãs. Ela é o princípio de uma nova ontologia: de uma ontologia do
enfraquecimento. Como aponta o próprio Vattimo:
Mas terá sentido pensar a doutrina cristã da encarnação do filho de Deus
como anúncio de uma ontologia do debilitamento?173.
A encarnação , isto é, o rebaixamento de Deus ao nível do homem, aquilo
que o Novo Testamento chama de kenosis de Deus, deverá ser interpretada
como sinal de que o Deus não violento e não absoluto da época pósmetafísica tem como traço distintivo a mesma vocação para o debilitamento
de que fala a filosofia de inspiração heideggeriana174.
Secularização como facto positivo significa que a dissolução das estruturas
sagradas da sociedade cristã, a passagem a uma ética da autonomia, à
laicidade do estado, a uma literalidade menos rígida na interpretação dos
dogmas e dos preceitos, não deve ser entendida como um decréscimo ou
uma despedida do cristianismo, mas como uma realização mais plena da sua
verdade que é, recordemo-la, a kenosis, o rebaixamento de Deus, o
desmentir dos traços “naturais” da divindade175.
A encarnação de Deus é um rebaixamento, mas também uma doação de sentido à
história. O Deus que se rebaixa, quando o faz da de si a homens e mulheres que podem
encontrar em suas histórias sacralizadas, ou radicalmente dessacralizadas, a salvação que se
anuncia sentido comunicado onde parecia só haver por um lado dogmatismos, e por outro
relativismos. O Deus kenótico inaugura um sentido fundado na eventualidade do ser.
Deus encarna, isto é revela-se, num primeiro momento, na anunciação
bíblica que, no final, “dá lugar” ao pensamento pós-metafísico da
eventualidade do ser. Só na medida em que encontra a própria proveniência
neotestamentária é que esse pensamento pós-metafísico pode se configurar
como pensamento da eventualidade do ser, não reduzida à pura aceitação do
existente, ao puro relativismo histórico e cultural. Ou ainda: é o fato da
Encarnação conferir à história o sentido de uma revelação redentora, e não
somente de um confuso acúmulo de acontecimentos que perturbam e
estruturalidade pura do verdadeiro ser176.
Ao menos dois elementos podem ser inferidos da leitura que Vattimo faz da
encarnação de Cristo: o primeiro se refere a uma enorme sensibilidade à memória, sobretudo
àquela de corte marginal.
Sobre essa sensibilidade Vattimo afirma:
173
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. P. 27.
Ibidem. p. 30.
175
Ibidem. p. 39.
176
VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In A religião. P. 106.
174
63
Nas Teses de filosofia da história, Benjamin falou da “história dos
vencedores”: só do ponto de vista desses o processo histórico aparece como um
curso unitário, dotado de conseqüencialidade e racionalidade; os vencidos não
podem vê-lo assim, mesmo e sobretudo porque seus fatos e suas lutas são
voluntariamente da memória coletiva. Quem administra a história são os
vencedores, que conservam apenas o que coaduna com a imagem que dela
fazem para legitimar seu poder177.
O “pensamento fraco” permite uma nova relação com a história, percebendo-a em
sua condição plural e policêntrica. Dessa forma, tradições teológicas e espirituais perdidas nas
engrenagens excludentes do “pensamento forte”, são reabilitadas como lugares de experiência
para a fé.
E assim, o “pensamento débil” pode cercar-se de novo do passado através
daquele filtro teórico que cabe qualificar como pietas. Uma imensa
quantidade de mensagens, emitidas constantemente pela tradição, podem de
novo serem escutadas, graças a uma escuta, que conscientemente, se tem
capacitado para isso178.
O segundo elemento presente na interpretação de Vattimo acerca da kenosis é a
condição relacional necessária à eventualidade do ser. O ser não é algo última e
definitivamente dado, antes, o ser se dá como evento e relacionalidade. Aqui a teologia e a
espiritualidade encontram um dos elementos mais férteis desse solo pós-moderno.
Essa dissolução da estabilidade do ser é apenas parcial nos grandes sistemas
do historicismo metafísico do século XIX; aí, o ser não “está”, mas se torna,
de acordo com ritmos necessários e reconhecíveis, que, portanto, ainda
conservam certa estabilidade ideal. Nietzsche e Heidegger pensam-no, ao
contrário, radicalmente, como evento, sendo portanto decisivo para eles,
precisamente para falar do ser, compreender “em que ponto” nós e ele
próprio estamos. A ontologia nada mais é que interpretação da nossa
condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu “evento”, que
acontece no seu e no nosso historizar-se179.
Numa discursividade metafísica, construída sobre a lógica do “pensamento forte”,
a teologia e a espiritualidade estão presas à univocidade e impedidas de qualquer diálogo com
o cotidiano. Ao contrário, numa discursividade hermenêutica, construída sobre a diversidade
aberta do “pensamento fraco”, a teologia e a espiritualidade encontram um horizonte situado
que, embora menor, oferece todo um conjunto de elementos férteis a novas elaborações.
Quando nós pensamos que (1) o “Ser” é um evento do lógos, (2) o lógos é
diálogo, e (3) o diálogo é o momento do discurso intersubjetivo; então nossa
preocupação ontológica é a de como ser capaz de “encontrar” o Ser, não
tentar achar algo que já está lá, mas construir algo que se mantém, que
177
VATTIMO, Gianni. O fim...p.xiv-xv.
VATTIMO, Gianni. O Pensamiento Débil. P. 17.
179
VATTIMO, Gianni. O Fim da Metafísica.. p. x.
178
64
resiste ao tempo (...) o Ser não está escrito em nenhum lugar em um tipo de
estrutura chomskiana mais qualificada da linguagem, mas é apenas o
resultado do diálogo humano. Isso me parece muito mais próximo à
máxima evangélica cristã “quando dois mais de vocês estiverem juntos em
meu nome eu estarei entre vós”. Assim, é exatamente lá que Deus está
presente, mesmo Jesus diz que quando você vê uma pessoa pobre na
esquina de uma rua Deus está lá e não em lugar nenhum mais180.
Diante dessa novidade rica que a pós-modernidade oferece, vale a pena lembrar a
perspectiva colocada por NIETZSCHE diante da declaração da morte de Deus:
Ante a notícia de que o “velho Deus morreu” nos sentimos como
iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos parece
novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem
novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida
toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está
novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”181.
Refletindo a partir da morte de Deus (da metafísica, do pensamento forte) Vattimo
por fim declara: “De qualquer modo, a religião não está morta, Deus ainda está ao nosso
redor”182. Embalado por esforços “fracos”, da constatação da morte de uma tradição
epistemológica, nasce um horizonte, que mesmo sendo situado, oferece um “mar aberto” para
novas experiências.
Referências
HAMILTON, William. A morte de Deus: Introdução à teologia Radical. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1967.
LIMA VAZ Henrique C. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola,
2001.
MACHADO, Roberto. Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PENZO, Giorgio (org). Deus na Filosofia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2000.
ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-moderno: um novo lugar para a
linguagem teológica. São Paulo: Vida, 2007.
TROTIGNON, Pierre. Heidegger. Lisboa: Ed. 70, 1990.
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade, por um cristianismo não religioso.Rio de Janeiro:
Record, 2004.
VATTIMO, Gianni & RORTY, Richard. O futuro da Religião: Solidariedade , caridade e ironia. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
180
VATTIMO, Gianni & RORTY, Richard. O futuro da Religião. P. 90.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. P. 234.
182
VATTIMO, Gianni & RORTY, Richard. O futuro da Religião. P. 110.
181
65
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
VATTIMO, Gianni & ROVATTI, Píer Aldo (orgs.) O Pensamiento Débil 5 ed. Madrid: Cátedra, 206.
VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Lisboa: Relógio D’água. 1998.
66
O DISCURSO RELIGIOSO DA TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
NUMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO 183
Prof. Dr. Alex Antonio Peña-Alfaro184
RESUMO: Este artigo pretende analisar alguns aspectos da Teologia da Prosperidade, enquanto
discurso religioso. Utilizaremos a Análise Crítica do Discurso como instrumento de análise lingüística
para estudar as implicações retóricas dos usos da linguagem em contextos sociais. O problema
focalizado é o uso das estratégias de propaganda publicitária para difundir e alcançar a expansão da
Igreja Universal, no Brasil e no exterior. Tenta-se compreender o papel desempenhado pela linguagem
na eficácia das estratégias de persuasão desenvolvidas pela Igreja Universal num cenário cultural pósmoderno. Serão focalizados os usos de atos de fala: locutórios, ilocutórios e perlocutórios como
funções discursivas de propaganda e publicidade da Igreja Universal. Palavras -chave: teologia da
prosperidade; discurso religioso; propaganda.
ABSTRACT: This article analyzes some aspects of Prosperity’s Theology like religious discourse.
Will be use the Critical Analyst of Discourse like instrument of linguistics analyst in order to study the
rhetorical implications of estrategical uses of publisher propaganda for getting diffusion and expansion
of Universal Church in Brazil and abroad. Will tray to understand the role that languages play for
efficacy of strategic of persuasion uses by Universal Church over a cultural postmodern setting. Will
treat the uses of speech acts: locutories, ilocutories and perlocutories like discursive functions of
propaganda and publicity by Universal Church. Key-words: Prosperity’s Theology; religious
discourse; propaganda.
Introdução
Este artigo pretende analisar alguns aspectos do discurso religioso da Teologia da
Prosperidade, tal como é apresentada por alguns grupos religiosos caracterizados como
neopentecostais, e dentro destes, particularmente, o discurso da Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), denominação que surgiu nos anos 70, no Rio de Janeiro, sendo esta igreja
fundada por Edir Macedo e que hoje é considerada como o maior fenômeno religioso no
Brasil com ramificações em muitos paises e vários continentes.
O fenômeno religioso da Universal não será tratado aqui como um todo, mas um
aspecto fundamental: o discurso religioso, numa perspectiva lingüística, através da Análise
Crítica do Discurso (ACD), que busca compreender os usos da linguagem nos seus contextos
sociais e, sobretudo, as implicações em termos ideológicos, das relações de poder e
dominação de grupos sociais por grupos que controlam esses discursos, através do poder
econômico e dos meios de comunicação de massas, dentro de um contexto cultural pósmoderno.
183
184
Este artigo faz parte de Tese de Doutoramento em Lingüística defendida na UFPE em dez de 2005.
Professor do Depto de Psicologia da Universidade Católica de Pe. E-mail : [email protected]
67
As
grandes
transformações
socioculturais
das
sociedades
modernas
contemporâneas têm acarretado, também, mudanças na ordem do discurso. Segundo
Habermas (1984), estas mudanças discursivas refletem a colonização do mundo e da vida,
pelos sistemas do Estado e da economia. Assim, ocorre um movimento de extensão do
mercado, reconceituando suas atividades como produção e marketing de bens para
consumidores (URRY, 1987). Por um lado, isso significa que também o discurso religioso se
vê afetado por essas transformações, e seus conteúdos ideológicos não apenas refletem
valores e crenças do que se denomina “religioso”, ou da esfera da “espiritualidade”, mas
expressam também outros interesses e outros significados e sentidos. Por outro lado, o campo
religioso apresenta uma diversidade discursiva, o que configura um tipo de concorrência entre
os grupos religiosos, e uma espécie de ‘luta pelo mercado’. Não é por acaso que a utilização
dos meios de comunicação de massa tem estimulado o surgimento de grandes movimentos
religiosos- tipo pentecostal- no mundo inteiro, alterando os antigos parâmetros de difusão
religiosa conhecidos.
A principal hipótese é de que a ordem do discurso iurdiano é invadida pela
economia e o mercado, e que a IURD usa estratégias retóricas e utiliza mecanismos de
publicidade de persuasão no seu discurso religioso. Assim, ocorre manipulação retóricodiscursiva através de persuasão pelo uso de estratégias discursivas.
Num país como o Brasil, onde a população é, com freqüência, alvo de
manipulação por parte de grupos de poder, especialmente do poder econômico, conhecer as
aplicações da Teoria Crítica do Discurso, tal como defendida por autores como Fairclough,
Van Dijk e outros, é mais do que uma necessidade.
1 Pós-modernidade religiosa
As transformações sociais em curso refletem a crise do projeto da modernidade,
em que as rupturas são interpretadas como um tempo pós-moderno. Este conceito ainda está
sujeito a grandes controvérsias e não existe uma definição satisfatória para esta
nomenclatura.185
Sobre o conceito de pós-modernidade usaremos aqui a noção de que se trata de um
tempo histórico de crítica da modernidade e, ao mesmo tempo, de movimento cultural de
185
Segundo Canclini, no que se refere às sociedades latino-americanas a pós-modernidade seria um contra-senso,
na medida em que estas sociedades ainda não entraram na modernidade em termos econômicos nem culturais.
Existe modernidade como etapa histórica; modernização como processo socioeconômico; modernismo como
projeto cultural que renova as práticas simbólicas.
68
valores híbridos, segundo Canclini (1990, p. 23), que concebe o pós-moderno não como uma
etapa que substitui o mundo moderno, mas como uma forma de problematizar “os vínculos
equívocos que armou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se” (1990,
p. 28). De acordo com Hall (2000, p. 7):
As velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social
estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim
chamada crise de identidade é vista como um processo mais amplo de
mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
Segundo esse autor, o problema fundamental das transformações atuais, em escala
mundial, é que afetam, sobretudo, os indivíduos, provocando nestes “mudanças nas
identidades pessoais”, abalando a idéia que têm de si próprios como sujeitos integrados. Esta
perda do sentido de si é chamada de deslocamento ou descentramento do sujeito. Esse duplo
deslocamento — descentração dos indivíduos tanto de seu lugar, no mundo social e cultural,
quanto de si mesmos — constitui uma crise de identidade para o indivíduo “As sociedades
modernas são, portanto, sociedades de mudança constante, rápida e permanente”. (HALL,
2000, p. 9-14). Mas estas transformações não atingem apenas os indivíduos, produzem
também impacto sobre a cultura e a sociedade. O processo em andamento é denominado de
“globalização”, no entanto, este processo de mudança está presente desde as origens da
própria modernidade.
1.1 A Igreja Universal e Pós-Modernidade
Toda proposta religiosa é, em si mesma, uma certa crítica do projeto da
modernidade na sua busca de uma organização baseada na racionalidade formal e material,
um questionamento da razão. A proposta neopentecostal tenta incluir a racionalidade como
fim, nas suas práticas socio-discursivas instrumentalizadoras, e daí seu caráter híbrido e
contraditório, porque tenta conciliar o arcaico como o moderno, o exorcismo e a tecnologia.
A Universal soube traduzir como ninguém as aspirações e anseios desse período
histórico, seu sucesso é, na verdade, construído por aqueles que demandam seus serviços, sua
competência é saber administrar o “tesouro”. Este é um período histórico marcado por
necessidades específicas: saúde, prosperidade, sucesso, etc.; e pode ser traduzido como
utilitarismo, pragmatismo, individualismo, imediatismo, secularismo, materialismo.
69
Para Campos (1997) a Universal ilustraria a sobrevivência da religião no interior
de uma cultura pós-moderna. O que poderia explicar as diferenças entre o neopentecostalismo
da IURD e o pentecostalismo clássico e, principalmente, o protestantismo histórico, seria a
necessidade das pessoas de reordenar a vida numa sociedade materialista e secularizada como
a atual.
Alguns dos aspectos ou ênfases desta pós-modernidade, como movimento cultural,
podem ser relacionados: valorização da energia e potencialidade do homem individual;
globalização dos sentimentos religiosos; localização do transcendente dentro das pessoas. A
mesma opinião é apresentada por Campos (1997, p. 48). Segundo ele esta seria “uma hipótese
sedutora e polêmica e ressalta os aspectos pós-modernos desta”, relacionando-a, entre outros,
com os seguintes aspectos:
-
A vida material é manifestação do Espírito eterno.
-
Os seres humanos são de dupla natureza, material e espiritual. Os males vêm
de um Eu inferior e devem ser exorcizados pela força do Eu superior [Jesus
Cristo]. A ascensão social e a prosperidade estão ligadas à espiritualidade.
-
O sofrimento é estranho à lógica da vida e deve ser evitado, não há valor
pedagógico na doença, no mal-estar, na pobreza e na dor. (CAMPOS, 1997, p.
48).
Em relação à eliminação do sofrimento humano, cabe lembrar a Ética de Epicuro
ou Tretafármacon como “remédio para todos os males” e técnica para a “conquista da
felicidade”. A IURD recria essa antiga proposta contra os males do homem contemporâneo,
oferecendo-lhe prosperidade, cura e felicidade.
Portanto, este cenário pós-moderno é o contexto cultural e social em que se
produzem práticas discursivas ou onde se localiza a elaboração da formação discursiva
adequada aos desafios históricos atuais, como a perda de sentido e todos os problemas do
sujeito desenraizado e descentrado.
2 Publicidade, propaganda e marketing religioso
Um dos aspectos mais notáveis das sociedades contemporâneas são as profundas
transformações socioculturais em curso, graças principalmente à contribuição dos meios de
comunicação de massa e, em especial ao papel da propaganda e da publicidade, que fazem
parte do cotidiano das pessoas. Esta onipresença, em todos os âmbitos da vida, demonstra a
70
influência exercida nas relações sociais, sobretudo pela capacidade de criar, de modificar
visões sobre a realidade social e cultural.
A publicidade, a propaganda e o marketing funcionam como discursos sociais, são
práticas sociais e, lingüisticamente falando, são gêneros discursivos. Apresentam, além disso,
elementos comunicacionais, ideológicos, cognitivos, comerciais e comportamentais.
Durante a Idade Média, circulava com freqüência informação oral transmitida por
mensageiros especiais, restritos ao alto clero e aos governantes seculares, o que não impedia
que nos mercados circulassem tipos que transmitiam as últimas notícias do reino e que as
pessoas buscassem esse tipo de informação. Estes eram chamados de pregoeiros ou strillioni,
cuja atividade foi regulamentada, permanecendo durante toda a Idade Média.
2.1 Origem da propaganda
A origem da propaganda tem raízes religiosas. Com a Bula Inscrutabili Divinae,
de 22 de junho de 1622, promulgada pelo Papa Gregório XV, teve início o período
constitutivo da Congregação, com o nome de Propaganda Fide, com a finalidade de difundir a
fé católica. A palavra propaganda provém do latim propagare, “técnica do jardineiro de
cravar no solo os rebentos novos das plantas a fim de reproduzir outras novas” (BROWN,
1991, p 10).
A Congregação da Propaganda nasceu quando a Igreja Católica enfrentava
contestação por parte da Reforma Protestante e acontecia a descoberta de novas terras,
transformadas em novos campos de conversão. Portanto, a definição de propaganda é a
disseminação de idéias dentro de um plano deliberado, o que na prática significa influir nas
atitudes emotivas dos outros no sentido de aderirem ao conteúdo propagado.
O grande impulso para o desenvolvimento da propaganda ocorreu com a criação
da imprensa em 1454 — que permitiu uma grande difusão de livros e idéias — e com o
movimento de Reforma Protestante, no século seguinte. Estes dois fatores propiciaram
grandes mudanças na Europa. Além de dividir a Igreja Católica, a Reforma facilitou o acesso
à Bíblia e conseqüentemente promoveu a alfabetização; os reformadores foram responsáveis
pela introdução de sistemas educativos em consonância com as perspectivas modernas.
(BROWN, 1991).
71
2.2 Distinção entre propaganda e publicidade
Em geral, estes termos são considerados como sinônimos, não se faz nenhuma
distinção entre ambos, sendo utilizados tanto pelo público leigo quanto pelos próprios
especialistas de comunicação. Porém, existem diferenças fundamentais entre ambos os
conceitos, e isto é importante para nosso estudo. Autores como Charaudeau (1983)
consideram o termo propaganda mais abrangente que publicidade.
O primeiro está relacionado com a mensagem política, religiosa, institucional,
comercial, enquanto o segundo se restringe apenas a mensagens comerciais. A propaganda
estaria voltada para a esfera dos valores éticos e sociais, e tem como finalidade promover o
bem comum. Dirigida para uma sociedade ou comunidade em geral, esta pretende ser válida
para “nós” e é sempre mais ampla sua mensagem.
Já a publicidade comercial explora o universo particular do indivíduo, dos desejos,
suas necessidades pessoais, por isso usa a estratégia de falar para “você”, dirigindo-se ao
indivíduo de forma particular e intimista, principalmente porque seleciona seus públicos
alvos, e esta é uma das capitais distinções do discurso publicitário.
A comunicação da publicidade não tem autoridade para ordenar nada, mas usa
estratégias e recursos de sedução para manipular o público. Embora a idéia de manipular seja
considerada de forma pejorativa, deve ser lembrado que, na comunicação, existe sempre a
argumentação, no sentido de obter a adesão do receptor e se pretende conseguir algo deste,
por exemplo: fazer-crer ou fazer-fazer.
O discurso religioso hoje é apresentado à sociedade de consumo, num contexto
socio-cultural de diversidade, dentro de uma perspectiva de entretenimento e com uma forte
tendência de ser mostrado como “um espetáculo”, graças ao uso dos meios de comunicação
de massas; disto decorre a necessidade da busca de diferenciar-se dentre outros discursos e
especialmente, dos concorrentes. Neste contexto residem os riscos de manipulação e
instrumentalização da propaganda e da publicidade para outros objetivos e fins distintos
daqueles que uma instituição religiosa se propõe alcançar, no plano doutrinal e espiritual que
lhe é reservado historicamente.
2.3 Marketing e discurso religioso na Universal
Retomamos a observação de Fairclough (2001), de que as mudanças sociais são
basicamente mudanças nas práticas discursivas e que ocorre um movimento de extensão do
72
mercado a novas áreas da vida social [o que inclui necessariamente o campo religioso]
reconceituando suas atividades como produção e marketing de bens para consumidores, isto
inclui relexicalização de atividades e relações sociais.
Isto nos permite aplicar ao campo religioso relexicalização dos fiéis como
“consumidores ou clientes” e dos serviços como “produtos” Estas novas práticas discursivas
são estratégias de marketing adotadas na atividade religiosa.
O fenômeno do neopentecostalismo iurdiano ocorre dentro do desenvolvimento
histórico do protestantismo, mas, é necessário remontar às origens da Reforma protestante no
século XVI para entender o aparecimento da mercantilização, pois o fenômeno religioso é
muito anterior ao aparecimento do mercado, historicamente falando. Somente no século XVI
dar-se-ão as condições históricas para o surgimento de uma economia mercantilista.
O desenvolvimento posterior do capitalismo está vinculado ao crescimento do
protestantismo na Europa, foi este que deu sustentação ideológica e sua melhor justificativa
moral para todo o processo de ampliação do comércio, e logo da industrialização, que
transformaria o mundo num grande mercado a ser conquistado (WEBER, 1981, 1989,
1991).186
O paradoxo é que a Reforma Protestante surgiu, entre outras causas, como reação à
mercantilização das indulgências e da venda das relíquias dos santos por parte da Igreja de
Roma, e porque esta, sob sua hegemonia, ao longo da Idade Média, tinha condenado a usura e
o lucro. Os efeitos disso, no campo religioso, foram a quebra do monopólio religioso católico
e as conseqüentes guerras religiosas na Europa; e, mesmo depois da paz, inevitavelmente
ficaram a luta pelo espaço religioso e a concorrência entre igrejas, principalmente pelo
fortalecimento da racionalidade protestante, que buscaria a maior eficiência e produtividade
no seu desenvolvimento social.
A noção consagrada do conceito de marketing dada por Kotler (1980, pgs.
20,31,37,38) considera a noção de Marketing como uma atividade humana dirigida para
satisfação de necessidades e desejos através dos processos de troca. Toda organização é uma
aglutinação proposital de pessoas, materiais e instalações, procurando alcançar algum
propósito no mundo exterior. O marketing é este conjunto de conhecimentos e ferramentas
que tem por tarefa coordenar, planejar e controlar o processo de concretização desses
objetivos. Para sobreviver e ser bem sucedida, a organização deve atrair recursos suficientes e
186
Weber contribuiu para analisar o nascimento do capitalismo à luz da doutrina calvinista da predestinação e da
conseqüente interpretação do êxito material como garantia da graça divina. Antecede a Teologia da
Prosperidade, no sentido de enfatizar certos valores que se tornam operacionais através do discurso.
73
converter esses recursos em produtos, serviços e idéias, além de distribuir esses produtos a
vários públicos consumidores. Por isso o mercado, do ponto de vista da organização, é uma
arena em potencial para troca de recursos.
Podemos considerar, sem sombra de dúvida, que a Igreja Universal incorporou o
uso extensivo do marketing na sua estratégia de crescimento e expansão, visto que consegue
fazer uma ampla propaganda de “seus produtos e serviços religiosos”, como também da
própria instituição, ou melhor da “marca” Universal. Isto é muito fácil de demonstrar, basta
conferir a profissional propaganda que realiza através da televisão, rádio, jornal e todos meios
de comunicação que possui.
3 Resultados
O corpus que serviu de suporte para este trabalho é formado por uma coleção de
artigos publicados na Folha Universal, na sua versão eletrônica, e comporta uma variedade de
elementos lingüísticos como: atos de fala, argumentos, metáforas, falácias, estratégias de
persuasão. Apresentamos aqui, alguns tópicos da teoria dos Atos de fala de Austin (1990) que
ilustram o discurso religioso da Universal como estratégia de propaganda e publicidade.
A estrutura pragmática do discurso publicitário pode ser esquematizada assim
(ADAM; BONHOMME 1997, p. 33):
Ação verbal
Dimensão pragmática
Produzir uma mensagem.
Ato locucionário.
Que tenha força persuasiva.
Aponta para compra de produto [ou
serviço].
Força
ilocucionária:
explícito, diretivo mais
implícito.
Efeito perlocucionário:
Fazer- fazer.
conotativo
ou menos
Fazer-crer,
O discurso iurdiano pode ser analisado na perspectiva dos Atos de fala que
comportam:
a) Atos locutórios
São os atos proposicionais, o que é efetivamente dito pelo emissor. Neste nível
podemos indagar, numa primeira aproximação discursiva, o que diz a Universal? Fala sobre o
quê? Num sentido mais geral, fala sobre fé e religião, este é o âmbito discursivo. Num sentido
74
mais específico, afirma que pela fé podemos resolver nossos problemas de saúde, financeiros,
de emprego, de falta de amor, familiares, participando das suas reuniões. A seguir frases e
orações típicas do discurso iurdiano no jornal Folha Universal:
Quando a absorvemos (a fé) no nosso coração, nos tornamos potentes,
fortes, invencíveis e inabaláveis diante de toda e qualquer circunstância. A
fé é a certeza e o poder de Deus no nosso interior. [A fé] Faz com que nós
sejamos fortes e poderosos. A fé destrói as dúvidas. (Ed. 617, coluna do
bispo Macedo).
Então o Espírito Santo deposita a fé que vai fazê-la vencedora.
O segredo da fé é entregar-se e sacrificar-se. A fé que remove
montanhas. (Ed. 614, coluna do bispo Macedo).
Por isso ela [a fé] não pode ser teórica, mas colocada em prática [praticar a
fé]. (Ed. 633, coluna do bispo Macedo).
Resolveu usar a fé.Compreender o mecanismo da fé. (Ed. 640,
coluna reportagem BA).
Não havendo exercício da fé, fica morna. (Ed. 644, coluna do bispo
Macedo).
A situação dela e do marido começou a melhorar. Compraram um carro novo
cada, um imóvel comercial novo e um apartamento.
O meu faturamento aumentou 20 vezes (Ed. 613, RJ).
b) Atos ilocutórios
Existe uma relação direta entre atos locutórios e ilocutórios, pois estes assinalam
um valor de ação intencional àqueles. A força ilocutória de uma proposição revela-se através
da intencionalidade. A força ilocutória dos enunciados repousa no que o emissor diz e na
forma como diz; estes dois elementos são determinados pelos propósitos e intenções
comunicacionais e se conjugam dinamicamente na enunciação.
Estas estratégias são usadas na publicidade, voltadas também para as necessidades
do consumidor a quem se deseja alcançar. Isto poderia explicar a grande demanda por parte
do público. Um dos propósitos mais freqüentes neste corpus são as muitas promessas; são
feitas de forma indireta, mas a intencionalidade é de prometer resultados, para isto convida,
aconselha, ordena, determina:
Quem almeja ter uma vida completa e receber uma visão de grandeza para
seus negócios e sair da miséria precisa conhecer a Vigília dos 318.
(Ed. 617, GO, coluna reportagens).
Então o Espírito Santo deposita a fé que vai fazê-la vencedora
(Ed. 614, coluna do bispo Macedo).
75
(A fé) Faz com que nós sejamos fortes e poderosos. Quando absorvemos (a
fé) no nosso coração, nos tornamos potentes, fortes, invencíveis e
inabaláveis diante de toda e qualquer circunstância.
(Ed. 617, coluna do bispo Macedo).
Deus quer que sejamos Seus parceiros e aliados na realização dos nossos
sonhos (Ed. 633, coluna do bispo Macedo).
Podemos fazer uma breve relação de atos ilocutórios e suas intenções nos
exemplos aqui relacionados:
Aconselhar === participe você também;
Ordenar === visite a IURD.
Recomendar === faça você também;
Convidar === venha à IURD.
Prometer === você terá / irá conquistar / acontecerá.
Informar === as reuniões ocorrem no endereço... e nos dias...
Propor === se você tiver um alvo;
Garantir === Deus quer.
c) Atos perlocutórios
O esforço perlocutório geral buscado é de alcançar persuadir os receptores, o que
define da seguinte maneira: o primeiro momento é o de Fazer Crer — o receptor deve aderir e
aceitar as proposições enunciadas e depende da credibilidade que é assegurada aos
enunciados. É evidente que simples enunciados são insuficientes para persuadir alguém sobre
milagres. Aqui, entra em cena uma diversidade de recursos discursivos retóricos, que têm
como função auxiliar no momento de adesão ao enunciado: são argumentos, exemplos,
hipérboles, metáforas, estratégias de persuasão, entre outros.
O segundo momento é o de Fazer-Fazer, quando a força ilocutória dos enunciados
é reconhecida e aceita podendo assim realizar os propósitos comunicativos dos participantes.
As marcas textuais das intenções comunicativas podem ser conferidas nos atos ilocutórios.
Existe um registro onde se podem inferir as intenções ilocutórias do discurso iurdiano, onde o
Bispo Macedo ensina como pedir dinheiro:
Você tem que chegar e se impor. Tem que mostrar [ao fiel] que se quiser
ajudar amém, se não quiser ajudar Deus vai arrumar outra pessoa a ajudar.
Entendeu como é que é?
Se não quiser que se dane. Ou dá ou desce.
76
Você nunca pode ter vergonha. Peça, peça, peça. Quem quiser dá, quem não
quiser não dá. (Folha de São Paulo, 29 dez. 1995).
A seguir algumas formas discursivas que mostram, na forma de exemplos, vários
efeitos perlocutórios alcançados pelos fiéis e que são publicitados:
Lesley garante que a Vigília dos 318 ajudou-a a reconquistar tudo que havia
perdido. Hoje estou liberta do orgulho, da insônia. Não tenho mais desejo
de morrer e possuo uma confecção e uma loja. Quitei todas as dívidas,
comprei um terreno para construir uma empresa maior. Conquistei o carro
dos meus sonhos. Enfim, posso dizer que tenho uma vida abundante. (Ed.
617, GO, reportagem).
Os efeitos perlocutórios realizados por outros participantes são apresentados na
forma de exemplos, particularmente na coluna de reportagens das atividades iurdianas. Esta é
uma estratégia muito usada na propaganda publicitária, por oferecer a oportunidade de
estabelecer comparações para que o receptor possa avaliar as possibilidades de obtenção de
benefícios semelhantes aos alcançados por outros e que ele mesmo deseja ou é convidado a
ter, o propósito é de chamar a atenção sobre algo, despertar interesse:
Compraram um carro novo cada, um imóvel comercial novo e um
apartamento. O meu faturamento aumentou 20 vezes. Hoje, meu salão
recebe uma média de cem clientes por dia — comemora. Mas depois que
passou a ser fiel, participando dos propósitos, ganhou viagens para o
exterior e fez cursos na Europa. (Ed. 613, RJ, reportagem).
Um carro completo zero quilômetro, um apartamento quitado e o
pagamento de todas as suas dívidas: essas são algumas das muitas
conquistas de Ricardo Lopes Moraes. (Ed. 643, AM, reportagem).
Descobriu o segredo da prosperidade. Teve sua vida financeira totalmente
restaurada. A prosperidade é notória na minha vida. (Ed. 600, SC,
reportagem).
Esta é uma forma de apresentar os efeitos perlocutórios desejados pelo emissor. O
conteúdo comunicativo dos anúncios publicitários, de informação e persuasão, é o mesmo
destas reportagens:
A vida financeira estava totalmente destruída. Minha vida financeira foi
transformada. Hoje, minha empresa é próspera.
(Ed. 643, AM,
reportagem).
Elizabete sofria de depressão, voltou a ter prazer em viver, dedicou-se com
afinco à vida acadêmica, graduou-se em Farmácia Bioquímica pela
(UFBA), fez mestrado e doutorado em Saúde Pública na (USP), é
proprietária de um carro importado, tem um apartamento em um ótimo
bairro de Salvador e vive feliz também na vida sentimental. (Ed. 602, BA,
reportagem).
Um tópico interessante é o referente aos efeitos perlocutórios dos testemunhos dos
freqüentadores da Universal que conseguem quitar suas dívidas:
77
As dívidas de Ricardo Lopes Moraes ultrapassavam R$ 80 mil Reais.
(Ed. 643, AM, reportagem).
Carlos Calé Mathias tinha uma dívida de $ 1.500.000,00 (Um milhão e
meio de dólares). (Ed.633, PR, reportagem).
A empresária Celina Laurindo Soares, quando começou a participar dos
encontros [na IURD] tinha uma dívida de R$ 600 mil reais.
(Ed.609, RJ, reportagem).
Conclusões
O discurso religioso da Igreja Universal, do ponto de vista lingüístico, mostra uma
estrutura discursiva que busca eficácia retórica persuasiva. Este parece ser o objetivo e
intenção comunicacional deste discurso. Neste sentido usa as estratégias utilizadas pela
propaganda e a publicidade tal como veiculadas nos meios de comunicação de massas.
As analises realizadas neste trabalho dizem respeito apenas aos Atos de fala que
trata dos aspectos locutórios, ilocutórios e perlocutórios que correspondem ao que se diz,
como se diz e para que fim se diz um discurso ou fala. Com isto, podemos concluir que o
discurso religioso da Universal reproduz estratégias que visam convencer os freqüentadores
sobre a eficácia da Teologia da Prosperidade e da própria Universal, pois tenta mostrar uma
diferença de resultados práticos (prosperidade e milagres) em relação a outras igrejas.
Consideramos que esse discurso religioso, que, enfatiza a prosperidade, a cura e os
milagres, somente é possível no contexto cultural pós-moderno, em que a economia e o
mercado invadem todas as atividades humanas, transformando as práticas sociais e seus
respectivos discursos. Neste sentido, o discurso religioso confunde-se com a divulgação de
produtos e serviços que respondem aos apelos e demandas das necessidades e desejos de fiéis
transfigurados em consumidores de bens religiosos. Esta caracteristica é reforçada pelo uso
intensivo dos veículos de comunicação de massas, onde produto e meio confundem-se na
concorrência do mercado e dos anunciantes.
Outro aspecto importante desta analise diz respeito ao papel dos receptores do
discurso da prosperidade, pois em geral imagina-se que estes são meros atores passivos e que
se acredita em tudo que lhes é dito. Acontece que estes receptores também constroem os
significados, participam e desejam os resultados oferecidos. Na pós-modernidade
multiplicam-se as demandas dos indivíduos e as ofertas religiosas neopentecostais organizamse para satisfazer desejos e demandas do público: você pode! Parece ser a senha às suas
reuniões que atraem multidões de consumidores. O papel da propaganda e dos meios de
78
comunicação não pode ser desconsiderado na análise do discurso religioso, pois muito da sua
credibilidade decorre do próprio meio utilizado e ao qual o público confere suma importância.
Referências
ADAM, J. M.; BONHOMME, M. La argumentación publicitária: retórica del elogio y de la
persuasión. Madrid: Cátedra, 1997.
AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer. O que fazemos com as palavras. Porto Alegre: Artes Médicas,
1990.
BROWN, J. C. Técnicas de persuasión. Madrid: Alianza Editorial, 1991.
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio;
Universidade Metodista, 1997.
CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo,
1990.
CHARADEAU, P. Langage et discours. Paris: Hachette, 1983.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. UnB, 2001.
HABERMAS, J. A modernidade: um projeto inacabado. Revista do Pensamento Contemporâneo.
Lisboa: Editorial teorema, v. 2, nov. 1987.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.
KOTLER, P. Marketing. São Paulo: Atlas, 1980.
URRY, J. Some social and spatial aspects of services. Society and Space, n. 5, p. 5-26, 1987.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1981.
______. Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Morais, 1989.
______. Economia e sociedade. Brasilia: UnB, 1991.
Jornais citados:
Folha de S. Paulo (29.12.95);
Folha Universal Edições nºs: 600, 609, 613, 614, 617, 633, 643, 644; Colunas: do Bispo Macedo e
Reportagens nos Estados brasileiros: AM, BA, GO, PR, RJ, SC.
79
COMUNICAÇÃO E RELIGIÃO:
Os Programas Televisivos Religiosos na Sociedade do Espetáculo187
Prof. Dr. Alexandre Figueirôa Ferreira188
RESUMO: Para alcançar um novo patamar de persuasão e convencimento de seus fiéis, os grupos
religiosos consolidaram uma plataforma de ação que conta de forma sistemática com o suporte dos
veículos de comunicação audiovisual. Os programas televisivos religiosos recorrem a ferramentas
consagradas na sociedade do espetáculo e isto apresenta conseqüências nas relações sócio-culturais
com os espectadores. Nossa pesquisa, ainda em fase inicial e voltada para a produção televisiva
religiosa feita em Pernambuco, está, desta forma, investigando os modelos que vêm sendo utilizados
por estudiosos do campo religioso na relação entre linguagem, mídia e religião. Os primeiros
resultados apontam a necessidade de aprofundarmos a discussão em torno do conceito de “igreja
eletrônica” e entendermos as condições sociais de circulação de bens simbólicos relacionados com as
instituições religiosas. A conclusão básica é que a nova ambiência estabelecida pela cultura midiática
tem levado as religiões a se re-posicionarem diante dos processos comunicacionais, questão que
iremos, então, desenvolver a partir de agora. Palavras-chave: comunicação audiovisual, mídia,
religião, sociedade, espetáculo.
ABSTRACT: To achieve new levels of persuasion and knowledge of the faithful, religious groups
have set up a plan of action based on systematic use of television broadcasting. Religious TV
programs are resorting to established tools of the entertainment industry, which has important
consequences on social and cultural relationships with the viewers. Our research, still in its initial
phase, focuses on religious television production of the Pernambuco State to investigate the models
used by religions specialists in the relationship between language, media and religion. The first results
point out the need to develop further the discussion on the concept of the “electronic church” and to
understand the social conditions of the circulation of symbolic goods related to religious institutions.
The basic conclusion is that the new environment set up by the media culture has led religions to
rethink communicational processes, which is the point we will develop now. Key-words: television
broadcasting, media, religion, society, entertainment.
Introdução
A televisão brasileira conta, atualmente, com dezenas de programas religiosos
transmitidos pelas emissoras de sinal aberto e canais UHF quase inteiramente dedicados a
este segmento. Missas, cultos, pregações ocupam regularmente as grades de programação e
as instituições religiosas já adicionam a estas estratégias consagradas o uso de outras formas
de difusão baseadas em produtos audiovisuais autônomos como o DVD, o CD-ROM e
também começam a recorrer aos dispositivos das transmissões on-line via Internet. A
presença de programas religiosos na TV, portanto, faz parte do contexto social
187
Trabalho extraído do projeto de pesquisa em desenvolvimento intitulado “As Reinvenções do Discurso
Religioso nas Mídias Audiovisuais em Programas Televisivos Pernambucanos” com apoio da Universidade
Católica de Pernambuco.
188
Professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco. Rua Antonio de Castro, 61, apto. 604, Casa
Amarela, CEP52070-080, Recife-PE. E-mails: [email protected]; [email protected]
80
contemporâneo. Vive-se numa sociedade midiática, de informação, e valer-se dos recursos da
comunicação de massa para difundir idéias passa a ser uma estratégia fundamental para os
grupos religiosos.
A mídia eletrônica baseada no uso conjunto da imagem e do áudio, todavia requer
uma série de procedimentos discursivos inerentes à linguagem que lhes é peculiar, linguagem
esta que prevê padrões pré-estabelecidos adequados ao meio audiovisual e que se
consagraram enquanto formatos eficazes nos processos comunicacionais junto às audiências.
Alguns programas religiosos produzidos para a televisão ainda são precários e apresentam
pouca qualidade técnica, mas observa-se uma preocupação destas produções em se adaptar
ao veículo em que estão e, diante da concorrência entre elas e do desejo em conquistar
audiência, constata-se a busca pelo aperfeiçoamento da comunicação, quando se procura
juntar compreensão e emoção. Além disso, muitas igrejas incorporam a noção de espetáculo
no próprio templo e transformam seus cultos em verdadeiros programas de auditório.
Os estudos de mídia e religião são, dessa forma, um campo dinâmico com várias
proposições teóricas. O movimento de contra-secularização e a ressurreição do fenômeno
religioso são processos em franca evolução com impacto em todos os setores da sociedade.
As transformações das práticas religiosas podem ser claramente observadas nas
manifestações que elas vêm produzindo no campo das idéias. Para investigar as novas
questões que estão sendo colocadas no mundo contemporâneo nesse contexto é preciso
perscrutar e identificar modelos que vêm sendo utilizados por estudiosos do campo religioso
nessa perspectiva de relação entre linguagem, mídia e religião. Cotejar estes estudos
permitirão estabelecer as ferramentas e métodos, úteis e eficazes aos objetivos de se estudar
os discursos das diversas denominações religiosas em produções audiovisuais e identificar as
estratégias e operações empreendidas, pois sabemos o quanto as representações expressas nos
produtos de mídia estão conectadas à história do grupo que os produziu e isto implica na
construção de uma identidade em relação à sociedade brasileira e às referências culturais que
nela circulam.
1 Marcos iniciais
Para estudar com profundidade os programas religiosos na televisão deve-se
levar em conta diversas variáveis que envolvem uma observação e classificação sobre o
caráter desses programas, suas tendências ideológicas, o universo dos telespectadores, as
conseqüências sócio-culturais, seu espaço no contexto do cristianismo, das próprias igrejas e
81
suas relações com a sociedade, como já observava em 1984, o bacharel em Jornalismo e
Teologia Onésimo de Oliveira Cardoso, no dossiê publicado pela revista Comunicação &
Sociedade em torno do tema mídia e religião. É deste período que os estudos voltados para o
fenômeno começam a empregar o termo “Igreja Eletrônica”, tradução da nomenclatura
utilizada nos Estados Unidos (Electronic Church), país em que se observou, a partir dos anos
1960, um grande crescimento do número de programas religiosos na televisão. Muitos desses
programas, inclusive, foram largamente transmitidos no Brasil e obviamente influenciaram
diretamente a nossa produção televisiva religiosa. Grosso modo caracterizava-se como Igreja
Eletrônica os programas que eram distribuídos nacionalmente; eram apresentados por líderes
de significativo peso carismático; em que havia solicitações de recursos aos telespectadores
para sua sustentação; evidenciavam elevados custos de produção e distribuição; vendiam-se
produtos tais como livros e discos; e no qual existia um sistema de controle por telefones e
cartas dos simpatizantes, colaboradores e telespectadores em geral (CARDOSO, 1984:7).
Excluía-se da denominação
transmissões de eventos, documentários, notícias
e
pronunciamentos organizados por comunidades ou instituições religiosas.
Hugo Assman, em seu livro A Igreja Eletrônica e seu Impacto na América Latina,
embora reconheça a terminologia e sua validade com relação ao contexto norte-americano,
pondera a necessidade de se analisar o assunto sob um outro prisma caso o contexto social
seja diferente e os destinatários de tais programas outros. Assman, no entanto, já previa, uma
vez que a citada obra é de 1986, que o modelo de Igreja Eletrônica dos Estados Unidos seria
um ponto de referência para outros países, incluindo o Brasil, uma vez que a infra-estrutura
tecnológica dos centros de produção televisiva e os recursos técnicos utilizados fatalmente
teriam influência na América Latina, sem contar o fato “dos criadores de programas
religiosos para a televisão em nosso meio costumarem passar por estágios prévios nos EUA”
(ASSMAN, 1986, p.18). Como alternativa ao conceito de Igreja Eletrônica, o autor faz
alusão a outras expressões que passaram a ser cunhadas e que tentavam abranger melhor a
problemática que se apresentava. Segundo ele o conceito “devido a sua estreita vinculação à
espetacularidade televisiva por estar circulando no ‘mercado das designações’ como
evocação imagética de programas e atores televisivos, induz facilmente a uma interpretação
equivocada dos fatos” (HASSMAN, 1986, p. 16). Assman acrescenta:
Alguns autores vêem um lado positivo nessa terminologia pelo fato de ela,
apesar de ser ideológica, insinuar o manejo de técnicas publicitárias, como
de fato sucede na quase totalidade dos programas religiosos de TV. Outros
pensam que essa sugestão do modelo publicitário fica demasiado implícita
e que, por isso se necessita uma terminologia que torne manifesto o uso do
82
esquema da propaganda comercial. Mas a resistência mais forte a essa
terminologia se refere ao uso muito pouco apropriado da palavra ‘igreja’.
Temos a impressão de que essa terminologia evoca imediatamente, no
contexto latino-americano, a origem norte-americana do fenômeno ao qual
os termos aludem. Nesse sentido essa terminologia poderia estar
adquirindo para nós um elemento denunciatório que é muito menos óbvio
nos EUA (ASSMAN, 1986, p. 18,19)
Em seguida o autor enumera algumas designações que foram sendo aplicadas.
O primeiro deles é o de Religião Comercial (Commercial Religion), substituição proposta por
William F. Fore, membro do Conselho Nacional de Igrejas dos EUA, por não reconhecer que
os teleevangelistas representassem autenticamente a Igreja e pelo viés comercial
predominante nos programas por eles apresentados. Seguem-se as designações Marketing da
Fé, um conceito que, segundo Assman, seria claramente denunciatório, pois pretende mostrar
que a maioria dos programas religiosos se pauta pelo modelo publicitário; e Messianismo
Eletrônico, que, para o autor, não seria uma designação feliz por “aproximar indevidamente o
conceito bíblico de ‘messianismo’ ao de promessas espetaculares de curas, milagres e
salvação” (ASSMAN, 1986, p. 21).
As considerações feitas pelo autor, embora apresentem uma certa defasagem em
relação aos conceitos contemporâneos relacionados ao uso da televisão como meio difusor de
programas religiosos (como veremos a seguir), são procedentes. Em primeiro lugar, por nos
permitir acompanhar historicamente a evolução das formas de apropriação do nosso objeto
de pesquisa e, em seguida, por alertar e pontuar a necessidade de estabelecer e definir
claramente a obrigação de contextualização desse objeto, o que significa não simplesmente
aplicar os estudos existentes em torno do assunto, mas adequá-los a uma realidade com
diferenças e particularidades daquela em que os estudos foram inicialmente desenvolvidos.
Como afirma o próprio Assman:
Quem deseja avaliar a repercussão efetiva dos programas religiosos
eletrônicos nas sociedades latino-americanas fará bem se mantiver seu
referencial teórico o suficientemente flexível para não cair na mera
denúncia. O objetivo ou a finalidade de uma pesquisa está predeterminado
pela própria opção de um lugar epistemológico. O lugar epistemológico é
decisivo para o método e ambos incidem na determinação do objeto
específico (ASSMAN, 1986, 192).
Dessa forma ao estudarmos os programas televisivos religiosos pernambucanos,
deveremos proceder a uma série de ajustes dos referenciais teóricos existentes que permitam
analisar o uso dos meios de comunicação de massa pelas diversas denominações religiosas,
tentando evitar distorções que possam de alguma forma comprometer os resultados que
pretendemos alcançar. Assim precisamos ter claro em nossas mentes que, embora o
83
proselitismo religioso via televisão, tenha origem no contexto norte-americano, ele sofreu
adaptações para a realidade brasileira e por conseqüência isto, de alguma forma, vai
repercutir nos modelos adotados pela produção local.
2 Atualizando conceitos
O primeiro ajuste que iremos propor será, portanto, conceitual, ou seja, passados
mais de vinte anos dos estudos pioneiros dos programas religiosos no rádio e na televisão no
Brasil, é preciso averiguar de que forma devemos designar esta produção. Ao nosso ver a
produção televisiva é um dos elementos do conjunto de meios de comunicação audiovisual
definido como mídia. Assim sendo, cabe-nos perguntar se faz sentido afirmar a existência,
hoje, de uma mídia religiosa, isto é, um conjunto de práticas comunicacionais que tenham
como objeto a religião. Se adotarmos a idéia de religião como um sistema de crenças e
práticas dentro de uma tradição institucionalizada, poderemos então designar mídia religiosa
como o lugar de representações, cuja compreensão permite entender as lógicas que anima os
discursos, os símbolos e as visões de mundo de grupos religiosos. No nosso caso interessanos, sobretudo, delimitar o que doravante chamaremos de “mídia religiosa televisiva”, termo
que acreditamos manter uma prudente neutralidade ideológica e com o qual poderemos
operacionalizar nosso estudo sem cairmos em hostilidades e preconceitos contra este ou
aquele grupo religioso.
É claro que sob esta perspectiva de atualização, não podemos ignorar o fato de
estarmos atravessando uma época de grandes mudanças sociais e culturais que se
desenvolvem de forma acelerada, atribuídas, muitas vezes, ao impacto das novas tecnologias
da mídia. Manuel Castells em A Sociedade em Rede, aponta a revolução tecnológica,
centrada nas tecnologias da informação, como agente remodelador da base material da
sociedade e do surgimento de uma nova relação entre a economia, o Estado e a sociedade. As
novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais e, no
audiovisual, a multiplicação de canais de televisão com diversificação crescente é fruto do
uso das fibras óticas e da digitalização. A comunicação está, portanto, intrinsecamente
relacionada ao fenômeno da globalização e é um elemento articulador das mudanças sociais.
A comunicação é o fenômeno cultural da atualidade e como bem ressalta Joana T. Puntel em
Cultura Midiática e Igreja:
Com as novas tecnologias da comunicação, instaura-se uma nova cultura,
compreendida como um ‘modo de ser e um estilo de vida’, uma nova
84
ambiência. A evolução do conceito de cultura, portanto, deve ser
considerada contemporaneamente e entrelaçada ao movimento das
características da modernidade e pós-modernidade (PUNTEL, 2005, p.
111).
Aos cristãos, especialmente aos que se dedicam à evangelização,
apresenta-se o desafio de uma missão única e especial de enfrentar a
mudança dos paradigmas da comunicação no século XXI. São questões
que dizem respeito ao desenvolvimento dos povos e das culturas...
(PUNTEL, 2005, p. 141).
Nesta nova forma de encarar a comunicação, ressaltamos que a mídia religiosa
televisiva ocupa um espaço marcante e em franca expansão. Se antes a programação estava
restrita a horários extremos, hoje, encontra-se espalhada durante toda a programação e não
está mais restrita a horários determinados. Existem mesmo canais cuja programação é
totalmente religiosa. Estudar a mídia religiosa televisiva obriga o pesquisador a ampliar sua
observação e intensificar os detalhamentos de modo a caracterizar com precisão os objetos de
estudo. A mensagem televisiva precisa usar códigos acessíveis a toda a população e muitas
vezes é superficial no tratamento dos assuntos em face das limitações do meio, contudo
muitos aspectos precisam ser devidamente equacionados, já que as transformações
ocasionadas pelos meios de comunicação de massa no campo religioso vêm interferindo
diretamente no modus operandi dessa produção simbólica (MARTINO, 2003, p. 28).
Aqui, gostaríamos de estabelecer mais uma proposta de esboço da análise que
pretendemos desenvolver e que também implicará em atualizações conceituais em
comparação aos estudos feitos há duas décadas atrás. A inserção da programação religiosa, a
nosso ver, no que comumente designa-se como “sociedade do espetáculo” talvez mereça uma
série de considerações para apreensão correta do fenômeno.
A natureza constructa de nosso sentido do que são experiência e
conhecimento está passando por uma profunda transformação, graças à
vertiginosa aceleração das transformações tecnológicas, particularmente
após a instalação de uma mídia planetária informatizada, espetacularmente
anunciada pela cobertura que a mídia internacional, em particular a
televisão, fez da Guerra do Golfo, a partir de janeiro de 1991 (ARBEX JR.,
2001, p. 30).
A noção de espetacularização da nossa vida cotidiana potencializada pela mídia
vem sendo, portanto, alvo de inúmeros estudos realizados por pesquisadores que consideram
a transmissão de imagens pela televisão um espetáculo, cujas regras são idênticas à de um
show. Pontua-se de uma maneira geral que a televisão adquiriu o poder de definir o que será
ou não um acontecimento político, social ou cultural assim como o âmbito geográfico em que
esse acontecimento será conhecido, com este acontecimento adquirindo as características de
85
um grande show e o conseqüente enfraquecimento ou o total apagamento da fronteira entre o
real e o fictício (ARBEX JR., 2001, p. 32). Espetáculo, no sentido de acontecimento cultural,
é uma representação visual ritualizada ou previamente concebida, uma imitação ou
demonstração de arte, no sentido geral de habilidade, dirigida aos sentidos visuais e
auditivos, intentando causar a admiração de um público, de uma assistência ou comunidade
(fiéis).
Esse novo cenário obriga o crítico da cultura a lançar um olhar diferente sobre a
rede de relações estabelecidas entre meios de comunicação de massa e o conjunto das
instituições. O professor Roger Silverstone, da Universidade de Londres, defende a idéia do
estudioso “estar aberto a uma gama de diferentes possibilidades na sociologia da mídia, e ver
o processo e suas dinâmicas: indivíduos, em suas relações com a mídia, se transformando nos
espaços sociais e, também, os espaços sociais se modificando” (SILVERSTONE, 2005, p.
130). Resumindo, Silverstone defende uma dupla tarefa para entender a importância social
dos meios de comunicação na vida cotidiana: o exame dos meios de comunicação e o exame
dos vínculos entre audiência e meios no âmbito de uma teoria ampla da mediação. Ele
promulga privilegiar as práticas midiáticas e as suas conseqüências para a identidade, para a
comunidade, para a relação entre grupos minoritários e dominantes, para a capacidade de
desenvolvimento das culturas tradicionais diante de culturas da mídia e de culturas nacionais.
Estas considerações serão importantes ao nosso percurso, uma vez que ao
tratarmos exclusivamente da mídia religiosa televisiva, estaremos ao mesmo tempo
conjugando e segmentando diversas noções que se imbricam e formam um campo específico
e abrangente das relações entre os meios de comunicação de massa e seus espectadores. Um
programa televisivo religioso utiliza o poder sedutor da televisão com sua “ilusão de
cordialidade” que o veículo propicia, como observou Umberto Eco, ou seja, ao se ligar o
aparelho, uma sala é invadida por imagens, vozes e sons do mundo, criando a sensação de
participação de uma comunidade ilusória. O espectador experimenta a participação nos
eventos transmitidos, mas ao mesmo tempo, não consegue delimitar esta experiência por não
ter uma clara consciência da relação em que está inserido. Isto é, um programa religioso, se
por um lado está se dirigindo à sua comunidade de fiéis estabelecida, também está em busca
de conquistar novos adeptos à sua causa o que obriga seus produtores a mergulhar na mesma
estratégia persuasiva do meio televisivo com utilização de recursos narrativos e discursivos
capazes de permitir tal adesão. Como a relação entre mídia e espetáculo é uma situação de
comunicação reconhecida por todos os estudiosos dos fenômenos midiáticos protagonizados
pela televisão, não poderemos em nossa pesquisa passar ao largo da questão.
86
Por todas essas observações, devemos ponderar, portanto, a necessidade de
termos consciência que a análise de programas religiosos televisivos não começa e termina
com um programa determinado transmitido numa audição. Um conjunto de problemas
epistemológicos se impõe à análise. Ela não pode ficar restrita à imagem fenomenológica do
processo cênico, mas deve cobrir ainda a intencionalidade dos realizadores e o efeito junto
aos espectadores. Temos assim, pelo menos, três momentos sucessivos: a preparação do
programa; a imagem do programa difundida; e os efeitos junto aos espectadores. Sabemos
que esses momentos se imbricam e um pode esclarecer o outro de alguma forma. A
dificuldade, todavia, é, numa pesquisa como a que estamos iniciando, abordar todas estas
questões, sabendo, inclusive, que para cada instância aqui exposta, abre-se um leque
incontável de abordagens teóricas e metodológicas. Claro que não existe um modelo global
ou uma receita milagrosa adaptável a todas situações imagináveis. Assim sendo, buscaremos
desenvolver nossa pesquisa de modo a estabelecer um modelo híbrido para compreender
como as diversas influências culturais podem dar respostas claras aos problemas que vamos
nos defrontar, mesmo que isto implique em aliar conhecimentos de diversas áreas. Para nós o
importante é que essas abordagens nos possam ser úteis enquanto instrumento analítico e
também permitam ao leitor a compreensão do conteúdo de nossa análise.
Conclusões
As práticas cotidianas, bem como o estabelecimento objetivo da realidade social
passa pelos meios de comunicação. Por meio da análise da mídia religiosa televisiva
observamos como os diversos grupos religiosos apóiam-se em estratégias de modo a garantir
a sua sobrevivência enquanto tal e legitimarem-se perante a sociedade, mesmo que isto
implique na submissão incontornável aos padrões impostos pela sociedade do espetáculo que
tem como um de seus pilares a televisão. Para efetuar uma pesquisa na confluência entre
mídia e religião, se faz necessário, portanto, explorar a interconexão entre estes dois campos
e pensar como a comunicação com seus novos modos de dispor os discursos e suas novas
técnicas de difusão interfere na vida religiosa e cria um novo ambiente de percepção do
fenômeno religioso. Como em todo estudo interdisciplinar, a principal conclusão a que
chegamos é a necessidade de compreender os processos histórico, social e cultual em que se
movem os indivíduos e a sociedade, para daí implicar o nosso objeto específico de estudo
nesse contexto e então procurar entender como se dá sua circulação enquanto bem simbólico.
Para chegarmos a isto, pretendemos partir das primeiras abordagens e estudos sobre a prática
87
religiosa nos meios de comunicação de massa até chegarmos aos dias atuais e realizar nosso
estudo sobre os programas televisivos religiosos pernambucanos dialogando com as
definições mais contemporâneas em torno da questão.
Referências
ARBEX JR., José. Shownarlismo, a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.
ASSMAN, Hugo. A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1986.
BELOTTI, Karina Kosick. Mídia, Religião e História Cultural. Revista de Estudos da Religião. N°
4. São Paulo: PUCSP, 2004, pp 96-115.
CARDOSO, Onésimo de Oliveira. A igreja Eletrônica, os programas religiosos na televisão
brasileira. Comunicação & Sociedade. N° 12. São Bernardo do Campo: Metodista, 1984, pp 5-22.
CASTELLS, Manuel. The information age: economy, society and culture, I. The rise of the network
society. Oxford: Blackwell Publishers, 2001.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993.
MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação e campo
religioso. São Paulo: Paulus, 2003.
PUNTUEL, Joana T. Cultura midiática e igreja: uma nova ambiência. São Paulo: Paulinas, 2005.
SILVERSTONE, Roger. Mídia e vida cotidiana: elementos para uma teoria da mediação. Revista
Brasileira de Ciências da Comunicação. Volume XXVIII, n°2. São Paulo: Intercom, 2005, p 127137.
88
AUTO-RETRATO:
A Dimensão Psico-Religiosa a Partir da Arte
Ana Elizabeth Lisboa Nogueira Cavalcanti189
RESUMO: Trabalho teórico-vivencial, propondo-se realizar um auto retrato, enfatizando os
sentimentos/ anseios/ expressões artísticas como reflexos de uma forte subjetividade religiosa. Inclui
uma breve analise fenomenológica dos resultados de experiências plásticas que simbolizam o
encontro da arte com a religião, percorrendo caminhos em que a história pessoal/ familiar, o processo
artístico e conceitos junguianos de religião se encontram. A religião como resposta a um anseio natural
do ser humano, a resposta a uma necessidade interior de relação com o sagrado. A arte como “oração
de viver”, transforma o artista, a sociedade, transmite a iconografia dos símbolos “sagrados” e aponta
possibilidades éticas nesse pluralismo religioso e hibridismo artístico do mundo atual. Palavraschave: religião, arte, psicologia.
ABSTRACT: This paper is a theoristic-existencial one, which proposes to show a self-portrait,
emphasizing feelings/ aspirations and artistic expressions as the reflections of a strong religious
subjectivity. It includes a brief phenomenological analysis of the results of modern arts experiences
which symbolize a meeting of art with religion, following ways where the family /personal history,
artistic process and Jungians concepts of religion meet. Religion is seen as an answer to the natural
aspirations of human beings, an answer to an inner necessity in relation to that which is holy. Art as a
“living prayer” transforms the artist, society and transmits the iconography of holy symbols by
pointing to ethic possibilities in this religious pluralism and artistic hybridism in the current
world.Key-words: religion, art, psychology.
Introdução
Refletir a dimensão psico-religiosa a partir da arte não é uma tarefa fácil, ainda
mais se for considerada sua importância social e humana, envolvendo todo um universo
complexo de questões subjetivas e indagadoras. Os resultados desta reflexão certamente
poderão contribuir para que a arte seja colocada num contexto mais amplo e profundo, como
expressão do eu, do sentir, do subconsciente e do consciente, assim como instrumental de
relevância para várias ciências.
Religião, subjetividades e arte ocupam um lugar de destaque e relevância, como
expressões máximas do sentimento, reflexos do chamamento e inquietações interiores do ser
humano, propostas de reflexão e indagações, a partir de diferentes modos de ver e interpretar
o mundo real, imaginário, espiritual, fruto do pensar e agir.
No contexto religião/ subjetividades e arte faz-se então presente uma questão,
resultado da angústia do produzir, do “fazer arte”: Como se dá o encontro da religião com a
189
Artista plástica e professora do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Mestranda em Ciências da Religião na Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP), [email protected]
89
arte? Como adequar os conceitos de arte e religião aos dias atuais, tão ambíguos e com um
caráter plural?
As vivências e reminiscências de infância ficam registradas no inconsciente como
marcas indeléveis, características e intransferíveis de cada pessoa, do seu eu. Em minha
infância, fatos foram decisivos para estes registros. Nasci numa família católica. Todos os
ensinamentos religiosos foram transmitidos no devido momento, na família e no colégio em
que estudei: Maria Auxiliadora, tendo como padroeiros: Nossa Senhora Auxiliadora e Dom
Bosco. Todos os mitos, ritos e práticas religiosas foram passados dogmaticamente. Batizado,
primeira comunhão, crisma, casamento foram vivenciados no momento adequado. Minha mãe
catequista, sempre a acompanhava, com meu pai e irmãos, nas missas dominicais e em rituais
das festas católicas.
Desde pequena, eu era fascinada pelas artes de um modo geral e, nas missas e
festas de comemorações dos santos a que comparecia junto com familiares, ia ampliando o
imaginário e aprendendo a admirar as imagens dos santos nas igrejas, os objetos que eram
utilizados pelos padres nos rituais católicos. Toda plasticidade, para mim, era motivo de
admiração e “inspiração”. Como artista plástica, realizei o retrato de Cristo, de Nossa
Senhora, da ceia larga com Jesus e os discípulos, desenhei e pintei diversas igrejas de
Pernambuco, oratórios e, por fim, performances e instalações em um lugar que considero
“sagrado”: O Hospital Ulysses Pernambucano.
Reflexos de vivências de artista/ educadora e artista/ doente mental constituíram
uma realidade registrada no meu inconsciente e no consciente. Acredito no ensino da arte
para pessoas com necessidades especiais. Como também acredito na presença simultânea
artista/ doente mental. Pessoas que possuem subjetividade e singularidade.
Guattari (1992, p. 11) afirma: “Minhas atividades profissionais no campo da
psicoterapia, assim como meus engajamentos político e cultural levaram-me a enfatizar cada
vez mais a subjetividade enquanto produzida por instâncias individuais, coletivas,
institucionais”. Verifica-se, assim, que a subjetividade é importante em todas as questões da
vida.
Em 2002, escrevi, no folder de exposição para a Galeria Dumaresq, no Recife: “A
arte é a oração de minha vida”. Realizar esse cruzamento da religião, subjetividade e arte
seria percorrer caminhos, em busca de diálogos sobre diversas ciências. Acredito que tudo
fazemos com amor a partir daquilo que recebemos na vida (nossas facilidades) é uma forma
de oração. A religião seria, então, expressa no ato de distribuí-las e multiplicá-las para o
mundo.
90
Um verdadeiro resgate ao Eros, no sentido que Hildo Conte nos apresenta em seu
livro: “A vida do amor”:
Eros é o movimento de unificação, possibilita ao ser humano a criatividade,
a aventura, o risco, a conquista, o crescimento, as emoções, as paixões, a
sua elevação para níveis transcendentes de sua realidade sempre em
expansão (CONTE, 2001, p. 131).
Continua:
O Eros é a força da natureza que impulsiona a ascensão do ser humano às
dimensões transcendentes, àqueles valores que projetam a vida para a sua
perfeição maior, no bem, na verdade, na beleza, que se resume no amar e
ser amado (CONTE, 2001, p. 142).
Percebo uma iconografia do imaginário religioso na maioria da produção que
realizo, uma tentativa de congelar momentos fugidios de beleza em gestos de amor. Muitas
vezes ela se apresenta nos títulos ou nos próprios objetos. Fragmentos de história são
apanhados e acolhidos delicadamente, acasos e sincronicidades no sentido junguiano são
freqüentes, numa aparente investigação sobre o surreal e o sonho. O inconsciente é substrato
para realizações e a subjetividade ressingulariza os momentos que dão possíveis aberturas
para o pretendido ou o não pretendido. Como artista e educadora, tenho visto assim o percurso
do “trabalho”, o que dá a dignidade de se estar no mundo contemporâneo tão rico em
possibilidades.
No momento histórico que vivemos, com o tempo reduzido, “corrido”, a
delicadeza não encontra espaço, as dúvidas preenchem todas as lacunas, nas ciências, na
religião, na arte e na vida. Isto fez surgir uma geração com sentimento de culpa abstrata que
se multiplica.
Estes questionamentos motivaram meu desejo de realizar uma pesquisa sobre a
interligação da religião/ subjetividade/ arte. Uma oportunidade para refletir sobre questões
que estão silenciadas, mas se fazem presentes e inquietam a humanidade, desde sua gênese.
Analisar fenomenologicamente os resultados de uma experiência plástica que simbolize esse
encontro com a arte e a religião. Coloco-me como analisada, por ser artista e encontrar, nas
vivências plásticas, atitudes que provocam desejos de serem investigadas.
As possibilidades metodológicas seriam: uma bricolage, através da
psicologia analítica Junguiana, sobre o conceito de religião, do arquétipo do self, representado
por mandala e outros símbolos do imaginário do inconsciente coletivo; com base nos
conceitos de religião da antropóloga Leila Amaral - Nova Era.
91
1 A religião numa visão junguiana
Desde cedo a psicologia entrou em contato com a questão ciência/ religião. A
psicologia tem uma dimensão que a aproxima das ciências naturais e biológicas e outra que a
aproxima das ciências históricas e hermenêuticas.
As manifestações religiosas sempre chamaram a atenção de Carl Gustav Jung. Sua
história de vida favoreceu o encontro acadêmico e religioso. Filho de pastor protestante, tios
clérigos, seu avô professor de medicina e sua mãe filha mais nova de um vigário. Sua obra
demonstra o ambiente familiar religioso em que vivia. Jung foi cercado desde cedo por
inúmeras manifestações religiosas e simbólicas que muito lhe chamavam a atenção. A
existência humana e a dimensão psico-religiosa serviram de palco para sua percepção.
Através dessas observações e análise de todo seu entorno fértil, as práticas religiosas, ele pôde
reconhecer, como conteúdo arquétipo da alma, essas manifestações coletivas, que embasavam
as diversas religiões.
Essa aparente realidade de vida de Jung comprova o que mais tarde irá defender
em relação à mediação dos pais e familiares às práticas religiosas dos adultos. Sobre Jung,
afirma Fizzotti, 1995 (apud LIBÓRIO, 2005, p. 12): “Para ele, o arquétipo de Deus está
ligado à reativação da simbologia materna, entendida como fonte da vida, enquanto referente
ao calor e à fecundidade do útero materno”.
E continua:
Entre Freud e Jung “há um denominador comum: o conhecimento de Deus
não é imediato, mas é fruto da mediação familiar e do ambiente circunstante
que forjam a vivência religiosa do indivíduo, apesar de Jung ter uma
dimensão mais profunda (arquetípica) (FIZZOTTI, 1995 apud LIBÓRIO,
2005, p. 12).
Sobre arquétipo, Jung diz:
Do mesmo modo que os sonhos são constituídos de um material
preponderantemente coletivo, assim também na mitologia e no folclore dos
diversos povos certos temas se repetem de forma quase idêntica. A estes
temas dei o nome de arquétipos, designação com a qual indico certas formas
e imagens de natureza coletiva, que surgem por toda parte como elementos
constitutivos dos mitos e ao mesmo tempo como produtos autóctones
individuais de origem inconsciente. Os temas arquetípicos provêm,
provavelmente, daquelas criações do espírito humano transmitidas não só
por tradição e migração como também por herança. Esta última hipótese é
absolutamente necessária, pois imagens arquetípicas complexas podem ser
reproduzidas espontaneamente, sem qualquer possibilidade de tradição
direta (2007, p. 55-56).
92
Jung compreendia os termos religio e religare como tornar a ligar. Entendia a
religião com o objetivo de ligar o consciente a fatores inconscientes. Apropriou-se do termo
criado por R. Otto: numinoso.
O numinoso (R. Otto) e o sagrado representam o divino incompreensível –
ao qual se agarra uma pessoa – e, ao mesmo tempo, são revitalizados como
uma força que desperta sob a forma de confiança e pavor ( HARK, 2000, p.
107).
Jung via a religião como algo que domina o ser humano, independente de sua
vontade. Acreditava que a religião era uma atitude natural da mente e inerente à psique.
Considerava todas as religiões válidas, uma vez que todas recolhem e conservam imagens
simbólicas vindas do inconsciente. A função das religiões tem sido a de organizar os
símbolos, ritos e mitos de uma cultura, estabelecendo uma posição espiritual em face da mera
instintividade. Para o autor, o termo religião se dividia em duas possibilidades diferentes e
conciliáveis: de um lado, uma prática religiosa que seguia os dogmas de uma religião
qualquer, com um sistema fixo no qual as significações culturais se sobrepõem às
correspondências psíquicas naturais e geralmente as ocultam; de outro lado, as experiências,
através das quais o homem entra em relação com o sagrado, que provoca o sentimento do
numinoso. Para ele “... o que importa já não são os dogmas e credos, mas, sim, toda uma
atitude religiosa, que tem uma função psíquica de incalculável alcance” (JUNG, 1999, p 44).
Hark acrescenta, sobre o que pensa Jung acerca de religião:
O conceito de religião é definido por Jung não no sentido dogmático ou
teológico, mas como a experiência religiosa do divino e/ou do transpessoal.
Quando se fala aqui em religião, a idéia não é referir-se a determinado
credo ou a uma confissão, mas à ‘atitude especial de uma consciência que
foi modificada pela experiência do numinoso’ (2000, p. 107).
Em seus estudos e pesquisas, os vários sonhos fizeram com que Jung defendesse e
comprovasse a função religiosa da psique. Utilizava os termos “Deus” ou “divindades” no
contexto simbólico: “Ambos se encontram, como tais, muito além do alcance humano.
Revelam-se a nós como imagens psíquicas, isto é, como símbolos” (JUNG, 2000, p. 296). Ao
que Hark acrescenta: “Jung admite ainda que a orientação religiosa de um ser humano e sua
visão humana de mundo são essenciais para o bem-estar psíquico e o equilíbrio interior”
(2000, p. 30).
Ainda segundo Hark (2000), para Jung a religião correspondia a uma necessidade
de ajuste para o ser humano, não se define nos termos dogmáticos ou teológicos, mas como
uma experiência transpessoal do sagrado e deveria ser um “sistema psicoterapêutico”. Quando
fala em religião, Jung não se refere a um credo específico; ele vai além das confissões cristãs,
envolve figuras como Buda, Maomé ou Confúcio.
93
”A partir dos inúmeros sonhos, visões e experiências religiosas do ser humano,
Jung acredita comprovar a existência de uma função religiosa da psique” (HARK, 2000,
p.107). No pensamento de Jung a religião é de grande importância para o equilíbrio mental
das pessoas e, em momento de crise, serve para ajustar a mente. “Para Jung, pois, não é a
presença da religião que é sintoma de neurose, mas sua ausência” (PALMER, 2001, p.122).
2 A religião hoje
A religião, na contemporaneidade, tem se apresentado de forma caleidoscópica, ou
seja, com múltiplas nuances, o indivíduo é secularizado e se encontra nas diversidades de
ritos, mitos e interditos. Dessa forma, a religião traduz a complexidade e indeterminações da
sociedade, favorecendo a mixagem entre diversos elementos da tradição e os múltiplos
fenômenos ocorridos nos tempos atuais. Martelli (1995) explica o que Luckmann pensa sobre
secularização:
A secularização é o sintoma de uma mudança mais ampla do que o simples
declínio do Cristianismo tradicional: é o surgimento de uma nova forma
social de religião, que ele chama de ‘religião invisível’. Com essa
expressão, Luckmann quer sublinhar o fato de que os temas religiosos, isto
é, as definições últimas de realidade, têm origem na esfera privada, fundamse sobre emoções e sentimentos do indivíduo – portanto, são bastante
instáveis e subjetivos - e são combinados em conjuntos mais amplos pelo
próprio indivíduo, com uma atitude semelhante à brincolage ‘faça por você
mesmo’. O indivíduo elabora uma síntese de significados últimos, isto é,
religiosos, inspirando-se na oferta de bens religiosos colocados à disposição
pelas Igrejas institucionais ou pelas ideologias políticas e econômicas,
recorrendo livremente a uma espécie de supermercado (p. 303 - 304).
Pode-se considerar que, nos dias atuais, há um fenômeno, “Nova Era”, bastante
estudado. A antropóloga Leila Amaral expõe questões dessa natureza psicossocial. No plano
da cultura, aponta os elementos importantes de nossa época, o avanço tecnológico a
globalização e o surgimento de pessoas com sensibilidade, tocadas pela imaginação e fantasia.
Ela diz:
Torna-se impossível apresentar um mapeamento exaustivo da cultura
espiritual Nova Era, devido à sua dispersão territorial e, principalmente,
devido à sua característica principal: a capacidade de os centros holísticos
criarem as suas próprias ementas de eventos a partir de uma’ religiosidade
caleidoscópica’ ou um ‘sincretismo em movimento’ (AMARAL, 2000, p
15).
Em seu livro, ela enfatiza os desafios éticos nos quais o respeito às diferenças é
de suma importância e este respeito se reflete nas práticas espirituais atuais.
94
Enfim, estão sendo interpretados, no decorrer deste trabalho, os diferentes
significados que a experiência Nova Era de comunidade vem adquirindo
frente aos desafios éticos da sociedade contemporânea para definir o que
significa ‘estar junto’ ou ‘viver com’ (AMARAL, 2000, p 19).
E continua: “Nova Era é um adjetivo para práticas espirituais e religiosas
diferenciadas e em combinações variadas, independentes das definições ou inserções
religiosas de seus praticantes” (AMARAL, 2000, p. 32).
A religião, semelhante à arte contemporânea, demonstra a realidade de uma
época. Como exemplo, pode-se citar a arte e suas representações na 27ª Bienal de São Paulo,
cujo tema foi: “Como viver juntos”. A idealizadora do projeto, Lisette Lagnado (2006),
pensou em um Comitê Curatorial para essa Bienal “Como viver junto”, um título emprestado
dos cursos e seminários ministrados por Roland Barthes, auto-reflexivo para esse processo.
Como resposta a um “novo enfoque”, presente nas reflexões e atitudes nas diversas mostras
de artes da atualidade, com idéias heterogêneas, híbridas, afirmando a autonomia e
independência institucional, cultural e política neste momento de incertezas, mudanças de
paradigmas e das novas maneiras de se pensar as relações sociais .
Para compreender a subjetividade como produção e pressão da circunstância, num
viés Deleuze-guattariano pretende-se trabalhar a injunção entre uma subjetividade que é
produzida numa época, no encontro com os problemas , as matérias, os equipamentos, os
costumes etc. que nos rodeiam e constituem o movimento de singularização. Em termos
individuais, a singularização significa um momento com a vida, em que nos tornamos o outro
e sempre nós mesmos. Porque a subjetividade é permanente, está em toda parte, é fruto da
pressão provocada no sujeito a partir do entorno. Em relação aos seus conceitos, os autores
afirmam:
A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os
processos de subjetivação ou de semiotização não são centrados em agentes
individuais (ou funcionamento de instâncias intrapsíquicas, ecóicas,
microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente
descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que
podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistema
maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, etnológicos, de mídia, ou
seja, sistemas que são mais imediatamente antropológicos), quanto de
natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistema de percepção,
de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagem e de
valor, modos de memorização e de produção de idéias, sistemas de inibição
e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos e
assim por diante) (GUATTARI ; ROLNIK, 2005, p. 39).
Em relação a subjetividade e religião, os autores observam e comentam:
95
Vários fenômenos religiosos que estão ocorrendo atualmente com aquilo
que liga o povo do Afeganistão em sua luta contra o opressor soviético, ou o
que está acontecendo no Irã – não podem ser explicados unicamente em
termos ideológicos. A meu ver, trata-se de certos processos da constituição
da subjetividade coletiva, que não são resultados da somatória de
subjetividades individuais, mas sim do confronto com as maneiras com que
, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 37).
3 Relato de experiências: arte/subjetividade e religião
Falando da minha experiência individual, a mitologia pessoal vem sendo uma
constante no ato da produção plástica que realizo nesses quase 30 anos de pesquisa em arte,
com pintura, desenho, gravura, assemblages, fotografia, instalação e vídeo/documentário.
Realizo retrato, auto-retrato, oratório, paisagens oníricas, livro de artista a partir dos
fragmentos do dia, objetos encontrados, resíduos autobiográficos, acaso, sincronicidades. Sigo
a trilha do silêncio e do trabalho, segundo São João da Cruz, dividindo o tempo com a
atividade de ensino na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
No desejo de salvar a história, as experiências, e gerar conhecimento, invisto na
paixão pelos arquivo, e coleciono os fragmentos das experimentações vivenciadas.
Fui buscar os antigos trabalhos e percebi o quanto os objetos e fatos
autobiográficos estão presentes na poética, sejam eles: lençóis que pertenceram à família,
retratos de entes queridos, roupas que marcaram época, escritos em agendas, páginas de
diários, cartas recebidas e enviadas, feltros da prensa de gravura, com marcas do tempo,
tecidos de telas antigas, os primeiros desenhos, as primeiras pinturas, o registro de processos
para realização de trabalhos, sejam eles desenhos, pinturas e, atualmente, fotografia e
filmagem do processo.
“Livro de artista” (2002 – 2006), da série “Plantação e Colheita –ConSagrados e
SenSagrados” (2002). São dois livros, cujas páginas foram construídas com os convites de
exposição que colecionei durante anos. Há uma intercomunicação , com carimbo, desenho,
pintura e escritos retirados do livro: “O Teatro do Absurdo”, de Martin Esslin (1968), escrito
em 1961.
Da série “Plantação e Colheita” – “Interpelação no paraíso” (2005). Páginas
encontradas e colhidas do lixo da UFPE foram cuidadosamente trabalhadas com nanquin,
lápis e cera de abelha, a partir de três rosas recebidas no dia da morte do Papa João Paulo II,
ofertada por um jovem que assistia a missa. As rosas serviram de base para todos os desenhos
dos quatro livros de artista.
96
Ocupação e desocupação de lugares: Como sair do silêncio? Venho realizando, há
cinco anos, uma pesquisa em arte, que faz parte da Série: “Plantação e Colheita”. São livros
de artistas, pinturas, objetos, desenhos e gravuras. Abordam questões do hibridismo nas
linguagens plásticas. A série: “Plantação e Colheita” - “Estou tão feliz que estou girando,
ConSagrado e SenSagrado” é mais uma experiência processual deste trabalho que realizei no
Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, numa perspectiva de levar a arte para outros
lugares, além de museus e galerias, propondo um outro tipo de engajamento, por
envolvimento, participação e comoção. A proposta foi uma oportunidade de contribuir para
reverter a situação dos hospitais psiquiátricos como “depósitos de gente” e mostrar
possibilidades de transformação desses espaços.
As escolhas e encaminhamentos das ações
basearam-se na subjetividade.
Segundo afirma Guattari (1992, p. 17):
O que importa aqui não é unicamente o confronto com uma nova matéria de
expressão, é a constituição de complexos de subjetivação: Indivíduomáquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades
diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus
impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar.
Em outubro de 2005, na Semana do SPA da Tamarineira (Semana de Artes
Plásticas – SPA, realização anual da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife, cuja 4ª
versão foi incluída na programação do SPA Tamarineira), preparei intervenções nos espaços e
convidei dez pessoas para ajudar na sua realização: sete usuários com diagnóstico médico de
esquizofrenia, uma aluna do Curso de Artes Plásticas da UFPE, um profissional de gesso e
um profissional para realizar um vídeo das ações em processo.
As idas solitárias ao hospital, para os entendimentos prévios, “dialogar” com a
arquitetura, compreender os espaços, as pessoas, definir os materiais, os lugares que iriam ser
ocupados e desocupados, o planejamento dos materiais e o número de usuários que iriam
participar constituíram os primeiros passos.
Dessas primeiras incursões, selecionei a enfermaria D, os 27 degraus da caixa
d’água, a área onde se localiza a árvore Paraíba e uma pilha de camas que foram retiradas das
enfermarias, 4 escadas que dão acesso às enfermarias masculinas e femininas, ao portão de
entrada e ao portão da cozinha, com 7 degraus cada escada.
Cada um dos degraus foi preenchido com 1 rosa engessada, no centro. Foram
utilizados 400kg de cal, depositados no chão, numa construção exaustiva de movimentos
repetitivos.
97
O cal e o gesso têm propriedades diferentes e foram escolhidos por esse
contraponto em composição química: o gesso, pela absorção e multiplicação de impurezas, e
o cal, pela higienização.
O processo foi iniciado e concluído na enfermaria D, que se transformou num
espaço iluminado, preenchido pelo branco imaculado, com 1.000 rosas engessadas presas por
esparadrapos, em todas as paredes.
Um tapete de cal cobria o assoalho e as pessoas foram convidadas a desenhar com
os pés, ao som de uma banda, que por acaso estava tocando e avivando os sentimentos
guardados na memória, reminiscências, do tempo de infância, da adolescência, da família,
dos pais. Será desenho? Será gravura? Será arte? O que importa, diante do que vivemos?
Momentos de ressingularização: a mistura dos ditos “normais” naquele contexto
me fiz realizar um trabalho plástico em que aprendi/ensinei, numa troca, corpo a corpo,
sentindo o cheiro, os movimentos, as expressões, os medos, as experiências afetivas...
Sensações inimagináveis e indizíveis. Após dias, a enfermaria ainda se mostrava intacta, aos
cuidados dos que ali estavam. Ainda não era o momento para realizar uma tentativa de
desocupar o espaço. Mais de um mês depois, numa ida para fazer a segunda colheita das rosas
engessadas e presas nas paredes, verifiquei que eles já haviam desocupado o que sobrara,
restando as marcas nos lugares, o rastro da experiência. As rosas e suas formas, as que
sobraram, preenchem, agora, um outro lugar: estão em transformação, são acompanhadas e
cuidadas, gerando matrizes para outras impressões. A experiência teve um cunho ao mesmo
tempo efêmero e duradouro, híbrido em ação e reflexão. Fez parte da série: “Plantação e
Colheita” – “Estou Tão Feliz Que Estou Girando.” Apropriação da frase de Ana Carmem,
usuária do hospital, num momento ímpar em que nos encontramos. Sentimento de alegria,
pela realização, e tristeza, pelo vazio que deixou.
Gravura (2006), “Sem fim”. Uma série de gravuras, contendo 20 cópias dos
fósseis da rosa, sobre madeira, objeto/matriz escolhido para ser eternizado e multiplicado no
alumínio fundido.
A princípio, as matrizes foram eternizadas com cera de abelha, 18 rosas recebidas
com gestos carinhosos, que marcam momentos fugidios em sua beleza, como a flor e a
gentileza do ato. Congelar esses momentos, para que sejam multiplicados para a humanidade.
Pensar o tempo/ memória do nosso tempo.
Instalação (2006), “Três Marias”. É o desdobramento de um trabalho, as
descobertas concretas que alimentam o percurso da produção, ir além, com o mesmo assunto
e matéria, até que outras formas surjam a partir da apropriação da anterior, possibilitar o
98
movimento cíclico. Esta instalação representa a eternização de momentos vividos, retalhos da
autobiografia, comprovação do desgaste do tempo sobre a matéria. As 300 rosas que estão
expostas e formam uma mandala são “famílias” de rosas que, em sua multiplicação e
agregação, definem o individual, são impressões fundidas no alumínio, matrizes geradas de
três rosas engessadas, vestígio de vida vegetal; depois de nove meses de transformação foram
colhidas, agora são multiplicadas. Essas três rosas fizeram parte do trabalho; Da série:
“Plantação e colheita” – “Estou tão feliz que estou girando”, realizado no Hospital Ulysses
Pernambucano, na Semana de Artes Plásticas – SPA da Tamarineira 2005, em que foram
engessadas 1000 rosas. Uma semana na qual ocupei e desocupei lugares no Hospital
Psiquiátrico do Recife, da mesma forma que, agora, ocupo o espaço das rosas com outro
material, o alumínio fundido. Essa mandala pode ser vista como Jung definia:
O mandala histórico servia de símbolo para interpretar filosoficamente a natureza
da divindade ou para representá-la de forma visível, com o objetivo de adorá-la, ou como era
usado no oriente, o yantra dos exercícios de ioga. A totalidade (‘perfeição’) do círculo celeste
... Assim, o mandala desempenha o papel de ‘símbolo de conjunção’. Como a união de Deus e
do homem acha-se traduzida no símbolo de Cristo ou da cruz... (JUNG, 2007, p. 84).
Um vídeo documentário foi realizado, fez parte também daquele momento,
registrando o processo de feitura. Uma das maneiras como enxergo o mundo, como uma
infinita matriz. Sinto um grande prazer em colher, arquivar, juntar, desdobrar, transformar,
multiplicar, acompanhado de sincronicidade.
Busco, na subjetividade, caminhos de
ressingularizações e entendimentos, num diálogo entre a matéria/alma/ação. Sentidos virão a
cada tempo, a partir dos deixados como memória e na memória.
Cconclusão
Na tentativa de realizar uma leitura psico-religiosa a partir da arte, o trabalho
percorreu caminhos em que a história pessoal/ familiar, o processo artístico, e os conceitos de
religião, com base na psicologia e antropologia, segundo Jung e Leila Amaral, apontam
possibilidades de realização do pretendido.
O momento atual caracteriza-se por uma fragmentação em todas as instâncias do
conhecimento, fazendo surgir novos modos de se estar no mundo, reflexões e atitudes
variadas, escolhas múltiplas, individuais, por conta de uma pressão coletiva e, ao mesmo
tempo, interna, individual gerando possibilidades as mais diversas.
99
Sabe-se que a religião, a arte e a filosofia sempre caminharam juntas, desde os
primórdios da humanidade. Um entrelaçamento que nunca se separou. Hoje, não diferente de
antes, o ajuntamento é mais forte, aparente e flutuante. E são exatamente esses momentos de
crise de paradigmas, de buscas, que fazem aflorar a espiritualidade, amenizando as dores e
justificando o estar no mundo.
Como artista, é assim que percebo o cosmo, rico em possibilidades nas diversas
áreas que, num todo, formam um caleidoscópio de formas, cores, tonalidades e nuances
múltiplas. Tudo conjugando para um mesmo fio, o encontro com a felicidade, através do
amor, com o resgate do Eros, que foi excluído, há anos, do convívio humano.
Os movimentos das minorias tomam vulto e traçam rumos, transformando tudo ao
redor no que ainda virá, uma constante mutação, num acelerado corre-corre para
transformação.
Assim, através de Jung, pode-se encontrar respostas para questões atuais da
religião, num momento diversificado, secularizado, dessecularizado, sem verdade absoluta. É
importante, para o ajuste mental do homem, trazer para a consciência o inconsciente.
Valorizar os sentimentos que não são capazes de ser racionalizados, mas são captados pela
sensibilidade, pelos sentimentos e afetos. A arte, a religião, os sonhos e tantos outros meios
são os caminhos possíveis para a criatura humana deixar aflorar seus arquétipos e poder
perceber o quanto é importante, para o seu contexto, fazer surgir uma sociedade melhor.
A arte, como oração de vida, transforma o artista , a sociedade, faz refletir, transmite
uma aparente iconografia dos símbolos “sagrados”, apresenta formas de humanização,
denuncia a banalização do mal, inclui os excluídos, percebe a possibilidade ética no
pluralismo social. Tão bem expresso nas palavras de Jung ( 1991. p. 71):
De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a
linguagem do presente pelo artista, dando novamente a cada um a
possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de
outro modo, lhe seria negado. È aí que está o significado social da obra de
arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz
à tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da
insatisfação do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no
inconsciente aquela imagem primordial adequada para compensar de modo
mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época.
Referências
AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na nova era.
Petrópolis:Vozes, 2000.
100
CONTE, Hildo. A vida do amor – o sentido espiritual do Eros. Petrópolis: Vozes, 2001.
ECO, Umberto. Obra aberta – forma e indeterminação poéticas contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva , 1997.
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica – cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.
HARK, Helmut. Léxico dos conceitos Junguianos fundamentais – a partir dos originais de C. G.
Jung. São Paulo: Loyola, 2000.
JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes,1999.
______. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2000.
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______. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 2007.
LEGNADO, Lisett; PEDROSA, Adriano. Como viver junto. In: BIENAL DE SÃO PAULO, 27ª.
São Paulo: Fundação Bienal, 2006.
LIBÓRIO, Luiz Alencar. A existência humana e a dimensão psico-religiosa (Psicologia da
Religião). Recife: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Teologia e Ciências Humanas,
Departamento de Teologia e Ciências da Religião, Mestrado em Ciências da Religião, 2005.
MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna - entre secularização e
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PALMER, Michael. Freud e Jung – sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001.
SESSÃO TEMÁTICA: Campo Religioso brasileiro, Cultura e Sociedade.
101
LITERATURA E RELIGIÃO NA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA
Anaxsuell Fernando da Silva190
RESUMO: Fernando Pessoa traz subjacente à sua produção poética uma discussão sobre
religiosidade. Declarava-se um cristão gnóstico, entretanto, existem indícios de seu afinamento com
outras concepções religiosas, apesar de não se alinhar a nenhuma doutrina estabelecida. Sua fé pessoal
inquieta e multiforme manifestava-se através dos vários heterônimos com os quais contava a história
da sua pátria e a sua própria. Este trabalho discutirá as representações religiosas presente na obra
poética de Fernando Pessoa, que demonstra similitudes e contradições da sua concepção de sagrado e
compreensão dos fenômenos que o circundava . E, apartir desta, valendo-se de instrumentos teóricos,
possibilitar uma compreensão dos intensos fluxos entre fronteiras religiosas, delineando novas
possibilidades de espiritualidades que sobrepujem as estruturas religiosas institucionais.
ABSTRACT: Fernando Pessoa brings underlying to its poetical production a quarrel on religiosity. A
gnostic Christian declared itself, however, exists indications of its proximity with other religious
conceptions, although not to line up itself to no established doctrine. Its uneasy personal faith and
multiforms was disclosed through the several personages through which counted to the history of its
native land and its proper one. This work will argue the religious representations present in the
poetical workmanship of Fernando Pessoa, who demonstrates to simility and "contradictions" of its
sacred conception of and understanding of the phenomena that surrounded it. And, to apartir of this,
using itself theoretical instruments, to make possible an understanding of the intense flows between
religious borders, delineating new possibilities of espirituality.
Introdução
Literatura e religião mantêm vínculos estreitos, ambas estão relacionadas à crença.
O investimento individual nessas duas práticas, percebido como uma necessidade íntima,
surge da confiança e do desconhecimento coletivos de que esses objetos são portadores.
Criação e criador são, na esfera religiosa e artística, produtos e produtores pela inspiração. Os
múltiplos intercâmbios entre o glossário da arte e a linguagem sacramental atestam essa
homologia. O ponto nodal da existência (social) da literatura, como o da religião, reside,
sobretudo, na capacidade dessas práticas de se afirmarem como realidades transcendentes, isto
é, relacionadas a uma lógica que não pertence ao domínio da causalidade, do explicável.
Noutras palavras, escaparia a toda racionalidade exterior.
Tentar compreender as relações da religião e da literatura é debruçar-se sobre estes
dois sistemas de crenças, cujas lógicas próprias partilham um poder análogo, o de colocar em
ordem o mundo. Esses dois universos são geridos por uma magia coletivamente produzida,
consolidado em instituições, e por vezes erguidos em dogma. Magia reconhecida pelos
190
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail: [email protected]
102
indivíduos crentes seja no poder da literatura ou no poder da religião. Não obstantemente, a
busca da objetivação pelas ciências sociais seja mais evidente nesses dois domínios.
Para compreender tais universos não se deve cair nem em uma visão que reduz as
lógicas desses espaços aos meros interesses dos atores, nem no ponto de vista inverso,
igualmente redutor, que elimina os móveis de poder e as lutas decorrentes destes. Assim,
considerar as relações da religião e da literatura é uma tentativa desenredar as linhas de
causalidades particulares de cada campo. Estes determinam em parte as tomadas de posição,
sem esquecer que o campo literário, espaço de “mediações” das “determinações sociais que se
exercem sobre a literatura”, vê a literatura “elaborar-se aí segundo a lógica das mediações
próprias a esse espaço” (BOURDIEU, 1992; VIALA, 1988, p. 64-71).
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto demais ou
de menos, não sei se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na
inteligência, consangüinidade com o mistério das coisas, choque aos
contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, ou se há outra
significação para isso mais cômoda e feliz. Seja o que for, era melhor não
ter nascido, porque, de tão interessante que é a todos os momentos, a Vida
chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, a dar vontade de dar
gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair para fora de todas as casas, de
todas as lógicas e de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre
árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, e
tudo isso devia ser qualquer coisa de mais parecida com o que penso ou
sinto, que eu nem sei qual é, ó vida (PESSOA, 1985, p. 342).
Pouco antes da morte, a 30 de Novembro de 1935, no Hospital São Luís em
Lisboa, vítima de cirrose provocada por ingestão de bebida alcoólica, Fernando Pessoa anotou
num pedaço de papel suas últimas palavras: I Know not what tomorrow will bring191. O
sentido e a circunstância dessa frase remetem a uma de suas obsessões cognitivas, thémata: a
existência, pendor especulativo que o levou a se interessar por mediunidade, espiritismo,
astrologia, maçonaria, teosofia – esoterismo em geral.
Ao escrever carta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa deixa evidente que o
crítico deve estudar o artista exclusivamente como artista, ao adentrar no estudo do homem
não o deve fazer mais que o necessário para explicitar o artista. E, àquele autor que o fez
objeto de redução psicanalítica, acrescenta: “Se você confessadamente não tem elementos
biográficos precisos para ajuizar [...] porque se baseia na falta de elementos para formar
juízo?”. O fato é que aquele biografo, desenvolveu sua crítica a partir das teorias freudianas, e
não foi bem aceito pelo próprio Pessoa.
191
Eu não sei o que o amanhã trará
103
Ao penetrar no cerne de uma obra, o sistema interpretativo freudiano que tem
como fulcro ontológico as neuroses ou complexos vivenciados pelo artista, foi vorazmente
rebatida por Carl Gustav Jung. Desse modo, se as ciências humanas deve contribuir para o
trabalho literário, ela não deve extrair relações causais certas da obra, se assim for, toda crítica
da arte e toda estética seriam amputadas. Segundo Jung (1971, p. 39), a escola freudiana
entende que todo artista possui uma personalidade limitada, infantil e auto-erótica; esse
julgamento poderia ser validado para o artista enquanto pessoa, mas de modo algum para o
artista que há nele. O artista não é nem auto-erótico, nem hetero-erótico, nem mesmo erótico,
visto que ele habita em última instancia uma realidade viva, pessoal, inumana e até mesmo
sobre-humana. O artista é sua obra e não um ser humano.
Desse modo, não consideramos as próprias considerações de Pessoa sobre a sua
histero-neurastenia. Não a levo a sério. O Poeta é um instrumento da sua obra, ele está abaixo
dela, assim ele não é o próprio interprete, sua tarefa suprema é dá-lhe forma (Jung, Id: 40).
Afinal, o mesmo Fernando Pessoa afirmou:
Não conto em gozar a minha vida, nem em gozá-la penso. Só quero torná-la
grande, ainda que para isso tenha de ser meu corpo e a minha alma a lenha
desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
tenha de a perder como minha. Navegadores antigos tinham uma frase
gloriosa: navegar é preciso, viver não é preciso.
Para o artista, o fundamental é criar.
Nasceu em Lisboa, a 13 de junho de 1888. No largo de São Carlos, entre o teatro
do mesmo nome e a Igreja dos Mártires, no dia dedicado ao santo popular português, Santo
Antônio, que o emprestou nome, Fernando Antônio Nogueira Pessoa. Seu pai, o funcionário
público Joaquim de Seabra Pessoa que ao mesmo tempo redigia críticas musicais para o
Diário de Notícias, este morreria vítima de tuberculose pulmonar, com 43 anos de idade.
Órfão aos 5 anos de idade, Pessoa vê a sua família obrigada a leiloar os pertences e mudar de
residência. No ano seguinte, morre o seu então único irmão, Jorge (com cerca de um ano de
idade). Compôs a sua primeira quara “A Minha Querida Mamã”. Nesse período, cria seu
primeiro heterônimo, Chevalier de Pas.
Sua mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira192, desposou em segunda núpcias, o
comandante João Miguel Rosa, o então cônsul de Portugal em Durban193, o casamento se
192
D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira procedia de fidalga linhagem oriunda da Ilha Terceira e era uma
senhora de invulgares dotes intelectuais. Ela “... teve como professor de língua inglesa o próprio preceptor de
Príncipes D. Carlos e D. Afonso” (SIMOES, 1950, p. 24)
104
realizara por procuração em 30 de dezembro de 1895. No ano seguinte, em 5 de outubro 1896,
o comandante João Miguel Rosa foi nomeado cônsul interino em Durbam, mãe e filho partem
para a África do Sul em 06 de janeiro de 1896, onde era aguardada pelo seu novo marido. Lá
Fernando Pessoa viverá até à data do seu regresso definitivo a Portugal no ano de 1905.
Durante este período da sua infância e adolescência que vive neste país, recebe
educação inglesa. Pessoa estudou na escola primária Convent School que funcionava no
convento de West Street (a qual pertencia a uma congregação de freiras irlandesas). Nesta
escola católica fez a sua primeira comunhão, antes de junho de 1896, mês em que completaria
oito anos de idade (SIMÕES, 1950, p. 50). Os seus primeiros estudos e os seus primeiros
textos são feitos em inglês, idioma que nunca abandonará. Através deste trabalhará, mais
tarde, já em Lisboa como correspondente comercial e tradutor. Mesmo adotando o português
como língua dos seus escritos, continuará sempre a escrever em inglês, seja nos seus textos
críticos e notas íntimas, sejam nos seus trabalhos de tradução de poetas ingleses.
Surgem os heterônimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher. Em 1904 recebe
o Prêmio Rainha Vitória, concedido ao seu ensaio de inglês, prova de exame de admissão à
Universidade do Cabo, realizado no ano anterior. Abdica do ingresso nesta universidade e
retorna sozinho, e em definitivo, para Lisboa. Mora na casa de parentes (avó Dionísia e duas
tias) vivendo uma vida modesta e continua a escrever poesias em Inglês.
Matricula-se no Curso Superior de Letras, em Lisboa no ano de 1906, desiste no
mesmo ano. Sonhando com um novo futuro para Portugal, cria jornais panfletários, como O
Phosporo e O Iconoclasta, onde entendia ser seu dever atacar tudo. Por essa época, animou-o
o espírito nacionalista dos que se reuniam em redor do periódico A Águia.
Mais tarde, insuflado pela convivência com Mário de Sá-Carneiro, um homem
com temperamento cosmopolita, Pessoa revê o nacionalismo nos moldes pensados pelos
saudosistas do periódico mencionado; afastar-se-á dos militantes do grupo “Renascença
Portuguesa”, e conceberá outros tantos projetos editoriais, como a revista Lusitânia, ou o seu
sucedâneo, Europa.
Na companhia de amigos como Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita
Pintor, Fernando Pessoa ficará para sempre associado às novas correntes modernistas. A sua
influência na literatura portuguesa deste século é indissociável da reunião do grupo na criação
193
Durban, cidade inglesa de Natal, situada a sudoeste da África, delimitada a norte pela província portuguesa de
Moçambique e pela República do Transvaal; a oeste pela república de Estado livre de Orange (CHURCHILL,
1958, p. 297).
105
da revista Orpheu, na qual desenvolvem e expressam, de uma forma que causou escândalo,
mas também inúmeras adesões, as tendências modernistas literárias.
O isolamento e a solidão do poeta parecem ter marcado a maior parte da sua vida,
ao longo da qual, todavia, foi criando novos amigos. Desde o primeiro, aos seis anos, a que
chamou Chevalier de Pas; até os mais conhecidos, entre 1912 e 1914, a que chamou Ricardo
Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. A heteronímia é uma das facetas mais curiosas
deste poeta e, para muitos, o resultado da desmultiplicação de um pensamento e de uma
poética complexa e genial.
Avulta-nos, na leitura da vasta biografia sobre o poeta português, a desmedida
atenção com que se vem, ao longo dos anos que sucederam a sua morte, procurando enredar
de modo injustificável, os seus heterônimos. Comentando tal fato a ensaísta Lucilia Nogueira
afirma:
[...] essa ênfase absurdista tem dificultado a própria difusão da obra,
afugentando os leitores habituais da poesia. Pois o que pode atrair mais que
a beleza, encantar mais que um ritmo, arrebatar mais que um verso, essa
visão magnética de abismo e claridade? (NOGUEIRA, 2003, p. 16).
Em artigo sobre biografia histórica, Benito Schmidt (2000) trata da centralidade da
noção de contexto e das várias possibilidades de abordá-lo numa pesquisa biográfica. Defende
a existência de diversas noções de contexto e de contextualização e alerta-nos para o perigo da
perspectiva que procura “inserir o biografado em seu contexto” por entender que ela dá idéia
do contexto como algo exterior ao biografado, aparecendo como tela pronta e acabada,
bastando, “colar” o biografado nela. Para evitar este tipo de separação forçada entre o
contexto e o biografado, Schmidt sugere que os estudos deixem-se “guiar pelo indivíduo
estudado” (p. 124). Ou seja, guiar-se pelas suas experiências, relações sociais, interpretações
de mundo, posturas diante do mundo etc.
Bachelard (1968, p. 320) lembrava que racionalizar a literatura não era função da
investigação literária. Sua finalidade seria maravilhar-nos, fazendo-nos viver as grandes
imagens. A verdadeira crítica seria uma perpétua aventura do conhecimento. Dito de outra
maneira, deve-se estudar aquilo que tenha sido anteriormente sonhado; a ciência começa mais
com um devaneio do que com uma experiência, e são precisas muitas experiências para
afastar todas as brumas do sonho (BACHELARD, 1972, p. 48). No que tange à Poesia, é
indispensável a percepção de que o longo esforço para interligar e construir pensamentos, é
ineficaz: é preciso estar presente à imagem no momento da imagem (BACHELARD, 1974, p.
341).
106
Os estudos de autor facilitam significativamente o processo de circunscrição do
objeto de investigação, uma vez que o tema já é constelado pela articulação biografia-obra,
autor-leitor. Nossa tese está respaldada em argumentos de alguns pensadores com os quais
compartilhamos posições basilares. Assentimos com Umberto Eco (2005), de Obra aberta,a
idéia de que, para certos tipos de obra, o autor oferece ao leitor a oportunidade de completá-la,
de ser como que um co-autor. Octávio Paz (1992) comenta na biografia de Sor Juana Inês de
la Cruz, o pensamento de que “a vida não explica inteiramente a obra e a obra tão pouco
explica a vida”, havendo na obra algo que é criação artística e/ou literária, e que é da ordem
da novidade. E que as interpretações são sempre históricas, relativas, parciais, sustentando
que o intérprete, na leitura da obra, transpassa a própria história desta, introduzindo-a em sua
história.
Michel Foucault (2002), em O que é um autor, coopera com tal concepção, para
ele a compreensão de que a obra não se reduz ao que o autor escreveu, mas é integrada pelas
ressonâncias que foi capaz de produzir na sociedade e na cultura. No que assente sua leitora,
Vera Portocarrero (1994), segundo a comentadora, a posição de que os conjuntos de
enunciados sobre o autor ou sobre sua obra são ‘acontecimentos discursivos’, “cuja descrição
permite compreender como foi possível que um determinado enunciado aparecesse e não
outro”.
Na construção de nossa argumentação destacamos o pensamento de Gaston
Bachelard, especialmente o da vertente poética, pois, além da proximidade de sua concepção
a dos autores mencionados, ele ainda nos oferece um método de leitura de imagens pelas
próprias imagens – a ritmanálise -, no qual a biografia do autor não é tomada como elemento
primordial para a interpretação da obra, e, neste sentido, não se configurando como dimensão
explicativa das imagens literárias. Bachelard concebe a imagem literária como uma causa sem
causa, não se submetendo às servidões da significação. Embora estas idéias percorram toda
sua obra estética, é em A poética do espaço e no livro póstumo Fragmentos de uma poética
do fogo, que melhor podemos apreender este seu pensamento. Sua concepção de tempo,
desenvolvida amplamente no livro Intuição do Instante, e no artigo Instante poético e instante
metafísico, é um grande suporte para a compreensão destas idéias. Para este filósofo da
imaginação criadora, a vida não explica a obra de arte, pois “nada prepara o advento de uma
imagem poética”, nem a cultura, nem a percepção (BACHELARD, 1993). Para ele, a poesia
realiza uma ação sobre o psiquismo do criador e do leitor. Ao repercutir na alma deste há uma
identificação entre o ser do poeta e o ser do leitor. Assim, ao vivermos um poema, como autor
ou leitor, temos a experiência de sermos despertados de nossos automatismos.
107
Ao escrever sobre Fernando Pessoa, o poeta mexicano Octavio Paz declara que “os
poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Afirma ainda que, no caso de Pessoa,
“nada em sua vida é surpreendente - nada, exceto seus poemas”. Homem de vida pública
modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através da poesia, criou outras vidas,
despertando, assim, o interesse por sua própria vida tão pacata. Dessa forma, propomos a
análise da vida a partir da sua obra e das (re)significações que fazem, ou podem fazer, seus
leitores.
O desafio que sua poesia representa, para o leitor está na singularidade com que o
retira da visão estável do mundo (como é, em geral, a visão do cotidiano rotineiro), para leválo a perceber, com inquietação, uma existência-outra, ainda desconhecida, e que se pressente
abissal e decisiva. Lida, em conjunto e em confronto. Sua produção poética contraria de
imediato, a nitidez de enunciado que lhe é peculiar, se diferenciando entre si, não apenas pela
dicção poética que os individualiza, mas porque cada uma delas enuncia uma maneira distinta
de sentir e conhecer o mundo. É como se corporificando em distintas personalidades os
diferentes e conflitantes modos de sentir/conhecer o mundo e a vida, Fernando Pessoa tivesse
conseguido neutralizar os desequilíbrios e angústias que, fatalmente, apareceriam se uma só
personalidade (Fernando Pessoa ele-mesmo) vivenciasse tais conflitos. A multiplicidade de
cosmovisões é, pois, o que de imediato avulta na produção poética pessoana.
A religiosidade, o ocultismo e a compreensão da espiritualidade eram por ele
cultivadas e estavam, no fim das contas, na ante-sala das suas curiosidades. “Não procure,
nem creias: tudo é oculto” afirmou Fernando Pessoa, depois é (contra)dito por Alberto Caeiro
que afirmou "Porque o único sentido oculto das coisas / é elas não terem sentido oculto
nenhum". Sua mediunidade o levou às práticas ocultistas, à defesa da Rosa-Cruz e da
maçonaria, à astrologia, à numerologia. Um intelectualista do tipo que ele era fez entrar na
construção mental o que podia caber: o inteligível e o ininteligível, o racional e o irracional, o
visível e o invisível, o claro e o misterioso, constituindo um sistema mágico nas suas
conclusões embora desprovido de comprovação objetiva. Tudo se passou como se a
subliteratura mística de onde extraía alento, ao atravessar seu cérebro privilegiado, saísse do
outro lado filtrada e rarefeita do ponto de vista religioso.
Fernando Pessoa é poeta. Não se fecha ao restrito território dos jogos de palavra e
dos símbolos. Como poeta, possui uma competência total, complexa, multidimensional que
concerne à humanidade e à religião. Sua mensagem religiosa implica ultrapassar o religioso,
não se submetendo a organizações e ou instituições religiosas. Nossos viciados esquemas
108
interpretativos têm reduzido, e sucessivamente fragmentado as análises de sua poesia. A
questão religiosa dentro da obra pessoana tem sido pouco discutida. E, quando feita, muitos
dos comentadores desconsideram a possibilidade de uma expressão religiosa plural,
multidimensional. O poeta português é sempre reduzido numa expressão religiosa única, seja
ela, o catolicismo, esoterismo, ceticismo, a maçonaria ou qualquer outra, mas sempre
recebendo um tratamento monolítico, unilateral.
No que tange à visão da religiosidade nos principais personagens existe uma
distinção externa evidente e uma possível pluralidade interna. Esse posicionamento permite a
Pessoa expor as suas especulações filosóficas usando vozes diferentes.
Alberto Caeiro com uma linguagem simples e vocabulário limitado de um poeta
camponês autodidata aproxima-se da atitude zen-budista de pensar para não pensar, desejar
não desejar. Caeiro coloca-se, portanto, como combatente do misticismo, rejeita o desejo de
perscrutar o mistério por trás de todas as coisas, busca vê-las como elas são, aproximando-se
assim de uma abordagem fenomenológica. Tentando afastar-se da reflexão acerca da essência
de Deus, escreve um poema ousado (Guardador de rebanhos, poema VIII) em que apresenta
um menino Jesus humano, ousado, travesso e alegre, opondo-se à visão tradicional inerente à
Igreja194.
Discípulo de Caeiro, Ricardo Reis era um erudito, que insistia na defesa dos
valores tradicionais. Seus poemas são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico
cantado pelos gregos, que recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Para Reis os
deuses estão acima de tudo e controla o destino dos homens.
Acima da verdade estão os deuses.
Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles sabem
Que há no Universo
Em uma de suas odes, Reis contrapõe-se a visão hegemônica estabelecida e
disseminada pela Igreja, e ousa descrever Cristo fora de um contexto monoteísta:
(...)
O deus Pã, o imortal.
Não matou outros deuses
O triste Deus Cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava
194
Fernando Pessoa em carta de 3 de Dezembro de 1930 a João Gaspar Simões: O que lhe poderei enviar se
quiser, é o oitavo poema de O guardador de Rebanhos, do Caeiro, ou seja, o poema sobre a vinda de Cristo à
terra, que não publiquei na Athena por o que é de ofensivo para a igreja católica: nem isso convinha à Athena,
como publicação em geral, nem estava certo, sendo católico o Rui Vaz, diretor comigo da revista e proprietário
dela.
109
(...)
Álvaro Campos, por sua vez, influenciado pelo simbolismo, escreve versos de teor
autobiográficos e muitas vezes pessimista, amargurado e insatisfeito. Avulta aos olhos sua
aproximação com a metafísica.
Quanto mais unificadamente diverso dispersadamente atento
Estiver, sentir, viver for
Mais possuirei a existência total do universo
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for
Porque seja ele que for, com certeza é tudo,
E fora d´Ele há só Ele, e tudo para ele é pouco
Os poemas que assinou com o seu próprio nome, têm forte caráter místicoocultista. Em Mensagem expõe a sua crença que o rei de Portugal D. Sebastião não havia
morrido durante uma batalha, em 1578, ele retornaria ao trono, para que seu país voltasse a
ser uma super-nação, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o
mundo:
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa, os quatro se vão
Para onde vai toda idade
Quem vem viver a verdade
Que morreu dom Sebastião?
E, mesmo dentro da produção poética de cada heterônimo é possível encontrar
manifestações do princípio hologramático (o todo está contido nas partes). Caeiro é
antimítico, objetivo e (falsamente) sereno, sem olhar nada, apenas vendo, ele trabalha com um
diapasão que impede a concessão do espírito na direção de alguma paixão momentânea,
aproximando-se do franciscanismo. Campos aproxima-se do mundo, entretanto por meio da
reflexão, e aposta alto na sensação, mas amargura-se ao perceber que distancia-se de seu
mestre (Caeiro). Reis ao aproximar-se do paganismo grego (que para pessoa representa o mais
alto nível da revolução humana) diferencia-se do paganismo, propondo um neo-paganismo.
Pessoa, ou melhor, Antônio Mora define a religião como forma rudimentar do
sentimento de beleza. Toda a arte não passa de um ritual religioso; uma época é um estado
mental e a religião é a média desse estado mental para a coletividade.
Partilhamos com Edgar Morin em reconhecer a poesia, não somente como um
gênero de expressão literária, mas como “um estado segundo do ser que advém da
participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e do amor,
que contém em si todas as expressões desse estado segundo” (2005, p. 9). Por não
condicionar-se ao mito e/ou a razão, a poesia contém em si a união, mas não a subjunção,
110
destes. Assim, o estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, para além
delas.
Para Berguer toda sociedade é um empreendimento de construção do mundo, e a
religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento. Nos poemas de Fernando Pessoa
vemos exteriorizadas concepções religiosas, do autor que valendo-se de personagens expõe
representações de sua religiosidade, que em principio pode nos parecer difusa.
Compreender que a sociedade se radica na exteriorização do homem, isto é,
que ela é um produto da atividade humana, é particularmente importante
devido ao fato de que a sociedade se afigura ao bom senso como algo
muito diferente, que independe da atividade humana (BERGUER, 1985, p.
21).
A representação simbólica do que é sociedade é também uma construção do
universo simbólico religioso, isto é a teo-sociodisséia. Desta forma compreender as
representações da religiosidade na obra de Fernando Pessoa é por conseguinte compreender as
suas representações sociais.
Para o indivíduo existir num determinado mundo religioso significa existir
no contexto social particular no seio do qual aqule mundo pode manter a
sua plausibilidade. (BERGUER, 1985).
Conclusões
Assim sendo, considerar o comprometimento religioso na poesia de Fernando
Pessoa, o estabelecimento do contorno deste comprometimento, tendo em vista as diversas
expressões da sua religiosidade, considerando as conexões entre as condições históricas gerais
e particulares bem como o acolhimento desta literatura e a relação estabelecida com os
leitores a partir das representações da sua religiosidade, é um empreendimento que objetiva
compreender não somente a literatura ou a poesia, é debruçar-se sobre a amplitude do
fenômeno religioso.
Percebemos na produção poética de Fernando Pessoa um tipo de religiosidade não
comum em sua época – entretanto bastante usual nos dias atuais – ao invés de abraçar uma
única religião opta-se pela escolha de elementos de várias religiões constituindo assim, um
tipo de personalismo religioso. Uma espécie de “religião à la carte”. Idéia esta teorizada por
Thomas Luckmann (1964), entretanto pouco discutida nos estudos do fenômeno religioso.
Para concluir, vemos que a obra de Fernando Pessoa foi desatrelada da biografia
na maior parte da crítica feita à complexa rede de seus heterônimos, cujas personalidades,
muito distintas, impossibilitaram uma associação mais estreita entre vida e obra. No âmbito
111
da temática proposta neste artigo, mostramos esse movimento de dissociação e de associação
entre as imagens nos diversos heterônimos, indicando uma pluralidade de concepções que não
faz jus à biografia do poeta, mas salienta sua riqueza criativa. Elemento este que faz aflorar
concepções religiosas ainda pouco compreendidas, ou dito de outra maneira, limitada pela
nossa leitura cartesiana do mundo.
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113
O ESPIRITISMO E A TRADIÇÃO CRISTÃ
MSc. André Andrade Pereira195
RESUMO: Esta pesquisa investigou em que medida o Espiritismo se apresenta como a continuação
histórica e profética do Cristianismo. Com base na interpretação dos livros que compõem a Doutrina
Espírita pode-se perceber a ênfase na revitalização da figura exemplar de Jesus de Nazaré, num
revigoramento da ética do amor e da fé heróica das primeiras comunidades cristãs. Com base nos
pressupostos da imortalidade da alma e da reencarnação, o Espiritismo propõe a leitura racional dos
textos evangélicos, retirando ditos e parábolas do mistério e da interpretação dogmática. Na visão
espírita, a imortalidade da alma, o corpo espiritual, a reencarnação, as potencialidades psíquicas, a
obsessão, bem como a comunicação com aqueles que morreram, eram fenômenos conhecidos por
Jesus e seus seguidores. Inclusive nos primeiros grupos cristãos, a mediunidade garantia um
arejamento das idéias, permitindo a democratização no acesso às revelações, e impedia o crescimento
da dogmática e do poder enrijecedor da instituição. Conclui-se que o Espiritismo não é só mais um
movimento neófito. Mas se apresenta como herdeiro da filosofia cristã, bem como um movimento
profético de retorno às origens. Abre-se ao diálogo com as ciências, mas retoma a centralidade do
amor-caridade, reinterpretando o pentecostes e potencializando a mediunidade como mecanismo de
instrução e consolo, no contato com a falange dos Espíritos Santos. Visa reviver o cristianismo
primitivo (buscando no amor a essência da mensagem cristã) prescindindo, num movimento
purificador, dos ritos religiosos, do sacerdócio, das hierarquias eclesiais, dos sacramentos, buscando
restabelecer a simplicidade de culto em espírito e verdade. Palavras-chave: Espiritismo, Cristianismo,
Diálogo Inter-religioso.
ABSTRACT: This research analised how Spiritism presents itself as a historical and profetic
continuance of Christianism. Based on interpretation of Spiritism Doctrine books we noted the
enphasys on revitalizing the Jesus of Nazaré exemplary figure, in a revigorating of the ethics of love
and the heroic faith from the first christian communities. Based on principles like immortality of soul
and reencarnation, Spiritism proposes a rational undesrtading of evangelical texts, taking off the
misterious of the logias and parables of Christ. In the spiritist perspective the immortality of soul, the
espiritual body, the reencarnation, the psychic potentialities, the obsession, just like the
communication with deads were known phenomenons by Jesus and his disciples. In the primitive
christian commuties, the mediunity guaranteed the process of inovation of ideas, what allowed the
democratization of the access to revelations, and obstrutd the growth of dogmas and the power of
institutions. This research cocludes spiritism is not a simple neo-age movement. It presents itself as the
inheritor of Christian Tradition, in a prpfetic movement to returning the origins. It opens to the ciences
dialogue, but rebirth the centrality of charity-love, giving a new sense to pentecostes potentializing
mediunity as an instructive and consolation mechanism, in the contact with saint spirits. Its aim is to
revive the primitive Chistianism (searching in love, the essence of Christian message) renouncing
religious cerimonies, clergyman, eclesial hierarchies, sacraments, trying to re-establish the simplicity
of cult in spirit and truth. Key-words: Spiritism, Chritianism, inter-religious dialogue.
Introdução
A virada do milênio é testemunha da proliferação de formas de religiosidade e de
denominações religiosas, em toda a extensão do globo, e pouco se pode prever sobre o futuro
do mapa religioso mundial. Quais visões do sagrado, práticas religiosas, e mesmo
denominações realmente estarão ainda à nossa disposição em cem anos? A busca incessante
195
Doutorando em Ciência da Religião pela UFJF
114
pelo espiritual, na atual Globalização, tem gerado igualmente uma tendência ao diálogo interreligioso, às trocas de experiências e novas descobertas, o que nos leva a imaginar como serão
as religiões daqui a cinqüenta, ou cem anos. Que práticas espirituais serão incorporadas, que
mudanças nas organizações, que mudança nas crenças em cada tradição religiosa ocorrerão
nesse tempo?
O Espiritismo, nesse período fértil e confuso, parece ser mais uma opção, mais
uma “seita estranha” aos olhos dos crentes das outras confissões e recebe críticas de todos os
lados. “Cientificista demais”, reclamam os cristãos, “metafísico demais”, zombam os
cientistas; “mais uma alternativa esotérica da nova era”, afirmam os especialistas em ciência
da religião, “uma fuga deste mundo para viver num mundo povoado de anjos e demônios”,
contestam os humanistas. Até hoje, no entanto, apesar dos estudos acadêmicos sobre este
grupo religioso, não se procurou entender a que se propõe, de fato, o Espiritismo. Pouca voz
foi dada aos espíritas e não se sabe como eles se inserem nos debates filosóficos e teológicos
desta era de transformação e efervescência religiosa.
Iniciado por Allan Kardec em 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”,
o movimento espírita se apresenta como a continuação histórica e profética do cristianismo.
Mais do que uma alternativa no mercado religioso, o propósito espírita é a revitalização da
figura exemplar de Jesus de Nazaré, num revigoramento da ética do amor e da fé heróica das
primeiras comunidades cristãs. O Espiritismo é um movimento de reforma do cristianismo,
dando continuidade e aprofundando o movimento reformista dos séculos XV e XVI, visando
o retorno às origens, e a purificação dos erros e incompreensões da mensagem cristã ao longo
dos séculos. Sua virtude foi abrir o Cristianismo à modernidade, incentivando o diálogo entre
ciência e fé. O futuro irá dizer também em que medida a espiritualidade mundial terá
caminhado ao ideal de “religião espiritual” e que papel a eclosão do movimento espírita terá
desempenhado nesse processo.
1 Choque de modernidade: diálogo entre ciência e fé
O espiritismo é um movimento religioso que visa resgatar a essência do
pensamento cristão, da ética do Cristo, na modernidade. Busca compreender, à luz das novas
descobertas científicas que se faziam sentir na Europa do século XIX, a mensagem de Jesus
de Nazaré. Empreende o diálogo da religião com a ciência do seu tempo uma vez que, para
Kardec, “fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da
Humanidade.” Aliás, esta convicção virou lema entre os proponentes da “fé raciocinada”.
115
O Espiritismo emerge no ambiente religioso e intelectual empreendendo uma
dupla crítica: à ciência materialista que trata o homem como corpo e descuida do seu destino
como alma, e às religiões que se recusam a atualizar suas perspectivas, não incorporando as
descobertas científicas e os avanços da filosofia, não sendo atraentes ao homem moderno.
A missão do espiritismo, neste contexto, estaria em espiritualizar a ciência e
modernizar a religião, promovendo o progresso de um homem que conhece seu destino e tem
as ferramentas para progredir intelectual e moralmente. Um campo de diálogo aberto entre a
ciência e a religião. Seu pano de fundo é a convicção da possibilidade de se encontrar a
ciência total que desvende, a um só tempo, os mistérios da natureza, os segredos do homem e
a face de Deus.
Assim, o Espiritismo é uma ciência que procura estudar os fenômenos espirituais,
tais como: a) profundidade do psiquismo humano (antecipando cronologicamente a
psicologia), desvendando para além da personalidade a matriz espiritual do ser (o que hoje
chamaríamos inconsciente, eu profundo, self); b) as causas profundas das doenças físicas e
mentais, que podem remontar ao estado espiritual da criatura (psicossomática), à herança das
vidas anteriores ou mesmo a presença de um espírito obsessor; c) a influência dos homens que
morreram na vida cotidiana196, a inspiração dos artistas e cientistas; d) o poder criador (cocriador) e plasmador da realidade pelo pensamento, a eficácia da prece como canalizador do
pensamento, etc. e) as diversificadas potencialidades psíquicas (hoje também estudadas pela
para-psicologia), que eram estudadas à época de Kardec tais como os transes sonambúlicos197,
a hipnose, os desdobramentos, visão à distância, materializações de objetos e personalidades e
os efeitos terapêuticos do magnetismo animal.
A ciência total, cujo conteúdo ainda está em aberto198, transcenderia a ciência
especializada. Sendo assim, além dos estudos dos fenômenos eminentemente espirituais, a
visão espírita da realidade poderá explicar toda ordem de fenômenos, elevando à máxima
potência o que chamamos de inter-disciplinariedade ou transdisciplinariedade. Um novo
paradigma científico, obviamente não mecanicista, mas que explica de uma só vez os porquês
da vida, dos acontecimentos individuais ou coletivos. O arcabouço deste novo paradigma
reside: (i) na essência espiritual dos homens, (ii) na onipresença do pensamento Divino
196
LE (Livro dos Espíritos) q. 459 – Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos? “Muito
mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem”.
197
Sonambulismo era a denominação para o estado de transe em que o anímico revelava conhecimentos
superiores, capaz de dar receitas médicas entre outras informações.
198
Kardec diz que a ciência espírita evolui com o tempo. Incorporando as novas descobertas substituir-se-á as
próprias afirmações revelados pelos Espíritos em seu tempo.
116
através da energia cósmica universal onde tudo está mergulhado199, (iii) na interconectividade entre tudo e todos através dos fios sutis do pensamento e (iv) na constante
evolução de todas as formas de vida através das sucessivas reencarnações do princípio
espiritual no mundo material.
Uma ciência cujas verdades serão simples, cujo conhecimento exigirá não só o
intelecto apurado, mas o pleno desenvolvimento das potencialidades latentes no homem.
Conhecer não depende só do intelecto e da habilidade lógico-racional, mas do
desenvolvimento do sentimento e da intuição, enfim do desenvolvimento espiritual do ser
humano, desenvolvimento do “ser integral”, do “ser pleno”: será preciso “ter olhos de ver, e
ouvidos de ouvir”. De acordo com o Espiritismo o conhecimento da essência de Deus só é
possível para os Espíritos mais evoluídos200. Da fase reducionista e da apropriação pelos
sentidos e da elaboração lógica pelo raciocínio, o conhecimento passará a uma fase holista201
com base na intuição.
Entre os espíritas a imagem mais popular do progresso da humanidade é a de um
pássaro que voa com as duas asas: a da inteligência e a da moral. No atual estágio humano,
dizem os espíritas, teríamos desenvolvido mais a asa do pensamento, do saber científico e
estaríamos em dívida com a asa da bondade, dos impulsos do coração. Somente o
desenvolvimento desta segunda abrirá as portas para vôos maiores em novos conhecimentos.
É comum entre os espíritas o argumento de que Deus só permitirá mais conhecimento à
humanidade quando esta se elevar moralmente, para que o homem não faça mau uso da
ciência a ponto de se destruir.
O desenvolvimento da intelectualidade é apenas a primeira fase da civilização, a
outra, que completará o progresso humano, é a conquista da maturidade moral que alcança a
plenitude na prática sincera da caridade cristã. Os Espíritos afirmam aos homens que não
poderão se dizer civilizados senão quando houverem “banido de vossa sociedade os vícios
que a desonram e quando viverdes como irmãos, praticando a caridade cristã. Até então,
sereis apenas povos esclarecidos, que só percorreram a primeira fase da civilização.”202
199
Como os peixes no oceano, estamos mergulhados no fluido cósmico universal: o oceano de Deus. Daí a
influência recíproca entre todos.
200
LE, q. 11 – Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade? “Quando pela sua perfeição,
se houver aproximado de Deus, ele o verá e compreenderá.”
201
Este termo não era utilizado por Kardec e o incorporamos com ressalvas, por falto de um melhor.
202
LE q. 793.
117
“A virtude da vossa geração é a atividade intelectual, seu vício é a indiferença
moral”
203
escrevia-se nas reuniões mediúnicas das quais participava Kardec, e os Espíritos
que se comunicavam falavam com autoridade sobre os homens, convocando-os a uma atitude
de reforma moral segundo preceitos cristãos, renovando os sentimentos, elevando-se
moralmente:
Submetei-vos ao impulso que vimos dar aos vossos Espíritos. Obedecei a
grande lei do progresso, que é a palavra da vossa geração. Infeliz do
Espírito preguiçoso, daquele que fecha o seu entendimento! (...) Mas bem
aventurados os que são mansos, porque darão ouvidos dóceis aos
ensinamentos204
Educar os homens, fazendo-os trilhar um caminho de evolução moral, assim como
a ciência tem trazido progressos no campo intelectual, passa a ser o objetivo principal do
Espiritismo. E a pedra angular deste empreendimento reside em torno da pedagogia e da
prática do amor, a ética pregada e vivida exemplarmente pelo Cristo. Tendo por base uma
filosofia da igualdade, uma vez que afirma a essência espiritual de todos os filhos do mesmo
Pai, “destruindo os preconceitos de seitas, castas e cores, o Espiritismo ensina aos homens a
grande solidariedade que os há de unir como irmãos”205
O Espiritismo convida à construção coletiva do Reino de Deus, um mundo onde a
fraternidade impera sobre o egoísmo e “a palavra amor está escrita em todas as frontes; uma
perfeita eqüidade regula as relações sociais; todos manifestam a Deus e procuram elevar-se a
Ele, seguindo as suas leis”.206
2 Herdeiro da tradição cristã: elementos de continuidade
O Espiritismo filia-se à tradição cristã e lhe dá continuidade. Mesmo que estudos
como o de Sandra Stoll207 apontem para a cristianização do espiritismo na sua vinda da França
ao Brasil, inaugurando uma espécie de Espiritismo à Brasileira, e ainda que os próprios
espíritas, em debates internos, refiram-se a um excesso de religiosismo “espiritólico”208, é
patente a cristianização do espiritismo desde a sua primeira publicação: O Livro dos Espíritos.
Já nos prolegômenos do livro, Kardec transcreve as mensagens psicografadas por diferentes
médiuns apontando-lhe a missão de divulgador da doutrina dos espíritos bem como
203
EE (Evangelho segundo o Espiritismo), capítulo XI, item 8, mensagem psicografada em Paris, 1863, ditada
pelo Espírito Lázaro. A mensagem recebeu o título de “Obediência e resignação”.
204
Ibid.
205
LE, q.799.
206
EE, III, 17, mensagem de Santo Agostinho, psicografada em Paris, 1862.
207
Espiritismo à Brasileira
208
Sincretismo entre espiritismo e catolicismo.
118
encorajando-o a perseverar na tarefa apesar das oposições que surgiriam. Assinam a
mensagem santos católicos, filósofos gregos e humanistas, como também serão esses a
participar de toda a codificação do espiritismo: “São João Evangelista, Santo Agostinho, São
Vicente de Paulo, São Luís, O Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin,
Swedenborg, etc.”209
Apesar do cuidado de Kardec em sempre ressaltar o conteúdo antes da assinatura
de qualquer psicografia, a identificação do Espírito comunicante termina por conferir
autoridade à mensagem. E o Espiritismo se ergue com base em argumentos, raciocínios e
respostas, oferecidas às indagações de Kardec, por nada menos que vultos do Cristianismo,
além de Espíritos ligados à tradição filosófica ocidental. Nessa retórica da autoridade ainda se
incluem Paulo, o apóstolo, ex-padres, e bispos católicos, além de uma série de anônimos
ligados aos diferentes grupos onde se organizavam as sessões de comunicação com os
Espíritos. Certo que não seriam aprovadas as mensagens que não passassem pelo crivo da
razão e do bom senso, esses nomes atestam, de certa forma, a legitimidade cristã do
Espiritismo. Enfim, isso queria dizer que se o Espiritismo podia ser combatido
filosoficamente, não o seria pelos cristãos.
Essa presença de espíritos ligados ao cristianismo não se restringe aos momentos
iniciais da nova doutrina. Léon Denis, operário e filósofo, um dos grandes divulgadores e
pesquisadores do final do século XIX e início do XX, relata ser orientado por, dentro outros
espíritos, Jerônimo de Praga. Eurípedes Barsanulfo de Sacramento (MG), um dos casos mais
prodigiosos de mediunidade, era auxiliado por São Vicente de Paula e chegou a receber uma
mensagem assinada por Maria Santíssima. Chico Xavier, o mais famoso médium espírita, era
tutorado pelo espírito que se denomina Emmanuel que revelou ter sido o Padre Manoel da
Nóbrega. O chefe da primeira missão evangelizadora do Brasil, retorna em Espírito a orientar
o trabalho que irá divulgar em massa, quase cinco séculos depois, o Espiritismo em todo o
Brasil. Nas palavras de Emmanuel, o “Espiritismo é a restauração do Evangelho de Jesus”.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados da presença de espíritos ligados à tradição
cristã. Um deles é o de Joanna de Ângelis, mentora do médium e conferencista Divaldo
Franco: foi Joana de Cusa, citada no Evangelho como seguidora de Jesus, e mais tarde no
México como a freira e poetisa Sór Juana Inés de la Cruz, e mais recentemente Sóror Joana
Angélica de Jesus, mártir da Independência do Brasil. Ao próprio Allan Kardec é revelado
209
LE, Prolegômenos.
119
que assumiu a personalidade de Jun Huss, educador e iniciador dos movimentos da Reforma
Protestante, levado à fogueira em 1415.
Apresentada como uma doutrina que é a um só tempo ciência, filosofia e religião,
o Espiritismo tem por ideal uma vivência autêntica da mensagem cristã. Jesus é, segundo
Kardec, “o tipo de perfeição moral a que a humanidade pode pretender na Terra. Deus no-lo
oferece como o mais perfeito modelo, e a doutrina que ele ensinou é a mais pura expressão da
sua lei, porque ele estava animado do espírito divino, e foi o ser mais puro que já apareceu
sobre a Terra” O Espiritismo busca a “restauração do Evangelho de Jesus”, procura ser o
“Cristianismo redivivo”, a “revivescência do cristianismo primitivo”.
No Evangelho segundo o Espiritismo fica explícita a construção da identidade
cristã do Espiritismo. Trata-se da terceira revelação, sendo a feita a Moisés a primeira, a
Encarnação de Jesus a segunda, o Espiritismo insere-se na tradição judaico-cristã como o
consolador prometido por Jesus que iria explicitar tudo o que foi dito e não havia sido
compreendido. Para os espíritas a capacidade de compreensão dependia do avançar do espírito
científico, e dos avanços filosóficos do Iluminismo.
Caberia ainda nesse momento uma análise da forma como doutrina defendida
pelos espíritas assume a argumentos de correntes da tradição cristã, dando-lhe continuidade, e
resgata teses vencidas pela ortodoxia, as chamadas heresias (especialmente as oriundas das
idéias gregas), bem como modelos de vivência que, apesar de exemplares na Igreja, não são
incorporados como regra geral. Quanto a isso cabe-nos um estudo mais aprofundado;
podemos, no entanto, ousar citar alguns temas de futura pesquisa.
A ênfase no papel da lógica e da razão na constituição do arcabouço teórico do
Espiritismo parece com os argumentos de um Anselmo de Cantuária ou um Tomás de Aquino
em uma busca de Deus pelo intelecto, sem falar na proximidade com Teilhard de Chardin ao
tratar do tema da evolução. A noção de alma não é novidade, especialmente tendo-se em
conta o pensamento de Santo Agostinho e toda a influência do neoplatonismo no pensamento
cristão. Neste caso, cabe observar a introdução do Evangelho segundo o Espírito, em que
Kardec aponta Sócrates e Platão como os grandes precursores das idéias espíritas.
Ressalte-se que os espíritas procuram reacender a heresia de Orígenes quanto à
preexistência da alma, tese derrotada em 553 no V Concílio de Constantinopla bem como sua
noção de purificação lenta e gradativa do mundo através de sucessivas expiações e correções.
Aliás, o tema da reencarnação, apesar de sua ancianidade, tendo existido entre os filósofos
indianos e egípcios, é exposto por Jesus na alusão ao retorno de Elias como João Batista, e no
120
diálogo com Nicodemos210 e, segundo os espíritas, foi crença comum nas primeiras
comunidades cristãs tendo sido rejeitado pelo elitismo monárquico do governo de
Justiniano.211 O elemento mediúnico é herdeiro dos fenômenos que sempre acompanharam a
vida dos santos, Jesus em diálogo com Elias e Moisés no Tabor e todos os “milagres”212, além
do fenômeno de pentecostes, inclusive o atual.
A imortalidade da alma e a intervenção dos espíritos no mundo corporal também
não são grandes novidades no mundo cristão que orava pela influência dos santos na vida
cotidiana, além do povoamento do mundo por anjos e demônios.213
3 Reforma do cristianismo: elementos de ruptura
Se por um lado o espiritismo insere-se na tradição cristã com diversos elementos
de continuidade - que será mais ou menos acentuado na religiosidade dependendo do contexto
cultural em que se prolifere - por outro trata-se de um movimento de reforma do cristianismo,
dando continuidade e aprofundando o movimento reformista dos séculos XV e XVI. Em toda
dinâmica religiosa, as reformas e transformações são inspiradas por uma espécie de releitura
do passado e a busca por um retorno mais autêntico às origens. No geral tenta-se derrubar a
forte institucionalidade, as regras estabelecidas, os dogmas e símbolos mortos que terminaram
por abafar o que caracteriza o movimento, o carisma, a novidade, o espírito, a espontaneidade,
a subjetividade que irrompe na figura dos fundadores das religiões. Assim é que o Espiritismo
busca a purificação dos erros e incompreensões da mensagem cristã ao longo dos séculos,
inspirando-se em modelos de fé calcados, sobretudo, no amor fraterno, na renúncia, no
sacrifício de si. E os espíritas passam a mirar-se naqueles que desidentificam-se com o mundo
material centrando seus objetivos na vida espiritual, de acordo com a recomendação paulina:
“estar no mundo sem ser do mundo”. Para os espíritas esse é o modelo que está por traz do
comportamento abnegado e de extrema devoção de todos os heróis, mártires, sábios e está
presente na figura maior de toda a História: Jesus de Nazaré, para quem o Reino não era deste
mundo.
210
LE, q. 222. ressalte-se que a reencarnação para o Espiritismo não é a metempsicose, uma vez que não admite
a reencarnação de humanos em animais. Para um estudo da Reencarnação na tradição judaico-cristã, ver: Aleixo
e Celestino.
211
Como um monarca reencarnaria na pele de escravos?
212
Os espíritas não rejeitam os milagres de Jesus, apenas contestam que possa haver transgressão das leis
naturais, uma vez que Deus mesmo as criou e não se contradiria. Os “milagres” são fatos não explicados pela
ciência materialista mas que podem ser explicados quando se considera a vida espiritual.
213
Ver para essas referência à crença cristã, Le Goff, O Deus da Idade Média
121
Allan Kardec (1804-1869) foi de uma geração que se lançou a criar um mundo
com bases novas. A efervescência cultural e ideológica da França do século XIX podia até
não apontar caminhos consensuais, mas o professor Rivail214 fazia coro aos progressistas que
rejeitavam o Ancien Régime e o abuso do poder da Igreja Católica com a flagrante deturpação
da mensagem do amor ao próximo. O espiritismo nasce como um socialismo utópico: a
fraternidade será a pedra angular de uma sociedade justa e equânime, rompendo com a
aristocracia do Antigo Regime, e a educação moral é o único meio capaz de conduzir à
reforma social.
Discípulo de Pestalozzi, Rivail que chegara aos 11 anos ao Instituto de Iverdon,
levado pela mãe, para estudar com o mestre da Nova Educação, aos 19 anos já estava em
Paris, publicando obras, aplicando o método pestalozziano na França, e durante 30 anos
dedicou-se à educação, dando aulas, dirigindo institutos, escrevendo obras didáticas e textos
com propostas de vanguarda.215 Na verdade, só aos 50 anos o professor Rivail trava contato
com os fenômenos das mesas girantes.
Como mostrou Incontri, Kardec herda de Pestalozzi, as idéias de otimismo em
relação ao ser humano e de liberdade e autonomia de consciência. Essa herança intelectual
que vem de Comenius, passando por Rousseau impregnará fortemente a Doutrina Espírita. E
esse otimismo será a primeira chave de leitura da pedagogia de Jesus, expressa no evangelho:
“vós sois deuses”; “o Reino de Deus está dentro de vós”, “podeis fazer tudo o que eu faço e
mais um pouco.” “Com Kardec essa herança se ilumina, pela perspectiva da reencarnação.
Dilatam-se o tempo e o espaço da educação – não apenas uma só vida, não apenas um só
cenário – mas várias oportunidades, em diferentes moradas celestes, já anunciadas por
Jesus.”216
O papel do Espiritismo é educar os sentimentos dos homens, tornando-os
fraternos, vencendo o egoísmo e orgulho, implantando o ideal de amor. Não se trata de uma
religião de salvação, mas de educação. Na esteira de Comenius, Rousseau e Pestalozzi, a
pedagogia espírita crê no desenvolvimento harmônico de todas as potencialidades do ser, e
não se trata de educar de fora para dentro, mas de um despertar, um desabrochar de algo que
já está latente no ser.
214
Hippolyte Léon Denisard Rivail, nome completo do codificador do Espiritismo, que usará o apelido Allan
Kardec, ao que tudo indica seu nome numa existência anterior, quando fora sacerdote druida.
215
Incontri, Dora. Texto da Internet.
216
ibid
122
Daí a primeira ruptura com a tradição cristã, na medida em que rejeita
veementemente a tese do pecado original. No espiritismo, o mal aparece como resultado da
liberdade humana.
A confiança na capacidade de auto-gestão do ser humano, de sua
autonomia para se auto-construir, aprendendo inclusive com os próprios
erros, é fundamental na compreensão e na prática do próprio espiritismo.
Por exemplo, Kardec democratizou o conhecimento espiritual, tornou
acessível e simples a qualquer pessoa, o desenvolvimento da
potencialidade mediúnica (que em toda a história humana, havia sido fruto
de processos iniciáticos, cobertos de mistérios e inacessíveis à massa),
traduziu de forma didática, clara e sintética os grandes ensinamentos
morais e espirituais – que estiverem presentes nas religiões de todos os
tempos, mas que também ficaram nas mãos de alguns poucos – com o
objetivo de tornar possível o exercício da espiritualidade de forma livre,
destituída de intermediários hierárquicos e institucionais.”
A ruptura espírita é com o modelo religioso institucional, formalista, hierárquico
erigido a partir da oficialização do Cristianismo como religião do Império Romano no século
IV, quando então passou de religião perseguida a religião do Estado. A meta do espiritismo é
alcançar o ideal de religião espiritual. De acordo com o filósofo espírita, Herculano Pires, o
processo dialético de libertação da religião, avança com o amadurecimento da humanidade e
com a vitória gradativa da razão. Esse movimento se dá em diversas etapas: o próprio
Cristianismo emerge com base em princípios racionais e subjetivos, nos ensinos de Jesus
contra o fideísmo dogmático do Judaísmo: “Esse povo honra-me com os lábios, mas seu
coração está longe de mim”, o que já constituía também uma denúncia da própria tradição
profética hebraica. O Espiritismo se identifica com o anúncio de Jesus à samaritana, de que
chegaria o tempo em que Deus seria adorado em espírito e verdade, sem a necessidade de
ritos, templos e lugares sagrados, apetrechos, sacramentos, símbolos... “Os símbolos são úteis
durante o tempo necessário para a transmissão da idéia, mas tornam-se inúteis e perniciosos
quando passam do tempo.”217 Especialmente no caso cristão em que os símbolos já foram
tomados de tradição as quais ele se propunha a ultrapassar. A simbologia cristã, ao adaptar
símbolos pagãos, representava mal as idéias encobertas e logo revelaram seu vazio interior. A
Reforma foi, na visão de Herculano, uma luta contra os símbolos.
No entanto, dialeticamente, a Reforma acaba substituindo uma idolatria por outra:
em lugar das relíquias, dos ídolos, do dogmatismo da autoridade papal e dos concílios, o
217
Pires, 2003, p.85
123
luteranismo idolatra a letra, a infalibilidade das Escrituras Sagradas. Contraria, portanto, o
espírito libertador presente no apóstolo Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica.”218
De acordo com Herculano Pires, a partir do século XVIII, o clima estava
preparado para o segundo grande passo do Cristianismo, a superação do literalismo, a
libertação do Espírito: “caberia a Kardec, a serviço do Consolador, libertar da letra que mata o
espírito que vivifica.”219
Espiritismo encontra nos textos evangélicos a orientação para sua prática e busca
com as novas descobertas científicas iluminar os textos antigos dando-lhes uma nova
interpretação. Além disso, o Espiritismo não se fecha nos textos da tradição judaico-cristã,
mas busca as verdades em todos os textos sagrados e filosóficos, uma vez que todos
“encerram os germens de grandes verdades”, que podem ser compreendidos “graças à chave
que o Espiritismo fornece”
O Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apóia, para confirmar a sua
própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o
Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as
energias criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para
reelaborá-las em novas expressões de espiritualidade. É assim que o
Cristianismo se liberta e se renova, na expansão de suas mais profundas e
poderosas energias, para libertar e renovar o mundo220
4 Vivência espírita: auto-conhecimento e amor
O principal deslocamento de eixo que o Espiritismo propõe é o que leva da
religião exterior à religião interior. O autoconhecimento221 é a base da principal missão dos
espíritas: a “reforma íntima”. Cabe ao espírita efetuar uma avaliação dos vícios e virtudes
acumulados ao longo das experiências milenares e buscar desenvolver virtudes cristãs e
“domar as suas más inclinações”.
O Espiritismo propõe a reforma do homem, e esse objetivo é indissociável da
construção de uma sociedade fraterna, através da reforma das instituições que “estimulam e
excitam o egoísmo humano”. O filósofo Herculano Pires entendia o Espiritismo de forma
dialética: “Transformar o mundo pela transformação do homem e transformar o homem pela
218
Na visão de Herculano Pires, a missão espiritual da Reforma acabou sendo o acesso direto aos textos da
Escritura, rompendo com o privilégio clerical.
219
Pires, 2003, p. 90.
220
Pires, 2003, p. 92.
221
LE q.919: “Qual o meio mais prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à
atração do mal? Um sábio da antiguidade vo-lo disse: conhece-te a ti mesmo.”
124
transformação do mundo. Eis a dialética do Reino, que o cristão deve seguir.”222 Seu fim é a
implantação histórica de uma sociedade nova, na qual o ideal de fraternidade, substitui a
competição e o móvel da ação é o amor e não mais o egoísmo.
O lema espírita da “Reforma Íntima” está, desde a origem, umbilicalmente ligado
ao da “Reforma Social”. Apesar da abstenção de uma vivência partidária na política, os
espíritas crêem em sua missão reformadora do homem e do mundo por meio da ação
transformadora pautada no amor e na solidariedade, bem como pela renovação da
mentalidade, através da propagação da filosofia espiritualista. Isso não significa uma busca
por multiplicar o número de adeptos. Trata-se da propagação de uma visão da realidade
imbuída de fé no homem, em sua capacidade de pleno desenvolvimento de suas
potencialidades divinas, que é despertada e exercitada através do “toque da alma”223, da
compreensão e da prática do amor. O conceito de “conversão” aparece entre os espíritas não
como uma nova confissão religiosa, mas como uma conscientização do seu compromisso com
a vida, com a sociedade humana, com Deus, adquirindo igualmente consciência de que se tem
uma missão a cumprir, ganhando uma causa, um objetivo pelo qual viver, independentemente
da confissão religiosa.
Uma vez que se afaste dos objetivos nobres e santificadores o homem acumula
dívidas com a Lei e gera sofrimento a si mesmo. Trata-se da lei de causa e efeito: por um
“falso movimento da alma” se afasta do objetivo da criação, que consiste no culto harmonioso
do belo, do bem. A conseqüência natural é uma certa soma de dores a ponto de desgostá-lo de
sua deformidade, é o sofrimento que o estimula a dobrar-se sobre si mesmo, e a buscar a
retificação. O castigo só tem por finalidade a reabilitação, a redenção.224
Essa lei o homem encontra em si mesmo, em sua consciência. O homem evolui na
medida em que compreende a Lei Divina, ouvindo-a dentro de si, desenvolvendo, de dentro
para fora, sua capacidade de amar225, dando o salto para o homem-novo, à imitação de Cristo,
permitindo nascer o homem pleno, maduro, o ser integral.
O amor “é um imã a que ele não poderá resistir, e o seu contato vivifica e fecunda
os germes dessa virtude, que estão latentes em vossos corações,” dizia através da psicografia,
o Espírito Sansão, membro da Sociedade Espírita de Paris, já desencarnado, em 1863, e
222
Pires, 1967, p.136
Emmanuel (Espírito) Chico Xavier (Médium), O Consolador.
224
LE q. 1009. Resposta assinada por Paulo, o apóstolo.
225
Tal como em Erich Fromm, “A arte de amar.”
223
125
completava com entusiasmo estimulando a fé dos amigos que ficaram: “essa máxima é
revolucionária e segue uma rota firme e invariável”226
Para a Doutrina Espírita, e isso é repetido exaustivamente, o amor é o elemento
essencial da evolução espiritual da humanidade. Acima da riqueza, do poder ou mesmo do
saber, o maior potencial de mudar a história da humanidade está com aqueles que amam.
Através do seu exemplo, fertilizam um novo ideal e atraem pelo irresistível “perfume de
caridade que espargem ao seu redor”227
Quem ama termina por ser mais feliz e atrair a si todos os seres que no fundo
desejam a felicidade e se deixam atrair a esse imã fecundo e divino. A compreensão do
imperativo do “amor ao próximo” para a felicidade de si próprio se dá gradativamente ao
longo da evolução, como ressalta Leon Denis,
(...) em nossa ascensão chegaremos a compreender e praticar melhor a
comunhão universal que une todos os seres. Inconsciente nos estados
inferiores da existência, essa comunhão torna-se cada vez mais consciente,
à medida que o ser se eleva e percorre os graus inumeráveis da evolução,
para chegar, um dia, ao estado de espiritualidade em que cada alma,
irradiando o brilho das potências adquiridas nos impulsos do seu amor,
vive na vida de todos e a todos se sente unida na Obra Eterna e Infinita228
5 Mediunidade e a reforma permanente do movimento espírita
Na visão espírita, a imortalidade da alma, o corpo espiritual, a reencarnação, as
potencialidades psíquicas, a obsessão, bem como a comunicação com aqueles que
morreram, eram fenômenos conhecidos por Jesus e seus seguidores229. Argumenta-se que
nos primeiros grupos cristãos, a mediunidade garantia um arejamento das idéias,
permitindo a democratização no acesso às revelações, e impedia o crescimento da
dogmática e do poder enrijecedor da instituição.
Na atualidade, a mediunidade é vista no contexto profético: “vossos filhos e filhas
profetizarão”, anunciando a nova era de renovação da humanidade, a qual o espiritismo tem a
missão de acelerar. Seu uso tem difundido a crença nos postulados espíritas principalmente
através da notícia de entes queridos, da cura de enfermidades e de instruções de elevado teor
moral.
226
EE, XI, 10.
EE XV 10, mensagem assinada pelo espírito Paulo.
228
Leon Denis, O problema do ser, do destino e da dor, p, 99.
229
Caso exemplar de mediunidade é a transfiguração de Jesus e o diálogo com Moisés e Elias (Mt, 17).
227
126
O Espiritismo inaugura a caridade no trato com o mundo espiritual inferior. Não
são demônios a serem expulsos violentamente, não são fantasmas dos filmes de terror. São as
almas dos homens que morreram. Merecem carinho e cuidado cristão e mesmo que se
apresentem como perseguidores de outras vidas, a eles deve-se aplicar a regra da caridade:
amai os vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem. Além disso, no tocante à obsessão, a
visão espírita ressalta a responsabilidade da própria vítima e recoloca a primazia do livrearbítrio, uma vez que a vinculação aos espíritos inferiores é inerente a inferioridade moral do
encarnado que o atrai pela sintonia de vibrações.
No seu combate à institucionalidade eclesial o Espiritismo tem na mediunidade
sua pedra angular, uma vez que o controle da Doutrina não se encontra nas mãos do homens,
mas nas dos espíritos superiores. Este fato impediria o enrijecimento institucional e garantiria
a existência de um contexto de reforma permanente: “a letra mata, o espírito vivifica.”
A mediunidade é, sem dúvida, o grande diferencial do espiritismo e a resposta aos
seus dilemas enquanto movimento histórico dependerá da forma como tratar a mediunidade
nos anos futuros. A tendência inerente das instituições religiosas é a centralização, a criação
de novas regras e dogmas estranhos ao impulso original, abafando as particularidades e os
movimentos renovadores. O movimento espírita, ao crescer, lida com o permanente risco de
esfriar a caridade e abafar o carisma renovador, como ocorreu com o cristianismo.
A tendência ao poder, ao controle, é inerente ao homem. O dilema espírita está em
conviver com o crescimento do seu movimento e a manutenção de sua identidade sem abdicar
dos princípios da liberdade, do amor, da tolerância e abertura às formas de crer, da
simplicidade. Kardec, procurando precaver-se disso salientava: se “o Espiritismo não pode
escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia
neutralizar-lhe as conseqüências e isso é o essencial.”230 Um dos seus argumentos que visam
precaver os espíritas dos falsos profetas e líderes ambiciosos é:
o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não
é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a
orgulhosos, as virtudes característas de um verdadeiro messias têm que ser,
antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra o
mais completo desinteresse material e moral231
230
231
Obras Póstumas (OP), p.347-8.
OP, p. 353.
127
6 O futuro das religiões
O Espiritismo é um verdadeiro campo aberto ao diálogo inter-religioso. De um
lado pela ênfase na moralidade, o que independe de doutrina, por outro por abrir-se a formas
tão variadas de religiosidade quanto são os que buscam a Deus. Toda manifestação sincera de
fé é legítima, para o espírita. Ainda que não creia da mesma forma que os outros, ele crê no
movimento legítimo de fé de qualquer pessoa.
Vale notar os livros espíritas que procuram disseminar um clima de tolerância
religiosa ao perceber os “bons frutos” das diferentes organizações religiosas: “Nos bastidores
da loucura”, “Tambores de Angola”, livros da série André Luiz. Apesar do viés espírita de
compreensão da realidade estes livros estão imbuídos de respeito e veneração por todas as
crenças sinceras e que conduzem ao bem.
Enquanto herdeiro da tradição cristã, o Espiritismo leva o cristianismo ao diálogo
e favorece as trocas espirituais entre as diferentes tradições espirituais da humanidade. A
compreensão espírita de Jesus de Nazaré é bem menos carregada de dogmas e de
exclusivismos e permite uma abertura muito maior aos diferentes missionários de todas as
épocas e religiões. Seus princípios deixam a forma para valorizar o conteúdo.
Com sua abertura à modernidade, visa ajudar as religiões a renovarem suas crenças
em face da razão, mas sem a necessidade de perder suas raízes. O espiritismo não tem por
finalidade combater, contrariar, negar ou destruir as religiões, mas auxiliá-las. Considera que
todas as religiões são boas, mas para que continuem boas trabalha para que não estacionem
nos estágios inferiores, já superados pela evolução humana.
Daí crer-se que neste período fértil de trocas espirituais, o espiritismo pode ser um
vetor de diálogo entre o cristianismo e as demais tradições espirituais da humanidade e de
renovação das religiões em busca de suas próprias essências.
Referências
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EMMANUEL (F.C. Xavier) (1945) Emmanuel. RJ: FEB.
____________ (1999) O Consolador. RJ: FEB.
FROMM, Erich (1995) A arte de amar. BH: Itatiaia.
GIUMBELLI, Emerson & HUMBERTO, Juárez (2003) Alguém disse "espiritismo"? in Tempo &
Presença, ano 25, nov/dez, (16-19).
128
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista, Editora
Comenius, 2004.
_______________ http://pedagogiaespirita.org.br/texto/14.htm
KARDEC, Allan (1982) A Gênese. RJ: FEB
_____________ ( ) Obras Póstumas
KARDEC, Allan (1997) O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB
KARDEC, Allan (2001) O Evangelho Segundo o Espiritismo. SP: LAKE
LE GOFF, Jacques (2007) O Deus da Idade Média, RJ: Civilização Brasileira
MIRANDA, Hermínio C. (1995) As marcas do Cristo, volume II: Lutero, o Reformador. Rio de
Janeiro, FEB
PACE, Enzo (1999) Globalização e religião. Petrópolis: Vozes.
PIRES, Herculano (2003) O Espírito e o tempo: introdução antropológica ao espiritismo. São Paulo:
Paidéia
_________ (1967) O Reino. São Paulo, Edicel.
STOLL, S (2003) Espiritismo à brasileira. SP: Edusp e Curitiba: Editora Orion.
129
GRUPOS DE FLORESCIMENTO HUMANO:
Olhares Acerca de um Programa de Pesquisa-Intervenção em Promoção de Saúde
Mental Integral
André Feitosa de Sousa232
Dr. Francisco Silva Cavalcante Junior233
RESUMO: Os autores apresentam uma modalidade psicoeducativa denominada Grupos de
Florescimento Humano (GFH), cujo objetivo é favorecer experiências de auto-atualização em grupo,
por meio de práticas terapêuticas Centradas na Pessoa e ferramentas intra/inter/transubjetivas da
ciência ocidental e contemplativa. No GFH, doze participantes são introduzidos a protocolos de
meditação clínica, numa proposta de comunicação e compreensão autênticas, aceitação positiva sem
julgamentos e atitude empática da Abordagem Centrada na Pessoa. Conforme os fundamentos teóricos
e pragmatistas discutidos nas pesquisas do Dr. B. Alan Wallace, a utilização de técnicas específicas de
meditação favorece o cultivo de um “bom coração” ou de uma felicidade genuína (eudaimonia,
também traduzida como florescimento humano), por meio da expansão de atitudes psicológicas como
bondade-amorosa, alegria empática, compaixão e equanimidade no cotidiano dos participantes.
Intervenções de natureza semelhante têm revelado novos percursos investigativos acerca de estados
excepcionais de saúde mental e qualidade de vida, correlacionando-os às abordagens de Orientação
Positiva em Psicologia e Psicologia da Saúde. Os resultados verificados após quatorze grupos sugerem
compatibilidade a outros programas de pesquisa-intervenção em mindfullness (atenção plena ou
vigilante à experiência) e outros questionamentos foram discutidos a partir do conceito de
espiritualidade para o filósofo Dr. Robert Solomon. Intervenções dessa natureza provam ser uma
iniciativa significativa na promoção de uma educação positiva para saúde mental no campo das
abordagens e metodologias integrativas (e.g., Portaria do Ministério da Saúde, referente à Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde) que concebem o
humano como um ser integral, em suas facetas biopsicosocioespiritual. Palavras-chave:
psicoeducação, meditação, florescimento humano, saúde mental, biopsicosocioespiritual
ABSTRACT: The authors present a psychoeducational intervention model named Human
Floureshing Group (HFG) which aims at proving opportunities for experiences of self-actualization in
groups through the medium of Person-Centered therapeutic practices and the use of intra/inter/transsubjective tools from Eastern science and contemplation. In HFG, 12 participants are introduced to
the protocol of clinical meditation as a proposal for authentic communication and comprehension,
unconditional positve regard and empathic attitude from the framework of Person-Centered Approach.
Based on the theoretical and pragmatist foundations discussed in Dr. B. Alan Wallace´s research, the
use of specific meditation techniques favours the cultivation of a good heart or genuine happiness
(eudaimonia, which is also translated as human flourishing), through the expansion of psychological
attitudes such as loving-kindness, compassion, empathetic joy, and equanimity in daily lives of
participants. Similar-type interventions have revealed new inquiry trends on the exceptional states of
mental health and quality of living which are related to Positive-oriented Psychology and Health
Psychology. The results herein presented after the promotion of fourteen HFG groups show
compatibilities with other programs of intervation-research in midfulness (awareness of experience)
and other questions were raised from the spirituality concept of philosopher Dr. Robert Solomon.
Intervention of this nature have proved to be a meaningful initiative for the promotion of positive
education in mental health within the field of integrative approaches and methdologies (e.g., Brazilian
232
Bolsista de iniciação à pesquisa (PBICT/FUNCAP/UNIFOR). Graduando em Psicologia pela Universidade
de Fortaleza - UNIFOR.E-mail: [email protected]
233
Professor titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Coordenador do
Laboratório de pesquisa, ensino e extensão RELUS - Rede Lusófona de Estudos da Felicidade. Correspondência:
Universidade de Fortaleza, Mestrado em Psicologia, CCH, Sala N-13, Av. Washington Soares, 1321 – 60811905 Fortaleza, CE – E-mail: [email protected]
130
Minister of Health National Plan for Integrative and Complementary Practices) which conceive the
human being as an integral being in its biopsychosociospiritual facets. Key-words: Psychoeducation,
meditation, human flourishing, mental health, biopsychosociospiritual.
Introdução
Nesse texto, apresentam-se alguns recortes do Grupo de Florescimento Humano,
no que se refere à sua história, teorias que o influenciam e conceitos de fundamentação, bem
como cenários de concepção metodológica. Por razões óbvias, não é possível esmiuçar uma
quantidade maior de observações, tanto menos expor e valer-se de argumentos mais robustos.
Em não se propondo como um trabalho exaustivo, trata-se, ao contrário, de uma apresentação
seminal ao público interessado na prática e reflexão de propostas terapêuticas na fronteira
entre Saúde Mental e Espiritualidade, especificamente sob o olhar e contribuições de uma
Psicologia Humanista e das Correntes Meditativas ancestrais.
1 Uma breve contextualização
Enquanto uma proposta de pesquisa-ensino-intervenção-extensão, o presente texto
é parte de uma construção acadêmica idealizada e nutrida pelo Prof. Francisco Silva
Cavalcante Junior, Ph.D., na Rede Lusófona de Estudos da Felicidade – RELUS, vinculada à
linha de pesquisa Produção e Expressão Sociocultural da Subjetividade, no curso de
graduação e no programa de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza UNIFOR.
Um projeto piloto (2005-06) que originou os Grupos de Florescimento Humano
delimitou como objeto de pesquisa a descrição e análise de práticas psicoeducativas
integradoras, em suas relações com a promoção da felicidade humana (eudaimonia) e a
vivência comunitária. Decorreu-se, portanto, uma ampla revisão bibliográfica sobre os
múltiplos olhares acerca da felicidade. Numa segunda fase, realizou-se uma pesquisa
exploratória por meio da aplicação e análise de 120 questionários extensos, com moradores
das seis regiões administrativas do município de Fortaleza, visando identificar a ocorrência da
felicidade enquanto meta de vida e o conteúdo da felicidade para os residentes entrevistados.
A revisão da literatura e os dados empíricos analisados possibilitaram a
elaboração de uma versão-piloto do que veio a ser uma primeira aplicação de um grupo
interventivo denominado de “Projeto Florescer”. Sistematizado em seis encontros semanais,
131
com duas horas de duração, contando com dez participantes adultos e inscritos
voluntariamente por meio de cartazes na Universidade, um facilitador (psicólogo, à época
mestrando em psicologia) e dois assistentes de facilitação (graduandos em psicologia), e
início das atividades na segunda quinzena de novembro de 2005, organizou-se uma proposta
de grupo com inspiração nos pressupostos da Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers
e suas atitudes facilitadoras para crescimento (aceitação positiva incondicional, congruência e
empatia, em sua relação com o postulado da tendência atualizante nos participantes – cf.
Rogers, 1961/1999) e do Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos (Leitura, Escrita e
Recriação, atravessados pelos princípios da heterogeneidade no grupo, sem-julgamento,
democracia, eqüidade, liberdade, empoderamento, a-vali-ação e trans-form-ação (cf.
CAVALCANTE JUNIOR, 2003a, 2003b, 2005a, 2005b).
O núcleo da proposta deteve-se ao observar e compartilhar das “experiências
significativas” que ocorreriam na vida dos participantes, ao longo das seis semanas para
duração do grupo, e que deveriam ser coletadas em um “caderno de experienciações”
pessoais, através de uma escrita livre, esteticamente vivenciada e registrada, bem como
múltipla em formas de expressão.
A dinâmica do grupo era iniciada com a pergunta do facilitador acerca das
experiências significativas da semana passada, concedendo a palavra para quaisquer temas ou
discussões que, então, emergiriam naquele encontro, a partir das vivências singulares de cada
um e a ressonância de tais vivências nas experiências daqueles outros que integravam o
mesmo grupo. Ao final de cada encontro, “Descrições densas” e “Vinhetas” foram solicitadas
aos assistentes de facilitação, que, nesse contexto de grupo, resumiram-se à função de
presenciar e registrar as várias falas e percepções.
Ao término da aplicação do “Projeto Florescer” em sua versão-piloto, percebeuse, conforme a experiência dos participantes, que não era suficiente “encontrar” os momentos
de significado/significação que, ocasionalmente, pareciam surgir no dia-a-dia.
Atentou-se,
ainda,
em
consonância
aos
registros
nos
“cadernos
de
experienciações”, que, ao longo de cada novo dia, estamos sujeitos a espasmos de alegria,
contentamento e felicidade – até, então, não incorporados à consciência –, todavia, percebidos
muito limitados em face do volume de exigências impostos no estilo de vida capitalista e
urbano.
A ferramenta do “caderno de experienciações” merece destaque, enquanto
ambiente psicológico onde o indivíduo envolve a si mesmo nos momentos que lhe parecem
significativos, contrapondo-se à ferramenta do “diário” (habitualmente feminino e que já
132
acompanhava um número significativo das participantes), e que, nas percepções do grupo,
serve como utensílio cultural para registrar “coisas ruins”, eventos pessoais solitários, difíceis
ou não agradáveis.
2 Uma breve teorização
A proposta de reunir pessoas para compartilharem experiências de uma vida boa,
em um espaço de conscientização crítico-culturais acerca das significações dessa vida boa, em
suas diferentes interações e contextos sócio-culturais, parecia ambiciosa. Para a construção
desse modelo de intervenção, fundamentamos nosso olhar em um exercício radical de
psicopatho(s)logia crítico-cultural, ou seja, um estudo de cunho antropológico que apresenta
uma compreensão crítica acerca daquilo que grava afecções (pathos) em nossa alma (psique)
– alma compreendida como esse ambiente psíquico onde inclui-se, tradicionalmente,
processos de sofrimento, mas, também, aqueles relacionados ao florescimento.
Encontrávamos num campo particular de psicophato(s)logia, no lugar onde esse
phatos é “algo inerente ao ser humano” (MARTINS, 1999), e que, afastados de qualquer
neutralidade (MOREIRA ; SLOAN, 2002), podemos estudar o “aspecto pático (e não
patológico) da existência” (PEREIRA, 2000). Minkowski (2000), referência na área,
compreendia que a dimensão desse pathos é onde o “homem reconhece seu aspecto humano”,
e afirma:
O sofrimento não tem absolutamente antônimo. A felicidade? [...] apenas
toma um pouco mais de consistência, no momento em que, para além dos
fatos e dos fatores isolados, ela dirige-se a um conjunto, a uma síntese,
situada fora das misérias da vida. (p. 159)
Aproximava-se, então, um percurso metodológico em busca da felicidade ou o
florescimento em Psicologia. Ainda no lastro da psicopatologia fenomenológica, deparamonos com o trabalho de Jan Hendrik Van den Berg (1955/2000). Em 1946, Van den Berg
concluía sua tese de doutoramento sob a supervisão do Prof. Dr. Henricus Cornelius Rümke
(1893 - 1967), um dos ilustres expoentes da vertente fenomenológica, conhecida como a
Escola de Utrecht (MANGANARO, 2004; HEZEWIJK ; STAM ; PANHUYSEN, 2001), de
onde também se vinculava o trabalho do seu orientando.
Em comum, Van den Berg e, sobretudo, seu tutor, foram influenciados pelo
psiquiatra existencialista alemão Karl Jaspers (1883 - 1969), porém, em Rümke, a direção
inicial havia sido um pouco diferente (MANGANARO, 2004; MARQUES-TEIXEIRA,
133
2002): em 1923, ele defendia sua tese de doutoramento, e “essa dissertação foi a primeira
extensiva publicação em holandês no que concerne o uso do método fenomenológico em
psiquiatria” (Instituut voor Nederlandse Geschiedenis, 2005).
O trabalho lançado era “Phaenomenologische en klinisch-psychiatrische studie
over geluksgevoel”, traduzido para o alemão, em 1924, sob o título “Zur Phänomenologie und
Klinik des Glücksgefühls” – e permanecendo, até o presente, inédito em inglês e português.
Conforme Manganaro (2004) explica:
Henricus C. Rümke pode ser considerado o pioneiro entre eles: psiquiatra de
orientação fenomenológica, nos anos 1928-1933 ministrou cursos e
conferências na Universidade de Amsterdã e depois consolidou a carreira
acadêmica de trinta anos na Universidade de Utrecht (1933-1963) [...] A
psiquiatria de Rümke era, na realidade, mais próxima da literatura do que da
postura rigorosamente científica médica: utilizando a noção de ´intuição
empática´ de Karl Jaspers, ele continuamente completava a dissertação [...]
(“Estudos fenomenológicos e psiquiátricos sobre o sentimento de
felicidade”) de 1923. Sua interpretação da doença e da saúde é fortemente
inspirada na antropologia cristã humanista, que enfatiza a importância da
autenticidade, do sentido, da veracidade. Segundo Rümke, a condição que
determina o estado de saúde está em estreita relação com a capacidade de
integração da pessoa, em uma sociedade que permanece fortemente
desagregada e desagregante.
Certamente, Rümke foi um dos pioneiros no estudo compreensivo às questões
psíquicas da felicidade. Porém, ainda no campo da psiquiatria fenomenológica, sob a
influência da Escola de Heidelberg, existe o trabalho de Mayer-Gross, defendido uma década
antes da tese de Rümke. Assim, lembra-nos Cordas e Louza (2003):
O ano de 2002 marcou o trigésimo aniversário da primeira tradução em
português do livro Psiquiatria Clínica de Mayer-Gross, Slater e Roth (1976),
que foi escrito quase integralmente por Mayer-Gross [...] É possivelmente o
único tratado de Psiquiatria Clínica escrito com o espírito da escola
fenomenológica de Heidelberg, publicado no Brasil pela editora Mestre Jou,
hoje desaparecida [...] durante muito tempo foi o porto seguro de toda uma
geração de psiquiatras, contribuindo para uma virada na direção de uma
psiquiatria clínico-fenomenológica na época áurea das correntes
antipsiquiátricas das décadas de 1960 e 1970. Hoje, porém, injustamente
caiu no esquecimento, tal como seu autor. Wilhelm Mayer-Gross nasceu na
cidade de Bingen (Renânia) em 15 de janeiro de 1889. [...] Em 1913
defendeu seu doutorado ´Sobre a fenomenologia dos sentimentos anormais
de felicidade´ (Zur Phänomenologie abnormer Glücksgefühle).
Observando a história, a fenomenologia e a tradição de Utrecht foi desprestigiada
no curso do século XX, contribuindo, assim, para a supressão de trabalhos como o de Rümke
(MANGANARO, 2004).
134
Paralelamente, as concepções de crescimento e florescimento humano seriam
resgatadas na construção do Humanismo em Psicologia, de forma particular no trabalho de
Carl Rogers (1961/1999) e Abraham Maslow (1964/1977, 1971/1993), ambos nos Estados
Unidos, a partir dos anos de 1950-60.
A propósito dos fatos históricos, foi também de Maslow a criação de concepções
importantes: no capítulo dezoito do seu livro “Motivation and personality”, com título de
“Toward a Positive Psychology” [“Em Direção a uma Psicologia Positiva”, tradução livre,
grifo nosso] (MASLOW, 1954, p. 353) e, posteriormente, a proposta de uma “Psicologia da
Saúde [que] nos proporcione mais possibilidades para controlar e aperfeiçoar as nossas vidas
e fazer de nós melhores pessoas” (MASLOW, 1962/1973, p. 30).
Carl Rogers, por outro lado, durantes as férias de 1952 – 53 (ROGERS,
1961/1999), concebe a idéia do que seja o processo da vida boa, enquanto expressão natural
da pessoa em pleno funcionamento de suas potencialidades, aquele(a), portanto, que está
implicado de maneira integral na sua experiência atualizante de existir com todas as
capacidades do seu organismo. Explica Rogers (1961/1999):
Penso que se torna evidente por que é que, para mim, adjetivos tais como
feliz, satisfeito, contente, agradável, não parecem adequados para uma
descrição geral do processo a que dei o nome de ´vida boa´, mesmo que a
pessoa envolvida nesse processo experimente cada um desses sentimentos
nos devidos momentos. Mas os adjetivos que parecem de um modo geral
mais apropriados são: enriquecedor, apaixonante, gratificante, estimulante,
significativo. Estou convencido de que esse processo da ´vida boa´ não é um
gênero de vida que convenha aos que desanimam facilmente. Esse processo
implica a expansão e a maturação de todas as potencialidades de uma pessoa.
Implica a coragem de ser. Significa que se mergulha em cheio na corrente da
vida. E, no entanto, o que há de mais profundamente apaixonante em relação
aos seres humanos é que, quando o indivíduo se torna livre interiormente,
escolhe essa ´vida boa´ como processo de transformação. (p. 224).
Da mesma forma, ao longo desse processo para o resgate de uma capacidade
humana que afirma o que se é plenamente possível ser, os caminhos entrecruzam-se com o
trabalho de outros pensadores humanistas, dentre os quais destaco a contribuição do psicólogo
Yves de La Taille na fronteira da psicologia e da educação, ou, como ele explica, “falo no
lugar da pesquisa em psicologia” (apud CHIBLI, 2006, p. 6).
Este realce no lugar ocupado pela educação à frente de uma humanidade capaz de
ousar ser feliz, frutifica-se numa firme discussão ética a partir do pensamento de La Taille
(2005). Em sua aguçada reflexão:
Poderíamos falar em moral na política Mas existe uma outra definição de
ética na filosofia, antiga aliás, que é a que segue: ética é projeto de
135
felicidade. A pergunta moral é “como devo agir?”. A pergunta ética é “que
vida eu quero levar?”. Ética é um projeto de vida que inclui a moral, um
projeto de vida no qual o outro esteja contemplado [...] Que felicidade é
essa que merece o nome de ética? O outro tem que estar incluído [...] com o
outro, que significa cooperação, para o outro, que significa generosidade,
em instituições justas, que implica recuperar a dimensão política (um
mundo justo). [...] Vida boa, felicidade, é vida com sentido, não somatória
de momentos fragmentados de prazer. Felicidade é sentido. Claro que é feita
de pequenos prazeres, claro que é feita de uma certa saúde, claro que é feita
de detalhes cotidianos, mas os transcende. Do ponto de vista educacional, o
que eu acho que vocês têm que trabalhar é com a questão ética: o sentido da
vida. Porque se a vida não fizer sentido, o outro perde o sentido, a moral
perde o sentido, a autoridade perde sentido, e cai-se na anomia. (negrito no
original)
Dessa educação para a vida reta, parece também contribuir uma psicologia da
vida boa, vida eticamente correta, já defendida em na década de 1960, por Maslow
(1962/1973). Em seu olhar, compete à psicologia articular-se teórica e metodologicamente,
tendo em vista que “as pessoas doentes são feitas por uma cultura doente; as pessoas sadias
são possíveis através de uma cultura saudável” (p. 30). E complementa:
esse capítulo é dedicado à ´Psicologia Positiva´ ou ´Ortopsicologia´ do
futuro, na medida em que trata de seres humanos sadios e em pleno
funcionamento e não apenas dos normalmente doentes [...] A Psicologia
contemporânea tem estudado, sobretudo, o não-ter em vez do ter, o esforço
para realizar em vez da realização, a frustração em vez da satisfação, a busca
de alegria em vez da alegria atingida, a tentativa de ´chegar lá´ em vez de
´estar lá´. (p. 101-102, negrito nosso)
Maslow (1962/1973), então, propõe que mais próximos sejamos das “tendências
naturais do homem”, e mais espontâneo será “dizer-lhe como ser bom, como ser feliz, como
ser fecundo, como respeitar-se a si próprio, como amar [...]” (p. 29). Acrescentando que:
Talvez estejamos aptos em breve a usar como nosso guia e modelo o ser
humano plenamente desenvolvido e realizado, aquele em que todas as suas
potencialidades estão atingindo o pleno desenvolvimento, aquele cuja
natureza íntima se expressa livremente [...] Talvez essa Psicologia da Saúde
[...] Talvez isso seja mais proveitoso do que indagar ´como ficar nãodoente´. (p. 29 - 30)
Para os esquecidos de nós que desconhecem a origem do movimento Humanista
na Psicologia, alicerçado em Maslow e Rogers, parece-nos explícita a cooperação entre os
referidos autores quando este desenvolve os conceitos de mundo e a pessoa do futuro
(ROGERS ; ROSEMBERG, 1977) e pessoa em pleno funcionamento (ROGERS, 1961/1999),
e aquele menciona as idéias de uma personalidade do futuro e ser humano plenamente
desenvolvido (MASLOW, 1962/1973).
136
E segue, ainda, a parceria intelectual: Rogers (1961/1999) discorre acerca do
“indivíduo auto-realizado”, aquele que experiencia o processo de tornar-se o que se é, em
outras palavras, aberto às suas experiências mais profundas, confiante nas direções do seu
próprio organismo. Referindo-se diretamente a Maslow, Rogers (1961/1999) correlaciona a
maneira de perceber nesse indivíduo auto-realizado ao olhar do bebê:
como a criança olha para o mundo com uns grandes olhos inocentes e que
não criticam, limitando-se simplesmente a observar e a reparar no que se
passa, sem raciocinar nem perguntar se poderia ser de outra maneira, assim o
indivíduo auto-realizado olha para a natureza humana tanto em si como nos
outros (p. 198)
Todavia, essa qualidade de frescor estético (DUARTE JR., 2001) no olhar do
bebê, acima referida por Maslow e citada por Rogers, já era alusão corrente nas diferentes
práticas orientais, não sendo necessário restringir-se à espiritualidade se também
mencionarmos o exemplo da arte, para onde também somos conduzidos de volta a nós
mesmos, em busca de sua fidedignidade precisa nos vividos singulares.
Nourit Masson-Sékiné (2006) empresta-nos essa capacidade para o estesiar pleno,
do contato profundo com a tal experiência de olhar com todos os sentidos, sufragada por uma
condição de ser no mundo, que supera as amarras da razão:
pôr as orelhas perto dos joelhos para melhor ouvir; sentir que nosso punho é
o de outro; ver sem ver com os olhos, mas com um corpo feito de mil olhos,
ou somente dançar com os olhos, ou só com a língua, pois cada parcela do
corpo contém o corpo todo, e nenhuma parte habitualmente favorecida,
notadamente os olhos ou a boca, é diferente uma da outra, de um artelho ou
do seu sexo. Ser uma flor que bebe um raio de sol – o humano não é mais
importante que um vegetal, pois ele é habitado de todos os seres e de tudo o
que eles produzem, do ser vivo e de todas as suas dimensões, de fantasmas e
espíritos, da memória individual, coletiva e ancestral. Um mundo sem
diferenciação, sem dualidade, sem julgamento, estar no mundo da percepção
(e não da lógica), como um bebê.
A atitude do como-se-fosse-um-bebê (“baby-like attitude”, em inglês), não apenas
é um predicado do indivíduo auto-realizado, mas, também, é utilizada como metáfora
introdutória à prática da meditação no Oriente, ao sugerir-se que o praticante assuma uma
postura relaxada e atenta que, simplesmente, fita (“stares the world”, em inglês) o mundo à
sua volta, de uma forma aberta, sem defesas, como se incorporasse o olhar de um bebê.
De fato, se trouxéssemos o correspondente nas línguas originais para o termo
“meditação”, e traduzíssemos em português, o significado adequado seria o de
“familiarização”. Ou seja, meditar significa familiarizarmo-nos constantemente com a
137
natureza ou a expressão da própria mente. Quaisquer que sejam as técnicas de meditação, das
mais simples às mais elaboradas, todas terão suporte nessa atitude básica.
Ainda sobre essa mesma espontaneidade subjetiva, descreve Rogers:
Como bebê, vivemos a nossa experiência e confiamos nela. Quando o bebê
sente fome, não duvida de sua fome nem se indaga se deve dispensar todo o
esforço possível para conseguir o alimento. É um organismo auto-confiante,
sem de modo algum estar consciente do fato. Mas, num dado momento, os
pais ou outras pessoas lhe comunicam: ´Se você sente assim, eu não amarei
você´. Ele passa então a sentir o que deveria sentir, não aquilo que realmente
sente. Nesta medida, constrói um self que sente o que deveria sentir, e
apenas ocasionalmente tem temíveis lampejos daquilo que seu organismo,
do qual o self é uma parte, está efetivamente vivenciando. (ROGERS ;
ROSEMBERG, 1977, p. 97)
O curioso, no entanto, é pensar que, por um lado, Rogers, e de certo modo,
também Maslow, acreditam que esse olhar do bebê está presente na atitude do indivíduo autorealizado, e, por outro lado, observam que, desse mesmo recurso, valem-se orientais no
cumprimento dos seus objetivos de vida, onde “[...] se esforçaram por eliminar os desejos
pessoais e exercer sobre si o controle mais absoluto” (ROGERS, 1961/1999, p. 187).
Se apusermos o fato que tais expedientes, no mundo oriental, são premissas do
cultivo de uma felicidade genuína (WALLACE, 2005a, 2005b), e que, por sua vez, no
ocidente, pelo menos ao nível dos auto-realizados, são atitudes de indivíduos intimamente
vinculados ao processo da vida boa e de tornar-se quem são, então, podemos imaginar que
felicidade lá e cá, no ocidente e no oriente, nesse diálogo intercultural e subjetivo, possam ter
algo em comum – mais do que, meramente, na esfera do teórico.
Gerava-se uma hipótese de trabalho: teríamos na prática da meditação uma
estratégia para a facilitação do processo de auto-realização e o manejo de uma Psicologia da
Saúde (HARUKI ; KAKU, 2000)? As literaturas acenavam-nos positivamente no desafio de
traduzir essa proposta no contexto da pesquisa, a partir de contribuições em campos variados.
3 Uma breve concepção
Para traduzir em intervenções pragmáticas as influências e diretrizes várias que
informam esse percurso, elegemos o referencial teórico e metodológico apresentado pelo
físico B. Alan Wallace, Ph.D., e suas estratégias para o “cultivo de um bom coração”, através
de um protocolo de meditações clínicas que trabalham com o resgate, reconhecimento e
implicação do sujeito em quatro qualidades de base ou atitudes subjetivas: bondade-amorosa,
compaixão, alegria-empática e equanimidade.
138
Conforme a discussão apresentada no trabalho do Prof. Wallace, essas qualidades,
adjetivadas como “incomensuráveis”, estão intimamente relacionadas ao seu conceito de
“felicidade genuína”, definido em termos de uma qualidade de felicidade que “não é ganha
através de conquistas externas da natureza ou das aquisições de riqueza e fama, mas através
da conquista de nossos obscurecimentos internos e da realização dos recursos naturais
inerentes em nossos corações e mentes.” (WALLACE, 2005b, p. 2)
Bondade-amorosa, maitri em Sânscrito, apresentada como a Primeira das Quatro
Incomensuráveis, traduz-se por uma aspiração profundamente sincera e calorosa de que os
outros possam encontrar felicidade e as causas da felicidade (WALLACE, 2005b, p. 112113). Porém, que tipo ou base de felicidade está se referindo a bondade-amorosa?
Certamente, não se trata de coisificar o mundo e pessoas em busca de riqueza e possessões.
“Se inspecionarmos minuncionamente tais meios de busca para a felicidade, veremos que
nenhum deles são [meios] necessários ou suficientes”, aponta Wallace (2005b, p. 115).
A Segunda Incomensurável, compaixão ou karuna em sânscrito, é definida pelo
Dalai Lama (apud WALLACE, 2005b) como um “estado da mente que é não-violento, nãodanoso, não-agressivo. É uma atitude mental baseada no desejo de que os outros sejam livres
do seu sofrimento [e das causas do sofrimento,] e está associado a um senso de compromisso,
responsabilidade, e respeito em direção ao outro” (p. 126, grifo nosso). Em tibetano, a palavra
correspondente é tsewa, cuja tradução aproximada é de um “cuidado caloroso”, visto como a
mais fundamental das emoções humanas (idem).
Mudita, em Sânscrito, ou alegria-empática, é a Terceira Incomensurável a ser
cultivada, onde estamos buscando pessoas ou eventos particulares com os quais podemos nos
regozijar. “Estamos deliberadamente elegendo aventura-ser como uma atenciosidade vívida
para descobrir ´onde existe felicidade e virtude no mundo? (...) Enquanto nossa empatia for
limitada, e nossa alegria seja para alguns mas fuja de outros; enquanto nossa compaixão e
nossa bondade-amorosa são apenas para alguns escolhidos, essas qualidades do coração estão
manchadas pelas aflições do apego e da aversão.” (p. 140)
Ainda associada, existe a qualidade da equanimidade, a Quarta Incomensurável,
que não pode ser confundida com indiferença, ou como meramente um sentimento de negação
ao prazer ou à dor. Essa qualidade mental está relacionada a mais que um sentimento
ordinário, “é uma postura, uma atitude – uma maneira de assistir aos outros que não envolve
nem apego àqueles que nos são próximos, nem aversão à qualquer um que possa impedir
nossa felicidade.” (p. 149) Equanimidade, nesse contexto das Incomensuráveis, equilibra
139
nossa perspectiva com a dos outros, apontando para o transcender de apegos e aversões
particulares.
Desse prisma, formulamos um modelo de grupo (Grupo de Florescimento
Humano, GFH), com oito encontros de duas horas de duração e periodicidade semanal, onde
exercícios de meditação clínica são aplicados, inspirados nas três décadas de experiência dos
programas de Redução de Estresse (KABAT-ZINN, 1990/2005; 2005) na Universidade de
Massachussets (EUA). Os protocolos de meditação, com objetivo de desenvolver e ampliar as
quatro atitudes anteriormente mencionadas, foram discutidos e elaborados por Wallace
(2005b), sendo, posteriormente, traduzidos e gravados em mídia sonora para disponibilização
no GFH.
No desenho do GFH, elegeu-se como metodologia de intervenção o Método
(Con)texto de Letramentos Múltiplos (MC), após sua década de aplicação e estudos em
contextos variados, cujas três fases de intervenção foram empregadas ao contexto da
meditação clínica: na primeira fase, os participantes são convocados à leitura estética para as
instruções e realização das práticas meditativas, seguidas da escrita para os estímulos neles
evocados durante a prática, e, posteriormente, da recriação coletiva dessas experiências.
Para o MC, a natureza do GFH representa uma contribuição valiosa no
aprofundamento da sua fase trans-subjetiva, no contexto das três fases de subjetivação – das
quais as fases intra e inter-subjetiva que foram significativamente analisadas e
compreendidas. Sumariamente falando, o GFH delimita-se, portanto, enquanto uma estratégia
psicoeducativa instrumentalizada pelo MC, ou seja, que incorpora na atitude do terapeuta as
condições facilitadoras da ACP, com o objetivo do cultivo ou facilitação psicoeducativa do
processo de felicidade genuína através das meditações clínicas.
O GFH ocorre mediante o número máximo de doze participantes adultos e
inscritos voluntariamente por meio de anúncio público, com um facilitador (psicólogo) e dois
assistentes de facilitação (graduandos em psicologia), além de quatro a seis estudantes de
psicologia, vinculados ao grupo de pesquisa, que apenas acompanham e registram o processo
na sala de observação.
No primeiro encontro, de caráter introdutório e explicativo, realiza-se uma
dinâmica de integração entre os participantes, utilizando “estímulos evocativos”, em forma de
três imagens padronizadas que, sem qualquer legenda textual, evocam nos participantes
experiências relacionadas à “felicidade hedonista”, “felicidade eudaimonista” e “felicidade
genuína” (SOUSA, 2006).
140
Posteriormente, discutem-se as várias motivações e leituras das imagens, escuta
das expectativas para o grupo, apresentando-se, ainda, um roteiro e explicações
pormenorizadas acerca das atividades que serão desenvolvidas nos encontros das sete
semanas seguintes, onde, também, é procedida, nesse encontro, a assinatura dos termos de
participação e consentimento de pesquisa livres.
O oitavo encontro propõe-se uma avaliação coletiva sobre a experiência, a partir
dos registros no “caderno de experienciações”. Nesta metodologia, o caderno acompanha o
participante nos registros dos conteúdos evocados durante as práticas de meditação
recomendadas ao participante para realização diária.
Em março de 2006, com a abertura do semestre letivo, teve início um primeiro
grupo aberto à clientela assistida no SPA – Serviço de Psicologia Aplicada, dentro do Núcleo
de Atenção Médica Integrada – NAMI da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, composto de
doze participantes heterogêneos (sexo, idade, escolaridade, profissões). Até setembro de 2007,
14 grupos foram realizados (dentro e fora do SPA, para clientes, funcionários, técnicos,
coordenadores), com participação de 160 clientes.
Percebeu-se, ainda, a necessidade da construção de um vínculo mais estreito entre
práticas e saberes psicológicos no domínio das redes sociais e institucionais de atendimento
em saúde, tanto para contribuir como aprender, em consonância à definição da Organização
Mundial de Saúde (OMS), na qual “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não apenas a ausência de afecção ou doença.” (HOLANDA, 1999).
Uma breve conclusão
Nessa direção multidisciplinar e sensível ao diálogo, parece corroborar a proposta
do biólogo Matthieu Ricard, Ph.D., ao definir felicidade como “um senso profundo de
florescimento que emerge de uma mente excepcionalmente saudável (...) é também uma
forma de interpretar o mundo, uma vez que sendo difícil de mudar o mundo, é sempre
possível mudar a forma como nós o vemos” (RICARD, 2003/2006, p. 19, tradução livre).
Não menos importante, é o fato de que a aplicação do GFH oferece uma
modalidade de inserção crítico-social do psicólogo ou de uma “clínica social” (SZYMANSKI
; CURY, 2004), em áreas que dialogam com a saúde coletiva e que não se incluem,
necessariamente, ao campo das práticas mais freqüentes e consolidadas em psicologias
comunitárias e sociais.
141
Na verdade, apresenta-se como uma alternativa metodológica que amplia
cenários, soma esforços e interroga estratégias conhecidas na atuação e cuidado psicológicos
na interface com a saúde. Especialmente, no que diz respeito às concepções integradas de
saúde que vislumbram o ser humano como um organismo biopsicosocioespiritual.
O filósofo Robert Solomon (2003) argumenta que
Espiritualidade significa alguma coisa, significa reflexão. Isso não quer dizer
reflexão sem sentimento, não é preciso dizer, nem qualquer reflexão ou tipo
de reflexão, é claro, mas reflexões sobre o significado da vida e os
sentimentos profundos que essas reflexões engendram (p. 31).
No contexto do GFH, onde aos participantes é oportunizado um ambiente de
contemplação de si mesmo e dos lugares ocupados perante a vida, chegamos a uma
compreensão possível de espiritualidade enquanto “nada menos que o amor bem pensado à
vida” (SOLOMON, 2003, p. 18), que não significa, ainda segundo o mesmo autor, “ser
religioso – muito menos pertencer a uma religião organizada – para ser espiritual” (p. 19).
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144
A RELAÇÃO DAS ECLESIOLOGIAS COM OS NOVOS PARADIGMAS
234
MSc. Antonio Carlos Ribeiro235
RESUMO: As igrejas cristãs latino-americanas, com eclesiologias diversas, buscam novos
paradigmas para superar tensões teológico-pastorais e evitar discurso hermético e intolerante. Para
interagir na atualidade é necessário dialogar com a modernidade, admitir novos paradigmas e adotar a
metodologia transdisciplinar. O confronto da pré-modernidade com o mundo moderno é um fenômeno
transcultural, percebido nas estruturas eclesiais, com elementos contraditórios e de tal densidade, que
os procedimentos de natureza pastoral, doutrinária ou apologética, recentemente reabilitados, têm se
mostrado insuficientes para a análise. A epistemologia transdisciplinar da complexidade, que supera a
marca das fronteiras entre as disciplinas, tornou-se um ferramental para modelizar sistemas complexos
de conhecimento, substituindo a lógica aristotélica e privilegiando diferentes níveis de realidade, a
complexidade e o terceiro incluído. Por ser a razão ocidental o paradigma no qual a teologia se
desenvolveu, as adaptações foram feitas enquanto o desajuste era tolerável e não destoavam na cultura
ambiental. Após o início da modernidade a tensão tem crescido até tornar-se insuportável. Como a
mudança é epocal e a crise já se disseminou pela cultura, o conflito se mostra numa religiosidade que
se fecha em círculos concêntricos de negação do corpo, da vida, do prazer, e premido pelo medo e a
culpabilização em nome da fé, ou criando rupturas. No ocidente, a lógica da filosofia clássica começa
a ceder espaço à lógica da física quântica, apoiada na metodologia definida no Primeiro Congresso
Mundial da Transdisciplinaridade, com uma epistemologia que admite níveis diferentes de realidade,
raciocínios marcados pela complexidade e guiados por perspectiva inclusiva. Palavras-chave:
eclesiologias, modernidade, paradigmas, transdisciplinaridade, inclusão.
ABSTRACT: The Latin-American churches, with different eclesiologies, search for new paradigms
to overcome theological and pastorals tensions, and to avoid intolerant speeches. At the present time it
is necessary to dialogue with modernity, to admit new paradigms and to adopt the methodology of
transdisciplinarity. The confrontation of the pre-modern age with the modern world is a transcultural
phenomenon, visible in the ecclesial structures, with contradictory elements and of such a density, that
the procedures of pastoral, doctrinary or apologetic nature, recently rehabilitated, have been
insufficient for the analysis. The transdisciplinar epistemology of “the complexity”, that overcomes
the boundaries of the themes, became an instrument to modelize complex systems of knowledge,
instead the Aristotelian logic and privileging different reality levels. This logic was the paradigm in
which theology grew some adaptations were made although the disagreement was tolerable and didn't
disagree with the culture. After the beginning of modernity the tension has been growing and is
becoming unbearable. We are living a change of time and the crisis is already disseminated by the
culture, the conflict appears in a religiosity closed in concentric circles which deny body, life,
pleasure, and is pressed by fear and guilt on behalf of faith, or even more creating ruptures. In the
occident, the classic logic begins to loose up space to the quantum physics logic, as a methodology
defined by the Congress of Transdisciplinarity, with an epistemology that admits different levels of
reality, with thoughts marked by “the complexity” and guided by an inclusive perspective. Keywords: eclesiologies, modernity, paradigms, transdisciplinarity, inclusion
234
Excertos da Tese de Doutorado em Teologia, orientada pela Profª DrªAna Maria Tepedino, a ser defendida na
PUC-Rio.
235
Pastor luterano, secretário do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio),
Bacharel em Teologia (STBSB), Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo), Mestre em Teologia e
Doutorando em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Av. Paranapuã,
1203, C 10 – Ilha do Governador – 21910-002 – Rio de Janeiro RJ – e-mail: [email protected]) –
Cur. Vitae: http://lattes.cnpq.br/5999603915184645
145
Aparece mais clara a raiz do mal-estar. E seu verdadeiro alcance também. Estamos
assistindo neste momento histórico a uma verdadeira mudança epocal. Algo muito mais
profundo do que uma simples mudança de paradigmas. É o conjunto da cosmovisão até
agora dominante no ocidente que está em jogo... ao mesmo tempo que a tomada
de consciência da dimensão planetária da história levanta novos problemas.
Carlos Palácio236
A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua
lógica privilegiada, na medida em que nos permite atravessar, de maneira coerente
os diferentes campos do conhecimento... O terceiro secretamente incluído é o
guardião de nosso mistério irredutível, único fundamento possível da tolerância e
da dignidade humana. Sem esse terceiro tudo é cinzas.
Basarab Nicolescu237
Para compreender o papel das igrejas cristãs latino-americanas diante do diálogo
inter-religioso é fundamental elaborar critérios de aproximação da realidade: a sensibilidade
das estruturas administrativas eclesiais, a disposição de estabelecer um processo real de
diálogo com as instâncias teológicas e pastorais, e as comunidades, se tornarem sujeitos do
diálogo.
A opção pela expressão eclesiologias reflete a disposição de analisar um
fenômeno que não é percebido num só modelo eclesial, mas apresenta elementos
contraditórios e tem tal densidade, que as análises de corte especificamente pastoral,
doutrinária ou apologética têm se mostrado insuficientes para a sua contenção. Discursos e
sanções disciplinares das autoridades eclesiásticas têm, a um só tempo, se tornado mais
contundentes e se mostrado ineficientes nas últimas décadas. Isso suscita perguntas sobre as
dificuldades geradas pelos novos paradigmas, torna os cristãos escarmentados238.
A busca na relação cultura-modernidade contou com as análises de Claude Geffré,
Carlos Palácio e Andrés Torres Queiruga. Sobre os novos parâmetros oriundos da física
236
PALÁCIO, Carlos. Novos paradigmas ou fim de uma era teológica? ANJOS, Márcio Fabri dos (org).
Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Soter/Loyola, 1997, p. 81. É formado em filosofia em Nova Friburgo,
teologia na Bélgica (Lovaina) e fez o doutorado em Cristologia. Foi professor da Faculdade de Teologia no
Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus em Belo Horizonte e atualmente é o provincial dos
jesuítas.
237
NICOLESCU, Basarab. Nous, la particule et le monde. Mônaco: Rocher, 1989, p. 240 apud ARAGÃO,
Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Teologia, transdisciplinaridade e física: uma nova lógica
para o diálogo inter-religioso. Revista Eclesiástica Brasileira, 66 (263), p. 646, 649. Nicolescu é físico teórico
do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, fundador do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos
Transdisciplinares, professor da Universidade Pierre e Marie Curie, autor de diversos livros e centenas de artigos
publicados que desvendam as relações entre arte, ciência e tradição que caracterizam o mundo contemporâneo.
Expressão usada pelo teólogo Claude Geffré para descrever o ambiente de conflito, gerado por discursos teológicos em
disputa e pela falta de efeito dos recursos normalmente utilizados no exercício do poder, como uma apatia imperial, uma falsa
tolerância ou uma firme convicção contracultural (La verdad del cristianismo en la era del pluralismo religioso. Selecciones
de Teología, 37 (146): 138, abr-jun 1998). Claude Geffré, nasceu em Niort (França) em 1926, foi professor do Institut
Catholique de Paris, das Faculdades Dominicaines de Saulchoir, diretor do Cycle des Études de Doctorat (CED) e da l’École
biblique et archéologique française de Jérusalem e editor da coleção Cogitatio Fidei..
238
146
quântica, segui o resultado da pesquisa de Basarab Nicolescu a partir da pesquisa de Gilbraz
dos Santos Aragão e Maria Clara Luchetti Bingemer.
1 Paradigmas culturais da modernidade
A expressão paradigma ronda a produção teológica no debate sobre linguagem,
temática, abordagem e epistemologia do conhecimento, usadas ajudam a debater temas da
atualidade. Sua aplicação à teologia resulta do esforço de diálogo com outros saberes,
postulando o aprendizado através da multidisciplinaridade, superando a noção de propriedade
de métodos, estratégias, pesquisas, metodologias e linguagens, que cada ciência usa para o seu
discurso. Com a transdisciplinaridade239, começou a esboçar-se um avanço significativo e
menos conflitivo no processo da troca de saberes.
Carlos Palácio aprofundou as indagações ao fazer teólogos e teólogas se
indagarem sobre a mudança240 Se for apenas uma crise de paradigma, é necessário indagar,
inicialmente se é de natureza epistemológica. Mas a crise de sentido que afeta todas as
dimensões da vida humana mostrou que o aparato de natureza filosófica, científica e técnica,
de acúmulo de informação e disponibilização de saberes não têm encontrado resposta na
ordem jurídica e institucional, não se tem alcançado consensos mínimos e nem a globalização
tem mostrado resultados positivos na superação de problemas sociais, políticos e econômicos.
Ao serem aplicados à religião e à teologia, esses arrazoados evidenciam a dimensão da crise e
apontam para a dinâmica do fenômeno religioso, os interesses filosófico-teológico-pastorais, e
os impactos que geram na compreensão social e antropológica dos seres humanos deste
começo de século, pelo qual
o paradigma da razão moderna que é toda uma maneira de entender o ser
humano na sua existência real: em todas as suas dimensões, nas suas opções
concretas por valores e fins, na sua responsabilidade pela história e na sua
relação com a transcendência... e essa maneira só mudará quando
‘problemas’ como a afirmação da mulher, o reconhecimento das minorias ou
a questão ecológica por exemplo forem pensados dentro de uma lógica
diferente da que preside a razão moderna... Ora, a razão ocidental é o
paradigma dentro do qual se desenvolveu e com o qual se identificou até
hoje a teologia241.
239
NICOLESCU, Basarab. A Evolução Transdisciplinar da Universidade; condição para o Desenvolvimento
Sustentável. Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares. http://perso.clubinternet.fr/nicol/ciret/ - 18.05.1999.
240
A pergunta apresentada numa publicação da SOTER, uma entidade de traço mais profissional que
confessional, levantou perguntas com as quais teólogos e teólogas tiveram que defrontar-se PALÁCIO, Carlos.
Novos paradigmas ou fim de uma era teológica? ANJOS, Márcio Fabri dos, org. Teologia aberta ao futuro. São
Paulo: SOTER/Loyola, 1997, p. 77-97.
241
Ibid., p. 80, 81.
147
Para Palácio, a mudança é efetivamente epocal, a situação é mais grave, tendo a
crise já se disseminado pela cultura e obrigado teólogos e teólogas a redescobrir as fontes em
que se assentam esses valores e a indagar pela natureza dessa crise da razão moderna e
ocidental:
Já no início do século [XX] Freud utilizou a imagem do ‘mal-estar’ para
referir-se às transformações da moderna cultura ocidental... À medida que o
século caminha para seu fim aparece mais clara a raiz do mal-estar. E seu
verdadeiro alcance também. Estamos assistindo neste momento histórico a
uma verdadeira mudança epocal. Algo muito mais profundo do que uma
simples mudança de paradigmas242.
Palácio usa a noção de mudança do tempo-eixo243 para interpretar os sintomas de
mal-estar e de crise desta época. “A razão moderna se revela cada vez mais como uma razão
fragmentada, incapaz de encontrar a unidade que exigia no universo racional da sabedoria
grega e, menos ainda, no teocentrismo do mundo cristão ocidental”244. Outros traços são fazer
do sujeito o fundamento e o ponto de referência absoluto, a ruptura entre homem, mundo e
Deus, a exaltação da utopia individualista, a destruição da natureza em nome do crescimento
sem limites e a volta de uma religiosidade selvagem.
Diante da impossibilidade de retornar à época pré-moderna, resta constatar o fim
de uma era teológica, na qual obriga-se a teologia a rever sua relação de dependência da razão
ocidental, sofrendo os impasses da crise dessa razão, que resultam em depauperação do
conhecimento e ocultamento de Deus:
A razão moderna se tornou alvo de muitas críticas. As perspectivas podem
variar mas todas acabam por denunciar o mesmo mal: o caráter unilateral,
fragmentário, instrumental do conhecimento científico como protótipo do
conhecimento humano... A razão instrumental pressupõe um modelo de
‘sujeito’ e se apóia numa concepção antropológica que ameaça o equilíbrio
da experiência humana. O chamado ‘pensamento débil’ é a expressão
perfeita desse ‘homo debilis’, desse estado de penúria ao qual foi reduzida a
experiência humana245.
As causas se encontram nos inícios da época moderna, nesse século XVI marcado
pela transição, com os pressupostos e as opções que modelaram a razão moderna, no qual
242
Ibid., p. 81.
“É precisamente na área geográfico-cultural do tempo-eixo (China, índia, o atual Irã, no oriente; Grécia e
Israel no mediterrâneo) que teve lugar uma profunda depuração da idéia da transcendência: na linha das religiões
orientais (sobretudo do budismo), na linha profética do monoteísmo ou ainda na linha da crítica racional que a
filosofia grega desferiu contra a mitologia religiosa”. PALÁCIO, Carlos. Op. cit., p. 82.
244
Ibid.
245
Ibid., p. 84.
243
148
surge um ser humano absolutizado, mas curvatus in se246. Com a compreensão da religião e
da teologia se fechando em círculos concêntricos de negação do corpo, da vida, do prazer,
premido pelo medo e a culpabilização, em nome da fé, o homem cristão; e, por outro lado,
com a compreensão da ciência voltada a um homem, a quem importa entender anatômica e
fisicamente, o homem natural, que por circunstâncias, acaba sendo visto em oposição. Mesmo
aqui a teologia, por causa da associação à razão ocidental peca por permitir a ruptura no
conceito de natureza247.
A razão moderna não se deu conta de que não é obra apenas da inteligência
humana, mas também do desejo, e por isso passou a transformar, dominar e fazer do mundo
criado o seu fim supremo, conquistando a vitória do produzir para consumir. Essa razão
exorbitada perdeu as referências de estar dentro de um conjunto maior, chegando aos
resultados que se fazem sentir no desamparo em que está hoje o ser humano, movendo-o em
direção às experiências-limites, às drogas, ao terrorismo, à violência e às paixões desenfreadas
que desembocam numa razão irracional.
O que está em jogo é a evolução religiosa do ocidente. E mais exatamente a
sua matriz cristã. O fenômeno histórico da secularização não pode ser
analisado unicamente na sua vertente teórica, segundo a lógica inerente à
razão secular. A indiferença religiosa e o ateísmo moderno no ocidente têm
causas históricas e explicações culturais que não podem ser transpostas em
argumentações ontológicas. É preciso levar em conta os condicionamentos
históricos que tornaram possível a inflexão atéia da cultura ocidental para
não fazer do mundo moderno um mundo constitutivamente a-teu e
incompatível com a fé cristã248.
A teologia deve buscar uma distância que lhe possibilite a perspectiva crítica que
rompa com a reclusão na imanência da história, se não vai aventurar-se na busca de
legitimação. Quando for capaz de elaborar seu discurso, próprio e legítimo, vai recuperar o
específico de seu saber, interrompendo o movimento esquizofrênico entre o altar e a cátedra, e
conquistando a possibilidade de admitir que
a crítica dos limites da razão deve ser, ao mesmo tempo, uma autocrítica da
teologia. A sua palavra só será levada a sério se for capaz de mostrar o que
possui de novo, de diferente, de irredutível. Saber específico, mas não
absoluto. E muito menos totalitário. Dito com outras palavras, a ratio
theologica deve mostrar que é ratio e que é theologica, ou seja, que é um
saber sensato (e, portanto, racionalidade, não puro sentimento nem
experiência cega) sobre a experiência comum da vida humana. Por isso pode
interessar a outros. Mas saber específico, a partir da perspectiva particular
246
Encurvado sobre si mesmo. Para compreender esse período é fundamental ler DELUMEAU, Jean. O pecado
e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Trad. de Álvaro Lorencini. Bauru: EDUSC, 2003. 2 v.
247
PALÁCIO, Carlos. Op. cit., p. 85.
248
Ibid., p. 88.
149
que é a fé (e, portanto, irredutível a outros saberes, ainda que não oposto a
eles)... Ou a relevância da teologia brota do que ela é, ou estará condenada a
ser um discurso mimético e repetitivo de linguagens já conhecidas... É
visível, por outro lado, o caráter fragmentário da teologia atual, reflexo de
uma razão fragmentada. Em parte por opção metodológica249.
Os efeitos da razão ocidental, que obrigam teólogos a reverem o estatuto
ontológico da ciência na qual militam, encontram na transdisciplinaridade uma motivação,
possibilitando a proximidade da experiência da vida de fé, das urgências pastorais e dos
problemas reais. Humilde, aprenderá que não é o único saber científico sobre o mundo, o
homem e Deus, mas um ao lado de outros, igualmente parciais. Com isso vai renunciar à
pretensão de ser rainha das ciências, ter claro que não há outra a lhe servir (philosophia
ancilla theologiae), aprender a conviver num mundo plural, iluminar e ser iluminada, fazer
interpretação, de forma particular mas com sentido, re-descobrir que a melhor forma de ser
universal ainda é mover-se no seu ambiente (cantar sua própria aldeia) e mostrar-se aberta
para receber das ciências os conteúdos sobre o homem, a sociedade, a história e o cosmo,
numa palavra: “pôr em contato essa atualidade histórica com a tradição de Jesus de Nazaré, da
qual vive a teologia. Nesse sentido a função da teologia é a de mediação: fazer com que as
questões do presente interroguem a tradição para que a tradição possa ressoar no presente”250.
Para explicar o efeito da mudança de paradigmas na perspectiva cultural, Andrés
Torres Queiruga251 esclarece que durante longo período "o desajuste era tolerável; pois, no
fundo, essas formas não destoavam na cultura ambiental. Mas desde o início da Modernidade
a tensão foi-se tornando insuportável"252. O afetamento inevitável está ligado exatamente ao
"fato de a crise que dá origem à Modernidade ter consistido justamente nisso: em pôr em
questão, desde os mais profundos alicerces, todo o marco em que a experiência cristã tinha
sido modelada e configurada. Quando Descartes se propôs a 'duvidar de tudo', não obedecia a
um mero capricho, mas constatava o fato de que todo um mundo cultural tinha vindo abaixo e
que era preciso reconstruí-lo desde a base"253.
A principal marca da modernidade é a autonomia dos diversos âmbitos da
realidade, começando pela física, com a ruptura com a cosmologia herdada e a ameaça à
autoridade tradicional; passando pela economia e a política, que pensaram a estrutura da
sociedade, a partilha da riqueza e o exercício da autoridade como fruto de decisões humanas;
249
Ibid., p. 89.
Ibid., p. 93.
251
QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. Trad.
Afonso Maria Ligorio Soares. São Paulo: Paulus, 2003.
252
Ibid., p. 17-8.
250
253
Id. Ibid., p. 18.
150
com a psicologia e as perspectivas não-imediatistas de compreender o ser humano; e a moral,
derivando seus conteúdos não apenas do religioso.
A simples admissão ou constatação das conquistas e avanços, especialmente na
área do conhecimento, levaram à dúvida se a fé teria renunciado diante da pressão do espírito
do tempo, com efeitos diretos no discurso teológico, como já visto. A polarização entre o
discurso religioso e as descobertas e análises científicas, a criação de um ambiente de conflito,
o discurso de desprezo e de saudação do novo, o confronto entre a tradição e os avanços
científicos, marcaram a marcha da cultura. O resultado foi “conservadorismo eclesiástico e
teológico, por um lado, e crítica secularista e atéia, por outro, que polarizaram a marcha da
cultura, carregando-a por ambas as partes de agressividades e mal-entendidos”254.
O equilíbrio surgiu como necessidade e, com posturas de filósofos e teólogos que
estão em debate neste momento, está se buscando uma nova objetividade através da relação
imanência-transcendência. A intervenção de teólogos demonstrando que há mudanças na
compreensão da intervenção divina, mas que Ele não está separado do mundo. Diante disso
afirma a presença divina nas diversas expressões do mundo, baseado na noção de finito que
tem sua verdade no infinito (Pannenberg), de infinito positivo (Ruibal), do Deus que cria
liberdades sem oprimi-las (Kierkegaard), e do Deus que não precisa fazer intervenções
pontuais porque já está agindo desde sempre (Bonhoeffer).
Surge a preocupação com a espiritualidade, pela qual a oração fica plena de
gratuidade porque dirigida a um Deus que sempre trabalha por nós, sendo alguém a quem
podemos acolher, auxiliar, deixar-nos convencer, colaborar, agradecer e confiar, apesar da
nossa finitude. Na cristologia, deve “pensar-se e repensar-se a partir da convicção radical de
que tudo o que vem de Deus só é interpretado legitimamente quando assume um sentido
positivo e libertador” pro nobis255. De sorte que toda interpretação que faça aparecer a história
de Deus com a humanidade como ameaça, carga ou agravamento de seu destino é por isso
mesmo falsa”256. Na soteriologia, o raciocínio segue o mesmo percurso, apontando para o real
e afastando-se dos milagres, vistos como “intervenções empíricas que não só romperiam a
justa autonomia (concedida por Deus) do real, como também rebaixariam sua ação ao nível
254
Ibid., p. 23.
Para nós, por nós, sentido vicário. QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a salvação: por uma
interpretação libertadora da experiência cristã. São Paulo: Paulus, 1999.
255
256
Ibid.
151
das causas intramundanas, de sorte que, segundo Kasper, ‘Deus não seria outra coisa senão
um ídolo’”257.
Observa ainda o teólogo galego que “o não-intervencionismo divino no âmbito da
liberdade mostra a ação salvadora como que procurando se realizar em favor de todos, através
de nossa livre acolhida. Sua ação aparece, portanto, como solicitação a ser acolhida em uma
práxis social que colabore com Ele na realização de seu desígnio salvador, no advento de seu
Reino: ‘escutai’ meu grito no grito dos pobres e ‘tende piedade’ deles. A teologia política e a
da libertação, assim como a nova teologia feminista e, em geral, toda a reflexão teológica
sobre as exclusões, mostram a profunda penetração desta idéia na consciência teológica”258.
A autonomia da subjetividade, configurando a modernidade na razão religiosa ao
custo da perda de autoridade e desprestígio da tradição como reações excessivas significou
colocar limites à concepção a-histórica do dogma e à leitura literalista da Bíblia. Essa atitude
de manter a antiga postura de “subjetivismo irracionalista” e “concepção autoritária da fé”,
que a converteria em “cega ingenuidade, credulidade ou mesmo superstição”, transformando a
condição dos crentes num anacrônico “asylum ignorantiae”259. Deveu-se às teologias da
palavra, especialmente a publicação do manifesto Revelação como História260, que explicam a
guinada que significou a Dei Verbum no Vaticano II261.
O primeiro efeito prático da nova análise imanência-transcendência é permitir
“compreender que Deus não necessita romper, de forma milagrosa ou intervencionista, a justa
autonomia do sujeito, para poder se anunciar em sua imanência”, sem necessitar de avanço
histórico, apenas recuando a Agostinho de Hipona, foi possível ver “Deus que como origem
fundante está ‘já dentro’, habitando nosso ser e procurando se manifestar a nós: noli foras ire:
in interiore homine habitat veritas”262.
Outro passo é a superação da noção de algo que vem de fora (o extra nos, de
Lutero), ou o Ofenbarungspositivismus (positivismo da revelação) de que Dietrich Bonhoeffer
acusa Karl Barth, sendo substituído pela maiêutica histórica, que o próprio Queiruga
configura, a partir de Blondel, Rahner e Pannenberg, e que Juan Luís Segundo caracterizou
257
KASPER, Walter. Jesús, el Cristo. Salamanca, 1976, p. 112, sobre o qual Queiruga observa que “apesar de
certas oscilações, este equilibrado capítulo merece ser lido por inteiro (p.108-21). QUEIRUGA, Andrés Torres.
Fim do cristianismo pré-moderno, p. 43.
258
Ao falar da Teologia da Libertação, cita J. SOBRINO. La fe em Jesucristo: ensayo desde las víctimas.
Madrid, 1999. Ibid., p. 44.
259
PANNENBERG, Wolfhart. Glaube und Wirklichkeit. München, 1975, p. 8-9 apud Ibid., p. 46.
260
Offenbarung als Geschichte. Göttingen, 1970, apud Ibid.
261
Ver Ibid., p. 47.
262
Ibid., p. 48.
152
como aprender a aprender263. Esses passos foram fundamentais para estabelecer uma ruptura
irreversível com a pré-modernidade.
O enfrentamento do anúncio da fé cristã na modernidade, de acordo com Geffré,
esbarra no diálogo e precisa superar uma perspectiva que disfarça a arrogância com falsa
piedade. Foi preciso um tempo longo, e ainda em processo, para assimilar a lição pela qual
“temos aprendido a colocar fim a uma tolerância desenfreada. Só existe diálogo autêntico
quando cada um se remete a uma identidade. Como conseqüência, a autêntica tolerância
descansa sobre convicções profundas”264. Os cristãos não são chamados a dirigir o processo,
ou manter uma postura piedosa ou ainda a manifestar um imperialismo secreto, como se o que
há de verdadeiro e bom nas outras religiões se originasse no cristianismo implícito, tido como
a expressão plena de toda religião. “Não se trata de compensar o caráter absoluto da verdade
cristã mediante uma prática cada vez mais tolerante, mas sim de manifestar como o
cristianismo contém em si mesmo seus próprios princípios de relativização”265.
A impossibilidade de interpretar o pluralismo religioso como a cegueira culpável
dos seres humanos, leva a indagar: “o pluralismo de fato que constatamos não remete a um
pluralismo de princípio, não só permitido, mas também querido por Deus?”266. Essa
afirmativa que adota uma posição aberta, ecumênica e inclusiva, ofende cristãos que adotam
uma concepção absolutista e exclusivista do cristianismo, obrigando teólogos a afirmarem que
a plenitude da verdade, da qual o cristianismo é portador, constitui o
cumprimento da parte de verdade imperfeita que pertence já às outras
religiões. Esta é a lógica da promessa-cumprimento que surge do
Cristocentrismo inclusivo da maior parte dos teólogos católicos a partir do
Concílio267.
Essa lógica, além de não respeitar a igualdade exigida em todo diálogo
verdadeiro, não leva a sério a identidade de cada religião e manifesta uma inarredável
determinação de só admitir como legítimo no outro aquilo que entendo estar ligado à minha
própria fé. Ao afirmar que a verdade é singular, e portanto relativa, suscita a acusação de estar
renegando a unicidade da fé cristã em Jesus Cristo, que seria negada se fosse exigida ou
imposta àqueles que não professam. “Não basta recordar que no cristianismo, como em toda a
263
O dogma que liberta; fé: revelação e magistério dogmático. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2001.
GEFFRÉ, Claude. La verdad del cristianismo en la era del pluralismo religioso. Selecciones de
Teología, (146), p. 138, 1998. (A verdade do cristianismo na era do pluralismo Religioso. Cristianismo e
pluralismo religioso. Brasília: CNLB, [s.d.], p. 6).
265
Ibid.
266
Ibid., p. 7.
267
Ibid., p. 8.
264
153
religião autêntica, a fé pode ser da ordem de um compromisso absoluto, por mais que a
verdade à qual ela se remete não possa ser senão relativa, inclusive por ser histórica”268.
Para ele, “o ser aparecido em Jesus Cristo ao mesmo tempo forma parte de
história e dirige a história: Entra na história e é supra histórico”269. Essa reflexão é baseada no
mesmo paradigma moderno que, sem negar sua dimensão universal para toda a história,
constitui sua condição de possibilidade. A verdade cristã, para ele, é de outra ordem que a
verdade objetiva, aprendida na teologia da escola. Está baseada no testemunho e não pode ser
afirmada a não ser na incondicionalidade da fé.
Para afirmar a fé cristã é preciso ousar ir além de Aristóteles, até chegar à verdade
bíblica, que pertence às três ordens: a da manifestação, a da antecipação e a do
compartilhamento. A primeira, a ordem da manifestação do que está oculto e revela sua
verdadeira absolutez ao não excluir “as outras verdades de ordem religiosa e cultural
compartilhadas pela comunidade humana”270, lembrando que Yves Congar citava Niels
Bohr271. A ordem da antecipação, a segunda, é aquela que é “um acontecer permanente que
tende até uma realização, mais além da história. Cristo constitui a identificação da verdade
mesma de Deus, aquele que realiza todas as figuras do Antigo Testamento”272. O que Paulo
chama a plenitude de Cristo só se dá completamente com a chegada do Reino de Deus,
segundo ele, nos fazendo recuperar a noção de adequação, que se distingue das concepções
metafísicas que podem converter-se em ídolos conceptuais nos quais julgamos encerradas a
abundante verdade divina; ao mesmo tempo que os enunciados da fé cristã nos remetem a um
mistério que nos supera, revelado pelo Espírito-Parácleto e que só pode ser falado por quem
vem da luz e conduz à verdade plena, segundo o ensino da comunidade joanina, que acontece
prolepticamente no Cristo que, sem temer o devir da humanidade e da Igreja, nos remete ao
futuro. E, a terceira e última, a ordem do compartilhamento, é a da tolerância, a verdade que
se firma em convicções e por isso pode suspender a questão sobre a verdade. Nela se
distingue o diálogo que promove o serviço das grandes causas da humanidade, do diálogo
doutrinal, que implica as verdades diferentes e dificilmente conciliáveis.
Expressar a verdade do cristianismo é conservar o relativo como oposto ao
absoluto e compreender que a essência da verdade é ser compartilhada em atitudes que “não
268
Ibid.
Ibid.
270
Ibid., p. 9.
271
“O oposto de uma afirmação verdadeira é uma afirmação falsa, mas o oposto de uma verdade profunda pode
ser outra verdade profunda”. Ibid. BOHR, Niels. The unity of Knowledge. New York: Doubleday, 1995.
272
Ibid.
269
154
nos condenam ao relativismo nem ao ascetismo unicamente do testemunho do caráter
transcendente da verdade absoluta que coincide com o mistério de Deus”273.
2 Da lógica aristotélica à física quântica: o terceiro incluído
Há setores da teologia que têm assimilado as novas epistemologias, se apropriado
dos novos saberes e até adotado a nova metodologia para ampliar seu diálogo com a
realidade. E, há os que ainda têm dúvidas, por sentirem-se epistemologicamente atados ao
modus operandi científico do mundo ocidental, ou protegidos pela autoridade teológica,
acadêmica ou pastoral, ou ainda apreensivos em relação à influência e às conclusões que a
nova lógica pode significar para a reflexão teológica.
As pesquisas em torno da transdisciplinaridade objetivam “o reconhecimento da
interdependência de todos os aspectos da realidade”274, quando “há um novo ponto focal que
permite a convergência das ciências físicas e sociais, das artes e das letras, da filosofia e dos
conhecimentos que transcendem o domínio racional, em suma, da totalidade das relações do
homem com o mundo”275.
Ao explicar esse fenômeno, Edgar Morin aponta os princípios segundo os quais “a
dissociação entre o sujeito (ego cogitans) devolvido à metafísica, e o objeto (res extensa),
relevando a ciência. A exclusão do sujeito efetuou-se numa base em que a concordância entre
experimentações e observações por diversos observadores permitia chegar a um
conhecimento objetivo”276. Mas o resultado, observa o sociólogo, é que a ciência se esqueceu
que as teorias científicas são produtos do espírito humano e das suas estruturas em grande
parte modeladas por contextos de natureza sócio-cultural, e por essa razão perdeu a
capacidade de pensar-se a si mesma de modo científico, “incapaz de prever se o que resultará
do seu desenvolvimento contemporâneo será a aniquilação, a escravidão ou a
emancipação”277.
A partir desta motivação de natureza sócio-cultural, Morin propõe nova
disciplinaridade com um paradigma que permita ao mesmo tempo, a distinção, a separação ou
mesmo a oposição, isto é, a disjunção desses domínios científicos, “mas que possa fazê-los
comunicar sem operar a redução”, sugerindo ainda que o chama de paradigma simplificado
(redução/disjunção), por um paradigma de compleidade, que ao mesmo tempo separa e
273
Ibid.
Ibid.
275
JANTSCH, Erich. L’interdisciplinarité: les reves et la realité. Perspectives, 10 (3), 1980 apud . Ibid., p. 32.
276
Ibid., p. 33.
277
Ibid.
274
155
associa278. Por isso Nicolescu assume sua afirmação enfática de que o conhecimento do
complexo condiciona uma política de civilização279.
A primeira explicação para a emergência deste tipo de saber que redescobre no ser
humano o elo de ligação, ao mesmo tempo que o centro a partir do qual irradiar-se, como
explicou Nicolescu:
uma grande defasagem entre as mentalidades dos atores e as necessidades
internas de desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre acompanha a
queda de uma civilização. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os
saberes que uma civilização não pára de acumular não pudessem ser
integrados no interior daqueles que compõem esta civilização. Ora, afinal é o
ser humano que se encontra ou deveria se encontrar no centro de qualquer
civilização digna deste nome280.
Para fazer frente a esses dilemas surgiu um conhecimento que, “como o prefixo
‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das
diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo
presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento”281.
O texto de Gilbraz de Souza Aragão e Maria Clara Luchetti Bingemer, apresenta
novos
paradigmas
epistemológicos
que
trazem
alterações
significativas
para
a
interpretação282. A necessidade de nos reconhecermos como comunidade humana integrada
aos demais seres vivos, que evolui com o conjunto da criação de Deus, com uma relação de
interdependência cada vez mais demonstrada, que se traduz para a teologia como um apelo
aos místicos e aos cientistas para a elaboração de um discurso que melhor articule a relação
Deus-ser humano-natureza.
2.1 Diferentes níveis de realidade
A transdisciplinaridade postula que “toda tentativa de reduzir a realidade a um
único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade” (art.
2), e “é resolutamente aberta na medida em que ultrapassa o campo das ciências exatas por
sua lógica e sua reconciliação, não apenas com as ciências humanas, mas também com a arte,
a literatura, a poesia e a experiência interior” (art. 5)283.
278
Ibid.
NICOLESCU, Basarab. Um novo tipo de conhecimento – transdisciplinaridade. Op. cit.
280
Ibid.
281
Ibid.
282
ARAGÃO, Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Teologia, transdisciplinaridade e física:
uma nova lógica para o diálogo inter-religioso. Revista Eclesiástica Brasileira, 66 (263).
283
ARAGÃO, Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Op. cit., p. 635.
279
156
Nicolescu baseou-se nas pesquisas de Stéphane Lupasco284, que formulou uma
nova lógica a partir da qual a experiência da microfísica permite revelar o pensamento
humano. Para este, o dualismo antagonista não é somente um traço de oposição, mas a marca
da realidade mesma, como contradição dinâmica. “Desde Planck, a física quântica colocou em
evidência que a matéria é somente uma modalidade de energia. Então, uma lógica binária não
pode dar conta da infinita diversidade das manifestações de energia em nosso mundo. Na
física dos quanta, as dualidades surgem a cada momento e nada se virtualiza (ou se
potencializa) o suficiente para que o seu contraditório se atualize a ponto de o princípio de
não-contradição, fundamento da lógica clássica, poder testemunhar sua validade”285.
A descoberta de Planck, feita durante a resolução de um problema de física que
provocou nele um problema interior, era que a energia tem uma estrutura descontínua que
pode propiciar, numa dada realidade, um novo tipo de causalidade. A matéria é somente uma
modalidade de energia, uma lógica binária não pode dar conta da infinita diversidade de
manifestações de energia. Significa dizer que pensa-se em termos de causalidades locais.
“Uma quantidade física tem, segundo a mecânica quântica, diversos valores possíveis,
afetados por probabilidades bem determinadas. No entanto, numa medida experimental,
obtém-se um único resultado para essa quantidade. Tal abolição brusca da pluralidade dos
valores possíveis de um ‘observável’ físico, pelo ato de medir, tinha uma natureza obscura,
mas indicava claramente a existência de um novo tipo de causalidade”286.
Os principais efeitos se dão em escala local. A “não separabilidade não põe em
dúvida a própria causalidade, mas uma de suas formas, a causalidade local. Ela não põe em
dúvida a objetividade científica, mas uma de suas formas: a objetividade clássica, que acredita
na ausência de qualquer conexão não-local. A existência de correlações não-locais expande o
campo da verdade e da realidade, do ponto de vista da objetividade clássica, e nos revela que
há, neste mundo, pelo menos numa certa escala, uma coerência, uma unidade das leis que
asseguram a evolução do conjunto dos sistemas naturais”287.
Isso suscita perguntas sobre a natureza dos quanta, bastante diferentes dos objetos
da física clássica, os corpúsculos e as ondas. O raciocínio possível é analógico, em relação aos
corpúsculos e ondas, sendo que
284
LUPASCO, Stéphane. L’homme et sés trois éthiques. Monaco: Rocher, 1986; Idem. L’experience
microphysique et la pensée humanine. Monaco: Rocher, 1989.
285
ARAGÃO, Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Op. cit., p. 636.
286
Ibid., p. 637.
287
Ibid.
157
Os quanta se caracterizam por certa extensão de seus atributos físicos, como,
por exemplo, suas posições e suas velocidades. As célebres relações de
Heisenberg mostram, sem nenhuma ambigüidade, que é possível localizar
um quantum num ponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo.
Em outras palavras, é impossível traçar uma trajetória bem determinada de
uma partícula quântica. O indeterminismo reinante na escala quântica é um
indeterminismo constitutivo, fundamental, irredutível, que de maneira
O maior impacto cultural trazido pela física quântica foi colocar em questão o
dogma filosófico contemporâneo da existência de um nível de realidade. Para Nicolescu
realidade é “aquilo que resiste a nossas experiências, representações, descrições, imagens ou
formalizações matemáticas”. Por essa razão, “ele nos faz descobrir que a abstração não é um
simples intermediário entre nós e a natureza, uma ferramenta para descrever a realidade, mas
uma parte constitutiva da natureza”288.
Os níveis de realidade distinguem-se em função das escalas utilizadas: das
partículas, do homem e dos planetas. “O que aparece contraditório ao nível 1 (ondacorpúsculo, separabilidade-não-separabilidade) pode ser unificado ao nível 2, com o estado T
ligado à dinâmica dos antagonistas”289.
Há, mesmo, fortes indícios matemáticos de que a passagem do mundo
quântico para o mundo macrofísico seja sempre possível. Contudo, não há
nada de catastrófico nisso. A descontinuidade que se manifestou no mundo
quântico manifesta-se também na estrutura dos níveis de Realidade. Isto não
impede os dois mundos de coexistirem. A prova: nossa própria existência.
Nossos corpos têm ao mesmo tempo uma estrutura macrofísica e uma
estrutura quântica290.
2.2 A teoria da complexidade
Se a pesquisa disciplinar for considerada fundamental, esse campo alcança todo o
conhecimento humano. Como a articulação das disciplinas era piramidal, segundo a visão
clássica do mundo, a base da pirâmide era a física:
A física quântica esperava que algumas partículas pudessem descrever toda a
complexidade física. Mas centenas de partículas foram descobertas graças
aos aceleradores de partículas. Foi proposta uma nova simplificação com a
introdução do princípio de bootstrap ou a uma espécie de ‘democracia’
nuclear, pela qual todas as partículas são tão fundamentais quanto as outras e
uma partícula é aquilo que ela é porque todas as outras partículas existem ao
mesmo tempo. Esta visão de auto-consistência das partículas e de suas leis
de interação iria por sua vez desabar devido à inusitada complexidade das
equações que traduziam tal auto-consistência e à impossibilidade prática de
encontrar suas soluções. A introdução dos quarks, ou sub-constituintes dos
288
ARAGÃO, Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Op. cit., p. 638.
Ibid., p. 639.
290
NICOLESCU, Basarab. Um novo tipo..., p. 22.
289
158
hádrons (partículas de interações fortes), iria substituir a proposta do
bootstrap e introduzir assim uma nova simplificação no mundo quântico. Isto
levou a uma simplificação ainda maior, que domina a física de partículas
atualmente: a procura de grandes teorias de unificação e de super-unificação
das interações físicas291.
Há ainda dificuldades muito grandes, seja do ponto de vista matemático, seja do
experimental, seja da complexidade das equações e dos modelos. As teorias são abrangentes,
do ponto de vista dos princípios, mas bastante pobres na descrição da complexidade do nosso
próprio nível. A complexidade das ciências reflete a complexidade da mente humana. “Um
único termo está ausente nessa coerência: o vertiginoso vazio do finito – o nosso. O indivíduo
permanece estranhamente calado diante da compreensão da complexidade. E com razão, pois
fora declarado morto. Entre as duas extremidades do bastão – simplicidade e complexidade -,
falta o terceiro incluído: o próprio indivíduo”.
Ao considerar o complexo condicionante de uma política de civilização,
Edgar Morin mostra como o que move um paradigma de qualquer sistema de
pensamento afeta, ao mesmo tempo, a ontologia, a metodologia, a
epistemologia, a lógica, enfim o conjunto das bases de raciocínio da
civilização, compostas de entidades fechadas que não se comunicavam entre
si, cujas oposições provocavam a repulsa ou a anulação de um conceito pelo
outro, fazendo a realidade cercada por idéias distintas. É uma complexidade
marcada pela dicotomia esquizofrênica do cartesianismo e do puritanismo
clerical, que comanda uma práxis ocidental antropocêntrica, etnocêntrica e
egocêntrica.
Uma contradição é sinal de erro na visão clássica. Já na visão complexa, indica
“não um erro, mas o atingir de uma camada profunda da realidade que, justamente porque é
profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica tradicional”292. Isso obriga a adotar
novos princípios lógicos: reorganizar e romper com idéia de causa e efeito; a concepção
hologramática de que é impossível conceber todo sem as partes e vice-versa; o princípio
dialógico que mantém a dualidade em meio à unidade, sem dualismo.
2.3 A lógica do terceiro incluído
Surgem confluências como o emprego de lógicas não-convencionais, que lidam
melhor com as contradições. Na física, as contradições se mostram nas partículas elementares
em determinadas circunstâncias, que não se comportam como matéria, mas como ondas:
O desenvolvimento da física quântica levou ao aparecimento de pares de
contraditórios mutuamente exclusivos (A e não-A): onda e corpúsculo,
continuidade e descontinuidade, separabilidade e não separabilidade,
291
292
ARAGÃO, Gilbraz de Souza ; BINGEMER, Maria Clara Luchetti. Op. cit., p. 640.
Ibid., p. 642.
159
causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria,
reversibilidade e irreversibilidade do tempo. Tais pares são mutuamente
opostos quando analisados através da lógica clássica e dos seus axiomas:
identidade: A é A; não-contradição: A não é não-A; e o terceiro incluído:
não existe um terceiro termo T (T de “terceiro incluído”) que é ao mesmo
tempo A e não-A293.
Bingemer e Aragão mostram como esse saber surgiu após uma busca e trabalho
intensos, como significou um avanço desde a constituição da mecânica quântica por volta de
1930 e como levou os fundadores da nova ciência a elaborar uma lógica também chamada
quântica. Segundo eles, a maioria dessas lógicas modificou o segundo axioma da lógica
clássica, que determinava a contradição, incluindo a não-contradição com vários valores da
verdade no lugar daquela do par binário (A, não-A). Mesmo assim, essas lógicas
multivalentes, ainda controversas, não levaram em consideração a modificação do terceiro
axioma, o do terceiro excluído, que Lupasco demonstrou:
a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizada e
formalizável, multivalente (com três valores: A, não-A e T) e nãocontraditória. A compreensão do axioma do terceiro incluído – existe um
terceiro termo T que é ao mesmo tempo a e não-A – fica totalmente clara
quando é introduzida a noção de ‘níveis de realidade’... Se permanecermos
num único nível de realidade, toda manifestação aparece como uma luta
entre dois elementos contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo nãoA)...
Um único e mesmo nível de realidade só pode provocar oposições
antagônicas. Ele é, por sua própria natureza, auto-destruidor, se for
completamente separado de todos os outros níveis de realidade. Um terceiro
termo, digamos, T, que esteja situado no mesmo nível de realidade que os
opostos A e não-A, não pode realizar sua conciliação294.
A comparação da tríade do terceiro incluído com a tríade hegeliana encontra seu
diferencial no fator tempo. Na tríade do terceiro incluído, os três termos coexistem no mesmo
momento do tempo, enquanto na tríade hegeliana, eles se sucedem no tempo, razão pela qual
não lhe é possível promover a conciliação dos opostos. Isso não acontece na tríade do terceiro
incluído, que inclui e vai além da soma dos dois termos e se respeita o axioma da nãocontradição, exigindo apenas o alargamento das noções de verdadeiro e falso, do que resulta
que as regras não se refiram a dois termos (A e não-A), mas três (A, não-A e T), com
coexistência no mesmo momento do tempo.
A perspectiva transdisciplinar nos propõe considerar a realidade de maneira
multidimensional e estruturada em múltiplos níveis, em substituição à realidade
293
294
Ibid., p. 644.
Ibid., p. 645.
160
unidimensional e com um nível de realidade. Dois níveis são religados pela lógica do terceiro
incluído, inovando em relação à lógica clássica. O axioma de não-contradição é respeitado
nesse processo. Esse processo continua até o esgotamento de todos os níveis de realidade,
conhecidos ou concebíveis, sem chegar a uma teoria completamente unificada.
A diferença fundamental da lógica do terceiro incluído para a lógica clássica é que
naquela a partição ternária Sujeito-Objeto-Interação é radicalmente diferente da partição
binária Sujeito-Objeto, que funcionou como pano de fundo da metafísica moderna, com a qual
a transdisciplinaridade faz uma profunda ruptura. O primeiro demonstra a existência de
correlações não-locais, expande o campo da verdade e da realidade, e nos faz entender que há,
em certa escala, uma unidade das leis que asseguram a evolução do conjunto dos sistemas
naturais. A teoria da complexidade, o segundo, possibilitou ao homem não apenas se ver
balançar entre a simplicidade e a complexidade, mas encontrar-se no terceiro incluído. A
lógica do terceiro incluído, o terceiro elemento, rompe com as lógicas tradicionais, introduz a
noção de ‘níveis de realidade’, de Nicolescu, e estabelece o sistema ternário, com três termos
– A, não-A e T. Esse terceiro, secretamente incluído, diz Nicolescu, “é o guardião de nosso
mistério irredutível, único fundamento possível da tolerância e da dignidade humana. Sem
esse terceiro tudo é cinzas”295.
295
Ibid.
161
PROTESTANTISMO DE IMIGRAÇÃO:
Chegada e Re-orientação Teológica296
MSc. Antonio Carlos Ribeiro297
RESUMO: Esta comunicação estuda dois momentos significativos da presença luterana no Brasil, a
partir da relação Teologia e Sociedade: a chegada dos imigrantes e a reorientação teológica da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. O ambiente do período imigratório tem a marca da Corte
Portuguesa no início do século XIX, com sua configuração das relações de poder, a partir da
importância da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Os fatos que culminaram na independência
do Brasil ameaçaram o universalismo católico. A questão religiosa é a expressão brasileira da luta
entre a Igreja e o mundo liberal, com conflitos entre bispos e o imperador. A Grã-Bretanha mostrou-se
influente na política (abertura dos portos às nações amigas, pressão contra o tráfico de escravos e
assinatura de tratados comerciais), e na Constituição de 1824. O Estado quer religião aberta e a Igreja
não quer perder prerrogativas. Surge o protestantismo de imigração, inserindo os elementos étnico e
religioso na difícil adaptação dos imigrantes, condicionada pela necessidade de mão-de-obra do Brasil.
Os motivos foram a dificuldade econômica e a superpopulação do inverno de 1816. No século XIX, 10
milhões de alemães deixaram o seu país e 35 milhões de pessoas, a Europa. A escolha do Brasil devese à ligação da Dinastia de Habsburg com a Casa Real Portuguesa e à reputação dos alemães como
colonizadores, sendo enviados para as províncias de Rio Grande de São Pedro, Santa Catarina e
Paraná, e, posteriormente, Espírito Santo. Sem identidade nacional, só surgida com a unificação dos
territórios alemães em 1871, a influência foi canalizada pela igreja e a escola. A reorientação do
Sínodo Rio-Grandense foi influenciada por Karl Barth, ao ensinar pastores a serem representantes do
germanismo e do Evangelho, e a orientar os colonos a dialogarem consigo mesmos. Palavras-chave:
imigração, alemães, Império, identidade, Karl Barth
ABSTRACT: Two significant moments of the Lutheran presence in Brazil were the german immigrants’ arrival
and the theological re-orientation of the Church. The atmosphere of the beginnings was marked by the mentality
of the Portuguese Kingdom of the XIX century, its relationship to power and the importance of São Sebastião do
Rio de Janeiro city. These situations threatened the Catholic vision: the religious question was the Brazilian
expression for the fight of the Catholic Church against the liberal world. Great Britain influenced the politics of
colonial Brazil, as opening the ports to partners nations, the pressure against slaves' traffic, the signature of
commercial agreements, and also the 1824’ Constitution. As a consequence, the State wanted an open religion
and the Catholic Church didn't want to loose power. The Protestant inserted the ethnic and religious elements in
the immigrants' adaptation. The reasons for that immigration were the economical difficulty and the
overpopulation in Germany during the 1816’ winter. 10 million germans left their country and 35 million people,
left Europe, in this century. The choice for Brazil was connected to the relation between the Portuguese Royal
House to the Habsburg Dynasty and to the reputation of the Germans as settlers, responding to the Brazilian
labour needs. After being in Brazil for 50 years, with the unification of german territories in 1871, appeared to
the immigrants a national identity. The re-orientation of the Evangelical Church was influenced by Karl Barth,
who stressed that in pastoral perspective the Gospel was more important than nationality. Key-words:
immigration, German, Empire, identity, Karl Barth
Só reconhecemos a história quando e na possibilidade de algo ocorrer conosco e para nós talvez
296
Excertos da Dissertação de Mestrado em Teologia Como cantar a Canção do Senhor?; desafios ao
testemunho da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil nos centros urbanos da atualidade, orientada
pela Profª DrªAna Maria Tepedino e defendida em 12.12.2005 na PUC-Rio.
297
Pastor luterano, secretário do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio),
Bacharel em Teologia (STBSB), Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo), Mestre em Teologia e
Doutorando em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Av. Paranapuã,
1203, C 10 – Ilha do Governador – 21910-002 – Rio de Janeiro RJ – e-mail: [email protected]) –
Cur. Vitae: http://lattes.cnpq.br/5999603915184645
162
até contra nós, de maneira que estejamos presentes, que dele participemos. (...) Reconhecemos a
história quando, de uma maneira ou doutra uma ação alheia se constituir em pergunta dirigida
a nós, à qual deveremos dar resposta, de qualquer modo, através de nossa ação.
Karl Barth298
Ao celebrar os 180 anos de presença luterana no Rio de Janeiro (25.06.182725.06.2007), ocorreu-me refletir sobre dois momentos significativos dessa história: a chegada
dos imigrantes e a reorientação teológica. A primeira por causa das condições políticas que a
favoreceram, e a segunda, por causa da contribuição de Karl Barth a respeito da atuação
pastoral com o germanismo.
O século começou com a chegada da Corte Portuguesa em 1808, tendo à frente o
Príncipe Regente e a Rainha louca, fato que alterou a vida da cidade que já era sede dos Vicereis de Portugal, com a instalação do aparelho estatal, que se fez seguir pela cultura, as artes,
os poderes político e econômico, e pelo surgimento da Imprensa Régia. A proximidade do
poder gerou a disputa entre a perspectiva religiosa e a política liberal, influenciada pela
Inglaterra. O país era constitucionalmente católico, mas o rei liberal, mantendo sua autonomia
na administração pública.
1 Brasil: país católico e liberal recebe protestantes
A vinda da tradicional corte portuguesa católica para a colônia do Brasil nos
primórdios do século XIX é o fato mais relevante para compreendermos o pano de fundo no
qual se dará o início da imigração de colonos alemães luteranos ainda no primeiro quartel
deste século. A fuga da família real, após a ocupação de Portugal por Napoleão em 1808299, é
a explicação determinante para a sua presença numa terra até então com pouca importância
política, mesmo três séculos após seu descobrimento e um aparentemente inesgotável
empreendimento econômico de exploração mineral.
A transferência da corte implica uma nova configuração nas relações de poder
político e religioso, já iniciada com a transferência da Sede dos Vice-Reis do Brasil da cidade
298
Die protestantische Theologie im 19. Jahrhundert. Zurich, 1960, p. 1 apud WITT, O. L. ; Zwetsch, R. E.
Irreverência, compromisso e Liberdade: o testemunho ecumênico do pastor Breno Arno Schumann (19391973). São Leopoldo: EST; Rio de Janeiro: Koinonia, 2004, p. 28.
299
“Com a invasão de Portugal por tropas francesas, o príncipe-regente João, acompanhado de sua corte e sob
proteção de barcos ingleses, deixou Lisboa em novembro de 1807, chegando à Bahia em 22 de janeiro de 1808 e
ao Rio de Janeiro, onde se instalaria por treze anos, em 7 de março de 1808. Com o príncipe vinham a rainha
louca, Maria, e talvez 15 mil pessoas em uma vintena de barcos. Com a instalação da corte e do governo de
Portugal no Rio o Brasil deixou, na prática e definitivamente, de ser uma colônia”. CARDOSO, C. F. S. A crise
do colonialismo luso na América Portuguesa – 1750-1822. In: LINHARES, M. Y., org. História geral do
Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 118.
163
de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro300, acentuando-se ao ponto de tornar o Brasil um
centro de convergência dos interesses portugueses, especialmente nas possessões no Estado
do Grão-Pará, no Estado Maranhão e Piauí e no Estado do Brasil, entre outras unidades
menores301.
Apenas em “meados do século XVIII que se tornou evidente ter-se transformado o
Brasil em peça mestra dos domínios lusos, superando a própria metrópole em peso econômico
e demográfico”302, portanto excessivamente tarde e então sob pressão dos fatos políticos da
Europa. Os portugueses ainda se mostraram incapazes de perceber que a principal
conseqüência desse fato era a separação entre a América portuguesa e a metrópole, absorvidos
na tendência de apropriarem-se das possessões do novo mundo como fonte inesgotável e da
extorsão de recursos fiscais, feitos das maneiras mais variadas e através de escandaloso
arbítrio.
Para o Rio de Janeiro a presença da corte portuguesa significa uma revolução
sócio-econômico-cultural. Entre as principais realizações destacam-se a criação de escolas
primárias e secundárias, da Academia de Artes, de Bibliotecas, de Museus, da Imprensa Régia
e da prospecção das riquezas naturais. “Um verdadeiro aparelho de Estado e um corpo
diplomático instalaram-se no Rio303. Tantos avanços políticos e econômicos levaram D. João
a proclamar a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve304. “A ex-capital colonial
tornara-se sede de ministérios, secretarias, tribunais, repartições públicas, de um Conselho de
Estado, outro de Fazenda etc. E foi no Rio de Janeiro que, morta a rainha, o até então
príncipe-regente foi aclamado, em 1818, como rei João VI”305. Com o retorno de D. João VI a
Portugal, estava dado o passo decisivo para o aprofundamento da ruptura, caminho aberto
para a Proclamação da Independência306.
300
A transferência acontece em 27 de janeiro de 1763.
CARDOSO, C. F. S. Op. cit., p. 102.
302
Ibid.
303
Ibid., p. 118.
304
A proclamação foi feita em 16 de dezembro de 1815, apenas sete anos após a chegada da família real.
305
CARDOSO, C. F. S. Op. cit., p. 118. “Salvador, até então a maior cidade brasileira, foi superada pelo Rio por
volta de 1810. A população dessa última capital chegou a aproximadamente 113 mil pessoas em 1819”. “O
Brasil às vésperas de separar-se de Portugal, continuava sendo, apesar de tudo, estruturalmente uma sociedade
colonial. Em 1818, de seus 3.817.900 habitantes, 1.887.900 eram livres (sendo 1.043.000 brancos, 585.500
negros e mestiços, 259.400 índios e 1.930.000 escravos). Ibid., p. 119-20.
306
Poucos anos depois, em 1821, D. João se viu obrigado a retornar a Portugal, deixando seu filho Pedro como
Príncipe Regente. A manutenção da instabilidade política levou à ruptura definitiva dos laços institucionais e dos
vínculos políticos com Portugal, fato que teve como conseqüência a Proclamação da Independência em 7 de
setembro de 1822 e a proclamação do primeiro imperador, D. Pedro I. DREHER, M. N. Igreja e Germanidade;
estudo crítico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. São Leopoldo: Sinodal; Porto
Alegre: EST São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: EDUCS, 1984, p. 23.
301
164
O significado desse conjunto de fatos, que em apenas 14 anos culminaram na
Independência do Brasil, é semelhante ao ocorrido em toda a América espanhola: eles
agravaram os riscos do universalismo católico. Ao dar importância ao galicanismo histórico307
e ter sido “formado sob o clima liberal, o Império não levava muito em conta as prerrogativas
da Igreja e cerceava mesmo seus esforços anti-liberalizantes através de mecanismos legais do
direito de padroado”, tendo certo resultado para a vida religiosa308.
A resposta da Igreja ao papel que lhe foi concedido pelos primórdios do reinado no
Brasil, utilizou basicamente duas formas de penetração e reforço de seu poder hegemônico. A
primeira, de natureza político-eclesiástica, foi ampliar o sistema de nunciaturas a partir do
Papa Gregório XVI309. Além do aperfeiçoamento do relacionamento entre o Estado Pontifício
e os Estados nacionais, através dos núncios, foram adotadas medidas como a retomada das
visitas ad limina e a elevação de clérigos à prelatura. A segunda, de traço mais propriamente
religiosa, foi a cruzada doutrinária contra “os erros do mundo moderno” através do Concílio
Ecumênico convocado pelo Papa Pio IX para dezembro de 1869310.
O Concílio refletia o conflito entre o espírito do mundo latino e o mundo anglosaxão, a mesma tensão vivida pelo império brasileiro, com a disputa hegemônica entre essas
duas culturas. Ao mesmo tempo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, predominava
intensa e visivelmente uma admiração pelo mundo anglo-saxão. E não era apenas alguns
sinais de antiga dependência política, como a vivida com Portugal, mas envolvia certo
discipulado filosófico e a adoção de certos modelos progressistas da Inglaterra e dos Estados
Unidos311.
Por colocar-se exatamente no cruzamento das perspectivas teológicas, jurídicas e
filosóficas de uma sociedade em busca de definição dos seus rumos, a questão religiosa é a
307
Tendência jurídica e teológica que defendia, no século XIV, a interferência dos reis franceses nos negócios
eclesiásticos, e mais tarde, após o século XVII, a autonomia dos bispos franceses em face da autoridade
pontifícia romana, se opondo ao ultramontanismo.
308
MENDONÇA, A. G. Inserção dos Protestantismos e “Questão religiosa” no Brasil, Século XIX (Reflexões e
hipóteses). Estudos Teológicos/EST, 1987/27 (3): 226.
309
A nunciatura brasileira é uma das mais antigas da América Latina (1830), havendo momentos em que houve
internunciaturas sediadas no Brasil, com jurisdição para toda ou parte da América Latina, veja PRIEN, H.-J. La
Historia del Cristianismo en America Latina. Salamanca: Sígueme; São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 401,
apud MENDONÇA, A. G. Op. cit.
310
O Concílio reunido em 08.12.1869 era composto de 700 bispos e predominantemente latino. A ênfase era o
princípio da autoridade do Papa sobre as igrejas nacionais, acima dos respectivos governos, num mundo minado
pelas aspirações democráticas próximas da anarquia revolucionária, cuja fonte principal acreditavam encontrarse no protestantismo. AUBERT, R. Nova História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1975, v. 1, p. 64. A Assembléia
foi suspensa prematuramente em 20.10.1870, mas conseguiu votar e aprovar proposições que provocaram
reações em setores importantes da própria Igreja e no mundo liberal.
311
“As mais ativas mentes brasileiras tomaram partido, senão contra a Igreja como expressão religiosa, pelo
menos como instituição portadora do espírito anti-liberal e anti-progressista. MENDONÇA, A. G. Op. cit., p.
227.
165
expressão brasileira da grande luta entre a Igreja e o mundo liberal312. Anos antes da
deflagração do conflito entre os bispos e o Imperador, o episcopado brasileiro vinha tendo
confrontos com o pensamento liberal e o regalismo313 imperial. O confronto se acentuava à
medida que as alas tradicional, conservadora e romanista da Igreja tinham dificuldades com o
avanço das idéias liberais, e os intelectuais e políticos liberais do Império mostravam-se
despreocupados, já que sem o placet do Imperador nenhuma decisão ou instrução de Roma
entraria em vigor314.
A questão religiosa deixa suas marcas no campo religioso brasileiro, especialmente
a partir da clara definição das respectivas posições. “De um lado um estado ainda mais
galicano, liberal e anticlerical e, de outro, uma Igreja que aparentemente abandona o
confronto com o Estado mas que toma medidas de auto-fortalecimento interno. O Estado
monárquico era pombalino, josefista e regalista e seu Imperador era renanista e quem sabe se
até voltairiano. Para ele o Estado estava acima de qualquer coisa”315. Muitos intelectuais e
políticos liberais aspiravam à instituição de uma Igreja nacional, só sujeita a Roma em
questões de doutrina, sendo o Imperador a autoridade máxima na constituição da hierarquia e
no julgamento de leis e decretos dos Concílios. Esse era o pensamento de Joaquim Nabuco316.
A força econômica da Grã-Bretanha mostrou-se especialmente influente na
política. Já tinha conseguido a abertura dos portos brasileiros às nações amigas em 1808. Com
a necessidade de imigração, pressionou o Império a proibir o tráfico de escravo, que crescera
a tal ponto que a Grã-Bretanha impôs em 1810 a assinatura do tratado comercial, no qual o
Brasil condenou o tráfico de escravos e aceitou sua restrição no hemisfério sul317, passou a
administrar taxas alfandegárias inferiores para produtos britânicos em relação a produtos
portugueses e “também a tolerar uma comunidade anglicana no exterior no Rio de Janeiro, a
primeira comunidade não-católica em todo o território colonial espanhol-português”318. Isso
abriu caminho para mudanças na legislação de imigração, desde a lei de 16 de fevereiro de
312
Sobre este ponto ver FRAGOSO, H. A Igreja-instituição. In: História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1980, tomo II/2, p. 186.
313
Doutrina que defende a ingerência do chefe de Estado em questões religiosas.
314
MENDONÇA, A. G. Op. cit.
315
VILLAÇA, A. C. História..., p. 27 apud MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 229. Liberal: que tem idéias ou
opiniões avançadas, amplas, tolerantes, livres ou adota a doutrina liberal. Pombalino: referente ao estadista
português Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal.
316
VILLAÇA, A. C. História..., p. 146 apud MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 229.
317
“Um passo adiante deram as convenções de 22/10/1815 e 28/07/1817 com artigos adicionais de 11/09/1817,
que instituíram o direitos de inspeção mútua... sujeitou-se à exigência de que, três anos após a retificação
(23/03/1827), o tráfico negreiro africano fosse totalmente abolido e equiparado à pirataria... até que uma lei
imperial de 07/09/1850 de fato pôs fim à importação de escravos”. SCHRÖDER, F. Brasilien und Wittenberg.
Berlin: 1936, p. 27.
318
PRIEN, H.-J. La Historia del Cristianismo..., p. 33.
166
1813, que só previa a presença de católicos romanos, até que a Constituição de 1824,
“redigida por Dom Pedro I com a ajuda de seu Conselho de Estado sob a influência do
espírito liberal-maçônico, concedeu no Art. 5º a não-católicos o exercício privado, enquanto o
exercício público da religião – à semelhança do que consta na Patente de Tolerância Josefina
de 1781 – ficou reservado à Igreja Católica Romana como guardiã da religião do Estado”319.
O quadro propício à penetração do protestantismo logo se configurou. Surge um
vácuo religioso, no qual de um lado, está um Estado em busca de uma religião civil aberta, e
de outro, a Igreja que, diante da possibilidade de perder suas prerrogativas, volta-se para si
mesma com a intenção de reforçar-se institucionalmente. No meio ficou um espaço aberto,
pelo qual o protestantismo penetrou. O conjunto das expectativas da sociedade deram a
contribuição restante. O comércio inglês, a agricultura germânica, a possível vinda de
imigrantes confederados norte-americanos acenaram com um surto de modernização e
progresso, sem maiores riscos políticos e a possibilidade de assimilar as idéias e práticas que
fizeram dos anglo-saxões os líderes do mundo da época. A abertura para o mundo anglosaxão significou abertura para o universo protestante320.
2 Da propaganda do Império às colônias de imigrantes
O protestantismo de imigração é o que se desenvolveu a partir do movimento
imigratório que marcou o século XIX, seguindo as ondas de intensidade e retração. O projeto
imigratório associado ao elemento étnico e religioso lhe dá características próprias, inclusive
impondo ao imigrante a difícil tarefa de adaptação, especialmente nos aspectos ideológico e
religioso. Ao mesmo tempo, esses elementos representam um fator de coesão do grupo e lhe
atribuem uma identidade num ambiente geográfico, climático, cultural, econômico, político e
religioso inteiramente estranho e por vezes adverso321.
O processo de adaptação e tolerância, incluindo a religiosa, já estava condicionado
“pela necessidade de mão-de-obra por parte dos países receptores dos imigrantes, onde o
catolicismo era a religião hegemônica, quando não oficial”, observa-se, especialmente entre
os grupos que têm “na preservação da cultura e, especialmente, na preservação do idioma uma
319
Ibid. O teor do Art. 5º: “A religião católica apostólica romana continuará ser a religião do império. Todas as
outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem
forma alguma exterior de templo”. Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p. 35.
320
MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 230.
321
WIRTH, L. E. Protestantismo e etnia: sobre a preservação da identidade étnica no protestantismo de
imigração. Estudos Teológicos/EST 1998/38 (2): 157.
167
das
suas
características
fundamentais”322.
Essa
perspectiva
de
dupla
diáspora,
simultaneamente uma diáspora religiosa e outra étnica, colocam o risco “de que a consciência
étnica de diáspora se sobreponha à consciência eclesiástica, ou que o serviço da diáspora por
parte da Igreja seja entendido como assistência étnica”323.
O problema essencial no processo de formação da Igreja evangélico-alemã no
Brasil está presente desde os primórdios. Em outras circunstâncias, “com as novas gerações,
nascidas nos países de imigração, constata-se um processo de aculturação que se evidencia na
independência institucional, na adoção do idioma nacional, no engajamento social, no
desenvolvimento de estratégias para conquistar adeptos entre a população autóctone, um
processo que geralmente vem acompanhado por uma crise de identidade, por estagnação ou
por crescimento apenas vegetativo”324. A mesma coisa pode ser dita da “relação entre religião
e etnia a partir dos espaços concretos de articulação da vida, percebe-se uma flexibilidade e
dinamicidade tanto da religião quanto da etnia, de acordo com as demandas locais”, levando à
compreensão “que a identidade étnica era um fator conjuntural, entre outros, no cotidiano dos
imigrantes, um elemento que tendia a se diluir na medida em que o imigrante e,
principalmente, seus descendentes se integravam à sociedade envolvente”325.
As principais motivações para a imigração foram efetivamente “a miséria
econômica e a superpopulação, em proporção diferente nos diversos territórios alemães”,
tendo como fator desencadeador “o inverno de fome de 1816/17 no sudoeste alemão. Os anos
de 1816-1825 designam simultaneamente uma fase de extremo crescimento populacional, que
levou a um índice médio de crescimento anual de 1,42%, o mais elevado de todo o século
XIX, referente ao futuro território do Reich de 1871”326. O século XIX foi marcado pelas
grandes migrações, com cerca de 10 milhões de alemães deixando seu país e 35 milhões de
pessoas saindo da Europa para os Estados Unidos, somente entre 1860 e 1930, provocando
deste modo a maior movimentação de habitantes desde a migração dos povos. “A parcela dos
que emigraram para o Brasil foi relativamente modesta. De 1815 até 1848 devem ter sido no
máximo 15 mil pessoas, de 1850-1859: 15.815, de 1860-1895: 63.370. Os números efetivos
322
Ibid., p. 157-8.
LAU, F. Evangelische Diáspora. In: Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen: 1958, v. 2,
col. 179 apud PRIEN, H.-J. Formação da Igreja Evangélica no Brasil. Trad. Ilson Kayser. São Leopoldo:
Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2001, p. 23.
324
WIRTH, L. E. Protestantismo e etnia..., p. 157-8.
325
Ibid.
326
RÜRUP, R. Deutschland im 19. Jh., 1815-1871. In: Deutsche Geschichte. Göttingen: 1985, v. 3, p. 16 apud
PRIEN, H.-J. Formação da Igreja..., p. 23.
323
168
são mais elevados, visto que a estatística brasileira se limita ao território do Reich Alemão de
1871”327.
A presença de recrutadores brasileiros atuando em território alemão tem duas
explicações: a ligação da dinastia de Habsburg com a casa real portuguesa e a posterior casa
imperial do Brasil, a partir do casamento de D. Pedro com Dona Leopoldina em 1817, e a boa
reputação dos alemães como colonizadores. Em razão disso, o início da emigração para o
Brasil coincidiu com a primeira tentativa de povoamento com teuto-suíços neste mesmo ano
em Nova Friburgo. A terra de matas virgens estimulou a fantasia dos imigrantes,
especialmente em época com pequena circulação de informações. “A avalanche emigratória
de 1816/17 espalhou-se desde a Alemanha Meridional, passando pelo Palatinado, até Trier,
mas ainda se deteve diante da região do Mosela e da Renânia. Somente nos anos 20 ela
transpôs o Mosela e adquiriu grande importância no Hunsrück pela campanha de
recrutamento do major Schaeffer”328.
Chegados ao Brasil, houve certa freqüência na destinação dos emigrantes aos
projetos de assentamento. Os pomeranos se estabeleceram no Espírito Santo, nas regiões de
São Lourenço, Pelotas e Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, e, com outros do norte da
Alemanha, nas regiões de Joinville e Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Os provenientes do
Hunsrück e da Renânia foram para os arredores de São Leopoldo329 e dali para o interior da
província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Os originários da Westfália foram para
Teutônia e Estrela, os suábios se dirigiram a Neu-Württemberg e os do Sudeto para Nova
Petrópolis, e os teuto-russos (deutschrussisch) do Volga e da Rússia foram assentados em
Palmitos e Cunha Porã, em Santa Catarina, em Witmarsum e Boqueirão, no Paraná, e em
Bagé, no Rio Grande do Sul. Centros urbanos como o Rio de Janeiro, São Paulo e Porto
Alegre atraíram comerciantes, estudiosos, médicos, engenheiros e técnicos entre os
imigrados330.
3 O germanismo e a re-orientação teológica
327
PRIEN, H.-J. Formação da Igreja..., p. 25. “O imigrante alemão no Brasil é parte de um processo de
emigração em massa que, nos estados alemães, perdurou de 1815 até a Primeira Guerra Mundial. O Brasil
recebeu cerca de 2% desses emigrantes, sendo que a grande maioria se dirigiu aos Estados Unidos” (cf.
MARSCHALK, P. Deutsche Überseewanderung im 19. Jahrhundert. Stuttgart: 1973). Esse fenômeno é um
dos aspectos das profundas transformações sociais ocorridas na Europa do século XIX, transformações essas que
marcaram a transição da sociedade agrária para a sociedade industrial. WIRTH, L. E. Op. cit., p. 160.
328
SUDHAUS, F. Op. cit., p. 51-56 apud PRIEN, H.-J. Formação da Igreja..., p. 27.
329
Decreto imperial de 22 de setembro de 1824 deu o nome de São Leopoldo à colônia, em homenagem à
imperatriz Leopoldina, da dinastia de Habsburg, cf. FAUSEL, E. São Leopoldo: Statistische Ermittlung aus
deutschen evangelischen Kirchenbüchern in Übersee. Volkstumsforschung, 1939/3 (3), p. 201-21.
330
PRIEN, H.-J. Formação da Igreja..., p. 29.
169
Esse processo de colonização não se deu de forma diferenciada apenas na origem
do empreendimento, mas também na sua administração e, conseqüentemente, nos efeitos
variados para as populações de emigrados. Para compreender o desenvolvimento dessas
colônias e perceber o efeito que os novos fatos produziram para o surgimento do germanismo
e seu conseqüente impacto na vida do que viria a ser a Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil é preciso considerar a perspectiva recente de Lauri Wirth. É necessário
“relativizar a centralidade do fator étnico como decorrência natural da conjuntura dentro da
qual o protestantismo de imigração se desenvolveu”331. Argumenta que o imigrante alemão
não possuía uma identidade nacional, baseado no fato de que esta só surgiu com a unificação
dos territórios alemães ocorrida em 1871, quase 50 anos depois da chegada ao Brasil dos
primeiros imigrados.
Para Wirth, os imigrantes traziam as culturas dos locais de onde eram oriundos,
que essas culturas eram distintas, não manifestando coesão étnica e tendo muitos elementos
de diferença. Esse aspecto se mostra evidente no uso da língua, já que entre poucos imigrantes
falavam alemão clássico (Hochdeutsch), mas os dialetos regionais. Por razões que envolviam
dominação cultural, imigrantes da Pomerânia chegavam a referir-se ao alemão clássico como
‘língua estrangeira’ tal qual a língua portuguesa. Outra intenção é descobrir a razão pela qual
em algumas igrejas resultantes do protestantismo de imigração o processo de aculturação se
deu de maneira mais rápida, mesmo sob condicionantes locais semelhantes.
O debate sobre a presença dos imigrantes alemães conduz, invariavelmente, à
discussão sobre o papel da religião em sua vida e dos desdobramentos que este assumiu em
solo brasileiro. De maneira geral, “o imigrante tinha vínculos frágeis com as instituições
religiosas, não pertencia ao ‘núcleo fiel’ das mesmas e estava pouco familiarizado com suas
estruturas de poder. Portanto, é pouco provável que os imigrantes reproduzissem
espontaneamente os modelos de poder religioso de seus países de origem. Aliás, sua
indiferença, senão sua aversão, diante de tal poder, principalmente nos espaços urbanos
emergentes, é uma das queixas mais cortantes de missionários e teólogos que seguiram os
imigrantes com a incumbência de implantar uma Igreja”332.
331
332
WIRTH, L. E. Protestantismo e etnia..., p. 159.
Ibid.
170
Conquanto a Igreja estivesse presente, formal e informalmente na vida dos
emigrados
333
, foi em círculos políticos alemães que a preocupação com os imigrantes, em
discurso com roupagem nacionalista, começou a crescer. “Esses colonos continuarão tendo
muita afinidade com os alemães de aquém-mar devido à língua, ao modo de vida, aos usos e
costumes e, por isso, preferirão relacionar-se com estes do que com outras nações européias,
se as demais circunstâncias forem relativamente semelhantes. Entre os alemães dos dois
hemisférios estabelecer-se-á um relacionamento semelhante ao que existe entre a Inglaterra e
suas colônias na América do Norte, e a Alemanha não continuará sentindo a falta de colônias
como privação”334.
É importante não perder de vista que desde a chegada dos imigrantes até a
revolução alemã (1848) passam-se apenas 24 anos, quando começa o processo de
mercantilização da imigração. E que 40 anos após esse período é assinada a lei da abolição da
escravatura, a partir da pressão da Inglaterra. A primeira constatação é que o imigrante se
torna uma necessidade na economia à medida que substitui o escravo e sua força de trabalho.
A segunda é que as elites econômicas brasileiras se comportavam de maneira tão
ensimesmada e tão pouco preocupada com qualquer outra coisa que não fosse a preservação
dos seus privilégios, que insistem na convivência da escravatura e da mão-de-obra dos
imigrantes por 64 anos.
A partir da segunda metade da década de 1930, o presidente do Sínodo RioGrandense, Pastor Hermann Dohms passou a ter a colaboração do teólogo que deu
significativa contribuição no atenuamento dos efeitos da teologia etnicista, Ernesto Theóphilo
Schlieper335. Os reflexos da contribuição teológica de Karl Barth logo se mostraram através
da sua perspectiva teológica e dos debates e posicionamentos que marcaram os períodos
anterior e posterior à Segunda Guerra, o momento de maior impacto para reorientação
teológica dos Sínodos e da Federação Sinodal.
333
Através da presença do Pastor Friedrich Oswald Sauerbronn, que chegou em 31/01/1824 na fragata holandesa
Argo à Armação das Baleias em Niterói, trazendo 251 imigrantes alemães e suas mulheres e 29 homens para o
serviço militar no Brasil, chegando a Nova Friburgo em 02 de maio, segundo os dados do ‘Diário de Governo’.
Em 13/04/1824 aportou a fragata Carolina, trazendo 162 homens, 16 mulheres e 51 crianças. Em 04/06/1824
chegou a fragata Anna Luise com 269 homens, 16 mulheres e 40 crianças, que seguiram para a Província de São
Pedro e chegaram em 25 de julho como os primeiros colonos de São Leopoldo. E também através da expressão
de fé dos luteranos da Pomerânia, que mesmo “no período de maior abandono eclesiástico, jamais se poderia ter
tirado dos nossos pomeranos seu catecismo luterano e substituí-lo por outro. Nenhuma família pomerana havia
saído da pátria alemã sem empacotar, como maior patrimônio, a Bíblia, o Hinário ou algum outro antigo
consolador”. SCHLÜNZEN, F. Lutherthum in Brasilien. Jahrbuch des Martin-Luther-Bundes, 1951-52, p.
97.
334
WITT, O. L. Igreja na migração e colonização. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 22.
335
Aluno de Karl Barth na Universidade de Bonn desde 1931, Schlieper descobre ser impossível tornar-se pastor
para preservar a germanidade. Ibid., p. 130.
171
O trabalho teológico de Schlieper foi exigente e intenso, mesmo sem ter total
clareza do destino histórico que lhe estaria reservado, de ser um dos principais atores da
reorientação teológica no Sínodo Rio-Grandense. A influência da perspectiva teológica de
Karl Barth não surgiu apenas de forma indireta, através das suas aulas, mas também numa
resposta à carta enviada em novembro de 1933 pelo pastor Heinz Giessel, de Santa Maria da
Boca do Monte (RS), para o eminente teólogo suíço, a quem tinha ouvido durante suas férias
em Berlim, na Alemanha.
Giessel reflete a já inquietante posição de alguns pastores alemães no Brasil, para
quem tornava-se cada vez mais insustentável a manutenção de uma estrutura teológica com
claras limitações para o futuro da Igreja. Ele dirige-se ao eminente teólogo para indagar: “Que
acontece com a não-relacionalidade da fé com o etnicismo em nossa Igreja Evangélica Alemã
no Brasil? (...) teria nossa Igreja de lá pecado todos esses anos, quando se deixou guiar pelo
Evangelho exclusivamente para a preservação do etnicismo alemão? Acaso nós pastores,
considerados os únicos portadores culturais daquelas colônias alemãs no exterior, não
pecamos gravemente, quando, no além-mar, nos inserimos nas sociedades alemãs e lhes
pregamos a preservação da índole e dos costumes alemães como ordenado por Deus?”336.
Suas dúvidas, eminentemente teológico-pastorais, traduziam os reais dilemas dessa teologia
para a realidade das comunidades luteranas no Brasil do segundo quartel do século XIX.
Barth responde, em estilo pastoral, que “tudo que foi dito sobre a singularidade
da revelação, sobre a liberdade do Evangelho e a soberania da fé vale, naturalmente, também
e de modo especial na construção tão singular das comunidades dos países limítrofes e do
exterior”. Já aqui Barth afirmou que comunidades luteranas teuto-brasileiras em nada se
diferenciavam, do ponto de vista da salvação, de outras comunidades cristãs de qualquer outro
lugar. Ponderou que era uma comunidade brasileira composta de alemães e essa era uma
dificuldade especial. “E para o senhor e sua comunidade somente pode significar um ganho,
se têm tão clara consciência disso. O senhor não deve nem pode ignorar por um momento
sequer o dado fundamental de sua vida na comunidade: que sua gente são alemães e que
existe o justificado desejo de que seu germanismo lhes seja preservado”337. Barth não diz ser
impossível a expressão da fé através dos valores de uma cultura, embora também não
condicione aquela a esta, ao mesmo tempo que compreende a necessidade de preservação da
expressão cultural.
336
Com a publicação anônima dessa correspondência no Theologische Existenz Heute, v. 5, 1933, p. 20-4,
iniciou-se nova etapa do debate sobre a teologia etnicista no Brasil. ap PRIEN, H.-J. Formação da Igreja
Evangélica..., p. 377.
337
Ibid.
172
“Sua dificuldade especial consiste no fato de que, por assim dizer”, afirma Barth,
“o senhor tem que ser, em união pessoal, representante do germanismo e representante do
Evangelho”. Após ponderar sobre a dificuldade da situação, insiste que eles têm que “dialogar
constantemente consigo mesmos: ora o alemão falando com o pastor, ora o pastor falando
com o alemão (...) só que uma coisa lhes tem que estar presente: não é o alemão que tem que
dirigir este diálogo, e, sim, o pastor, que, por assim dizer, deve assumir e desempenhar nele o
papel de Sócrates”338. A tarefa atribuída ao pastor, de condutor do diálogo, é ajudar os
colonos alemães a defrontarem-se com a verdade, que muitas vezes não possui bom aspecto,
além de não pertencer ao mundo das aparências. Talvez tenha querido o teólogo suíço orientar
a ênfase para o “conhece-te a ti mesmo”, sem querer que os pastores se arroguem o direito de
ensinar sobre a natureza humana, mas apenas que se disponham a ajudar a refletir, a tomar
consciência dos próprios pensamentos e a trazer à luz o que já têm em si mesmos339.
Com o necessário distanciamento crítico e sem o envolvimento emocional e
comunitário dos pastores que atendiam comunidades alemãs no “exterior”, Barth observa que
“como a pessoa irreconciliada, cega, pecadora que ela é, e, não obstante, aceita na Igreja do
Senhor com toda a sua existência - o pastor, porém, tem o dever de anunciar a contrapergunta
e a contra-resposta da palavra de Deus com base no primeiro, segundo e terceiro artigos da
fé”340. A tarefa pastoral deve começar no que é mais básico: a condição de pessoa humana,
aceita na comunidade de fé e em interlocução com a palavra de Deus, a partir da comunhão.
Entre os deveres do pastor está o “de entender o bom alemão melhor do que ele
entende a si mesmo, terá que aceitá-lo, portanto, em toda a sua germanidade (o que também
pode significar que o senhor, em nome de Deus, ministre aulas de alemão, cante canções
folclóricas alemãs com sua gente, ensine-lhes história alemã e o que mais entrar em
cogitação)”341. Isso significa acolhê-lo pastoralmente no conjunto de sua condição humana
(sua origem étnica, sua bagagem cultural, sua situação de vida, sua condição social). Mais,
deverá interagir com essa condição para ajudá-lo a integrar-se à vida no ambiente em que
está. Ao saber que lida com uma pessoa marcada por rupturas e adaptações traumáticas, deve
fazer o esforço necessário para atenuar esse impacto, estimular uma resposta comunitária às
necessidades desta pessoa e fazer uma abordagem aproximativa de sua realidade.
338
Ibid, p. 378.
VERGEZ, H. e HUISMAN, D. História dos filósofos. Trad. Lélia de Almeida Gonzalez. 4. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 26-7.
340
PRIEN, H.-J. Formação da Igreja Evangélica..., p. 378.
341
Ibid.
339
173
Continua Barth, “no entanto, de modo explícito ou implícito, nisso e com isso tudo
deve recebê-lo na comunhão dos santos, e, portanto, entender novamente todas as
manifestações de seu germanismo, de nenhum outro modo senão como uma confissão
abrangente do pecador alemão, ao qual deve anunciar a absolvição, pois para isso ele é
propriamente e em primeiro lugar pastor no Brasil (...)”342. Deve ter rosto eclesial, ser uma
presença que traduz o vivo interesse de Deus em seu bem-estar, já que não pode arrogar-se a
falar em nome de uma instituição financeiramente forte. Acolher na comunhão dá identidade
de fé, fortalece a identidade doutrinal e anima na estruturação da própria identidade, no
sentido psicológico. Ouvir a confissão e anunciar a absolvição possibilita a experiência da
comunhão com Deus e empresta sentido à presença pastoral da Igreja.
Lembra ainda o teólogo de Basiléia, que “a verdadeira prevalência do primado
da palavra de Deus naturalmente é assunto da própria palavra e somente dela, e por isso o
senhor não deve criar escrúpulos em todo esse assunto. Se o senhor estiver na fé e na
obediência, que aconteça aquela desgraça cá e lá – como aliás, cá e lá acontece grande
desgraça em nosso fazer, mesmo na melhor vida - e por fim tudo servirá ao bem para o
senhor e sua comunidade”. Talvez movido pelas pressões do crescente nacional-socialismo,
ele anima o pastor, por vezes também em condições precárias de vida e trabalho, a confiar que
a palavra anunciada tem sua própria força, que não está condicionada à sua aparente fraqueza
e que o poder de Deus se aperfeiçoa em sua fraqueza humana (2 Co 12.9).
E concluiu: “Portanto (...) ataque com firmeza seu inevitável trabalho em favor do
germanismo, pecca, pecca fortiter343!”, manifestando a esperança de que a carta não seja
mostrada a um teuto-cristão, “que dele – quem sabe? – iria sorver um mel que não foi
coletado para ele”344. O conselho para pecar com força neste contexto, levantava a questão
sobre a necessidade de atendimento ao grupo e sobre as possibilidades de acerto, sem referirse ao papel da Igreja como fomentadora da cultura germânica.
A publicação da carta de Barth no informativo Theologische Existenz Heute
(Existência Teológica Hoje) teve impacto imediato como tema de debate teológico na Europa,
chegando com efeito retardado mas eficiente ao trabalho dos Sínodos Evangélicos no Brasil,
apesar de seus efeitos serem ainda ignorados pela pesquisa345. A influência desta reorientação
teológica começou a alterar a perspectiva de ser Igreja dos imigrantes alemães que, passa da
342
Ibid.
Peca, peca com força!
344
Ibid.
343
345
Ibid., p. 379.
174
sua auto-compreensão como “esteio da cultura germânica” para a de “Igreja no Brasil”,
especialmente após o impacto da Segunda Guerra Mundial.
Para buscar o sentido fundamental e absoluto da presença da Igreja luterana em
terras brasileiras, Westhelle recorre a Hegel, “um luterano absolutamente convencido de que o
fundamento da religião não estava nem no sentimento, nem na espiritualidade, mas no ser de
Deus mesmo, na Idéia absoluta que na religião toma corpo como um momento de realização
de sua própria liberdade”, estabelecendo que “a religião é o relato, a documentação
externamente disponível da realização da natureza de Deus mesmo. Não é pelo sentimento
humano, mas pela realização do próprio Deus na história que a religião existe. E a teologia
torna-se esta ciência que articula, discerne, e examina estas máscaras de Deus deixadas na
história na forma de linguagem religiosa, as representações que povoam o imaginário
religioso do povo, seus mitos, ritos, lendas e estórias”346.
346
WESTHELLE, V. Uma fé em busca de linguagem; o sedicioso charme da teologia na IECLB. Estudos Teológicos/EST
1992/32 (1): 69.
175
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA JUVENIL NUMA CULTURA DA SUBJETIVIDADE
Prof. Dr. Antonio R.S. Mota S.J.347
RESUMO: O clima cultural que os jovens respiram hoje é construído por uma mentalidade que tende
fechar-se sobre suas necessidades individuais e esgotar suas energias interiores numa condescendência
espontaneísta de curto fôlego. Vivendo assim ofuscam-se e perdem o sentido de prospectiva na busca
de sentido global para a vida. Também a experiência religiosa corre o risco de se tornar fim em si
mesma. Vive-se, hoje, numa cultura radicalmente nova, com a qual se necessita discernir os
comportamentos juvenis enquanto valores significativos para uma compreensão adequada dos
problemas típicos dessa condição existencial; sendo necessário, para isso, fazer referência a alguns
elementos de análises globais da sociedade contemporânea, na qual se desenvolve uma nova vivência
cultural juvenil, no tocante às exigências de uma experiência religiosa de caráter eminentemente
subjetivista e fechada, no nível da individualidade como expressão cultural própria da pósmodernidade. Disso trata este artigo: refletir sobre a crise de subjetividade juvenil em geral e nos seus
aspectos críticos da vivência religiosa, valendo-se da apreciação de pesquisas sóciorreligiosas sobre as
experiências religiosas juvenis numa cultura da subjetividade. Palavras-chaves: religião, ética e
práticas sóciorreligiosas, cultura juvenil da subjetividade e experiência religiosa.
ABSTRACT: The cultural climate in which youth live today is formed by a mentality which tends to
focus on individual needs and which spends interior energies on matters of the moment that do not
demand much attention. Living like this is self deception and youth miss the meaning of life itself. In
this context, a religious experience risks being an end in itself. Today there is radically different
culture which necessitates a discernment of young life styles referring to significant values for an
adequate comprehension of the normal problems of life. To accomplish this, it is necessary to refer to
some global analyses of contemporary society in which new forms of youth culture which necessitate
a religious experience of a singularly subjective and closed character of individuality. This is a cultural
expression proper to post-modernity. This is the theme of this article, to reflect on the crisis of youth
subjectivity in general and those critical aspects of religious living, using the results of socio-religious
research about the religious experiences of youth in a subjective culture. Key-words: Religion; Ethical
and social-religious activities; Youth culture and subjective religious experience.
1 Matriz cultural da crise religiosa dos jovens de hoje
Hoje se diz que vivemos numa sociedade complexa, uma sociedade da pósmodernidade348. A sensação constante do homem moderno, contemporâneo é de sentir-se
347
Professor do Mestrado em Ciências da Religião – UNICAP. e-mail: [email protected]
“A exasperação da pós-modernidade manifesta-se principalmente em relação às duas idéias básicas da
modernidade: o individualismo e a racionalidade instrumental. Na crítica a elas, leva às últimas conseqüências a
própria dinâmica que as orienta. Torna patente o que está implícito nelas, se os seus pressupostos são assumidos
até as últimas conseqüências. O individualismo do sujeito autônomo desemboca num individualismo do eu
narcísico. O primeiro apontava para um sujeito empreendedor e cidadão; o segundo, para um sujeito solipsista e
hedonista. O segundo corresponde à desintegração do primeiro. Se o sujeito autônomo significou a afirmação da
identidade e da independência, o sujeito narcísico aponta para a perda da identidade e da independência, o sujeito
narcísico aponta para a perda da identidade e da independência, o sujeito autônomo significou a afirmação da
348
176
prisioneiro e engolido pelo seu tempo; tempo e mutação condicionam sempre radicalmente a
colocação do homem no seu mesmo horizonte de auto-avaliação e, portanto, de projeção,
desagregando a mesma base cultural e social.
Sociedade complexa quer dizer que, se, do ponto de vista geral, alcançaram
sofisticados sistemas de comunicação, de análise, de produção; do ponto de vista individual,
sente-se a fadiga seguir esse desenvolvimento tecnológico a altos níveis. Pós-moderno quer
dizer que não se tem a coragem de definir quais valores estão sendo conduzidos. A sociedade
do Renascimento indicava o renascimento dos valores antigos, a romântica, a crença na força
do sentimento, a positiva, enfim, referia-se ao positivo da investigação científica.
Hoje, ao invés, limitamo-nos dizer que se vem depois da modernidade, mas não se
tem coragem de definir em que consiste o significado do futuro que estamos projetando. É
evidente a crise de valores. “A percepção da aceleração contínua da mudança na sociedade
industrializada não se acompanha mais de algum significado de valores, nem é mais
vivenciada como progresso. O futuro não contém metas para serem alcançadas mas somente
identidade e da independência, o sujeito narcísico aponta para a perda da identidade e da auto-suficiência. O
narcisismo não se identifica com a auto-suficiência, mas com a perda de identidade. Faz referência a um eu
ameaçado pela desintegração e por uma sensação de vazio interior. Esse vazio interior manifesta´se como uma
desitalização de estruturas antropológicas típicas do ser humano. Desaparece a perspectiva do futuro ou da
utopia. O que importa é viver o presente e desfruta-lo plenamente. Não existem projetos que dêem sentido ao
presente. Vive-se a fugacidade do momento. Proclama-se o fim da história. A historicidade é esvaziada. Viver no
presente ( só no presente e não em função do passado e do futuro). Como perda do sentido d4e continuidade
histórica e erosão do sentimento de pertença a uma sucessão de gerações enrzizada no passado e prolongadas
para o futuro é o que caracteriza e engendra a sociedade narcisista. Vive-se para si mesmo sem preocupar-se com
suas tradições e sua posteridade: o sentido histórico foi esquecido, como também os valores e as instituições.
Desaparece a perspectiva do outro. Não importa o que acontece com os outros e, principalmente, o sofrimento
dos outros. Cada um busca o seu bem-estar. A solidariedade banaliza-se em shows de arrecadação. As pessoas
estão preocupadas com a libertação e o bem-estar do seu eu. Daí reslutam o encanto da self examination, a
difusão das terapias psicológicas, o grande sucesso de todo tipo de gurus. Narciso identifica-se com o homo
psicologicus. Obcecado por si mesmo, já não sonha, não se deixa afetar por nada, trabalha assiduamente para a
libertação do eu, seu grande destino de autonomia e independência: renunciar ao amor, to love myself enough so
that I do not need another to make me happy (J. Rubin), é o novo progarama revolucionário.
Quando a relação consigo mesmo suplanta a relação com o outro, a questão da democracia deixa de ser
problema. O crescimento do narcisismo significará uma grativa deserção do reino da igualdade, que continuará a
ser defendido como direito de cada um. Uma vez reconhecida a igualdade, ao menos na formalidade da
proclamação dos direitos humanos, apbrese o caminha para que surgja a questão do eu.De agora em diante, a
autenticidade substituima reciprocidade, o conhecimento de si, o reconhecimento do outro. Desaparecendo a
figura do outro do cenário social, a diferenciação ou a alteridade se interiorizam no consciente na relação do eu
consigo mesmo. O outro sou eu mesmo. O reconhecimento deixa de ser uma obra de socialização e torna-se algo
psicológico: reconhecimento de si mesmo. O processo narcisista anuncia que o eu é outro, dando origem a uma
nova alteridade (introjetada) como fruto do fim da familiaridade de de cada um consigo mesmo. O próximo
deixa de ser alguém absolutamente outro. A identidade do eu vacila quando a identidade entre os indivíduos se
cumpriu através da proclamação, ao menos formal, da igualdade de todos. Esse fenômeno nega a igualdade que
lhe deu origem. Ao individualismo solipsita corresponde a compreensão fragmentária da racionalidade. A
racionalidade instrumental desemboca numa racionalidade fragmentária. Não existe um princípio explicativo
único da realidade, já que se perdeu a consideração do fim. A racionalidade é esvaziada de teleologia. Impõe-se
uma multiplicidade de racionalidades. Essa fragmentação tem a sua base no declínio da verdade, do sujeito e do
ser.” Cfr. JUNGES. J. Roque. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001. p. 19-20.
177
acrescentar o peso do passado”349. Há ainda um outro problema mais grave: a perda do
futuro, a não esperança no mesmo futuro. Daqui a tendência para transferir sempre o discurso
mais significativo, mais comprometido, prolongar indeterminadamente a espera, mantendo
aberto o horizonte das possibilidades; fazendo escolhas, dizem os sociólogos, flexíveis,
reversíveis, com as quais se possa evocar o passado, dilatando o presente e paralisando o
tempo. Há de notar que todos esses discursos contrastam com aqueles que freqüentemente,
nós fazemos no mundo cristão. Ao invés falamos de uma trajetória do tempo que vai em
direção à parusia depois da criação e da redenção, e que tem, portanto, um fim bem preciso.
1.1 A secularização: extinção da religião ou despertar do sagrado?
Para compreender as modalidades e condições de possibilidade da experiência
religiosa dos jovens nas sociedades modernas e pós-moderna, parece-nos oportuno utilizar as
contribuições de alguns estudiosos dos fenômenos religiosos, enquanto é possível, para
compreender em que direção o processo da sociedade atual esteja envolvendo-se a partir dos
credos religiosos e dos valores que caracterizam o nosso tempo.
Uma primeira observação diz respeito à compreensão do conceito de moderno e
de pós-moderno na cultura contemporânea. A dicotomia moderno e pós-moderno não é
concebida como sobreposição à dimensão temporal antes e depois: nesse caso, recair-se-ia na
estrutura categorial da modernidade, a qual se autoconcebe, como contínua superação350.
A relação que a pós-modernidade estabelece com a modernidade, assim como as
formas culturais das épocas precedentes, é de tipo complexo: como sustenta G. Vattimo, a
relação que, na época pós-moderna, conecta a civilização profana às suas raízes hebraicocristãs é contemporaneamente de retomada, manutenção e distorção. Também se tratou da
modernidade e pós- modernidade que coexistem na cultura contemporânea e nos esquemas de
referência do povo, atravessando e acompanhando as líneas de diferenciação fornecidas pela
sucessão das gerações e dependem destas.
Observa-se que, em alguns interpretes mais notáveis da pós-modernidade, em
particular Gianni Vattimo, são freqüentes as referências à secularização: de um lado, é vista
como uma das características principais da modernidade; de outro, como um processo de
autonominação e desencanto do saber, que pode ser aplicado à mesma modernidade. Vattimo
349
TABBONI, S. Il tempo della storia. In: A CAVALLI (org.). Il tempo dei giovani. Bologna: Il Mulino 1985.
p. 54-55
350
Cf. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia delle scienze filosofique. Bari: Laterza 1967. p. 135.
178
faz um nexo entre modernidade, secularização e valor do novo, caracterizado pelos seguintes
aspectos:
a) Modernidade como abandono da visão sagrada e afirmação das esferas de
valores profanos(secularização como autonominação);
b) A fé no progresso como o ponto chave da ideologia da modernidade (a
secularização como fenômeno unilateral e progressivo). A ideologia do
progresso
parece
querer
eliminar
todos
os
aspectos
e
referências
transcendentes: próprio para fugir do risco de teorizar o fim da história e o
progresso se caracteriza sempre mais como um valor em si. O progresso é
possível e nada mais.
c) Esta extrema secularização da história equivale a afirmar o novo como valor e
valor fundamental351. A modernidade, portanto, elabora um significado
ambivalente da secularização: apresenta-se não somente como uma
dessacralização e racionalização, mas, contemporaneamente, também como
uma ressacralização e exacerbação do profano (o progresso)352. Os efeitos da
apresentação modernizante não dizem respeito somente à dimensão
institucional, mas investem também na vida privada, individual e na social. A
modernidade se configura, assim, como um aglomerado de elementos
tecnológicos, econômicos, sociais e cognitivos. Existe, por isso, uma
realização direta entre as instituições sociais e a coesão subjetiva das crenças,
dos valores e das visões do mundo353.
Como conseqüência, o homem moderno é constrangido a viver uma pluralidade de
escolhas, e essa necessidade se estende não só a outras inumeráveis situações da vida de cada
dia, como também a todo tecido humano, religioso e social.
Um outro aspecto não transcurável, presente nas condições objetivas da sociedade
pós-moderna, é aquele, segundo Niklas Luhmann definia há alguns anos, como um futuro que
não pode começar, e que, hoje, os jovens parecem transformá-lo, subjetivamente, num futuro
que não deve começar354.
351
VATTIMO, G. La società trasparente. Miliano: Garzanti 1989. p. 109.
Cf. BERGER, P.L. L´imperativo eretico. Leumann-Torino: LDC 1989. p. 42-45.
353
Naturalmente não se trata de uma relação absoluta mas de uma generalização probabilística: existe sempre
exceções de desvios.
354
Cf. FACCIOLI, P. Alla ricerca di uma identità personale. In:. TARROZZI, A. et al. Tempo di vivere.
Bologna: Il Mulino 1985. p. 165.
352
179
Pensa-se, por outro lado, que exista forte vontade para remover o futuro, porque
foi cancelado o passado, porque não se quer mais prestar atenção à história. Os dados e a
pesquisa sobre o conhecimento da história, por parte dos jovens, confirmam este dado: há
uma remoção radical, profunda da história. Ora, se se perde o dinamismo da história, o coenvolvimento de uma história que está desenvolvendo-se, esquece-se a espera dos eventos
futuros apaga-se uma virtude cristã fundamental: a esperança355. O caminho da esperança não
pode ser expressão de meras necessidades e desejos humanos, mas deve autenticar-se como
“verdade”: somente a verdade pode definir a humanidade, o homem e o sentido do seu agir356.
1.2 Uma cultura sem Deus?
Um sinal presente na nossa sociedade e, que não podemos ignorar, é uma de uma
cultura sem Deus, dizíamos, neo-pagã. O mundo moderno, depois de ter rejeitado cada liame
entre cultura e fé, definiu conduzir a sociedade contemporânea à total secularização da vida
sem Deus, materialista e consumista, que abre o caminho aos desvios morais e à fome de
violência, senão diferente daquele do paganismo antigo, porém mais refinado.
A cultura do nosso tempo é fortemente sinalizada pela secularização e pela
instância de caráter individual como o primado da subjetividade. Existem dois aspectos que a
mutação da história atual manifesta.
a)Vive-se menos o critério de verdade
Já Nietzsche dizia: “não é verdade isto que é verdade. É verdade isto que tu podes
considerar verdadeiro”.
O critério objetivo de verdade, em frente a qual eu estou e que reconheço, foi
substituído por um critério de verdade que eu imponho. “Não temos diante de nós nem atrás
de nós, no luminoso céu dos valores, nenhuma estrela polar, estamos sozinhos, condenados a
sermos livres e a escolher357.
O critério de verdade é substituído pelas instâncias individuais ligadas à vivência e
à experiência imediata.
355
CAVALLETTI, S. Il potenziale religioso tra 6 e 12 anni. Roma: Città Nuova 1996. p. 81.
PENATI, G. Verità, libertà, linguaggio, op. cit., 123.
357
SCIACCA, M.F. L´uomo in rivolta. In: ______. Con Dio e contro Dio. Milano: [s.n.], 1975.tomo II, p. 735.
356
180
A comunicação não acontece mais através da palavra, mas por contágio, também
no campo religioso: É verdade porque eu experimentei. Cada palavra ou conceito são também
expressão de um comportamento, de uma situação concreta e das ligações práticos
ou
afetivos que esta situação comporta: é nesta totalidade de vida que o nosso falar de Cristo
assume o sentido do testemunho.
A fé, diz o Concilio Vaticano II, “é ato com o qual a pessoa se entrega livremente
e totalmente a Deus que se revela em Jesus Cristo”358. No interior desse movimento, é
importante o ato inteligível, portanto, a linguagem, que está sempre ligada à forma de vida da
comunidade cristã.
A religião abraça a inteira existência de uma pessoa e é para isso que a relação de
fé com Deus se exprime e resulta de fato reconhecível e credível a um outro homem que a
vive. A experiência religiosa de um individuo é para os outros cristãos um símbolo; antes, é o
primeiro dos símbolos religiosos. Tais símbolos são a chave que consente a interpretação
religiosa dela própria e dos outros à existência no mundo359.
b)Não ficou vazio, mas prevalece a razão instrumental
Ficaram outros critérios, entre os quais se constata um, ao qual os outros têm que
reconduzir-se: aquele realizado pela ciência. Racional, torna-se sinônimo de verificável e de
mensurável, a razão vem reduzida a sua função instrumental. Devíamos colocar, em questões
de privilegio, que a razão instrumental se prevalece, de ser a chave, uma vez que abre a
estrada ao reconhecimento de uma racionalidade capaz de instituir critérios e valores. A
herança dessa cultura é dada pela centralidade do sujeito, pelas idéias de liberdade, de
autonomia e de historicidade. A religião pretende abraçar e resolver todos os problemas. Essa
se proclama capaz de dar salvação a todos e a tudo. Na realidade, essa não pode abraçar tudo.
Muitos âmbitos da vida pessoal e coletiva fogem à lógica da razão e da ciência.
Na nossa sociedade, ocorre uma mudança radical em cada esfera da vida pessoal e
coletiva, não somente nos confrontos da religião, mas também em
cada aspecto da
existência.Uma sociedade que se propõe como finalidade a transformação não deixa intacta
358
CONCILIO VATICANO II, Cost. Dogm. Dei Verbum (DV) n.5,1965
Cf. BOSCHINI-G. FORNI ROSA, P. Experiências religiosas e filosofia. Uma discussão. Filosofia e
Teologia, n. 8, 1994, p. 7-20. Sob o perfil cultural da reflexão racional, se exige uma filosofia da religião que
repensa o sentido da experiência religiosa como dimensão autônoma, originária do homem. Essa se move com
método ermeneutico e se constitue entorno da idéia moderna que aproxima a verdade para que seja culturalmente
mediada pelos grandes exames que temos recebido do passado e das comunidades de referência que
condicionam a nossa vida e o nosso modo de pensar.
359
181
nada, nem mesmo o relacionamento religioso, enquanto coloca em questão os valores e os
significados tradicionais e obriga a redefinição daquelas orientações significativas sobre as
quais se constrói a convivência humana.
E diante de todo o processo de secularização em ato na nossa sociedade, um
fenômeno co-envolve, mais ou menos rapidamente, todos os países europeus e também as
Américas. Trata-se de uma cultura secularizada, profundamente ligada à sociedade industrial
e com ênfase nos progressos racional e tecnológico, que reduz o saber a uma forma científica,
que reforça o papel das ideologias religiosas no primado da eficiência e da racionalização. A
busca de emancipação trouxe ao homem para novas escravidões e frustrantes desilusões,
impulsionando, sobretudo, os jovens a buscarem, cada um a seu modo, uma nova qualidade
de vida. Queremos sublinhar algum aspecto desse processo para nos tornamos conscientes dos
efeitos negativos que ela exercita na vida dos indivíduos na sociedade.
A secularização não é um aspecto qualquer da cultura: é uma tomada de posição
global nos confrontos do fato religioso. Porque se trata de uma tomada de posição, para
muitíssimos, de aspectos ambíguos. Quando não propriamente negativa, que põe à
evangelização e à educação da fé toda uma série de problemas complexos e inéditos de não
fácil solução. Não podemos negar os sinais da secularização deixados mediante um duplo
processo:
A) A secularização como extinção da religião
Os efeitos desta realidade sublinham tendência constante e crescente da
modernidade a privilegiar o sujeito e a história a ponto de chegar a esvaziar o significado do
papel da religião na vida dos indivíduos e da comunidade. O religioso é contestado pela razão.
É suficiente confrontar os dados sobre a freqüência aos ritos, o conteúdo das crenças e das
motivações das escolhas em campo ético. Decaem alguns grandes referimentos nos quais se
apoiava a razão: contestação da autoridade e da tradição do passado como fonte de leis não
julgadas e obrigatórias, das instruções como depositárias de valores absolutos. Esse processo
de secularização, atualmente, articula-se em torno de quatro dinâmicas antropológicas e
sociorreligiosas da nossa sociedade:
182
1. Modernização como mutação radical de uma comunidade sacra e tradicional
numa sociedade profana e progressista360. O homem, ao invés de buscar e encontrar o sentido
da existência com estruturas capazes de oferecer-lhe sentido humanizador, volta-se para si
mesmo e para sua busca pessoal.
Quando a sociedade não oferece mais respostas asseguradoras, a pessoa é forçada
a dirigir-se para dentro, sobre a própria subjetividade, para fazer aí emergir todas as certezas
que pode expressar. Essa argumentação requer isto que Arnoldo Gehlen entendia como
conceito de subjetividade. Para Peter L. Berger, modernidade e subjetividade são processos
conjuntos361. A pessoa é forçada pela sociedade a construir continuamente a si mesma e esta é
uma coisa muito difícil de fazer. Tudo isso significa um aumento de complexidade da
experiência de si que a pessoa possui, uma forte acentuação do lado subjetivo da existência
humana. A modernidade oferece ao homem uma série de promessas de nova liberdade, de
novas possibilidades de vida e de auto-realização e é, certamente, vivenciada como libertação
dos confins da tradição e dos seus vínculos362. No entanto, o êxito da modernidade, segundo
F. Ferrarotti, é a volta à tradição, na convicção nela estão as sementes do futuro363.
2. Racionalização como total desencanto do mundo e prevalência de uma razão
instrumental e pragmática sobre a razão essencial e noética364. É o mito de uma razão
absolutamente autônoma, totalizante, em grau de sastifazer a perene aspiração à identidade;
360
GUARDINI, R. La fine dell`epoca moderna. Brescia: Morecelina 1960; LUBRE, E. La secularização:
storia e analise de um concetto. Bologna: Il Mulino 1970. Um papel importante desta mudança de mentalidade
foi desencadeado pelo desenvolvimento das ciências da técnica. O Desenvolvimento científico trouxe consigo o
revestimento da visão do mundo que caracterizava o universo de pensamento típico da cultura sagrada. O
homem foi destronizado da sua posição de centro do universo material, e o cosmo cessou de aparecer como
transparência direta do divino. Cf. GATTI, G. Secularização. In: Dizionario de Pastorale Giovanile. LeumannTorino: LDC 1992. p. 974.
361
O termo subjetividade foi criado por Arnold Gehlen: cf. GEHLEN, A. L`uomo: la natura e il suo posto nel
mondo. Milano: Feltrinelli, 1983 anche MARCHISIO, R. Salvare lìo. La crisi dell`identità e l`esperienza
relgiosa. Studia Patavina, n. 2, 1996, p. 330-341. L`autore, rifletetendo su uòpera de P. L. Berger mette in luce
la stretta connessione fra i tratti peculiari dellìdentità moderna e l`esperienza religiosa.
362
Cf. BERGER, P. L. L´imperativo eretico. Leumann-Torino: LDC, 1987. p. 57-58.
363
Retomando esta espressão de Franco Ferrarotti, que no seu livro “Una fede senza dogmi”, Roma-Bari:
Laterza, 1990. p. 172-173, sustenta que o modernidade tem necessidade do antigo. Por esta razão a formula pósmoderna é lingüisticamente e conceitualmente infeliz. A eventual solução dos problemas da modernidade leva a
buscar não depois, mas antes da modernidade. Aqui estavam na tradição da qual se libertou rapidamente,
sementes do futuro que foram esquecidas e que foram redescobertas, reconsideradas e recuperadas. O progresso
não é uma fatalidade cronológica, não um desfecho necessário. O progresso se tornou o problema. O progresso
técnico não garante nada a respeito do progresso moral. As condições mínimas da convivência humana estão em
perigo. O progresso técnico nos trouxe a beira do abismo.
364
A mentalidade técnica inclui a rejeição de aceitar a natureza e de sustentar uma ordem natural inviolável.Esta
cultura não somente rejeita a Revelação cristã, mas traz a uma sociedade sem pai, a rejeição de cada
paternidade, na obsessão dos que quererem construir-se sozinhos. Cf. LUHMANN, N. Funzione della religione.
Brescia: Morcelliana, 1991. Línciso é tratto da: KANT, I. Critica della ragion pratica. Roma-Bari: Laterza
1974. p.147.
183
que exclui tudo o que não é inteligível, compreendido o mal, o erro e o pecado, e pretende
superar tudo isso oferecendo, até mesmo, a salvação365.
3. Secularização como extensão constante da esfera do profano com respeito à
esfera do sacro
e como progressiva eliminação do religioso366; o religioso, embora
reconhecido, é visto como incompetente a respeito de vários problemas da vida. Ser religioso
é alguma coisa de válido em si, mas inútil para o resto. A experiência do sagrado torna
sempre menos possível. É em ação um processo não somente de secularização mas também
de dissolução do sagrado.
S.S. Acquaviva faz uma distinção entre secularização e
dessacralização: a primeira se presencia
na perda do significado do sagrado-estruturas,
coisas, pessoas, espaços, comportamentos e pode acompanhar-se da dessacralização, isto é,
em intensidade e divulgação, da experiência do sagrado ou mesmo a reduzir-se, até extinguirse, pela experiência psicológica do radicalmente Outro367.
4. Subjetivação como gradual des-institucionalização da religião da realidade
mundana. Sua redução à esfera livre da privatização e seu confinamento nos momentos do
tempo livre. Uma religião, portanto, ocasional, periférica, episódica, dominical, invisível,
flutuante, facultativa e ocasional.
A exaltação do individualismo, destacado pela consideração da outra pessoa,
exaltação da busca do protagonismo, da subjetividade e da notoriedade, também reforçada
pela forte pressão da valorização do aparecer, do mito, da imagem, destacada pela sua
referência ao ser e à substância. Estão aqui premissas para o emergir de uma experiência
radical que o centro do mundo põe somente si mesmo com a conseqüente incapacidade de
instaurar aquela relação estável e profunda com os outros, que mesmo o jovem vai sonhando
com todos os seus desejos.
A subjetivação, enfim, mesmo favorecendo o superamento de uma aceitação
puramente ambiental e sociológica dos princípios éticos e de fé, e das formas de pertença
eclesial, abre mais o horizonte a subjetivação arbitrária que risca de trazer a rejeição prática
da consciência ética
comunitária, seja civil ou eclesial, e a desestabilização do tecido
social368.
365
SPERA, S. Racionalismo. In: “LEXICON” - Dizionario Teológico Enciclopédico. Casale Monferrato:
Piemme, 1993. p. 870.
366
ACQUAVIVA, S. L`eclesi del sacro nella civiltà industriale. Milano: Ed Comunita, 1971. Sull`argomento
se veda: ACQUAVIVA, S. ; GUIZZARDI, G. La secolarizzazione. Bologna: Il Mulino, 1973; STELLA-S, R. ;
ACQUAVIVA, S. Fine de um ideologia, la seco-larizzazione. Roma: Borla, 1973.
367
Cf. ACQUAVIVA, S. L`eclesi del sacro nella civiltà industriale. Milano: Sugar Co, 1981. p. 67.
368
MION, R. Dalla cultura della morte allá cultura della vita: i Giovanni. Orientamenti Pedagocici, n. 1, 1997,
p. 34.
184
B) A secularização como transformação e despertar do sacro
A secularização como transformação, e também, de certo modo, como despertar
do sacro, é evidente em não poucos fenômenos dos nossos dias: de tipo integralista e
fundamentalista. De tipo integralista e fundamentalista, mas também sincrética369:
-
o interesse pela magia, o espiritismo, o ocultismo, o satanismo (têm como
objeto entidade misteriosa que foge à pesquisa científica);
-
o interesse consumista por temas da religião da parte dos editores e
publicitários, os quais não combatem a religião e não fazem apologias, não
sobrepõem o profano ao sagrado, mas mesclam e o confundem num misto que
lembra o mito no qual Nietzche fala “entre verdade e fábula”.
O descontentamento nos confrontos de uma sociedade complexa se explica de
tantos modos: desempenho social, fuga para a droga, refúgio no mágico, novas religiões. Esse
descontentamento se manifestou progressivamente na nossa sociedade de fronte a três
elementos fundamentais da visão cristã do mundo e que envolvem, sobretudo, as novas
gerações:
a) Deus como resposta única às perguntas de sentido do homem.
b) Jesus Cristo como mediador e veículo de salvação.
c) A Igreja como mediadora que guia ao encontro de Deus com a história.
Lentamente se nota:
-a rejeição do papel da Igreja (Cristo sim, Igreja não)
-a rejeição do Cristo como mediador único (descobertas das religiões orientais)
-a rejeição de Deus (religião sim, Deus não), nas ambíguas religiões do homem.
Aqui se coloca a magia e sua atitude de descontentamento ante a visão cristã do
mundo. Ressalte-se que a magia, antes de ser uma atitude de inteligência é uma atitude da
vontade. O descontentamento desta não se traduz numa rejeição por parte da inteligência, mas
emerge prepotente como desejo de apropriação por parte da vontade. Temos, assim, uma
dinâmica interna que age nestes termos:
a) nega-se a Igreja para apropriar-se dos poderes da Igreja;
369
AA.VV. I segni di Dio, il sacro-santo: valor, ambiguidade, contaddidizioni. In: Atti del Terzo Convegno
teologico, 19-21 giugno 1992. Milano- Cinisello: Ed. Paoline, 1993, 135-161. Il fondamentalismo vorrebbe fare
A. da argine a tutto questo disordine Che dilaga nella nostra esperienza culturale e social, prima che religiosa.
185
b) nega-se Cristo para apropriar-se de alguns de suas prerrogativas: autoridade
sobre o mundo dos espíritos, a profecia, o domínio sobre a matéria;
c) rejeita-se Deus para ser como Ele, para conseguir o poder supremo sobra a vida
e sobre a morte, a imortalidade, “o corpo de glória” ou de luz.
Sublinha-se, ainda, que o homem moderno não abandonou a religião para crer, no
seu lugar, em qualquer outro: como é incapaz de afirmações, assim é incapaz de negação e de
reafirmação. “ É um homem frágil, dotado de um mínimo” não mais tanto moderno por negar
Deus e não ainda pós-moderno para poder reafirmá-lo. O credo do homem moderno em crise
é um misto de vários estilos, que “não duvida em misturar diversas culturas e religiões juntas
com elementos reais e não reais de verdades religiosas e culturais”, assumindo, assim,
concepções frágeis e subjetivas do próprio eu no ligame com os outros370.
Segundo G. Vattimo, devíamos viver até a fundo o destino da nossa cultura atual,
aquela da secularização, compreendida ainda como relação complexa com a religião: “ uma
cultura secularizada não é uma cultura que se deixou, simplesmente, às costas, os conteúdos
religiosos da tradição, mas que continua a viver com traços, modelos escondidos e
distorcidos, mas profundamente presentes”371.
Por sua vez, J. Habermas sustenta que a condição pós-moderna” poderia favorecer,
paradoxalmente, um renovado interesse pela religião, também em nível diversificado e com
modalidade diferenciada, isto é, esteja sobre plano micro, esteja sobre aquele macro,
contemporaneamente em nível pessoal e em nível institucional. Colocado menos a ênfase da
modernidade sobre a secularização como racionalização linear e compreensiva, e mostrando
toda a fragilidade da secularização como subjetivação, a religião, hoje, constituir-se uma
reserva de símbolos e significados, reproduzidos institucionalmente, ou livremente assumidos
pelos indivíduos, segundo uma multiplicidade de percursos e de níveis372.
2 Os valores numa época de crise
O vazio ético produzido com a secularização e desarticulação da relação entre
Igreja e sociedade nos solicita uma reflexão religiosa sobre novos e velhos valores e como
370
A subjetividade moral nos jovens é um grande problema, no sentido que para eles as normas não tem
fundamentos objetivos (cf. I limite, io, me li do da solo)Per molti questo è critério morale. COZZOLI, M. Ética
teologale, fede, carità, speranza. Cinisello: Ed. Paoline, 1991. p. 83.
371
VATTIMO, G. La società trasprarente: Milano: Garzanti, 1989. p. 58-59.
372
Cf. HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. Bologna: IL Mulino, 1986. . 2 voll, p. 972-990.
186
resposta a uma sociedade anti-religiosa. Observamos, ainda, que a progressiva caída dos
príncipes transcendentes religiosos (Deus) por efeito da secularização não tenha eliminado,
em geral, valores substanciais próprios da vida coletiva, mas lhe tenha, de fato, tornado
autônomos.
O problema dos valores se constitui, hoje, numa crise antropológica sem
precedentes; vivemos sob o crivo de um dos temas forte e obrigatório na nossa época sobre os
quais a humanidade constantemente se interroga com restrições sobre as causas de conflitos
de valores que decorre dessa problemática373.
Tal restrição é originada pelo fato de que não se trata de um tema externo, simples
objeto de análise ou de reflexão neutra, mas de um tema interno ao observador, do qual não
parece prescindir ou tomar as distâncias em algum modo. Se a hipótese da volta epocal quer
significar os valores tradicionais, estão-se transformando radicalmente, para fazer frente a
uma serie de problemas. Também é verdade que as habituais certezas e seguranças estão
ocorrendo menos. Isso comporta a busca de novos pontos de referência e torna-se uma
exigência imprescindível.
Pela reflexão feita pela maior parte dos estudiosos (filósofos , moralistas,
psicólogos, sociólogos, antropólogos), sobre temas de valores, emergem tratamento comum
que consentem definir, de algum modo, os confins do singular valor, em relação à globalidade
dos significados últimos (cosmo, sacro, quadro de valor, valor unificante)374. “O valor é
aquele centro de referência de natureza abstrata e meta empírica, largamente difundido por
uma coletividade e propulsor de uma atitude prática hierárquica cujo fim é o bem social.
Segundo S. Burgalassi, o valor é constituído por uma tensão ideal coletivamente
compartilhada em torno da qual, como a uma opção de fundo, constroem-se redes de valores
que necessitam de contínuos revestimentos culturais apropriados à época que vivíamos. Ele
diz ainda: hoje assistimos não já a perda de cada valor, ou seja, uma re-interpretação dos
valores tradicionais à luz de novas exigências, quase sempre coincidentes com estilos e
qualidades de vida mais humana375.
373
Il concettto di svolta antropológica ( ou di svolta epocale) é entratto ormai nella pubblicistica corrrente,
introdottovi sai dalla riflessione teológica Che sociológica corrente, introdottovi sai dalla riflessione teologica
Che sociologiica; i documenti conciliari e quelli di Giovanni Paolo II lo utilizzano di frequente. L`utilizzo Del
concetto nei documenti pontifici è stato analizzato da BURGALASSI, S. Dall`Hommo Economicus allá
centralità dell`uomo. Sociologia, n. 2/ 3, 1992, p. 105-151; cf. anche SBURGALASSI, S. Uma svolta
antropológica. Pisa ETS, 1980; Uno spiraglio sul futuro. Pisa: Giardini, 1980; Passato e futuro. Pisa: ETS,
1992.
374
BURGALASSI, S. Il concetto di valore e la struttura dinâmica Del quadro de valor. Studi Sociali, n. ¾,
1990, p. 59-84; Valori Che cambiano: um modello teoretico. Studi Sociali, op. cit. p. 41-48 e 63.
375
Cf. BURGALASSI, S. Uma svolta antropológica, op. cit. p. 59.
187
Para o psicólogo social Michele Loprieno, os valores são “entidades abstratas que
dizem respeito a isto que se compreende convincente para o melhoramento das condições
gerais da existência. Podem ser relevantes somente indiretamente, através da medida de juízos
modelos de conduta, sobre normas de comportamento e sobre afirmações de princípio”376.
Loprieno, depois de ter feito uma verificação de natureza empírica, acrescenta: “assegura-nos
ver como os valores se dispõem em conjunto congruentes e juntos se diferenciam entre eles
de modo a formar constelações unitárias que mostram indicações culturais agilmente
reconhecidas. Isso quer dizer que as entidades que indiretamente avaliamos são efetivamente
credenciais de fundo que regulam o modo de pensar e de responder”377.
Existe não somente uma íntima conexão entre os diversos âmbitos do quadro de
valores, e sua hierarquização, mas também um elemento ou princípio unificador que, por
assim dizer, dá o tom e cor de ordenador ao conjunto dos valores individuais.
Pensa-se que cada indivíduo tenha um próprio e específico princípio unificante ou
ordenador.
O compartilhar de tal princípio, graças a adesão a uma religião específica, isto é,
uma estrutura cultural totalizante, que, através dos seus aspectos doutrinais, rituais, éticos,
oferece um quadro global coerente e um modelo transmissível às jovens gerações, informa e
ilumina os valores individuais dando a eles uma coerência interna especifica; está aqui a
diferença entre um cosmo de valores genéricos, individual, e um cosmo de valores que
tenham por princípio unificante uma mensagem religiosa, estruturada formalmente e
coletivamente.
Neste caso, os valores éticos derivam diretamente da substância da mensagem
religiosa e da normativa que a instituição emite378.
É inegável que estamos frente a uma transformação do valor unificante com a
consequente repercussão traumática sobre todos os aspectos do quadro global.
Afirmamos que o quadro de valor, embora composto de miríades de elementos
entre aqueles que estão ligados e postos em ordem hierárquica, obedece à máxima ou
princípio unificante, que definimos como o ponto de referência essencial em torno do qual se
constitui cada escala de valores.
376
LOPRIENO, M. Emergenza del símbolo e formazione dl valore. Pisa: ETS, 1983, 17-68; L`analisi è
maggiormente sviluppata in rudimenti. Pisa: ETS, 1985.
377
LOPRIENO, M. Emergenza del símbolo, op. cit. p. 11.
378
Cf. BURGALASSI, .S. Il conceito di valore e la struttura dinâmica Del quadro valoriale, op. cit. p. 5984. I valori etici, fazendo parte Dell`âmbito religioso, sono anlizzati, a pieno diritto, dalla sociologia, mentre
ivalori in sé ed il quadro Che li unifica sono pertinenti al cuore dell`azione sociale e come tali oggetto più
próprio dell`analisi sociologia tout-court.
188
Chamamos este ponto de referência “opção de fundo”, ou fé, identificando-o no
núcleo central da sociedade das várias imagens de religiosas da sociedade379. Trata-se de um
elemento central que, em termos religiosos ou ideológicos, podemos chamar fé ou objeto de
fé , para evidenciar a natureza não estritamente racional de tal escolha. Em torno a desse
núcleo, constituem-se aqueles individuais “mundos vitais”, que podem reconduzir-se a série
de valores psicoantropológicos e biosociológicos próprios de cada individuo.
2.1 “Fruibilidade” de valores no cotidiano dos jovens
As crises das agências de formação e socialização, em primeiro na família, na
escola, comporta uma dificuldade crescente para motivar veicular o consenso sobre valores
comuns.
Em tais contextos, hoje mais que um passado, é compreensível que se desenvolva
uma condição de substancial desorientação. O impacto cênico (dos valores) permanecem o
mesmo de um tempo e constitui o fundo para a ação individual. Neste sentido, mais que
sublinhar a existência de uma crise de valores, junto a população juvenil, o problema
representou para eles fruibilidade ou, melhor, ainda, pela sua diminuição concreta no agir
cotidiano. A sociedade, a justiça, a paz, a família, o trabalho, as amizades, são valores
reconhecidos amplamente e aos quais a grande maioria dos jovens atribuem uma relevante
importância.
Devemos reconhecer que está presente na nossa sociedade uma crise de adesão aos
valores, que envolve jovens e adultos, como num circuito perverso, esvaziando de significado
os mesmos valores e tornando estes últimos sempre menos reconhecíveis. Assim se expressa a
validade normativa sobre o agir, para dar espaço a uma dinâmica de tipo relacional e
comunicativo.
Esses não se configurariam mais como um elemento dado, mas de vez em quando
se experimenta, se reconhece e se adquire mediante um processo cognitivo380.
Imaginar uma homogeneidade nos comportamentos da parte de todos os jovens
implicitamente significa prefigurar um comportamento inspirado por um único critério e em
definitivo, não reconhecê-los também uma autonomia de ação e uma liberdade nas escolhas.
379
380
Cf.. BURGALASSI, S. Uma svolta antropológica. Pisa: ETS, 1980. p. 13-90.
Cf. SCANAGATTA, S. Uma generazione tra ieri e domani. Padova: AR &, 1988.
189
Em definitivo, as jovens gerações se encontram vivendo, na maior medida das
precedentes, uma situação de relevante transição social, sobretudo por quanto espera uma
adesão aos valores.
A confiança nas instituições não é muito elevada entre os jovens, em quanto estes
fogem sempre menos como organizadores e reguladores dos sistemas de valores que
representam.
A religiosidade, o reconhecimento das regras morais, a identificação no sistema
social não vem menos, se assiste precisamente a uma fragmentação da esfera ética, a um
politeísmo de valores, sempre mais ligados a percursos biográficos, enquanto se tornam
sempre mais frágeis os critérios diretivos do agir humano.
a) valores- necessidades?
O valor é tal e se transcende a necessidade do indivíduo e se configura como um
bem comum, um fim realizável por todos. Uma vez que se constitui como objetivo a perseguir
e defender, esse se torna um fator estimulante381.
O mais recente quadro dos valores das novas gerações vai na direção de
amadurecer as próprias referências de juízo normativo para fora das instituições, das
ideologias e das utopias. Isto se verifica com o renascer das temáticas do “privado” e, em
correlação, com o alvorecer menos político. Nota-se mais precisamente a valorização dos
âmbitos do social e, mais em geral, do pré-político, isto é, em particular dos âmbitos das
micro-relações humanas (família, amigos, grupos, associações), e as experiências de imediato
envolvimento no qual seja possível tentar via não por demais empenhativo para o reencontro
de uma melhor qualidade da vida. (levanta-se daqui as muitas perguntas sobre cultura, de
compromisso ecológico, de trabalho na luta pela marginalização, de voluntariado e perguntas
religiosas)382. Os dados empíricos convergem na representação dos jovens orientados aos
valores ou aspectos da vida que indicam uma visão pragmática e realista a forte subjetividade
mais precisamente uma visão conectada de idealismo, de participação social, de solidariedade
e religiosidade.
Neste contexto, os valores de referência dos jovens se conectam com uma ética de
responsabilidade individual. Os jovens são na sua maioria orientados ao estilo de vida que
privilegiam os valores-necessidades de tipo expressivo pós-materialista, aqueles de
381
382
Cf. BURGALASSI, S. Il concetto di valore e la strututtra del quadro valoriale, op.cit., p. 59-65.
MILANESI, G. I giovani nella società complessa. Leumann-Torino: LDC, 1989. p. 86-87.
190
responsabilidade pessoal, a solidariedade, a autenticidade, respeito aqueles de tipo aquisitivomaterialista.
Os valores necessidades (aqueles ligados a esfera do pessoal e do existencial) que
são acolhidos como mais importantes são identificados prevalentemente no afeto dos
familiares(sobretudo dos adolescentes). No trabalho (ou no ir bem a escola, para os
estudantes) e na vida de relação horizontal: ou mesmo o amor de uma moça ou rapaz e o
intercambio amigável com os casais383.
B) “Valores – realização?
São aqueles valores compreendidos como importantes para sentir-se realizados na
vida. Os jovens parecem conscientes ao viverem com honestidade, desenvolver uma profissão
de prestígio ou de responsabilidade.
Procura os estilos de vida dos jovens, isto é, as convicções de fundo que animam o
agir e aqui caracterizam os comportamentos, emerge uma forte motivação sobre a realização
da própria personalidade, um dado que, não significa acolher o ideal nem possuir uma visão
projetiva da vida, mas, precisamente indica uma tensão sobre a aquisição, em cada momento,
de qualquer oportunidade de crescimento, em vantagem pessoal, para afirmar-se em termos
existenciais e ou de status sócio-profissional. Por outro lado também os jovens se manifestam
muito interessados ao compromisso com os outros para um amanhã melhor (valor social), este
sendo considerado como um instrumento para realizar verdadeiramente a própria
personalidade (Valor individual).
Dentro da descoberta sofrida da subjetividade há certamente uma instância de tipo
religioso, que floresce nos vários contextos. A demanda religiosa está certamente presente no
mundo juvenil, também se não é focalizada. O jovem, descobrindo quanto a vida seja
importante, descobrir também a exigência dos valores capazes de preencher e de orientar para
alguma coisa de grande.
O homem em geral, assim como o jovem, se porá sempre e de forma nova o
problema do significado da vida, da criação, do seu existir no mundo: isto acontecerá até que
existam homens que se interroguem384.
383
Cf. GARELLI, F. Il mutamento della coscienza morale nelle nuove generazioni. Note di Pastorale
Giovanile(BPG) n. 6, 1984, p. 4-8; cf. EMMA, M. Giovanni: nuove frontiere morali. Napoli: EDB, 1986
384
Cf. AQUAVIVA, S.S. Eros, morte ed esperienza religiosa. Roma- Bari: Laterza, 1990. p. 35-42
191
2.2 Experiência religiosa e ética cristã
Á luz das mudanças sócio-culturais são facilmente identificáveis os reflexos da
sociedade complexa sobre religiosidade e mais proximamente, seus processos de socialização
religiosa385.
Podemos reassumir no avançar da secularização compreendida como:
-
privatização do discurso religioso
-
marginalização das instituições religiosas: da igreja e suas leis
Assiste-se, antes de tudo, uma relativização dos valores. O discurso religioso não
está mais no vértice da cultura transmitida. Hoje se torna religioso por escolha pessoal. A
educação religiosa é vista como uma instituição posta à margem da vida social e relevante
somente na esfera da vida pessoal.
A conseqüência está na falta de socialização religiosa das novas gerações:
a) Em termos quantitativos: sempre menos jovens são educados religiosamente
(situação de distanciamento).
b) A religiosidade se torna um fator periférico na construção da sociedade.
A sociedade pós-industrial suscita necessidades pós-materialista : não se diz, no
entanto, que esta seja religiosa386.
De fato são privilegiadas necessidades de auto-realização imediata, mais que
necessidades ligadas ao sentido da vida. A referência prevalente é aquela do “sentir-se bem”,
antes do “sentir-se melhor”: segurança material, dinheiro e saúde.
Escassos são as referências aos valores da ética e da religiosidade. Podemos
observar uma não relevância de cada discurso religioso.
Deixa perder-se o discurso religioso que torna-se condição geral essencial de
modernidade pós-industrial.
A única possibilidade religiosa parece dada por uma atitude de critica radical sobre
a contradição de uma semelhante sociedade.
Os jovens sentem um forte conflito entre estes dois modelos de vida opostos:
a) Por uma parte está a exigência forte da fé e da ética cristã
385
GARELLI, F. Complessità sociale.
Cf. CENIS. Dal sommerso al post-industriale. Milano: Aneli 1983; STAREGA, G. (a cura di). Consenso e
coflito nella socieatá contemporânea. Milano: Angeli 1982.
386
192
b) Por outra parte está a mensagem mais moderna e mais frágil dos valores da
sociedade pós-industrial.
A pressão social opta pelo segundo modelo. O primeiro é marginalizado e
reduzido ao plano das escolhas privadas e é relevante para as grandes escolhas (família,
trabalho, vida social, tempo livre).
A marginalização do religioso parece constituir a atitude de isolamento da Igreja:
mas por outro lado se educa a viver sobre a defensiva, a olhar o hoje com rejeição e suspeita,
a viver com uma mentalidade de assédio, e aceitar a esquizofrenia entre vida privada e vida
pública.
Aqui se consegue uma extrema tolerância que freqüentemente se torna indiferença
nos confrontos das outras convicções. Cada um tem o direito de pensá-la como melhor
acredita. Somente o critério pode ser, por escolha individual, a sua consciência, a sua vez, não
sendo guiada pelo conceito de verdade como ponto de referência absoluto, certamente está
mais exposta a ser determinada pelo jogo dos sentimentos e das pulsões387.
Identifica-se como uma experiência puramente individual, e se concretiza a fé num
deslanchar principalmente emotivo e em algum contato com a cultura, que é ao invés a
dimensão de abertura e da comunicação universal.
3 Consciência e liberdade
Entre os traços desta cultura é certamente assinalado a concepção de liberdade. O
homem de hoje, o jovem em particular, tem a consciência do valor da liberdade: No profundo
de si experimenta liberdade e liberdade inviolável. O jovem pensa em realizar a própria vida
pela qual escolhe livremente estradas para percorrer. O seu grande limite é pensar possuir
também o projeto da própria realização e portanto, de bastar-se a si mesmo. Deus é irrelevante
ou até mesmo é cancelado como concorrente da liberdade do homem: o homem sozinho pode
raciocinar, compreender, descobrir os valores segundo os quais orientam a própria vida na sua
realização. O resultado desta ilusão é freqüentemente a desorientação existencial, não sabendo
mais a quem recorrer para invocar a revelação dum sentido para a própria existência. Termina
assim por consumir-se vorazmente em experiências, com a inconsciente esperança de
387
Cf. MILANESI, G. I giovani nella societá complessa: uma lettura educativa sulla condizioni giovanile,
Leumann-Torino: LDC 1989. p. 22, dove si parla de relatizzzione dei sistemi di significato; cf. GARELLI, F. La
religione tra i lavoratori. Bologna: Il Mulino, 1986.
193
encontrar em alguma nova emoção, o sentido perdido da vida. Neste contexto o jovem é
ajudado a compreender que o homem é sim liberdade, mas não liberdade que se auto-projeta.
a) Subjetivação da ética
É aquela que é chamada a subjetivação da ética. “É a consciência que dá a si
mesma a sua lei, sem depender de alguma lei superior. Fala-se também da consciência
“criativa”. Na prospectiva
da autonomia moral significa decidir compreender o de não
compreender uma determinada ação sobre base de motivos racionais, mas precisamente só
sobre convicção racional da validade dos argumentos sustentados pela norma388.
A mesma fé risca de perder o sentido de uma adesão a verdade objetiva, para
tornar-se precisamente, uma experiência subjetiva.
A posição do jovem de fé é personalizada até ao ponto de ser observada como
válida para ele somente, no silêncio ou explícito pressuposto que essa não se refere a sua
realidade como um todo.
Compreende-se assim, como seja o individuo a determinar a área desta adesão e a
assumir livremente as próprias responsabilidades.
O jovem, em particular, tende a construir-se perfil cristão próprio.
b) Possibilidade de crescimento e de atrofiamento
A complexidade da nossa cultura é sinônimo de novas possibilidades de
crescimento, mas também de novas possibilidades de atrofiamento389.
Os jovens vivem nessas mesmas duas dimensões que ficam incomunicáveis:
aquela da sua religiosidade, que se exprime em momentos também intensos de oração, ou de
empenho caritativo, e aquela da sua mentalidade, das suas idéias em campo filosófico, ético,
político. Tem-se a impressão que esta última seja refratária e impermeável em deixar-se co-
388
GIOVANNI PAOLO II, Lett. Enc. Veritatis Splendor (VS), n. 55-56, 1993: “ I fondamenti dell`insegnamento
morale della Chiesa “. Giovanni Paolo II afferma Che la funzione della coscienza non é quella de giudicare, ma
quella de decidere: “Volendo mettre in risalto il carattere creativa della coscienza alcuni autori chamano i suoi
tai, non più con il nome de giudizi, ma con quello de desionsi: solo prendendo autónomamente queste decisión
l`uomo potrebbe raggiungere la sua maturità morale e ancora: “Non manca chi ritiene che questo processo di
maturazione sarebbe ostacolato dalla posizione troppo categórica che, in molte questioni morali, asume il
Magistero della Chiesa, i cui interventi sarebbero causa , presso i fedeli, dell`insorgere di inutili conflitti di
coscienza”.
389
LANFRANCHI, A. I giovani risorsa e speranza della Chiesa e della società: le coordinate pastorali.
Presenza Pastorale, n. 12, 1996, p. 23-50.
194
envolver do dado da fé religiosa. De fato os jovens não são pois assim livres na sua fé como
nós os imaginamos que sejam. O ateu hoje cresce fora dos nossos grupos, como nos mesmos
nossos grupos.Também os jovens que freqüentam trazem inscritos na sua carne os traços da
cultura de hoje: a fragmentação da experiência, o não compromisso definitivo, pela qual
assistimos com freqüência ao abandono e retomadas num alternar-se entre momentos fortes
de vivência espiritual e momentos de passividade.
O jovem é possibilidade de realização, também muito grande, mas nisto não se dá
o próprio projeto, ele não possui o sentido da própria pessoa, da própria existência; pode ser
somente em esperança que alguém lhe revele re-alcançando-o na sua vida. Trata-se então de
encontrar as experiências adequadas para fazer tomar consciência aos jovens que o homem
não é criador de si mesmo, mas é criatura. O homem se realiza somente no diálogo com
Aquele que é seu Criador. O seu Salvador. Para viver com verdade, a sua existência é
chamado a ser aberto e em escuta da Palavra de Deus, em escuta de Jesus Cristo que o realcança e lhe revela o sentido da própria vida. No diálogo com a Palavra feita carne, se
realiza na verdade. A realização de si coincide de fato com o acolhimento e a realização do
projeto de Deus sobre si.
Conclusão: uma Igreja na cultura do nosso tempo
Hoje, como também no passado, há o risco que a Igreja se volte para um tipo de
homem que finalmente não existe mais na realidade. Outras vezes ela exortou, edificou,
julgou, supondo uma cultura que ao invés, está finalmente ultrapassada. É o risco que corre
também hoje, um risco que pode destruir a vitalidade e a eficácia da mensagem cristã.
A esperança entre fé e cultura, que segundo Paulo VI é o “drama da nossa
época”
390
, não vivida somente por uma parte do mundo, mas também pela aquela dos que
crêem e dos seus pastores. A cultura perdeu a dimensão da fé, mas a fé mostra às vezes a
impressão de ter perdido a dimensão da cultura.
Se tal hipótese é válida, ao menos semelhante tarefa da Igreja, será de evitar que
isto caia também hoje. É o único modo de evitá-lo é de tornar-se atentos ao presente desfio
cultural, colocando-se numa atitude de humilde escuta para compreender que coisa realmente
esteja acontecendo.
390
PAOLO VI, Esort. Ap. , Evangeli Nuntiandi ( EN), n. 20 (1975). La cultura é un terreno privilegiato nel
quale la fed si incontra con l`uomo.
195
Exige-se da Igreja viver com amor o nosso tempo, de apressar aquela história da
liberdade que segue avante, mesmo entre contradições . Neste esforço não será suficiente
analisar as varias pesquisas: necessitará buscar penetrar no coração do clima cultural no quais
expressões instrumentais da busca sociológica cabível, para a sua mesma natureza, colocar em
relevo.
Para Piter Thomas Luckmann a situação da religião na sociedade moderna é
inédita. Ele assegura que, ao lado da presença das instituições, caracterizada pela
possibilidade para os potenciais consumidores, de aceder diretamente a uma absorção de
representações religiosas391. Enquanto é conservada a forma exterior da religiosidade
tradicional, o sentido subjetivo, sob o influxo das mudanças sociais gerais, subsiste uma
profunda modificação. A nova forma religiosa se apresenta como um fenômeno reservado
essencialmente na esfera privada, pois não é sustentada pelas instituições religiosas ou
públicas. A pessoa tem acesso direto ao “cosmo sacro” ou, mais precisamente, a uma
absorção de temas religiosos, que apresentam um grau de coerência e sistematicidade inferior
à aqueles tradicionais, mas que respeite a esses, e aparecem mais flexíveis, mas também
instáveis daqueles tradicionais, que resultam mais adaptáveis as exigências individuais de
auto-realização.
391
LUCKMANN, TH. La religione invisibile. Bologna: Il mulino 1996. p. 153.
196
O DECLÍNIO MORAL HUMANO E SUAS CONSEQUÊNCIAS EXISTENCIAIS:
Por uma Análise Existencial Agostiniana
Carlos Alberto Pinheiro Vieira392
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa393
RESUMO: Ao explicar a questão existencial do homem e as possíveis conseqüências que lhes serão
imputadas, com o declínio moral ou o pecado, Agostinho nos conduz ao problema do mal no mundo,
nos levando a refletir sobre este angustiante problema que ainda hoje aflige a humanidade, causando
sofrimento ao ser humano ante as escolhas existenciais. Ao definir o mal como um problema moral,
Agostinho afirma serem da mesma natureza dos males do seu tempo os grandes problemas que
afligem o homem na sociedade atual, bem como filhos da mesma raiz daqueles de seu tempo, a saber,
do pecado do homem o qual, na sua soberba, destrói os valores morais, individuais e sociais,
banalizando o próprio homem e as instituições sociais. Tal contribuição remete a uma análise dos
conceitos morais que regem a sociedade contemporânea para que, num processo de reflexão, sejam
adotados os valores ensinados pelo Hiponense em busca de um mundo melhor onde o amor conduzirá
os indivíduos a um estado existencial de beatitude. Palavras-chave: Agostinho, Santo. Bem e mal.
Moral. Pecado. Existência. Amor. Beatitudes.
ABSTRACT: In explaining man’s existential question and its possible consequences, such as sin or
moral decline, Augustine leads us to the problem of evil in the world, causing us to reflect on this
disturbing problem that afflicts mankind to this day, causing suffering to man as he faces existential
choices. When he defines evil as a moral problem, Augustine states that the nature of the evils of his
time and the great problems which afflict mankind in today’s society are the same, since the root of
the two is the same, to wit, man’s sinfulness which, in his pride, destroys moral, individual, and social
values, banalizing man himself and his social institutions. This contribution leads us to an analysis of
the moral concepts that guide modern society so that, in a process of reflection, the values taught by
the philosopher from Hippo can be adopted in the search for a better world in which love will lead
individuals to an existential state of beatitude. Key-words: Augustine, Saint. Good and evil. Moral.
Sin. Existence. Love. Beatitude.
Introdução
Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não
repousa em Vós (Conf. I, 1.).
No momento da criação, o homem despojava-se em total comunhão com o seu
criador, diante da sua desobediência ocorre à quebra dessa comunhão ocorrendo nesse exato
momento o surgimento do mal no mundo, não como substância criada por Deus, mas como
um distanciamento do homem com o seu criador, mediante o seu pecado, conduzindo o
mesmo a uma condição existencial de degradação, de corrupção, uma condição de
imoralidade, tornando o homem um ser mal e perverso, longe do caminho da perfeição.
392
Graduando em Filosofia - UNICAP. E-mail: [email protected]
Professor do Mestrado em Ciência da Religião - UNICAP, Professor do departamento de filosofia da
UNICAP, Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval – GEPFAM/UNICAP/CNPq,
atual Presidente da Comissão Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM. E-mail: [email protected]
393
197
Agostinho busca como referência, para o que ele tenta definir como mal, Plotino,
quando diz que o mal é ausência, falta do bem, mas ao mesmo tempo Plotino identifica esta
falta e privação do bem com a matéria. Agostinho considera a primeira parte, mas descarta a
segunda, pois ele não identifica o mal com a matéria, porque também esta foi criada por Deus.
Para Agostinho o mal seria em si uma privação do sumo bem, portanto seria o mal uma
privação do bem absoluto. Conforme Agostinho o mal não existe como substância, conforme
vimos anteriormente, pois, tudo o que existe é obra da criação divina e sendo Deus perfeito
não criaria algo imperfeito, logo, Deus só criou o que é bom, perfeito e agradável, mas o
homem através do livre-arbítrio escolhe afastar-se do bem maior (Deus) conduzindo a sua
vida para algo que o leva a afastar-se desse ser supremo, ou seja, o homem é quem guia sua
vida por um caminho de desordem, de caos, por um caminho mal, imperfeito e imoral.394
O homem quando se afasta do seu criador carrega em si o sofrimento,
desobedecendo às leis divinas e afastando-se do bem absoluto, com isso volta-se para um bem
particular, individual, inferior e nisto consiste o mal. O homem vira-se contra o seu criador
buscando em suas paixões aquilo que ele entende como perfeito para sua existência, com isso,
o homem pratica o mal de acordo com suas paixões.
Agostinho prega o amor como à única via de acesso a um estado verdadeiro de
beatitude395, no qual, só é possível ser encontrada em Deus, Portanto, o homem que conduz a
sua existência em função de uma particularidade é um ser impossibilitado momentaneamente
em conhecer a verdadeira felicidade, portanto, o homem viverá numa condição de angustia,
conduzindo a sua existência por uma busca constante incessante pela verdadeira felicidade.
Por meio da razão o homem possuiu a capacidade de encontrar no amor um único
sentido moral para conduzir a sua existência até um caminho reto, no qual, o mesmo chegará
ao verdadeiro conhecimento de Deus e de uma moral digna a ser seguida.
Partindo do ponto de vista em que o homem é um ser de existência396 e que essa
existência tem um sentido e que não é o acaso397, Agostinho busca em sua própria existência
394
Não que o livre-arbítrio para Agostinho fosse um mal, mas diante da capacidade do homem em escolher entre
uma coisa ou outra, preferindo os bens inferiores em vez do bem supremo, fez do homem um ser imoral diante
do seu criador, perdendo sua liberdade, que é justamente, para agostinho, a capacidade de usar o livre-arbítrio
corretamente.
395
Estado permanente de perfeita satisfação e plenitude somente alcançada pelo sábio [A felicidade beatífica foi
buscada e refletida por uma longa tradição filosófica que remonta a Aristóteles (384-322 a.C.), e que terminou
por condicionar o significado religioso da palavra].
396
Não entenda a existência mencionada aqui como um conceito existencialista, pois, sabemos que na filosofia
existencialista a existência precede a essência, já para o nosso filósofo Cristão a essência precede a existência.
397
O homem é um ser planejado por Deus, pois Deus o criou do nada (ex nihilo), mas não para o nada, Deus
concebeu ao homem um sentido da vida, no qual, o mesmo guia a sua existência baseando-se na essência divina.
198
responder aos anseios da existência humana e ao sentido no qual o ser humano vive em busca
da verdadeira felicidade.
Foram através das palavras do apóstolo Paulo nas Sagradas Escrituras que o
Hiponense encontrou o seu sentido existencial, posto que, o mal ou o pecado é de exclusiva
responsabilidade do homem, no qual, segundo Agostinho não cabe ao homem alcançar a sua
própria salvação. Somente a graça pode dar eficácia ao esforço existencial do homem. Sem a
graça o esforço humano pelas boas atitudes, pela busca de um caminho existencial perfeito,
pelas ações aparentemente boas que o homem pode fazer não tem valor algum. O homem
desprovido da graça de Deus seria um homem desgraçado, sendo a desgraça a ausência da
graça. Um grande exemplo existencial da graça de Deus seria o apóstolo Paulo que desviou a
sua existência do bem absoluto, até a graça divina encontrar-lhe.
Ao contrário do que prega Agostinho, na Modernidade o homem passou a buscar
caminhos ético-morais que visam o seu próprio interesse e conceitos particulares com relação
à moralidade, ou seja, condicionou a sua existência através dos seus aspectos morais e
determiná-los como universais, o homem moderno tornou-se antropocêntrico sendo
responsável por si, conduzindo a sua existência através da vaidade, do orgulho, da ambição e
da soberba.
Tendo em vista que vivemos num mundo onde os aspectos morais impostos pelo
homem estão em decadência, tomando como exemplo as desordens ocorridas no mundo em
aspectos naturais e humanos, sendo o homem um ser ambicioso, ganancioso e brutal, a
presente comunicação tem como objetivo mostrar que a visão da filosofia existencial cristã
agostiniana consiste em ser no mínimo interessante e que merece ser analisada, observando
que os conceitos cristãos e a filosofia agostiniana podem ajudar a contribuir com a
humanidade, pois, como vemos o homem que conduz a sua existência por um
antropocentrismo tende a uma decadência moral.
1 O mal como decadência moral da existência humana
A questão que mais atraiu Agostinho para a seita dos maniqueus foi o problema
moral do homem, ou a busca de uma resposta para o problema do mal no homem e na
humanidade. Não se sentindo satisfeito com o dualismo dos maniqueus, com auxilio do
neoplatonismo, ele encontra resposta para tal problema no Cristianismo: “com a ajuda do
neoplatonismo Agostinho alcança uma explicação ontológico-estético-filosófico-teológica
199
para o problema do mal, onde responde à questão: “Quid sit malum?”398 (COSTA, 2002, p.
277).
Agostinho em sua obra De Libero Arbitrio afirma que o mal provém do livrearbítrio, descartando qualquer possibilidade desse mal ser de autoria divina. Em seu diálogo
com Evódio o mesmo lhe pergunta se Deus é o autor do Mal e de onde vem praticarmos o
mal? (cf. De lib. arb. I, 2, 4). Agostinho diz que antes de lhe responder precisa saber que tipo
de mal Evódio está perguntando e o que é o mal? (cf. De lib. arb. I, 3, 6), pois Agostinho diz
existir dois conceitos para o mal, o primeiro ao dizer que alguém praticou o mal, o segundo,
ao dizer que sofreu algum mal.
Evódio diz que quer saber a respeito dos dois. Agostinho inicia, dizendo que Deus
sendo bom não pode praticar o mal, Deus é apenas bondade. O mal seria como uma punição,
um castigo para o homem que se afasta do Sumo Bem que é justo:
O mal é uma punição. A natureza decaída é, pois má na medida em que é
viciada pelo pecado, mas é um bem enquanto natureza; exatamente ela é esse
mesmo bem em que o mal existe e sem o qual não poderia existir.
(BOEHNER; GILSON, 2003, p. 153).
Agostinho rebate os maniqueus quando os mesmos afirmam não ser o homem livre
em suas ações e que o mal está impregnado nele, sendo para os maniqueus esse princípio que
os livra de qualquer complexo de culpa, pois o homem não possui o domínio de si. Praticar o
bem ou o mal é algo sem controle para o ser humano.
Agostinho afirma que a origem do mal está na paixão humana e na
concupiscência, pois, a paixão e a concupiscência dominam a razão levando o homem ao
pecado e conseqüentemente ao mal. O mal não é algo substancial criado por Deus, ele está na
livre ação do homem, ou seja, o homem como um ser livre escolhe por vontade própria o mal,
sendo esse mal a vontade do homem em pecar. O pecar para Agostinho seria o distanciamento
da verdadeira felicidade: “nem o pecado nem os pecadores são necessários à perfeição, mas as
almas enquanto são almas, enquanto são tais que, se querem pecam; e se pecam tornam-se
infelizes” (De lib. arb. III, 13).
O homem torna-se escravo do próprio pecado, acorrenta-se, e torna-se um ser
vingativo, ambicioso, invejoso, carregando em si uma infinidade de paixões que o conduz a
uma desordem moral, tudo isso por ter abandonado a verdadeira sabedoria.
Agostinho via no apóstolo Paulo um homem (depois de Cristo) como exemplo de
dignidade moral a seguir, pois, Paulo reconhecia as suas fraquezas, “porque eu sei que em
398
O que é o mal?
200
mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas
não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse
faço” (Rm 7:18-19).
Agostinho, enquanto maniqueu, não cessa de buscar o verdadeiro sentido
existencial e o significado da felicidade em sua vida, não obtendo êxito em tal seita. “As
leituras de São Paulo e os contatos com Ambrósio, Bispo de Milão, convenceram Agostinho
de que a verdade não estava nos livros dos filósofos, mas no Evangelho de Jesus Cristo”.
(MONDIN, 2002, v.1, p. 136).
Afirma Agostinho, nas Confissões, (1999, p.190) que procurou o que era a
maldade e não encontrou uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da
substancia suprema.
Agostinho conclui o livro I do Livre Arbítrio dizendo: “Fazemos (o mal) por livrearbítrio da vontade” (De lib. arb. I, 16, 35). Com isso Agostinho chega a conclusão de que a
única causa do mal é o pecado, fruto da má vontade do homem, de forma que o único mal que
podemos chamar propriamente de mal é o mal moral ou ético. (COSTA, 2002, p. 280-281).
Podemos perceber a atualidade dos escritos de Agostinho, pois o mesmo afirma ser
o mal a causa consumidora da humanidade, assim como a nossa, visto que atualmente a
humanidade está mergulhada em valores como: vingança, ambição desmedida e inveja.
Devemos contemplar a humanidade com os olhos do próprio Agostinho e conseqüentemente
com os olhos de Deus e identificarmos que um dos problemas (para não dizer todos) está no
próprio homem, homem esse que se tornou antropocêntrico e com isso carrega em si o peso
da culpa e do pecado, Deus hodiernamente está ultrapassado, a mídia impõe os seus valores
como sendo universais e com isso a secularização399 tornou-se o maior mal da humanidade
hodierna400.
2 O amor como sentido da vida existencial do homem
O amor é a única resposta sadia e satisfatória para o problema da existência
humana (Erich Fromm)
Nesse tópico tentaremos apresentar a proposta Agostiniana ao problema levantado
anteriormente, sendo essa a única via do homem em busca da verdadeira felicidade, no qual, o
mesmo encontrará o sentido existencial para toda a humanidade. Segundo o Santo Doutor, o
399
Ação ou efeito de secularizar-se, transformação ou passagem de coisas, fatos, pessoas, crenças e instituições,
que estavam sob o domínio religioso, para o regime leigo.
400
Que existe ou ocorre atualmente; atual, moderno, dos dias de hoje.
201
amor está na própria natureza humana, faz parte da sua essência, pois, o mesmo é obra da
criação Divina (Cf. COSTA, 2002, p.139).
As tendências dos pesos são como que os amores dos corpos, quer busquem,
por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o
ânimo é levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo é por
seu peso (De civ. Dei XI, 28)401.
Segundo Marcos Costa, (2002, p. 296) “o amor [...] é um apetite natural,
pressuposto pela vontade livre, que deve iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo
finalmente para Deus”.
Segundo Agostinho o amor está enraizado no coração do homem, de onde só pode
sair o bem, o que resulta na máxima agostiniana: “Ama e faze tudo o que queres”.
Tudo o que Deus fez e deu ao homem foi bom, inclusive o direito de o homem
escolher praticar o bem ou o mal. Sendo assim, o problema da liberdade é, portanto, o da reta
escolha das coisas amadas, da intensidade ou medida em que se amam as coisas, isto é, da reta
ordem do amor (COSTA, 2002, p. 297).
Daí que, segundo Agostinho,
vive justa e santamente quem é perfeito avaliador das coisas. E quem as
estima exatamente mantém amor ordenado. Dessa maneira, não ama o que
não é digno de amor, nem deixa de amar o que merece ser amado. Nem dá
primazia no amor àquilo que deve ser menos amado, nem ama com igual
intensidade o que deve amar menos ou mais, nem ama menos ou mais o que
convém amar de forma idêntica (De doc. christ. I, 27, 28).
Portanto, podemos tomar o amor como parâmetro na hierarquia de valores das
coisas a serem amadas: “o amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser
401
E, noutro texto: “O meu amor é meu peso, por ele sou levado aonde quer que eu vá” (Conf. XIII, 9, 10). Tal é
a importância do amor no sistema moral agostiniano que CUESTA, Salvador. La concepción agustiniana del
mundo a traves del amor. In: CONGRÈS INTERNATIONAL AGUSTINIEN - “Agustinus Magister” (Paris,
1954). COMMUNICATIONS. Paris: Études Agustiniennes, 1954. p. 349, chega a dizer que ‘”o amor para
Agostinho tem um valor semelhante ao que tem a libido do subconsciente para Freud. Claro que em Freud o
amor não é mais que uma manifestação da libido. Ao contrário, poderíamos dizer que para santo Agostinho,
como se indicará mais adiante, a libido é um tipo ou parcela do amor”. TRAPÈ, Agostino. S. Agostino:
introduzione alla doctrina della grazia (I): natureza e grazia, Roma: Città Nuova, 1987, p. 200, comentando a
seguinte passagem do Sobre a Trindade: “Quando a mente se conhece e se ama seu verbo junta-se a ela com
amor. E visto que ela ama seu conhecimento e conhece seu amor, o verbo está no amor e o amor no verbo, e
ambos naquele que ama e se diz ” (De trin. IX, 10, 15), diz: “A este amor inseparável do espírito humano e da
verdade Agostinho reduz toda a atividade humana e a ação de Deus no homem: as paixões, as virtudes, as
‘duas cidades’ que dividem a história, a graça, a perfeição, os dons do Espírito Santo, todo o ensinamento da
Escritura, a bondade, a liberdade e o livre-arbítrio”. Para um maior aprofundamento do tema do amor em santo
Agostinho, ver obra especifica: ARENDT, Hannah. O conceito de amor em santo Agostinho. Trad. de
Alberto Pereira Diniz. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
202
amado também com ordem; assim, existirá em nós a virtude que traz consigo o bem viver”
(De civ. Dei, XV, 22).
Para Agostinho a verdadeira felicidade ou beatitude tem origem no amor, o
homem feliz possui amor em seu coração, amor esse que origina-se em Deus, portanto, cabe
ao homem amar a Deus acima de todas as coisas, pois, aí reside o verdadeiro amor, que faz do
homem um ser reto e feliz, o amor é fundamento maior para o homem se valer do livre
arbítrio em seu sentido moral.
A tônica da filosofia moral de Agostinho não está, pois, no amor em si mesmo,
nem na necessidade de amar, que este considera como inseparável do ser humano, mas
unicamente na escolha do objeto a ser amado. Dessa maneira vemos que o problema da
relação entre liberdade, escolha e bem, está na escolha correta das coisas a serem amadas pelo
homem.
Disso decorre que “devemos gozar unicamente das coisas que são bens imutáveis
e eternos. Das outras coisas devemos usar para poder conseguir o gozo daquelas” (De doc.
christ. I, 22, 20), ou seja,
das coisas temporais devemos fazer uso, não gozar, para merecermos gozar
das eternas. Não como os perversos, que querem gozar do dinheiro e usar de
Deus, porque não gastam o dinheiro por amor a Deus, mas prestam culto a
Deus por causa do dinheiro (De civ. Dei XI, 25).
Como vemos, Agostinho é bastante atual em seus escritos, pois, podemos ver
ainda hoje pessoas que amam mais ao dinheiro do que a Deus, e isso Agostinho observa como
um mal. Dentro dessa ótica, o homem não possui a capacidade existencial de conduzir
autonomamente a sua existência. O que significa dizer que ninguém deve amar-se por si
próprio, mas por aquele de quem há de gozar, visto que somente Deus é o bem que torna feliz
a criatura racional. Quando, ao contrário, a alma humana envereda pelo caminho contrário, ou
seja, quando, “indo por assim dizer, a seu próprio encontro, ela se compraz em si mesma,
como por uma espécie de arremedo perverso de Deus, até pretender encontrar o seu gozo na
própria independência” (De lib. arb. III, 25, 75), aí nasce o pecado, que Agostinho chama de
soberba ou orgulho (COSTA, 2002, p. 299).
Adão sendo o primeiro homem a pecar contra Deus, levou consigo todo o pecado
em desobediência a Deus, por conseqüência toda a humanidade carrega o peso do primeiro
pecado, mas Cristo veio ao mundo em amor por toda a humanidade, reconciliar toda a
humanidade com Deus, pois através de Cristo toda a humanidade teve acesso a Deus.
203
Para Agostinho o homem que vive afastado da verdade (Deus) é um homem
infeliz, pois, a felicidade consiste em agir conforme a razão e o livre-arbítrio, buscando a
verdade e a ordem (Contra Acadêmicos, I, 9, 24). A virtude consiste em obedecer à ordem,
inscrita por Deus na natureza das coisas (De Ordine, I, 9, 27).
Em textos que lembram I Coríntios l3 e também a primeira epístola de São João,
Agostinho diz que "o amor é a própria essência do homem, e por isso ele não encontra
repouso enquanto não encontrar o seu lugar" (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 164-168).
O problema central da moralidade é, portanto, para Agostinho (e aqui ele traduz
toda a tradição cristã), o da reta escolha das coisas a serem amadas. O amor consiste,
principalmente, num peso interior, que atrai o homem para Deus. Amar sinceramente o outro
significa amá-lo como a nós próprios, o que só é possível num plano de igualdade: quer
elevando-o ao nosso nível, quer elevando-nos ao plano da pessoa amada.
Entre o amor a Deus e o amor ao homem há um elemento comum: o amor ao bem.
Portanto, o amor sempre terá por objeto o ser e o bem. É justo que amemos o próximo como a
nós próprios, pois, enquanto bem ele se encontra no nosso nível.
Assim, segundo a tradição apostólica e cristã, tomada por Agostinho, para entrar
na plena posse do bem perfeito é necessário que o homem abdique de si próprio. Essa entrega
plena a Deus, que assegura a posse de seu objeto, é o amor.
O amor não é apenas o coração da moralidade, é a própria vida moral. O começo
do amor é o começo da justiça, o progresso no amor é o progresso da justiça, a perfeição do
amor é a perfeição da justiça. Dominado pelo amor, o homem cumpre cabalmente a lei divina.
Conclusão
Diante da problemática existencial do homem moderno, Agostinho nos ilumina
com argumentos em que nos conduzem por uma reflexão no qual, devemos nos guiar
moralmente por um viés existencial teocêntrico como um exercício para um mundo melhor e
mais justo, pois, Agostinho enxergou em suas fraquezas as suas limitações existenciais,
podemos observar que na sociedade moderna o homem conduz a sua existência por um
antropocentrismo cético e em conseqüência disto ocorre o que Agostinho chama de
decadência moral ou pecado.
Segundo Hylton M. Rocha (1979, p. 8), “Agostinho foi gente. Isso é que é a
verdade. Não foi um querubim descido do céu. Nem mesmo um predestinado. As crises por
que passou são as provas mais convincentes de uma pessoa humana marcada pelas
204
contradições internas: desejava fazer o bem, mas acabava praticando o mal; queria posição
social, queria ser admirado, honrado e respeitado, mas sentia que nada disso era a coisa mais
importante. Queria amar e ser amado. Acreditou. Desacreditou. Enfim, sentiu a angustia de
uma vida sem sentido”.
O homem moderno conduz a sua existência em busca de algo transitório e
consequentemente tentando encontrar um sentido para sua existência, sendo que, essa
transitoriedade gera uma insegurança angustiante na existência humana, perdendo o homem a
sua motivação de vida, perdendo o seu sentido existencial. O homem contemporâneo vive
sedento em busca de paz, no qual, a mesma vive a bater em sua porta todos os dias, mas o
homem contaminado por seu orgulho e vaidade não se apercebe que a paz está a bater em sua
porta a cada alvorada402.
A presente reflexão, num sentido provocador, tentou apontar as questões que mais
incomodam a sociedade contemporânea, no qual, vive a buscar o seu verdadeiro sentido
existencial, portanto, Agostinho nos aponta o caminho para encontrar-mos a verdadeira
beatitude e nos iluminarmos de maneira racional no amor como um elo de ligação da
existência humana com o seu criador, encontrando o seu verdadeiro sentido existencial.
Finalizo a presente comunicação com um texto bíblico, que expressa bem o
pensamento Agostiniano e que anuncia também a forma de pensar Agostiniana diante do ser
que conduz a sua existência para longe do seu criador:
A luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a
luz, porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o
mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem
argüidas as suas obras. Quem pratica a verdade aproxima-se da luz a
fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus
Jo 3:19-21).
Referências
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______. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 416 p.
______. O livre-arbítrio. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2004. 296 p.
402
Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com
ele e ele comigo (Apocalipse 3:20).
205
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Città Nuova, 1987. 422 p.
206
NIILISMO ORIENTAL E CRISTIANISMO:
Reflexões a Partir do Pensamento de Keiji Nishitani
Prof. Dr. Cícero Cunha Bezerra403
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo pensar a relação entre o Zen Budismo e Cristianismo
apartir dos conceitos de Kénosis e Sunyata presente na obra a Religião e o nada de K. Nishitani.
Palavra-chaves: Zen Budismo, Cristianismo, Nishitani
ABSTRACT: this paper has the objective of think the relation between the Zen Budism and
Cristianism by concepts of kénosis and sunyata presents in K. Nishitani's work Religion and
Nothingness. Key-words: Zen Budism, Cristianism, Nishitani
Considerações iniciais
A discussão sobre a escola de Kioto requer algumas advertências. A primeira
consiste em sabermos que, se permanecemos na compreensão de que a Filosofia é um
privilégio exclusivamente do velho mundo europeu, pensamento a meu ver superado,
inviabilizamos qualquer tentativa de aproximação com o pensamento japonês. A segunda é de
ordem teórica, isto é, para os que aceitam o desafio de entender a Filosofia, feita no Japão, é
preciso, antes de qualquer coisa, tentar compreender, pese os limites impostos pela língua, a
profunda relação, mas não identificação, entre o pensamento filosófico produzido pelos
pensadores de Kioto e o conteúdo religioso que perfaz a reflexão dos seus textos.
Com isso quero dizer que, embora os três grandes representantes da escola de
Kioto (Nishida, Tanabe e Nishitani) sejam budistas, o fim das suas reflexões não é o budismo
em si, ou seja, não estamos frente a um pensamento apologético nem conflitivo entre Religião
e Filosofia. Ao contrário, pelo fato de não existir dicotomia entre o conteúdo religioso e o
filosófico, a vida, mas que a teoria, é o fim último de todo pensar.
Neste sentido, a escola de Kioto pode ser pensada como um marco decisivo na
história das idéias. As reflexões aportadas por Nishida Kitarô (1870-1945), Tanabe Hajime
(1885-1962) e Keiji Nishitani (1900-1990) mudaram radicalmente os estudos filosóficos e
têm muito a contribuir para uma reflexão no campo da Filosofia e das Ciências da Religião.
Surgida como escola em 1932, o pensamento filosófico produzido em Kioto permaneceu, por
questões políticas durante o pós-guerra, na escuridão até os anos setenta. Graças a inúmeros
403
Doutor em Filosofia pela Universidade de Salamanca/Espanha. Professor Adjunto do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. Email: [email protected]
207
teólogos, filósofos, artistas e músicos como, por exemplo, J.Cage, a Filosofia de Kioto
assumiu uma nova força nos últimos tempos.
Por que podemos falar com segurança de uma escola filosófica japonesa? Além
das profundas reflexões elaboradas nos últimos anos, a escola de Kioto se define por um
corpo crítico, sistematizado, copilado e transmitido que teve sua raiz no budismo Kukai do
século IX (HEISING, 2002, p. 30). Cumpre dizer que, embora o conhecimento ocidental
sobre o pensamento japonês seja bastante limitado, o inverso não é verdadeiro. O Japão desde
1859, com a abertura ao Ocidente, manteve seu projeto de interesse pelas artes, Filosofia e
pela cultura ocidental como um todo. O intercambio entre professores europeus fortaleceu os
laços e o diálogo entre esses dois mundos. A interação entre o pensamento filosófico ocidental
e japonês teve tanta importância que foi necessário criar um vocabulário novo, uma escritura
nova, aproximando-se da tradição oriental que, paradoxalmente, como observa J. Heising os
textos se tornaram mais acessível para um leitor ocidental que para um japonês (Ibid., p. 42).
Voltando ao nosso tema, Nishida Kitarō, o primeiro a propor uma contribuição
oriental à tradição filosófica ocidental, submeteu o budismo aos rigores da Filosofia e
compreendeu que Filosofia não começa por “saber” coisas através de uma lógica objetiva,
mas por “conhecer” coisas através de uma experiência “imediata” ou “pura”. Por outro lado, a
Filosofia também não finda na inefabilidade da experiência imediata, mas, a partir desta, tenta
expressar, de maneira mais clara possível, a estrutura da realidade, o lugar e a ação humana
dentro dela (HEISING, 1999, p. 1). Mestre tradicional do Rinzai Zen404, Nishida jamais saiu
do Japão, no entanto, estimulou seus discípulos a estudarem na Alemanha com E. Husserl,
Cohen, Natorp e Heidegger.
Por um lado, Tanabe, discípulo de Nishida, aprofundou seus estudos na lógica e na
dialética de Hegel e, por outro, Nishitani se debruçou no pensamento cristão, principalmente,
na leitura dos místicos e existencialistas europeus.
Como disse anteriormente, os filósofos de Kioto não aceitam a distinção entre
Filosofia e Religião justamente pelo fato de que, no budismo, a Filosofia não é nem
especulação nem contemplação metafísica, mas, como bem observa J. Heising, uma
metanoia, uma conversão dentro do pensamento reflexivo que aponta para um regresso ao
verdadeiro eu, ou como diria Suzuki, ao não-eu (anặtman)405.
404
A escola Rinzai forma junto com a Soto Zen as duas grandes vertentes do Zen budismo japonês. Introduzida
por no Japão por Eisai (1141-1215), o Rinzai zen passou a ser praticado pelo samurais e se popularizou
rapidamente graças a sua austeridade e força contemplativa.
405
Sobre o sentido originário do Zen ver: SUZUKI, S. Zen Mind, Beginner’s Mind, trad. Odete Lara, São Paulo:
Palas Atena, 1994
208
O problema posto pelos filósofos japoneses de Kioto consiste, precisamente, em
reconstruir, de modo satisfatório, um pensamento capaz de resgatar idéias que foram
usurpadas pelos modelos ocidentais sem cair na trama do budismo em si. No fundo estamos
próximos de uma concepção, cara aos gregos, de que: se um pensamento não muda o modo de
ver as coisas da vida não é um pensar no sentido pleno da palavra (HEISING, 2002, p. 38).
Um fato extremamente curioso é que nenhum pensador da escola de Kioto
confessou a sua crença em um ser divino. Contrariamente ao pensamento onto-teo-logico
ocidental, os filósofos de Kioto falam de Deus, mas não da Idéia de um Deus, nem como
realidade metafísica, nem ontológica objetiva, nem ficção subjetiva. Deus, mais que um ser ou
substância, é uma imagem para referir-se a uma experiência da consciência com a realidade
(Ibid., p. 40).
1 Nishitani : “a voz do rio do vale”
Nishitani nasceu em 27 de fevereiro de 1900 e desde jovem lia obras de
Dostoievski, Nietzsche, São Francisco de Assis e a Bíblia. Seu futuro estava divido em três
projetos: estudar Direito na universidade Imperial de Tókio, ingressar no estudo da Filosofia
em Kioto ou ser monge Zen. Movido por uma questão, que ele mesmo define como sendo de
vida ou de morte, optou pela Filosofia e passou a estudar sob a orientação de Nishida com
quem desenvolveu um profundo trabalho de graduação sobre Schelling.
Durante oito anos se dedica a ensinar Filosofia em escolas públicas e traduz obras
de pensadores como a de Schelling (ensaio sobre a liberdade humana e a Filosofia e a
religião), além de publicar diversos trabalhos sobre a estética de Kant, sobre o idealismo e
sobre Plotino. Escreveu uma história da mística que o converteu em professor assistente da
Escola de Kioto. Publicou durante dois anos obras sobre Aristóteles e W. Dilthey.
Ao contrário de outros membros da Escola, Nishitani só se dedicou ao Zen em
1936 graças ao contato e influência de Daisetz Teitaro Suzuki. O contato com o Zen o fez
perceber aquilo que ele mesmo classifica de experiência direta. Foi neste período que recebeu
o nome laico de Keisei “a voz do rio do vale”. Aos 37 anos, recebeu uma bolsa de estudos
para desenvolver pesquisa em Paris com H. Bérgson, no entanto, pela debilidade física de
Bérgson, o encontro não se realizou e Nishitani partiu para Freiburg onde manteve contato,
durante dois anos, com Martin Heidegger. Durante sua permanência na Alemanha publicou e
209
expôs uma conferência, em alemão, sobre a relação entre a obra assim falou Zaratustra de
Nietzsche e o pensamento de M. Eckhart. Com a explosão da segunda guerra mundial foi
obrigado a retornar ao Japão.
2 O pensar a partir da vacuidade
Antes de adentramos no tema do niilismo em K. Nishitani, cumpre fazer um breve
intróito ao conceito de Niilismo. Niilismo do latim nihil (nada) pode ser definido como
incerteza e precariedade da situação do homem contemporâneo que, como nos observa F.
Volpi, “lembra a um andarilho que há muito caminha numa área congelada e, de repente, com
o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços. Rompido a
estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho”
(VOLPI, 1999, p. 7).
De modo que nihil, no sentido que aqui me interessa, significa perda de sentido de
toda e qualquer fundamentação. Este diagnóstico presente, já na reflexão que marca o início
do idealismo alemão, assume sua força na Literatura, Arte e Filosofia, principalmente,
nietzscheana. Niilismo passa a ser sinônimo para falta de finalidade. A pergunta pelo sentido
ou do “para quê?” carece de resposta (Ibidem, p. 9). No entanto, se Nietzsche serve de
referência para o tema do niilismo, não devemos esquecer que esta idéia tem origem anterior.
A mística medieval, Dionísio Pseudo Areopagita e M. Eckhart, para citar somente alguns
nomes, pode ser caracterizada, inegavelmente, como a primeira manifestação, no pensamento
ocidental, de uma reflexão que ousou pensar a realidade a partir do nihil como “fundamentosem-fundo”.
Dada à natureza desta nossa reflexão, fico somente com uma idéia sobre o
niilismo: niilismo é sinônimo de “esvaziamento dos valores supremos”.
Deste modo, como podemos pensar, a partir de Nishitani, em um diálogo entre o
pensamento filosófico ocidental e a tradição oriental? Se for correto que a Filosofia ocidental
se estrutura a partir de um pensamento iniciado com os gregos de que o ser é razão que
culmina na dúvida hiperbólica cartesiana, para Nishitani, o processo segue uma “lógica”
inversa, isto é, a Filosofia deve nascer justamente da certeza da impotência e desesperação
niilista sobre a condição humana, passar à dúvida e só então ascender à contemplação da
vacuidade (HEISING, 2002, p. 242).
É importante observar que o pensamento de Nishitani está profundamente marcado
pela sua decepção frente à Filosofia acadêmica, bem como, ao seu tempo. Para o filósofo de
210
Kioto, a perda de identidade de muitos intelectuais japoneses somada ao mal estar
generalizado pela carência de uma Filosofia genuína e menos fragmentada, característica do
pós-guerra, consumou-se na completa degradação espiritual. Neste seu percurso crítico foram
decisivas as leituras de Nietzsche e Dostoievski.
Para Nischitani, a Filosofia nasce da desesperação niilista da condição humana.
Um fato importante que o aproxima profundamente de Nietzsche é que seu interesse pelo
niilismo, mais que uma maneira de se aprofundar no “sem sentido,” teve um aspecto
radicalmente positivo, isto é, confrontar as respostas religiosas ou éticas com o “sem sentido”
e eliminá-las. Dito de outro modo, superar o niilismo atravessando seu centro406. E qual seria
a expressão máxima deste centro? Ora, se o niilismo assume sua forma mais radical no
cristianismo,para Nishitani, não seria “no cristianismo”, mas na Religião. E o que seria
Religião?
3 A experiência religiosa como despertar
Nishitani define a Religião como: “o despertar de uma subjetividade originária”.
Subjetividade entendida como “eu”, como “si mesmo” ou “mesmidade”. É importante
observar que ele usa a expressão “originária” e não “fundamental”. Isto é, a experiência
religiosa, para Nishitani, não possui nenhum fundamento. É sem fundamento. Na obra
publicada em 1937 cujo título é A religião, a historia e a cultura, Nishitani aborda o problema
da religião a partir do conceito do “nada absoluto” que implica na negação do ego e de toda
egolatria que caracteriza a humanidade e seu antropocentrismo.
A subjetividade originária que se manifesta como o sem ego está muito próximo
daquilo que os místicos medievais nomearam de fundo-sem-fundo da alma407. De maneira que
esta visão da subjetividade, pautada numa ausência de fundamento, é chave para uma nova
compreensão do homem e da vida em que categorias como liberdade e dependência, bem e
mal, racional e irracional não são aplicáveis. E o que é mais importante, nem tão pouco são
aplicáveis categorias ordinárias da fé religiosa (HEISING, 2002, p. 247).
Cumpre dizer que esta vida, ao contrário do que comumente se entende, não está
em um além mundo, mas se encontra no que K. Nishitani chama de “outra margem” deste
406
Sobre a necessidade de superação do niilismo via seu próprio centro, ver: VATTIMO, G. Dopo la cristianità,
per um cristianesimo non religioso. Roma: Garzanti, 2002
407
Mestre Eckhart no seu poema Granum sinapis diz: Oh, alma minha, sai fora, Deus entra! Submerge todo meu
ser no nada de Deus. Submerge no caudal sem fundo! Cf. ECKHART, M. El fruto de la nada, trad. Amador
Veja, Madrid: Siruela, 1998, p. 142
211
mesmo mundo. Esta idéia, absorvida do seu mestre Nishida, aponta para uma “prática pura”
que se revela no profundo amor pela vida mesma. Infinitamente longe de toda religião e de
todo ego, o homem encontra uma nova “face de deus” totalmente outra. Em uma das mais
difíceis e importantes definições dadas por Nishitani lemos que:
A mesmidade absoluta, descrita em termos de “nem eu nem outro”, é
o si mesmo do homem cuja “pele e ossos se uniram”, sua consciência real e
sua existência pessoal com suas atividades vivas. No entanto, ao mesmo
tempo, é sempre extático no centro de todas essas atividades (...) Em cada
momento da atividade humana é absolutamente morte-em-na-vida, vidaem-na-morte;
ser-em-no-nada,
nada-em-no-ser
absolutamente
(NISHITANI, 1999, 126).
É importante observar que, para Nishitani, ao contrário do pensamento japonês, o
pensamento filosófico ocidental ousou assumir e criticar radicalmente o niilismo. Frente à
falta de sentido, pensada particularmente em Nietzsche, a Filosofia ocidental propôs uma
saída criativa como superação. Uma saída que tem como princípio e fim a própria vida. Uma
experiência da transcendência que não se perde na negatividade de um além mundo. O
niilismo oriental, ao contrário, absorveu a tecnologia e as estruturas sociais do mundo
moderno e se converteu numa niilidade negativa e vazia.
K. Nishitani ver neste processo de “nadificação” a perda de todos os elementos
espirituais formulados pelo budismo e confucionismo. Por isso, postula a necessidade de um
retorno à tradição. Tradição entendida como experiência capaz de construir um futuro melhor
e não simplesmente como passado. Finalmente, a superação do niilismo, via o espiritual,
implica uma nova experiência da religião. Necessidade de uma nova experiência da religião
quer dizer, uma vivencia religiosa diferente dos sistemas clássicos do século XIX baseado em
algo imanente ao individuo como a razão, intuição ou sentimento (Ibid., p. 51).
Essa nova experiência reside, no caso do pensamento japonês, no Zen e sua
concepção da “Grande dúvida” como espelho concreto da “niilidade”. O nada é mais real do
que eu ou o mundo a que pertenço. Diz Nishitani: “A pessoa é constituída unissonamente com
o nada absoluto como aquilo em que o nada absoluto se manifesta; é atualizado como uma
Forma sem Forma” (Ibid., p. 122). Esta compreensão não se enquadra em ato de fé, mas
implica um despertar não subjetivo para a vacuidade absoluta (sunyata) em que, como vimos
anteriormente, o eu se manifesta como não-eu e o mundo como não-mundo (Ibid., p. 126).
Estamos, portanto, frente a um pensamento em que a dicotomia sujeito/objeto se
revela como ilusória (prajna) frente à vacuidade que é nossa própria “mesmidade”. A
superação entre mundo fenomênico e nooumênico pode ser expressa do seguinte modo:
quando as aves voam e os peixes nadam, quando o fogo queima e a água lava, não fazem
212
como um passatempo, mas sendo o que são. Do mesmo modo a mente, sendo o que é, é
despertada (Samadhi). O despertar para o mundo ou o ir “para a outra margem” é imagem de
uma compreensão da realidade que permite que a coisa seja o que é e a fixa no seu próprio
terreno, ou seja, em si mesmo, e isto é pertencer ao todo.
Um fato interessante é que Nishitani se interessou, não somente pelos filósofos
ocidentais, mas também pela mística e pelo pensamento de Francisco de Assis. Na obra A
religião e o nada o cita como modelo de perfeita unidade. Ao analisar um dado da vida de
Francisco de Assis, que teria sofrido um grave ferimento em um dos olhos necessitando, para
evitar a infecção, a aplicação do cautério; Nishitani louva a postura de desprendimento e
entrega assumida pelo monge. Conta Nishitani que, ferido e tendo que se submeter ao
doloroso tratamento, Francisco de Assis, estando diante de uma tocha de fogo, fez o sinal da
cruz com a finalidade de solicitar o amor de seu querido irmão fogo e sorriu enquanto o
médico queimava sua face (Ibid., p. 352). Este amor, de Francisco de Assis pelo fogo, a quem
o chama de “irmão”, teve lugar, segundo Nishitani, ali onde o homem esvaziou-se a si
mesmo. Diz ele: “Quando o médico aplicou o cautério, levando-lhe do lóbulo da orelha a
sobrancelha, são Francisco sorriu suavemente, como uma criança que sente a caricia da mão
de sua mãe” (Ibid).
Este exemplo, símbolo de resistência, mas principalmente de uma vivência
particular difícil de ser compreendida por nós, homens submetidos ao ritmo avassalador da
técnica, representa um perfeito equilíbrio entre o Zen budismo e o cristianismo. Equilíbrio que
se pauta na visão da vida através de um ponto de vista (vacuidade) que nos liberta de toda a
tendência objetivista. É nesta perspectiva que cristo é pensado como símbolo de morte e vida.
Cristo fala, segundo Nishitani como uma espada: “Não penseis que vim trazer paz, eu vim
trazer a espada” (Mt. 10,34). Para o Zen budismo, a espada que mata o homem é a que da
vida posto que nega o egocentrismo e abre espaço para a niilidade e a morte espiritual.
Estamos diante de um pensamento que postula o renascimento de uma concepção
de mundo surgida da negação absoluta (Nada) em que a fé não é, como diz K. Nishitani,
meramente um ato consciente do eu, mas uma atualização, no interior do eu, da realidade.
Realidade entendida como “outra margem” definida como samsặra-no-nirvặna em que morte
e vida se desfazem e emerge o verdadeiro eu. É importante ressaltar que o campo da
vacuidade é definido pelo não-ego, pela não dualidade do eu e do outro. De modo que, como
diz o próprio Nishitani, antes de cruzar a “margem” é necessário “levar os outros”. Esta
afirmação aponta para a existência de uma compaixão natural baseada no não-ego em que
213
cada coisa entre as demais é um centro (NISHITANI, 1999, p. 329). Para concluir, cito uma
das mais belas passagens da obra A religião e o nada:
Se encontrares Buda, mate-o; se encontrares um patriarca, mate-o; se
encontrares um sábio, mate-o; se encontrares seu pai ou sua mãe, mate-os;
se encontrares seus parentes, mate-os; somente então obterás a libertação e
morarás na completa liberdade emancipadora, livre de todas as coisas
(Ibid., p. 329).
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Discurso, 2004
VATTIMO, G. Dopo la cristianità, per um cristianesimo non religioso. Roma: Garzanti, 2002
ECKHART, M. El fruto de la nada. Trad. de Amador Veja, Madrid: Siruela, 1998.
214
SÃO BARTOLOMEU NO SINCRETISMO DA UMBANDA - SANTA BÁRBARA E
OXOCE408
Cláudia Cristina Rezende Puentes409
Claudia Maria da Silva Cruz410
RESUMO: O presente estudo tem por objetivo discutir as relações entre o episódio ocorrido na
França, conhecido como o massacre de São Bartolomeu e o sincretismo existente em dois templos
Religiosos - Centro Espiritualista Pai Oxoce, no bairro do IPSEP, em Recife e o Grupo União Espírita
Santa Bárbara, no bairro Tabuleiro do Martins, em Maceió. Elucidando aspectos que possibilitem a
compreensão da ligação entre o episódio do massacre aos protestantes, ordenado pelo rei católico
Charles IX e a representação dos cultos aos ancestrais praticados na Umbanda Racional e no Xangô do
Nordeste. Buscamos analisar as variáveis simbólicas em cada grupo religioso, suas manifestações e as
estratégias culturais utilizadas bem como o caráter diferenciador dos grupos analisados. Foram
igualmente abarcados, na busca de coletar dado que, contribuam com novas propostas ante os desafios
atuais para antropólogos e historiadores. Mostrando as diferenças, semelhanças e conseqüências
existentes nas crenças dos dois grupos religiosos. A pesquisa foi realizada a partir de uma metodologia
com observação participante, nas comemorações destinadas aos cultos de antepassados no Templo
Espiritualista Pai Oxoce, e no culto aos Exus no Grupo União Espírita Santa Bárbara. Para a
elaboração do trabalho foram realizadas, também, depoimentos gravados e fotográficos das atividades
realizadas nos ritos. Palavras-chave: Religiosidade, Umbanda Racional, Xangô do Nordeste, Ritual.
ABSTRACT: The present study it has for objective to argue the relations between the episode
occurred in France, known as the slaughter of Is Bartholomew and the existing syncretism in two
Religious temples - Spiritualist Center Father Oxoce, in the quarter of the IPSEP, Recife and the
Group Spirit Union Saint Barbara, in the quarter Tray of the Martins, in Maceio. Elucidating aspects
that make possible the understanding of the linking the episode of the slaughter to the Protestants
enters, commanded for the king catholic Charles IX and the representation of the practiced cults to the
ancestral ones in the Rational Umbanda and the northeast Xango. We search to analyze the symbolic 0
variable in each religious group, its manifestations and the cultural strategies used as well as the
character differentiator of the analyzed groups. Equally they had been accumulated of stocks, in the
search to collect given that; they contribute with new proposals before the current challenges for
anthropologists and historians, showing the existing differences, similarities and consequences in the
beliefs of the two religious groups. The research was carried through from a methodology with
participant comment, in the commemorations destined to the cults of ancestor in the Spiritualist
Temple Father Oxoce, and in the cult to the Exus in the Group Spirit Union Saint Barbara. For the
elaboration of the work they had been carried through, also, recorded and photographic depositions of
the
activities
carried
through
in
the
rites
Key-words: Religiosities, Rational Umbanda, Ritual, and Northeast Xangô.
Introdução
O objetivo desse trabalho é tentar demonstrar como duas casas religiosas que têm
como bases fundamentais a Umbanda, comemoram o dia de São Bartolomeu. Embora
mantenham o mesmo fundamentalismo, as diferenças nos rituais das duas linhas da Umbanda,
408
“Oxoce” é a forma com que os fundadores do templo grafam o nome do orixá Oxossi, deus caçador, senhor
da floresta e de todos os seres que nela habitam.
409
Aluna do Programa de Pós-graduação em Antropologia - UFPE.
410
Alunas do Programa de Pós-graduação em Antropologia - UFPE.
215
denominadas por seus devotos de Umbanda Tradicional e Umbanda Racional, tomamos
como local de referência, para a primeira linha, o Grupo União Espírita Santa Bárbara, em
Maceió- AL e, como exemplo da segunda, o Templo Espiritualista Pai Oxoce, em Recife -PE.
Procuramos aqui comparar as relações dos ritos praticados, que reportam os
participantes ao episódio de origem católica. Nossa premissa parte do reconhecimento de que
subsiste, nas religiões de matriz afro-brasileira, um fundo católico comum, mas que,
comparado com as correntes afro-brasileiras assumem outra perspectiva. Buscando analisar as
variáveis simbólicas, aplicadas em cada grupo, submetendo os questionamentos ao debate
esclarecedor e desmistificador.
Diante das variáveis, diversas questões saltam aos olhos rapidamente, mas iremos
levantar algumas considerações, enquanto representação cultural. Sem a pretensão de
estarmos elucidando uma ou outra prática ritual, apenas comparando-as e demonstrando como
os adeptos das duas casas relacionam as práticas ao dia de São Bartolomeu.
1 Os espaços rituais
O Grupo União Espírita Santa Bárbara - GUESB - está localizado na Rua São
Pedro, número 10, no bairro do Village Campestre II – Tabuleiro do Martins, na periferia de
Maceió, uma baixada que acolhe parte da população carente do município. Entrando na rua é
fácil visualizar o terreiro que tem seu muro pintado de amarelo, com vários desenhos dos
orixás e o nome do grupo.
Adentrando no espaço do terreiro, verificamos várias imagens de santos católicos,
distribuídas em prateleiras de vidro ao longo da parede do salão principal e, esculturas
representando os orixás. Estas últimas são encontradas nos Pejis411, distribuídos
individualmente, ao longo de dois corredores. Neles encontramos diversos paramentos que
têm origem no candomblé – vasos, potes, coroas e outros adornos – distribuídos em
prateleiras com o nome dos médiuns. Uma estrela desenhada em pedra mármore está
localizada no centro do salão. Ela representa, segundo os informantes, o fundamento da casa.
Cadeiras destinadas às autoridades espirituais e aos visitantes são dispostas no mesmo salão.
O Templo Espiritualista Pai Oxoce está situado na Rua Ibipituba, número 450, no
bairro do IPSEP – Recife – PE. Ocupando um quarteirão da rua, ele se destaca pela altura do
411
Altar onde são colocados os assentamentos dos Orixás, Ilê Orixá, casa do Orixá.
216
muro e com portões de alumínio. Na fachada não existe nenhuma referência nominal ou
mesmo simbólica do templo.
Após entrar no portão principal, visualizamos vários Pejis com os orixás cultuados
na casa. Eles estão distribuídos no espaço que fica entre o muro e o salão principal. Para ter
acesso ao salão principal é necessário que todos retirem os sapatos. O salão, no dia de nossa
visita, estava decorado com vários tecidos multicoloridos. A pintura em formato de estrela de
seis pontas no centro do salão nos chama a atenção. Segundo os informantes, ela representa o
símbolo da Umbanda e guarda as armas da casa.
Ao fundo do salão, de frente para a entrada, está disposto um altar com imagens
representativas de santos católicos e de exus. A frente deste uma mesa onde a dirigente
comanda os trabalhos. Brasões e placas comemorativas às aldeias adornam as paredes do
templo, não existem bancos e todos se distribuem em pé, de maneira harmoniosa no espaço
ritual.
Salão principal do GUESB, filhos-de-santo batendo cabeça e convidados assistindo.
217
Peji de Oxalá no GUESB
Peji de Oxalá no Templo de Oxoce
2 Características rituais praticadas
O Grupo União Espírita Santa Bárbara - GUESB classifica-se como “Umbanda
traçada no Nagô”, afirmando claramente uma identidade com o xangô nordestino. As
atividades espirituais ali desenvolvidas são dirigidas por Maria Neide Martins, que mesmo
pertencendo a uma família extremamente católica, iniciou-se no candomblé em 1980,
reconhecida pela comunidade Umbandista como a Yalorixá Mãe Neide Oyá D’Oxum.
Normalmente um médium quando procura o GUESB, segundo a mãe-de-santo,
inicialmente é motivado pela ação de problemas de ordem pessoal. Ele vai em busca de
respostas que são dadas através do jogo de búzios ou de cartas que a mãe-de-santo faz. As
regras quanto à utilização nos remetem ao estudo de René Ribeiro, “Qualquer fiel, quando
premido por problemas urgentes procura o seu babalorisha para “ouvir Ifá”, sendo logo
atendido.” (RIBEIRO, 1978, p. 66).
No GUESB, o iniciante passa em média seis meses se desenvolvendo e estudando
sobre a Umbanda e os Orixás. Pudemos identificar, a partir das declarações da Yalorixá
alagoana, sua ênfase no desenvolvimento do médium, enquanto parcela de um grupo maior. A
autoridade da mãe-de-santo sempre é colocada em relevo pelos depoimentos, como um agente
mediador por excelência entre a vontade soberana dos Orixás e o assentimento obediente dos
filhos-de-santo.
218
Dessa relação entre a estrutura da Umbanda praticada e a figura da mãe-de-santo,
destacamos o que nos diz Maria do Carmo Brandão: “O ritual e a doutrina são mais fluídos,
cada terreiro acrescenta suas próprias inovações e a estrutura eclesiástica, expressa em termos
de parentesco é menos formal, embora o Babalorixá continue a ser a figura hierárquica mais
importante” (BRANDÃO, 1986, p.10)
Apesar da influência da doutrina de Kardec, verificamos que a prática do sacrifício
é utilizada no GUESB. De maneira habitual, as atividades sacrificiais são realizadas quando
um filho-de-santo vai para a camarinha412. Mas elas também acontecem quando alguém está
doente e a mãe-de-santo vê através do jogo de búzios. “Isso vai depender do que o Orixá dele
pedir, algumas vezes não é preciso, tudo depende do que o Orixá pede.”
413
O sacrifício
ocorre também antes das festas dos Orixás, Exus e da Pomba-gira Maria Padilha, em nossa
observação, podemos coletar informações de algumas pessoas que deram animais como forma
de agradecimento.
Como no relato de J.C.S.:
Eu estava doente, muito mal e os médicos não descobriam nada, vim aqui
me consultar com Maria Padilha, fiz um trabalho e os médicos conseguiram
encontrar a minha doença e fiquei bom. Ela me ajudou, por isso estou dando
essa oferenda, uma cabra preta. Ela não pediu nada, trabalhou e eu estou
grato, só isso.
Com relação ao sacrifício, lembramos o que nos diz René Ribeiro:
O sangue desses animais enquanto derramado sobre a gamela ali colocada para esse fim, era também
deixado banhar uma das pernas da sacerdotisa atacada de elefantíase. Depois dos
sacrifícios os corpos dos animais, depois de cuidadosamente destacadas as
entranhas, pés e cabeças, foram confiados a duas assistentes para lavagem e
cocção em vasos diferentes, os últimos destinando-se a serem depositados
diante dos altares, (para posteriormente constituírem o ebo), enquanto as
restantes partes serviriam à consumação dos presentes (RIBEIRO, 1978, p.
69).
Na comemoração ao dia de São Bartolomeu, o GUESB realiza a festa aos Exus e
Pomba-gira, com um ritual praticado com seriedade e concentração por seus adeptos, apesar
de trazer em seu bojo, o estereotipo de festa conflitante com alguns seguimentos da Umbanda.
O ritual tem início no dia 24 de agosto e dura uma semana, culminando com a festa da
pomba-gira Maria Padilha, primeira pomba-gira da dirigente espiritual da casa, “é ela quem
segura o terreiro, quem vence as demandas que as pessoas enfrentam no cotidiano, mas ela é
marginalizada pelo povo que não conhece que tem preconceito”, diz a informante. Essa
412
413
Quarto onde os médiuns ficam em recolhidos no período de obrigação.
Informação verbal coletada em entrevista.
219
disseminação do preconceito foi revelada pelo estudo dos Exus feito por Juana Elbein dos
Santos:
O fato de que daremos pouco lugar aos panteões, por exemplo, e que nos
estenderemos mais sobre os ancestrais e a significação de Èsú, não deve ser
interpretado como uma supervalorização destes últimos em detrimento dos
Òrìsá, mas como uma conseqüência da necessidade de aprofundar em
aspectos pouco conhecidos e naqueles que permitirão desenvolver melhor
nossa tese central (SANTOS, 1975, p. 15).
Dando início à comemoração, a mãe-de-santo, abre os trabalhos com a limpeza
dos filhos, com o ritual da defumação, onde todos são defumados individualmente, primeiro
os médiuns, seguidos os demais participantes. O canto entoado por todos soa unísone:
Corre, gira, Pai Ogum.
Filhos vêm se defumar
Umbanda tem fundamento
É preciso preparar
Cheira incenso e benjoim
Alecrim e alfazema
Defumar filhos de fé
Com as ervas da Jurema.
Após esse ato a dirigente reza um Pai Nosso com todos os participantes, que se
colocam de frente ao Peji de Oxalá. Após a oração começam os cânticos dedicados aos Exus,
vários deles falam de Santo Antônio, e de cada Exu que está presente na casa, mas nenhum
faz referência a São Bartolomeu. Não observamos qualquer espécie de ruptura física, que
pudesse nos remeter o ritual à inversão da caridade. Em alguns terreiros o início de uma gira
de Exu é marcada pela escuridão, apagam-se as luzes e, o fechamento de cortinas sob as quais
possam ser identificados os Orixás. É Renato Ortiz que nos remete aos preceitos separatistas:
“O culto de Exu se caracteriza pela inversão das sessões de caridade, vários
indícios...Primeiro as cortinas do altar se fecham, o que denota uma ruptura entre os santos do
congá e os exus que descem.” (ORTIZ, 1978, p. 139)
220
Peji de Pomba-gira e a festa de Maria Padilha no salão principal do GUESB
Contudo, a partir da fala dos informantes, pudemos perceber que poucos sabem do
dia de São Bartolomeu. A relação com o culto aos Exus é feito, em sua grande maioria,
“porque faz parte do calendário da casa a festa de Maria Padilha e, todos gostam desse tipo de
festa, porque é mais alegre”
414
. Segundo os entrevistados, a festa da Pomba-gira é tão boa
quanto à de Iansã, Orixá principal da dirigente espiritual, “na festa de Maria Padilha existe
uma energia grande, uma alegria que acaba contagiando todos”. 415
Peji de Iansã no GUESB
414
415
Idem.
Idem.
Peji de Iansã no Templo de Oxoce
221
Identificamos que o modelo da identidade do GUESB é constituído a partir de
hierarquias fortes e com a valorização das marcas do poder coletivo. A organicidade do grupo
é valorizada e há, aqui, pouco espaço para práticas individualistas e auto-suficientes.
Contrapondo-se à autodeterminação e ao individualismo praticado no Templo de Oxoce.
O Templo Espiritualista Pai Oxoce é classificado, pela sua dirigente espiritual,
Mãe Celeste, como de “fundamentação Banto-ameríndia, porque trabalha com o culto afro
(Orixás) e com a Jurema”.
416
A dirigente nos relatou que iniciou suas atividades através da
Umbanda de Mesa, passando depois para a Umbanda Esotérica e, em seguida, para a
Umbanda Eclética. A partir da 19ª aldeia417 (2005), dedicada ao Orixá Iansã, é que o Templo
passou a praticar a Umbanda Racional.
Por nossa observação podemos identificar que através de um processo de
aprimoramento, a Mãe-de-santo agregou ritos de várias vertentes espiritualistas, que tendem à
valorização do individualismo. O praticante no Templo de Oxoce deve estudar e estar apto a
desenvolver práticas ritualísticas que permitam à elevação espiritual, doutrinando sua
mediunidade, sem, contudo, deixar de praticar o bem para a sociedade.
No Templo, para que uma “aldeia” se forme é necessário que os médiuns
interessados assinem um livro e passem a contribuir como sócios. Os médiuns passam a
freqüentar as reuniões de estudo, que são quinzenais ou mensais. Eles recebem uma apostila e
fazem uma prova, com questões discursivas e fechadas. Após esse período - e a aprovação do
médium -, a mãe-de-santo marca do “Dia do Brado” - dia em que os Orixás se apresentam aos
seus filhos, emitindo seu grito e riscando seu ponto no chão.
Desde nossa primeira visita, podemos observar que no Templo de Pai Oxoce,
existe um forte sincretismo com o campo religioso do Kardecismo e da Umbanda, trazendo
traços ideológicos de diferentes sistemas de crença. No templo de Pai Oxoce os médiuns
diferenciam-se tão somente pela quantidade de colares que trazem consigo. Na indumentária,
todos preservam a simplicidade nas vestimentas brancas, lembrando muito algumas casas
espiritualistas tidas como de Umbanda Branca. Maria Laura Viveiros de Castro identificou, ao
estudar o Kardecismo: “A experiência da mediunidade aproximou fortemente o Espiritismo
do universo simbólico afro-brasileiro” (CASTRO, 2004, p. 13)
A comemoração do dia de São Bartolomeu acontece permeada por ritos
pertencentes ao catolicismo e à Umbanda. São promovidas oferendas aos antepassados e
comemorado o dia do Orixá Oxumaré. Destacamos aqui a inserção do Orixá nas
416
417
Informação verbal coletada em entrevista.
Nome dado no Templo de Oxoce ao grupo que se forma similar ao barco do Candomblé.
222
comemorações do santo católico, em uma linguagem simples, os entrevistados declaram sua
fé a São Bartolomeu e o sincretizam com o Orixá. “Ele é muito discriminado em alguns
terreiros, mas aqui ele é respeitado como deve ser, tem vários filhos, homens e mulheres”. 418
A discriminação a Oxumaré pode ser relacionada à mitologia dos Orixás, como
nos relata Reginaldo Prandi: “Todos queriam aproximar-se de Oxumaré, mulheres e homens,
todos queriam seduzi-lo e com ele se casar”(PRANDI, 2005, p. 226)
Dando início a comemoração, os filhos-de-santo são organizados para aplicar o
passe mediúnico nos presentes, ato realizado em silêncio em que o visitante recebe um jato de
perfume nos pulsos, enquanto é purificado pelo médium que está postado à sua frente. Todos
passam pelo ritual do passe, primeiro os visitantes e depois os filhos-de-santo. Ao final desse
ato, os filhos-de-santo organizam-se em fila para pedir a benção à Mãe-de-santo, que fica
sentada em frente ao altar, ladeada pelos médiuns chamados de ‘cabeça grande’419.
A festa tem início e a dirigente ao microfone relata aos presentes o
desenvolvimento dos trabalhos. Em seguida o exú incorpora na mãe-de-santo e convida todos
os filhos e demais presentes para se dirigirem ao local que foi preparado para a homenagem
aos antepassados. O Exu, ao microfone chama os filhos, por ordem de pertencimento aos
Orixás, dando ênfase ao homenageado do dia, Oxumaré.
Na área externa ao salão principal, denominado corredor da aruanda, ao redor de
uma pintura que poderia ser comparada a letra T maiúscula, todos se colocam em posição de
oração, com velas brancas nas mãos. Em seguida, o Exu entoa o cântico: “Vamos orar, vamos
orar, a São Bartolomeu”, ele pede aos presentes que se concentrem na força do vento, pedindo
à natureza para livrar todos os presentes do mal:
24 de agosto, meu irmão
É dia de lamentação
Na França mataram gente em nome de Jesus
A fumaça subiu
A triste noite negra dos “Exus”.
Destacamos aqui a congruência entre a fala dos informantes e a prática ritual do
Templo de Oxoce. Nos depoimentos coletados, pudemos observar a transparência dos estudos
como fator precípuo de ingresso no terreiro, “todo o ritual que acontece no Templo tem que
ser assimilado para o pleno desenvolvimento dos trabalhos espirituais”
418
Informação verbal coletada em entrevista.
Médiuns pertencentes à primeira aldeia do Templo de Pai Oxoce.
420
Informação verbal coletada em entrevista.
419
420
. O destaque na
223
festa comemorativa aos antepassados e ao Orixá Oxumaré, com relação à indumentária, ficou
por conta das roupas coloridas que os filhos do Orixá homenageado vestiam roupas coloridas,
em sua maioria predominando as cores verde e amarela.
Os Pejis do Templo de Oxoce são discretos e preservam apenas a imagem dos
santos católicos e dos orixás, adornados, por vezes, de flores. Já os Pejis do GUESB
apresentam vários adornos próprios dos orixás que são cultuados no Candomblé, como
podemos constatar nas fotos.
Contudo, a partir da fala dos informantes, não obstante o sincretismo ecumênico
da Umbanda, pudemos perceber no Templo de Oxoce uma forte ênfase em categorias ligadas
ao estudo, transparecendo uma influência da doutrina kardecista. Percebemos que a prática da
Umbanda Racional no Templo de Oxoce, nos remete ao que Motta escreveu: “A Umbanda,
por causa de seus elementos Kardecistas representa uma revalorização da palavra ou do logos,
atuando consequentemente, como fator de racionalização...dos cultos afro-brasileiros”
(MOTTA, 1991, p. 45).
Referências
BRANDÃO, Maria do Carmo T. Xangôs Tradicionais e Xangôs Umbandizados do Recife:
Organização Econômica. São Paulo: USP, 1986. Tese de doutoramento.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Vida e morte no Espiritismo kardecista. Rio de
Janeiro: 2004
Disponível em: <www.iser.org.br/publique/media/RS24-2_artigo_maria_viveiros.pdf>. Acesso em 20
jul 2007. 22h30.
MOTTA, Roberto. Edjé Balé: Alguns aspectos do sacrifício do Xangô de Pernambuco. Recife:
PPGA/UFPE, 1991. Tese de concurso para Professor titular de Antropologia no Departamento de
Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro: Umbanda e Sociedade Brasileira. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1999.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
RIBEIRO, René. Cultos Afro-brasileiros do Recife. Recife: IJNPS, 1978.
RIOS, Luis Felipe. Lôce, lôce, meta rêlê!: homossexualidade e transe(tividade) de gênero no
candomblé de nação. Recife: PPGA/UFPE, 1997. Dissertação de mestrado.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nago e a Morte. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1975.
224
O "EFEITO DE PRESENÇA" DA REPRESENTAÇÃO NA RELIGIÃO421
Daniela Moura Queiroz422
RESUMO: A intenção neste trabalho é discutir teoricamente a representação religiosa e radicalizá-la a
ponto de combiná-la com a noção weberiana de dominação. Isso requer, desde já, que se parta do
pressuposto de que se está diante de um tipo – e de um efeito – muito particular de representação: a
representação carismática religiosa associada ao que chamar-se-á de seu "efeito de presença". A
proposta é, portanto, explicar as razões que levam o representado, devoto ou apóstolo a seguir
cegamente um líder religioso carismático. Assim, em um primeiro momento, se discutirá a idéia lato
sensu de representação – o "estar em lugar de" – e a necessária distinção entre representante e
representado. Após isso, será analisado a possibilidade de tratar, a partir da perspectiva weberiana, a
dominação carismática como um tipo particular de representação, chamada por Weber de
"representação apropriada". Por fim, se tratará especificamente, a partir da noção de "supplément", de
Derrida, do "efeito de presença" da representação e da explicação do carisma pela perspectiva do
representado. Palavras-chave: representação religiosa; líder; suplemento; carisma; efeito de presença
de representação.
ABSTRAT: The intention in this work is to argue theoretically the religious representation and to
radicalize it point to combine it with the weberiana notion of domination. This requires, since already,
that if it leaves of the estimated one of that it is ahead of a type - and of a effect - very particular of
representation: the charismatic representation religious associate what it will be called its “effect of
presence”. The proposal is, therefore, to explain the reasons that take the represented one, devoted or
disciples to follow a charismatic religious leader blindly. Thus, at a first moment, sensu of
representation will be argued the idea broad - “to be in place of” - and the necessary distinction
between representative and represented. After this, will be analyzed the possibility to treat, from the
weberiana perspective, the charismatic domination as a particular type of representation, called for
Weber of “appropriate representation”. Finally, it will be treated specifically, from the notion of
“supplément”, Derrida, the “effect of presence” of the representation and the explanation of the
charisma one for the perspective of the represented one. Key-words: religious representation; leader;
supplement; charisma; effect of representation presence.
Introdução
Max Weber, ao estabelecer as bases fundamentais do tipo ideal de dominação
carismática, permitiu-nos a compreensão de fenômenos sociais, religiosos e políticos
provocados por líderes capazes de serem adorados por multidões.
Embora seja perfeitamente possível lançar mão dessa categoria weberiana para
analisar movimentos sociais, políticos ou mesmo religiosos que hodiernamente ocorrem. O
carisma, portanto, é um fenômeno social extremamente relevante de ser compreendido em
cada uma de suas incontáveis manifestações. Tal importância revela-se a partir de vários
estudos promovidos nas mais diversas áreas que comportam as Ciências Humanas
(Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Psicologia, Comunicação Social).
421
Artigo apresentado como parte da pesquisa de construção da dissertação, que se trata de liderança religiosa
carismática. E-mail: [email protected].
422
Mestranda em Ciências da Religião pela UNICAP
225
Esse fenômeno, além de amplamente estudado, é analisado a partir de uma série de
perspectivas teóricas. Neste trabalho buscar-se-á ressaltar a importância que essa categoria
weberiana tem para a análise do líder religioso. Nesse sentido, será restrito o debate a
problematização do conceito, buscando aplicar-lhe uma nova dimensão compreensiva que, se
acredita, auxiliará aqueles que o utilizam para o entendimento de acontecimentos sociais
religiosos relevantes.
Nesse sentido, a intenção neste artigo é discutir teoricamente a representação
religiosa a ponto de combiná-la com a noção weberiana de dominação, para daí apresentar
uma outra dimensão de análise do tipo ideal de dominação carismática. Isso requer, desde já,
que se parta do pressuposto de que se está diante de um tipo – e de um efeito – muito
particular de representação: a representação carismática associada ao que se chamará de seu
"efeito de presença". A proposta é, portanto, explicar as razões que levam o representado,
devoto ou apóstolo a seguir cegamente um líder religioso carismático.
Aparentemente essa explicação parece já ter sido dada no âmbito das Ciências
Sociais quando Max Weber elaborou o tipo ideal de "dominação carismática", uma forma
especial de dominação que se legitima a partir de uma "devoção afetiva à pessoa do senhor e a
seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou
heroísmo, poder intelectual ou de oratória" (WEBER, 2004, p. 134-135).
Entretanto, entende-se que a justificativa weberiana do carisma é apenas unilateral,
ou seja, ao mesmo tempo em que explica o ponto de vista do dominante (líder), omite as
razões do dominado. Assim, discutir esse tipo de dominação, ou de representação, requer
inicialmente realizar uma necessária inversão em relação à forma como o tema comumente
tem sido debatido. Enfatizando: quando se fala de carisma, de dominação carismática, fala-se
sobremaneira do ponto de vista do "representante", de seus poderes mágicos, oratórios,
sobrenaturais. Muito pouco se diz em teoria religiosa acerca das razões por que o
"representado" adere cegamente a tal tipo de dominação.
Para se explicar o que acontece do lado do dominado a ponto de ele legitimar a
dominação ou a representação carismática do representante ou do dominador423, formular-seà, desde já, a hipótese central deste artigo: a legitimidade da dominação carismática está no
fato de que, quando ocorre, o dominado é incapaz de fazer a distinção entre seus interesses e
os interesses de seu líder ou representante. Esse tipo de dominação borra, a partir do ponto de
423
Se pretende deixar claro que está se operando com as idéias de dominação e de representação como análogas,
uma vez que o dominante é sempre um representante legitimado pelo dominado, como será visto na segunda
seção do trabalho.
226
vista do próprio dominado, a fronteira existente entre ele e seu dominador. Em uma palavra:
chamar-se-à "o efeito de presença" da representação. Derrida (2006), na filosofia
desconstrucionista, como será visto mais detalhadamente a seguir, analisa o papel do perigo
do suplemento da escrita em relação à fala.
Neste artigo não se pretende tratar especificamente de tais abordagens teóricofilosóficas que, apesar de inspiradoras, escapam do debate sobre a representação religiosa.
Assim, em um primeiro momento, se discutirá a idéia lato sensu de representação – o "estar
em lugar de" – e a necessária distinção entre representante e representado. Após isso, será
analisada a possibilidade de tratar, a partir da perspectiva weberiana, a dominação carismática
como um tipo particular de representação, chamada por Weber de "representação apropriada".
Por fim, se tratará especificamente, a partir da noção de "suplemento" de Derrida, do "efeito
de presença" da representação e da explicação do carisma pela perspectiva do representado.
1 A representação; a presença da ausência
A representação, tomada em seu sentido mais amplo e trivial, refere-se à idéia de
"estar em lugar de", ou seja, representar é anunciar o paradoxo da presença de uma ausência.
Tal acontecimento, no âmbito da religião, deve necessariamente ser entendido a partir da
noção de mediação, entre o povo e o sagrado (OTTO, 2005, p.13) que o líder os leva a essa
experiência que só existe no domínio religioso. Ou seja, “o homem toma conhecimento do
sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”
(ELIADE, 2001, p.17), como se trata do líder religioso, é por essa liderança que se manifesta
o sagrado ansiado pelo povo e pelos apóstolos. Existindo assim o representado e o
representante. Não se discutirá a experiência religiosa e sim a mediação na relação do líder
religioso carismático e seus apóstolos.
Dessa forma, a mediação é a possibilidade da representação. Entre o representado
e seus interesses interpõe-se, portanto, o representante e sua legitimidade mediadora. O que
parece relevante afirmar neste ponto é que a relação de mediação ocorre entre duas
identidades particulares. Ambas são particulares (representante e representado), pois guardam
em si necessidades que lhes são próprias. Ocorre que, no momento em que uma identidade
passa a representar a outra, seus interesses convergem para um ponto em comum (ou vários
pontos em comum) e nesse sentido surge à mediação.
Explicando melhor este ponto a partir de um exemplo hipotético. Imagina-se um
grupo de mulheres que há anos necessitam ser escutada. Em um determinado período, surge
227
um líder religioso que assume a reivindicação interior dessas mulheres, mães como uma de
seus diferenciais. Ocorre que, ao longo de sua liderança, ele assume a bandeira das que nunca
são valorizadas e escutadas; mulheres e mães, e acaba por tornar-se também alguém confiável
para essas mulheres.
Acima foi dito que a mediação apresenta-se como um importante elemento a ser
considerado quando se está diante da representação. Afirma-se também que a mediação é uma
relação que ocorre entre duas identidades com interesses particulares e que não
necessariamente possuem conexões prévias entre si. Neste ponto, parece-nos que o exemplo
da relação de representação que se estabeleceu entre o líder religioso e o grupo de mulheres
pode ser elucidativo.
Dessa forma, a representação tem a característica de estabelecer a relação entre
duas particularidades: a mediadora e a mediada. A mediadora (líder religioso) propõe-se a ser
a porta-voz, a representante da mediada (grupo de mulheres). Ocorre que o ato da mediação é
o momento em que uma particularidade (líder religioso) assume a condição de representar
outra particularidade (grupo de mulheres).
Nesse momento, se está diante de uma importante conseqüência: a identidade
representante deixa sua mera condição inicial de líder religioso para tornar-se também líder do
grupo de mulheres. Essa conseqüência é a tendência à universalização da identidade do
representante, ou seja, o líder religioso não representa mais a sua identidade original, pois
alarga (universaliza) a sua possibilidade de representação.
Essa identidade deixa de representar a sua mera particularidade e torna-se capaz de
representar outra identidade que inicialmente não estava a ela conectada. Esse sentido de
representação apresenta-se suficientemente claro na Teoria do Discurso de Ernesto Laclau:
nós já sabemos o que são estas formas de representação: particularidades que, sem cessarem
de ser particularidades, assumem a função da representação universal. Isso é o que está na
origem das relações hegemônicas (LACLAU, 2000, p. 56).
Evidentemente que o ato da representação não é em absoluto um momento de
presença efetiva do representado. Pelo contrário, o representante anuncia indubitavelmente a
sua ausência. Em laclau424, citado por Giacaglia:
O importante na teoria da hegemonia é ver que toda universalidade nunca é
uma universalidade com um conteúdo próprio; ela tem seu próprio conteúdo
424
No livro Ernesto Laclau e Nilklas Luhmann, pós-fundacionalismo, abordagens sistêmicas e as organizações
sócias. Dos organizadores: Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
Trata-se de pensar uma forma de produção do universal a partir do particular.
228
particular que se universaliza e começa a representar a totalidade das
demandas particulares equivalentes (GIACAGLIA, 2006, p.107).
O representante, portanto, tem a legitimidade de representar a si próprio e a
identidade ausente (representado). Contudo, tal ação não ocorre sem problemas. Vê-se o
porquê disso a partir do exemplo.
Digamos que o líder religioso tenha seu reconhecimento. Nada mais justo, nesse
caso, que o grupo de mulheres comece, desde o primeiro dia de sua liderança, se identificar e
mostrar socialmente como uma mulher precisa ser tratada. Possivelmente o líder, visando a
manter o apoio desse grupo social, invista ações tanto do grupo de mulheres, como os de
outras categorias.
Por outro lado, não é raro notar-se que interesses particulares de grupos
representados não são plenamente efetivados. A razão para essa não-efetivação é a mesma: o
líder religioso está com o povo, ele é um dos poderes populares e que, juntamente com o
povo, deve dar conta da localização, cidade, região como totalidade; muitas vezes, a demanda
particular fica preterida em função de um "interesse público" que não abrange tal demanda
representada.
Deve-se ressaltar que é, ao mesmo tempo, legítimo que o pólo representado
requeira uma solução na idêntica medida da demanda, pois esse é o sentido que se busca com
a representação: um representante realmente identificado com a questão de quem está ausente.
Laclau425 citado por Giacaglia (2006), fala que partindo dessa concepção, tudo que é universal
não é mais uma particularidade que a partir de uma operação hegemônica ocupa lugar de
universal (GIACAGLIA, 2006, p.107). O representante é simplesmente um porta-voz, um
legado, um embaixador, de seus representados, e, portanto, o seu dom é extremamente
limitado e revogável.
As condições de uma perfeita representação parecem estar dadas quando a
representação é um processo direto de transmissão da vontade do representado quando o ato
de representação é totalmente transparente em relação a esta vontade. Isto pressupõe que a
vontade esteja plenamente constituída e que o papel do representante se esgote nesta função
de intermediação. Desta forma, a opacidade inerente a toda substituição e encarnação devem
425
No livro Ernesto Laclau e Nilklas Luhmann, pós-fundacionalismo, abordagens sistêmicas e as organizações
sócias. Dos organizadores: Léo Peixoto Rodrigues e Daniel de Mendonça, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. Daí
surge a idéia de representação ao partir do particular para o universal.
229
ser reduzidas a um mínimo: o corpo em que a encarnação tem lugar deve ser quase
invisível"426 (LACLAU, 1996, p. 172).
As condições para uma "perfeita representação" não são evidentemente satisfeitas
na lógica do religioso, uma vez que o próprio ato de representar de um grupo, não está restrito
ao grupo representado, uma vez que o líder religioso, na medida do possível, é representante
de todo um povo. A representação religioso, muitas vezes é falha; jamais a vontade do
representado é satisfeita integralmente, porque o universo da representação é sempre
complexo e resultante de disputas de atenção e de múltiplos interesses ou necessidades
humanas.
Apesar de esse universo da representação religiosa ser algumas vezes falha, ou
seja, a resposta do representante não ser dada na idêntica medida da demanda do
representado, parece haver um tipo de representação em que essa falha, mesmo continuando a
existir de fato, deixa de ser percebida pelo representado. Nesse momento, se está diante da
dominação carismática e de seu "efeito de presença", que induz uma perigosa ilusão por parte
do representado: nesse tipo de representação, o dominado é incapaz de fazer distinção entre os
seus interesses e os interesses do líder ou representante. Tal dominação borra, eclipsa, a partir
do ponto de vista do próprio dominado, a fronteira existente entre ele próprio e seu
dominador.
Em uma palavra: estamos diante do que chamamos de "o efeito de presença" da
representação, de que será tratado posteriormente. Porém, precisa-se antes estabelecer bases
mais sólidas que nos legitimem afirmar que a dominação carismática weberiana possa ser
concebida como um tipo especial de representação.
2 Elementos da representação carismática
Neste ponto, tal relação entre representação e dominação para se chegar à
especificidade da dominação carismática e torná-la sinônima do que se chama de
representação carismática. Para tanto, se utilizará o referencial conceitual weberiano disposto
em Economia e sociedade (WEBER, 2004).
426
As citações de passagens de trabalhos originalmente escritos em línguas estrangeiras (inglês,
francês e espanhol) foram traduzidas livremente pela autora para uso exclusivo neste artigo.
230
Diferentemente de poder que, para Weber, é um conceito "sociologicamente
amorfo", a dominação lato sensu é a "probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de
determinado conteúdo" (WEBER, 2004, p. 33). Dessa forma, o dominador é aquele que
possui legitimidade de comando, que é evidentemente aceito pelo dominado. Partindo dessa
idéia geral de dominação, Weber construiu três tipos puros calcados em diferentes
legitimidades. É assim que a dominação racional-legal está fundada na lei; que a tradicional,
na tradição, no costume, e a carismática, no carisma. Se ficará neste último argumento.
Assim, a dominação carismática tem seu fundamento, ou legitimidade, nos
poderes sobrenaturais ou extracotidianos do líder. Um líder religioso, por exemplo, adquire
carisma quando é capaz de demonstrar dons racionalmente inexplicáveis, como a produção de
um "milagre".
A adesão ao líder carismático, portanto, dá-se a partir da prova de que ele é capaz
de produzir algum ato extraordinário e magnífico que causa impacto naqueles que serão seus
adeptos. Um religioso pode ser carismático a partir de sua capacidade discursivo-oratória e de
liderança das massas. É nesse sentido que o demagogo, para Weber, é um tipo puro de
liderança carismática. Conforme Weber, a adesão a um líder carismático é "uma entrega
crente e inteiramente pessoal nascida do entusiasmo ou da miséria e esperança" (WEBER,
2004, p. 159).
A partir do acima exposto, em que sentido a dominação carismática pode ser
entendida como representação religiosa? Para se responder a essa questão, passa-se à
formulação que Weber dá à representação. Nas palavras do autor: "Por representação
entendemos primordialmente a situação [...] na qual as ações de determinados membros da
associação (representantes) são imputadas aos demais ou devem ser consideradas por estes
como vigentes de modo 'legítimo' e 'vinculante', como de fato ocorre" (WEBER, 2004, p. 193;
sem grifos no original).
Weber indica que as ações tomadas pelos representantes geram reflexos ao
conjunto dos seus representados. Assim, uma atitude insana de um líder religioso carismático
totalitário de declarar guerra contra um país vizinho gera reflexos diretos e imediatos em
relação ao povo.
Tal forma de representação é chamada por Weber de "representação apropriada",
uma vez que, mesmo sendo uma atitude de magnitude drástica a declaração de uma guerra,
sua postulação é realizada pelo líder carismático que, em virtude de seu carisma, tem a
"apropriação" da representação e das atitudes que geram reflexos em toda a população. Nas
palavras do autor: "Representação apropriada. O dirigente (ou membro do quadro
231
administrativo) tem por apropriação o direito de representação. Nesta forma, ela é muito
antiga e encontra-se em associações de dominação patriarcais e carismáticas (carismáticohereditário, carismáticas de cargo) de caráter muito diverso" (WEBER, 2004, p.193).
Dessa forma, pode-se com segurança falar de representação carismática. Trata-se,
segundo Weber, de um tipo particular de representação "apropriada", tomada pelo líder a
partir de uma legitimidade extracotidiana e, portanto, fora do comum (Weber afirma também
que a dominação carismática possui características revolucionárias).
Nota-se que ainda não foi mencionado a explicação, do ponto de vista do
dominado, para que este adira cegamente ao carisma de determinada liderança. As razões
expostas por Weber estão unicamente fundadas na pessoa do líder. Nesse sentido, se quer,
portanto, explorar o conceito weberiano de carisma e explicá-lo do ponto de vista do
dominado. Para tanto, se trará da noção de "supplément" de Derrida, a categoria que se
chamará de "efeito de presença" da representação carismática.
3 O "efeito de presença" da representação carismáica
O "efeito de presença" é característico da representação carismática. É ele que
explica a devoção do dominado, a partir de seu próprio ponto de vista, na relação de
dominação. Assim, a força que exerce o líder sobre seus devotos na representação carismática
é tamanha que, no limite, pode significar a abdicação da própria vida por quem a legitima.
Contudo, o elemento que parece fundamental é a "alienação da vontade" do dominado (autoalienação) pela vontade do líder. Essa auto-alienação anuncia-nos que a vontade do dominado
passa a não mais ter um sentido em si, pois é substituída pela vontade do líder. Esta última,
como já fizemos referência, é inicialmente particular. Entretanto, no momento do exercício do
carisma, ela deixa de ser meramente particular, pois universaliza-se em torno de seus séquitos.
O líder cria a vontade alheia, pois o alheio torna-se alheio à própria vontade.
Eclipsa-a na vontade do líder. Sacrifica-se por, devota-se a, identifica-se plenamente com
aquilo que lhe é estranho, cuja positividade é diversa da sua positividade. O devoto não faz
mais diferença entre o que ele e o líder desejam, pois a vontade passa a ser a do líder427. Essa
é a característica mais perigosa do carisma: o "efeito de presença" da representação religiosa,
427
Em relação à vontade ser do líder e não do dominado, Weber é muito claro: "Nenhum profeta jamais
considerou que sua qualidade dependesse da opinião da multidão a seu respeito; nenhum rei eleito ou duque
carismático jamais tratou os oponentes ou indiferentes senão como prevaricadores: quem não participou de uma
expedição militar de um líder cujos componentes foram recrutados de maneira formalmente voluntária ficou
exposto, no mundo inteiro, ao escárnio dos outros" (WEBER, 2004, p. 159).
232
ou seja, quando o representando acha-se plenamente identificado com o representante. De
maneira acrítica, ele próprio assassina sua identidade. Portanto, as conseqüências desse
perigoso "efeito de presença" da representação, a partir da noção de "suplemento" de Derrida.
O perigo do "efeito de presença" já vem de certa forma sendo anunciado em outro
domínio das humanidades. Derrida, em Gramatologia, enfatizou fortemente o perigo do
suplemento escritura em relação à fala. É a partir dessa proposição derridiana e de sua
transposição que se usou para à Teoria Religiosa a qual se buscará caracterizar o "efeito de
presença" da dominação carismática. Antes, contudo, precisa-se estabelecer o que se entende
como sendo o perigo desse "efeito".
O perigo do "efeito de presença" deve ser compreendido estritamente em relação
ao representado: este auto-anula sua identidade no ato da representação, no momento em que
está sofrendo a dominação carismática. Sua identidade é, assim, "eclipsada" pela identidade
do representante em um processo de auto-alienação.
Contudo, esse desaparecimento da identidade não é, de fato, um desaparecimento
verdadeiro, mas um "efeito de presença" desse tipo muito especial de representação que é o
carisma. Um efeito perigoso, pois exerce em e, ao mesmo tempo, é exercido pela figura do
próprio representado. O que ocorre com o representado é um processo de produção de uma
imagem que indica um sinal de existência. Contudo, essa é tão-somente uma imagem e, como
tal, não é a própria existência, pois tem uma natureza independente e suplementar à essência
do objeto projetado. Uma imagem no espelho, por exemplo, indica a existência daquilo ou de
quem ela projeta, mas não a sua essência.
Nesse sentido, o "efeito de presença" tem de real somente a aparência. Uma
aparência que faz da representação, ou seja, o momento de "estar em lugar de", uma plena
identificação do ausente. No caso do "efeito de presença" no momento da representação,
estamos diante de uma simulação que o representante faz da presença do representado e que o
último pode até, no limite de uma auto-alienação, estar plenamente identificado àquele que é a
presença de sua ausência (o representante).
Ao "efeito de presença" não se deixa de anunciar, como já foi enfatizado, um
perigoso suplemento, no sentido de Derrida. Tal perigo está na possibilidade de crer-se que o
suplemento simula o que somente deveria "aparentemente" representar, em um ato em que a
representação produz um efeito de identificação. Todavia, o perigo do suplemento não está na
crença do efeito de presença do representante que, no limite, é o que ele sempre busca. O
perigo do suplemento está na auto-alienação do representado no momento em que toma sua
imagem em uma foto como se fosse ele mesmo e não a mera representação de sua imagem.
233
Em Gramatologia, Derrida apresenta a noção de suplemento como aquilo que está
"em lugar de", ou seja, aquilo que exerce uma função de representação. Contudo, o ato de
representar para Derrida é ao mesmo tempo um ato de "acrescentar-se", como a escritura faz
em relação à fala: "A fala, sendo natural ou ao menos a expressão natural do pensamento, a
forma de instituição ou de convenção mais natural para significar o pensamento, a escritura a
ela se acrescenta, a ela se junta como uma imagem ou uma representação. Neste sentido, ela
não é natural. Faz derivar na representação e na imaginação uma presença imediata do
pensamento à fala. Este recurso não é somente "esquisito", ele é perigoso. É a adição de uma
técnica, é uma espécie de ardil artificial e artificioso para tornar a fala presente quando ela
está, na verdade, ausente" (DERRIDA, 2006, p. 177).
Assim, o suplemento escritura428 acrescenta-se à fala como um excesso, mas um
excesso permitido para tomar o lugar da última. O suplemento, portanto, é exterior ao que
suplementa. Não é complementação, pois está, segundo Derrida, "fora da positividade à qual
se ajunta, estranho ao que, para ser por ele substituído, deve ser distinto dele" (DERRIDA,
2006, p. 178).
O perigo do suplemento está no lugar que ele toma: ele toma a identidade do
representado pela sua; simula um desaparecimento do representado pela sua presença. Ele faz
crer na total impossibilidade de expressão do representado. É como se o suplemento fosse o
próprio representado. Ora, mas se ele fosse o próprio representado, seria desnecessária a
existência do suplemento, da representação. O suplemento é outra identidade, "fora da
positividade a qual se ajunta", mas que perigosamente confunde-a com a sua própria
positividade.
O perigo do suplemento não é propriamente a representação que exerce, mas o
"efeito de presença" da representação, que é, ao mesmo tempo, a alienação e a auto-alienação
do representado, ou do suplementado. Nas palavras de Derrida: "A escritura é perigosa desde
que a representação quer nela se dar pela presença e o signo pela própria coisa. E há uma
necessidade fatal, inscrita no próprio funcionamento do signo; em que o substituto faça
428
Segundo Derrida, o conceito de escritura compreende e excede o de linguagem. A linguagem, segundo o
autor, deve ser entendido como "ação, movimento, pensamento, reflexão, consciência, inconsciente, experiência,
afetividade etc.". A escritura compreende todos esses elementos, mas acrescenta "não apenas os gestos físicos da
inscrição literal, pictográfica, ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita; e a seguir, além da
face significante, até mesmo a face significada; e, a partir daí, tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em
geral, literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço não pertença à ordem da voz: cinematográfica,
coreografia, sem dúvida, mas também 'escritura' pictural, musical, escultural etc. Também se poderia falar em
escritura atlética e, com segurança ainda maior, se pensarmos nas técnicas que hoje governam estes domínios,
em escritura militar ou política [...]" (DERRIDA, 2006, p. 10-11).
234
esquecer sua função de vicariância e se faça passar pela plenitude de uma fala cuja carência e
enfermidade ele, no entanto, só faz suprir" (DERRIDA, 2006, p. 177).
Diante do exposto, pergunta-se: qual é o perigo do "efeito de presença" na
representação religiosa? Em que momento se pode perceber a sua ocorrência? Por que é
relevante seu conhecimento? Para se encaminhar um esboço de resposta a tais
questionamentos, volta-se à noção de dominação carismática de Weber.
Max Weber, quando estabelece a dominação carismática, apresenta como
justificativa a adesão irracional que o dominado devota ao seu líder. O fundamento,
necessário a esse tipo de dominação, portanto, está no carisma, nos poderes discursivos e/ou
sobrenaturais da liderança. Já se mencionou a característica de representação que a dominação
exerce: o dominador está no lugar de quem ele domina ou representa perante um terceiro.
Contudo, o que Weber deixa em aberto é a forma como opera o "carisma" em si, o que
explica a devoção. Ele toma tais categorias como dadas, como se elas se auto-explicassem.
Omite a natureza subjetiva da devoção, toma-a como um fato consumado. Talvez a razão de
tal omissão esteja no fato de ela não ser propriamente uma explicação sociológica para
Weber, mas de um outro domínio do saber humano.
Entretanto, como o próprio Weber afirmava, não nos basta a explicação da ação
social apenas pelo seu sentido atual ou imediato. É preciso conhecer também as razões
subjetivas que levam o ator a praticar a ação.
Conclusão
A hipótese explicativa para a dominação carismática é o "efeito de presença" da
representação. Fala-se do poder de sedução de um líder carismático, mas não se explica o que
realmente acontece com o dominado para esse aceitar tal liderança. Retoma-se, portanto, o
caminho até aqui para apoiar a comprovação de tal hipótese central:
1. Qualquer representação religiosa presume uma falha constitutiva, ou seja, o
representante não traduz plenamente a demanda do seu representado.
2. A dominação carismática pode ser entendida como um tipo particular de
representação, uma vez que a ação do líder produz efeitos sobre seus
representados, ou liderados.
3. O carisma, como representação, gera a alienação da vontade do dominado, que
passa a tomar como sua a vontade de seu líder religioso em um ato de devoção.
235
4. Essa alienação de vontade traduz a medida do "efeito de presença" da
representação, que é a ilusão de que o representado satisfaz plenamente a sua
vontade no momento da dominação carismática.
5. Se trata de uma ilusão uma vez que, na representação carismática se está diante
não da vontade do dominado, mas de uma vontade construída e implementada
pelo líder religioso carismático.
Por fim, o perigo prático que a representação carismática pode acarretar aos
seguidores.
É pacífico que a religião deva pressupor a existência do pluralismo ideológico e de
interesses. Ora, o "efeito de presença" da representação carismática pode representar
justamente o oposto desse princípio, uma vez que anuncia o fim do pluralismo e o princípio
de uma unicidade, no limite, totalitária. Se a única vontade que pode ser enunciada é a do
líder e não a de seus seguidores (liderados), não se está mais diante de diferentes, mas de um
único objeto com uma essência pré-conhecida e definida. A adesão pura e simples ao líder
religioso carismático é o atestado de óbito da identidade. O mais grave disso é que se trata de
um suicídio, uma vez que o "efeito de presença" da representação só pode ser produzido pelo
próprio dominado.
Um "homem-bomba" abdica de sua própria vida na ilusão de que está a serviço de
sua vontade, que é a mesma vontade de um ente superior. Seu suicídio e seus assassinatos são
reflexos da sua devoção, de um "efeito de presença" que anuncia certamente não a sua própria
e original vontade, que está eclipsada, mas a sua cega assunção à vontade do líder e aos
perigos do carisma.
Referências
DERRIDA, J. Gramatologia. 2. ed. São Paulo : Perspectiva, 2006.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LACLAU, E. Emancipación y diferencia. Buenos Aires : Ariel, 1996.
_____. Identity and Hegemony: The Role of Universality in the Constitution of Political Logics. In :
BUTLER, J.; LACLAU, E. ; ZIZEK, S. (eds.). Contingency, Hegemony, Universality :
Contemporary Dialogues on the Left. London : Verso, 2000.
OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: edições 70, 2005.
RODRIGUES, L.P; MENDONÇA, D. Ernestto Laclau e Niklas Luhmann: pós-funcionalismo,
abordagem sitêmica e as organizações sócias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da Sociologia compreensiva. 3. ed. Brasília : UNB,
2004.
236
A CRÍTICA À RELIGIÃO RACIONAL DE KANT, E A INCONSISTÊNCIA DA
PROPOSTA HEGELIANA EM DAS LEBEN JESU429
MSc. Danilo Vaz Curado Ribeiro de Menezes Costa430
RESUMO: O presente trabalho se propõe a demonstrar como a reconstrução hegeliana promovida no
seu texto do período de juventude - Das Leben Jesu – Harmonie der Evangelien nach eigenen
Übersetzung [LJ] - das categorias religiosas como o mal radical, a comunidade moral e o imperativo
categórico, utilizadas por Kant na construção de sua religião racional desde seus escritos Die Religion
in den Grezen der blossen Vernunft [RGV] e Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [GMS] ainda
padecem do mesmo déficit por Hegel criticado [a inefetividade do agir religioso], evidenciando um
verdadeiro paradoxo da moral, a impossibilidade de erigir-se conteúdos práticos sem o recurso a
contingência do mundo exterior. Rememoraremos (Erinnerung) como Kant na construção de seu
edifício crítico, busca integrar os momentos teórico, prático e teleológico desde a transição conceitual
operada nas obras GMS à GRV, culminando na religião racional como momento de efetivação do
projeto crítico e pari passu como Hegel ao elaborar sua crítica e reconstrução do projeto Kantiano,
ainda incorre no mesmo paradoxo moral denunciado, face a tentativa de implosão interna dos termos
Kantianos, método o qual, em virtude de ainda não ter a plenitude das bases a que objetiva
suprassumir (Aufhebung) termina por resultar no aprisionamento epistêmico de Hegel e de sua
proposta religiosa – uma religião da virtude - incapaz de se dar a efetivação. Palavras-chaves: Crítica,
Religião Racional,
Idealismo.
ABSTRACT: The present work aims to demonstrate how the Hegelian reconstruction promoted in a
text of his early writings – Das Leben Jesu – Harmonie der Evangelien nach eigenen Übersetzung [LJ]
– of the religious categories such as the radical evil, the moral community and the categorical
imperative, used by Kant in the construction of his rational religion since his writings of the Die
Religion in den Grezen der blossen Vernunft [RGV] and the Grundlegung zur Metaphysik der Sitten
[GMS] still suffer of the same deficit criticized by Hegel [the non-effectiveness of the religious
action], evidencing a real paradox of moral, the impossibility of raising practical contents without the
remedy of the outside world contingence. It will be (re)remembered (Erinnerung) how Kant in the
construction of his critical building tries to integrate the theoretical, the practical, the teleological
moments since the conceptual transition operated from the GMS to the RGV works, culminating in the
rational religion as the effective moment of his critical project and pari passu as Hegel while
elaborating his critic and reconstruction of the Kantian project still assumes the same denounced
moral paradox though the tentative to implode the kantian terms, method which, for the fact of not
have given the total basis of what it aims to dialectic suppress (Aufhebung) finishes to result in the
epistemic imprisonment of Hegel and his religious project – a religion of virtue – incapable of
turning itself effective. Key words: critics
Rational eligion
Idealism.
429
O presente texto é parte dos resultados de uma pesquisa maior, intitulada “Dialética, religião e a construção
do conceito de Liberdade nos Theologie Jugendschriften de G. W. F. Hegel”, a qual resultou na minha
dissertação de mestrado em filosofia junto a Universidade Federal de Pernambuco. O presente texto é um excerto
do primeiro capítulo.
430
Professor da Faculdade dos Guararapes, membro do Grupo Hegel do Núcleo de Estudos da América latina –
NEAL/Unicap. Endereço do autor: Av. Cons. Rosa e Silva, 1460, 913, Aflitos, Recife/PE,
[email protected].
237
Introdução
Nosso trabalho cinge-se a demonstrar como Hegel, no texto Das Leben Jesu431,
busca reconstruir e repropor uma saída ao problema do agir, segundo o legado construído por
Kant, em seus textos; Fundamentação à Metafísica dos Costumes e A religião dentro dos
limites da simples razão, e busca ao final demonstrar, como a apropriação de termos e temas
por Hegel e sua tentativa de suprassunção (Aufhebung) do agir prático kantiano, na esfera da
religião, ainda se mostra insuficiente, pois, segundo concluímos, a reconstrução hegeliana
ainda é incapaz de instaurar a preservação da subjetividade no seio da comunidade, e a saída
hegeliana, ainda padece dos mesmos déficits que a kantiana, a impossibilidade de efetivação
do eu prático pela impossibilidade de a moral converter-se em eticidade.
O escrito A Vida de Jesus é compreendido como de um período
historiograficamente
especulativo
434
chamado
de
Teológico/religioso432,
de
Juventude433
ou
pré-
, de modo a que traçados nossos objetivos, buscaremos analisar a relação entre
as contribuições de Kant435 especialmente; a lei moral, o mal radical e o imperativo
categórico, face ao conceito de razão e liberdade exposto na figura da religião presente no
escrito A Vida de Jesus, para ao final podermos concluir se a resposta Hegeliana, ao suposto
déficit
de
efetivação
do
agir
prático
kantiano,
foi
suprassumido
(Aufhebung)
satisfatoriamente.
Jacques Rivelaygue, em suas Lições de Metafísica Alemã, afirma que se pode
distinguir no período de Berna quatro fases de evolução do pensamento hegeliano e um
caráter distintivo deste período, numa de suas fases, exatamente a correspondente ao da
escritura da Vida de Jesus seria a influencia kantiana436.
431
Adiante apenas citado como A Vida de Jesus. As citações referentes ao texto Das Leben Jesu, foram
extraídas da versão espanhola: Historia de Jesus. Trad. Santiago Gonzáles Noriega. Madrid: Taurus Ediciones,
1987, e as traduções são do próprio autor.
432
Conforme tradição assentada por Dilthey e Nohl.
433
Numa interpretação tão ampla e díspare em seus membros como; Lukacs, Kroner, Ripalda, Hyppolite entre
outros.
434
Consoante uma atual corrente espanhola encabeçada por Eduardo Alvarez Gonzalez.
435
Nesta linha de adesão do pensamento de Hegel a influência Kantiana no período de Berna, especialmente no
escrito sobre a Vida de Jesus, encontram-se Dilthey, Kroner, Noriega, Rivelaygue, Marcuse, Hyppolite, Cassirer
etc. É importante salientar que um grande estudo sobre o período de Juventude de Hegel como o é o de Lukcas
sobre o Jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista em momento algum faça referência a este texto .
436
“La période de Berna (1793-1796)... On peut distinguer dans cette période quatre séries de réflexions:... 2°
Une série d’ecrits influenciés par Kant: c’est alors la grande période Kantienne de Hegel”. In Rivelaygue,
Jacques. Leçons de métaphysique alemande – Tomo I. p. 115.
238
Walter Kaufmann,437 acentua o fato que Hegel apenas vem a conhecer a obra de
Kant com sua saída do seminário de Tübingen, e que lhe interessa à época do escrito A Vida
de Jesus especialmente as opiniões de Kant sobre a religião publicadas em 1793 e a filosofia
moral desenvolvida neste livro, mais especificamente a distinção entre a moralidade e a
eticidade.
1 Aufklärung, Moralidade e Religião em Kant
Em 1783, Kant no pequeno e sugestivo texto “Resposta à pergunta: o que é
Esclarecimento”, conclama toda a Alemanha e daí em diante toda a humanidade, que é
chegada a hora de sairmos da menoridade438, deste estágio em que o homem não é autônomo,
ou seja, Kant nos anuncia que ao homem é chegada a hora de ser sujeito e produtor de sua
própria realidade, e a moralidade é a esfera de realização desta maioridade.
E, se 1781 foi o ano em que Kant revoluciona o mundo das idéias com sua Crítica
da Razão Pura, será em 1783 que ele convidará todos a agirem segundo as diretrizes traçadas
no plano crítico, estendendo suas contribuições gnosiológicas aos demais aspectos
da
filosofia.
Assim, todo o homem é convidado por Kant a utilizar a razão439 em todas as
questões referentes à sua consciência moral, de modo a abandonar a menoridade e atingir o
uso pleno da liberdade em seu exercício individual. A conquista da liberdade no projeto
kantiano se alberga na autonomia do uso racional do querer.
A Crítica da Razão Pura, tem como finalidade estabelecer o marco delimitador
para o exercício da razão em sua faculdade e capacidade do conhecer, objetivando prevenir o
erro no ato cognitivo e não ampliar o conhecimento, ou seja, busca a mesma se erigir num
tribunal da razão. Kant colocará sob a égide deste tribunal todas as esferas do mundo da vida,
inclusive a religiosa.
Para Kant, o conceito é uma faculdade sintética que objetiva a descoberta e a
regulação do processo de conhecimento através de uma análise regressiva, de modo a
estabelecer as condições de possibilidade da experiência e de todo o conhecimento puro a
437
Kaufman, Hegel. p. 30.
Sobre o impacto das Luzes e as diversas acepções que pode tomar o Esclarecimento, ver o Livro KANT de
Denis Thouard, p.27 e segs.
439
Kant na obra “Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento” afirmará: “O uso público de sua razão deve ser
sempre livre e só ele pode realizar o Esclarecimento entre os homens” p.65-66.
438
239
priori e, após, estabelecidas as condições de possibilidade do conhecer puro, este deverá
determinar as possibilidades da vontade no plano da práxis moral e religiosa.
Tendo Kant estabelecido o projeto crítico em suas bases ontológicas e
epistemológicas na Crítica da Razão Pura, a religião será julgada por este tribunal na obra
levada a termo em 1793, A religião dentro dos limites da simples razão, a partir do uso que a
religião faz da crítica e dos postulados morais dos quais se erige.
Não obstante, seja apenas na Religião dentro dos limites da simples razão que
Kant utilizará a razão pura como determinante da razão prática em seu uso religioso, é na obra
Grundlegung zur Metaphysik der Sitten440, onde Kant estabelecerá as condições do eu prático
em seu agir moral a priori. E sendo a religião em Kant o uso moral que o eu prático executa
em seu agir religioso, é necessário a compreensão do itinerário da Fundamentação à
Metafísica dos Costumes.
Em 1785, vem a lume a obra, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, onde Kant
erigirá seu projeto Crítico de modo a determinar as leis da liberdade, ou seja, leis segundo o
qual tudo deva acontecer consoante de modo racional a priori, ou seja, depurada de todos os
elementos empíricos em sua fundamentação. Desta feita, nesta obra seu objeto é a
investigação do agir puro,441 e se chegar ao estabelecimento do princípio supremo da
moralidade.
Deste modo, Kant nos lega a noção de que a razão nos é dada como uma faculdade
prática, ou seja, faculdade que deve exercer influência sobre a vontade. Todavia, a vontade
terá de ser determinada pelo princípio formal do querer em geral, retirando-lhe todo o
princípio material. Para Kant
Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que
com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende,
portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer
segundo o qual abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar foi
praticada.442
Em Kant é bastante claro que o dever se coliga ao agir por uma necessidade de
observância – respeito - à Lei, e que apenas os mandamentos que estão ligados a minha
vontade como princípios e não as conseqüências, e, ou efeitos decorrentes é que podem vir a
ser objeto de respeito.
440
Fundamentação à Metafísica dos Costumes, utilizamos a tradução de Paulo Quintela, na coleção “Os
Pensadores”.
441
Vide especialmente, o Prefácio a Fundamentação a Metafísica dos Costumes.
442
Fundamentação à Metafísica dos Costumes, p. 208.
240
Respeito, na acepção do kantismo, é uma sensação, aesthesis443, sentimento que se
produz por si mesmo através dum conceito de razão, ou seja, subordinação da minha vontade
a uma lei. O agir humano para ser livre, deve ser autônomo, dar-se a si mesmo sua lei.
Importa distinguir, a máxima, como o princípio subjetivo do querer e, a Lei prática como o
princípio objetivo do querer.
Deste modo, para Kant a determinação da vontade deve dar-se mediante o respeito
a uma Lei universal do agir, que se traduza numa máxima que se constitui ao modo de que
“Eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”.444
A estrutura de composição e constituição da moralidade kantiana resulta como
uma clara conseqüência das conclusões a que chega na sua Crítica da Razão Pura, pois, se a
sede do verdadeiro encontra-se no conhecimento puro a priori, derivar o fundamento da lei
moral de princípios consequencialistas e oriundos da experiência, seria pôr em xeque o
projeto Crítico. De onde decorre, Kant determinar o dever como que se constitui da
necessidade das minhas ações por puro respeito à Lei prática.445
Na natureza tudo age segundo leis, contudo apenas o homem - ser racional - tem
capacidade de agir segundo as representações da lei, isto é, segundo princípios que se
outorga. O imperativo é a fórmula de um princípio objetivo vinculante para a vontade, que se
exprime pelo dever (sollen), ou nas palavras do próprio Kant:
Imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação entre leis objetivas
do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser
racional.446
Para Kant e como decorrência da necessidade de validade universal da
moralidade, apenas lhe interessa no estudo das suas condições de possibilidade o imperativo
do tipo categórico447, que se constitui no edifício kantiano em sua primeira formulação como:
[...] age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal.448
E verificando-se, que é próprio do imperativo instituir a verdade da idéia de
natureza racional como sendo extraída da adequação entre, a universalidade das leis e a
produção de seus efeitos, Kant exprime o imperativo categórico numa segunda formulação
443
Como na Crítica da Razão Pura, na seção referente a estética transcendental.
Kant, Fundamentação à Metafísica dos Costumes, p. 209.
445
Prática é o que é possível por meio da liberdade.
446
Kant, Fundamentação à Metafísica dos Costumes, p. 218.
447
Ao contrário do categórico, no imperativo hipotético a ação boa tem-se em vista de uma intenção
444
possível.
448
Kant, Fundamentação a Metafísica dos Costumes, p. 223.
241
[...]age como se a máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade,
449
em lei universal da natureza.
Para Kant, o imperativo categórico situa-se no âmbito da filosofia prática em que a
busca dá-se, não em determinar os princípios do que acontece, porém, sob as leis do que
deverá vir a acontecer, sob pena de desvirtuar-se a filosofia prática em psicologia empírica.
Assim, na obra kantiana, a Lei prática reside objetivamente na regra e em sua
forma universal e, subjetivamente, no fim que deverá abarcar todos os seres racionais como
fins em si mesmo. Isto sempre sob as determinações da autonomia, a qual é a condição de a
vontade erigir para si própria suas determinações, e para terem validade apodictica têm de ser
desde metas universais e independentes das intenções e sentimentos, de modo a estatuírem
postulados práticos a priori.
Buscaremos agora situar desde o panorama traçado da Fundamentação à
Metafísica dos Costumes no tocante a moralidade como causa eficiente do mundo inteligível,
seus desdobramentos na Doutrina da Religião de Kant. Alertando ab initio, que em
pertencendo a religião ao mundo da cultura, ou, como chama Kant, natureza racional,
fazendo parte do mundo inteligível, mas, sendo tocada pelo mundo sensível, deverá em seus
desdobramentos ser a realização da idéia de moralidade no âmbito propriamente da religião e
das figuras religiosas.
Kant na elaboração de sua doutrina filosófica da Religião,450 constata uma
decadência nos princípios religiosos de sua época, tendo inclusive asseverado que em termos
religiosos, vivia-se na última época.451Objetivando delimitar em que consiste o fundamento
religioso e, por conseqüência uma saída para a presença do mal na existência humana e
buscando extrair esse fundamento do seio de sua caminhada crítica, Kant, fundamentará a
disposição para a religião no homem numa disposição natural, enquanto fundamento
subjetivo para o uso de sua liberdade em geral, e que por via de conseqüência o fundamento
do mal estaria inscrito numa máxima, que o homem fornece a si-mesmo no uso de sua
liberdade452, contudo, na qual seu primeiro fundamento não pode ser dado na experiência.
449
Idem, p. 224.
A Doutrina Filosófica da Religião Kantiana, encontra-se posta em sua obra A religião dentro dos limites da
simples razão
451
Interessante observar como Kant acentua essa dificuldade nas narrativas religiosas de seu tempo que ainda
são as nossas, e descreve como uma última época a sua, onde o princípio moral iniciou sua decadência. Cf. A
religião dentro dos limites da simples razão, p. 367.
452
Cumpre advertir que para Kant, e não poderia deixar de ser diferente esta máxima que o sujeito se outorga é
inacessível, veja-se “que o primeiro fundamento subjetivo da aceitação das máximas morais seja insondável,
podemos por enquanto perceber pelo fato de esta aceitação ser livre e o fundamento da mesma (porque, por
exemplo, aceitei uma máxima má e não, muito antes uma boa) não deve ser procurado no motivo da natureza,
mas sempre numa máxima; e como isto também deve ter seu fundamento e que fora da máxima não se deve,
450
242
Deste modo, Kant refunda os princípios da religião em sua base natural com o
recurso do imperativo da razão pura se desdobrando na moralidade [razão prática] dentro de
um projeto teleológico. Assim, ao examinar a religião na perspectiva traçada pelo seu projeto
crítico, Kant buscará determiná-la de modo não relativista, porém, intentará dotar de validade
apoditica e a priori os fundamentos e postulados do agir/saber religioso, e fará desde a
liberdade e a moralidade como o seu fundamento.
Kant, na sua determinação do agir prático religioso, o estatuí como resultado de
uma máxima prévia aos sentidos e à empiria, pois, se as determinações exteriores fossem
determinantes das máximas morais positivas ou negativas (bem ou mal), ao homem não
poderiam ser-lhe imputadas, pois resultariam de uma coação externa ao agir e não de uma
adesão de seu arbítrio (Willkür), que se autodetermina.
Para Kant, o fundamento moral é causa de realização da liberdade e a liberdade é o
espaço de exercício da consciência religiosa,453assim em sua determinação do elemento a
priori do agir moral, no texto, A religião dentro dos limites da simples razão, assevera que:
Somente a lei moral é motivo para si mesma no julgamento da razão, e
quem fizer dela sua máxima é moralmente bom. Mas se a lei não determina
o arbítrio de alguém com vistas a uma ação que se relacione com esta lei
[...] e como isto só pode acontecer pelo pressuposto de o homem admitir
este motivo (por conseguinte, também o desvio da lei Moral) em sua
máxima.454
De modo a efetivar sua idéia de lei moral a priori, Kant designará os
fundamentos que permitem atribuir à natureza humana sua determinação como boa ou má. E
tais elementos (bem ou mal), devem se fazer encontrar como inerentes ao homem, assim,
designará Kant como disposições para o bem, as que se encontram no gênero das disposições
à animalidade, à humanidade e à personalidade, e, de modo contrário como propensões455 ao
mal a fragilidade, a impureza e a maldade.
As propensões ocorrem em duas ordens: física e moral. Se física, ela pertencerá ao
homem como ente natural e não lhe poderá ser imputada como mal, pois, falta-lhe a nota
essencial de qualquer conceito valorativo, que é o exercício da liberdade. Se uma propensão
de ordem moral habita no homem, o faz como ente moral, e todo ato moral é um agir segundo
nem se pode indicar qualquer fundamento de determinação do livre arbítrio, é-se sempre re-enviado mais longe,
até ao infinito, na série dos fundamentos de determinação subjetivos, sem poder chegar ao primeiro fundamento.
(nota a p.368 in A religião dentro dos limites da simples razão)
453
In A religião dentro dos limites da simples razão. p. 369
454
Idem, p. 370.
455
Segundo Kant, propensão é o “fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação (apetite habitual,
concupiscência), enquanto contingente para a humanidade em geral”. Idem, p. 373.
243
uma máxima universalizável em meu querer e, enquanto ato no mundo me pode ser imputada
pelo meu exercício da liberdade de forma reprovável.
A postura kantiana de erigir a moralidade como o resultado da adesão do arbítrio a
uma máxima universalizável e a exegese do agir na obra, A religião dentro dos limites da
simples razão, pela análise das disposições para o bem e as propensões para o mal, faz Kant
concluir que o mal se dá no elemento humano por natureza, entendendo-se neste caso
natureza humana.
Pois, se a máxima universalizável do agir se dá de forma a priori e, é a causa
suficiente da sociabilidade, o agir contra essa máxima universal é o exercício pleno da
liberdade, pois neste ao qual Kant chama de mal radical456, o homem reconhece a máxima
universal e a necessidade de seu atuar consoante ela, porém no exercício de sua liberdade a
viola. Assim para o Filosofo de Königsberg
Este mal é radical porque corrompe o fundamento de todas as máximas; ao
mesmo tempo também, como propensão natural, não pode ser extirpado por
forças humanas.457
A teoria do mal radical como exposta por Kant, lança a tese contundente de
que o bem e o mal, são escolhas positivas ou negativas da liberdade em seu uso prático, o bem
enquanto efetivação da vontade em seu uso prático a priori e o mal enquanto privação
positiva do bem.
A razão pura ao delimitar as condições de possibilidade do ato cognitivo e a razão
prática ao estabelecer as condições de efetivação da vontade a priori, necessitam completar
seu périplo e lançar o projeto crítico nos limites da representação. A religião assenta sempre
em um ato histórico, não existe dedução possível do elemento religioso, que exclua de si o
elemento histórico como determinante.
Não obstante, esta tensão entre o histórico e o transcendental, Kant delimitará o
projeto crítico no que concerne a religião, no intuito de estabelecer uma religião racional,
elemento possível pela via do cristianismo de elevar os homens da menoridade religiosa pela
via da dignidade ética, alavancada pelo uso prático da razão à sua maioridade como
consumação do projeto iluminista.
O lugar da religião, ou do que posso esperar, em Kant, é o locus onde a resposta
pelo o que esperar, será respondida pela exigência de uma ética autônoma e que funde a
456
457
Ibidem, p. 377.
Ibidem, p. 379.
244
priori as determinações da vontade. A religião é racionalizada e o princípio teológico se
converte em fundamento da moral.458
2 A Vida de Jesus
O texto, A Vida de Jesus,459gestado no ano de 1795, é o primeiro grande ensaio de
Hegel
sobre
kantiana,
460
questões
especificamente
filosóficas,
trabalho
de
nítida
onde Hegel analisa os Evangelhos compilados segundo o de João,
461
influência
numa clara
alusão ao espírito iluminista da influência recebida de Lessing462 e, os coloca em permanente
diálogo com as discussões filosóficas de seu tempo.463
Este texto tem como fio condutor e chave de leitura, a utilização do projeto
kantiano como modus operandi de tradução conceitual do problema de efetivação do agir
prático, desde o instrumental religioso [representacional], de modo a verificar o potencial
crítico do próprio projeto moral e religioso de Kant, apontar suas deficiência, suprassumi-las e
demonstrar uma alternativa viável a realizar do agir.
Reconstruiremos os passos da reformulação operada no discurso religioso de Jesus
por Hegel, de modo a poder ao final do texto determinar se a moralidade Cristã como exposta
em A Vida de Jesus, é uma adesão ao projeto kantiano da moralidade e da religião, ou ao
contrário é uma tentativa de suprassunção às conquistas da razão pura em seu uso prático
desde uma ampliação do potencial crítico kantiano, sempre tendo como nortes nossos
objetivos antes traçados.
458
Michèle Crampe-Casnabet, tratando do lugar da relação existente entre moralidade e religião no texto da
Religião nos limites da mera razão, em sua obra Kant uma revolução Filosófica (1994; 97) afirma que
“Subordinar uma conduta ética a mandamentos divinos seria restaurar uma heteronomia que arruína a liberdade.
A moral conduz à religião que não a funda. A religião - no que ela tem de racional - é apenas a idéia de um
suposto legislador moral supremo”.
459
Das Leben Jesu – Harmonie der Evangelien nach eigenen Übersetzung, a qual utilizamos na sua versão
espanhola a cargo de Santiago Gonzalez Noriega, ed. Taurus, 1987, a qual foi traduzida por Historia de Jesus.
460
Segundo Dilthey, Rivelaguy, Kroner, Cassirer, Noriega, Ripalda, Legros entre outros.
461
A reunião dos Evangelhos segundo o de João é mais um elemento de adesão da leitura Hegeliana deste
momento ao espírito da Aufklarung, pois como assinala Lessing em sua obra Hipótese acerca dos evangelistas
ao falar de João afirma que “Seu evangelho é o único que deu verdadeira consistência a religião Cristã; a seu
Evangelho, e somente a ele, se deve a que a religião Cristã viva todavia com esta consistência a despeito de
todos os ataques sofridos” (apud, in Dilthey. Vida e Poesia. México, p. 90)
462
Em a Carta de Schelling a Hegel (in Escritos de Juventud. p. 59; Correspondance, p. 27-30) o mesmo afirma
peremptoriamente ser Hegel grande conhecedor da obra de Lessing, vindo a confirmar a tese de adesão do
escrito A Vida de Jesus com as premissas ilustradas de Lessing e o projeto das Críticas de Kant.
463
Ao tempo do texto A Vida de Jesus, a Alemanha viva a avalanche do pensamento Kantiano exposto na Crítica
da Razão Pura e toda a sorte de acusações que a mesma fazia a metafísica dogmática de Leibniz e Wolff.
245
A Vida de Jesus, inicia-se de forma contundente, identificando a razão pura com a
464
divindade
, onde logos e theos, são faces do Uno cósmico e, é a razão pura que permite ao
homem o acesso ao conhecimento de seu destino e o determinar-se consoante às exigências a
si prescritas.
Kant erige seu projeto sistemático da Crítica da Razão Pura como um grande
tribunal da razão, e Hegel estabelecerá em A Vida de Jesus, a moralidade como norte e via de
acesso à verdade desde o uso da razão pura, pois, o cultivo da razão é a fonte da verdade465e a
moralidade será seu critério de acesso seguro.
O Cristo,466 estabelecerá à luz do projeto Kantiano do tribunal da razão uma
grande jornada de auto-validação da moralidade dentro do seio de seu discurso religioso, de
modo a instaurar pela via moral, o acesso à verdade, em detrimento da certeza oriunda do
apego à lei judaica. Hegel, através de Cristo, determinará a razão como a tarefa de convidar os
homens a uma meta mais nobre, para além do prazer e dos antigos prejuízos Judeus, através
do cultivo da razão como verdadeiro destino dos homens e, identifica Razão e Deus e
estabelece a moralidade e o agir segundo o dever como fonte de acesso à verdade467e ao reino
de Deus.
Assim, através do discurso moral e religioso de Jesus, Hegel deverá ser capaz de
propor uma alternativa viável para a dicotomia enfrentada por Kant, de como estabelecer
princípios válidos a priori, independentes da experiência, nos espaços teórico e prático.
Cristo busca estabelecer nos homens o reino de Deus na terra, o Reich des Gottes,
e para isso terá de semear o cultivo da razão e instaurar uma virtude moral capaz de fazer
frente aos preconceitos judeus, a qual, deverá se legitimar enquanto se fizer com o propósito
firme de ser sua própria condição de possibilidade e não desde algo exterior a própria
moralidade como a experiência ou determinações morais cristalizadas.
Hegel anuncia que a razão pura é tão viva como em nós é a certeza do ver e
ouvir468, e que se quisermos atingir a perfeição moral, ou, o Reich des Gottes, devemos ter o
céu por origem. Observa-se uma certa tendência intuicionista no acesso à razão pura, ao
promover Hegel, uma identificação entre a certeza da razão e a certeza empírica do ver o do
464
Hegel começa o texto sobre A Vida de Jesus com estas palavras: “La razón pura, incapaz de qualquier
limitación, es la divinidade misma. El plan cósmico está ordenado, pues, en conformidad con la razón”(p. 27)
465
Hegel, A Vida de Jesus, p. 27.
466
Sempre que falarmos neste capítulo de Cristo e suas passagens e mensagens, o estaremos fazendo segundo a
leitura Ilustrada de Hegel.
467
Idem, p 32.
468
Hegel, Vida de Jesus. p.32
246
ouvir, própria dos círculos românticos que viriam a ser por Ele fortemente combatidos em sua
fase de maturidade.469
Ora, se para Kant as condições do processo cognitivo devem ser dadas a priori
pela razão em seu uso puro, do mesmo modo, as condições do agir volitivo dos sujeitos
agentes também serão dadas a priori pela razão no seu uso prático, todavia, eis que surge a
dificuldade de como identificar razão e divindade470 sem renunciar ao próprio projeto crítico
kantiano?
Hegel identifica ao início do texto A Vida de Jesus, Deus e razão, e assegura que
se tivermos o céu por origem seremos cidadãos do seu reino, apenas quando tivermos
efetivando o esplendor da razão que ordena a moralidade como um dever.471
Fica claro que nesta fase, para Hegel, o cultivo da razão e sua efetivação no espaço
prático enquanto realização de Deus e de seus desígnios divinos, só pode se auto-legitimar
enquanto dados a priori, pois, do contrário, se for dado a busca pelo recurso à experiência,
será vã sua tarefa de alertar contra a ação humana decorrente da exterioridade das práticas
reiteradas e não racionalmente validadas e dos prejuízos da lei normatizada em desacordo
com a moralidade.
Deste modo, a divindade se confunde, ou melhor, se identifica com o princípio da
moralidade que habita o seio humano, o qual existe segundo Kant independente de toda a
experiência. Todavia, resta no texto, A Vida de Jesus, dessacralizado o cristianismo de todo o
elemento mítico-poético tão próprio das narrativas religiosas, em favor de uma racionalização
da fé, ou, uma justificação racional do cristianismo como elemento de tentativa de uma autojustificação moral da vontade em contextos históricos.
Essa retirada do discurso religioso de Jesus no texto, A Vida de Jesus, do elemento
mítico-poético, é a alternativa encontrada por Hegel para adequar a narrativa religiosa de
Jesus com a proposta da razão prática kantiana, diminuindo os vazios do projeto crítico no
que tange a sua efetivação na práxis.
Ao identificar razão pura e divindade,472 Hegel delimita como racional o espaço do
agir e da construção do discurso religioso e, sendo racional deve promover a dedução de
469
Sobre o debate Hegel e os românticos, veja-se: o livro do Professor Zaragonez Daniel Grau, Hegel y el
romanticismo.
470
Hegel abre seu texto da Vida de Jesus profeticamente anunciando que “A razão pura, incapaz de qualquer
limitação é a divindade mesma. O plano cósmico está ordenado, pois, em conformidade com a razão”(p.27)
471
Hegel, Vida de Jesus. p. 33 “O espírito em que somente impera a razão e sua flor, a Lei moral; unicamente
nisto há de estar fundada a autêntica adoração a Deus”(Tradução nossa).
472
Hegel, A Vida de Jesus, p.27.
247
princípios a priori, que in casu, resta consignado como seu fundamento à lei moral da qual
deverá ser deduzidos os demais princípios e máximas do agir religioso.
O agir por dever à lei moral é a autêntica adoração a Deus473e a tarefa de
conciliação da razão teórica face a razão prática a ser desenvolvida por Cristo no A Vida de
Jesus é a perfeição humana,474 através da aceitação e acatamento das prescrições imutáveis da
autonomia da lei moral em oposição ao legalismo positivo e heterônomo das tradições
Judaicas.
O teórico concilia-se com o prático na perspectiva transcendental de Kant,
endossada por Hegel neste escrito, quando o agir intersubjetivo no seio de uma comunidade
pode determinar a vontade do agir desde o respeito a uma máxima universalizável, à qual não
se faz utilizar como fundamento, seja o recurso à experiência, ou, o das instituições positivas.
Assim, justifica-se toda a crítica celebrada por Hegel através do Cristo virtuoso às
tradições do Judaísmo como o irrestrito legalismo institucional, o cumprimento das máximas
não por dever e respeito, mas apenas pela obediência cega à tradição.
Para efetivar o discurso religioso, torna-se necessário conciliar o eu cognitivo que
põe o mundo através de juízos sintéticos a priori, com o eu prático que age pelo dever que
condiciona o agir e as suas determinações na comunidade desde princípios objetivos475 e se
torna necessário o recurso ao estabelecimento de um princípio universalizável e
historicamente não-contingente, o qual Hegel estabelecerá com o auxílio de Kant neste texto
como sendo a lei moral.
O povo hebreu identificou moralidade e legalidade, obnubilando a flor viva e o
elemento de adoração ao divino, todavia, como para Kant e Hegel a moralidade não morre,
pois é parte constitutiva do agir humano subjetivo e de seu constituir-se intersubjetivo, Cristo
é o parteiro desta boa nova, do anúncio do reino de Deus através desta Igreja Invisível, que é
o culto à lei moral.
A necessidade de conciliação da razão teórica com a prática, repousa no projeto do
texto, A Vida de Jesus, na dicotomia vivida pelo povo judeu entre as regras da comunidade
inscritas na tradição da Torá e o espírito vivo da moralidade, à qual é convocada a
harmonizar subjetividade e objetividade no plano da vontade.
473
Idem, p. 33.
Ibidem, p.34.
475
Neste momento utilizamos objetivo no sentido transcendental do eu prático e não como sinônimo de algo,
posto ou positivo.
474
248
Hegel aponta a prática da virtude como a possibilidade de reconciliação entre as
duas razões kantianas,476e a saída para a sua inefetividade, a qual se firma [a justiça] sob os
pilares da pratica da justiça, compaixão e da sinceridade como o verdadeiro serviço à religião.
3 O imperativo categórico e a comunidade
Hegel anuncia a boa nova do necessário agir por respeito à lei moral, enquanto flor
viva, face aos prejuízos das tradições cristalizadas dos judeus que identificam imediatamente
a ordem objetiva com a moralidade, cristalizando a moral e a transformando em lei.
Ao estabelecer o fundamento da conciliação entre o eu teórico e o prático num
princípio – a lei moral – Hegel, em A Vida de Jesus, deve sob pena de incorrer no mesmo
dogmatismo que denuncia de identificação da moral com a lei, justificar a universalidade
deste princípio fundante, desta Igreja Invisível,477que conciliará a tradição com o novo, a
ordem subjetiva com os princípios da comunidade.
Ao atacar o judaísmo e suas prescrições imutáveis, as quais suprimem a
constituição e realização do princípio da subjetividade478 e ao fazê-lo desde o instrumental
crítico, Hegel utilizará o imperativo categórico como modus operandi de dúplice finalidade:
primeiro e face ao conjunto de postulados teóricos a que se utiliza como elementos de
desvelamento da realidade479 no escrito A Vida de Jesus, o imperativo categórico é a condição
de desdobramento e exeqüibilidade da postura transcendental adotada como conjunto teórico
de justificação da lei moral como princípio fundante da religião e da nova ordem social
anunciada a se fazer efetiva.
Uma segunda pletora de determinantes na utilização do imperativo categórico se
constitui face ao mesmo pôr as determinações da vontade no mundo como outrora já visto
sem o recurso à experiência - de modo universal - sendo a utilização prática da liberdade em
476
Cf. A Vida de Jesus, p. 59.
Acerca destes novos tempos a que anuncia Cristo e que se fundam numa revalorização da moralidade em
detrimento das instituições constituídas, Hegel anuncia com Cristo a uma Samaritana: “Crê mulher, chegará o
dia em que já não celebrarás culto divino algum, nem em Gazarim nem em Jerusalém, um dia em que já não se
acreditará que o culto divino se reduz a ações prescritas ou lugares determinados.”(Tradução nossa, in A Vida
de Jesus, p. 33)
478
O princípio da subjetividade é a nota mais marcante da modernidade, na qual Hegel se insere como um dos
seus mais célebres pensadores.
479
Quando falamos de realidade, o estamos fazendo pois é marcante que a utilização dos Evangelhos como base
da elaboração do discurso filosófico se dá em Hegel face a: reforma protestante operada por Lutero; Nascimento
da Subjetividade na modernidade com seus contornos já antecipados pelo Cristianismo; ruptura da ordem na
comunidade entre os princípios subjetivos e objetivo com seu zênite na revolução Francesa a qual invés de
Laicizar o estado deifica a religião e racionaliza-a. Assim a realidade se compreende como processo de
efetivação do princípio racional. No caso de Hegel a ênfase no desdobramento de tal princípio se mostra desde a
perspectiva do discurso religioso.
477
249
seu uso puro, assim, esta segunda justificativa opera-se na medida em que ele é o
desdobramento necessário no projeto hegeliano de um Cristo pedagogo que anuncia seu
discurso racionalizante da fé.
Se com o recurso ao imperativo categórico o discurso de Jesus se constitui de
modo universal, necessário e livre, ele ainda dá efetividade ao princípio da subjetividade em
sua forma máxime [universal], pois é exatamente no imperativo categórico que a liberdade
pode se dar suas determinidades, bem aos moldes das pretensões criticistas e iluministas de
racionalização da Fé e da necessidade de sua justificação segundo princípios verificáveis.
Hegel enuncia pelo Cristo o imperativo categórico da seguinte forma
[...]atua de acordo com uma máxima tal que possas querer que, como lei
universal entre os homens, valha também para vós.480
Desta feita, Hegel objetiva que o imperativo categórico seja o elemento de
determinação racional de efetivação da moralidade e de rejeição de princípios religiosos que
se assentam na exterioridade de um culto que se fixa em formas cristalizadas e mortas. No
projeto de efetivação de uma comunidade segundo princípios religiosos que assentam em
postulados universais, resta em A Vida de Jesus, estabelecido a moralidade como a única
medida do agrado divino.481
Jesus, via Hegel, é o pedagogo que através do respeito ao dever e do agir segundo
o imperativo categórico e sua máxima moral universalizável, anuncia esta nova comunidade
universal482, onde o grão semeado é o conhecimento da lei moral483e a semente lançada na
boa terra é a “voz da virtude” e o tempo da colheita é a eternidade.
O reino de Deus, a efetividade da comunidade, é a soberania das leis da virtude
entre os homens,484o qual se instaura no estabelecimento da moralidade como fundamento da
comunidade, e deve dar-se desde a religião como elo de ligação e o imperativo categórico e
sua utilidade prática como princípio imprescindível ao projeto de universalização dos
princípios morais nos quais se assentam a universalidade do culto da razão, como anunciados
pelo Cristo.
Para Hegel, seu projeto é de uma moral e de uma religião universalista, pelo que
esclarece que
480
A Vida de Jesus, p. 40.
A Vida de Jesus, p. 41.
482
Universal em seu duplo sentido: de princípio universalizável; e do que não se prende a fronteiras, povos ou
nações.
483
Cf. A Vida de Jesus, p. 47.
484
Cf. A Vida de Jesus, p. 71.
481
250
O plano da divindade não se limita a um só povo ou a uma só fé, senão que
abarca com amor imparcial ao gênero humano em sua totalidade.485
4 Razão e religião
Ao expor a religião segundo os princípios da razão kantiana, buscou Hegel,
desvelar o conteúdo racional da mensagem dos evangelhos segundo a prioridade de uma
comunidade universal, onde os credos, raças ou denominações fossem critérios não
determinantes, apenas cabendo à lei moral ser a determinidade absoluta, pois fruto do desejo
divino.
Todavia, ao expor o conteúdo racional dos evangelhos segundo os princípios do
projeto crítico, Hegel percebeu que conciliar razão teórica e razão prática num projeto
moralizante faz-se necessário a utilização do imperativo categórico, e, não obstante sua
utilização, a conciliação entre as duas modalidades da ratio não é causa suficiente para
harmonização da relação entre religião e razão e o pleno exercício da liberdade.
Hegel utiliza-se da noção de virtude como o local apropriado para a reconciliação
entre a razão e religião, a qual tem por meta o estabelecimento de uma religião racional que
não se funda na autoridade, legalismo ou sensibilidade, mas se funde em princípios
universalmente válidos e efetivos historicamente.
O Cristo, em A Vida de Jesus, constitui-se como um virtuoso que anuncia a Boa
Nova por respeito a uma máxima universal, por dever e sem expectativas quanto as suas
conseqüências ou desdobramentos, de modo que
Não é o que clama por Deus e lhe oferece orações ou sacrifícios o que
forma parte de seu reino, senão somente aquele que cumpre sua vontade que
se manifesta ao homem na lei de sua razão.486
5 A guisa de conclusão
Hegel ao objetivar a suprassunção do instrumental kantiano através da utilização
da virtude, como momento de efetivação do imperativo categórico e da superação do mal
radical como inerente ao homem em seu agir prático, instaura um verdadeiro paradoxo da
moral.
485
486
Hegel, A Vida de Jesus. p. 80.
A Vida de Jesus, p. 41.
251
Pois, se o virtuoso, ao utilizar-se do imperativo categórico é capaz de realizar-se
subjetivamente na comunidade, ao mesmo tempo e face a experiência pessoal da virtude, ele é
incapaz de objetivar essas mesmas condutas que o realizam, pois sua objetivação exigiria a
virtuosidade e reconhecimento de todos do seio comunitário, e deixaria a virtude de sê-la.
Deste modo, advogamos que ao utilizar o instrumental delimitador do agir prático
kantiano como momento ponto de partida, Hegel ao invés de suprassumi-lo [no texto sobre A
Vida de Jesus], é incapaz de na sua própria crítica elevar, negar e conservar a fundamentação
moral da religião segundo novas bases, afirmando uma moral virtuosa, ou seja, universalista,
aos mesmos moldes do projeto crítico.
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253
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PSICOLOGIA DO FUNCIONAMENTO PLENO DA
PESSOA A PARTIR DA ETNOGRAFIA DO JARDIM MÍSTICO DE TERESA
D’ÁVILA487
Delnise Silva488
Dr. Francisco Silva Cavalcante Junior489
RESUMO: O presente trabalho tem o intuito de apresentar algumas reflexões feitas a partir de uma
experiência de imersão etnográfica no Centro Holístico das Filhas de Santa Teresa - Congregação
Religiosa de origem cearense e que atua em vários estados brasileiros. Em Fortaleza, as religiosas
deram origem a uma Clínica de Cura Holística, que utiliza técnicas orientais de intervenção
terapêutica como massagens e tratamento fitoterápico. Um dos pilares de nossa fundamentação
encontra-se no “Livro da Vida”, de Santa Teresa, onde a autora relata sua experiência de oração e
propõe às irmãs a metáfora do jardim para explicitar o caminho de união com Deus. Na reflexão
acerca do ato de cuidar, destacamos o pensamento de Leonardo Boff, cuja Teologia da Libertação
defende o ser humano como parte integrante da natureza, dando particular ênfase à Ecologia. A
discussão dá-se, também sob o olhar da Psicologia de Orientação Positiva, cujos princípios estão
relacionados à valorização das potencialidades humanas e ao florescimento das pessoas em busca de
uma vida boa (Carl Rogers). Neste sentido é esclarecedora a visão de homem apresentada por
Cavalcante Junior. Este autor considera a pessoa nas suas múltiplas dimensões,
biopsicosocioespiritual, destacando a pessoa em processo de tornar-se cada vez mais plena. O diálogo
entre a prática religiosa, a Psicologia Humanista e a ética do cuidado, constituem um caminho
consistente e inovador na promoção do bem-estar e da saúde humana, pautados num real encontro
entre ciência e espiritualidade em prol de um mesmo objetivo - o bem comum. Palavras-chave:
espiritualidade, cuidar, funcionamento pleno, psicologia humanista
ABSTRACT: The present essay aims at presenting some reflections on the ethnographic immersion
experience at the Santa Teresa Holistic Center located in Ceara which action is found in different
Brazilian states. In the town of Fortaleza, the religious nuns have created a clinic for Holistic Healing
which use western techniques for therapeutic intervention such as massage e herbs treatment. A pilar
for our conceptual work is found in Santa Teresa´s “Book of Life” where she reports on her praying
experience and proposes the metaphor of a garden to convey her path to the union with God. In her
reflection about the act of caring the thoughts of Leonardo Boff’s is highlighted whose Theory of
Liberation which presents the human being as integrative with nature, with an emphasis on ecology.
The discussion herein presented on Positive Psychology which main principles are related with
valuing human potential and their flourishment in search for a good life (Carl Rogers). Within this
concept is clarifying the notion of the human being this author considers this person as a
biopsychosociospiritual dimensions, highlighting the person in the process of their multiple
dimensions. The dialogue between religious practice, the Humanistic Psychology and ethics constitute
a consistent and innovative path for promoting well-being and human health. This is based on an
487
Uma versão deste trabalho foi apresentada em Agosto de 2007, na Universidade de Fortaleza, em Cátedra
realizada e promovida pela Rede Lusófona de Estudos da Felicidade- RELUS, laboratório associado ao Mestrado
em Psicologia da Universidade de Fortaleza- UNIFOR
488
Religiosa da Congregação das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora das Dores, licenciada em Teologia pela
Universidade Federal do Piauí, graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e assistente de
pesquisa na Rede Lusófona de Estudos da Felicidade. E-mail: [email protected]
489
Professor titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Coordenador do
Laboratório de pesquisa, ensino e extensão RELUS - Rede Lusófona de Estudos da Felicidade. Correspondência:
Universidade de Fortaleza, Mestrado em Psicologia, CCH, Sala N-13, Av. Washington Soares, 1321 – 60811905 Fortaleza, CE – E-mail: [email protected]
254
encounter between sciencie and spirituality with thus similar objectuve – the human good. Keywords: spirituality, caring, fully functionin, humanistic psychology.
Introdução
No mistério do Sem-Fim,
Equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
E, no jardim, um canteiro:
No canteiro uma urna violeta,
E, sobre ela, o dia inteiro,
Entre o planeta e o Sem-Fim,
A asa de uma borboleta.
(Cecília Meireles)
A Poesia introdutória de Cecília Meireles ilustra bem o movimento interno que foi
acontecendo no grupo de pesquisadores490 ao longo da imersão etnográfica no Espaço
Holístico das Filhas de Santa Teresa. O grupo tinha como objetivo pesquisar as interfaces
entre Psicologia e espiritualidade e a imersão em um centro de cura dirigido por religiosas da
Igreja Católica era uma proposta particularmente interessante. Seis pesquisadores, todos,
graduandos em psicologia, compunham o grupo que, em horários diferentes, durante seis
meses, esteve presente no local escolhido. Todo o texto é apresentado como um passeio cuja
trajetória passa pelo jardim de Teresa d’Ávila e sua experiência de oração e pela ética do
cuidado em Boff (1999). Estes textos são apresentados a partir de uma psicologia de
orientação positiva tendo como autor primordial Rogers (1983, 1997). Estes autores ajudam a
vislumbrar o funcionamento pleno da pessoa em suas várias dimensões. Neste sentido, a
contribuição de Cavalcante Junior (2005) elucida ainda mais este processo.
1 As filhas de Santa Teresa
A Congregação das Filhas de Santa Teresa de Jesus é uma instituição pertencente
à Igreja Católica, de direito diocesano, com sede em Fortaleza-CE. Segundo Felicíssimo
(1995), a Vida consagrada acentua a consagração como elemento central da vida religiosa. O
fundamento último, segundo ele, é “uma experiência religiosa radical” (p. 93). Deste modo, o
490
Delnise Silva, Yuri de Nóbrega Sales, André Feitosa de Sousa, Tahian Leite Treigher, Francisco Antonio de
Sales Abud e Antonio Amorim Neto, todos vinculados à Rede Lusófona de Estudos da Felicidade (RELUS),
coordenada pelo Prof. Francisco Silva Cavalcante Júnior , Ph.D.
255
surgimento da Congregação está marcado por um ato de fé, como reza as Constituições ou
carta magna das religiosas. A Congregação foi fundada por Dom Quintino Rodrigues de
Oliveira e Silva, primeiro bispo da diocese de Crato-CE, aos quatro de março de 1923. A
primeira superiora geral foi Madre Ana Couto, que deu início à comunidade com quatro
membros. As religiosas fazem voto de obediência, pobreza e castidade, têm como inspiradora
Santa Teresa d’Ávila e valorizam a hospitalidade do povo nordestino como característica da
Congregação.
2 O espaço holístico
As irmãs, desde agosto de 2004, mantêm em funcionamento o Espaço Holístico
Santa Teresa de Jesus. Na fala de uma das irmãs entrevistadas “é um empreendimento da
Congregação na área da saúde preventiva e curativa”. Durante a semana, o atendimento ao
público é realizado em dois turnos e, no sábado, somente pela manhã. O trabalho é planejado
mensalmente em equipe e as religiosas assumem as atribuições que lhes são pertinentes,
quanto às terapias diversas e ao funcionamento do Espaço. Nas reuniões de avaliação e
planejamento fazem também o balanço financeiro das entradas e despesas. Além das terapias,
o Espaço Holístico oferece também aos seus clientes produtos fitoterápicos produzidos in
loco. Nas quartas-feiras à noite funciona um grupo que reflete, estuda e pratica terapias
holísticas.
O ambiente é muito silencioso e, ao mesmo tempo em que se assemelha a uma
clínica médica, reflete muito o ambiente característico de um convento. No interno, as salas
são dispostas em um retângulo, tendo como centro um jardim.
3 Metodologia
A metodologia escolhida foi a etnografia. Segundo André (2000), a etnografia é
um tipo de pesquisa em que o pesquisador e o objeto pesquisado estão em constante interação.
Os dados, afirma a autora, são “mediados pelo instrumento humano, o pesquisador” (p. 28). A
ênfase é colocada no processo, e não nos resultados. Assim, a visita semanal era permeada
pela imersão do pesquisador-observador, deixando que o ambiente reagisse à sua presença.
André (2000) aponta como uma das características da pesquisa etnográfica a não pretensão de
mudar o ambiente, mas de observar os eventos em sua manifestação natural. Esta
característica foi cumprida de maneira particular por cada pesquisador, buscado a presença
256
plena e uma observação participante. Após cada visita semanal, o pesquisador escrevia um
Conto de Campo. No final da pesquisa, havia cerca de doze contos por pesquisador.
O sentimento comum foi de abertura e de flexibilidade, mas também de reflexões
e incertezas, conscientes do fazer parte de um processo vivo. Assinala de maneira clara Rey
(2005), ao comentar o projeto de pesquisa qualitativa: “Toda pesquisa é um processo vivo em
que se apresentam diversas dificuldades para as quais o pesquisador deve estar preparado e
diante das quais deve tomar decisões que podem alterar o rumo da pesquisa” (p. 87).
4 Adentrando o campo de pesquisa
A Primeira visita a campo foi feita em grupo para um conhecimento prévio e uma
necessária organização e estabelecimento de horários com as dirigentes. O ambiente estava
preparado, com cadeiras, embaixo de uma grande árvore, fato que marcou a observação de
todos. De forma sintética foi feita uma explanação, por parte das religiosas, a respeito das
práticas realizadas. A ênfase foi colocada na idéia de que as “Terapias Naturais” (maneira
como as irmãs chamavam as práticas) cuidam das pessoas na sua totalidade, isto é, corpo,
mente e alma (definição de totalidade contida no folder de apresentação do espaço holístico).
Entre as terapias apresentadas estão: acupuntura auricular, moxacombustão, shiatsu,
reflexologia, alinhamento dos chakras, DO-IN, cromoterapia, geoterapia, hidroterapia, florais
de Bach, massoterapia e alinhamento da coluna, shantala, reiki e outros. As práticas são de
origem oriental e uma das religiosas é formada em medicina chinesa.
A entrada do Espaço Holístico é feita por uma porta que conduz à sala de
recepção. Este é o lugar onde a secretária marca as consultas por telefone, recebe os clientes e
vende produtos de fabricação local, como medicamentos fitoterápicos, pães e artesanato. Uma
estante, logo à esquerda de quem entra, estava quase sempre repleta de medicamentos. A
estrutura do ambiente interno é feita de modo retangular, tendo um jardim no meio. Na parte
de trás, que corresponde aos fundos do edifício, ficam os ambientes destinados à produção
dos medicamentos fitoterápicos e um salão onde são realizados os encontros noturnos de
formação e esclarecimentos para a comunidade local.
5 O jardim
Uma primeira observação ao analisarmos os resultados da pesquisa, olhando e
relacionando os nossos Contos de Campo, foi a presença quase constante de referência ao
jardim e à natureza. Esta se tornou a metáfora que guiou as correlações feitas entre Psicologia
257
e Espiritualidade. Rubem Alves diz que “jardim é a imagem da beleza, harmonia, amor,
felicidade”. Esta definição está em sintonia com o conceito de holismo em Boff (1999),
segundo o qual o termo holismo “provém de holos, em grego, que significa totalidade. É a
compreensão da realidade que articula o todo nas partes e as partes no todo, pois vê tudo
como um processo dinâmico, diverso e uno” (p. 196). Percebemos que estarmos inseridos em
um ambiente holístico nos remeteu às questões de respeito profundo para com a natureza. O
ambiente de cura passava de alguma maneira pela beleza e diversidade das flores, pelo canto
dos pássaros e pela fecundidade da terra. O jardim passou a ser considerado por nós como o
coração da mística daquele lugar.
6 O cuidado
Muito do que surgiu nas reflexões feitas nos remeteram ao cuidado essencial, tão
bem explicitado por Boff (1999). O autor faz referência ao mito do cuidado, segundo o qual
os personagens – Cuidado, Júpiter, Saturno e Terra – discutem a respeito do nome a ser dado
a uma criatura moldada por Cuidado e soprada (sopro do espírito) por Júpiter. A decisão
coube a Saturno, designado pelos outros como sendo o árbitro. Este deu à criatura o nome de
“homem”, porque foi feita de húmus, “que significa terra fértil” (p. 46). A partir desta fábula,
escrita por Gaius Julius Higynos (p. 49), o autor faz referência às dimensões e à natureza do
cuidado. Diz que “não temos cuidado, somos cuidado. Isto significa que o cuidado possui
uma dimensão ontológica que entra na constituição do ser humano. É um modo-de-ser
singular do homem e da mulher” (p. 89).
Analisando a filologia da palavra cuidado, o autor afirma que a sua forma mais
antiga, cura em latim, “expressa a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de
inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação” (p. 91). Uma das ressonâncias
que o autor fornece para o cuidado é a ternura vital. Afirma que:
o enternecimento é a força própria do coração, é o desejo profundo de
compartir caminhos. A angústia do outro é minha angústia, seu sucesso é
meu sucesso e sua salvação ou perdição é minha salvação e perdição, não só
minha, mas de todos os seres humanos (BOFF, 1999, p. 119).
Góis (2002) também trata da “capacidade do ser humano de perceber-se como
transcendência” (p. 92) e de aprofundar-se na vivência do todo e sentir-se “criador e criatura,
participante íntimo de uma tessitura cósmica complexa e sagrada – Biocêntrica” (p. 92). Nesta
percepção a pessoa é capaz, diz-nos o autor, de ir além dos seus limites, abarcando a
258
totalidade “por meio do aumento de sua permeabilidade Eu-universo” (p. 92). O jardim,
enquanto metáfora do holismo, assume uma dimensão cosmológica, atingindo a esfera do
sagrado.
7 Graus de oração de Santa Teresa d’Ávila
Foi justamente nesta concepção de sagrado que Teresa d’Ávila construiu a
metáfora do jardim como crescimento espiritual. Compara a alma com um terreno onde
crescem muitas ervas daninhas. Deus, a quem Teresa muitas vezes se dirige com o título de
Sua Majestade, vai retirando as ervas daninhas e plantando flores de suave perfume. É neste
jardim, plantado por ele e regado pelo jardineiro (a alma fiel), que o Senhor vai deleitar-se e
descansar em meio às virtudes.
Este processo é descrito em quatro etapas, chamadas por Teresa de graus da
oração. O ato de plantar é reservado única e exclusivamente a Deus. As sementes estão no
terreno, devidamente preparadas por ele, resta àquele que deseja cultivar uma vida de oração,
a tarefa de regar.
O primeiro grau é identificado pela autora com aqueles que começam a oração.
Segundo ela, os principiantes gastam muito tempo em recolher os sentidos, porque costumam
andar distraídos. O trabalho intelectual que vai fazer crescer as virtudes (flores) e ter bons
pensamentos são como tirar água do poço com baldes. Algumas vezes o poço pode estar seco.
Teresa encoraja o principiante a não desanimar nem desejar passar logo para outro grau da
oração. Aconselha que este tenha somente confiança, pois o Senhor está olhando, e cuide
somente de cultivar a alegria de trabalhar para o grande soberano, sem fazer caso dos maus
pensamentos.
As provações, a que são submetidos os principiantes, são, na concepção de
Teresa, modos que o Senhor usa para verificar se a alma é digna de preciosos tesouros. A
grande orientação é não se espantar com a cruz. Este
conselho espiritual
de Teresa é
cantado e rezado por muitos cristãos: “Que nada te perturbe, nada te amedronte. Tudo passa.
Só Deus nunca muda. A paciência tudo alcança. A quem tem Deus, nada falta. Só Deus
basta!” (D’ÁVILA apud KIRVAN, 2000).
O segundo grau da oração corresponde à oração de quietude. A atividade agora é
manejar o torno e encher os alcatruzes. A água sobe mais abundante e o esforço é bem menor
do que tirá-la com baldes. O jardineiro já não precisa gastar tanto tempo extraindo água do
poço e pode, em muitos momentos, descansar. A água é comparada com bens e graças em
259
abundância. Estas graças fazem crescer as virtudes e aproximam o orante do próprio Deus.
Perde-se o gosto pelas coisas terrenas, como honras, riquezas e prestígio. Há, pelo contrário,
uma satisfação com as alegrias do espírito. Compara ainda a oração de quietude com uma
centelha do verdadeiro amor. Para ser inflamada por esta centelha, a pessoa deveria não dar
muita atenção aos pensamentos, tendo como atitude a quietude, como “abelha sábia” (p. 114)
recolhida na colméia.
No terceiro grau da oração, a maneira de regar o jardim se faz com água corrente
do rio ou de uma fonte. O jardineiro não precisa mais fazer esforço, deleita-se em apreciar o
perfume das flores. Já não há preocupações e a alma está totalmente entregue a Deus. O
Criador do jardim e da água faz praticamente todo o trabalho. Realiza-se certa inteireza do
corpo e do espírito e o orante vive a felicidade. Teresa refere-se a uma felicidade do ser que
vive em união com Deus. O jardim assume a metáfora do encontro e do inebriamento amor.
O quarto grau da oração é marcado pelo momento em que o orante não precisa
mais regar o jardim. A água cai diretamente do céu em chuvas abundantes. O jardim, em
pleno vigor, agora é lugar de passeio e de deliciosos deleites entre a pessoa orante e o seu
criador. Teresa (1983) considera este estado o mais elevado, em que a pessoa chega às
lágrimas de felicidade, segundo a autora:
A alma sai desta oração de união com imensa ternura, de maneira que
ansiaria por desfazer-se, não de pesar, senão de lágrimas de felicidade.
Acha-se banhada nelas, sem as sentir, nem saber quando nem como as
derramou. Aconteceu-me algumas vezes, neste grau de oração estar fora de
mim (p. 142).
Estes degraus da oração foram experimentados por muitos cristãos, que fizeram
da analogia do poço e do jardim fonte de espiritualidade e de crescimento. Um exemplo é
Green (2000), que no seu livro Quando o poço seca, conduz o leitor a percorrer o caminho
traçado por Teresa. Ao longo das páginas, ele afirma que “a vida de oração talvez seja a mais
misteriosa dimensão de toda experiência humana” (p. 107).
8 Tendência formativa
Encontramos esta totalidade da experiência humana em Rogers (1983). Em sua
tese principal, ele afirma que “parece existir no universo uma tendência formativa que pode
ser observada em qualquer nível” (p. 44). Durante sua adolescência despertou para os
segredos da natureza e de modo particular para as borboletas e seu processo de metamorfose
(ROGERS, 1985). Sua paixão na juventude era de administrar uma fazenda cientificamente e
260
assim poder estudar a natureza estando em interação com ela. Seu pensamento evoluiu ao
longo da vida, tornando-se um hino ao universo em plenitude:
Os organismos estão sempre em busca de algo, sempre iniciando algo,
sempre prontos para alguma coisa. Há uma fonte central de energia no
organismo humano. Essa fonte é uma função do organismo como um todo, e
não de uma parte dele. A maneira mais simples de conceituá-la é como uma
tendência à plenitude, à auto-realização, que abrange não só a manutenção
mas também o crescimento do organismo (p. 44).
9 Contribuições para uma psicologia do funcionamento pleno da pessoa
Esta concepção do ser humano em sintonia com o universo inteiro foi apresentada
por Thorne (2002) e esclarece o sentido da mística presente na Psicologia:
Estar ‘vivo’ é arriscar estar plenamente presente para o outro na convicção
que podemos confiar no cerne de nossos próprios seres. Somos membros uns
dos outros e somos feitos para a comunhão, apesar de intransponíveis as
divisões possam aparentar [...] Fui obrigado a reconhecer que a era dos
milagres não passou e que falar da terapia centrada na pessoa como uma
disciplina espiritual e apreciar seus praticantes como místicos práticos não é
apenas cabível, mas completamente apropriado.
Cavalcante Junior (2005) considera a pessoa nas suas múltiplas dimensões, biopsico-sócio-espiritual. Percorrendo as interconexões do seu método (Método (Con)texto de
Letramentos Múltiplos), definido em três fases de trans-form-ação, é possível perceber um ser
em processo de tornar-se cada vez mais pleno. Na fase intra-subjetiva “o leitor encontra, na
experiência do outro, um convite à leitura de si mesmo e de suas singularidades” (p. 15). Na
fase inter-subjetiva a escrita de si é compartilhada com uma “comunidade de leitores e
escritores, sem julgamentos” (p. 16). Na última fase, a trans-subjetiva,
a conexão não se intercorre com um único outro, seja a minha própria
subjetividade perdida, seja um terceiro em sua profunda complexidade, mas
a relação é dada com todos os outros que compõem um universo maior.
Suspendemos a percepção de um eu isolado, considerando, então a
existência de uma coletividade convivendo com tudo e todos (p. 20).
10 Misticismo e cura
A partir desta sintonia com o todo, compreendemos que muito do que é praticado
no Espaço holístico das Filhas de Santa Teresa está expresso no cuidado respeitoso com o
universo e com cada ser tocado pelas mãos ágeis e habilidosas das Irmãs que infundem vida e
261
cura. A própria Tereza (1983), patrona e inspiradora do Instituto, reconhece as propriedades
curativas de quem se dispõe a fazer um caminho místico de oração. Ela afirma que, ao atingir
o quarto grau de oração, a pessoa orante “Por enferma que estivesse, melhorava muito” (p.
140).
Percebemos que a temática de propriedades curativas também está presente na
experiência de Rogers (1983):
Quando estou em minha melhor forma, como facilitador de grupo ou como
terapeuta, descubro uma nova característica. Percebo que quando estou o
mais próximo possível de meu eu interior, intuitivo, quando estou de algum
modo em contato com o desconhecido em mim, quando estou, talvez, num
estado de consciência ligeiramente alterado, então tudo o que faço parece ter
propriedades curativas. Nestas ocasiões a minha presença, simplesmente
libera e ajuda os outros (p. 47)
Considerações finais
A abertura que caracterizou a imersão etnográfica no Centro de cura holística nos
permitiu tecer as várias ligações presentes neste texto. Partimos da surpresa em relação ao
jardim e à natureza que caracterizou os nossos contos de campo. Depois, foi possível utilizar a
metáfora do jardim para nos deixar enriquecer pela novidade e pela beleza mística que marca
a poesia de Cecília Meireles presente na abertura do texto. O jardim, de fato, tornou-se tão
amplo quanto o universo, esboçado no mistério do “Sem-fim”. Neste imenso jardim é
possível vislumbrar a borboleta que encantou Carl Rogers na sua adolescência e enfeitou a
poesia de Cecília Meireles. O paradigma ecológico apresentado nos permitiu considerar os
quatro níveis de oração em Santa Teresa como uma forma de holismo e a tendência formativa
em Rogers como uma aproximação clara de experiência mística. Foi então que Cavalcante
Júnior nos fez tocar a beleza do ser humano, como tocamos uma flor desabrochada exalando
uma deliciosa fragrância.
Um desejo presente em cada um de nós pesquisadores, ao concluir a nossa
imersão etnográfica, foi o de viver, sentir, partilhar e expandir o nosso saber psicológico para
que todos os seres possam florescer e funcionar de maneira plena.
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263
DÁDIVA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO DIVINO NO
NEOPENTECOSTALISMO
Prof. Dr. Drance Elias da Silva491
RESUMO: No Neopentecostalismo, a exemplo da Igreja Internacional da Graça de Deus, todo o
caminho que vai demarcando a prosperidade financeira se ancora em certa representação do divino, a
qual mobiliza o ofertante a agir corretamente, em benefício de sua conquista financeira. Esse artigo
reflete algumas das mais significativas imagens acerca de Deus, decorrente da práxis religiosa
expressa nos discursos de fiéis membros da referida instituição. Palavras-chave: Representação
social, mobilidade, dádiva, prosperidade, imagens de Deus, oferta, Igreja Internacional da Graça de
Deus.
ABSTRACT: In the Neopentecostalismo, the example of the International Church of the Favour of
God, all the way that goes demarcating the financial prosperity if anchors in certain representation of
the the holy ghost, which mobilizes the ofertante to act correctly, in benefit of its financial conquest.
This article reflects some of the most significant images concerning God, decurrent of the práxis
religious express in the speeches of fidiciary offices members of the related institution. Keywords:
Social representation, mobility, gift, prosperity, images of God, offer, International Church of the
Favour of God.
Introdução
Quando nos situamos no campo da Sociologia das Representações, isso implica
saber formas de conhecimento sobre a realidade social. Por exemplo, diz-se normalmente e
com razão que a representação social é apreendida na conversa da vida cotidiana. Por isso
uma das suas características fundamentais é a de ser um conhecimento prático elaborado
segundo lógica própria, no sentido de uma ação (Cf. JODELET, 1996; SPINK;
GUARESCHI, 1995). Assim, as representações sociais, ao se expressarem com dinâmicas,
fazem os indivíduos produzirem formas criativas de relacionamentos com o meio onde vivem.
O deus da experiência religiosa neopentecostal parece ser um que não condena; ao
contrário, é benevolente, ajuda os fiéis na melhora deles mesmos. A representação do referido
ser é dinâmica e exige mobilidade de quem a ele se dirige. Isso para ser uma representação
bem compartilhada, pois o crente precisa “dar-se”, o que se impõe, automaticamente, como
491
Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) onde desenvolveu a tese “A Sagração do Dinheiro no Neopentecostalismo: Religião e
Interesse à Luz do Sistema da Dádiva. Atualmente é professor do Departamento de Teologia e do Mestrado de
Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Assessor Pedagógico da Área de
Sociologia e Religião da Secretaria de Educação e Cultura do Município do Jaboatão dos Guararapes”. O
presente artigo é parte do capítulo 8 da tese acima mencionada (p. 235). e-mail: [email protected]
264
pressuposto à realização das bênçãos. Um deus que exige mobilidade impulsiona o fiel a um
fazer em que tal experiência demarque a sua vida como novo despertar espiritual da fé:
Eu sinto vontade de participar. Esses desafios é para que você se fortaleça
cada vez mais; para que você busque cada vez mais a luz do Senhor. Quando
o pastor lança, eu sinto vontade cada vez mais de lutar, de prosseguir e da
certeza da vitória [...] (Entrevista) 492 .
Deus tem de encontrar em cada um uma disposição, um espírito de guerra,
de determinação; se tiverem esse espírito, tudo vai dar certo e as bênçãos
chegarão. (Relato de campo).
Esse despertar espiritual da fé é para a “luta”, disposição que manifesta o espírito
de guerra. Deus o mobiliza, poderosamente, por dentro de sua própria experiência, fazendo-o
aquilatar a certeza da vitória. Aceita-se vitória como prosperidade financeira considerada um
direito divino; as bênçãos se apresentam como moeda divina. Assim, Deus mobiliza a todos
para serem atendidos no que Ele retém, mas que os libera mediante o aceite do desafio –
trazer as ofertas em sacrifício. Essas não são ornamentos da nova fé, que agora se expressa,
porém condição essencial para ela, pois a experiência de Deus no Neopentecostalismo, para
fazer sentido, exige que a fé demonstre disposição para dar, e deve o crente tomar isso para si
como uma guerra. Sentir a presença de Deus como ser atuante na vida pressupõe, da parte do
crente, “uma vontade de participar” daquilo que o próprio Deus fez estabelecer por meio do
pastor, o qual, no modelo discursivo institucional, é seu porta-voz.
1 Imagens de Deus no Neopentecostalismo
A representação social do divino no Neopentecostalismo tem uma feitura, também,
a partir da experiência dos indivíduos, conforme acima verificamos, pela qual a instituição,
por certo, se deixa moldar. Há uma relação de mútua influência depreensível nas citações
acima. O segundo parágrafo da entrevista descreve a sistematização “oficial” de uma imagem
que percebemos presente no discurso institucional; no entanto, ambas fortalecem a
perspectiva religiosa fundamental: prosperidade individual para o crescimento da obra, para o
outro. Porém uma questão convém aqui pontuar:
As relações humanas com Deus podem ser observadas de maneira
fenomenológica ou de maneira religiosa. A relação fenomenológica depende
da experiência individual prática. Já a relação religiosa depende de
formulações institucionalizadas, que podem influir sobre a forma como as
pessoas vivem a experiência divina, uma vez que o religioso atinge o homem
492
As entrevistas e os relatos de campo citados nesse artigo foram realizados junto a Igreja Internacional da
Graça de Deus, na cidade do Recife, durante o estudo de doutorado concluído em 2006 na Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE (Cf. SILVA, 2006).
265
através de mediações culturais. Existem inúmeras imagens de Deus, mesmo
em uma única religião. A tendência, porém, é ajustar-se a uma imagem só, a
predominante naquela religião, com o objetivo de encontrar uma
representação coerente para a relação de Deus com o mundo (DILLON ;
RAMOS, 2003, p. 39).
Poderíamos apontar, exemplificando certa diversidade de representações acerca
do
divino,
as
quais,
sabemos,
estão
subjacentes
à
prática
sociorreligiosa
do
Neopentecostalismo, embora tais imagens deitem suas origens numa única expressão
neopentecostal, porém as mais significativas circulam por todo o campo neopentecostal493:
“Deus como provedor de bênçãos e de sucesso”.
“Dono de todo ouro e toda prata”; “Um Deus de posse”.
“Deus que exige prova e sacrifício”.
“Deus de tudo ou nada”.
“Deus do altar”.
“Potência que restitui a oferta”.
Essas múltiplas imagens sugerem um deus de força, de prova e de poder; a sua
invocação mobiliza o fiel ao seu encontro. Essa também foi a imagem que encontramos
subjacente a pratica religiosa da Igreja Internacional da Graça de Deus. A representação de
um deus a exigir “mobilidade” requer que o fiel não meça o tamanho do sacrifício a fim de
desfrutar do propósito divino: entre outras coisas, restituir graças aos fiéis, conforme suas
ofertas. Dar, receber, retribuir configuram o sistema que mobiliza, faz circular, que exige, por
exemplo, do indivíduo integrante do círculo sair de si. Há, por certo, uma construção social da
idéia de Deus na experiência neopentecostal, mas o indivíduo, na sua experiência, deve estar
motivado para cultivar a representação que, primeiro, não se coloque eqüidistante do laço
coletivo e, segundo, o direcione a tomar iniciativa na busca de seus propósitos.
O “espírito de guerra” sugere a representação de Deus moldada pela instituição,
que requer, da parte de quem n’Nele, crê, um lançar-se aos desafios paulatinamente propostos.
A escolha fundamental, ante a força dessa imagem, é derrotar o inimigo que impede a
circularidade do dom, pois “dar” é a arma estratégica para libertar quem está tomado pela
dúvida e desconfiança e, ao mesmo tempo, liberar em Deus os frutos de sua posse, que são
abundantes. Dar, ato primeiro deixa, como dívida nas mãos de quem recebe, a possibilidade
concreta de transpor certa distância, de pôr fim ao estranho e passar a compor um vínculo que
vai sendo mantido pela forte presença de quem, através do dom, também dá de si mesmo. Isso
acontece com a oferta de um sacrifício ou de simples oração. Dar é entregar-se à força do
493
Cf. SILVA, 2000, p. 77; 91; 104; 106; 136.
266
círculo. Em experiência religiosa em que a representação de Deus sugere “disposição” e
“luta”, não se pode continuar vivendo sob a força de uma inércia a impedir transpor-se o
abismo imposto pela distância, impossibilitando de se ver que o fundamento de nossa
existência reside em dar para que o outro dê. Trata-se, portanto, não só de uma questão
antropológica, mas também sociológica, porque um dos pressupostos para nossa existência é a
relação. Isso até porque “dar para que o outro dê” é uma das linhas que costuram o vínculo
social, ao mesmo tempo em que, quando este se rompe, é por aquela cerzida.
2 Um Deus inconformado, disposto e guerreiro
Dissemos que há inúmeras imagens de Deus, mesmo em uma única religião. Os
indivíduos, em suas experiências religiosas pessoais, mesmo contribuindo, de forma
autônoma, na produção social dessa diversidade representacional, vão, aos poucos, se
ajustando àquela imagem que mais os impulsiona a manter a fé e a alimentar a esperança. E
não há uma representação mais compartilhada entre os neopentecostais – tomando-se por
referência a instituição aqui pesquisada e os adeptos do seu pertencimento – do que aquela em
que Deus se apresenta como quem não aceita o “inconformismo”:
[...] e grita afirmando que a “palavra” diz: “não vos conformeis”. E pergunta
como Deus pode dar mais a alguém que acha que tudo está bom? E
aconselha: “transformai-vos pela renovação da vossa mente. Você tem a
palavra e poder de Jesus e também o seu Espírito. Contra isso não tem poder.
O que Deus pode fazer se você está conformado? Não aceito o fracasso, não
aceito a derrota. Você tem um guerreiro dentro do seu peito, e Ele não quer
que você fique conformado (Relato de campo).
Observamos que essa imagem se propaga ao longo de todo o ensinamento,
expressa por meio de frases, como: “ser mais valente do que o valente”; “perseverar e trazer a
consagração”; “não diga não posso”; “mantenha sua fé em ação”; “aconselho que todos
devem determinar sua luta e que sem a luta não há glória em Jesus”; “se a pessoa está
desempregada, que vá a luta”; “Deus tem de encontrar em cada um disposição”. E mais: em
meio às entrevistas, encontram-se expressões assim: “Eu sinto hoje que luto mais”, “Ele
convoca o povo para fazer um desafio [...]. Eu fico afrontado”; “o desafio é para que você se
fortaleça”; “então por que eu vou me negar a participar”; “tem que trabalhar e conseguir até
mais"; “Deus faz prova em todo mundo”. Todas essas imagens-força estão a nosso ver,
ajustadas a uma representação de Deus, que é “disposição”, “desafios” e “inconformismo”,
logo, guerreiro – o que o fiel tem dentro do peito. O fiel neopentecostal – podemos afirmar –
esgrime a espada da fé movida pela força de tal representação contra o fracasso e pelo
267
reconhecimento, contra o fracasso e pela doação, contra o fracasso e pela prosperidade. A luta
contra o fracasso estaria, nessa perspectiva, disposta à luz do movimento do dom: a) dar, para
que haja o reconhecimento; b) receber, para que se possa dar; c) retribuir, porque se prospera.
Dar, para que haja o reconhecimento: “Oferto também meu tempo, meu tudo,
porque ser crente não é ser crente só na igreja”, diz o fiel numa entrevista. Ser crente é, antes
de tudo, ser reconhecido. O lugar de pertencimento religioso, de per si, não basta para conferir
o reconhecimento. “Ofertar” significa mais do que pertencer a um único lugar, porquanto
extrapola o limite do espaço, do tempo e da quantidade. Dar é uma experiência abrangente
que requer a pessoa toda em empenho – atitude possível, porque a força da imagem religiosa,
na intensidade e importância de sua projeção, leva o indivíduo à busca positiva na relação
com o mundo:
Curas, recuperações, e outras mudanças benéficas de vida estão
freqüentemente associadas seja com a entrada, ou descoberta, por parte de
quem vive essas experiências, da sua própria espiritualidade e religiosidade,
seja por mudança na concepção de Deus, na direção de um Deus que é amor,
que salva, que ajuda.
A imagem de Deus não tem existência limitada ao universo religioso.
Existem, também, fora das religiões organizadas e dentro das pessoas. Os
fenômenos religiosos vivem dentro da mente humana e afeta as pessoas, seu
quotidiano, sua saúde, seu bem-estar, sua vida. (DILLON ; RAMOS, 2003,
p. 53).
A imagem de um “deus guerreiro” que o fiel neopentecostal tem dentro do peito o
mobiliza a agir em prol de si ou de uma coletividade afetiva, como a família. Esta é
apresentada como experiência de base para efetivação de sujeitos que se confirmam
mutuamente, sobretudo porque aí, por meio da dedicação amorosa vivenciada, “os sujeitos se
sabem unidos no fato de ser dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro”
(HONNETH, 2003, p. 160). É muito comum, entre os neopentecostais, a família aparecer
como referência mais significativa nos pedidos de bênçãos494. Ser crente significa sê-lo
também na família, prevenindo-a da mais indesejável situação: chegar ao “fundo do poço”495.
494
Machado, (1996, p. 87), a propósito de “Conversão e adesão religiosa: justificativas e conseqüências”, lembra
uma hipótese plausível que norteia reflexões acerca dos efeitos da conversão ao Pentecostalismo nas relações
intrafamiliares no Brasil: “a influência positiva da conversão a este tipo de expressão religiosa sobre a vida
familiar, diminuindo os conflitos e consolidando este pequeno grupo social”. Essa hipótese, observa a autora,
“pode ser encontrada no trabalho de Willems (1967), cujo argumento central é o de que as orientações morais e
padrões de comportamento estimulado pela doutrina pentecostal se afastam muito da tradicional divisão de
papéis na família, fortalecendo a posição da mulher e atenuando o comportamento aventureiro dos homens”. A
nossa questão, porém, não é a conversão, mas a força da representação que se verifica após a mudança de
concepção de Deus, através do qual a relação com o mundo, com as pessoas, com as coisas parece mais eficiente
hoje, haja vista forte recuperação da auto-estima e do desejo como segredo essencial e atuante da religião.
495
Expressão muito usada nas reuniões evangélicas neopentecostais, para dizer sobre a situação de um
determinado fiel que ali chegara antes das conquistas. O “fundo do poço” é caos, por exemplo, econômico-
268
3 Prosperidade e testemunho
A perspectiva da prosperidade tem que começar a construir seu ninho com o
resgate moral da família. Então, nova referência ético-religiosa sempre é bem-vinda, quando,
por meio dela, os sujeitos concretos voltam a se reconhecer a partir de nova esperança.
Mesmo parecendo, às vezes, para alguns, um tanto confusos, os vários testemunhos de um
membro durante o dia-a-dia da vida intrafamiliar vão contaminando a todos até conquistar
conversões:
Já recebi várias bênçãos. Primeiro, a minha salvação, porque eu achava que
eu nunca ia mudar e mudei; segundo, quando eu comecei a freqüentar a
igreja, e, por ser já uma igreja nova, causou uma grande polêmica na família,
principalmente com o meu pai, que não aceitava que eu mudasse tão rápido
assim. Hoje meu pai já está na igreja; teve um tempo que meu irmão quebrou
a bacia [...] e, ao ir para a igreja, veio depois andando para casa. Agora
mesmo, meu outro irmão estava com um caroço na perna e o médico achava
que poderia ser um câncer. Só que o dia em que foi fazer a operação, o
médico viu que não era nada [...]. Como a gente crê, esse mal não entrou na
nossa casa (Entrevista).
As bênçãos recebidas, por sua vez, não são apenas agradecidas: a cada vez que se
testemunham, constituem, fortemente, o segundo laço do espírito do dom:
Recebe-me (donatário).
Doa-me (doador)
Doando-me me terás de novo (MAUSS, 2003, p. 282).
Um deus que se localiza no peito, provavelmente do lado esquerdo, exigindo “o
tudo” do fiel doador, bem sabe este que, continuar dando – mais ainda em sacrifício – é a
possibilidade de se manter no vínculo, pois, de outra forma, não se recebe. O que foi dado
volta e, segundo a fé neopentecostal, em dobro. Receber é a consagração do reconhecimento,
porém jamais sem que não tenha sido decorrente de algo dado. Na esperança neopentecostal,
o retorno é sempre esperado, mas não se sabem o dia e a hora. Por isso permanecer dando
(claro, nunca esqueçamos: prioritariamente, o dinheiro) significa impossibilidade de os
sonhos naufragarem e, muito menos, de ter as mãos quebradas (quando o fiel for reconhecido,
porque recebeu, poderá bater no peito, afirmando que o sacrifício é o pai da abundância). A
representação do divino como guerreiro se concretiza nas ações, demonstrando atitude ativa
financeiro na vida individual ou nos negócios, caso seja um pequeno ou médio empresário; o desespero familiar
como conseqüência de freqüentes desajustes ou rompimentos. Esse testemunho é representativo da incapacidade
de dar, pois a posse e o usufruto de realidade material mínima estão trancadas nas mãos de forças demoníacas.
Tal condição degradante de vida precisa, urgentemente, ser resgatada. A Igreja mostrará o caminho e Deus
proverá com suas bênçãos, ao abrir as portas dos céus e derramar, com abundância, suas bênçãos.
269
na perspectiva de estabelecer e recompor proximidades interpessoais, principalmente, no seio
familiar. Ser crente é sê-lo também fora da igreja. E a família é um alvo importante, núcleo
organizacional humano a ser tomado como investimento da ação religiosa, uma vez que a
perspectiva da instituição é também promover a consolidação na esfera doméstica, por meio
da filiação religiosa. Daí encoraja-se o novo crente a tal empreendimento; para tanto, vale o
sacrifício individual. Todavia, o estandarte, que vai à frente abrindo as portas nessa direção, é
o testemunho da prosperidade sob a força, agora, de novo deus a ser experienciado. E a
retribuição testemunha tal prosperidade que, mesmo apresentada como retorno individual,
deve ser lançada, pois, como uma pedra na água, formará ondas de propagação,
testemunhando um deus de conquista. Logo, retribuir é “devolver a ele uma oferta pelo que
ele fez”, afirma um entrevistado.
A representação do divino assim concebida no Neopentecostalismo e, mais
especificamente, na expressão religiosa aqui pesquisada – Igreja Internacional da Graça de
Deus –, revela que nada é contraditório na relação Deus e dinheiro, na medida em que este – o
dinheiro – é consagrado, depositado em altar e, em seguida, consumido como oferta de
sacrifício. Há, pois, um elo nessa relação que não é de hoje nem é pequena, haja vista a
grandeza dos significados que resgatam a positividade desse elemento chamado “dinheiro”,
que, desde sua invenção, não tem sido fácil sua convivência nem com seu criador – o próprio
homem –, nem, muito menos, com as religiões, por tentarem livrá-lo do estigma do mal a ele
conferido e, assim, poderem aceitá-lo em seu espaço, sem drama de consciência:
[...] o dinheiro não é uma coisa ruim como muitos pensam. Eu já disse que é
necessário. Deus até nos aumenta quando a gente dá.
[...] o dinheiro não é coisa ruim, não. Eu digo o seguinte: se a gente não
tivesse Jesus e o dinheiro, a gente não era nada. Mas é com o dinheiro que a
gente compra as coisas pra gente? Quando a gente dá na igreja e dá para
Jesus e dá com o coração da gente, a nossa fé tá junto.
[...] a oferta é um tipo de louvor não só com meus lábios, mas com minha
atitude [...] (Entrevistas).
É preciso ter o divino como guerreiro, para se ter atitude e dar. Com o dinheiro,
louva-se a Deus, desde que ofertado – distintivo da pessoa crente, pois a fé está junto ao
tesouro e bem atenta à voz que sai do coração. A relação com o divino, na experiência
religiosa neopentecostal da Graça, se concretiza quando a prática religiosa louva a Deus,
dizendo (= lábios) e se dispondo (= atitude). Essa experiência humana do dízimo mostra uma
religiosidade impulsionada pela força da imagem que faz aproximar dinheiro e Deus,
permeando, positivamente, a experiência do fiel. Em tal relação, existe sentimento de unidade
270
e quase ausência de fronteiras. O dinheiro não bloqueia a relação com Deus; revela-se, no
mínimo, mediação até Ele, por se constituir em sacrifício, quando ofertado. Relação simbólica
por certo, mas alimentada de um desejo profícuo: vencer uma das mais árduas batalhas
humanas contra o demônio496, porque este protela a conquista de prosperidade, agindo no
coração do crente, pondo dúvidas para que não se dê, nem doe de suas posses, trancando,
assim, a vida, ao separá-la das bênçãos divinas.
A representação do divino como guerreiro que está dentro do peito firma a força
do objeto chamado dinheiro, materializando-o, por meio dessa representação, no sacrifício
que se deseja consagrado, para cumprir, plenamente, no cotidiano neopentecostal, uma de
suas poucas funções: libertar os fiéis dos danosos infortúnios. Para tanto, a oferta é,
nomeadamente, um dos poderes eficazes. O dinheiro como oferta é objeto alienado, porém aí
existe uma questão de fundo que Godelier (2001, p. 183), ao estudar os baruyas, destaca por
referência e, para nós, também se presta à comparação com a experiência da oferta
neopentecostal:
[...] logo, não é o objeto apropriado que é alienado, são seus efeitos. O
objeto, este permanece imóvel entre as mãos do clã, fixando-o em seu lugar,
ligado ao sol e a seus ancestrais; o que se desliga dele, o que é alienável,
doável, trocável mesmo, não são os seus poderes, que permanecem ligados a
ele, mas os efeitos desses poderes [...].
Embora o benefício da oferta recaia sobre a vida de um só indivíduo, o
testemunho é a garantia de sua partilha, pois o benefício maior a ser obtido de um deus que
guerreia em favor dos despossuídos é ter a vida libertada das garras do demônio. Todo grupo
deve partilhar de tal benefício: “a vida desamarrada”. O dinheiro consagrado e ofertado
pertence a Deus, que, como legítimo proprietário do sacrifício, decide a condição de sua volta,
a qual se dará por meio de bênçãos. Estas configuram, de forma significativa, o imaginário
dos membros da comunidade religiosa, constituindo-se, destarte, na crença de maior grandeza,
porquanto deseja-se que seja derramada sem medidas. A crença nas “bênçãos” decorrentes da
oferta fundamenta as relações constituídas no espaço eclesial entre homens e mulheres,
porque a permanência no referido laço de fé se manterá até quando persistir a representação
divina que paira por sobre coisas humanas, fazendo-as transcender e consagrar-se. A bênção
como representação da prosperidade proveniente do seio mesmo do sagrado transcendente é o
496
Os evangélicos neopentecostais, na busca por salvação e prosperidade, jamais hão de livrar-se da presença
atuante, segundo eles, do demônio. Deixar de admitir a presença dessa personagem seria o mesmo que não ter
mais o que combater e cairia por terra qualquer justificativa que pudesse afirmar vitórias e conquistas, como
esperança maior, na vida desses crentes “novos”.
271
pivô da construção da realidade social dos neopentecostaais: ela sinaliza a realização do
desejo.
Sem dúvida, todos os objetos materiais fabricados pelo homem são misturas
de realidades sensíveis e inteligíveis, de ideal, de cultural incorporado na
matéria. Não estamos tratando aqui de objetos culturais em geral, mas de
objetos sagrados em particular. Estes podem se apresentar como fabricados
diretamente pelos deuses ou espíritos, ou pelos homens sob indicação dos
deuses ou dos espíritos, mas em qualquer caso os poderes neles presentes
não foram fabricados pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais,
dons de poderes presentes doravante no objeto (GODELIER, 2001, p. 206).
Conclusão
O dinheiro ofertado é dinheiro transformado. Quando aludimos, à representação do
dinheiro como “ferramenta de Deus”, visamos a demarcar que tal representação carrega um
sentido fortalecido, também, pela representação do divino como referência no imaginário
coletivo da expressão religiosa da Graça. O dinheiro é uma invenção humana, mas,
transformado em ferramenta de Deus, parece estar, agora, especializado numa função que
transcende para a direção de objeto sagrado. Assim, pode influir, segundo a instituição que lhe
confere tal ordem de valor, no jogo de interesses cotidianos de todos aqueles que expressam
sua fé com profundo inconformismo material. Por conseguinte, almejam bênçãos, algo
necessário a sua estabilidade social.
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GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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272
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SPINK, Mary Jane (org. ) O conhecimento no cotidiano. São Paulo: Brasiliense, 1995.
273
CAMINHO DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS:
Tentativas de Compreensão do seu Crescimento no Campo Religioso Brasileiro497
Esdras Gusmão de Holanda Peixoto
RESUMO: Este artigo procura investigar como se deu a consolidação do pentecostalismo dentro do
campo religioso brasileiro. Demonstra as contribuições explicativas da ecologia humana e do conceito
de anomia para o entendimento da origem do Pentecostalismo. Procura ainda situar as afinidades entre
os pentecostais e a Matriz Religiosa Brasileira. Por fim, considera outros referenciais para o surto de
crescimento pentecostal nas últimas décadas sem recorrer aos conceitos funcionalistas. Para tanto,
segue o caminho percorrido pela Assembléia de Deus. Palavras-chave: Campo religioso brasileiro –
Pentecostalismo – Assembléia de Deus.
ABSTRACT: This article looks for to investigate as if it inside gave the consolidation of the
Pentecostalism In Brasilian Religious Field. It demonstrates the explicatives contributions of the
human ecology and the concept of anomie for the areement of the origin of the Pentecostalism. It still
looks for to point out the affinities between the pentecostals and the Religious Matrix for occasion it of
Pentecostal growth in the last ones decades, without appealing to the funcionalist concepts for in such
a way, follows the covered way for the Assembly of God. Key-words: Brazilian Religious Field,
Pentecostalism, Assembly of God
Situada naquilo que a Sociologia da Religião brasileira convencionou classificar
como Pentecostalismo clássico498, a Igreja Evangélica Assembléia de Deus é o ramo mais
bem sucedido do espectro pentecostal do Brasil. Dados estatísticos do último censo do
IBGE499 dão conta de que 8.418.154 de brasileiros são adeptos da Assembléia de Deus. Em
números percentuais representam 47,47% do total de evangélicos pentecostais. Números
bastante consideráveis. Entretanto, olhando com as lentes do presente as fontes do passado,
verifica-se que esse dado não é assim tão surpreendente quanto às cifras parecem querer fazer
crer. Já nas décadas de 1970, Cândido P. F. de Camargo expõe uma tábua de adeptos das
diversas tradições ligadas ao protestantismo que registram um vertiginoso salto do continente
assembleiano no Brasil de 14.000 membros, em 1930, para 1.400.000, em 1967 (1973, p.
122)! Diga-se de passagem, aludindo novamente ao censo, que está na casa de 18 milhões o
número dos pentecostais brasileiros. Isso porque após a década de 1960 as grandes
denominações tradicionais do protestantismo da missão passaram por surtos cismáticos
provocados pelos movimentos de renovação. Desse modo, um adepto da igreja metodista
497
As idéias deste artigo são retiradas da pesquisa Rupturas e continuidade na hinologia pentecostal: o
imaginário do cancioneiro pentecostal brasileiro, conduzida pelo autor e orientada pelo Prof. Dr. Gilbraz de S.
Aragão.
498
Cf. BITTENCOURT Filho, in Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social. Petrópolis: vozes;
Rio de Janeiro: Koinonia 2003, p. 117., bem como Ricardo Mariano in, Neopentecostais: sociologia do novo
pentecostalismo no Brasil. São Paulo, 1999, p. 28-32. E ainda Paul Freston, Breve história do pentecostalismo
brasileiro, in, ANTONIAZZI, Alberto. [et. al.] Nem anjos, nem demônios: interpretações sociológicas do
pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 67-159.
499
Censo populacional de 2000, dados contidos in JACOB, César Romero... [et. al.] Atlas da filiação religiosa e
indicadores sociais no Brasil. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
274
wesleyana, embora afirme sua pertença metodista quando perguntado por sua filiação
religiosa, e seja computado como um protestante histórico é na prática um pentecostal.
Levantamento realizado por um dos maiores seminários de teologia norte
americano, o Gordon-Conwell, desvinculado de qualquer confissão cristã, noticiado pela
Folha de São Paulo, indica que o Brasil, com 24 milhões de praticantes, é a maior nação
pentecostal do globo (notícia de 29/01/2007). Mas, como é que as Assembléias de Deus
vieram a se tornar a maior expressão daquilo que Rolim (1994) chama de subcampo
pentecostal? Necessária se faz uma caracterização dos movimentos que lhe possibilitaram o
surgimento, bem como do espaço, do tempo, da teologia e da sociologia que conferiram e
ajudaram a explicar o contorno que o pentecostalismo brasileiro veio assumir.
As Assembléias de Deus chegaram ao Brasil no início do século passado, como
conseqüência da convergência de vários movimentos religiosos e econômicos que tinham seu
epicentro nos Estados Unidos. O primeiro desses movimentos é o missionário, que marcou
fortemente o século XIX, principalmente em sua segunda metade. A Inglaterra vitoriana, que
buscou criar um ambiente moralista, pudico e religioso, foi um dos protagonistas da afinidade
que se criou entre expansão da fé protestante e imperialismo. O outro personagem destacado
desses acontecimentos foram os americanos David J. Bosch, historiógrafo das missões cristãs,
assim retrata o contexto norte-americano que embalou o movimento missionário:
[...] O ânimo na terra das oportunidades e da esperança era mais otimista.
Em consonância com isso, a posição teológica dominante em quase todas as
denominações protestantes era explicitamente pós-milenarista500.
[...] Os eventos da época fizeram com que a remota possibilidade do milênio
parecesse muito próxima. O reino de Deus, porém, não invadiria a história
como uma catástrofe, mas se desdobraria gradualmente e amadureceria de
maneira orgânica. Estamos diante do velho ideal puritano redivivo.
[...] As paixões perversas desvaneceriam paulatinamente. A licenciosidade e
a injustiça desapareceriam. As contendas e as dissensões seriam eliminadas.
Não haveria mais guerra, fome, opressão ou escravidão, nem nos Estados
Unidos nem nas áreas de missão. Os americanos se viam como
inauguradores de uma nova ordem que perduraria durante séculos (BOSCH,
2002, p. 343).
500
A controvérsia teológica sobre a questão do milênio gerou três posicionamentos diversos: amilenarista, pré e
pós-milenarista. Henri Desroche, na introdução de seu Dicionário de Messianismos e Milenarismos, publicado
pela Umesp, assim descreve o pós-milenarismo: “1. O reino de Deus instaura-se progressivamente por
intermédio de um processo evolutivo, integrando-se ao encadeamento dos fatos históricos (sociais e
eclesiásticos) e orientando o mundo, pela lógica interna de sua evolução social e religiosa, em direção a um
ponto em que, a exemplo da árvore que dá um fruto, ele produzirá o reino milenário ou messiânico. 2. A ação do
homem animada e controlada pela religião não apenas deixa de se opor a essa chegada última. Por sua própria
natureza, ela acelera seu ritmo. O milênio em todo caso, vem depois (após) desse esforço humano coletivo que é
uma de suas condições prévias”. (DESROCHE, 2000, p. 37). É importante destacar, para evitar equívocos, que o
pentecostalismo é marcantemente pré-milenarista.
275
O clima de confiança do sucesso do empreendimento missionário não se arrefeceu
sequer pela divisão das grandes denominações americanas ocorrida pela questão da
escravidão (que conduziria gradualmente, como se verificaria no correr do século XX, a
vertente liberal do Norte encampar as bandeiras do ecumenismo e do evangelho social,
enquanto que o Sul daria luz ao fundamentalismo). É emblemático o lema da Federação
Mundial de Estudantes Cristãos, entre 1880 e 1890, “A evangelização do mundo nesta
geração”, que bem retrata a efervescência da idéia missionária.
Outro movimento que contribuirá para o aparecimento do Pentecostalismo
tupiniquim, ainda que de modo indireto, é o fortalecimento da indústria americana,
notadamente da indústria automobilística. No período compreendido entre 1860 e 1910 o
maior fornecedor mundial de borracha, com seu ímpeto demográfico no Norte e Nordeste
brasileiro e sua repercussão nas páginas de economia dos jornais da região de Chicago, que
ajudou a configurar e consolidar o Pentecostalismo brasileiro.
Destaque-se primeiro a questão do fluxo migratório. “A borracha estava destinada
nos fins do século XIX e começo do atual (sic), a transformar-se na matéria-prima de procura
em mais rápida expansão no mercado mundial”, é o que informa Celso Furtado (2002, p.
130). A elevada demanda do produto orgânico exigia um monumental incremento da mão-deobra para o setor extrativista. Ocorre que a população da região Norte do Brasil, naquele
período, era insuficiente para dar conta do volume necessário para abastecer o mercado
mundial da borracha. A grande seca que acometeu o Nordeste, nos anos de 1877 a 1880, foi a
motivação necessária para gerar aquilo que Furtado chama de “transumância amazônica”. Os
números indicam que a estiagem prolongada foi responsável pela morte de um contingente
humano que poderia chegar a duzentas mil pessoas, além da perda das lavouras e da
dizimação dos rebanhos. Assim, “o movimento de ajuda às populações vitimadas logo foi
habilmente orientado no sentido de promover sua emigração para outras regiões do país,
particularmente a região amazônica. A concentração de gente nas cidades litorâneas facilitou
o recrutamento”. (FURTADO, 2002, p. 133). Abarrotando as embarcações de modelo “ita”,
de posterior forma sendo cantada até em sambas enredo do carnaval carioca, os nordestinos
seriam os principais atores tanto dos seringais quanto da expansão pentecostal.
1 Ecologia humana, anomia e plaussibilidade
Outro detalhe de relevância é o contexto da cidade de Chicago. As condições de
vida e de trabalho naquela Chicago do século XX eram degradantes. A cidade vivia um surto
276
de influência de imigrantes europeus e asiáticos aos quais se adicionava milhares de negros
pobres oriundos do Sul dos Estados Unidos. O crescimento desordenado e a precariedade da
infra-estrutura tornavam a periferia proletária e popular da cidade local de constante ebulição
social. Desse mundo “urbanóide” norte-americano dos idos de 1900 são produtos tanto o
pentecostalismo quanto um capítulo particular da sociologia, que curiosamente, mas não
acidentalmente, teve seu nascedouro na mesma Chicago de Durham, Berg, Vingren e tantos
outros pioneiros do avivalismo pentecostal. Está se falando da Ecologia Humana
desenvolvida pela Escola de Chicago sob a direção de seu expoente maior, o sociólogo Robert
E. Park, a partir de 1915.
Entrelaçando estudos de Ecologia animal, Ecologia vegetal com as investigações
sobre a organização inconsciente da vida rural realizados pelo professor Charles J. Galpin, da
Universidade de Wisconsim, Park desenvolveu de maneira empírica, a partir do “cenário
biótico” que a cidade de Chicago lhe fornecia, aquilo que passou a ser conhecido como
Ecologia Humana501.
Este Aprroach teórico ocupa-se das chamadas comunidades “que surgem
automaticamente do simples fato de viverem juntos, na mesma área geográfica, indivíduos
tanto semelhantes quanto diferentes (simbiose), da competição em que eles se emprenham”
(PIERSON, 1964, p. 141). A rede de inter-relações que tem lugar numa dada comunidade é
ocasionada pelo processo de competição entre as partes que habitam o meio. A organização
resultante é biótica e não social, e será lastreada na interdependência dos indivíduos e na
especialização de funções.
Diferentemente do que acontece no tipo de agrupamentos humanos e de relações
sociais em que os vínculos são estabelecidos tendo com base as afinidades morais e apoiadas
na comunicação e no consenso, como é o caso das “sociedades”, nas “comunidades” a
coincidência do meio, o compartilhar de um mesmo habitat é o único fator preponderante para
o seu surgimento. Aqui, não haverá solidariedade, mas um processo de competição será
instalado. Esta concorrência poderá ser acirrada pelo acréscimo populacional ou agregação e
pela invasão ecológica, que é a penetração de um grupo estranho ao meio, como imigrantes e
retirantes.
A configuração sócio-demográfica de Chicago era de clara desestruturação, como
apontaram os estudos dos eco-sociológicos502, com aumento dos índices de delinqüência,
501
Cf. Donald Pierson. Teoria e pesquisa em Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 109-116.
Pierson informa ter sido Chicago “a cidade mais estudada do mundo”. In: ROBERT E. Park. Sociólogo
pesquisador. Sociologia, vol VI, n° 4. São Paulo: USP, p. 284-285.
502
277
muito em função da perda de controle social dos pais sobre os filhos, e da heterogeneidade
cultural que a massiva imigração imprimiu na cidade de Chicago. Perceba-se que os novos
habitantes da região de Chicago eram os europeus de países ainda predominantemente rurais e
os negros que abandonaram o Sul agrícola, tradicional e racista. Uma grande demanda de
mão-de-obra acarreta diminuição do valor pago a título de salário. Além disso, o universo
com o qual os recém-chegados se deparavam em tudo diferia de seu antigo mundo. A
adaptação ao novo era custosa e traumática. Não dispensava a anomia.
Sabe-se que a noção de anomia possui várias acepções, variando de acordo com o
autor, embora guarde uma essência que a torna traço comum facilitador de sua compreensão.
Em Robert Merton, por exemplo, acentua-se a idéia situa-se num plano micro, com seus
modelos de adaptação aos padrões socialmente valorizados: conformidade, inovação,
ritualismo, retraimento e rebelião503. Para fins deste trabalho, optou-se por uma concepção
mais clássica, a durkheimiana.
O projeto de Émile Durkheim procura responder ao questionamento dos
indivíduos numa dada sociedade, que mecanismos permitem essa integração, quais as
condições que as atividades desempenhadas dentro de um contexto social específico
possibilitam à manutenção de uma ordem social coerente e equilibrada. Estudando o problema
da divisão social do trabalho, o sociólogo francês assevera que o desregramento social é mais
sentido em sociedades que operam por meio da solidariedade orgânica, isto é, naqueles onde a
repartição do trabalho se dá por complementariedade, havendo uma maior margem para a
percepção e expressão da individualidade. Isso é o que, para Durkheim, caracteriza a
sociedade moderna e industrial, ao passo que em sociedades de organização menos
complexas, como é o caso das tradicionais (campesinas, por exemplo), o que se verifica é
maior coesão, já que a solidariedade é mecânica, havendo uma divisão do trabalho de menor
acentuação. Há, portanto, um efeito deletério de especialização.
A divisão do trabalho exerceria, pois, em virtude da sua própria natureza,
uma influência dissolvente que seria sensível, sobretudo, onde as funções
são muito especializadas (DURKHEIM, 1999, p. 373).
[...] se a divisão do trabalho não produz a solidariedade é porque as relações
entre os órgãos não são regulamentados, é porque eles estão num estado de
anomia (Idem, p. 385)
Pode-se dizer que havia um déficit de plausibilidade. Esse descompasso colocava
em risco o processo de socialização e integração daquela massa humana. “O êxito da
503
In: Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970, p. 212-230.
278
socialização depende do estabelecimento de uma simetria entre o mundo objetivo da
sociedade e o mundo subjetivo do indivíduo”, alerta Peter Berger (2004, p. 28). Os
angustiados e perplexos imigrantes e outros desamparados, como negros pobres oriundos do
Sul, demandavam por um mecanismo produtor de sentido. A lição de Berger torna essa
afirmação de difícil contestação: Os homens são congenitamente forçados a impor uma ordem
significativa à realidade. Essa ordem pressupõe, no entanto, o empreendimento social de
ordenar a construção do mundo (2004, p. 35)
Daí que
[...] os mundos são construídos socialmente e mantidos socialmente. Sua
realidade perdurável quer objetiva (como a facticidade comum, aceita como
óbvia) quer subjetiva (como a facticidade impondo-se à consciência
individual), depende dos processos sociais específicos, a saber, aqueles
processos que permanentemente reconstroem e mantém os mundos
particulares em apreço. Reciprocamente, a interrupção desses processos
sociais ameaça a realidade (objetiva e subjetiva) dos mundos em apreço.
Cada mundo requer, deste modo, uma “base” social para a sua existência
com um mundo que é real para os seres humanos reais. Essa “base” pode ser
denominada a sua estrutura de plausibilidade (2004, p. 58)
2 Teologia pentecostal e construção da realidade
Diz Pierre Bourdieu que “toda teodicéia é uma sociodicéia” (p.49). O
pentecostalismo empreendeu uma atividade de caráter nômico. Como toda e qualquer religião,
também a dissidência protestante pentecostal precisou formular o seu universo simbólico. Isto
equivale a dizer que a construção de uma realidade carregada de sentido era uma tarefa da
qual o pentecostalismo não pode se furtar de exercer. E o fez com particular êxito.
Berger e Luckman atestam que “o universo simbólico oferece ordem para a
apreensão subjetiva da experiência biográfica”, que “experiências pertencentes a diferentes
esferas da realidade são integrados pela incorporação ao mesmo envolvente universo de
significação” (1999, p. 134). Desta maneira, os processos simbólicos seriam engrenagens de
significação do cotidiano.
A mais singular doutrina pentecostal é a do batismo do Espírito Santo. Remonta
ao movimento de santidade encabeçado pelo Metodismo. Este batismo não se dá ao mesmo
tempo que o batismo nas águas ou no momento da conversão. É uma experiência distinta que
deve ser incessantemente buscada pelo fiel a fim de seu próprio benefício e maior edificação
da igreja. Explicam-se os assembleianos nos seguintes termos: “... o batismo do Espírito não é
idêntico com a salvação: a salvação só provém da fé, o batismo do Espírito, entretanto, é uma
279
benção que vem da salvação [...] vós que estais salvos, buscai o batismo do Espírito Santo”.504
O sinal que exterioriza a benção operada pelo Espírito Santo é o falar em línguas, ou o
comunicar-se em “línguas estranhas”. A conhecida passagem do livro neotestamentário de
Atos dos Apóstolos, capítulo 2, verso 4, serve como sustentação bíblica deste ensinamento
pentecostal.
Outra ênfase doutrinária reside na crença em curas milagrosas. Ora, se o Cristo é
hoje o mesmo de ontem e o será eternamente, então seus feitos prodigiosos, relatados nos
Evangelhos, podem ser repetidos em nosso tempo. Aqui, abre-se uma ampla conexão com a
mentalidade popular das camadas mais desfavorecidas da população brasileira que, lhes sendo
vedada o acesso aos serviços de saúde, manteve-se fiel ao costume de freqüentar rezadeiras e
benzedeiras além da prática das promessas dos santos de devoção em busca de uma graça.
Esta sintonia ajudar a explicar o sucesso do pentecostalismo junto às massas. A doutrina da
cura divina revela-se uma alternativa terapêutica de bastante apelo devido a sua eficiência no
que tange ao sistema cultural em que se movimento o público preferencial do movimento
pentecostal, ocorrendo o deslocamento do discurso científico para o discurso mágico,
viabilizando a espécie simbólica.
Destaca-se também a inclinação pré-milenarista do movimento pentecostal. Os
que acreditam no pré-milenarismo advogam uma intervenção divina repentina na História que
estaria prestes a ocorrer. Essa intervenção subverteria a ordem do mundo que “jaz no
maligno”. Só compete ao homem interceder a Deus por sua ação e estar preparado para este
acontecimento. Daí pode inferir de um certo imobilismo ou isolacionismo pentecostal
registrados em seus tempos de implantação.
Uma peculiaridade das Assembléias de Deus é o estabelecimento de regras de
conduta, vestimentas e aparência, denominada de usos e costumes, que seriam a
positivação/normatização daquilo que se entende por tradição e identidade assembleiana
brasileira. Entre os pontos abrangidos pelo documento estão a proibição de determinados
cortes para os homens, do uso de cabelos curtos pelas mulheres bem como maquiagem,
interdições à indumentária feminina, vedação da ingestão de bebidas alcoólicas e a utilização
do aparelho de televisão.505
504
Retirado do Periódico Mensageiro da Paz, publicação oficial da Convenção Geral das Assembléias de Deus
no Brasil, de 15 de fevereiro de 1950.
505
Este documento aparece por ocasião da 22ª Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil, na cidade
paulista de Santo André, nos anos 70. Obteve unanimidade de votos dos delegados que representavam igrejas de
todo o Brasil. Os da Convenção Geral entendiam que tais preceitos eram “sadios princípios estabelecidos com
doutrina na Palavra de Deus”. Recentemente, os 8 artigos de Santo André foram condensados em 6, passando
por modificações, e o termo “doutrina” foi suprimido.
280
3 Expansão do pentecostalismo – história e fatores concorrentes
Foi visto anteriormente que o pentecostalismo norte-americano tem sua gênese em
ambiente urbano degradado servindo-se das massas deslocadas de seus universos simbólicos
originários como público. Pode-se afirmar que as primeiras conversas pentecostais brasileiras
se encontravam em situação similar. Os retirantes nordestinos que se aglomeram na periferia
de Belém, por exemplo, não tocavam suas vidas no harmonioso ambiente idealizado por
Gilberto Freyre anos mais tardes – a rurbanização506 – muito pelo contrário. Grandes rupturas
forma introduzidas na vida dos operários dos seringais.
As Assembléias de Deus no Brasil nascem a partir de uma dissidência havida na
Igreja Batista de Belém do Pará, capitaneadas pelos missionários suecos Daniel Berg e
Gunnar Vingren. Egressos dos Estados Unidos chegam ao Brasil em 1910. Trabalham como
metalúrgicos, aprendem o idioma pátrio, e auxiliam nas atividades da comunidade batista.
Promovendo reuniões de oração nos porões do Templo Batista, incutiram o fervor pentecostal
em 18 membros da comunidade. Não aceitando aquela experiência como legítima dentro do
padrão doutrinário batista, o restante da congregação decide pela expulsão dos missionários e
dos seus aderentes, que passam a se reunir na residência de um dos seguidores da novidade
pentecostal.
Rapidamente o pentecostalismo demonstrou seu impressionante poder de
capilaridade se espalhando pelos rincões amazônicos. Com o colapso do ciclo de borracha por
conta da competitividade do látex asiático, os “soldados da borracha”, quase todos
nordestinos, começam a retomar às suas plagas de origem trazendo consigo a sua nova fé.
O crescimento extensivo e desenvolto da Assembléia de Deus pode ser repartido
em momentos. A primeira fase dessa expansão pode ser caracterizada pelo retorno dos
migrantes às suas áreas de origem e ao trabalho autóctone da denominação nascente, que não
possui os vínculos de dependência com as grandes igrejas norte-americanas, como era o caso
das mansões Batista, Presbiteriana e Metodista, por exemplo, que dependiam da iniciativa dos
missionários estrangeiros, controladores dos recursos e que plavam preferência ao
investimento em instituições de ensino visando atingir a burguesia urbana sedenta do
progresso e da ilustração. Destaca-se também o protagonismo leigo dentro da Assembléia de
506
Gilberto Freyre chama de rurbanização um processo de desenvolvimento socioeconômico que mescla de
forma harmoniosa e equilibrada, isto é, como forma e conteúdo de uma só vivência, valores e estilos de vida
rurais e urbanos num mesmo ambiente. In: Rurbanização: o que é? Recife: Massangana, 1982.
281
Deus. Não era preciso esperar pelo pastor. Todo crente era um fervoroso divulgador da
mensagem. Não se aguardava pela existência do Templo para impulsionar o trabalho
religioso. A casa de um crente transformava-se em ponto missionário. Este tipo de
empreendimento foi batizado por Cartaxo Rolim como nucleação:
Processo de formação do núcleo inicial, a nucleação foi, principalmente na
Assembléia de Deus, ao longo de muitos anos, a matriz germinadora de
templos e multiplicadora de crentes. A iniciativa de simples crentes servia de
mola propulsora. Não se esperava que os templos fossem construídos
primeiro para depois se iniciarem os cultos. Na casa de crentes ou de algum
amigo, em terreno baldio, dava-se começo ao culto para atrair simpatizantes
[...]
O que era e continua sendo importante é que trabalhar na continuação do
núcleo inicial é tarefa tanto de pastores como de simples crentes. Prova disso
é que o protestantismo desceu para o Nordeste no embalo da nucleação e foi
penetrando nas diferentes cidades nordestinas, impulsionado pelo trabalho
religioso dos simples crentes (ROLIM, 1994, p. 45-46).
É preciso assinalar que a Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil
(CGADB), que é o órgão máximo da denominação no Brasil, só é instituída em 1930, na
cidade de Natal, isto é, vinte anos após o surgimento do movimento pentecostal.
Paul Freston caracteriza esse primeiro momento com a afirmação de que o ethos
da Assembléia de Deus era “sueco-nordestino”, pela eclesiologia baseada no modelo de
igrejas livres da Suécia, pela colaboração dos missionários escandinavos e pela alternância de
suecos e nordestinos da presidência da Convenção Geral.
Depois da Segunda Guerra Mundial tanto o Brasil como as Assembléias de Deus
adentram um novo momento. A industrialização do país ganha corpo a partir dos anos 1950.
As condições de vida, uma vez que a situação no Nordeste se alterara muito pouco, sendo
ainda marcado pelo coronelismo, pelo latifúndio e pela monocultura, empurra o nordestino
para uma nova “transumância”. O eixo agora é o “Sul maravilha” onde o “paraíba” para os
cariocas e o “baiano” para os paulistas vão transportar maciçamente a fé pentecostal e
acentuar a favelização das grandes metrópoles brasileiras.
Não que a fé assembleiana já não tivesse aportada por lá. Desde a década de 1930
o pentecostalismo estava presente nos bairros populares da então capital federal, como São
Cristovão. O incremento que os migrantes possibilitaram, tanto como portadores como quanto
receptores das novas pentecostais não podem ser desprezadas.
Até aqui a explicação funcionalista centrada na anomia decorrente das novas
situações vividas pelos imigrantes, pela desconstrução de um contexto de ordem e sentido
para justificar o crescimento das denominações pentecostais é suficiente e bastante
282
satisfatória. No entanto, o quadro que se esboça a partir dos anos 1980 requer um novo
esforço teórico para a compreensão deste fenômeno.
Para se compreender este terceiro momento, parte-se da evidência do declínio
migratório que se inicia em 1980. Os dados do IBGE, colhidos por pesquisas relativas ao
censo populacional de 1980 e 1991, bem como da Pesquisa Nacional de Amostragem
Domiciliar (PNAD) de 1995, demonstram que a taxa de imigração para o estado de São
Paulo, historicamente o destino mais atrativo para os migrantes, que era de 1,42% no início da
década de 80 no século passado, desaba para 0,64% quinze anos depois.
O interessante é a constatação de que o pentecostalismo, o de terceira onda,
majoritariamente, mas também a Assembléia de Deus avança a passos largos nesse hiato
temporal. Se a proposta explicativa oferecida pela análise funcionalista encontra-se
devassada, como explicar o incremento numérico pentecostal?
Prandi (1998) dirá que os pentecostais seriam arregimentados entre os estratos
mais pobres, menos escolarizados e mais escuros da população brasileira. O que isso indica é
que a captação pentecostal se valeu grandemente do colapso do milagre econômico e de seus
desdobramentos como as altas taxas de desemprego, achatamento da renda das classes
médias, generalização da pobreza, exclusão do mercado consumidor. A taxa de crescimento
médio, entre 1991 e 2000, da Assembléia de Deus, segundo o IBGE, foi de 14,8% ao ano.
A análise dos dados do último censo traz os seguintes dados:
– Quanto à situação espacial e demográfica
• Os pentecostais habitam mais a zona urbana que a rural, havendo uma
concentração maior na chamada “primeira coroa”, ou seja, na faixa
imediatamente posterior ao município aglutinador da região metropolitana. No
caso da região metropolitana n Recife, o anel pentecostal se intensifica em
municípios como Abreu e Lima e Igarassú, onde 24% de seus habitantes são
pentecostais.
Nessa região, tem-se mais de 300.000 pessoas pertencentes à Assembléia de Deus.
– Quanto ao perfil socioeconômico:
• há mais mulheres que homens;
• há mais adolescentes e jovens que adultos;
• maior incidência de não-brancos (negros, pardos, indígenas, porém não os
orientais);
• um menor nível educacional que a média brasileira;
283
• forte inclinação para as atividades econômicas do tipo “serviços pessoais”;
• remuneração média em torno de 3 salários mínimos;
Uma explicação, de vertente cultural-teológica para o sucesso do pentecostalismo
no Brasil é formulada por Bittencourt Filho. Para ele há uma Matriz Religiosa Brasileira
composta por elementos diversos:
[...] quais foram os principais elementos que se “fundiram” na composição
da Matriz Religiosa Brasileira. Para tanto, em primeira instância e em termos
muitos sucintos, basta recorrer à formação histórica da nacionalidade: com
os colonizadores chegam o catolicismo ibrico (reconhecidamente singular) e
a magia européia. Aqui se encontram com as religiões indígenas, cuja
presença irá impor-se por meio da mestiçagem. Posteriormente, a escravidão
trouxe consigo as religiões africanas que, sob determinadas circunstâncias
foram articuladas num vasto sincretismo. No século XIX, dois dos elementos
foram articulados: o espiritismo europeu e alguns poucos fragmentos do
catolicismo romanizado (2003, p. 41).
Para o autor, essa “realidade difusa” seria o ethos, funcionando como marco inicial
de onde sairiam e para onde retornariam para se alimentar, as diversas expressões religiosas
nacionais. Dessa forma, o protestantismo Histórico, por ser assimétrico em relação à essa
matriz, permaneceu com baixa inserção na sociedade brasileira. Enquanto isso, “os
pentecostalismos ensejam que a Matriz Religiosa Brasileira permaneça intacta”, havendo um
reprocessamento da religiosidade matricial com apoio de uma dicotomia valorativa, “Em
outras palavras: ao invés de rejeitar esse sistema de crenças do senso comum, descriminaram
e classificaram aquilo que pertenceria ao domínio de Deus e aquilo que se situaria na
jurisdição do Diabo” (idem, p. 41).
Um outro destaque situa-se naquilo que caracteriza a forma de governo das igrejas
assembleianas. Para Freston, o sistema permite a manutenção do crescimento denominacional,
e deixa intocada a estrutura de poder:
O sistema de governo da Assembléia de Deus pode ser caracterizado como
oligárquico e caudilhesco. [...] A assembléia de Deus, na realidade, é uma
complexa teia de redes compostas de igrejas-mãe e igrejas e congregações
dependentes. Cada rede não habita necessariamente uma área geográfica
contígua, o que dá margem a controvérsias constantes sobre a “invasão de
campo”. O pastor-presidente da rede é, efetivamente, um bispo, com mais de
cem igrejas e uma enorme concentração de poder. [...] Esse sistema de
feudos é uma forma de manter o crescimento da igreja como um todo sem
tocar na estrutura de poder (FRESTON, 1994, p. 86-87).
Daí tem-se uma estrutura que é ao mesmo tempo rígida e flexível. Hierarquia e
mobilidade, com ampla liberdade para incursões em áreas que se mostrarem férteis para a
mensagem pentecostal e para a prospecção de adeptos. Exemplificando, há no estado de
284
Pernambuco a coexistência do campo de Recife, identificado por suas congregações com
fechadas em azul e o campo de Abreu e Lima com seus templos na cor verde, que disputam
“fraternalmente” a preferência dos fiéis.
Tratando da característica “oligárquica e caudilhesca”, uma ponte pode ser
estabelecida com a temática da identidade. Os estudiosos têm percebido um acentuado
“desolamento”.
Logo, ocorreria a fragilização dos indivíduos, um déficit daquilo que Giddens, a
partir de leituras de Erik Erikson e Winnicot, denomina por “segurança ontológica”, que
seria “a crença que a maioria dos seres humanos tem na continuidade de sua auto-identidade
de na constância dos ambientes da ação social e material circundantes” (GIDDENS, 1991, p.
95)
Este estado de insegurança tende a expandir-se quando se congrega às
instabilidades características da pós-modernidade, e às condições sócio-econômicas precárias,
como no caso brasileiro. Aos marginalizados dos processos econômicos, aos que não
conseguem se integrar nas realidades movediças da sociedade de consumo é oferecida a
solução da identidade pré-fabricada que dispensa o indivíduo da angústia da escolha.
É importante aqui deixar que Bauman caracterize a busca dos seres humanos pósmodernos por certezas, por respostas:
Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que
possa, ou sustente que possa transformar a incerteza de base em preciosa
auto-segurança, [...] A pós-modernidade é a era dos especialistas em
“identificar problemas” [...] A incerteza de estilo pós-moderno não gera a
procura da religião: ela concebe em vez disso, a procura sempre crescente de
especialistas na identidade. Homens e mulheres assombrados pela incerteza
de estilo pós-moderno não carecem de pregadores para lhe dizer da fraqueza
do homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da
reafirmação de que podem fazê-lo e de um resumo a respeito de como fazêlo (BAUMAN, 1998, p. 221-22)
Há, portanto, uma demanda por identidades prontas, que venham embrulhadas
naquilo que, como se viu, Peter Berger batizou de “estrutura de plausibilidade”. O ser
humano contemporâneo parece querer enclausurar-se. Ele fecha os olhos e se entrega
totalmente a um discurso que lhe outorgue a benção de não precisar optar; algo que lhe tire a
responsabilidade, que transfira para o transcendente, personificado na figura do pastor a
incumbência de responder aos questionamentos existenciais e da vida cotidiana. Se o mundo
criado bem se encaixar em suas necessidades, se lhe possibilitar encontrar sentido e
significação, se de alguma forma lhe der a impressão de paz de espírito, então, é plenamente
recepcionado.
285
Quando o pentecostalismo aportou por aqui, no início do século XX, o Brasil viva
um tempo de alterações em suas dinâmicas sociais, com a passagem do mundo rural ao das
cidades, com todas as implicações que a desordenada urbanização traz consigo. Entretanto, o
universo simbólico dos negros recém-libertos, dos migrantes e dos retirantes ainda estava
povoado por figuras como o senhor de escravos, o coronel, enfim o patrão. Era a pessoa do
patrão quem ditava e organizava o mundo habitado pelos agora marginalizados, o que os
fazia, de certo modo, aspirarem pelo antigo modelo onde, embora sem possuir a liberdade,
sentiam-se seguros, à semelhança dos hebreus que durante a penosa travessia pelo deserto
afirmavam ser melhor o julgo egípcio do que a incerteza da jornada.
Foi na imagem do pastor pentecostal que as massas identificaram o patrão. E esse
ranço do autoritarismo, tão presente no imaginário quanto na sociedade brasileira, que Willian
Read destaca como fator preponderante no sucesso da proposta pentecostal:
Patrão é, no Brasil, um termo significativo. É o chefe que patrocina a vida
cotidiana de um grande número de pessoas [...] Qualquer pessoa a quem as
massas possam apelar e que delas se encarregue, torna-se seu patrão.
Quando as pequenas igrejas pentecostais vão-se transformando em igrejas
maiores, podemos verificar a transferência dessa mentalidade para o pastorgeral. [...] os pentecostais se utilizam dessa mentalidade caudilhesca na
organização de sua igreja (READ, 1967, p. 221).
Houve, portanto, uma transposição da cultura autoritária brasileira para o
pentecostalismo, que a sociedade pós-moderna tem a capacidade de aliviar do homem médio
o peso de decidir. Um outro mais capaz, socialmente legitimado, que ocupa o espaço de
protetor no imaginário popular, “aquele que sabe mais que eu” me dirá o que fazer.
Considerações finais
As Assembléias de Deus parecem resistir a atomização verificada no subcampo
pentecostal brasileiro, embora também abalos como a divisão entre CGADB e o ministério de
Madureira, por exemplo. Seu modo histórico de organização, com o protagonismo do leigo,
nucleação como forma de instalação congregacional, sua grande capacidade de adaptar-se às
mutações da sociedade moderna, à oferta de um universo simbólico estável, à afinidade com
aquilo que se denominou Matriz Religiosa Brasileira, a tornam atrativa e extremamente
competitiva em relação aos demais atores no campo religioso brasileiro, em que pese sua
postura autoritária em termos de governo eclesiástico e a adoção de uma ética proibitiva.
286
Sua teologia simples, bem perto daquilo que se convenciona chamar “saber
mitológico” com oposições binárias pinçadas e reprocessadas da Matriz Religiosa Brasileira,
caiu nas graças da população, principalmente das camadas desfavorecidas. O tempo pósmoderno, com sua inconstância, requer a oferta de identidades “pré-moldadas”, que tragam
uma estrutura de mundo repleta de sentido, animando assim a vida dos fiéis. Eis, pois, alguns
fatores que impulsionam a Assembléia de Deus e fizeram dela a maior confissão de corte
protestante do Brasil.
Vencidas as barreiras que afastavam os assembleianos dos meios de comunicação,
está se montando uma grande teia de programas de rádio e TV, além de uma cadeia de
emissoras radiofônicas próprias e mesmo em complexo televisivo sediado em Manaus, a Rede
Boas Novas. Isso parece indicar que os pentecostais da Assembléia de Deus vislumbram um
espaço que pode ser melhor preenchido. É cedo para se afirmar quanto à possível saturação do
universo pentecostal e neo-pentecostal, sendo temerária a assertiva de que se esteja próximo
do teto. A se crer na lição de Pierre Bourdieu de que o campo religioso é dinâmico sendo
necessária a inovação contestadora das formas hegemônicas de manifestação religiosa, que no
Brasil ainda é ocupada pelo catolicismo, ainda por algum tempo o pentecostalismo deverá
movimentar o espectro religioso brasileiro, em busca do monopólio da produção simbólica,
quer pelo seu ativismo, quer pela sua belicosidade.
Referências
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Paulus, 2004.
BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas. Construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1999.
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Leopoldo: Sinodal, 2002.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
FREYRE, Gilberto. Rurbanização: o que é? Recife: Massangana, 1982.
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(org). História das religiões no Brasil, vol II. Recife: UFPE, 2002, p. 541-582.
288
O MST E OS ESTUDOS DE RELIGIÃO NO BRASIL:
O Que Dizem as Pesquisas Sobre o Movimento507
Fábio Alves Ferreira508
RESUMO: Há muitas pesquisas que estabelecem a relação da religião e o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Enfatizam, sobretudo, a função dos símbolos religiosos no
cotidiano de luta e resistência dos militantes. Considerando que a religião fez parte da fundação deste
Movimento é comum que os acampamentos e assentamentos sejam configurados por expressões de
religiosidade: no discurso político do movimento, na mística do movimento, concepções messiânicas
dos militantes, ecumenismo, mudanças de práticas das religiões pentecostais de forma a ajustar-se à
pratica política de seus membros e outros aspectos abordados. As áreas que tem pesquisado sobre
religiosidade no MST são: a Sociologia, Antropologia, Ciências da Religião e Teologia. Neste
trabalho investigamos pesquisas, que a partir do método de análise do discurso, abordam o MST
verificando as configurações que se estabelecem no cotidiano dos camponeses a partir dos símbolos e
liturgia religiosa cultivada pelo movimento. Fizemos pesquisa bibliográfica e analisamos teses e
dissertações produzidas em alguns centros acadêmicos do Brasil. Percebemos, a partir desta pesquisa,
que a religião desenvolve uma dupla faceta: ora catalisando a ação de protesto e ora negando a
legitimidade do mesmo. Fato é que, de uma forma ou de outra, sempre funciona como fenômeno
significante da vida e prática dos militantes. Palavras chaves: Religião, MST, religiosidade,
cotidiano, estudos.
ABSTRACT: There is search a lot of similar to connection between religion and the Rural Landless
Workers Movement (MST). Detaches the function from the religious symbols at contest quotidian
from the countryman. The religion to support the foundation this Movement and so is common what
the farm hand to manifest religious practice: in the politician discourse of the Movement, beyond
conception of the Movement, intereligious practice, modification from the religion to conform
oneself in the politic practice of the Movement and other aspect. The fields of study what research
upon religion in the MST are: Sociology, Anthropology, Religion Science and Theology. This work
we investigate other works that make use of analysis discourse method and consequently to verify the
configuration in the quotidian from the farmers through from the symbol and religious ritual of the
Movement. We make investigation in bibliography in the paper and thesis that has been produced
University in Brazil. We have knowledge, after this search, that the religion to develop faces two: it
is to catalyze the protest and at another time it is a failure of the religion. At any rate the religion is
phenomenon that signification to bring for live of the farmers. Key-words: Religion, MST, Religious
Phenomenon, quotidian, searches.
Introdução
O MST tem se caracterizado como movimento social contemporâneo, mais
resistente do Brasil.509 Apesar das tentativas governamentais em reprimir sua ação política, o
507
Este artigo foi escrito inicialmente para cumprimento da disciplina de Antropologia e Sociologia da Religião,
ministrada pelo Prof. Dr. Dario Paulo Barrera, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo, no primeiro semestre de 2006. tal estudo foi financiado pela CAPES.
508
Mestrando financiado pela CAPES. Pesquisa sobre religião e movimentos sociais camponeses. Reside na Rua
Costa Sepúlvida, 139, Engenho do Meio no Recife – PE. E-mail: [email protected].
509
COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neo-liberal. (tese de
doutorado em Ciências Sociais). Campinas: UNICAMP, 2005, p. 13.
289
MST contesta a ordem estabelecida, agrega cada vez mais os desfavorecidos socialmente e
assume uma postura radical em prol da reforma agrária.510
Por apresentar-se consolidado e articulado nacionalmente, o MST tornou-se alvo
de diversas pesquisas produzidas nos centros acadêmicos pelas mais variadas ciências
humanas. Neste texto analisamos trabalhos acadêmicos (teses e dissertações) que
investigaram aspectos da religiosidade dos camponeses militantes do MST e/ou a
religiosidade enfatizada no próprio discurso do Movimento.
A Sociologia tem encontrado no MST uma expressão relevante para análise de
grupo, tanto em âmbitos políticos quanto estruturas de micro-sociedades alternativas. A
Antropologia Social e Cultural também empreendem estudos no Movimento enfocando a
organização e solidariedade pelos novos valores agregados ao indivíduo, por meio da
militância. A Administração também se interessa pelo sistema de produção e organização de
cooperativas. As Ciências da Religião também observa o movimento como celeiro de
expressão religiosa, visto que é composta de sujeitos religiosos que coadunam seu discurso
com a própria simbologia do MST produzindo novos significados cuja força é refletida na
ação política que assumem.
Portanto percebendo o MST como um celeiro propício de construção do
conhecimento científico, o enfoque de nosso trabalho, se dará pelos temas abordados e não
pelas ciências que estudam o Movimento. Para tanto prescindiremos de um eixo que ancora
as pesquisas: os trabalhos que abordam os aspectos religiosos do MST. Desta maneira, fica
explícito o nosso objetivo geral de fazer um levantamento do que as pesquisas acadêmicas
inferem acerca do gradiente religião versus MST.
Há muitas pesquisas que estabelecem a relação da religião e o MST.
Considerando que a religião fez parte da fundação do Movimento é natural que os
acampamentos e assentamentos sejam configurados por expressões de religiosidade: no
discurso político do movimento, na mística do movimento, concepções messiânicas dos
militantes, ecumenismo, mudanças de práticas das religiões pentecostais de forma a ajustarse à pratica política de seus membros e outros aspectos abordados. As áreas que tem
pesquisado sobre religiosidade no MST são a Sociologia, Antropologia, Ciências da Religião
e Teologia.
510
MORISSAWA, Mitsue. A história da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p.147.
290
1 O MST e os estudos de religião
A religião desde o inicio esteve presente no Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra. A igreja católica através da comissão pastoral da Terra (CPT) e das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) fomentou o desenvolvimento do Movimento. Esta postura sóciopolítica se iniciou a partir das resoluções discutidas pela Conferencia Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín,
Colômbia (1968), bem como na III Conferencia em Puebla, México (1979).511
As CEBs não foram somente um espaço de cultura religiosa, mas uma poderosa
ferramenta de articulação política por parte do camponeses.512 Porém pela discordância da
maneira que o MST reivindica, a CNBB afasta-se do Movimento por insistir no caráter
pacífico da reivindicação.513 Apesar de que o Movimento não deixa de juntar ao seu discurso
aspectos religiosos como motivador da ação. A seguir, apontamos pesquisas que expõem a
dinâmica do fenômeno religioso neste Movimento Social.
A pesquisa de Luiz Roberto Lemos do Prado consiste na observação prática da
força invisível que impulsionou milhares de camponeses na história do Brasil a lutar pela
libertação, pela autonomia econômica, pela auto-produção e pelo direito à terra. Segundo ele,
o que torna o MST um movimento que consegue mobilizar milhões de trabalhadores rurais é
o anúncio de uma ideologia que contempla a dor existencial do oprimido. Em outras
palavras, não basta articulação política, é necessário atribuir um significado de caminhada
que transcende a idéia de um ato civil.
Na concepção do militante a terra é símbolo de vida. É esta mística que permeia o
imaginário coletivo dos militantes numa ação conjunta para reivindicação de outra ordem
social. Nesta perspectiva Prado define mística da seguinte forma:
A mística é, pois, o motor secreto de todo compromisso, aquele
entusiasmo que anima permanentemente o militante, aquele fogo interior
que alenta as pessoas na monotonia das tarefas cotidianas e por fim,
permite manter a soberania e a serenidade nos equívocos e nos fracassos. É
a mística que nos faz antes aceitar uma derrota com honra que buscar uma
511
PRADO, Luiz Roberto Lemos do. A Mística no MST: a experiência do Movimento Nacional dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra na luta pela reforma agrária no Brasil. (dissertação de mestrado em
teologia).
São
Paulo:
Faculdade
de
Teologia
Nossa
Senhora
da
Assunção, 2002, p. 273.
512
Id. Ibid. p. 272
513
LÖWY, Michel. Orígenes sócio-religiosos del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra del
Brasil. América Libre. Nº 20. in: http://www.nodo50.org/americalibre/anteriores/20/lowy20.htm
291
vitória com vergonha, por que fruto da tradição aos valores éticos e
resultado das manipulações e mentiras.514
Segundo Prado, encontramos a mística evidenciada, quando tentamos responder a
pergunta sobre a razão que levou milhares de camponeses, trabalhadores sem instrução
escolar, porém convictos de uma prática justa, a lutar pelo direito de cultivar sua própria
terra. Como responder o que fizeram resistir e serem esmagados, torturados e mortos por
uma causa? Lutaram sabendo que não teriam força suficiente para vencer, porém insistiram
numa atitude de afirmação da vida pela vida. Prado arremata: “uma força inexprimível na
sua totalidade por palavras, mas que se traduz como experiência que envolve a vida integral
do/da militante”.515
É esta mística que propicia a escolha do militante pela resistência. Também está
nela, o gérmen da solidariedade na ocupação, na moradia em barracas que pode perdurar por
meses e resultar em sua desapropriação. Em seu trabalho é exemplificado a ousadia,
favorecida pela mística como o exemplo de um jovem chamado Oziel, de 17 anos que foi
morto no Massacre em Eldorado dos Carajás e sob tortura continuou a gritar “viva o MST”
até morrer.516
A atitude do jovem Oziel constitui-se na mística que envolve o MST. Nas
caminhadas provavelmente muitos se lembravam do jovem Oziel e não desistiram. Desta
maneira é constituída a mística que envolve algumas personalidades lembradas pelo
movimento. Assim é guardado na memória social do Movimento: Martin Luther king, Zumbi
dos Palmares, Ernesto Che Guevara, Rosa Luxemburgo, nomes que através dos cânticos,
discursos e ensinamentos são mantidos vivos na memória dos militantes.
Por tanto a hipótese de Prado é que a mística é constituinte da experiência do
MST na reivindicação por reforma agrária. Resultado semelhante constatou Hélio Sales Rios
que estudou sobre o papel da religião no cotidiano do acampamento Nova Canudos e do
Assentamento Zumbi dos Palmares, localizados em Iaras no Estado de São Paulo. Segundo
Rios, a religião professada pelos militantes é fundamental para sentido da vida e suporte da
opressão econômica.
Igualmente a Prado, nesta tese é explicitado o quanto a religião e sua mística
desenvolvem função importante para estimular a permanência sem desânimos e enfrentar a
514
PRADO Op. cit. p. 101.
Ibid. p. 104.
516
CALDART, R Salete. Pedagogia do MST, p.134. In: PRADO, Luiz Roberto Lemos do. A Mística no MST:
a experiência do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra na luta pela reforma agrária
no Brasil. (dissertação de mestrado em teologia). São Paulo: Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção, 2002, P.106.
515
292
realidade com perseverança. Rios divide sua tese em três capítulos, sistematicamente
organizados de forma a indicar a sua hipótese de reelaboração da religião para justificar a
ação política dos militantes.
Rios também constatou que a realidade estudada por ele, embora fosse
marcadamente constituída de sujeitos religiosos, tanto de grupos protestantes tradicionais e
pentecostais
quanto
católicos;
não
foi
encontrado
a
presença
destes
grupos
institucionalmente organizados. Esta ausência da Instituição Religiosa favoreceu a
criatividade dos militantes para interpretar os textos bíblicos re-significando-os a partir da
sua situação na sociedade. A instituição serve como transmissora dos valores herdados e
legitimante dos mesmos.
Sua presença, portanto, limita os sujeitos à aquisição ou manutenção das
experiências que são próprias das instituições. Desta forma a ausência das
instituições religiosas impossibilita a prática religiosa conforme estão
habituados em sua cultura religiosa, por exemplo, a realização de atos
religiosos que julgam importantes para suas vidas.517
O autor sinaliza para a prática religiosa autônoma dos assentados. Esta autonomia
faz com que elaborem uma fé que possui o compromisso com a transformação social deste
mundo. A religião neste caso funciona como um suporte que dá significação à vida do
militante ao passo que dá um novo significado ao ato de reivindicar. Ou seja, segundo a
pesquisa empreendida o autor constata que os militantes têm a religião como principal
fundamento de resistência, apesar de extraírem dos partidos políticos o necessário para
caminhada de militância.
Outro aspecto interessante, no qual encontramos um paralelo entre Rios e Prado,
é o significado dos termos empregados pelos militantes. Estes termos assumem uma
conotação de algo além do sentido literal da palavra; fenômeno caracterizante da mística. Por
exemplo, a palavra ‘caminhada’, usada nas assembléias locais. Emprega-se a palavra
associada a termos bíblicos.
Essas lideranças religiosas associaram o sofrimento do povo hebreu durante
a sua peregrinação rumo à terra de Canaã com a esperança pela terra
prometida, no contexto contemporâneo, do povo oprimido...índios,
lavradores, operários, mulheres...rumo à sua libertação da condição
psicossocial de explorado.518
517
RIOS, Hélio Sales. A reelaboração da fé para “ocupar, resistir e produzir”. O papel da religião no
cotidiano do acampamento e do assentamento do MST em Iaras-SP. (tese de doutorado em Ciência da
Religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 2002, p. 121.
518
Id. p. 132.
293
O povo concebe a vida pelo viés religioso. Isto implica reafirmar novamente a
autenticidade do sujeito religioso para interpretar a Bíblia de forma que legitime a sua ação
política. E é juntamente com a ideologia do MST que os religiosos resgatam a utopia do
“reino de Deus”, outrora perdida, muitas vezes pela decepção com a instituição religiosa.
Finalmente Rios observa que os problemas enfrentados cotidianamente no
Assentamento Zumbi dos Palmares e no Acampamento Nova Canudos, em Iaras, cobra
novas respostas. As interpretações, reelaboração da fé, são as respostas configuradas para
atender aos problemas político-sociais que afetam o militante. Desta maneira, a religião é
fundamental para reivindicação do militante através do MST.
Há outro estudo desenvolvido por Wilson de Luces Fortes Machado, também
sobre o aspecto religioso e sua influência no comportamento do militante que entende-se
praticante de uma religião pentecostal. Ele analisa os conflitos da prática dos protestantes
pentecostais nos assentamentos Sumaré I e II, localizados no Estado de São Paulo.
Inicialmente ele aponta para um problema entre as condições sociais
experimentadas pelo pentecostal, que o conduz a um engajamento no MST e a reprovação
por parte da Instituição Eclesial da qual faz parte. Geralmente, as igrejas pentecostais
assumem postura de autoridade na vida dos sujeitos religiosos determinando com um
rigoroso manual de ética a sua conduta, os espaços de atuação social que por sua vez variam
de acordo com o gênero (homem e mulher tem papeis diferentes nos grupos pentecostais).519
O objetivo da pesquisa de Machado é observar se o fato do militante professar-se
praticante de uma religião pentecostal assumirá por sua vez, uma postura diferenciada nas
realidades vivenciadas nos assentamentos. É o mesmo que perscrutar sobre a influência da
religião nas atividades políticas de ocupação de uma terra que judicialmente pertence a outra
pessoa (propriedade privada). Além destas questões, o autor analisa outras de cunho ético:
como lidam com o ensinamento bíblico e a ação aparentemente contrária de ocupar uma terra
sem transgredir o mandamento de não roubar? Qual a relação no processo de ocupação da
terra, dos pentecostais e outros religiosos (umbandistas, espíritas, católicos), sem colocar-se
em “jugo desigual”? A ocupação da terra, não se constitui num desrespeito às autoridades
constituídas para governar a sociedade?
Instigado por tais questões o pesquisador constatou que a ocupação da terra por
parte dos pentecostais é entendida como uma orientação de Deus aos problemas que cada um
enfrentava. Esta explicação para sua inserção serve como amenizador do fato de sentirem-se
519
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar.
Campinas: ANPOCS, 1996, p.85.
294
transgressores das ordens da igreja. Esta ensina que o envolvimento com lideranças
humanas, constitui-se numa contaminação com as coisas perversas deste mundo. Porém os
protestantes pentecostais percebiam sua inserção, em obediência ao que Deus estava
ordenando que fizessem.520 Ainda assim, os pentecostais não mantinham relação de
solidariedade com as demais religiões não cristãs que estavam presentes nos assentamentos.
Segundo o autor o eixo das relações mantinha-se em torno de grupos de afinidade formados
por membros da mesma comunidade de fé. Também ficou explícito nos discursos de seus
interlocutores que a ocupação da terra não devia ser entendida em cumplicidade com o MST,
embora se utilizaram do Movimento para seu engajamento.
Embora tenham participado de um movimento coletivo de ocupação, em
seu discurso percebe-se um distanciamento deste grupo, como uma
tradução de que sua presença no assentamento não fosse obra do esforço
coletivo deste grupo, mas sim da providência do Espírito Santo. Disto
decorre a visão de que, no seu caso, a lógica que rege a sua presença no
assentamento não é a do coletivo, mas sim a da “obediência” e da sua
relação pessoal com Deus.521
Outro trabalho bastante interessante para nossa abordagem é o de Leonídio
Gaede, que propôs investigar se a partir de uma determinada compreensão de um novo
espaço físico e político há o surgimento de uma teologia própria. Daí sugere que se há um
discurso próprio de legitimação da ocupação, o MST de fato constitui-se num movimento
que ultrapassa a questão de Reforma Agrária.522
A hipótese de Gaede é que a vida para realizar-se em sua integralidade, agrega
diversas ferramentas para mostrar-se através de um espaço concreto. O tema de sua pesquisa
surge do contexto de trabalho pastoral com os colonos de Erval Seco, Rio Grande do Sul. Em
sua perspectiva as pragas do Egito seriam uma proposta de reflexão para mudança da
organização estrutural da sociedade. Esse é um estudo que parte de um texto bíblico, pois, o
curso é de mestrado em Teologia. Assim pudemos observar que seu método de pesquisa foi
ceder ao grupo pesquisado um elemento novo (texto bíblico) e constatar que tipo de alteração
seria provocado pelo mesmo, no grupo.
O alvo de Gaede é todo o ocupante da terra, independente de qual religião
pratique. A pastoral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana é muito semelhante a da
520
MACHADO, Wilson de Luces Fortes. Entre o sonho e a fé: o pentecostal e os conflitos de sua prática
religiosa, nos assentamentos Sumaré I e II, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra.
(dissertação de mestrado em ciência da religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 1995, p. 83.
521
Id. Ibid. p. 84.
522
GAEDE, Leonídeo. Sem-terra: a praga de Faraó. (dissertação de Mestrado em Teologia). São Leopoldo:
EST, 1991, p. 2.
295
Igreja Católica. Logo o objetivo é a assistência ao pobre camponês e não um evangelismo
proselitista. Como seu estudo foi desenvolvido na década de 1980, havia uma preocupação
massiva da Igreja Católica com o MST. Em conseqüência, havia uma pastoral voltada para
os colonos de Ronda Alta e uma formação religiosa contextualizada à sua situação. Isto fez
com que aderissem à Bíblia como livro que retratava a realidade vivenciada por eles.
Já afirmamos anteriormente que temos a opinião de que a presença de
padres, pastores e agentes de pastorais na organização do MST, além de
legitimar religiosamente o movimento, também favoreceu que este grupo
de colonos se identificasse com a Bíblia. Na organização do MST foram
feitas interpretações de textos bíblicos que favoreceram os colonos e isto
fez surgir o fenômeno da apropriação da Bíblia pelos colonos. Isto
significa que a Bíblia, na opinião dos colonos, passou a dizer algo sobre
sua situação e os seus propósitos e não sobre a situação e os propósitos dos
outros.523
Desta maneira, a Bíblia desempenha função em níveis diferentes no cotidiano dos
colonos. Gaede coloca-nos algumas situações intrigantes: a Bíblia como protetora - foi
relatado que na desapropriação da terra, as mulheres fizeram uma corrente e uma delas
estava com a Bíblia aberta, na direção do comandante. É relegada à Bíblia, um poder
simbólico.
A Bíblia também desempenha função de motivação para luta. Ela foi consultada
para elaborar argumentos que legitimasse a prática da ocupação. Neste caso ela está numa
instância real. “Podemos dizer que na opinião dos colonos, o desenvolvimento de atividades
em um movimento social com características de protesto (luta), valida uma interpretação de
textos bíblicos.”524
Gaede conclui percebendo que de fato é erigida uma nova leitura quando A Bíblia
é relacionada com a realidade local dos sem terra. Em conseqüência, esta “nova leitura muda
uma prática”. A identificação dos colonos com o texto das pragas do Egito é por que eles
vinculam a sua história à história dos hebreus. Bem como havia o faraó no relato bíblico,
contemporaneamente há o governador, com o qual se confrontam. No caso específico das
pragas, os interlocutores conceberam como praga, para o governo a formação de uma
consciência política, da qual não se furtariam de viver de acordo com essa nova consciência.
Um outro estudo, peculiar na proposta que traz, foi realizado por José Américo
Diniz. Ele pesquisou sobre as representações religiosas dos evangélicos no Assentamento
Antônio Conselheiro II, na Região do Pontal do Paranapanema em São Paulo. Diniz
delimitou em seu recorte as práticas dos evangélicos batistas que faziam parte do MST.
523
524
Ibid. p. 56.
Ibid. p. 63.
296
Dinizz constatou que a liderança dos crentes batistas no assentamento
flexibilizava-se em torno do MST, classificando-o como um movimento justo, ordeiro e bom
para as pessoas militarem.525 Também sustenta que é bastante difundida entre os assentados
batistas, a idéia de que o Estado e os seus governantes são constituídos por Deus. Ou seja,
como muitos evangélicos se converteram após serem assentados, a igreja desfavorece a
articulação em torno dos ideais do Movimento. Pois acomoda a uma vida de espera: espera
por ajuda dos governantes, espera por ajuda de Deus e não concebem a instauração de uma
ação contundente na sociedade como ato aprovado por Deus.526
Diniz destaca algumas conclusões acerca do cotidiano dos militantes batistas no
assentamento Antonio Conselheiro II: a proposta de não violência a ser incorporada pelo
MST; a fé como superação da ideologia do Movimento. Finalmente a palavra que Dinizz
encontra para conceituar a relação identitária do ser batista e ao mesmo tempo ser militante
do MST, é ‘adequação pertinente’. Com isto ele quer dizer que não há divergências
concretas, mas ajustes da prática de fé em relação às situações vivenciadas no Movimento.527
Considerações finais
Os estudos analisados neste trabalho são importantes para percebermos o quanto
o MST tem sido estudado pelo viés religioso. Também nos acrescenta conceitos importantes
da ação política que os militantes empreendem em prol de sua existência, se apropriando de
diversos mecanismos (simbólicos), para consolidar a sua prática política.
As cinco pesquisas expostas no corpo deste texto, em suma, nos comunicam
acerca do fenômeno religioso com as particularidades de cada localidade e de cada olhar:
Prado destaca o método discursivo do MST, articulando ideologia com representações
sociais para cooptar camponeses sem terra; Rios sustenta que os indivíduos elaboram
respostas concretas e reelaboram as concepções religiosas para ancorar a sua ação social;
Machado nos oferece pistas interessantes pois é o único estudo sobre o pentecostalismo em
um movimento social, entretanto não articula teóricos com os fenômenos observados no
campo e nem responde porque o pentecostal insere-se no MST e de que forma a sua fé se
coaduna com a ideologia do Movimento; Dinizz constata que a Igreja Batista no Movimento
525
DINIZZ JR, José Américo. Religião e MST: estudo dos batistas da Congregação Monte Sião no
assentamento ‘Antônio conselheiro II’ na região do Pontal do Paranapanema. (dissertação de mestrado em
Ciências da Religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 2007, p. 117.
526
Id. Ibid. p. 123.
527
Id. p. 143.
297
desenvolve uma ação conservadora e proselitista nos assentamentos que se faz presente; e
Gaede com uma metodologia de inserção de um elemento novo provoca e averigua a
correlação do camponês contemporâneo com o camponês dos textos bíblicos.
Finalmente salientamos que este estudo não tem caráter de completude.
Apresenta-se como sugestões para aprofundamento da bibliografia e ampliação da mesma,
visto que há uma significativa produção acadêmica concernente ao par: religião e movimento
social.
Referências
COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neo-liberal.
(tese de doutorado em Ciências Sociais). Campinas: UNICAMP, 2005.
DINIZZ, José Américo. Religião e MST: estudo dos batistas da Congregação Monte Sião no
assentamento “Antônio Conselheiro II” na região do Pontal do Paranapanema. (dissertação de
mestrado em Ciências da Religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 2007.
GAEDE, Leonídeo. Sem-terra: a praga de Faraó. (dissertação de Mestrado em Teologia). São
Leopoldo: EST, 1991.
LÖWY, Michel. Orígenes sócio-religiosos del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra
del Brasil. América Libre. Nº 20. disponível em:
http://www.nodo50.org/americalibre/anteriores/20/lowy20.htm, acesso em: 10 ago 2007.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera
familiar. Campinas: ANPOCS, 1996.
MACHADO, Wilson de Luces Fortes. Entre o sonho e a fé: o pentecostal e os conflitos de sua
prática religiosa, nos assentamentos Sumaré I e II, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem
Terra. (dissertação de mestrado em Ciência da Religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 1995.
MORISSAWA, Mitsue. A história da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular,
2001.
PRADO, Luiz Roberto Lemos do. A Mística no MST: a experiência do Movimento Nacional dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra na luta pela reforma agrária no Brasil.(dissertação de mestrado em
Teologia). São Paulo: Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2002.
RIOS, Hélio Sales. A reelaboração da fé para “ocupar, resistir e produzir”: O papel da religião
no cotidiano do acampamento e do assentamento do MST em Iaras-SP. (tese de doutorado em
Ciência da Religião). São Bernardo do Campo: UMESP, 2002.
298
SOBERANIA DE DEUS E A LIBERDADE HUMANA NA PERSPECTIVA
CALVINISTA
MSc. Fábio José Barbosa Correia528
RESUMO: Poucos temas têm inquietado tanto a mente de pensadores – filósofos e teólogos -, em
épocas distintas, quanto o binômio Soberania de Deus X Liberdade do homem. O debate tem
transcendido às épocas; ora de forma mais intensa e severa ora com momentos de abrandamento,
porém, nunca de ausência. Esse grande tema tem sido tratado, geralmente, da seguinte forma: se Deus
é soberano então o homem não é livre e se o homem é livre então Deus não é soberano. Estaremos
abordando a questão a partir da perspectiva calvinista, que sistematizou a doutrina da soberania de
Deus sem perder de vista a noção de livre-arbítrio, numa tentativa extremamente bem sucedida de
equacionar o problema. Palavras chaves: Soberania, Livre-arbítrio.
Introdução
Ao analisarmos a história, tanto do pensamento religioso como do pensamento
filosófico, perceberemos que existe certo modelo cíclico na abordagem de grandes temas da
humanidade e não uma linearidade absoluta, que preconizaria a existência de temas
totalmente novos e de número praticamente incontável. Mas, certamente, não é isso que
ocorre. As mesmas questões são objeto de investigação nas mais variadas culturas e gerações.
Essa recorrência acaba estabelecendo um número extremamente limitado do que podemos
chamar de “os grandes problemas da humanidade”.
Segundo Wright, fazem parte dessa lista:
A relação da unidade do mundo com a diversidade de nossa experiência
individual, como podemos estar certos do conhecimento que temos, se há
Deus ou não, a natureza da “substância” de que o mundo é feito e como
devemos navegar nas questões éticas (WRIGHT, 1998, p.19).
Kayper trata esse assunto de forma ainda mais sintética e apresenta a seguinte lista:
“Nossa relação com Deus, nossa relação com o homem e nossa relação com o mundo”
(KUYPER, 2002. p, 28).
Todas as outras discussões são derivadas, direta ou indiretamente, dessas grandes
abordagens. Um dos mais persistentes desses problemas e que tem ocupado a mente dos mais
importantes pensadores, é o que trata sobre a liberdade das ações humanas em contrapartida
com a causalidade.
528
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco -UFPE, Graduado em Filosofia pela
Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Licenciado em Educação Religiosa pelo Seminário
Presbiteriano do Norte – SPN. Atualmente é professor de Introdução à Filosofia e Ética da Faculdade Decisão –
FADE. E-mail: [email protected]
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É nossa vontade realmente livre de causas e influências, ou são todas as nossas
ações “predeterminadas” de algum modo?
Na filosofia, o debate reaparece no binômio paradoxal entre autonomia versus
determinismo. A máxima da antropologia socrática: “conhece-te a ti mesmo”, apresenta uma
consciência humana autônoma, de forma que o caminho da verdade suprema deve ser
encontrado “dentro” do próprio homem. Coube a Nietzsche, entretanto, a libertação absoluta
de toda e qualquer forma de transcendência. O criador do “super-homem” chega a “matar”
Deus em busca do diploma da liberdade absoluta, para outorgá-lo ao homem:
Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra.
Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos,
meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em que vos fala de
esperanças supraterrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. Não
dão o menor valor à vida, moribundos que estão, por sua vez envenenados,
seres de que a terra se encontra fatigada; vão se por uma vez! (NIETZSCHE,
1994, p.30)
E ainda:
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!
Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o
mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu
exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue?
Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos
sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será
demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para
parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem
quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma
história superior a toda história até hoje! (NIETZSCHE. Fredrich. A Gaia
Ciência, §125).
A ciência529, por sua vez, toma emprestado, da filosofia, o termo determinismo e o
transforma na principal base do conhecimento científico da natureza, para afirmar a existência
de relações fixas e necessárias entre os seres e os fenômenos naturais, isto é, o que acontece
não poderia deixar de acontecer porque são conseqüências de causas anteriores.
529
O determinismo constitui um princípio da ciência experimental que se fundamenta pela possibilidade da
busca das relações constantes entre os fenômenos. Essa teoria afirma que o comportamento humano é
condicionado por três fatores: genética, meio e momento. Os deterministas pensam que todos os acontecimentos
do universo estão de acordo com as leis naturais, ou seja, que todo fenômeno é condicionado pelo que precede e
acompanha. Não crêem no acaso, nem no sobrenatural, propondo sempre uma investigação na causa dos
fenômenos, sem aceitar que aconteceu porque tinha de acontecer. Uma bola de bilhar arremessada com
determinada força e direção só poderá percorrer um único caminho que poderá ser traçado com perfeição se
todas as variáveis puderem ser levadas em conta, portanto, seu comportamento é determinado pela acção que a
causou. Assim, segundo o determinismo, você não pode optar por um sorvete de chocolate ou baunilha, o que
ocorre é a ilusão de escolha. Seja qual for a opção que tomar, ela já estaria pré-determinada por toda a sua
trajetória de vida e de toda a humanidade antes dela. O que acontece é que as variáveis ocorridas no ato tendem
infinito,
causando,
assim,
a
ilusão
de
livre-arbítrio
ou
escolha,
conforme:
ao
http://pt.wikipedia.org/wiki/Determinismo.
300
Nosso maior enfoque, porém, neste ensaio, será teológico. O problema é tratado,
primordialmente, entre as culturas religiosas, como sendo a relação entre a vontade humana e
a soberania divina, ou ainda, mais especificamente, como a relação entre livre-arbítrio e
predestinação ou predeterminação.
Não é raro encontrarmos posturas extremadas, ora beneficiando a total soberania
divina e a negação total da liberdade humana, o que faria de Deus o autor do pecado e do mal
ora evidenciando a total liberdade humana, o que não só nega a soberania de Deus como o
reduz a um mero “registrador” da vontade do homem.
Um dos principais exemplos da negação total da vontade humana pode ser
encontrado no Hinduísmo. Considerada a mais velha religião ainda existente no mundo, tem
no conceito de estratificação social das castas530 o exemplo máximo da aceitação do
condicionamento, por fatores externos, da vida. Um indivíduo que nasce em uma determinada
casta, julgada inferior, jamais pode ascender para uma casta superior, e, isso, determinará todo
o seu futuro.
Os mulçumanos531 também figuram entre os principais exemplos de negação da
vontade humana. Para eles, não há espaço para a atuação “livre” do homem, uma vez que
professam um determinismo absoluto, que não deixa lugar no mundo para as verdadeiras
530
A sociedade de castas é marcada pela rigidez na hierarquização. Baseia-se na hereditariedade, na profissão, na
etnia, na religião, determinando uma situação de respeitabilidade. A definição desses critérios ocorre a partir de
um conjunto de valores, hábitos e costumes definidos pela tradição. O sistema de castas assenta-se numa relação
de privilégios que alguns indivíduos possuem em detrimento dos demais. Esse tipo de organização social parte
do pressuposto de que os direitos são desiguais por natureza, uma vez que os elementos que os caracterizam são
definidos fora dos indivíduos - por exemplo, o critério para a definição de cargos e profissões se dava pela
hereditariedade (o guerreiro, o sacerdote fariam os seus filhos também guerreiros e sacerdotes). Pode-se dizer
que, nas sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de castas. As desigualdades políticas,
jurídicas, religiosas, etc. expressavam-se através do lugar que o indivíduo ocupava na estrutura de cargos e
profissões, definidos pela hereditariedade, em primeiro plano. Ainda hoje existe na Índia o sistema de castas,
embora modificado, pois coexiste com um sistema de classes sociais; mesmo assim, o estudo dessa sociedade
pode nos oferecer vários elementos para a compreensão dessa ordem social. Uma das características que
marcaram a estratificação social hindu foi a hereditariedade; o nascimento era a condição básica para se definir
uma dada posição na ordem social Os pertencentes à casta inferior eram considerados impuros e não podiam
nem sequer prestar serviços aos membros das outras castas superiores. A idéia era de que tudo o que os impuros
tocassem ficava contaminado, seja alimento, água ou roupa. Apenas as castas puras (superiores) eram
consideradas aptas a desempenhar funções públicas e a participar de determinadas atividades religiosas. As
castas impuras eram praticamente segregadas, a elas não sendo permitido freqüentar escolas, templos etc. De
forma absolutamente generalizada, é possível dizer que as quatro castas principais na Índia, durante muito
tempo, foram: brâmane (casta superior a todas), chátria (casta intermediária formada pelos guerreiros), vaixiá
(casta intermediária, mas abaixo da chátria, formada pelos comerciantes, agricultores e pastores) e a sudra ou
pária (casta mais inferior), conforme: http://ialexandria.sites.uol.com.br/textos/israel_textos/conceito.htm.
531
Os muçulmanos acreditam no qadar, uma palavra geralmente traduzida como predestinação, mas cujo
sentido mais preciso é "medir" ou "decidir quantidade ou qualidade". Uma vez que para o islão Deus foi o
criador de tudo, incluindo dos seres humanos, e sendo uma das suas características a onisciência, ele já sabia
quando procedeu à criação as características de cada elemento da sua obra teria. Assim sendo, cada coisa que
acontece
a
uma
pessoa
foi
determinada
por
Deus,
confome:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mul%C3%A7umano#Apredestina.
301
relações de causa e efeito, já que todas as ações, boas e más, foram “criadas” pelo insondável
decreto de Alá.
Não podemos deixar de citar aqui também, entre aqueles que negam
completamente qualquer tipo de liberdade humana, o hipercalvinismo532.
Em contrapartida à negação total da liberdade do homem, temos o outro extremo:
as tendências religiosas que intensificam o livre-arbítrio de tal forma que chegam a ofuscar a
soberania de Deus, como o pelagianismo romano e, principalmente, o arminianismo da
maioria das igrejas evangélicas pós-reforma protestante. Nesse sentido, Wright denuncia a
“manipulação genética” que essas igrejas estão fazendo em Deus, retirando-lhe atributos que
são próprios e exclusivos de sua natureza divina, simplesmente para “acomodar a suposição
da autonomia humana” (WRIGHT, 1998, p.14).
Como pudemos perceber acima, a busca cíclica do homem por novas respostas a
antigos problemas – ora beneficiando a liberdade do homem ora excluindo-a por completo,
em nome da soberania divina, tende a continuar. O homem só se fixará em um sistema de
resposta convincente quando entender, como afirma A.W.Pink, em seu famoso livro “Deus é
Soberano”, que as duas sentenças são verdadeiras, em certo sentido: O homem é livre e
responsável pelos seus atos e, ao mesmo tempo, Deus é Soberano.
O Calvinismo é esse poderoso sistema, não somente teológico, mas de vida.
Hermeticamente fechado, atende aos interesses mais profundos da humanidade, tanto da alma
quanto da racionalidade. O Calvinismo reconhece Deus como Deus, soberano, acima de tudo
e de todos; ao mesmo tempo em que entende o homem, na sua situação pré-queda, como livre
e pós-queda, como uma criatura decaída. O Calvinismo entende o homem e o próprio Deus,
pelo prisma das Sagradas Escrituras; ao mesmo tempo que se distancia do misticismo,
abrindo, com isso, uma importante janela para o desenvolvimento e a racionalidade,
aproxima-se, de forma profunda e coerente, com a antropologia e teologia da revelação
escrita.
Kuyper, comentando sobre o sistema de vida calvinista, faz a seguinte afirmação:
Não há dúvida, então, de que o Cristianismo está exposto a grandes e sérios
perigos. Dois sistemas de vida estão em combate mortal. O Modernismo está
comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do
homem natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da
natureza; enquanto que, por outro lado, todos aqueles que reverentemente
532
Posição extremada dos argumentos teológicos do calvinismo. Como o próprio sufixo denota, não se trata da
posição doutrinária calvinista. Os calvinistas, inclusive, reputam como não bíblicas as argumentações dos
hipercalvinistas, que negam qualquer possibilidade de causa e contingência, e afirmam que o homem jamais
possuiu livre-arbítrio, nem mesmo antes da queda, e que foi predestinado para cair.
302
humilham-se diante de Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo, e o
próprio Deus, estão resolvidos a salvar a “herança cristã”. Esta é a luta na
Europa, esta é a luta na América, e esta também é a luta por princípios em
que meu próprio país está engajado, e na qual eu mesmo tenho gasto todas as
minhas energias por quase quarenta anos.Nessa luta apologética não temos
avançado um único passo. Os apologistas invariavelmente começam
abandonando a defesa assaltada, a fim de entrincheirarem-se covardemente
um revelim atrás deles. Desde o início, portanto, tenho sempre dito a mim
mesmo, -“Se o combate deve ser travado com honra e com esperança de
vitória, então, princípio deve ser ordenado contra princípio. A seguir, deve
ser sentido que no Modernismo, a imensa energia de um abrangente sistema
de vida nos ataca; depois também, deve ser entendido que temos de assumir
nossa posição em um sistema de vida de poder, igualmente abrangente e
extenso. E este poderoso sistema de vida não deve ser inventado nem
formulado por nós mesmos, mas deve ser tomado e aplicado como se
apresenta na História. Quando assim fiz, encontrei e confessei, e ainda
sustento, que esta manifestação do princípio cristão nos é dada no
Calvinismo (KUYPER, 2002, p.19).
Certamente uma análise cuidadosa dos princípios calvinistas acerca da Soberania
de Deus e da liberdade humana trará grande luz, capaz de iluminar os recantos mais obscuros
desse antigo problema da humanidade.
1 Soberania que cria liberdade
O famoso filme do diretor Stevan Spilberg, “inteligência artificial”, aborda a idéia
de um robô criado para ter uma relação de perfeição com seu “dono”. Programado para ter um
amor incondicional, o menino-robô surge como um ser “absolutamente perfeito”; criado para
fazer tão somente aquilo que agrada aos seus compradores/familiares.
Baseados na idéia do filme, levantamos a seguinte questão: acaso Deus não
poderia ter criado o homem com tal nível de programação a ponto de ter como “único” desejo
o serviço a seu criador, da maneira como este estabelecesse, previamente, em sua própria
programação? É claro que sim.
O fato é que aprouve a Deus, em Sua soberania, diferentemente de Spilberg, criar
não somente o homem, mas criar também sua própria liberdade e autonomia. Aprouve a Deus
criar o homem livre.
Essa liberdade, porém, outorgada por Deus ao homem, precisa, à luz do
calvinismo, ser entendida dentro do contexto histórico-temporal de “antes-queda” e “pósqueda”.
Diferentemente da visão pelagiana/arminiana, para o calvinismo a inserção do
pecado, via “escolha-livre-do-homem”, que resolveu, pelo seu próprio arbítrio e vontade,
transgredir as expressas ordens do seu criador (direito concedido por Ele mesmo), trouxe para
303
si mesmo uma drástica mudança em sua natureza. Mesmo tendo sido solenemente alertado
sobre essa conseqüência, pelo seu criador, “decidiu”, sozinho, ser agente ativo e consciente
dessa mudança.
1.1 Liberdade que decide não ter liberdade
1.1.1 Situação pré-queda do homem
Agostinho costuma dizer que a antropologia bíblica poderia ser dividida em três
fazes. Na primeira delas, antes da queda, “o homem podia não pecar”. É seguindo esses
mesmos passos que o calvinismo entende a situação de liberdade do homem, antes da queda.
Passaremos a analisar os principais documentos calvinistas que tratam da criação
da liberdade do homem.
A confissão de Fé de Westminster, formulada no século XVII por cerca de 121
teólogos calvinistas, faz a seguinte afirmação, no capítulo que trata sobre a criação:
Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e
fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e
perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita
em seus corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de
transgredi-la, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era
mutável (WESTMINSTER, 1999, IV.II).
Um importante teólogo calvinista comentando sobre o que possibilitou que Adão e
Eva pecassem apresenta o seguinte motivo:
Deus os deixou à liberdade da sua própria vontade, em vez de usar da sua
onipotência para impedi-los de pecar. Por ser onipotente, Deus com certeza
poderia ter impedido a raça humana de cair em pecado. Mas em Sua
sabedoria não escolheu impedir a queda. Como Deus conteve a Sua
onipotência e deixou Adão e Eva à própria vontade deles, foi-lhes
plenamente possível optarem por cometer o pecado (GEERBARDUS, 2007,
p.87).
Ainda sobre a criação da liberdade do homem:
O homem é a única das criaturas dentre as que Deus criou que é consciente
de si mesma. Deus fez o homem à sua imagem mental e moral. O
Dr.Albertus Pieters diz: “isso compreende o poder autoconsciente de
raciocinar, a capacidade da autodeterminação e o senso moral. Em outras
palavras, ser uma criatura que pode dizer “Eu sou”, eu devo, eu irei” – isso é
o que significa ser feito à imagem de Deus (VAN HORN, 2000, p.25).
304
Outro importante teólogo calvinista, o holandês Berkhof, ainda comentando sobre
a criação da liberdade, afirma:
Sua condição era preliminar e temporária, podendo levar a maior perfeição e
glória ou acabar numa queda. Foi por natureza dotado daquela justiça
original que é a glória máxima da imagem de Deus e, consequentemente,
vivia num estado de santidade positiva. A perda daquela justiça significaria a
perda de uma coisa que pertencia à própria natureza do homem em seu
estado ideal. O homem podia perdê-la e ainda continuar sendo homem, mas
podia não perdê-la e continuar sendo o homem no sentido ideal da palavra
(BERKHOF, 1990, p.209).
Cremos que já ficou claro o suficiente que o calvinismo entende que o homem, em
seu estado natural, possuía o que costumeiramente é chamado de livre-arbítrio. No entanto,
não podemos encerrar essa cessão sem antes verificarmos o capítulo da Confissão de
Westminster que trata especificamente sobre a criação da liberdade ou do livre-arbítrio do
homem:
Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado
para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer
necessidade absoluta da sua natureza. Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40;
Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. O homem, em seu estado de inocência, tinha
a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus,
mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder. Ec.
7:29; Col. 3: 10; Gen. 1:26 e 2:16-17 e 3:6 (WESTMINSTER, 1999, IX. I,
II).
1.1.2 Situação pós-queda do homem
Precisamente neste ponto começam as divergências sobre a antropologia Bíblica.
Que o homem (em sua situação pré-queda) era livre em seu arbítrio, agostinianos e
pelagianos, calvinistas e arminianos, andam juntos. A bifurcação teológica, entretanto,
perpassa pelas conseqüências dessa “escolha consciente” em não obedecer e não levar em
conta as ameaças solenes de Deus.
Para Pelágio essas conseqüências foram graves mas, apesar disso, ela não afetou a
“natureza do homem”. Para ele, “a liberdade é o bem supremo, a honra e a glória do homem,
o bonum naturae, que não pode ser perdido [...]. Essa habilidade é dada ao homem por Deus
na criação, e é um aspecto essencial da natureza constitutiva do homem” (SPROUL, 2001,
p.32). Ele acreditava que a natureza do homem continuou sendo livre e boa, da mesma forma
como foi integralmente criada.
305
Armínius, não concordava com Pelágio, relativamente às conseqüências da queda
para a natureza do homem e entendia, em certo sentido, ser necessário o auxílio da graça
divina para o homem voltar a obedecer. No entanto, em sua opinião, essa graça não é um fim
em si mesma e que a regeneração é gradativa e não instantânea, depende, inclusive, da
santificação enquanto processo. “Ele declara que esta obra da regeneração e iluminação não é
completada num momento; mas [...] é elevada e promovida de tempos em tempos, pelo
crescimento diário” (SPROUL, 2001, p141).
Em última instância e para finalizar aqui essa exposição da antítese do calvinismo,
Armínius acreditava que, de alguma forma, havia restado, mesmo depois da queda, algum tipo
de liberdade no homem; uma porção de livre-arbítrio o que, indiscutivelmente, o aproxima de
Pelágio, conforme demonstra Sproul, citando Armínius:
Todas as pessoas não-regeneradas tem liberdade de vontade e uma
capacidade para resistir ao Espírito Santo, para rejeitar a oferta da graça de
Deus, para rejeitar a oferta da graça de Deus, para desprezar o evangelho e
para não abrir àquele que bate à porta do coração; e essas coisas eles
realmente podem fazer sem qualquer diferença entre o eleito e o répobro
(SPROUL, 2001, p.143).
Diferentemente de Pelágio e Armínius a visão calvinista entende que, com a
queda, o homem torna-se “totalmente depravado” em todas as suas instâncias e assim como
Agostinho, nessa nova realidade o homem “não pode não pecar”.
Sobre os efeitos da queda, afirma a Confissão de Fé de Westminster:
Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com
Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em
todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. Gen. 3:6-8; Rom. 3:23;
Gen. 2:17; Ef. 2:1-3; Rom. 5:12; Gen. 6:5; Jer. 17:9; Tito 1:15; Rom.3:1018. IV. Desta corrupção original pela qual ficamos totalmente indispostos,
adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que
procedem todas as transgressões atuais. Rom. 5:6, 7:18 e 5:7; Col. 1:21;
Gen. 6:5 e 8:21; Rom. 3:10-12; Tiago 1:14-15; Ef. 2:2-3; Mat. 15-19
(WESTMINSTER, 1999, VI.II).
O mesmo documento ainda expõe de forma clara que o homem, que antes era
detentor do “livre-arbítrio”, com a queda perde-o inteira e totalmente, nada restando.
O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder
de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de
sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no
pecado, é incapaz de, pelo seu pr6prio poder, converter-se ou mesmo
preparar-se para isso. Rom. 5:6 e 8:7-8; João 15:5; Rom. 3:9-10, 12, 23;
Ef.2:1, 5; Col. 2:13; João 6:44, 65; I Cor. 2:14; Tito 3:3-5.
(WESTMINSTER, 1999, IX.III).
E ainda:
306
Todo o pecado, tanto o original como o atual, sendo transgressão da justa lei
de Deus e a ela contrária, torna, pela sua própria natureza, culpado o pecador
e por essa culpa está ele sujeito à ira de Deus e à maldição da lei e, portanto,
exposto à morte, com todas as misérias espirituais, temporais e eternas. I
João 3:4; Rom. 2: 15; Rom. 3:9, 19; Ef. 2:3; Gal. 3:10; Rom. 6:23; Ef. 6:18;
Lam, 3:39; Mat. 25:41; II Tess. 1:9 (WESTMINSTER, 1999, VI.VI).
Os Cânones de Dort, outro documento calvinista, elaborado em 1618 em contraargumentação ao documento apresentado pelos seguidores de Armínius em 1609, na Holanda,
que ficou conhecido como “Remonstrance”, faz a seguinte afirmação acerca da situação pósqueda do homem:
Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos puros [...].
Mas, desviando-se de Deus [...] Pela sua própria livre vontade, ele se
privou destes dons excelentes. Em lugar disso trouxe sobre si
cegueira, trevas terríveis, leviano e perverso juízo em seu
entendimento; malícia, rebeldia e dureza em sua vontade e seu
coração; também impureza em todos os seus afetos (DORT, 1996,
III.I).
Lutero também subscrevia integralmente o pensamento de Calvino quanto à
situação pós-queda. Em sua obra “nascido escravo”, um famoso debate com Erasmo de
Roterdan, faz a seguinte afirmação:
Erasmo [...] você assevera que o “livre-arbítrio” é a capacidade que a
vontade humana tem, por si mesma, de decidir [...]. Os pelagianos também
fizeram isso. Mas você os ultrapassa! [...]. Prefiro até mesmo o ensinamento
de alguns dos antigos filósofos aos seus. Eles diziam que um homem
entregue a si mesmo só faria o errado. O homem só poderia escolher o bom
com a ajuda da graça divina. Eles diziam que os homens são livres para
decair, mas que precisam de ajuda para elevarem-se! Porém, é motivo de
riso chamar a isso de “livre-arbítrio”. Com base em tais conceitos, eu
poderia afirmar que uma pedra tem “livre-arbítrio”, pois só pode cair, a
menos que seja erguida por alguém! O ensino daqueles filósofos, põem,
ainda é melhor do que o seu. A sua pedra, Erasmo, pode escolher se sobe ou
desce! (LUTERO, 1988, p.41).
O Catecismo Maior de Westminster dá a seguinte resposta à pergunta de n° 23:
Em que estado a queda deixou a humanidade?: “A humanidade por causa da queda foi
deixada em estado de pecado e de miséria” (CATECISMO MAIOR, 2007. 23).
Comentando sobre os resultados imediatos da queda e a situação em que ficou o
homem, Berkhof faz a seguinte afirmação:
O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um
resultado dele no sentido estrito da palavra, foi a depravação total da
natureza humana. C contágio do seu pecado espalhou-se imediatamente
pelo homem todo, não ficando sem ser tocada nenhuma parte da natureza,
mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e da alma [...].
Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua
307
consciência [...]. Não somente a morte espiritual, mas também a morte
física resultou do primeiro pecado do homem (BERKHOF, 1990.p.227).
1.1.2.1 A decisão que afeta a posteridade
Os principais documentos calvinistas reconhecem que, em Adão, toda a sua
descendência pereceu e que as mesmas conseqüências advindas sobre Adão passaram
também, numa espécie de “transmissão hereditária”, para sua descendência: “Sendo eles o
tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma
morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua
posteridade, que deles procede por geração ordinária”. At. 17:26; Gen. 2:17; Rom. 5:17, 1519; I Cor. 15:21-22,45, 49; Sal.51:5; Gen.5:3; João3:6 (WESTMISNTER, 1999, VI.III).
Os Cânones de Dort afirmam o seguinte, sobre esse assunto:
Depois da queda, o homem corrompido gerou filhos corrompidos. Então a
corrupção, de acordo com o justo julgamento de Deus, passou de Adão até
todos os seus descendentes, com exceção de Cristo somente. Não passou por
imitação, como os antigos pelagianos afirmavam, mas por procriação da
natureza corrompida. Portanto, todos os homens são concebidos em pecado
e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que o salve,
inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem a
graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem
retornar a Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar
dispostos para esta correção. (DORT, 1996, III.II, III).
O breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à pergunta 16:
Todo o gênero caiu pela transgressão de Adão? “Visto que o pacto foi feito com Adão, não só
para ele, mas também para a sua posteridade, todo gênero humano, que procede por geração
ordinária, pecou nele e caiu com ele na sua primeira transgressão” (BREVE CATECISMO,
2000. 16).
2 A soberania que resgata a liberdade
Como vimos, os principais representantes da doutrina calvinista são unânimes em
afirmar a situação do homem pós-queda como uma situação de morte espiritual e total
depravação de todo o seu ser.
A expulsão do homem do paraíso, registrada em Gêneses, como uma das
conseqüências de seu pecado, tem sido entendida “simplesmente” como um ato punitivo de
308
Deus e de fato foi; mas não só. Esse ato pode ser entendido também como uma providência
benevolente de Deus para que o homem, agora decaído, não permanecesse eternamente nessa
situação. Nesse sentido, o Breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à
indagação n° 20: Deixou Deus todo gênero humano perecer no estado de pecado e miséria?:
“Tendo Deus, unicamente pela sua boa vontade, desde toda a eternidade escolhido alguns para
a vida eterna, entrou com eles em um pacto de graça, para livrá-los do estado de pecado e
miséria e os levar a um estado de salvação por meio de um redentor” (BREVE CATECISMO,
2000. 20).
Geerbardus, teólogo calvinista, comentando sobre essa questão faz a seguinte
afirmação:
Deus salva os seus eleitos tão somente por causa de seu amor e
misericórdia. Isso é, nada obriga Deus salvar nenhuma parte da raça
humana, mas Ele, na verdade, por causa do Seu amor e misericórdia,
desejou e planejou a salvação de alguns deles [...]. E não há parcialidade
nem injustiça nisso, pois Deus não deve a salvação a ninguém. Todos
pecaram contra ele, perderam todo o direito e Ele nada deve a ninguém
senão condenação (GEERBARDUS, 2007. p.110).
Na visão calvinista, para essa situação pós-queda em que o homem se meteu, só há
uma esperança de reversão desse tenebroso quadro: uma intervenção externa e soberana que
só Deus pode realizar, dando-lhe vida novamente, tirando-lhe do estado de miséria e morte
espiritual, devolvendo a vida e com ela a liberdade:
Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e
beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu
em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida;
para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça
e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou
de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou
causa. Ref. Ef. 1:4, 9, 11; Rom. 8:30; II Tim. 1:9; I Tess, 5:9; Rom. 9:11-16;
Ef. 1: 19: e 2:8-9 (WESTMINSTER, 1999, III, V).
E ainda:
Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no
tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e
pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e
morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação.
Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de
compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus
corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas
vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e
atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui
livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça. Ref. João 15:16; At.
13:48; Rom. 8:28-30 e 11:7; Ef. 1:5,10; I Tess. 5:9; 11 Tess. 2:13-14;
309
IICor.3:3,6; Tiago 1:18; I Cor. 2:12; Rom. 5:2; II Tim. 1:9-10; At. 26:18; I
Cor. 2:10, 12: Ef. 1:17-18; II Cor. 4:6; Ezeq. 36:26, e 11:19; Deut. 30:6;
João 3:5; Gal. 6:15; Tito 3:5; I Ped. 1:23; João 6:44-45; Sal. 90;3; João 9:3;
João6:37; Mat. 11:28; Apoc. 22:17 (WESTMINSTER, 1999, X,I).
Para maiores esclarecimentos sobre esse tópico recomendamos uma análise mais
detalhada sobre o segundo e terceiro pontos da sistematização doutrinária do calvinismo:
Eleição Incondicional e Expiação Limitada, respectivamente, o que não faremos aqui por
motivo de delimitação dessa abordagem.
2.1 A mudança no conceito de liberdade em benefício do homem
Diferentemente da liberdade que dispunha o homem, antes da queda – não tendia
nem para o bem nem para o mal -, de forma que essa liberdade não sofria nenhuma pressão de
natureza, a liberdade que Deus devolve, tão somente aos eleitos, é uma liberdade segundo sua
nova natureza.
Agostinho resumia essa terceira fase de sua antropologia dizendo que após a
operação da graça de Deus que Re-vivifica o homem, tirando-o do estado de perdição para o
estado de salvação, “o homem não pode pecar”.
Interessante notarmos que no capítulo que trata sobre o livre-arbítrio, a Confissão
de Fé de Westminster descreve um novo tipo de liberdade: uma liberdade que conduz o
homem, devido à nova semente de vida plantada no seu coração, pelo próprio Deus, a decidir
e a querer apenas o bem e às coisas que o conduz cada vez mais próximo de Deus. Contudo,
isso não deve ser traduzido como uma “nova escravidão da vontade” e sim como uma Recriação de uma vontade que agora se coaduna com a sua nova natureza. Essa vontade, no
entanto, ainda está condicionada pelas contingências desse mundo, de forma que pode em
algum momento variar para o que é mau, mas não de forma “natural” e essencial. Essa
espécie de “vontade livre para o bem”, que denota também uma espécie de “homem ideal”,
ocorrerá definitivamente tão somente nos céus – habitação final e eterna dos eleitos – mas,
ocorrerá. Vejamos textualmente o documento calvinista:
Quando Deus converte um pecador e o transfere para o estado de graça, ele o
liberta da sua natural escravidão ao pecado e, somente pela sua graça, o
habilita a querer e fazer com toda a liberdade o que é espiritualmente bom,
mas isso de tal modo que, por causa da corrupção, ainda nele existente, o
pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja somente o que é bom, mas
também o que é mau. Col.1: 13; João 8:34, 36; Fil. 2:13; Rom. 6:18, 22;
Gal.5:17; Rom. 7:15, 21-23; I João 1:8, 10. É no estado de glória que a
vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só. f.
4:13; Judas, 24; I João 3:2 (WESTMINSTER, 1999, IX, IV, V).
310
No capítulo que trata especificamente da liberdade cristã (dos eleitos, agora
regenerados) o mesmo documento anteriormente citado faz a seguinte afirmação:
A liberdade que Cristo, sob o Evangelho, comprou para os crentes consiste
em serem eles libertos do delito do pecado, da ira condenatória de Deus, da
maldição da lei moral e em serem livres do poder deste mundo. do cativeiro
de Satanás, do domínio do pecado, do mal das aflições, do aguilhão da
morte, da vitória da sepultura e da condenação eterna: como também em
terem livre acesso a Deus, em lhe prestarem obediência, não movidos de um
medo servil, mas de amor filial e espírito voluntário. Todos estes privilégios
eram comuns também aos crentes debaixo da lei, mas sob o Evangelho, a
liberdade dos cristãos está mais ampliada, achando-se eles isentos do jugo da
lei cerimonial a que estava sujeita a Igreja Judaica, e tendo maior confiança
de acesso ao trono da graça e mais abundantes comunicações do Espírito de
Deus, do que os crentes debaixo da lei ordinariamente alcançavam. Tito
2:14; I Tess. 1: 10; Gal. 3:13; Rom. 8: 1; Gal. 1:4; At. 26:18; Rom. 6:14; I
João 1:7; Sal. 119:71; Rom. 8:28; I Cor, 15:54-57; Rom. 5l: 1-2; Ef. 2:18 e
3:12; Heb. 10: 19; Rom. 8:14. 15; Gal. 6:6; I João 6:18; Gal. 3:9, 14, e 5: 1;
At. 15: 10; Heb. 4:14, 16, e 10: 19-22; João 7:38-39; Rom. 5:5
(WESTMINSTER, 1999, XX.I).
A garantia de que essa liberdade jamais terá fim (diferentemente do estado
transitório da liberdade inicial) está sintetizada no último ponto da antítese calvinista à
Remostrance, sob o título Perseverança dos Santos.
Conclusão
O Calvinismo não só é uma resposta convincente ao grande problema da
humanidade, sintetizada no binômio Soberania de Deus versus Liberdade humana, ou ainda,
como trata a filosofia: Liberdade versus necessidade.
Ele é um poderoso sistema de vida, hermeticamente fechado, capaz de responder
às questões mais difíceis em todos os níveis e áreas do conhecimento humano. O calvinismo é
um dos poucos sistemas que evidencia na prática seus pressupostos teóricos: a humanidade
caminha a passos largos em direção à maldade, chegando cada vez mais próximo da
perfeição, evidenciando, de forma inconteste a sua “depravação total”.
Os eleitos, em contrapartida, (calvinistas e não calvinistas), demonstram com suas
vidas uma atitude diferenciada; fruto da inclusão, por amor, de sua “nova vontade” – livre
para o bem – no seu coração, pela graça de Deus. Os eleitos calvinistas, por sua vez,
desenvolvem uma ética tão peculiar que pode ser vista e não negada, mesmo por aqueles que,
intrinsecamente, estão distanciados desse sistema, como bem observa Weber:
O Deus de Calvino exigia de seus crentes não boas ações isoladas, mas uma
vida de boas ações combinadas em um sistema unificado. Mas no curso de
311
seu desenvolvimento, o calvinismo acrescentou algo de positivo a isso tudo,
ou seja, a idéia de comprovar a fé do indivíduo pelas atitudes seculares. [...]
consideramos apenas o calvinismo e adotamos a doutrina da predestinação
como arcabouço dogmático da moralidade puritana, no sentido de
racionalização metódica da conduta ética (WEBER, 2004. p.91,94,96).
Referências
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CATECISMO MAIOR. Westminster. São Paulo: CEP, 2007, 115p
DORT: Os Cânones. Contra o Arminianismo. São Paulo: Ed.Cultura Cristã, 1996. p
GEERBARDUS, Jabannes. Catecismo Maior comentado. São Paulo: Puritanos, 2007, 656p
KUYPER. Abraham. Calvinismo. Trad.Ricardo Gouvêa. Cambuci-SP: 2002. 208p
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SPENCER. Duane Edward. Tulip. Trad.Walter Graciano.Cambuci-SP: 1992. 117p
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Cultura Cristã, 2001. 239 p.
HORN VAN. Leonard. Estudos no Breve Catecismo. São Paulo: Puritanos, 2000, 198p
WEBER. Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo-SP: Martin Claret, 2002.
230p
WESTMINSTER. Confissão de Fé. São Paulo: CEP: 1999, 96p
312
DA RELAÇÃO ENTRE ESPIRITUALIDADE E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE
ADMINISTRAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE:
Um Estudo a Partir da Existência Humana e a Dimensão Psico-Religiosa
Fábio Medeiros Cordeiro533
RESUMO: O tema da espiritualidade e da formação profissional do administrador /gestor
notadamente se apresenta na contemporaneidade com elementos que a primeira vista podem parecer
ou serem considerados antagônicos diante do processo histórico tanto da espiritualidade manifesta nas
diversas concepções religiosas quanto no processo histórico da formação científica. O presente
trabalho por considerar o fenômeno da espiritualidade (manifestação do sagrado) como um elemento
importante dentro do processo de formação do administrador a ser pesquisado, se propõe analisar a
espiritualidade que está se manifestando na contemporaneidade como uma necessidade ou apelo
humanista. Palavras-chave: Espiritualidade, Religião, Sagrado, Administrador.
ABSTRACT: The theme spirituality and the professional development of the administrator has been
remarkably presented with elements that, at first sight, seem to be considered antagonistic in the
historical process both in the spirituality which is present in various religious conceptions and in the
historical process of the scientific development . This current piece of work has the proposition of
analyzing, by considering the phenomenon of the spirituality (manifestation of the sacred) as an
important element within the development of administrator to be examined, the spirituality is making
known in the contemporary world as a real necessity or a humanistic appeal. Key-words: Spirituality,
Religious, Sacred, Administrator.
Introdução
O presente trabalho é motivado pelo interesse de compreensão de um fenômeno, o
qual vem se manifestando já alguns anos, desde o final dos anos 80 e início da década de 90,
no século passado, e vem ganhando terreno neste início de século XXI.
Apresenta-se tal fenômeno na formação profissional, em especial dos
administradores, através de uma literatura específica, paralelamente à formação acadêmica e
vem ganhando força (senão um modismo?) e procurando uma consolidação no mundo
humano e, se é possível dizer, na formação profissional. Uma tendência focada na formação
humanística com características atribuídas à espiritualidade.
A perspectiva de análise a partir do referencial das Ciências da Religião nos
pareceu mais apropriado para o estudo do tema proposto, pois a temática suscita, ou mesmo
implica quase que necessariamente, um olhar cuidadoso sobre a espiritualidade (expressão de
533
Professor de Filosofia e Ética no curso de Administração da FAFIRE (Faculdade Frassinetti do Recife)
(Mestrando em Ciências da Religião pela UNICAP). Endereço eletrônico: [email protected]
313
religiosidade
e/ou
mística)
em
modernidade/pós-modernidade?!).
nossa
contemporaneidade
(interface
do
binômio
534
Terrin expressa muito bem um sentimento que se manifesta em muitos quanto a
difusão de novas formas de religiosidade:
É como acordar numa manhã e encontrar um mundo que não é mais o de
sempre, familiar, conhecido. É assim que ocorre e está ocorrendo no mundo
religioso a respeito de nossas tradições, de nossos códigos convencionais
estabelecidos e consolidados por toda uma tradição. O mundo religioso era
parte das nossas seguranças, das nossas conquistas históricas, tradicionais,
culturais; até essa porção de mundo agora está mudando e está se
transformando com uma aceleração insuspeitada. Trata-se de uma mudança
que não é indolor: comporta amplas transformações em nosso costume; um
pequeno choque psicológico para quem vivia suas próprias certezas
assimiladas e induzidas por meio da própria biografia religiosa e da própria
tradição histórica.535
E Diante do pluralismo religioso que se manifesta em nossos dias Aragão propõe:
O caráter absoluto do cristianismo precisa ser reinterpretado, pois, como
proposição de valor absoluto do Evangelho da graça para todas as pessoas, e
não mais como pretensão absoluta de uma comunidade religiosa particular.
A reflexão avança novas bases lógicas para uma teologia do diálogo.536
A procura e/ou tentativas de vivências da espiritualidade vem se fazendo presente
em diversos movimentos como afirma Aragão:
Há indícios de movimentos profundos de busca transreligiosa de
espiritualidade e de análise transdisciplinar do sagrado. Mas, sob signo da
pós-modernidade, o sagrado que aparece mais é de novo selvagem, buscado
por adesão seletiva, com um conteúdo religioso auto-sistematizado para
atender aos interesses emocionais do momento ou ainda à busca mágica de
prosperidade.537
Feito estas considerações será apresentada uma reflexão da contribuição dada pelo
estudo da existência humana e a dimensão psico-religiosa - como mais um constructo no
desenvolvimento do estudo das Ciências da Religião - na tentativa de contribuir na busca de
compreensão da relação entre espiritualidade e formação do profissional de Administração – e
do fenômeno como expressão do sagrado.
534
Se considerarmos as íntimas relações entre os fenômenos religiosos e a dinâmica histórica da formação da
nossa sociedade brasileira demonstradas nos estudos de José Bittencourt Filho (2003), há uma diversidade de
interpretações e vivências cristãs, bem ou mal entendido e/ou vivido, nas diversas denominações da religião
cristã no Brasil em especial, bem como no sincretismo(s) e religiosidade(s), com acervo de valores religiosos e
simbólicos.
535
TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 347
536
ARAGÃO, Gilbraz de S. in Pluralismo religioso: entre e além dos absolutos. Religião e Transformação
Social no Brasil. Soter (org.). São Paulo: Paulinas, 2007. p. 273..
537
Idem, ibidem. p. 270-271.
314
1 Do fenômeno da espiritualidade e formação do profissional de administração
Em nosso mundo contemporâneo explicitam-se as marcas das experiências
religiosas repressoras e/ou libertadoras, alienantes e se presentificam no ser humano que
deseja e quer vivenciar o ideal da felicidade de algum modo.
De modo que para Terrin (2003), é preciso dizer que a religiosidade de nossos dias
tem o foco na vertente místico-oriental e que “poucos movimentos ainda procuram, ao
contrário, uma concepção de personalística de Deus e do divino”. Pois, segundo Terrín a
religiosidade de vertente místico-oriental, move-se sobre um “misticismo vago” de modo que:
Nessa concepção, até o homem perde a identidade, do mesmo modo que o
divino perde a sua identidade e se identifica com o mar do qual é uma onda,
com o cosmo do qual é uma vibração particular de energia de condensação
de energia. A psique, por sua vez, converte-se no momento em que
podemos nos unir intimamente com o divino sem ulteriores mediações, sem
saltos qualitativos mediante uma simples dilatação espiritual da
consciência.538
Buscar entender a o sentido de “identidade”, ou melhor “singularidade” do
homem, tida como perdida ou des-construída na vivência atual, é um dos objetivos do
trabalho perspicaz nos critérios de análise tanto da psicologia, da psicanálise, quanto da
história, da antropologia e da teologia. Pois, afirma Campos:
[...] A expansão das mais diferentes manifestações de religiosidade constitui
um claro exemplo da apropriação conflitiva da crença no sagrado, por parte
do sujeito pós-moderno, na sua busca de um sentido para a vida.[...] Ao que
parece, os indivíduos buscam, nas mais diferentes formas de religiosidade e
crenças sobrenaturais, identidades que possibilitem novas singularizações
para enfrentar problemas, tais como a discriminação, o sentimento de
desterritorialização, de desorientação generalizada, de solidão, provocados
pela multiplicidade de valores e modelos culturais.539
E por, assim dizer, propicia “um olhar extremamente cuidadoso” sobre a nova
religiosidade.
Como podemos notar a nova religiosidade adapta-se facilmente a todas as
tradições religiosas, junta ciência, sabedoria, psicologia e religião e mistura
numa mística “universal” que resolve em perspectiva todos os grandes
problemas do homem e da humanidade. Nesse quadro, Deus e o divino têm
sua função, mas são mais a alma do mundo, o espírito que age em todas as
538
TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2003. p.
388-389.
539
CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. Religião e Sociedade: Identidades ou Singularidades. in Religião e
Transformação Social no Brasil. Soter (org.). São Paulo: Paulinas, 2007. p. 320-321.
315
realidades sem, contudo, ter um rosto, um nome particular a não ser o da
“totalidade” que abraça tudo.540
E acrescenta:
A nova religiosidade, assim definida e entendida, naturalmente comporta
também uma mudança de perspectiva na qual o destino de Deus e do divino
fica submetido a parâmetros gnósticos, pelo fato de tudo ser parte da
experiência interior que veicula também o divino, aliás é a sua própria
explicitação. A tendência “misticizante” transforma, portanto, in toto o
sentido da nossa fala a respeito de Deus e anuncia uma mudança da visão
semítica do Deus “pessoal” para uma visão “impessoal”, “totalizadora”, que
cruza efetivamente com o antigo gnosticismo e, em geral, com a concepção
histórico-religiosa do divino própria das religiões orientais.541
Parece-nos então, que o tema da espiritualidade e da formação profissional do
administrador se apresenta na contemporaneidade com elementos que a primeira vista podem
parecer ou serem considerados antagônicos diante do processo histórico tanto da
espiritualidade manifesta nas diversas concepções religiosas (e, ainda mais desafiador
levando-se em conta uma matriz religiosa brasileira de caráter cristão?) também quanto no
processo histórico da formação científica, como afirma Vasconcelos
Com o surgimento da Modernidade e a compreensão da vida como processo
histórico, a afirmação da autonomia da razão humana, o otimismo diante
das possibilidades do ser humano como sujeito histórico, entre outros trouxe
à tona a consciência de que o sujeito moderno está dentro de um processo
histórico, no qual ele é sujeito. Na construção desse processo, ele vai
manifestando todas as suas potencialidades, inerentes ao seu ser, livre e
racional, na medida em que constrói a história da emancipação humana.542
Mas, o próprio Vasconcelos nos lembra:
Porém o século XX entrou em um processo de transformação que levou e
leva a muitos de nós a uma experiência de total perplexidade: por um lado,
tomamos consciência dos limites da nossa linguagem e, conseqüentemente,
da nossa incapacidade de objetivar o real. [...] Todo o otimismo ingênuo
sobre o ser humano foi desmascarado e uma grande fenda foi aberta nas
pretensões da Modernidade.[...] O declínio das metanarrativas de caráter
totalizantes, universais, e atemporais, impede a afirmação de qualquer
grande verdade, o que faz da pós-Modernidade o lugar, por excelência, do
efêmero, portanto da incerteza. [...] A condição pós-Moderna é a condição
da consciência que se confronta com a sua finitude, sem tentar buscar
construir, novamente, novas totalidades que a livre de sua condição, sem
540
Idem, ibidem. p. 389-390.
Idem, ibidem. p.390-391.
542
VASCONCELOS, Sergio Sezino Douets. in Identidade(s) Religiosa(s) Pós-Moderna(s) e Sua Relevância
Social. Religião e Transformação Social no Brasil. Soter (org.). São Paulo: Paulinas, 2007. p. 311.
541
316
cair na indiferença, nem em otimismo cheios de sonhos de “onipotência
infantil.” 543
Serão de fato somente aparências
antagônicas na contemporaneidade:
espiritualidade e formação profissional do administrador? Ou são outras tentativas de
respostas à busca de sentido do viver humano? E Vasconcelos nos dá uma pista de possível
compreensão:
[...] O pós-moderno não relativiza os sistemas religiosos existentes,
querendo criar um novo sistema, para além dos atuais. Ele suspeita de todo
o sistema e essa é a condição atual.[...] Por isso, para ele, provavelmente,
cada vez mais, a religiosidade e a espiritualidade sejam as dimensões
possíveis de uma experiência de Deus e não dos antigos ou novos sistemas
religiosos. Nesses cenários, a religião é privatizada, a preocupação dos
sujeitos não é a de confrontar-se com a tradição que constitui a identidade
de um sistema religioso, mas sim a busca de experiências religiosas, de
vivência espiritual. A orientação religiosa é marcada pela interioridade das
pessoas, por isso os sentimentos individuais ganham importância
decisiva.544
A realidade vem nos revelando uma imbricada relação, quase que necessária a
entre o discurso da espiritualidade e a vivência dela através da vida no seu cotidiano, por
exemplo da experiência do trabalho profissional, no caso em questão dos administradores.
2
Um olhar sobre o fenômeno da espiritualidade e formação do profissional de
administração a partir da(s) Ciência(s) da Religião
Empresários bem sucedidos estão percebendo cada dia mais que não basta ter
empresas lucrativas, com produtos e serviços de qualidade, produtivas, inovadoras, e com
qualidade de vida no trabalho. A nova tendência lhes impõe desafios adicionais: cuidarem
também de questões sociais, ambientais e espirituais enfrentadas pela sociedade. Eles estão
percebendo que, cuidar desta nova tendência, lhes traz enorme vantagem competitiva.
Diz Queiruga:
A humanidade caminha, com efeito, rumo a novas configurações culturais,
sociais, econômicas, políticas e religiosas de tão radical novidade que
rompe todos os esquemas do presente. [...] A razão é que nossa visão atual
de Deus está marcada desde a raiz pelas experiências e pelos conceitos de
um mundo que deixou de ser nosso, pois dele nos separa um dos cortes mais
543
544
Idem, ibidem. p. 312-314.
Idem, ibidem. p. 315-316.
317
profundos na história da humanidade: a emergência do paradigma
moderno.545
Num país, como o Brasil, em que a qualidade da educação ainda enfrenta
obstáculos de ordem sócio-política e que repercute na competitividade de mercado, uma
parcela do grande público encontra nos livros de auto-ajuda, por exemplo, uma forma de
preencher algumas lacunas da e na formação escolar e/ou acadêmica.
Assim, notadamente nas obras como as de auto-ajuda, também o apelo ou a
necessidade da espiritualidade tem sido evocada continuamente. Livros como O monge e o
executivo de James Hunter (2004) expressam muito bem essa demanda.
Observa-se que o apelo ou a necessidade de uma espiritualidade na formação do
administrador na contemporaneidade vem se tornando recorrente, e, não se apresenta tão
somente nos livros de auto-ajuda. Esse procedimento é de fato constado nas diversas
publicações da área administrativa, como o consultor norte-americano Hawley (1984),
empenhado na busca de modelos de comportamento gerencial para o século XXI ressalta a
dimensão do “Saber-Ser” quando relata: “As questões fundamentais enfrentadas pelos
gerentes e líderes contemporâneos não são mais da tarefa da estrutura e sim questões de
espírito”.
A exigência de uma formação mais humanista em que se dê atenção à superação
de uma formação positivista é referendada por autores como Covre:
A perspectiva tradicional do ensino de administração fundamentada,
sobretudo na racionalização mecanicista cartesiana, não mais garante a
produção de resultados satisfatórios e adequados para a formação de
administradores que irão atuar em cenários de transformações contínuas,
porque se encontra em dissonância com a realidade empresarial econômica
atual 546.
A preocupação com o conhecimento e aplicabilidade da ética nos negócios
(possibilidades e impedimentos) é um elemento significativo, atrelada ao aspecto da liderança
administrativo-executiva voltada a partir de uma espiritualidade.
Segundo Botelho
Os aspectos indispensáveis para que haja administradores sinergéticos
passam pela pertinácia, democratização das informações, capacidade de
administrar conflitos, capacidade para gerar e implantar mudanças,
545
QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998. p.6 – 11.
COVRE, M.L.M. de. A formação e a ideologia do administrador de empresas. 3a.ed., São Paulo: Cortez,
1991. p. 27.
14
BOTELHO – F. Eduardo. Do gerente ao líder: a evolução profissional. 2a. Ed. São Paulo: 1991,. p.163-164.
15
HARMAN, Willis .O mundo dos negócios no século XXI: um pano de fundo para o diálogo. São Paulo: Ed.
Cultrix, 1996. p.19.
546
318
flexibilidade, criatividade, empatia, liderança etc. (sic)... sintetizo estas
habilidades e competências em quatro: humildade, simplicidade,
comunicabilidade e uso correto do poder.547
E conforme Harman:
Esses valores compreendem uma melhoria na qualidade dos
relacionamentos, cooperação, carinho e atenção, justiça social, valores
humanitários, ecológicos e espirituais, bem como, respeito e confiança para
com as demais criaturas do planeta.548
Mas que espiritualidade é esta que se apresenta na contemporaneidade
especificamente para o administrador? Podemos afirmar a existência de uma espiritualidade
diferentemente da espiritualidade presente nas religiões históricas? A espiritualidade continua
atualíssima diante da perda de sentido do trabalho como realização humana, por exemplo? O
recorrer ao elemento espiritual (espiritualidade) dentro da formação administrativa é uma
saída para as imensas contradições de uma formação tecnicista? Partindo da experiência do
sagrado é uma tentativa de suprir determinada carência da sociedade materialista-consumista,
avessa aos valores mais tradicionais? É uma estratégia para minimizar as relações conflituosas
do mundo do trabalho, diante do crescente desemprego ou subemprego?
Existem tantas pequenas novas religiões, com valores transversais e
verticais, com concepções transcendentalistas e imanentistas, com
perspectivas milenaristas e visões místicas, co concepções da divindade
dentro o homem e com a crença de que o reino de Deus está neste mundo.
São movimentos que nascem depressa e às vezes com desembaraço; parece
que se fazem portadores de grandes carismas, como em geral as
comunidades ao nascer: desenvolvem-se a capacidade de corromper o
conjunto cristão e conseguem dar a impressão de que religião vive
atualmente apenas de sujeitos que criam por si mesmos a sua experiência
religiosa.549
A existência humana está à prova. É inegável a constante busca que caracteriza o
ser humano como um ser que busca o transcendente. A manifestação do sagrado se dá de
diversos modos. O ser humano se revela cada vez mais necessitado da experiência do
absoluto.
Os dilemas do ser humano moderno estão postos. A modernidade com toda a sua
liquidez se presencia com todas as suas características no final do século passado, como
afirma Bauman nas suas obras: Modernidade líquida (2001) e Amor Líquido (2004).
549
TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2003. p.
348-349.
319
A crescente busca por um entendimento da vida que se vive a partir da dimensão
espiritual é um desafio possível de ser enfrentado pelo homem contemporâneo. Ciente de que
tal busca poderá suscitar respostas a perguntas sugeridas aqui, ao mesmo tempo em que não
pretende esgotá-las ou respondê-las todas. Outras questões, inclusive poderão surgir diante do
trabalho da pesquisa reflexiva.
O que nos leva a buscar fazer ciência da religião é o deixar-se impregnar por um
desejo de fazer ciência de modo alternativo, não por ser um modismo, mas primeiro por ser
uma maneira de compreender a própria ciência como não mais definidora da racionalidade
humana, como desprovida de “espiritualização”. E, segundo por apontar para a possível
superação do determinismo, presente na ciência moderna. Como afirma Aragão:
A transdisciplinaridade é uma corrente séria na “espiritualização” da
ciência, que enseja uma nova racionalidade e poderia conduzir a uma nova
perspectiva metafísica. Ela repousa sobre a mecânica quântica, que “vela”
pelo real, modifica a idéia de uma matéria estável e indestrutível, estabelece
a indeterminação radical do real observado ao nível elementar, que é ao
mesmo tempo onda e partícula. Fim do determinismo clássico, triunfo da
interdependência observador-observado, a mecânica quântica teve
repercussões na filosofia, porque ela recoloca todo o problema do
conhecimento.550
E além do mais:
A transdisciplinaridade engendra, pois, uma atitude transcultural e
transreligiosa. A atitude transcultural designa a abertura e todas as culturas
para aquilo que as atravessa e as ultrapassa. Ela indica que nenhuma cultura
se constitui em um lugar privilegiado a partir do qual podemos julgar
universalmente as outras culturas, como nenhuma religião pode ser única
verdadeira – mesmo que cada uma possa experimentar-se como
absolutamente verdadeira e universal. Em um meso nível de realidade, elas
seriam, possivelmente, antagônicas e excludentes, mas se ao menos
considerarmos um outro nível surge um “terceiro”, que, incluído, as pode
reconciliar.551
Oxalá,
um
terceiro
incluído
possa
se
revelar
como
uma
possível
conciliação/reconciliação da espiritualidade e formação profissional. E possibilite, a
ampliação do diálogo superando os determinismos, inclusive os psicológicos, haja vista que
na história da ciência, o conhecimento tido como científico, (“por ser ele das humanidades”),
em um dado momento deixou de lado a experiência do sagrado vivido pelo ser humano, sendo
o mesmo considerado um elemento da “alienação religiosa” que tanto a modernidade ousou
descartar de seus objetos de estudos científicos.
550
551
Idem, ibidem.p.299.
Idem, ibidem.p.302.
320
E sobre a manifestação do sagrado a partir da abordagem transdisciplinar, Aragão
nos diz que
O modelo transdisciplinar da realidade lança uma nova luz, então, sobre o
sentido do sagrado. Uma zona de absoluta resistência liga o sujeito e o
objeto, os níveis de realidade e os níveis de percepção. Para o pensamento
transdisciplinar, há um movimento de travessia simultânea dos níveis de
realidade e dos níveis de percepção. Esse movimento segue e sentido
ascendente e também descendente pelos níveis de realidade e percepção. E
a zona de resistência absoluta (o ponto X de interação) é o espaço de
coexistência da transascendência e transdescendência, ou de transcendência
e imanência.552
No intuito de fazer ciência numa perspectiva dialógica, transdisciplinar, na busca
de compreender verdades possíveis nas contradições, o filósofo Nietzsche nos dá uma dica
bastante pertinente que serve tanto como motivação e no cuidado ao fazer ciência:
Entre as coisas pequenas, mas incontavelmente freqüentes e, por isso, muito
eficazes, às quais a ciência deve dar mais atenção que às grandes coisas
raras, é preciso incluir também a benevolência; com isso entendo essas
manifestações de disposições amigáveis nas relações, esse sorriso dos olhos,
esses apertos de mão, esse bom humor, de que se envolvem habitualmente
todos os atos humanos [...] A cordialidade, a afabilidade, a polidez cordial,
são derivações sempre florescentes do instinto não-egoísta e contribuíram
mais poderosamente para a civilização.553
Levando em conta, também, as considerações e abordagens da fenomenologia da
religião elaborada por Terrin (2001) o mesmo sugere para uma compreensão da manifestação
do sentimento religioso do qual compartilhamos e que não podemos desprezar
[...] precisamos encontrar uma justificação para essas formas de
religiosidade: precisamos repensar todo o mundo das religiões, da fé e da
experiência cristã também à luz desse mundo opaco e desconcertante. Tratase, talvez do resultado da fragmentação das culturas e da impossível
aceitação de religiões por demais institucionalizadas e rígidas e, portanto,
não abertas ao novo senso do mistério? 554
3 A guisa de conclusão
A constante procura por entendimento da vida que se vive em todas as suas
dimensões é um desejo quase que inatingível. As contradições, os paradoxos que nós
552
Idem, ibidem. p. 303.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. 2ª. ed.Tradução Antônio Carlos Braga. São Paulo:
escala, 2007. p. 65.
554
Idem, ibidem.p.345.
553
321
humanos vivenciamos em plena modernidade (e pós-modernidade) é um desafio à vivência
espiritual do homem contemporâneo.
As transformações no sistema de trabalho, as desigualdades sociais, ainda com
índices alarmantes de disparidades, a quebra de paradigmas outrora intocáveis, o consumo
desenfreado, o avanço continuo da ciência, o problema do desenvolvimento posto à prova
com o desenvolvimento sustentável e sua real possibilidade de vir-a-ser, são alguns exemplos
de desafios a serem vencidos e, presentificar a face da dignidade humana tão almejada nas
diversas religiões desde as origens, por exemplo, na vivência da espiritualidade.
Trata-se, portanto, de uma perspectiva - analisar os elementos da espiritualidade,
compreendê-la como expressão do sagrado, da religiosidade, através da convivência humana,
e suas manifestações na modernidade. Por considerar o fenômeno da espiritualidade (como
manifestação do sagrado) um elemento importante dentro do processo de formação/educação
do administrador.
O fenômeno mesmo da religião é única coisa que podemos captar de algo
que se insere misteriosamente na trama da consciência e das ações
humanas. [...] Não há nenhum ramo do conhecimento humano que não
interesse ao estudo da religião. O fenômeno humano da religião oferece
todos os flancos possíveis à reflexão e à pesquisa.555
A partir das considerações anteriores, principalmente focando a necessidade da
vivência de valores integradores do existir humano, podemos afirmar a contribuição do estudo
da existência humana e a dimensão psico-religiosa como deveras importante, pois se volta a
elementos humanísticos que são definidores da própria condição humana, inclusive ajudando
a reencontrar o sentido próprio do existir, do manifestar-se do humano no mundo.
De modo que a compreensão da existência humana e da dimensão psico-religiosa
vem somar ao fazer próprio das Ciências da Religião, pois, ela impulsiona o estudo das
manifestações do sagrado na experiência de vida do ser humano, desde sua infância até a
morte. Ressaltando o alerta de Mendonça
O futuro das ciências, ou ciência da religião, parece estar na superação da
observação do mero fenômeno, isto é, da estrita quantificação demográfica,
econômica e política deste ou daquele grupo religioso. É necessário aquele
salto qualitativo que vai do fenômeno às suas origens sociais e à
conseqüente formação do discurso construtor da realidade em que a utopia e
a ideologia correm paralela e relacionalmente. É nesse sentido que as
Ciências da Religião exigem do pesquisador aquela erudição
555
Idem, ibidem. p. 147- 150.
322
multidisciplinar que lhe permite usar os vários instrumentos necessários à
superação do que simplesmente aparece aos olhos.556
Destarte, a aproximação da(s) ciências da religião, com o nosso fazer e viver
diários (a nosso ver é uma área do conhecimento muito próxima do nosso cotidiano e ao
mesmo tempo é tida como tão distante do ser humano contemporâneo) apresenta-se numa
perspectiva transdisciplinar, propiciadora de um diálogo inter-religioso e plural, para o
crescimento do convívio e desenvolvimento do ser humano juntamente aos outros seres neste
nosso mundo terreno.
Assim, segundo Murad
Entre gestão e espiritualidade ergueu-se uma parede. [...] pretende abrir uma
porta. Ela ficará, por ora, entreaberta. Com o tempo, abrir-se-á mais.
Inegavelmente, há uma busca dos dois lados e procuram-se passagens.As
pessoas e as organizações que desenvolveram somente a habilidade da
gestão percebem que necessitam de valores mais elaborados. E aquelas que
se caracterizam pela identidade humanista e espiritualidade buscam
profissionalismo e cultura de resultados.557
Referências
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Cortez, 1991.
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Paulo: Ed. Cultrix, 1996.
MURAD, Afonso. Gestão e Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano. 2ª ed. São Paulo: Escala, 2007.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998.
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TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. São Paulo: Paulinas, 2003.
556
MENDONÇA, Antônio Gouveia. A Cientificidade das Ciências da Religião. In A(s) Ciência(s) da Religião
no Brasil. Teixeira, Faustino (Org.). São Paulo: Paulinas, 2001. p. 149.
557
MURAD, Afonso. Gestão e Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2007.p. 13-14.
323
NA GÊNESE DA COMUNIDADE DA ILHA DE SANTA TEREZINHA NO RECIFE:
A Contribuição de Pe. Bernard Bourassa S.J.
Fábio Silva de. Sousa558
MSc. Andréa Moreira Gonçalves de Albuquerque559
Prof. Dr. Augusto Aragão de Albuquerque560
RESUMO: Este artigo é fruto da interseção entre duas pesquisas que se desenvolvem na Ilha de Santa
Terezinha - nas áreas de Comunicação Social e Urbanismo - ambas com o intuito de fortalecer a
consciência dos seus habitantes em relação à importância dos valores religiosos que estão na base de
suas raízes político-culturais, permeando toda a história desta comunidade localizada em Santo
Amaro, Recife, Pernambuco, Brasil. Trata-se de um esforço de oferecer aos seus moradores meios
para a consolidação de suas conquistas sociais e políticas, que se materializam no espaço físico e nas
relações sociais. O desenvolvimento dessas pesquisas tem ainda o objetivo de contribuir no combate
às ameaças à identidade e à integridade da Ilha de Santa Terezinha, vítima constante da violência
simbólica e protegida de uma possível expulsão de seu valioso território pela sua articulação política e
pela lei do uso do solo na Cidade do Recife, que preserva as áreas integrantes do conjunto das Zonas
Especiais de Interesse Social. Por meio da história oral, os autores resgatam a contribuição de um dos
protagonistas dos primeiros tempos da organização comunitária na Ilha, o padre canadense Bernard
Bourassa, em sua ação integrada à do Movimento dos Focolares, também presente naquela área. O
Padre Bernardo, S.J., viveu durante quatro anos em Santa Terezinha, na década de 1960, tendo
permanecido no anonimato nos primeiros seis meses de sua estada no local e exerceu um papel
importante na construção das estruturas que, até hoje, fazem a diferença na vida dos seus moradores.
Palavras chave: Cidade e Religião; História e Identidade; Paradigmas e Urbanismo; Paisagem
Cultural; Comunicação Social e Violência Simbólica.
ABSTRACT: This work is the first result of the intersection between two researches that have been
carried on at the Ilha de Santa Terezinha, in the fields of Social Communication and Urbanism, both
with the goal of making stronger the awareness of its inhabitants, regarding the importance of its
religious values that are on the basis of its political and cultural roots, permeating the entire history of
the community, settled in Santo Amaro, Recife, Pernambuco, Brazil. The mentioned researches are
also an effort to offer to its inhabitants means to consolidate their political and social conquests, which
are materialized in their territory so as in their social relations. The development of these researches
has also the mean to contribute to face the threat against the identity and the integrity of the Ilha de
Santa Terezinha, constant victim of symbolical violence and protected from an imminent expulsion
from its territory by the urban law that maintain the whole of the Zones of Special Social Interest of
Recife. Through oral history, the authors of this paper, try to prove the contribution of one protagonist
of the early times of the community organization, the Canadian Father Bernard Bourassa, in his
integrated action with the Focolare Movement, also present in that area. Father Bourassa, S.J., who
lived for four years at Santa Terezinha, in the 1960’s, staying anonymous for the first six months of his
permanence there and playing an important role in the building of the structures that, until now, make
difference in its inhabitants’ life. Key-words: City and Religion; History and Identity; Paradigms and
Urbanism; Cultural Scene; Social Communication and Symbolic Violence.
Introdução
558
Graduando em História da Universidade Católica de Pernambuco.([email protected])
Professora da Universidade Católica de Pernambuco. ([email protected])
560
Professor da Universidade Católica de Pernambuco. ([email protected])
559
324
O presente trabalho resulta da articulação de duas pesquisas que têm em comum,
entre outros aspectos, o recorte geográfico: ambas se desenvolvem junto à Ilha de Santa
Terezinha. Localizada na Região Central do Recife, a comunidade se formou nos anos de
1950, em uma área de alagados, no Bairro de Santo Amaro. Hoje, conta com mais de 3.700
habitantes, representados, há 27 anos, por uma Associação de Moradores, cuja articulação
garantiu importantes conquistas, entre as quais, uma escola, uma pré-escola, um posto de
saúde, uma praça, além da infra-estrutura básica (água, luz e pavimentação). Ao norte, seu
território é vizinho do Shopping Tacaruna, ao leste, encontra-se com a Vila dos Casados, ao
sul, com a Avenida Doutor Jayme da Fonte, à oeste, com a Avenida Agamenon Magalhães.
Trata-se, portanto, de uma área de grande visibilidade e valor imobiliário, protegida da
especulação sobre tudo pela organização dos seus moradores.
1 Comunicação social, urbanismo, história e ciência da religião
Com o intuito de fortalecer também as bases culturais da comunidade, os autores
deste artigo vêm desenvolvendo duas pesquisas junto aos moradores da Ilha de Santa
Terezinha. Uma delas é a “Pesquisa Ação Cultural Comunitária no Combate à Violência
Simbólica Praticada pela Mídia - em confluência com as teorias do comunicólogo
pernambucano Luiz Beltrão”. Esta pesquisa visa contribuir para uma ação cultural
comunitária no combate à violência simbólica praticada pela mídia contra comunidades como
a Ilha de Santa Teresinha, a partir das teorias do comunicólogo e pioneiro pernambucano Luiz
Beltrão, fundador do Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.
Para estudar o fenômeno, utiliza-se a metodologia da pesquisa-ação, construída
por Michel THIOLLENT, que prevê uma interação entre pesquisadores e pessoas implicadas
na situação investigada, da qual resulta a ordem dos problemas a serem pesquisados e das
soluções a serem encaminhadas sob forma de ações concretas. As teorias da área de
comunicação aplicáveis às situações entram em cena por intermédio dos pesquisadores em
seminários realizados com os demais participantes da pesquisa, pertencentes à comunidade. O
saber comunicacional adquirido durante o processo fica, portanto, nas mãos do grupo focal
que expressa sua aprendizagem tanto na sua tomada de consciência como no seu
comprometimento com a ação coletiva de combate ao problema identificado.
Descrita pela primeira vez pelo sociólogo francês Pierre BOURDIEU (1989 e
1998), a violência simbólica é uma forma invisível de coação que se apóia, muitas vezes, em
325
crenças e preconceitos coletivos. Funda-se na fabricação contínua de crenças no processo de
socialização, que induzem o indivíduo a se enxergar e a avaliar o mundo seguindo critérios e
padrões do discurso dominante. Um desses discursos é aquele da mídia, notadamente a
televisão que, no Brasil – e particularmente no estado de Pernambuco - identifica as
comunidades de baixa renda como ambientes exclusivamente hostis e violentos, onde vive
uma gente considerada perigosa. Munir esses cidadãos de instrumentos que os tornem capazes
de analisar e fazer face ao discurso da mídia, para os envolvidos com a pesquisa em questão,
é, acima de tudo, um gesto de responsabilidade e inclusão social.
No Nordeste, Luiz Beltrão foi um dos pioneiros na elaboração de teorias que
demonstram a necessidade, a possibilidade e a viabilidade de se resgatar ou fortalecer a
identidade e a auto-estima das comunidades periféricas. Fundador do Curso de Jornalismo da
Universidade Católica, há 45 anos, BELTRÃO antecipou observações empíricas do que mais
tarde viria a se constituir como a “Teoria das Mediações Culturais”, segundo a qual os grupos
sociais – sintonizados com o seu ambiente cultural mais próximo - fazem uma leitura
diferenciada dos conteúdos da mídia, numa atitude típica das sociedades que necessitam se
transformar para sobreviver:
[...] há ocasiões em que, não obstante a estrita censura imposta aos meios
convencionais de comunicação, não obstante todas as barreiras levantadas à
divulgação de fatos e idéias, seja pelo poder político, seja pelo poder
econômico monopolizador, as classes populares se valem dos seus próprios
canais (mímicos, orais, gráficos e plásticos) para impor sua vontade
soberana (BELTRÃO, 1974, p. 37-43).
Compartilhar com a comunidade do pensamento de estudiosos como Beltrão e
Bourdieu, bem como resgatar a história da comunidade, significa oferecer aos seus agentes
culturais a possibilidade de interpretar os fatos e a teoria, e enriquecendo-as, à luz da
realidade. E esse processo fortalece os seus moradores, conferindo ainda mais vitalidade à sua
resistência cultural, (em especial contra violência simbólica praticada pelos meios de
comunicação hegemônicos). Também confere sentido à atração da academia, robustecendo o
seu compromisso com as causas populares.
“A Produção do Espaço e o Paradigma da Cultura Religiosa: o caso da Ilha de
Santa Teresinha, no Recife, de 1964 a 2007” é a outra pesquisa que se realiza no espaço
geográfico da comunidade. Por meio dela, investiga-se a possibilidade da perspectiva
religiosa se constituir um paradigma determinante na organização social a ponto de ter
conseqüências no projeto do espaço urbano na atualidade.
326
O Urbanismo é um campo de saber que enfoca o espaço da sociedade. Ao longo
do tempo, seus discursos lançam mão de recursos típicos de vários campos de saberes com os
quais mantêm interfaces, promovendo, com freqüência, as “migrações de conceitos”
(MORIN, 2003, 170). A compreensão da cidade como organismo é marca a “migração” de
conceitos da Medicina Social. A Mecânica ofereceu seus conceitos para o Urbanismo
Funcionalista e, mais recentemente, com a consolidação da cultura de mercado, vê-se uma
crescente valorização dos recursos do Marketing promovendo um “Urbanismo de Consumo”.
As mudanças sociais, políticas e econômicas que promoveram a queda dos
modelos fordista e keynesiano transformaram as barreiras mundiais, diminuindo a força dos
estados nacionais e valorizando as relações entre cidades em uma rede de articulação de
transporte e comunicação cada vez mais velozes. E como diz Harvey, “quanto menos
importantes as barreiras espaciais, tanto maior a sensibilidade do capital às variações do lugar
dentro do espaço e tanto maior o incentivo para que os lugares se diferenciem de maneira
atrativa ao capital” (1992, p.267).
Essa busca pela diferenciação traz uma contradição intrínseca: cada vez que as
cidades têm procurado se diferenciar, assumem posturas tão semelhantes que, na verdade
promovem uma uniformização ainda maior. Podemos recorrer à explicação que Baudrilard
construiu acerca dos fenômenos ligados à moda quando diz: “diferenciar-se consiste
precisamente em adotar determinado modelo, em qualificar-se pela referência a um modelo
abstrato, em renunciar assim, a toda a diferença real e a toda a singularidade” (2005, p.88 e
89).
Na cultura de mercado, que marca também o Urbanismo na virada do Milênio, a
cidade é vista como um produto. A dualidade entre saber técnico e a participação, tão
marcante até os anos de 1980, foi superada. Nos modelos dos países centrais, a participação
passou a ser vista como uma necessidade e seguiu mobilizando as forças produtivas como
sindicatos, universidades, conselhos de categorias profissionais. Se por um lado vemos esses
recursos como avanços capazes de promover significativos ganhos nos modelos de gestão
pública, os chamados de modelos de democracia direta (RAMOS 2002), por outro, verifica-se
que, por meio da participação, tem-se promovido ações de controle e de sondagem “de
mercado”.
Nesse contexto, é freqüente a importação de modelos tidos como “vencedores” na
história do Urbanismo no Brasil e também no Recife. Esse fenômeno se repete e, como
exemplos recentes, temos a reforma do Porto e do Bairro do Recife e a criação dos conjuntos
habitacionais da periferia, nos anos da ditadura militar, dentre outros casos. Mais
327
recentemente, o Projeto Recife-Olinda que, com suas “frentes de água”, seus “territórios de
oportunidade” ou o recurso ao Planejamento Estratégico, apresenta uma clara importação do
modelo catalão de City Marketing com a conseqüente padronização de suas ações.
Posturas deste tipo acabam por conduzir a sociedade a uma degradante espoliação
da diversidade:
Na troca primitiva, cada relação aumenta a riqueza social; nas nossas
sociedades ‘diferenciadas’, cada relação social intensifica a carência
individual, porque cada coisa possuída é relativizada na conexão com os
outros. [...] Nossa lógica social é que nos condena à penúria luxuosa e
espetacular (BAUDRILLARD, 2005,p. 68).
Acreditamos que na riqueza social de nossas comunidades de baixo poder
aquisitivo, acumulada sob o signo da participação, é possível encontrar contribuições e
alternativas para essa “penúria luxuosa”, crescente na consolidação da cultura de consumo de
nossa sociedade hoje.
No Brasil, a idéia de participação ganha esfumatura diferente daquela dos países
centrais. Além da participação institucional, crescente, sobretudo com a criação dos conselhos
de gestão a partir da constituição de 1988, ganha ênfase a participação popular,
provavelmente devido ao forte movimento de base promovido pela cultura marxista de nossos
intelectuais e da Igreja. Hoje, na construção dos argumentos em defesa da participação,
conceitos como o de “Capital Social”, cunhado por Robert Putnam, tratam da confiança e da
colaboração entre os agentes sociais como diferencial entre as soluções de maior sucesso na
adoção de modelos participativos.
Há um consenso de que sem confiança não há democracia. Presume-se que
o processo de construção de bons cidadãos passa por um engajamento mais
eficiente e permanente na arena política. São as associações que facilitam
essas atividades, pois elas constituem-se em escolas de cidadania onde se
aprende, fundamentalmente, as virtudes da cooperação e da tolerância
(BAQUERO, 2006).
O caso da Ilha de Santa Teresinha é uma experiência de participação na qual
acreditamos ser possível verificar ligações de grande confiança e de intensa colaboração, no
contra-corrente da transferência dos modelos “vitoriosos”. Trata-se de uma experiência
autóctone, com base na vivência da religiosidade, alicerce sobre o qual a comunidade
demonstra construir a sua história, acumulando um capital social de grande valor.
A formação da comunidade da Ilha de Santa Terezinha é marcada pela influência
religiosa. Como essa dimensão cultural contribuiu para o desenvolvimento do seu capital
social? Para responder a essa pergunta, recorremos à História, no esforço de compreendermos,
328
o contexto, os agentes, os processos e mecanismos inerentes a esse fato. Aplicamos a
metodologia da História Oral procurando fazer cruzamentos entre os diversos depoimentos
com outras informações disponíveis em bibliografia e em documentos eletrônicos. Nesse
percurso, já desde os primeiros contatos com a comunidade, destacam-se duas presenças na
sua gênese: o Movimento dos Focolares, que até hoje mantém uma importante presença no
local, e o Pe. Bernad Bourassa S.J. Nesse artigo, tratamos principalmente da presença do Pe.
Bourassa na Ilha de Santa Terezinha.
2 Os Focolares na Ilha
O Movimento dos Focolares (do italiano: focolare - lareira, lar) foi fundado em
1943 por Chiara Lubich, em Trento, na Itália. É um movimento ecumênico, de inspiração
cristã, aberto ao diálogo e à parceria com aqueles que não professam uma fé, mas querem
construir o que os seus membros costumam chamar de “Mundo Unido”: a fraternidade
universal. Baseada no Evangelho, a espiritualidade dos focolares é essencialmente
comunitária e está difundida em mais de 180 países, reunindo cerca de dois milhões de
pessoas, em torno de 200 mil no Brasil.
A atuação do Movimento dos Focolares se desenvolve nos diversos campos sociais
e vem despertando um crescente reconhecimento em todo o mundo. Em 1998, a fundadora
dos Focolares, Chiara Lubich, foi agraciada com o título de Doutor Honoris Causa em
Economia, pela Universidade Católica de Pernambuco. Sua obra de unidade, de paz e de
diálogo entre povos, religiões e culturas, recebeu também o Prêmio Templeton para o
Progresso da Religião, em 1977; o Prêmio Unesco 1996 para a Educação para a Paz; o Prêmio
Direitos Humanos do Conselho da Europa, em 1998, entre outros (LUBICH, 2003).
Na Ilha de Santa Terezinha, o Movimento dos Focolares está representado
organicamente pela atuação de seus membros na vida política e religiosa da comunidade, e
institucionalmente, pela Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente, a AACA, uma
entidade não governamental que se dedica à educação infanto-juvenil naquela área. Há
evidências de que a chegada dos Focolares à Ilha remonta aos anos 1960, tem uma
significativa importância na formação e desenvolvimento da comunidade e nítida interface
com a atuação de um outro protagonista de relevo na sua história: o padre jesuíta canadense
Bernard Bourassa.
329
3 O Padre Bourassa
Bernad nasceu em Outremont (Québec), no dia 10 outubro de 1913. Filho de Henri
Bourassa e de Joséphine Papineau. É o quinto dos sete filhos do casal. A família se destaca na
história do Canadá pela atuação do pai. Jornalista, político nacionalista, deputado, Henri
Bourassa fundou o jornal “L'Interprète” e, em 1904, participou da fundação do “Nationaliste”
onde trabalhou até a criação do “Le Devoir”561 que dirigiu até 1932. De orientação católica, o
casal Bourassa transmite seus valores aos filhos, dois dos quais se tornam jesuítas: François e
Bernard. O primeiro, um ano mais velho que o segundo, ordenou-se em 10 de maio de 1942,
lecionou na Pontifícia Universidade Gregoriana e publicou “Redenzione e Sacrifício” e
“Questions de Théologie Trinit”. Sempre foi considerado intelectual e um padre de perfil
respeitável. Já o mais novo é tido como um “caso especial”.
Trudel562 afirma que, enquanto que François era “um brilhante professor de
teologia”, Bernard “sempre foi muito popular, [...] muito rebelde... quando o pai o apresentou
no [seminário] este [referindo-se a François] eu sei que vai ser um bom jesuíta o outro
[referindo-se a Bernard], eu não sei. [...] Atrasaram a ordenação dele [...] era a dor de cabeça
de todos os superiores”, isso, por causa das suas “armações”. Mas Trudel também se refere a
Bernard como alguém de um [grande] coração... (TRUDEL, 2007).
No Canadá, Bernard realiza um trabalho de destaque com a “Liga do Sagrado
Coração de Jesus. Era uma associação para homens, assim como hoje vemos o terço dos
homens” (TRUDEL, 2007). Essa associação editava uma revista na qual Pe. Bernard
Bourassa escrevia. E por trás do seu espírito inquieto, fumegava o ímpeto do missionário que
o fez aderir aos apelos dos superiores e se candidatar ao serviço no Haiti. Eram anos difíceis
aqueles pois o então presidente haitiano François Duvalier, o “Papa Doc”, instaurou sua
ditadura baseada na força, no terror e na manipulação das crenças populares como o vodu. E
mais: extinguiu a oposição, perseguiu a Igreja Católica, expulsou os jesuítas e, entre eles, o
Pe. Bernard Bourassa.
Voltando ao Canadá, Pe. Bourassa manifestou o desejo de engajar-se em uma nova
missão. Segundo Trudel (2007), Bernard passou apenas cerca de quinze dias em seu país
natal. Em 02 de maio de 1964, chegou ao Brasil. No Recife, começou a aprender o Português.
561
Le Devoir já completou 90 anos e permanece em circulação até hoje em Quebec.
É jesuíta, canadense e chegou ao Brasil em 1960. Doutor em Teologia Litúrgica, foi professor e atualemente é
Ouvidor da Universidade Católica de Pernambuco.
562
330
Morava em uma casa que os jesuítas tinham na Rua da Hora, no bairro do Espinheiro.
Conhecendo a cidade aos poucos, Pe. Bourassa escolheu a Ilha de Santa Terezinha para
morar. Naquela ocasião, os membros do Movimento dos Focolares já estavam presentes na
Ilha.
No seu “Diário de Viagem”, Lubich relata sua passagem pela Ilha em 17 de abril
de 1964 e atesta que, antes de sua estada na cidade, os membros do Movimento, que moravam
na Avenida Agamenon Magalhães, próximo à Avenida Norte, já participavam da vida
daquelas pessoas: [...] O mal-estar aumentou perto da noite, quando – depois de uma visita
aos mocambos, não muito longe da atual casa dos focolarinos – senti naquele aglomerado de
pessoas entre as quais brincavam crianças, repetir-se na minha alma as “bem-aventuranças”
(LUBICH, 1991, p.39).
Em dois de maio de 1964, é o Padre Bourassa quem chega ao Brasil. Segundo
Bélanger (2004), logo no início, sua preocupação maior era aprender o idioma, como
autoditada e com a ajuda da televisão. Ele dedicava as manhãs a esse estudo e à tarde, tomava
um ônibus e rodava até o ponto final, para visitar as favelas do Recife. Escolheu uma, entre
elas, para morar, onde, na época, viviam aproximadamente mil famílias, a dez minutos de
trajeto da casa jesuíta.
Severino José Justino Filho (2007), o “Pinduca”, morador da Ilha de Santa
Teresinha, desde 1962 e membro do Movimento dos Focolares desde 1980, relata a chegada
do Pe. Bernard assim:
Ele comprou um barraco no aterro [lugar onde hoje é a Avenida Agamenon
Magalhães. Na época havia apenas o canal Derby-Tacaruna e um aterro.
Aquela era a área mais alta do território da Ilha]. Acho que uns três meses
depois que ele chegou, eu comecei a trabalhar com ele. A casa era grande e
dava para funcionar lá uma marcenaria. Era na base da raça... não tínhamos
serra, era serrote mesmo. Fazíamos móveis, inclusive os bancos que
serviram para a capela que ele começou em seguida. Fazíamos também
bancos, mesas, que vendíamos na feira. Com o dinheiro, ele pagava o meu
serviço e usava nas atividades na comunidade.
Segundo Justino Filho (2007), depois da casa que adquire no aterro, Pe. Bernard se
transfere para uma outra: “Ele comprou a casa de Seu Genésio. Ele morava em uma parte e
fez um galpão na outra. Lá começou a funcionar a escola “Sede da Sabedoria”. Não me
lembro se, já naquela época, o nome era esse. Com as novas instalações, as coisas se
organizaram mais”.
O próprio Pe. Bourassa confirma esse relato, ao recordar sua passagem na Ilha e a
intercessão do seu trabalho com aquele desenvolvido pelo Movimento dos Focolares:
331
Durante seis meses, celebrei a missa sozinho. Logo pensei em abrir uma
pequena escola e comecei a fabricar bancos, mesas. Em seguida, como
havia crianças que não iam à escola, tive a ajuda do Movimento dos
Focolares para colocar as coisas em ordem. E comecei a celebrar a missa.
Era nos Mocambos, a paróquia à qual eu era ligado; permaneci lá durante
quatro anos (BÉLANGER, 2004).
Girnaldi Barbosa Calado (2007), membro do Movimento dos Focolares e uma das
primeiras professoras na escola, recorda:
No início, dar aulas na escola era muito difícil. Imagine... meninos que
nunca tinham estado em uma escola. Mantê-los em uma sala como aquelas,
era muito difícil, mas era melhor deixá-los na sala porque se saíssem eles
ficavam jogando pedra no telhado que era de zinco e ninguém conseguia
mais dar aula.
Diante da constatação das contribuições que o Pe. Bourassa deu para a gênese da
comunidade da Ilha de Santa Terezinha como a pequena marcenaria, a escola e a capela,
apresenta-se a necessidade de esclarecer possíveis motivos de seu deslocamento para a cidade
de Capistrano no interior do Ceará.
Trudel (2007) deixa como pista uma avaliação que o Pe. Bourassa teria feito em
relação a uma campanha de aterro para subir o nível dos mocambos. Esse fato também é
relatado por Justino Filho (2007).
“Em 1966, com a grande cheia Pe. “Bernardo” conseguiu alguns caminhões de
barro para aterrar a rua do campo. Era a área mais sacrificada, ali perto do shopping, porque
ficava mais perto da maré”. De fato, a enchente de 1966 ficou marcada na história da cidade
do Recife. As águas do rio Capibaribe subiram mais de nove metros além de seu nível normal
e mais de dois metros nas áreas mais baixas da cidade, deixando cerca de 175 mortos e outros
10 mil desabrigados em todo o estado.
E Justino Filho (2007) continua relatando um episódio: “quando começaram os
trabalhos, aquela agonia, todo mundo querendo resolver seu problema, ele [o Pe. Bourassa]
subiu no barro e disse: ‘pára todo mundo’. Uma pessoa quis continuar a tirar o barro e ele
disse. Não tire não senão seremos dois ‘aterrados’ aqui”.
Para Trudel (2007), provavelmente, fatos como esse teria levado o Pe. Bernard a
refletir e a entender que as condições de vida das populações de bairros pobres nas grandes
cidades brasileiras era conseqüência do êxodo rural; por isso, teria optado por buscar a raiz do
problema. Justino Filho (2007) dá um depoimento que reforça essa hipótese: “ele sempre me
falava em ir para o interior e fazer cisternas para que as pessoas de lá pudessem plantar”.
332
“Acho que foi em 1968 que ele foi transferido para Capistrano no Ceará. Não sei
se foi a pedido dele ou de seus superiores”, continua Justino Filho (2007). Referindo-se a seu
trabalho no Ceará, Tudel (2007) afirma: “então trabalhou muitos anos[...] foi muito conhecido
por construir cisternas imensas”. E faz referência a uma, específica, ao lado da igreja, “do
tamanho de uma piscina [...] para captar toda a água que saia daquele telhado, [...] então
quando vinha uma seca [...] distribuía água”.
Para Trudel (2007), ao deixar a nascente comunidade da Ilha de Santa Terezinha, o
Pe. Bourassa teria lançado um desafio para os membros do Movimento dos Focolares darem
continuidade às estruturas que ele ajudara a construir naquela comunidade. Para Justino Filho
(2007), um fato dá um timbre espiritual ao momento. Ele explica que, na noite anterior ao dia
que ele deveria deixar a comunidade, o Pe. Bernardo teria rezado muito, pedindo a Nossa
Senhora que lhe mandasse alguém que tomasse conta de tudo o que ele deixava. Foi aí que ele
teria decidido pedir ao Movimento dos Focolares que desse continuidade aos trabalhos.
A partir de então, os frutos da integração entre os Focolares e os jesuítas, na pessoa
do Pe. Bernard Bourassa, desdobraram-se no tempo. Edjonhson Silva Pinto (2007), outro
morador da Ilha e membro do Movimento dos Focolares, conta que recorda vagamente do
sacerdote (pois era criança nos anos 60), mas fez uma homenagem a ele na peça teatral que
redigiu para recordar os primeiros tempos, a fundação da Ilha Terezinha. A partir das
pesquisas que realizou, junto aos moradores que conviveram com o Padre Bernard, afirmou:
Ele foi um grande revolucionário porque ele partiu do princípio de que não
bastava só rezar. Esta reza tinha de se transformar em ação. E foi a sua
influência que começou a despertar a partilha, a fraternidade entre todos.
Em forma de mutirão. Foi daí que surgiu o trabalho comunitário de Santa
Terezinha, aprimorado com a espiritualidade do Movimento dos Focolares
ao qual aderi porque entendi que poderia amar e ajudar a minha
comunidade vivendo as palavras do Evangelho na sua dimensão política.
Ou seja, ‘dar de beber a quem tem sede’ significa, para mim, lutar para que
todos tenham água encanada em suas casas, assim como todos os outros
bens e serviços, mas de forma pacífica, construída com base no diálogo
(PINTO 2007).
Conclusões
Os relatos dos membros do Movimento dos Focolares e dos jesuítas que geraram
livros e artigos ou que simplesmente são transmitidos oralmente comprovam a expressiva
contribuição do Pe. Bourassa na criação das primeiras estruturas (escola, capela e marcenaria)
da Ilha de Santa Terezinha. Atestam ainda a integração entre o Movimento dos Focolares e os
jesuítas na gênese e no desenvolvimento da consciência social e política naquela comunidade.
O que torna evidente a influência dos valores e da prática religiosa na consolidação de uma
333
identidade cultural, capaz de fazer face à violência simbólica e construir as condições para
que se materializem relações sociais.
Referências
Livros
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Desenvolvimento Regional, Universidade Metodista de São Paulo. Vol.1, n.1 (set. 1997). São
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TRUDEL, Pe. Jacques S.J. Le père Bernard Bourassa célèbre sés 90 ans. LE BRIGRAND. Resume
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334
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BAQUERO, Marcello. Construindo uma outra sociedade: o capital social na estruturação de uma
cultura política participativa no Brasil. Rev. Sociologia.Política., Curitiba, n. 21, 2003. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010444782003000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 de setembro de 2006.
FONDS FAMILLE BOURASSA. Disponível em <http://site.rdaq.qc.ca/CRLG/images/p65.htm>.
Acessado em 16/08/2007.
Entrevistas
CALADO, Girnaldi Barbosa. Concedida no dia 14/08/2007, nas dependências da Premold, no Bairro
de Peixinhos, Olinda, PE.
JUSTINO FILHO, Severino José. Concedida no dia 14/08/2007 nas dependências da Premold, no
Bairro de Peixinhos, Olinda, PE.
PINTO, Edejonhson da Silva. Concedida no dia 20/08/2007, em seu ambiente de trabalho.
TRUDEL, Pe. Jacques S.J. Concedida no dia no dia 08/08/2007 em seu gabinete na Ouvidoria
Comunitária da Universidade Católica de Pernambuco, no Recife.
335
NA ESTEIRA DE XENÓFANES563
As Raízes Onto-teológicas da Filosofia
Prof. Dr. Fausto dos Santos Amaral Filho564
RESUMO: Perquirindo as raízes onto-teológicas da filosofia, partindo de Xenófanes, ligando-o à
tradição filosófica de Platão e Aristóteles, e tal tradição ao pensamento do século XX, através de
Heidegger, o nosso estudo investiga o modo pelo qual o conceito de Deus, por fim, é sempre recolocado
na Filosofia, mesmo depois do chamado fim da Metafísica. Com o que podemos perceber que não há uma
relação contraditória entre Filosofia e Teologia. Havendo, sim, uma oposição por contrariedade.
Palavras-chave: Onto-teologia, contradição, contrariedade, Xenófanes, Heidegger.
ABSTRACT: The study investigates the way God’s concept is repeatedly relocated in Philosophy, even
after the proclaimed metaphysics’ ending and examines philosophy onto-teological roots, starting from
Xenophanes, linking him to platonic and aristotelian philosophical traditions and these last ones up to 20th
century, through Heidegger. It is possible to perceive that there is no contradictory relation between
Philosophy and Teology, but an opposition by contrariety. Key-words: onto-teology, contradiciton,
contrariety, Xenophanes, Heidegger.
Introdução
Todos nós sabemos - ou pelo menos uma boa parte de nós – que uma das
maneiras mais fecundas de se compreender o surgimento da filosofia, e com isto não apenas a
conformação do conceito de razão, mas, também, a própria conformação do conceito de
conceito, sob o qual se erigiu historicamente o anteriormente citado conceito de razão, é
considerando-a, a filosofia no seu surgimento, como a eclosão de um conflito. Conflito
instaurado pelo novo que, diante da tradição vigente, insiste em eclodir, buscando, assim,
também vigorar.
Na Grécia antiga, a tradição outrora vigente era o mu/qoj; como de resto em todas
as chamadas sociedades primitivas, ou seja, pré-filosóficas. O mu/qoj é, fundamentalmente, a
linguagem dos deuses que se deixa apreender pela fala do numinoso. Na Grécia pré-filosófica,
numinosa é a poesia. Era inspirado pelas Musas, ou seja, pelos cantos advindos da Memória
(Mnemosyne), que o aedo, o poeta-cantor, revelando o mundo dos deuses, constituía o mundo
dos homens. Era através das poesias apenas, fundamentalmente das poesias de Homero, que o
heleno de então, tendo um saber dos deuses, sabia o que era o ko,smoj (a organização de um
563
A Faculdade IDC de Porto Alegre financiou a consecução desta pesquisa.
Professor Titular do Curso de Filosofia da Faculdade IDC. Av. Vicente da Fontoura, 1578 – Porto Alegre/
RS. CEP: 90640 – 002. E-mail: [email protected]
564
336
mundo) e, portando, como se portar diante dele, na medida em que o integra565. Assim, como
tão bem nos diz Pinharanda Gomes: “No princípio era Homero, ou, como dizia Xenófanes,
‘desde o princípio todos aprendemos em Homero’ – o que seria convertível à regra de que, no
princípio, foi a poesia!”566.
Historicamente
determinados
na
poesia,
os
deuses
homéricos
são
antropomórficos. O que significa dizer que possuem a forma (morfh,) humana (a;nqrwpoj).
Todos nós conhecemos, pelo menos pelas ilustrações dos nossos livros de história, a imagem,
poder-se-ia dizer, plástica, dos deuses gregos. Eles estão lá, os imortais, anatomicamente
iguais a nós mesmos, os mortais; quer em estátuas esculpidos, ou pintados em ânforas,
hídrias, crateras, taças e etc.
No entanto, é certo que há um outro sentido, menos plástico, mais interior, do
antropomorfismo homérico. Este sim, parece ser o verdadeiro escândalo para a nova
mentalidade que vemos surgir na Grécia por volta do século VI a. C., a filosofia: que o mundo
dos deuses seja tão parecido com o mundo dos homens, inclusive – e isto é que é o
especificadamente escandaloso - naquilo que ambos têm de pior.
1 Xenófanes e os deus dos poetas
Xenófones de Cólofon é o caso paradigmático daquilo que aqui estamos querendo
pensar. Filósofo pré-socrático que, mesmo consciente do papel dos poetas fundadores,
Homero e Hesíodo, para a formação do mundo helênico567, ou, por isso mesmo, não deixou
de criticá-los duramente, ao que tudo indica, sendo o primeiro a fazê-lo568. Como nos
transmitiu Diógenes Laércio, Xenófanes “escreveu em verso épico, bem como elegias e
565
“Antes do nascimento da filosofia, os educadores incontrastados dos gregos foram os poetas, sobretudo
Homero, cujos poemas foram, como se disse com justiça, quase a Bíblia dos gregos, no sentido de que a
primitiva grecidade buscou alimento espiritual essencial e prioritariamente nos poemas homéricos, dos quais
extraiu modelos de vida, matéria de reflexão, estímulo à fantasia e, portanto, todos os elementos essenciais à
própria educação e formação espiritual”(REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo:
Edições Loyola, 1993, p. 19). “A concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e
profundo da palavra – foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância. Homero
foi apenas o exemplo mais notável desta concepção geral e, por assim dizer, a sua manifestação
clássica”(JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 61).
566
GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores, 1987, p. 26.
567
“uma vez que todos primeiramente aprenderam de Homero”(Xenófanes, fr. 10).
568
“Embora haja remotas referências indirectas a Homero, a mais conhecida, e tida por mais antiga, é a de
Xenófanes”(GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores, 1987, p. 85).
“Naturalmente que Anaximandro tuvo que sentir su propria oposición a las deidades antropomórficas de la
tradición cuando afirmaba audazmente que lo Ilimitado era lo Divino, rehusándose así a permitir que la
naturaleza divina tomase la forma de distintos deuses individuales; pero es Jenófanes el primero que declara la
guerra a los viejos dioses”(JAEGER, Werner. La Teología de los Primeros Filósofos Gregos. Colombia: Fondo
de Cultura Económica, 1997, p. 47).
337
iambos, contra Hesíodo e Homero, criticando-os pelo que haviam dito a respeito dos
deuses”569. Mostrando, assim, o desajuste entre duas maneiras distintas de compreensão da
realidade: a mítica e a filosófica; a tradicional vigente e a nova que, surgindo, quer se afirmar.
Confirmando o que nos disse Laércio, vejamos um dos fragmentos de Xenófanes: “Homero e
Hesíodo atribuíram aos deuses tudo quanto entre os homens é vergonhoso e censurável:
roubos, adultérios e mentiras recíprocas”(fr.14).
De fato, para a Grécia de então, nada mais novo e surpreendente do que reprochar,
de maneira tão veemente, aqueles que até aquele momento eram, incontestavelmente, os
formadores do mundo helênico. Mas é que o novo mundo que está surgindo, parece exigir, na
sua constituição, uma nova postura moral por parte dos homens, que não se coaduna mais
com a postura dos deuses da tradição homérica, tomados como exemplos de vida para os
mortais. Sendo Xenófanes, aquele que “começou a tarefa de fazer deliberadamente a
transfusão das novas idéias filosóficas para o sangue intelectual da Grécia”570.
Nosso filósofo parece ter pensado que o mu/qoj, que prometia trazer os deuses aos
homens, seguia a direção oposta, nada mais sendo do que uma projeção humana,
inconveniente e desnecessária para o novo mundo que se pré-figurava. Devendo, portanto, ser
superado. Para mostrar o que dissemos, ouçamos mais uma vez o filósofo: “Os Etíopes dizem
que os seus deuses são de nariz achatado e negros, os Trácios, que os seus têm os olhos claros
e o cabelo ruivo”(fr. 16). Dito no mesmo sentido, só que de maneira ainda mais escrachada,
temos o fr. 15:
Mas se os bois e os cavalos ou os leões tivessem mãos ou fossem capazes de,
com elas, desenhar e produzir obras, como os homens, os cavalos
desenhariam as formas dos deuses semelhantes à dos cavalos, e os bois à dos
bois, e fariam os seus corpos tal como cada um deles o tem (fr. 15).
Como podemos ver, confirmando o que inicialmente dissemos, no seu
surgimento, é em contraposição aos deuses da tradição mítico-poética que a filosofia busca a
sua afirmação. Originariamente, a filosofia quer substituir a “imagem homérica do mundo por
uma explicação natural e regular”571. Por isso pôde ser concebida como crítica da religião. Ao
invés de ouvir cegamente o mu/qoj - a linguagem dos deuses mediada pelos poetas -, o filósofo,
este novo tipo humano que surge, parece querer dar ouvidos, única e exclusivamente, ao lo,goj
-, a linguagem direta do ser, capaz de revelar as coisas a partir delas próprias.
Já que nos referimos ao lo,goj, lembremos, então, de Heráclito de Éfeso, que
insiste na sua escuta572, servindo-se “dos seus sentidos e da sua inteligência, em vez de seguir
569
DIÓGENES LAÉRCIO, IX, 18.
JAEGER, Werner. La Teología de los Primeros Filósofos Gregos. Colombia: Fondo de Cultura Económica,
1997, p. 47.
571
JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 213.
572
“Auscultando não a mim mas ao Lógos, é sábio concordar que tudo é um”(Heráclito, fr. 50).
570
338
as teogonias e cosmogonias poéticas”573. O filósofo em questão, na esteira de Xenófanes574,
também critica a tradição homérica e “afronta a influência de Hesíodo na cultura popular,
achando-a altamente perniciosa”575. Vejamos, pois, pelo menos dois dos seus fragmentos que
corroboram o dito:
É em vão que se purificam, aspergindo-se com sangue, como se alguém, que
tivesse pisado na lama, quisesse lavar-se com lama; e fazem suas preces às
imagens como se alguém pudesse falar com as paredes (Heráclito, fr. 5).
Os mistérios praticados entre os homens são celebrados de uma forma ímpia
(Heráclito, fr. 14).
Porém, neste conflito constitutivo que irrompe nas origens gregas da filosofia,
entre mu/qoj e lo,goj, entre o poeta e o filósofo, ninguém parece ser mais obstinado em destruir
a tradição poética do que Platão. O filósofo que, todos nós sabemos, ao propor um modelo
para a constituição da cidade adequadamente ideal para as necessidades do novo mundo que
se pré-figurava, ou seja, a po,lij filosófica, fundada sobre os pilares da te,cnh e da evpisth,mh,
houve por bem expulsar o poeta da República. Muito provavelmente por Platão ser, entre os
filósofos, como nos diz Werner Jaeger, “o primeiro a encarar a essência da filosofia como
formação de um novo tipo de Homem”576. Para quem a cidade epistêmica seria o habitat
tecnicamente adequado. Com o que, o conflito com o status quo vigente da poesia era
inevitável.
Ainda que a República seja tradicionalmente tomada como o locus classicus do
conflito entre filosofia e poesia, e com justa razão, a questão da destruição da tradição poética
– e com isto a superação da religião homérica - é tão fundamental para a constituição da
filosofia de Platão que, desde os primeiros diálogos do nosso filósofo, até a República - não é
difícil perceber -, o conflito com a tradição poética não é apenas um assunto, que de vez em
quando aparece, mas, antes pelo contrário, é um traço estruturante e fundamental da própria
filosofia de Platão. Como exemplos do que aqui se está dizendo, podemos tranqüilamente
lembrar, pelo menos, de seis diálogos do ainda jovem Platão anteriores a República, são eles:
Íon, Eutífron, Hípias Menor, Protágoras, Mênon e Crátilo577.
A leitura de tais diálogos põe em evidencia uma crise. Ao que tudo indica, para
Platão, a cidade do seu tempo está como que no ápice de uma enfermidade. Na origem desta
573
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As Origens do Pensamento Grego. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989, p. 187.
574
“Heráclito, ao atacar os que praticavam a purificação pelo sangue e os que adoravam estátuas de deuses, por
exemplo, foi provavelmente influenciado por ele (Xenófanes)”(KIRK, G, S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M.
Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 172).
575
GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores, 1987, p. 31.
576
JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 190.
577
Para uma exposição, ainda que sumária, mas um pouco mais detalhada do que se está dizendo a respeito dos
seis Diálogos referidos pode-se ver: AMARAL Fº, Fausto dos Santos. O Poeta e o Filósofo: As origens de um
conflito originário. Revista Grifos. Chapecó, nº 19, Dezembro/2005, pp. 207 – 217.
339
enfermidade está o desajuste causado por se ficar preso, diante da emergência do novo, à
tradicional paidei,a poética. É por isso que o filósofo, desde os primeiros diálogos da sua
juventude, embora não pudesse, formalmente fundamentado, expulsar o poeta da cidade, tem,
no entanto, a convicção da necessidade de fazê-lo. Para Platão, também na esteira de
Xenófanes, a tradicional concepção poética do mundo, com os seus deuses antropomórficos e
virtudes guerreiras, ultrapassada diante das novas exigências que a vida na po,lij resguarda,
incapaz de ordenar os interesses domésticos na constituição de um bem comum, acaba
gerando conflitos entre os cidadãos. Afinal, uma sabedoria que se fundamenta na assimilação
e na reprodução daquilo que, supostamente, desde as origens sempre foi – o mu/qoj -, não está
preparada para pensar de maneira outra, nem o mesmo, quanto mais o novo. Justamente por
isto deve ser abandonada frente às disponibilidades da te,cnh e da evpisth,mh, cujo acesso,
certamente, não está vinculado à vontade dos deuses homéricos.
Pois bem, até aqui tentamos perceber como a filosofia, no seu surgimento, pode
ser compreendida como uma crítica à religião; que de fato é. Uma forte crítica à religiosidade
vigente na Grécia de então. Sendo assim, uma tentativa de superação dos deuses homéricos. O
que, evidentemente, não pode ser confundido com uma eliminação do sagrado. Voltemos
novamente a Xenófanes, caso paradigmático que é.
2 Xenófanes e os deuses dos filósofos
Identificamos Xenófanes - quer ele tenha sido ou não, isso para nós já não importa
tanto -, como o primeiro filósofo a fazer uma crítica explícita e mordaz à religiosidade
homérica. No entanto, se de fato, em oposição ao antropomorfismo politeísta, Xenófanes
expulsa os deuses homéricos do horizonte filosófico, ao fazê-lo, não perde o sagrado de vista.
Antes pelo contrário, pela oposição aos deuses homéricos vemos surgir, não um espaço vazio,
mas sim, uma concepção oposta do sagrado. Desta maneira, o filósofo não contradiz o
sagrado, negando-o simplesmente, mas antes, propõe uma visão contrária àquela da tradição
helênica. Pelo que, se a religião homérica é politeísta e antropomórfica, a teologia do filósofo
chegará à unidade de um deus não antropomórfico.
Mas como assim teologia? Xenófanes não era um pré-socrático e, portanto, como
nos ensinou Aristóteles um fusiko,j, um filósofo naturalista? Pelo menos, de acordo com o
teor de alguns dos seus fragmentos, parece que, de fato, não podemos contestar o seu
fisicismo: “Tudo o que nasce e cresce é terra e água”(fr. 29), “Pois é da terra e da água que
nós provimos”(fr. 33). “Da Terra é este o limite superior que nós vemos aos nossos pés, em
340
contato com o ar; mas a sua parte inferior continua indefinidamente”(fr. 28). Vejamos
também um registro doxográfico de Hipólito, referindo-se ao pensamento do nosso filósofo:
“O Sol nasce diariamente de pequenas porções de fogo aglomeradas, e a Terra é infinita e não
está rodeada nem pelo ar nem pelo céu. Há sóis e luas em número infinito, e todas as coisas
são feitas de terra”578.
Mas, então, o que se passa? O caso é que, ao que tudo indica, para o filósofo, “o
estudo dos deuses não andava divorciado do da natureza”579, a investigação do mundo físico
não é alheia ao divino, antes pelo contrário, de alguma forma, acabam mesmo é convergindo.
Mas, sabendo que já Aristóteles reclamava da ambigüidade das declarações de
Xenófanes580e que, talvez por isso mesmo, muita controvérsia há a respeito do suposto
pensamento teológico do nosso filósofo581, vejamos então, por primeiro, alguns dos seus
fragmentos concernentes à questão:
Um só deus, sumo entre os deuses e os homens, em nada semelhante aos
mortais, quer no corpo, quer no pensamento (fr. 23).
Permanece sempre no mesmo lugar, sem se mover; nem é próprio dele ir a
diferentes lugares em diferentes ocasiões, mas antes, sem esforço, tudo abala
com seu pensamento (fr. 26 e 25).
Vê como um todo, pensa como um todo, ouve como um todo (fr. 24).
Ora, levando em consideração o primeiro fragmento citado (fr. 23), a grande
novidade aqui é, incontestavelmente, a afirmação da unidade, mais especificadamente, a
unidade de deus. Já Aristóteles, mesmo apreciando muito pouco o pensamento de Xenófones,
achando-o por demais ingênuo (Cf. Met., 986 b 25), reconhece, no entanto, que o nosso
fisiólogo foi “o primeiro desses adeptos da unidade”(Met., 986 b 20) que, “com os olhos
postos no céu inteiro, afirma que o Uno é deus”(Met., 986 b 25).
Sendo assim, ainda que saibamos que a questão disputada entre monoteísmo e
politeísmo é uma preocupação um tanto quanto exterior ao pensamento grego, não podemos,
578
HIPÓLITO. Ref. I, 14, 3.
KIRK, G, S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994, p. 172.
580
Para o estagirita, Xenófanes “não faz nenhuma declaração ineqüívoca”(ARISTÓTELES. Met. 986 b 20).
581
“Opiniões amplamente diversas têm sido sustentadas sobre a importância intelectual de Xenófones. Assim,
Jaeger (Theology, 52) refere-se à sua ‘enorme influência no desenvolvimento religioso posterior’, ao passo que
Burnet (EGP, 129) afirmou que ‘ele teria sorrido, se tivesse tido conhecimento de que um dia havia de ser
considerado como teólogo’. A depreciação de Burnet tem certamente muito de exagerado”(KIRK, G, S.;
RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p.
172).
579
341
contudo, mitigar o novo que aporta no pensamento de Xenófanes582. E se, no mesmo
fragmento, logo após afirmar enfaticamente a unidade de Deus, nosso pré-socrático fala em
deuses, ora, é só escutar o poema, como poema, ou seja, na plurivocidade dos seus sons583, e
veremos que não precisamos inventar mais um tema de escola. Principalmente se,
fundamental, não perdermos de vista o caminho que levou Xenófanes até a sua concepção do
divino: a oposição aos deuses antropomórficos. É por isso que a concepção filosófica do
divino será contrária à concepção de Homero. Então, se o mundo homérico é repleto de
deuses iguais a nós mesmos, com Xenófanes o mundo fica vazio de tais seres, contudo, pleno
de um só deus, em nada parecido conosco, “quer no corpo quer no pensamento”. “Diferente,
pois, superior, a tudo que já foi pensado até então” (e;n te qeoi/si kai. avnqrw,poisi me,gistoj).
Ou seja, sumo entre mortais e imortais, excedendo terra e céu.
No entanto, não podemos pensar, acostumados como estamos, que o deus do
filósofo é um pensamento puramente incorpóreo. Xenófanes, embora pudesse estar levando o
pensamento para a abertura dessa possibilidade, nunca chegou a tanto. Não esqueçamos que o
caminho do pensamento do nosso pré-socrático é a oposição por contrariedade aos deuses
antropomórficos de Homero, não buscando, assim, a pura contradição do poeta. Portanto, ao
invés de deuses, deus; ao invés da forma humana, uma outra forma, não-humana
simplesmente. O fato é que, a partir dos fragmentos de Xenófanes, parece ser difícil
determinar a forma exata do seu deus. Ao que tudo indica, se seguirmos a doxografia, tão
pouco parece que chegaremos a uma opinião segura que, mesmo existindo, talvez, para o que
estamos querendo pensar aqui, seja, até mesmo, quase que indiferente. Afinal, no momento,
não nos interessa tanto saber se o deus de Xenófanes é esférico, ou idêntico ao cosmos, ou
ainda esférico pois idêntico ao cosmos, ou vice-versa584. Não entremos, portanto, nesta
discussão, até mesmo porque sabemos que o nosso filósofo, pelo menos a partir dos
fragmentos que nos restaram, em relação a tal questão, limitou-se “a abrir o caminho a uma
582
“God is one. The emphatic opening of fr. 23 leaves no doubt that to Xenophanes this was important and
essential. Nevertheless to see it in perspective it must be understood that question of monotheism or polytheism,
which is of vital religious importance to the Christian, Jew or Moslem, never had the same prominence in Greek
mind”(GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy. The Earlier Presocratics and the Pythagoreans.
Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 375).
583
Como vimos, Aristóteles já chamou a nossa atenção para a polissemia poética das falas de Xenófanes. Ainda
que, como um bom aluno da Academia, criticando-o justamente por isso.
584
Tais questões podem ser vistas em: GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy. The Earlier
Presocratics and the Pythagoreans. Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. Ou também em:
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
342
concepção filosófica negando que a forma de Deus seja humana”585. É na abertura deste
caminho que devemos nos situar.
Limitemo-nos, então, em saber que o deus de Xenófanes era, sim, um deus
corpóreo, e, portanto, alguma forma deveria ter. Mas que, talvez, o próprio filósofo não
soubesse exatamente qual seria esta forma, já satisfeito que não fosse uma mera projeção do
homem. Lembremos que Xenófanes era um pensador que, evidentemente, muito longe do
ceticismo, parecia, contudo, estar bem ciente das limitações do conhecimento humano586. Por
isso, não exijamos do filósofo que ele tenha respostas para tudo. Para nós, o pouco que
sabemos já é o suficiente. Pois, importa-nos mesmo é, na esteira de Xenófanes, saber como é
que se efetiva a atualização de um tal deus. Agora é o fragmento 24 que nos orienta: “Vê
como um todo, pensa como um todo, ouve como um todo”(fr. 24).
Pois bem, fiquemos com o fragmento e veremos que o deus uno de Xenófanes,
como um todo: vê, pensa, ouve. Se vê e ouve como um todo, é porque o seu estar ciente não é
delimitado, como é delimitada a percepção dos sentidos humanos. Se vê e ouve como um
todo é porque todo ele vê, todo ele ouve. Mas não é só isso. Como um todo: vê, pensa, ouve.
Como unindo elos de uma mesma corrente, centralizando a unidade da percepção corpórea do
deus, está o pensamento. Assim, tudo aquilo que o deus ouve e vê está interligado ao todo que
pensa. Pensa como um todo, porque é como um todo que ele pensa o todo que ouve e o todo
que vê. Pensamento que, conforme o fragmento 26/25 indica, faz com que todas as coisas
estejam reverentemente em movimento. Reforçando, assim, o papel central que o no,oj ocupa
na constituição da sua própria unidade. Aquela que, ao fim e ao cabo, vai constituir a
totalidade do todo.
Outra coisa que o fragmento 26/25 nos diz é que, em contraposição a Homero,
onde a “velocidade de movimento dos deuses está concebida como um verdadeiro sinal do
poder divino”587, o deus de Xenófanes não precisa nem mover-se para que tudo concorra
conforme o seu pensamento. Não se move, evidentemente, porque não é movível, antes pelo
contrário, de tudo é o motor. “Sempre no mesmo lugar”, atuando a partir da sua habitualidade
própria, como diz a tradução citada do poema, “sem esforço” é que tudo abala conforme o seu
585
JAEGER, Werner. La Teología de los Primeros Filósofos Gregos. Colombia: Fondo de Cultura Económica,
1997, p. 48.
586
“Ninguém conhece, ou jamais conhecerá, a verdade sobre os deuses e sobre tudo aquilo de que falo: pois,
ainda que, por acaso, alguém dissesse toda a verdade, mesmo assim não se daria conta disso”(fr. 34). “Contudo,
não foi desde o início que os deuses tudo revelaram aos mortais: mas é a investigar que estes com o tempo
descobrem o que é melhor”(fr. 18).
587
JAEGER, Werner. La Teología de los Primeros Filósofos Gregos. Colombia: Fondo de Cultura Económica,
1997, p. 50.
343
pensamento, continuando ele próprio, entretanto, sempre o mesmo inabalável. Eis, então, o
deus do filósofo.
Ora, na esteira de Xenófanes, pelos ventos que estão guiando o nosso próprio
linguajar, não é difícil perceber que em breve estaremos aportando, quase que
inexoravelmente, na Metafísica de Aristóteles. Se é que já não estamos fundeados no seu livro
Lambda (XII). Lá onde - ainda que o filósofo acabe falando do divino em tantas outras partes
dos seus escritos -, costuma-se dizer que podemos encontrar “o seu único ensaio sistemático
de Teologia”588. Teologia (qeologikh,) que, para Aristóteles, era a primeira filosofia
(prw,th filosofi,a)589. Aquele tipo de investigação que, “buscando os princípios e as causas
das coisas que são enquanto são”(Met., 1025 b), ou seja, os fundamentos do ser, acaba
chegando em deus. Pelo que podemos dizer que a filosofia é, para Aristóteles, primeiramente,
pois que, fundamentalmente, teologia. A filosofia – na verdade tudo aquilo que é - tem por
fim deus, porque deus, para o filósofo, é o primeiro. Primeiro motor que “não é suscetível de
ser movido, quer em si mesmo, quer acidentalmente, mas diga-se antes que é ele que produz o
movimento primeiro”(1073 a 25) e, “sem esforço, tudo abala com o seu pensamento”(Xen.,
fr. 25). Poderíamos acrescentar, certamente, sem muitos prejuízos para a estrutura da ponte
que interliga o pensamento dos dois filósofos.
No entanto, sabemos que, no contraste, o que surgem são diferenças. E assim, é
claro que há diferenças enormes entre o deus de Xenófanes e o deus de Aristóteles. Mas não é
isso que no momento nos é dado a pensar. Não estamos pensando em abismos, mas antes, nas
pontes, ou até mesmo em pinguelas. Um meio de interligar o pensamento dos dois filósofos
para tentarmos compreender o nosso destino. No caso, aqui, a palavra qeo,j, que, como todos
nós sabemos, será decisiva para todo o desenvolvimento da filosofia; inabalavelmente, até a
segunda metade do século XIX. Tornando-se, contudo, já no século XX, poder-se-ia dizer,
desnecessária. Pois, a filosofia, dissolvida nas ciências tecnicizantes, deixa “de desaguar em
um deus”590. Nos tempos de Heidegger, a “notícia de que o velho Deus está morto”591, já não
é mais novidade. Portanto, se para o filósofo, “Filosofia é Metafísica”592, e metafísica é onto-
588
ROSS, Sir David. A Metafísica de Aristóteles. In: ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Editora Globo,
1969, p. 27.
589
Cf., Met., 1026 a 20.
590
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, V, § 343. In: Coleção Os Pensadores: Nietzsche. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
591
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, IV, § 285. In: Coleção Os Pensadores: Nietzsche. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
592
HEIDEGGER, Martin. O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento. In: Coleção Os Pensadores. Heidegger.
São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 95.
344
teo-logia593, sem a necessidade de um deus, a filosofia, no século XX, chega ao seu final594,
ainda que restem tarefas para o pensamento. De alguma forma, aquilo que estamos tentando
aqui.
Afinal, na esteira de Xenófanes, não estamos querendo apenas demonstrar que a
questão de deus é tão fundamental para a filosofia que, diferentemente do que pensava
Heidegger, deus entra na filosofia antes mesmo dela ter se tornado, com Platão e Aristóteles,
metafísica595. Pois, como pudemos ver, a filosofia do nosso pré-socrático já é um olhar fixo
com admiração (qewri,a) o mundo fenomênico (fu,sij) que acaba por vislumbrar o qeo,j e,
portanto, está demonstrado que errou o filósofo alemão.
Considerações finais
Mas então era isso? Cumprimos o nosso intuito ao apontarmos para um suposto
erro historiográfico do famoso filósofo? Mas o que é que ganhamos com isso? Talvez, quem
sabe, adquirimos assim um pouco de fama também, ainda que seja por quinze minutos? Acho
que não. Quem é que pode saber... Mesmo porque, na esteira de Xenófanes, julgamos, antes,
que estamos até mesmo seguindo o filósofo. Seguimos o filósofo na medida em que nossa fala
não quer apenas identificar com precisão o lugar aonde teria surgido, por primeiro, o conceito
de um deus na historiografia da filosofia. Afinal, sabemos que “enquanto perquirimos a
história da filosofia apenas historicamente, em toda parte, apenas descobriremos que o Deus
nela entrou”596. Não, isto nós já sabemos. Assim sendo, não é isso que o nosso título quer
essencialmente nomear. Com ele, quer-se nomear uma tarefa. Tarefa esta que se estabelece
como pergunta, pois é aquilo que mais nos espanta: como é que um deus acaba entrando na
filosofia?
593
“Ora bem, a metafísica ocidental desde o seu começo nos gregos e ainda não ligada a estes nomes, é,
simultaneamente, ontologia e teologia. Na aula inaugural, Que é Metafísica? (1929), a metafísica é, por isso,
determinada como a questão do ente enquanto tal e no todo. A omnitude deste todo é a unidade do ente que
unifica enquanto fundamento pro-dutor. Para aquele que sabe ler, isto significa: A metafísica é onto-teologia”(HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971, p. 83).
594
“Na época presente a Filosofia chega a seu estágio terminal. Ela encontrou o seu lugar no caráter científico
com que a humanidade se realiza na práxis social. O caráter específico desta cientificidade é de natureza
cibernética, quer dizer, técnica. Provavelmente desaparecerá a necessidade de questionar a técnica moderna, na
medida em que mais decisivamente a técnica marcar e orientar todas as manifestações no Planeta e o posto que o
homem nele ocupa”(HEIDEGGER, Martin. O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento. In: Coleção Os
Pensadores. Heidegger. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 96).
595
“Em Platão, a mudança da avlh,qeia para a ~omoi,wsij em conexão com a interpretação da ouvsi,a enquanto ivde,a
torna-se o fundamento do estabelecimento do avgaqo,n enquanto o próprio ai;tion. Com isto o caráter teológico da
metafísica está decidido porque agora e somente agora o ser e o maximamente ôntico são unidos enquanto o
divino”(HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Metafísica e Niilismo. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 160).
596
HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971, p. 84.
345
Pois, que ele entra, entra. Um fato que o filósofo não pretende negar. Antes pelo
contrário, sabemos que, depois de tudo destruído, também Heidegger, na esteira de
Xenófanes, vai em busca de deus597. Havendo quem afirme, inclusive, que a “sua filosofia,
sobretudo nos escritos posteriores, é sem dúvida uma teologia, embora radicalmente
secularizada”598.
Então é isto. Apenas isto: o que é para nós, não apenas espantoso, mas até mesmo
um mistério, é que um deus, por fim, acabe entrando na filosofia. Mas, se é assim, chegou o
momento de silenciarmos, pondo um fim em nossas palavras. Pois, afinal, o que é misterioso
cala, revelando-se apenas no resguardo.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Edición Trilingüe por Valentín García Yebra. Madrid: Editorial Gredos,
1982.
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As Origens do Pensamento Grego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989.
CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1973.
DIOGENES LAERTIUS. Live of Eminent Philosophers. Vol. I, II. With an English Translation by R.
D. Hicks. Cambrige, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1995.
GOMES, Pinharanda. Filosofia Grega Pré-socrática. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy. The Earlier Presocratics and the Pythagoreans.
Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971.
__________________. Nietzsche. Metafísica e Niilismo. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2000.
__________________. O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento. In: Coleção Os Pensadores.
Heidegger. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
_______________. La Teología de los Primeros Filósofos Gregos. Colombia: Fondo de Cultura
Económica, 1997.
KIRK, G, S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. In: Coleção Os Pensadores: Nietzsche. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
597
“Depois da análise crítica da Metafísica como onto-teologia, em que Deus entra por uma exigência lógica e
morre por força da subjetividade, Heidegger vai em busca de Deus. Apesar de sua crítica, por vezes áspera, das
teologias e cristandades, a pergunta por Deus surge em Heidegger como uma espécie de temor sagrado de quem
procura escutar o advento de Deus além e mais ao fundo das culturas existentes, viciadas pela
Metafísica”(STEIN, Ernildo. Nas Fronteiras da Antropologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2003, p. 237).
598
CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1973, p. 14.
346
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
ROSS, Sir David. A Metafísica de Aristóteles. In: ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Editora
Globo, 1969.
STEIN, Ernildo. Nas Fronteiras da Antropologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2003.
347
APROXIMAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE RELIGIOSA DOS JOVENS:
Uma Análise a Partir de uma Escola Confessional
Fernanda Maria Arruda dos Santos Andrade 599
RESUMO: A contemporaneidade tende a fragmentar o ser humano. Contudo, se não procurarmos
conhecer o ser humano na sua dimensão social, psicológica, biológica, histórica e, principalmente,
espiritual, não será possível entendê-lo. A dinâmica da sociedade tem deixado o Homem
contemporâneo, dentro do “caos”, em busca de novas identidades. É neste contexto que os jovens se
encontram, muitas vezes insatisfeitos e inquietos. Esta realidade experinciada no mundo físico se
transforma, projetando-se no universo simbólico, dando espaço para novas manifestações no mito, na
arte e na religião. Foi buscando compreender alguns aspectos das características da formação da
identidade religiosa dos jovens, neste mundo plural, que ouvimos o que eles têm a dizer sobre religião
e sua compreensão do sagrado. O objetivo deste trabalho é problematizar alguns destes discursos,
buscando levantar algumas hipóteses de interpretação. Palavras-chaves: Identidade, jovem, fenômeno
religioso
ABSTRACT: The contemporary world tends to fragment the human being. However, if we do not try
to know the human being in its social, psycological, biological, historical, and mainly, spiritual
dimension, it will not be possible to understand him. The dynamic society has left contemporary man
inside the ‘chaos’, looking for new identities. In this context, Young find themselves dissatisfied and
restless. This reality lived in physical world changes, projects on symbolic universe opens space to
new manisfetation on mith, on art and on religion. It was trying to understand some aspects of
characteristic of the formation of religion identity of young in this plural world, we heard what they
have to say about religion and their comprehension of the holy. The aim of this work is analyse some
of these speeches, trying to find some hypothesis of interpretation. Key-word: Identity, Young,
religious phenomenon
Introdução
A modernidade trouxe para a sociedade a globalização e o sistema neoliberal,
esses acontecimentos geraram novos valores sociais e os avanços tecnológicos estão
provocando mudanças no pensar e no agir da humanidade.
Sabemos que o Homem é um ser aberto600, pois está em constante aprendizagem,
em sistema aberto, diferente dos outros animais que possui seu próprio mundo, vivendo em
sistemas fechados. Por viverem em sistemas fechados, por exemplo, o cachorro, o cavalo, o
gato e assim sucessivamente, têm o mesmo comportamento em qualquer lugar do mundo. O
ser humano, ao contrário, é um ser aberto, a única certeza que carrega é a própria morte. Mas,
para onde quer que vá leva consigo a sua história de vida e cultura do meio em que vive, é
sempre processo, aprendizagem, construtor e construído pela cultura e pela história..
599
Professora, graduada em Ciências Sócias (FAFIRE), pós-graduada em Metodologia do Ensino Religioso
Escolar (AEC em parceria com a UNICAP), mestranda em Ciências da Religião UNICAP. Orientanda do
Professor Dr. Sergio Sezino Douets de Vasconcelos
600
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas, A construção social da realidade: tratado de sociologia,
Petrópolis, Vozes, 1985. p. 70
348
Enquanto que os animais não humanos nascem, na maioria das vezes, já “completos”,
formados dentro do útero, o ser humano realiza a sua maturação fora do útero e isto demora
muitos anos, até que ele possa se tornar independente dos seus genitores.. Porém, o ser
humano, na sua natureza, também possui instintos como os animais irracionais “a organização
instintiva do homem pode ser descrita como subdesenvolvida comparada com a de outros
mamíferos superiores”601. Dizer que o ser humano também possui instintos e impulsos faz
lembrar de sua própria natureza, pois o homem está relacionado com o seu ambiente natural.
Segundo Berger e Luckmann, o ser humano “em seu desenvolvimento não somente se
relaciona com um ambiente natural particular, também com uma ordem cultural e social
especifica” 602. Como já afirmamos o ser humano conclui seu desenvolvimento fora do útero,
no entanto, ao mesmo tempo em que o organismo está se formando, acontece a formação do
eu humano603. Portanto, o Homem e a natureza e o Homem social se entrelaçam dando
significados à sua existência, Berger e Luckmann, afirmam que:
O eu tal como é experimentado mais tarde como uma identidade subjetiva e
objetivamente reconhecível, não é. Os mesmos processos naturais que
determinam a constituição do organismo produzem o eu em sua forma
particular culturalmente relativa604.
O homo-sócios constrói sua própria natureza, o seu desenvolvimento não se dar
isoladamente, faz parte do convívio social, por isso o homem não possui o seu próprio mundo.
A saber, a abertura do homem para o mundo acontece no ambiente social, eles afirmam, “em
outras palavras, embora nenhuma ordem social existente possa ser derivada de dados
biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal provém do equipamento biológico do
homem”605 .
O Homem é um ser social e cultural. No entanto não há sociedade sem cultura,
sobre isto nos falam Lakatos e Marconi “a cultura resulta da invenção social; é apreendida e
transmitida por meio da aprendizagem e de comunicação”606. Haja vista, cada sociedade
constrói a sua cultura, dando a ela significados, os mais diferenciados possíveis, que devem
ser seguidos pelos indivíduos. O ser humano, por sua vez, organiza a cultura com normas e
valores a serem seguidos pela sociedade, dando sentido a sua existência, institucionalizandoas através de seus atos sociais.
601
Ibidem.
Ibidem.
603
Ibidem. p.73
604
Ibidem. p.73
605
Ibidem. p.77
606
LAKATOS, Eva; MARCONI, Marina de Andrade, Sociologia Geral,São Paulo: Atlas, 1990. p.132
602
349
As atividades humanas sejam elas social ou não, estão sujeitas ao habito607. Até
mesmo o individuo que se encontra isolado da sociedade, torna a sua atividade um habito.
Psicologicamente falando o habito faz com que o individuo acostume-se a fazer sempre a
mesma coisa sem buscar a criatividade ou inovar seu projeto de vida ou subsistências.
Tomamos como exemplo o carpinteiro que se dedica a construir guarda-roupas, há diversas
maneiras de fazer um guarda-roupa, porém este carpinteiro no qual estamos falando está
habituado a realizar o seu trabalho sempre do mesmo jeito sem perspectivas de inovação,
tornando a sua atividade habitual. Assim quando um grupo de carpinteiros, reuni-se para
fazer os guarda-roupas, todos do mesmo jeito, como um ritual realizado por todos pode-se
dizer que o modo de fazer os guarda-roupas institucionalizou-se, sobre isso, afirmam Berger
e Luckmann;
A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de
ações habituais por tipos de atores. Dito de maneira diferente, qualquer uma
dessas tipificações é uma institucionalização608 .
Além disso as institucionalizações implicam na ”historicidade e no controle”609. A
sua história de vida, compreende a experiência que o individuo vivencia e armazena no seu
reservatório de sentido. Os pais, institucionalizam a sua história, depois a transmitem para os
seus filhos, a fim de que eles perpetuem seus significados, valores e símbolos. Portanto, como
os filhos não vivenciaram o inicio da história de vida de seus pais, eles não poderão
armazenar em sua memória ou melhor no seu reservatório de sentidos, o inicio da
institucionalização, porque a criança não presenciou o seu surgimento. Portanto, o mundo
institucional é experimentado como realidade objetiva. O mundo institucional é a atividade
humana objetivada, o Homem é produtor e o mundo social o produto, essa dialética nos
mostra que o ser humano também é produto social.
As institucionalizações ajudam o ser humano a promover suas experiências,
porém, apenas uma pequena parte das experiências, são retidas na consciência. Essas
experiências sedimentadas, “consolidam-se na lembrança como identidades reconhecíveis e
capazes de serem lembradas”610. É por causa desta sedimentação que o individuo dar sentido a
sua vida. A sedimentação intersubjetiva pode ocorrer quando vários indivíduos participam de
uma comunidade comum, no entanto ela é verdadeiramente social quando seus objetivos estão
dentro de um sistema de sinal. Um exemplo muito forte é a linguagem, ela é um sinal que é
607
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas, A construção social da realidade: tratado de sociologia,
Petrópolis, Vozes, 1985. p. 76
608
Ibidem. p.79
609
Ibidem. p.79
610
Ibidem. p.95
350
significante e contém significados. A linguagem transmite a historicidade da sociedade,
portanto ela é tradição de uma determinada sociedade611. Segundo Berger e Luckmann; “ A
linguagem torna-se o deposito de um grande conjunto de sedimentações coletivas, que podem ser
adquiridas monoteticamente, isto é, com totalidades coerentes e sem reconstituir seu processo original
de formação”612.
O individuo não nasce membro da sociedade, mas nasce predisposto para a
sociabilidade613 tornando-se membro da sociedade, afirmam Berger e Luckmann;
O ponto inicial deste processo é a interiorização, a saber a apreensão ou
interpretação imediata de um acontecimento objetivo como dotado de
sentido, isto é, como manifestação de processos subjetivos de outrem, que
desta maneira torna-se subjetivamente significativo para mim614.
Na medida em que eu assimilo a subjetividade do outro ela passa a ser significante
para mim porque transmito sentidos tornando-a objetiva. Portanto, o processo de objetivação
e subjetivação ocorre nas necessidades primarias do sentido, elas “são processadas
parcialmente em diferentes fases da história”615, muitas vezes tornando-se intersubjetivas.
Segundo os sociólogos Berger e Luckmann;
No entanto, a interiorização, no sentido geral aqui empregado, está
subjacente tanto a significação quanto às suas formas mais complexas. Dito
de maneira mais precisa, a interiorização neste sentido geral constitui a base
primeiramente da compreensão de nossos semelhantes e, em segundo lugar,
da apreensão do mundo como realidade social dotada de sentido616.
É diante desta realidade que o individuo constrói sua identidade recheada de
valores éticos e morais adquiridos no seu ambiente social, ao qual ele legitimou dando-lhe
significados na sua experiência de vida formando o seu reservatório de sentidos. Essas
“experiências são armazenadas no conhecimento subjetivo ou tomados do acervo social do
conhecimento”617 de cada individuo.
Essa identidade entra em “crise” nos dias atuais, devido à pluralidade de ofertas de
sentido. Como afirmam os autores os processos modernos de pluralização distinguem-se de
seus antecedentes não só por sua enorme abrangência, pois engloba a vastos círculos de
sociedades existentes, como também por sua rapidez. Segundo os autores:
611
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas, A construção social da realidade: tratado de sociologia,
Petrópolis, Vozes, 1985, p.96
612
Ibidem. p.97
613
Ibidem. p.174
614
Ibdem. p.174
615
Ibdem. p.20
616
Ibdem. p. 96
617
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas, Modernidade, pluralismo e crise de sentido, Petrópolis Rio de
Janeiro,Editora Vozes, 2ª edição. p.16
351
O pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de
valores e interpretações. Em outras palavras: os antigos sistemas de valores
e de interpretação são ‘descanonizados’. A desorientação do indivíduo e de
grupos inteiros por causa disso já é tema principal há muitos anos da crítica
da sociedade e da cultura. Categorias como ‘alienação’ e ‘anomia’ são
propostas para caracterizar a dificuldade das pessoas de encontrar um
caminho no mundo moderno. A fraqueza desse modo de pensar, que
entrementes já ficou convencional, não está tanto no fato de a crise de
sentido estar sendo, por assim dizer, exagerada, mas em sua cegueira quanto
à capacidade que têm os indivíduos e as diferentes sociedades de vida e de
sentido de preservar seus próprios valores e interpretações.618
O grande relativismo dos sistemas de interpretações ocasionados pela pluralização
na modernidade desestabiliza os valores tradicionalmente estabelecidos, colocando em cheque
as orientações tradicionais dos indivíduos e grupos sociais por dificultar-lhes encontrar uma
evidência de sentido, diante da pluralidade de ofertas de sentido na modernidade. Em outras
palavras, o pluralismo moderno desestabiliza as auto-evidências das ordens de sentido e de
valor que orientava as ações das pessoas e suas identificações na sociedade ate então.
O pluralismo moderno desacredita este ‘conhecimento’ auto-evidente.
Mundo, sociedade, vida e identidade são problematizados sempre com mais
vigor. Podem ser submetidos a várias interpretações e cada uma delas está
ligada com suas próprias perspectivas de ação. Nenhuma interpretação,
nenhuma perspectiva podem ser assumidas como únicas em validade ou
serem consideradas inquestionavelmente corretas.619
Este novo contexto é sentido por muitos como um “peso”, exigindo-lhe abertura
sempre maior para o novo e o desconhecido em sua vida.
Há pessoas que suportam esta exigência; e algumas até parece que se
sentem bem com ela. Poderíamos chamá-las de virtuosos do pluralismo. A
maioria, porém, sente-se insegura num mundo confuso e cheio de
possibilidades de interpretação e, como alguns desses também estão
comprometidos com diferentes possibilidades de vida, sentem-se
perdidos.620
Eles romperam com a cultura social existente, e o individuo que, de certa forma,
era considerado unificado, agora ver-se fragmentado. Segundo Magaldi Filho, essa
fragmentação acontece porque “a mente se separou do corpo, o corpo da alma e a alma do
espírito”621. Essa maneira de viver na sociedade, levou-o a incertezas, ao medo e à falta de
sentido. Segundo Stuart Hall, esse desconserto “é assim chamada ‘crise de identidade’ e é
618
Ibdem. p. 50.
Ibdem., p. 54.
620
Ibdem. p.54
621
MAGALDI FILHO,Waldemar, pluralismo: identidade e alteridade, In: Revista Diálogo: revista de ensino
religioso, nº 31, agosto de 2003, Ano VII, São Paulo, Ed. Paulinas, p.12
619
352
vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no
mundo social”622. No entanto, a dialética da sociedade mostra que nada é estável vivemos em
meio a uma pluralidade cultural. Na verdade não há, de fato, crise de sentido, mas crise de um
sentido único na sociedade.
1 Juventude
A juventude nascida de 1970 até os dias de hoje, são frutos do pós-guerra mundial,
da chamada guerra fria e, em alguns setores da sociedade, de um despertar para uma vida
ecológica, vivendo na tensão de uma vida globalizada em meio a empregos e desempregos,
violências, injustiças sociais e por fim, dentro de uma diversidade de informação.
Mesmo dentro deste contexto “a cultura midiática também oferece espiritualidade”623.
Portanto, faz-se necessário fazer uma leitura dialética sobre a influência da cultura
no desenvolvimento do jovem, pois o indivíduo seleciona os fatos culturais que deseja
acrescentar como valores na sua vida. De acordo com o teórico Benedetti, não podemos
entender e compreender os jovens “fora desse universo cultural -
homogeneizador e
diferenciador ao mesmo tempo – o universo midiático, compreendido além de sua
especificidade técnica”624, esse universo midiático exige que o indivíduo viva o aqui e o
agora. A juventude contemporânea quer que seus problemas sejam resolvidos de uma hora
para outra. Para isso busca respostas e soluções, entre outros, em diversas religiões. Tendo em
vista esta realidade midiática, Featherstone, fala de duas realidades, para definir a cultura.
O processo de globalização sugere simultaneamente duas imagens da
cultura. A primeira imagem pressupõe a extensão de uma determinada cultura até
seu limite, o globo. As culturas heterogêneas tornam-se incorporadas e
integradas a uma cultura dominante, que acaba por cobrir o mundo inteiro. A
segunda imagem aponta para a compressão das culturas. Coisas que eram
mantidas separadas são, agora, colocadas em contato e justaposição. As culturas se
acumulam umas sobre as outras, se empilham, sem princípios óbvios de
organização. Existe cultura demais com que se lidar e para organizar através de
625
sistemas coerentes de crença, meios de orientação e conhecimento prático .
622
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, p. 7
NOVAES, Regina, juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença?, In: ABRAMO,
Helena Wendel, BRANCO, Pedro Paulo Martoni (org). Retratos da juventude brasileira: analises de uma
pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005. p.264
624
BENEDETTI, Luiz Roberto, religião, educação e diversidade cultural: conflitos e possibilidades, In: Revista
de Educação AEC, nº 138, ano 35 janeiro/março de 2006, editora, Salesiana, ISSN 0104-0537, p.14
625
FEATHERSTONE, Mike, O desmanche da cultura: globalização: pós-modernidade e indenidade, São
Paulo: Estúdio Nobel: SESC, 1997. p. 21
623
353
A cultura passa a ser um bem de consumo. Hoje, muitos shoppings têm lojas que
vendem objetos religiosos significativos para determinada religião: pedras, incenso, cruz,
duendes, estrelas, imagens de santos dentre outros. O indivíduo volta às raízes de uma cultura
organizada por simbologias, rituais e mitologias. Cruz626 traz a seguinte definição pra esses
elementos: ritual são as orações repetitivas, danças, cantos, suplicas, movimentos, através do
ritual o homem se transporta para um mundo invisível; mitologia são os elementos narrativos
dentro do ritual; simbologia são as pinturas rupestres, estatuas, patuar...
É diante dessa realidade cultural que estudiosos da cultura analisam as faces
diversificadas dos adolescentes e jovens contemporâneos, chamando a atenção para os
impactos que os fatores culturais produzem e como os adolescentes e jovens reagem diante
deste universo. São várias as formas que a juventude se apropria para encarar esse mundo
plural, segundo Libânio:
Impõe-se, embora de maneira sumária, uma rápida tipologia que os envolve.
Os termos modernidade e pós-modernidade resumem muito bem os traços
fundamentais de nosso clima cultural. Outros entram na modernidade pelas
asas da elite, outros pelos porões da luta pela sobrevivência. Outros ainda
inserem-se nela ou são excluídos. Outros cansam-se da modernidade e
metem-se de corpo inteiro na nascente da pós-modernidade da festividade,
ou do tédio, ou da experiência mística, ou do compromisso humanitário627.
Essa realidade gera a crise de identidade, sobretudo religiosa. Algumas pessoas
procuram uma ética planetária, que segundo Magaldi Filho, busca o “respeito pelos valores
em busca do sagrado que está imanente, guardado na essência mais íntima do ser, para atingir
o transcendente, presentes nas principais tradições espirituais da humanidade e, finalmente, a
transdisciplinariedade
e
não
o
ajuntamento
de
especialidades
encontrado
na
multidisciplinariedade”628.
Ao confrontar-se com a pluralidade cultural e, conseqüentemente, religiosa, muitos
jovens tendem a se apegar nas religiões que prometem resolver seus problemas de forma
imediata.
Apresentaremos algumas respostas colhidas entre os jovens sobre “O que você
mais aprecia no mundo de hoje?”629.
626
CRUZ, E. A persistência dos deuses. São Paulo: UNESP, 2004. p. 24 a 37
LIBÂNIO, João Batista, Jovens em tempos de pós-modernidade, São Paulo, Editora Loyola, 2004. p.16
628
MAGALDI FILHO,Waldemar, pluralismo: identidade e alteridade, In: Revista Diálogo: revista de ensino
religioso, nº 31, agosto de 2003, Ano VII, São Paulo, Ed. Paulinas. p. 17
629
Os dados colhidos destes jovens fazem parte de uma pesquisa mais ampla e serão identificados com os
627
códigos: C01, C06, C08, C09, C10, C15.
354
C10: O tipo de cultura das pessoas. As pessoas cultuarem certos deuses, certos
tipos de coisas que não são, as vezes nem aceito pela sociedade, mas
ignorados pelas pessoas. Eu acho isso muito legal, porque as pessoas
acreditam, continuam acreditando que alguma coisa pode melhorar algum
dia. Entendeu?
Na fala dos jovens, percebemos que existe a esperança de um mundo melhor.
Perguntamos aos jovens, o que eles menos apreciam no mundo de hoje?
C01: A aceitação que algumas pessoas têm quanto a
essas coisas que vem
acontecendo no mundo de hoje. Essa diferença com o tratamento com a
natureza. Essa aceitação com a violência, achar que é normal. Porque eu
ainda acredito que não seja normal.
C08: As pessoas sem amor, as que não ligam para as outras pessoas, os políticos
de hoje em dia , tudo isso.
C09: Que mesmo com tantas religiões tem gente que ainda não tem religião e não
querem saber um pouco mais das outras religiões pra ver se gosta.
C10: A política. Acho que deve muito ser melhorada daqui pra frente. As pessoas
têm esperança ainda, né. Mas acho que seria muito melhor se tivesse político
de boa índole no governo.
Diante destas respostas, procuramos saber o que é o sagrado para os jovens.
C01: É algo santo que vem de Deus.
C06: Algo que é mais importante pra gente, algo que tem que dar muito valor.
C09: Deus. A gente não pode esquecer dele nunca.
C15: Sagrado. Não tenho nenhuma explicação concreta mais o que eu diria sobre
o sagrado, algo muito respeitado, seria isso não sei. O sagrado pra mim é
minha mãe.
Os cristãos tendem a definir Deus através da moralidade, isto é, a idéia moral que
cada pessoa possui sobre Deus. Esta concepção está ligada à cultura de cada sociedade. É a
sociedade que determina a ideologia sobre Deus que por sua vez passa de geração em
geração.
A razão não faz parte da idéia existente sobre Deus. Na verdade não existe
explicação racional sobre Deus ou o Sagrado. O sentimento que cada pessoa, expressa sobre o
Sagrado ou nome ao qual o batizaram é a manifestação de fé, neste caso pouco importa o
355
nome do transcendente, Rudolfo Otto o chama de NUMINOSO. Segundo Otto, “O
conhecimento que a fé possui do transcendente exprime-se através de noções, daquelas que
acabamos de citar e de outras que as completam”630 .
Diante de tanta tecnologia, os jovens ficam um pouco confusos quando expressão
sua opinião sobre o sagrado. Não há definição para a divindade, na verdade, a idéia sobre a
divindade não se esgota, pois a fé não é racional. A divindade é algo maior do que a
compreensão é além de qualquer definição, segundo Otto:
Ao mesmo tempo, há quem se dedique, com uma energia e arte quase
dignas de admiração, a não ver o elemento específico da experiência, tal
como já se manifesta nas expressões mais primitivas da religião. É
admirável; pelo menos surpreende. Com efeito, se há um domínio da
experiência humana onde aparece algo que é específico desse domínio, e
que só neste pode observar-se, é o mais da religião631.
Ao perguntar a juventude sobre o que é religião encontramos diversas respostas.
C06: Algo que a gente tem que se espelhar, tem que ter um objetivo e que vai
encontrar Deus.
C09: É um ato seu de saber viver as Leis de Deus ou de sua religião.
C15: Assim a religião pra mim é alago para você se aprofundar mais nas coisas de
Deus.
A juventude busca algo ou alguém para se espelhar, procuram um objetivo para
prosseguir, querem segurança.
A criança aprende, com os pais ou responsáveis, a interagir com o outro dentro do
reservatório de sentidos existente na sociedade. Progressivamente ele vai adquirindo os
valores sociais da comunidade que pertence entendendo o agir social, bem como
compreendendo o seu sentido. Durante o seu amadurecimento ele espelha-se no agir do outro,
assim as crianças desenvolve sua identidade pessoal. Portanto, a essência da identidade
pessoal é o “controle subjetivo sobre uma ação pela qual se é responsável objetivamente”632 .
Pertencer ao grupo dar sentido de segurança no mundo em que alguns valores não
são mais estáveis. Os jovens ainda ficam confusos ao expressar sua opinião quando o assunto
é religião. Um outro jovem da amostra explicita sua opinião da seguinte forma:
630
OTTO, Rudolf, O sagrado, Rio de Janeiro, Edições 70 ( Perspectiva do Homem), pág. 10
Idem. p. 12
632
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas, Modernidade, pluralismo e crise de sentido, Petrópolis Rio de
Janeiro,Editora Vozes, 2ª edição. p.26
631
356
C10: Religião é uma coisa que você não ver mais que você tem que acreditar.
Porque se você não acreditar em quem é que você vai acreditar. Não é
mesmo?! Como? É uma coisa é tipo uma base. Eu sou uma pessoa, que sou
Católica, mas não tenho uma religião muito. Sou católica mas não sou
praticante. Eu sou católica porque meus pais são Católicos. Entendeu? Eu fui
batizada fiz a Primeira Comunhão, mas não sou praticante. Mas é uma coisa
que eu acredito em Deus mas eu acho que não preciso ir a casa dele pra ele
saber que eu acredito nele. Entendeu? Pra mim isso é religião você cultuar
aquilo que você acredita não só Deus ou tanta gente cultua Alá ou tanta coisa
desse tipo mas é a mesma coisa então. Então é religião pra mim.
Nos discursos percebemos que os jovens buscam algo para acreditar e levam isso a
sério. A amostra acima mostra um jovem um tanto inseguro, mas que sente a necessidade de
afirmar que pertence a um grupo religioso.
C10: [...] Porque se você não acreditar em quem é que você vai acreditar. Não é
mesmo?! Como? É uma coisa é tipo uma base. Eu sou uma pessoa, que sou
Católica, mas não tenho uma religião muito. Sou católica mas não sou
praticante. Eu sou católica porque meus pais são Católicos. Entendeu?
O entrevistado afirma pertencer a uma religião mesmo que esteja distante dela “Eu
sou uma pessoa, que sou Católica, mas não tenho uma religião muito. Sou católica mas não
sou praticante. Eu sou católica porque meus pais são Católicos. Entendeu?”
Ao dizer “Sou católica mas não sou praticante”, o jovem mostra que busca uma
identidade religiosa mas a principio ele está inserido na religião que os pais ofereceram,
segundo Berger e Luckamnn este jovem está ligado a comunidade de vida que é também de
sentidos, pois o jovem quando criança extrai os valores do reservatório histórico de sentidos,
que foi armazenado no período do processo de formação da identidade pessoal. “Eu sou
católica porque meus pais são Católicos”, segundo os sociólogos Berger e Luckamnn, “as
comunidades de vida são características por um agir que se repete com regularidade e
diferentemente recíproco em relações sociais duráveis”633.
O indivíduo, integrante da comunidade de vida, deposita confiança e credibilidade.
Contudo “há nas sociedades vários tipos de diferenças importantes quanto as formas de
comunidade de vida nelas institucionalizadas”634.
633
634
Ibidem. p.27
Ibidem. p.27
357
Perguntamos aos jovens o que faz com que um jovem não participem de sua igreja
e tivemos as seguintes respostas:
C01: Eu acho assim respondendo ao contrário para explicar melhor. Uma pessoa
que vai a Igreja, é mais fácil ela ir desde de novos os pais levando desde
pequeno. É mais fácil seguir quando for jovem. Ou então algum amigo
chamá-los. Até tem que ser isso porque sozinho é muito difícil hoje em dia.
O jovem da amostra C01, nos lembra o que escrevemos em parágrafos anteriores
sobre comunidade de vida e de sentidos (Berger e Luckamnn) na sua fala: “Uma pessoa que
vai a Igreja, é mais fácil ela ir desde de novos os pais levando desde pequeno. É mais fácil
seguir quando for jovem”. Ora se não existe um elo de ligação com a vida religiosa desde
criança, como pode a sociedade exigir que um jovem siga determinada religião. Ou seja sinta
a necessidade de encontrar o sagrado e realizar a mística.
O jovem ainda aponta um outro tópico : “Ou então algum amigo chamá-los. Até
tem que ser isso porque sozinho é muito difícil hoje em dia”. A juventude procura formar
grupos no qual se identificam, isto é, a referência, o sentido de pertença torna mais sólido.
Outro jovem responderam da seguinte forma a mesma pergunta:.
C08: Eu mesmo na Messiânica, faz tempo que eu não vou, e é aqui do lado,
pertinho. Desde que meu pai foi para o Rio de Janeiro, eu não tenho com
quem vá comigo. Minha vó deixou de ser ministra e não tem mais ninguém
lá para ir comigo. Faz tempo que eu não vou. Espírita porque minha mãe tem
livros lá eu gosto de ler, mas eu mesmo nunca fui para a religião. Eu acredito
na religião Espírita tem parte que a família fica ao redor de um copo de água
e a água é purificada.
A falta de companhia, jovens gostam de andar em grupo , precisam de um
incentivo externo: “[...]eu não tenho com quem vá comigo “. O entrevistado revela gostar
muito da religião Messiânica, que seu pai ofereceu desde criança, porém, este jovem possui
duas orientações religiosas distintas. A mãe do jovem é espírita e o entrevistado demonstra
interesse e admiração; “Espírita porque minha mãe tem livros lá eu gosto de ler, mas eu
mesmo nunca fui para a religião”, acontece o sincretismo tranqüilamente sem haja qualquer
constrangimento.
“[...] tem parte que a família fica ao redor de um copo de água e a água é
purificada” . O modelo de família tradicional (pai, mãe e filhos) já não é mais plausível na
sociedade atual. Novos modelos de família surgiram mas a essência familiar, o aconchego a
358
referencia de ter para onde retornar prevalece, mesmo que os valores que regiam as famílias
tradicionais tenham enfraquecido.
C10: Vergonha. Os jovens hoje em dia têm vergonha porque os seus amiguinhos
dizem:
“Ah! Que coisa careta vai pra a Igreja”. Também tem muito disso sabia. As
pessoas pensam que não, mas têm. Os jovens hoje em dia, pensam muito
diferente das pessoas de antigamente. Os jovens, ele é uma religião tem certa
convicções que os adultos se sentem embasbacados porque é diferente é uma
contradição você esta passando por uma transição você está passando de ser
criança para ter uma certa responsabilidade. Entendeu? Tem que pensar
certas coisas que antes você não precisava
pensar, tem certos tipos de
pensamentos mais evoluídos tem que trabalhar muito, usar muito a sua
mente. Entendeu? Por isso que as pessoas, os jovens, procuram as religiões
que menos exigem porque os jovens odeiam ser exigidos por qualquer coisa.
Então é isso que fazem o jovem não freqüentar certo tipo de Igreja.
Entendeu? Até Igreja normal mesmo.
Na juventude, o sujeito tem uma tendência para a religiosidade. Os encontros
jovens e retiros contribuem na formação do caráter religioso da juventude e no
amadurecimento do credo de fé, ao qual pertencem. Há jovens que fazem sua experiência de
fé de maneira diferenciada, são os jovens engajados na política, no trabalho e que não
pertence a grupos religiosos. No entanto, a modernidade oferece aos jovens um “self-service”
de religião, uma verdadeira feira de novas oportunidades, onde eles podem trocar de religião
como quem troca de roupas. Segundo Berger e Luckamnn:
O pluralismo moderno minou o monopólio das instituições religiosas [...] a
pertença a esta ou aquela Igreja já não é auto-evidente, mas resultado de
uma escolha consciente. [...] Se quiserem sobreviver, as Igrejas devem
atender sempre mais aos desejos de seus membros. A oferta das Igrejas
deve comprovar-se num mercado livre. As pessoas que aceitam a oferta
tornam-se um grupo de consumidores635.
É um momento em que eles não querem se prender a religião alguma, mas falam
de fé e buscam o transcendente. Prendem-se a grupos de amizades sendo, esse credo teísta
mais significativo para a juventude do que o credo confessional. No entanto, nas experiências
que o indivíduo vivencia durante o seu dia a dia, estão presentes, os valores sociais da
635
BEGER; Peter, LUCKAMNN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido, Petrópolis: Vozes.
2005. p. 61.
359
sociedade a qual pertence. Segundo Beger e Luckmann, essas experiências e valores sociais
constituem os sentidos e esses formam a “identidade pessoal do indivíduo”636.Segundo
Libório, “sinteticamente pode-se dizer que o aspecto “motivacional” da maturidade religiosa é
especificado como um fenômeno de crescimento, um desenvolvimento continuo do qual
participa a inteira personalidade, com suas diversas características”637.
Percebemos que a religião não está fora da sociedade contemporânea. Segundo
Novaes “a religião pode ser vista como uns dos aspectos que compõem o mosaico da grande
diversidade da juventude brasileira”638. Mesmo com a diferença geográfica e de rendimentos
familiares a religião faz parte do universo da juventude. De acordo com a pesquisa realizada
pela Fundação Perseu Abramo no ano de 2004, a religião ocupa um lugar “surpreendente
entre os assuntos que os jovens gostariam de discutir não só com os pais, mas também com
os amigos e com a sociedade”639.
Hoje a probabilidade de se multiplicarem as Igrejas e tradições religiosas, que são
oferecidas a juventude, são bem maiores. Portanto, os jovens têm um novo jeito de ver a
religião então eles juntam elementos de varias religiões obtendo varias possibilidades
sincréticas que influenciam na produção e reprodução de sua identidade religiosa.
Há a maior possibilidade da juventude entrar em contato com os textos sagrados
ou fragmentos do mesmo, pois versículos bíblicos, são pixados nos muros e morros (não só de
favelas mas também de cidades elites), escritos em outdoors, entregues nas praças (forma de
folhetos), em alguma letras de rap como também em alguns programas de televisões. A Bíblia
tornou produto de consumo, oferecido em qualquer livraria seja nos bairros de elites ou
periféricos.
De acordo com Novaes, “É nesse cenário que se coloca o desafio de compreender
o “quanto”, “como” e “quando o pertencimento, as crenças e as identidades religiosas
influenciam opiniões, percepções e práticas sociais dos jovens desta geração. Trata-se de
encontrar instrumentos de análise e caminhos de reflexão para compreender melhor os efeitos
de escolhas, pertencimentos e identidades religiosas em diferentes áreas da vida social”640.
636
Ibidem. p.17
LIBÓRIO, Luiz Alencar, A existência humana e a dimensão psico-religiosa, Recife; 2005, mimeo, p. 96
638
NOVAES, Regina, juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença?, In: ABRAMO,
Helena Wendel, BRANCO, Pedro Paulo Martoni (org). Retratos da juventude brasileira: analises de uma
pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005. p.263
639
Ibidem. p.263 a 264.
640
NOVAES, Regina, juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença?, In: ABRAMO,
Helena Wendel, BRANCO, Pedro Paulo Martoni (org). Retratos da juventude brasileira: analises de uma
pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005. p.265.
637
360
Diante desta realidade a humanidade se encontra sem alicerce, não tendo
sustentabilidade, isto implica dizer que não há referência social. Segundo Magaldi Filho, “a
mente se separou do corpo, o corpo da alma e a alma do espírito”641. Essa maneira de ver o
homem na sociedade, deixou-o fragmentado, levando-o a incertezas, ao medo e à falta de
sentido. Esta realidade não é fácil de encarar deixando a juventude pós-moderna em crise.
Essa realidade gera a crise de identidade, sobretudo religiosa. A humanidade
caminha para uma ética planetária, que segundo Magaldi Filho, busca o “respeito pelos
valores em busca do sagrado que está imanente, guardado na essência mais íntima do ser, para
atingir o transcendente, presentes nas principais tradições espirituais da humanidade e,
finalmente, a transdisciplinariedade e não o ajuntamento de especialidades encontrado na
multidisciplinariedade”642.
Alguns fatores influenciam para que aconteça o trânsito religioso os ventos
secularizantes soprado na sociedade, a influência da família, dos amigos e dos agentes
religiosos. De acordo com o Censo do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
do ano de 2000, três principais características foram apontadas na realização do trânsito
religioso: diminuição dos católicos (83,76% em 1991 para 73,77 em 2000), houve
crescimento dos evangélicos de denominação tradicional e pentecostal (9,05% em 1991 para
15,5% em 2000) e o aumento dos sem religião, ateus, agnósticos (4,8% em 1991 para 7,4%
em 2000). Segundo Regina Novaes, “os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer
suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo. Aí entram, sobretudo, os
evangélicos pentecostais”643.
O mundo religioso plural permite o crescimento da presença de grupos jovens em
religiões diversas onde difundem seus ritos, símbolos e crenças sem que haja nenhuma
fidelidade entre o indivíduo e a religião em questão.
Referências
BENEDETTI, Luiz Roberto, religião, educação e diversidade cultural: conflitos e possibilidades, In:
Revista de Educação AEC, nº 138, ano 35 janeiro/março de 2006, editora, Salesiana, ISSN 01040537. 170p.
641
MAGALDI FILHO,Waldemar, pluralismo: identidade e alteridade, In: Revista Diálogo: revista de ensino
religioso, nº 31, agosto de 2003, Ano VII, São Paulo, Ed. Paulinas, p.12
642
Ibidem, p. 17
643
NOVAES, Regina, juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença?, In: ABRAMO,
Helena Wendel, BRANCO, Pedro Paulo Martoni (org). Retratos da juventude brasileira: analises de uma
pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005, p.268.
361
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia,
Petrópolis, Vozes, 1985, 248p
__________ Modernidade, pluralismo e crise de sentido, Petrópolis Rio de Janeiro,Editora Vozes,
2ª edição, 94p.
CRUZ, E. A persistência dos deuses. São Paulo: UNESP, 2004.
FEATHERSTONE, Mike, O desmanche da cultura: globalização: pós-modernidade e indenidade,
São Paulo: Estúdio Nobel: SESC, 1997. p.240
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
LAKATOS, Eva; MARCONI, Marina de Andrade, Sociologia Geral, São Paulo: Atlas, 1990, 334p
LIBÂNIO, João Batista, Jovens em tempos de pós-modernidade, São Paulo, Editora Loyola, 2004.
248p.
MAGALDI FILHO,Waldemar, pluralismo: identidade e alteridade, In: Revista Diálogo: revista de
ensino religioso, nº 31, agosto de 2003, Ano VII, São Paulo, Ed. Paulinas, p.12 a 17.
NOVAES, Regina, juventude, percepções e comportamentos: a religião faz diferença?, In: ABRAMO,
Helena Wendel, BRANCO, Pedro Paulo Martoni (org). Retratos da juventude brasileira: analises
de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005, p.263 a
290
OTTO, Rudolf, O sagrado, Rio de Janeiro, Edições 70 ( Perspectiva do Homem), 229p
362
THOMAS MERTON
Sua Vida e o Diálogo com o Oriente644
Francilaide de Queiroz Ronsi645
RESUMO: Thomas Merton percorreu um caminho gradual de ascensão à Verdade. Boa parte de sua
jornada, transcorreu em caminhos indiretos, às vezes às escuras, vislumbrando ao longe uma centelha
de luz. Seus escritos são marcados pelo desejo de subir a montanha e um descer constante a realidade
dos homens. Um místico do século XX, que do isolamento do seu mosteiro, depois de ter conhecido os
prazeres e tédios dos sentidos, foi uma das vozes mais atuantes do seu tempo: nenhum dos dilemas da
humanidade escapou da sua atenção. Ele chega a se declarar como o "Espectador culpado" duma
sociedade egoísta. E foi a partir do seu ecumenismo e macroecumenisno que muitos o consideraram
um dos precursores do diálogo inter-religioso e da teologia e espiritualidade da libertação. Nosso
percurso através de sua experiência e pensamento aventurou-se num primeiro momento por sua
autobiografia, A montanha dos sete patamares, narrativa do itinerário de sua vida. E em seguida
enveredamos em algumas das páginas do seu diário reunidas em uma obra, Merton da Intimidade646,
trazendo passagens da sua extraordinária caminhada traduzidas em desafios, confrontos, interação e
diálogo com as tradições religiosas do ocidente e do oriente, e por fim, sua trágica morte. Sua
contribuição está em uma espiritualidade encarnada com a realidade, uma espiritualidade da
libertação, que se traduz em uma abertura ao outro, ao diferente; no diálogo frutuoso com as diversas
religiões Orientais, que não diminui ou causa difusão, mas contribui para encontrar no cristianismo
dimensões que não conseguiria perceber sem a ajuda destas. Palavras chaves: diálogo, religiões,
ecumenismo, macroecumenismo.
ABSTRACT: Thomas Merton walked through a gradual way ascension to the Truth. Good part of his
journey happened in indirect ways, sometimes in the dark, glimpsing in the distance a light spark.
Their writings are marked by the wish to climb the mountain and constantly go down to men´s reality.
A XXth century mystic, he went out of the isolation of his monastery, and after having known senses
pleasures and tediums, was one of the most heard voices of our time. None of the humanity's
dilemmas escaped from his attention. He declared ourself the "Guilty spectator" of a selfish society.
And it was out of his ecumenism and macroecumenism that many considered him one of the pioneers
of interreligious dialogue, and of the liberation theology and spirituality. Our route through his
experience and thought ventured in a first moment through his autobiography, The seven storey
mountain, the narrative of his life´s itinerary. And soon after we will walk through some of the pages
of his diary gathered in a work called Merton in Intimacy, which brings passages from his
extraordinary way translated in challenges, confrontation, interaction and dialogue with religious
traditions of the west and the east, and finally, his tragic death . His contribution is in a spirituality
embodied within reality, a liberation spirituality that we translate as an openess to the other, to the
different; in the fruitful dialogue with the several Eastern religions, that does not decrease or causes
diffusion, but contributes to find in christianity dimensions that it would not manage to realize
without their help . Key words: Dialogue, religions, ecumenism, macroecumenism.
644
Pesquisa apresentada na disciplina Questões Especiais sobre Deus
Mestranda em Teologia Sistemático-Pastoral – PUC-Rio
646
HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Rio de Janeiro,
FISUS, 2001. Um livro que reúne memórias em forma de diário, composta por passagens selecionadas de seu
diário (uma obra de 7 volumes). Traduzido por Leonardo Fróes (monge trapista).
645
363
1 Thomas Merton e suas primeiras descobertas
Nasceu em uma pequena cidade da França, Prades, em 31 de janeiro de 1915. Na
infância passou por uma fase muito difícil, sua mãe morreu e o pai começou a viajar, ficando
ele e seu irmão mais novo com os avós paterno, em Flushing647. Estes eram protestantes, um
protestantismo que TM dizia não identificar. Para eles as religiões eram compreendidas
apenas do ponto de vista puramente natural e social. Ele herdou de seu avô uma compreensão
fria e desagradável do catolicismo.
Quando seu pai retornou de sua longa viagem, junto com a alegria, surgiu o
descontentamento por saber que iriam se mudar para França.
Escrevera mais tarde: “França! Sinto-me feliz por ter nascido em teu solo. E
também porque a Providência me reconduziu a ti antes que fosse tarde demais” 648. Não era o
que pensava quando criança, ao chegar a Calais, num dia chuvoso de setembro de 1925.
No novo colégio demorou a se adaptar e teve pela primeira vez sua experiência de
angústia e desolação, vazio e abandono649.
Seu pai passou a viajar com muita freqüência e tiveram que partir para Inglaterra,
onde se iniciou uma nova etapa de sua vida. Neste período de mudanças seu pai ficou doente.
E com pouco tempo veio a falecer.
Depois de superar esta grande perda, TM assume sua vida com uma liberdade
própria do século XX. Estava destinado a viver como um autêntico cidadão do seu século.
Em uma ocasião quando viajava, decidiu ser comunista mesmo não sabendo o que
isso significava650. Passou a evitar discursões sobre religião. E terminado seu curso decidiu ir
para a faculdade de Cambridge651. Mas antes viajou de férias para Roma.
Foi na cidade romana que conheceu um pouco sobre a história de Jesus.
E pela primeira vez na vida comecei a descobrir alguma coisa daquela
Pessoa que muitos chamavam de Cristo. Foi um conhecimento obscuro,
mas verdadeiro, e em certo sentido, mais verdadeiro do que supus e mais
verdadeiro do que eu admitiria 652.
647
Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares. Petrópolis: Vozes. 2005. p. 20-21
Ibid., p. 34
649
Cf. Ibid., p . 41-42
650
Cf. Ibid. p. 87
651
Cf. Ibid., p. 95
652
Ibid. p. 102
648
364
Visitou várias igrejas e museus, até que passou a visitar não só pela sua arte, mas
pela paz que o ambiente lhe dava. Quando partiu passando perto de um mosteiro trapista de
Ter Fontane, desceu do bonde e se surpreendeu:
Entrei na Igreja escura, austera e velha; mais gostei. Tive medo de visitar o
mosteiro. Pensei que os monges estivessem muito ocupados, sentados em
seus túmulos e chicoteando-se com azzorragues. Fiquei então andando de cá
para lá na silenciosa tarde ... crescia em mim o pensamento: Quero ser
monge trapista653.
No entanto, tudo era por ele interpretado como um devaneio. Na faculdade todos
estranhavam o seu grande entusiasmo pela vida, um desejo de viver tudo intensamente. Em
um momento suas leituras o fizeram refletir e até mesmo perceber sua infelicidade.654 Passou
a ler os livros de Freud, Jung e Adler em busca de respostas para a causa de sua infelicidade,
que acreditava ser a repressão sexual.
Quando termina o curso deixa a faculdade e vai para a América. Na viagem
quando atravessava o mar, compreendera que tudo que havia acontecido desde sua
adolescência precisava de um ajuste moral. Tudo que tinha conseguido com seus sonhos,
prazeres e deleites estava transformado em cinzas.
Ele decidiu lutar pelas causas sociais. Estava pronta sua nova religião, prática e
fácil. Assim, procurava reparar seu egoísmo com uma espécie de consciência social política.
2 Conversão pelo intelecto
Passado algum tempo fica doente e se sente fraco. O medo lhe abate, e o sinal de
fraqueza e humilhação o faz perceber a morte do grande homem que pretendia ser. “Tinha ido
longe demais para encontrar-me agora neste beco sem saída” 655.
Ele supera este momento sem nada fazer para mudar. Compra um livro sobre
filosofia medieval sem saber que se tratava de um livro católico. O que lhe causa muita raiva:
“Fiquei com vontade de jogá-lo pela janela”. Por mais que pudesse admirar a cultura católica,
sempre houve grande recusa a Igreja católica.
No entanto, foi através das páginas deste livro que TM revolucionou sua
concepção sobre Deus. “Foi um alívio para mim descobrir não só que nenhuma de nossas
653
MERTON, Thomas. A montanha … p 106
Ibid., p. 115
655
Ibid., p. 151
654
365
idéias, muito menos nossas imagens, podiam representar adequadamente Deus, mas também
que não nos seria permitido satisfazer-nos com nenhum conhecimento dele”656.
A partir deste momento teve um respeito pela filosofia e pela fé católica, pois
reconhecia que os cristãos católicos acreditavam em alguém realmente e que a fé não era um
sonho. Passou, então, a sentir vontade de ir à Igreja e agora a procura de ajuda para satisfazer
a necessidade de fé que lhe brotava da alma.
Estudando na faculdade Columbia que tinha como máxima: “Em tua luz veremos a
luz”, Deus teve a oportunidade de mostrar a Merton à luz em sua própria luz. Aqui ele teve
bons amigos, como o professor de literatura Mark Van Doren e Bob Lax, que lhe indicou o
livro Ends and Means, de Aldous Huxley. Neste livro, o autor trata sobre mística como algo
real e muito sério, e que é acessível através da oração, fé, abnegação e amor. Esta leitura
despertou nele um interesse pela mística oriental 657.
Nesta universidade ele conclui seu curso de bacharelado em Arte e resolve fazer
uma especialização em literatura inglesa do séc. XVIII. Sua pesquisa para dissertação era
examinar nos poemas de William Blake os aspectos de sua idéia religiosa. E sem perceber
estava enveredando por um caminho totalmente desconhecido, deixando-se descobrir.
Foi algo especial viver em contato com o gênio e a santidade de William
Blake naquele ano, naquele verão, escrevendo a dissertação... Quando
terminou o verão, eu estava prestes a tomar consciência do fato de que a
única maneira de viver era viver num mundo cheio da presença e realidade
de Deus658.
Entretanto, ainda não chegara o momento de uma conversão vindo das raízes de
sua vontade. TM estava vivendo uma realização em nível intelectual.
3 Um novo solo: “um mundo novo lhe abria”
Neste momento ele não só tinha o conhecimento intelectual sobre Deus, como
também passara a desejá-lo. Precisava, no entanto, reconhecer que o intelecto é independente
do seu anseio. Todas as suas contradições estavam sendo resolvidas no nível do
conhecimento, sem deixar-se envolver por inteiro. “A única resposta ao problema é a graça,
só a graça, a docilidade à graça. Eu ainda estava na precária posição de ser meu próprio guia e
meu próprio interprete da graça. É de admirar que tenha chegado ao porto!” 659.
656
Ibid., p. 160
Cf. MERTON, Thomas. A montanha … p. 168
658
Ibid., p. 173-174
659
Ibid., p. 187
657
366
Diante de toda a luta que travava sua alma, ele responde ao seu impulso e vai pela
primeira vez participar de uma missa. “A primeira vez na vida! Era verdade... Não esquecerei
facilmente o que senti naquele dia”. Passa a ficar curioso sobre a vida dos sacerdotes depois
que conheceu um jesuíta. E ao ler o livro sobre Hopkins, em um capítulo que falava que
queria ser católico, TM foi tomado por um desejo tão forte de ser batizado que saiu a procura
de um padre e disse: “Quero tornar-me católico” 660.
Foi, então, orientado pelo padre Moore por dois meses nos estudos sobre a
doutrina católica. E é desejando que se realize logo seu batismo, que surge o pensamento de
ser sacerdote. E à medida que se aproximava o dia TM ficava mais ansioso.
Quando chegou novembro, minha cabeça só pensava numa coisa: ser
batizado e entrar finalmente para a vida sobrenatural da Igreja... Estava
prestes a desembocar na praia, ao sopé da alta montanha de sete patamares
de um purgatório mais escarpado e árduo que eu poderia imaginar e não
tinha a mínima idéia da subida que me restava fazer661.
Estava consciente de que o batismo o levaria a misericórdia de Deus e de que um
mundo novo lhe abria. O rito culminou com a eucaristia e este momento foi assim descrito
por TM aos 23 anos: “E minha primeira comunhão aproximou-se de mim descendo os
degraus. Eu era o único perto dos degraus. O céu era todo meu – aquele céu que na partilha
não sofre divisão nem diminuição...” 662.
No entanto, após o batismo não consegue viver o que tanto lhe animara e
colocando o desejo de ser padre de lado, segue sua vida. O que estava acontecendo era que se
julgava convertido a partir de seu intelecto. Acreditava em Deus e nos ensinamentos da Igreja
e até se achava um cristão zeloso:
Eu ia à missa não só aos domingos, mas às vezes durante a semana. Nunca
fiquei longe dos sacramentos; eu me confessava e comungava se não toda
semana, pelo menos a cada quinze dias. Lia muitas coisas que podiam ser
chamadas “espirituais”, mas não lia espiritualmente.
Precisava reconhecer que a conversão do intelecto não bastava. Enquanto sua
vontade não fosse totalmente de Deus. O solo que agora pisava depois de seu batismo
requeria dele uma mudança interior e não apenas cumprimento de obrigações católicas. Mas
ele seguia sua vida sem perceber o convite que recebera na pia batismal. “Era estranho que eu
não tenha percebido logo o quanto isso significava e chegado a compreender que era somente
660
Ibid., p. 196
MERTON, Thomas. A montanha … p. 200-201
662
Ibid., p. 204
661
367
para Deus que eu devia viver. Deus devia ser o centro de minha vida e de tudo o que eu fazia”
663
.
4 O desejo de um homem!
E para surpresa do próprio TM, após uma noite de festa com seus amigos e ainda
estando deitado no chão, de forma esquisita e espantosa diz: “Vou ser sacerdote!”
664
. Foi
claro e preciso.
Uma vez vindo de dentro dele esta afirmação era realmente o queria e estava em
suas mãos a possibilidade de tornar realidade. Sem saber o que fazer, foi a uma Igreja e
quando entrou viu exposto no altar Jesus sacramentado, de joelhos e em silêncio assumiu: “E
então, de repente, ficou claro para mim que toda a minha vida estava em crise. Bem mais do que podia
imaginar, entender ou conceber, tudo estava agora dependendo de uma palavra, de uma decisão
minha.” 665
O caminho que lhe abrira no batismo para a terra prometida estava sendo aberto
novamente. E diante da hóstia disse: “Eu quero ser sacerdote; do mais fundo do meu coração
eu o quero. Se for de vossa vontade, fazei de mim um sacerdote, fazei de mim um
sacerdote666”. TM estava inflamado por todo o desejo e reconhecia ter sua vontade selada
entre ele e Deus.
Agora no retorno às aulas procurou o professor Dan Walsh para falar de tudo que
estava em seu coração. Conversaram sobre várias congregações, regras, jejuns e etc. Dan
Walsh lhe falava sobre os trapistas com muito entusiasmo. TM sentiu arrepios, esta era uma
ordem que ele não pensava entrar. E com fervor falou: “Nem pensar! Não era para mim! Não
agüentaria! Estaria morto em uma semana”
667
. A conclusão desta conversa foi que ele iria
procurar os franciscanos.
Ao falar com frei Edmundo fica decidido que sua entrada ao noviciado seria no
mesmo ano. No entanto, não percebe que as suas disposições eram imperfeitas. Ele ainda não
havia se submetido à vontade de Deus, à sua graça. Pois, assim pensava:
Tornar-me franciscano, especialmente neste momento preciso da história
(contexto de guerra), não significava sacrifício algum, ao menos no que me
dizia respeito. Até mesmo a renúncia aos legítimos prazeres da carne não
663
Ibid., p. 211
Ibid., p 229
665
MERTON, Thomas. A montanha … p. 231
666
Ibid., p. 231
667
Ibid., p. 240
664
368
me custavam tanto quanto poderia aparecer.... era antes uma dávida do que
sacrifício668.
Fazendo uma leitura do livro de Jó se sente interpelado por Deus sobre sua
vocação. E sente ameaçada sua segurança como futuro noviço franciscano.
Não que me ocorresse de duvidar do meu desejo de ser franciscano, de
entrar para o convento, de ser frade...Percebi que nenhum dos homens com
quem havia conversado sobre minha vocação...sabiam quem eu realmente
era. Nada sabiam do meu passado669.
Estava a poucas semanas do dia de sua entrada no noviciado, quando resolveu
conversar com o frei e falar sobre sua vida. Contou tudo e este lhe pedira um dia para pensar.
Ele tem seu pedido recusado, por ter pouco tempo de conversão, e vê sua vocação em ruínas.
Diante do sofrimento que lhe abatera, “a única coisa que sabia, além da enorme
aflição em que estava mergulhado, era que não devia mais pensar que tinha vocação para o
claustro” 670. Neste mesmo ano, na semana santa, resolve fazer retiro em um mosteiro trapista.
Sem compreender e deixando-se envolver, sentiu: “Meu coração expandiu-se em alegria
antecipada” 671.
Aceito seu pedido realiza antes de ir para o retiro uma pesquisa sobre os Trapistas
e descobre que são cistercienses672. Tudo que lê move seu coração. “O pensamento desses
mosteiros... daqueles homens com seus capuzes, dos pobres monges, daqueles homens que
voluntariamente se fizeram nada, tudo isso abalou meu coração” 673. Seu coração foi invadido
por um ardente desejo pela vida monástica, mais estava sempre sua razão lembrando-o de que
não tinha vocação. E envolto pelo desejo de ser monge e pelo medo de não ter vocação, parte
para o mosteiro Gethsemani.
Quando chega, um irmão lhe abre a porta. “Eu entrei a porta fechou silenciosa
atrás de mim. Eu estava fora do mundo”
674
. Uma pergunta do monge lhe deixou apavorado:
“Veio para ficar?”. E meio sem jeito respondeu que não. Sua alma ficou mergulhada no
silêncio e na paz que envolvia a casa. “O silêncio era um abraço! Eu acabara de entrar na
668
Ibid., p. 264
Ibid., p. 267-268
670
MERTON, Thomas. A montanha … p. 270
671
Ibid., p.281
672
Vida monástica no seguimento de Cristo segundo as regras de São Bento, fundada em 1908. No séc. XI com a
abertura de um mosteiro em Cister (Borganha, França) passaram a se chamar Cistercienses. A partir do séc. XII,
ocorreu um afastamento dos ideais das origens, e foi iniciada a reforma, o abade Francês Dom Jean Armand,
realiza em sua comunidade de La Trappe, um programa de reforma, enfatizando a separação com o mundo.
Passando em seguida a novas fundações com a forma de vida La Trappe. Constituindo-se juridicamente uma
nova ordem cisterciense da estrita observância (Trapistas). Cf. www.mosteirotrapista.org.br/história.htm
673
MERTON,Thomas. Op. Cit. p. 287
674
Ibid., p. 290
669
369
solidão de fortaleza inexpugnável. E o silêncio que me envolvia também me falava, e falava
mais alto e mais eloqüente do que outra voz qualquer” 675.
Quando termina o retiro e volta a sua rotina, lembra do que havia dito sobre a
possibilidade de ser trapista, e sente agora que fora do mosteiro nada faz mais sentido, “como
gostaria de estar de volta lá agora...” 676. E mais uma vez é atormentado por saber que não tem
vocação. Deixa, então, aos cuidados de Deus seu interesse pelo claustro. Ele havia se
transformado em um grande “vulcão adormecido”.
5 A decisão: “vou entrar para o mosteiro e ser padre!”
Este “vulcão” entra em erupção de forma surpreendente. TM sente um avassalador
desejo, ser trapista. E por existir a preocupação sobre sua vocação, procura o frei Philotheus
para conversar. Para sua maior alegria o que ouve é que não existe nenhuma razão que o
impeça de ser monge 677. O frei pergunta: “Por que fazer-se trapista? TM o fixa nos olhos com
firmeza e diz: “Porque quero dar tudo a Deus!”678.
Escreve, então, ao abade do Gethsemani pedindo permissão para fazer um retiro
no tempo de Natal. Chega o dia da sua viagem e a alegria o acompanha em todo o trajeto.
Quando chega, o irmão lhe abre a porta e pergunta: “Desta vez veio para ficar? E agora,
tomado por uma alegre certeza, responde: sim” 679.
6 O mosteiro: “entre as quatro paredes de minha liberdade”
“Então o irmão Mateus fechou o portão atrás de mim, e eu estava encerrado entre
as quatro paredes de minha liberdade.” 680. TM era agora um aprendiz da alegria. “O mosteiro
é uma escola em que aprendemos a ser felizes”
681
. Era 10 de dezembro de 1941, tempo do
Advento. E como monge sua alma seria a gruta de Belém. Ele era postulante e se preparava
para o noviciado. Adquiri um novo nome: Frei Louis.
675
Ibid., p. 291
Ibid., p. 301
677
Cf. MERTON, Thomas. A montanha … p. 331
678
SOUZA, Maria Emmanuel e Silva. Thomas Merton: um homem feliz. Petrópolis:Vozes, 2003. p. 31-32
679
Cf. MERTON,Thomas. Op. Cit. p. 336
680
Ibid., p. 337
681
Ibid., p 337
676
370
Recebe a visita de seu amigo Bob Lax, e lhe entrega os manuscritos de alguns de
seus poemas. E antes que terminasse o ano fica sabendo que haviam sido publicados682.
Com a publicação destes poemas, TM se sentiu ameaçado por sua identidade de
escritor, tem receio que escrever possa vir a ser um problema. “Meus votos deviam ter-me
despojado dos últimos trapos de alguma identidade especial”
683
. Começa a suspeitar de que
não existe mais nele a vocação para a contemplação.
Mas, na manhã do dia em que professou seus votos solenes, reconheceu que não
lhe importava saber o que era ser contemplativo, o que era sua vocação e nem o que era a
vocação cisterciense, assim, ele escreveu:
Naquela manhã, quando estava estirado com o rosto no chão no meio da
Igreja, com o reverendo Abade rezando sobre minha cabeça, comecei a rir
com boca no pó, porque sem saber como e por que eu havia feito a coisa
certa e mesmo uma coisa surpreendente. Mas o surpreendente não era o
meu trabalho, mas o trabalho que vós realizastes em mim 684.
TM havia, enfim, encontrado seu lugar, aprendera a esperar e a dar tudo a Deus.
Tinha reconhecido que o caminho percorrido por vezes tão longo e doloroso o conduziu, a ele,
artista, diletante delicado, poeta, homem do mundo, para os Tabernáculos da Contemplação,
do silêncio e da Solidão em Deus; e para sua surpresa, para o mundo também.
7 Um monge escritor e poeta para o mundo
Em um dos seus primeiros livros ‘O signo de Jonas’, ele havia escrito que desejava
a total solidão, queria o anonimato. O que acontecia sem saber, era que precisava mais uma
vez se colocar sob a vontade de Deus e deixar-se conduzir por Ele, pois estava entrando em
mais uma nova etapa de sua vida que já havia sido iniciada quando quis ‘dar tudo a Deus’.
A sua vida começou a tomar um novo rumo, logo dois anos depois de sua
ordenação, quando assumiu a formação de noviços, e se dedicou à felicidade destes jovens685.
Foram anos fecundos. Nascia a sua compaixão pelo homem e o desejo de partilhar com o
mundo tudo que recebia de Deus.
Quando deixou a função de mestre de noviços que tanto contribuiu para sua
maturação humana e espiritual deu início a uma nova fase. Obteve a permissão para tratar em
seus livros e em vários artigos os assuntos mais candentes do mundo contemporâneo. E, a
682
Cf. Ibid., p. 368
Ibid., p. 370
684
Ibid., p.379
685
Cf. MERTON, Thomas. A montanha … p. 35
683
371
pedido seu, foi autorizado, antecipando o movimento ecumênico de João XXIII, a manter
durante cinco anos encontros quinzenais com pastores e estudantes protestantes e também
com estudiosos judeus686. Tornando-se
o precursor do ecumenismo e logo depois do
macroecumenismo.
E sempre motivado pelo desejo do silêncio e da solidão, teve em 1965, a licença
para ter uma vida de eremita. Passa a morar perto do mosteiro onde todos os dias celebrava a
missa. Ele estava, enfim, fazendo sua experiência de silêncio e liberdade.
Foi do eremitério, no seu silêncio, que manteve com o mundo uma frutuosa
relação. Sua contemplação e ação são inspiradas no relato bíblico sobre Marta e Maria e no
lema beneditino ‘ora et labora’, onde compartilhava com o mundo os seus frutos.
Foi um formador de opiniões, não só escrevendo mais também quando realizava
conferências. Denunciou como obscena e imoral a fabricação e o uso de armas atômicas e
inspirou os maiores grupos promotores da paz e da justiça. Para ele seria uma blasfêmia falar
sobre Deus e silenciar diante da guerra do Vietnã.
Sua espiritualidade que consistia em subir a montanha de Deus e no descer às
realidades terrestres, colocando em sua vida de oração e silêncio as dores do mundo, era
movido pela relação de cuidado e solidariedade por todo ser humano. Mergulhado nas raízes
do Evangelho libertador de Jesus, na rica tradição que pertencia seu mosteiro e no fruto dos
diálogos com outras religiões.
Por isso, nada o fazia acreditar que estivera fazendo algo errado, “Pelo menos me
sinto bem por ter manifestado o que é decerto a verdadeira posição cristã” 687.
Para ele a relação com Deus acontece a partir da realidade humana. Seu diálogo
com outras religiões e principalmente com as místicas judaica, budista, hinduísta e com o islã,
realizando pontes entre elas, se dava dentre outros motivos por entender que Deus nos fala
através dos acontecimentos no mundo e que os sinais de crise devem ser interpretados pelos
homens de religião. Sua visão somatória, embora se aproximasse das decisões tomadas pelo
Concílio Vaticano II, revela-se, porém, mais profunda que as regras de atualização e reforma
originárias de Roma.
TM acreditava que “as diferenças doutrinárias devem ser conservadas, mas elas
não invalidam uma qualidade muito real de semelhanças existencial” 688. Pois, possibilitam as
semelhanças na esfera da experiência religiosa, em um diálogo que não significa ‘fusão nem
686
SOUZA, Maria Emmanuel e Silva. Op. Cit. p. 36-37
MERTON, Thomas. A montanha … p. 215
688
Id., O diário da Ásia. Belo Horizonte, Vega, 1978. p. 245
687
372
confusão’, mas cooperação, no aprofundamento do próprio compromisso de fé. E a partir
deste diálogo em profundidade com as tradições religiosas Orientais, se confirma nele, ‘uma
oportunidade maravilhosa’ de aprofundamento das potencialidades e virtualidades existentes
nestas tradições689. Possibilitando uma ampliação de seus horizontes.
Por este ecumenismo e macroecumenismo que ele já punha em ação há vários
anos, nas suas relações com pessoas das convicções mais diversas, leva-o a conhecer no
eremitério uma dilatação do sagrado. Procura romper a dicotomia entre o religioso e o
profano, por que entende a mística como a experiência do encontro com o mistério de Deus,
com o mistério do ser humano e com o mistério da criação.
Não se pode negar em TM uma subjetividade aberta, por ver o outro e ser visto
humanamente, falar ao outro e escutá-lo, em ajudar e por último em assumir unicamente que
somos humanos com os outros e junto a eles690.
Ele chegou a ser considerado o São João da Cruz do século XX: um poeta e
contemplativo, um grande místico. Um monge, escritor e poeta que conseguiu traduzir em
linguagem moderna os temas fundamentais da vida monástica e da vida espiritual cristã, como
soube também integrar sua vida com o mundo através de pessoas representativas no âmbito da
arte, letras e da cultura em geral.
Um de seus maiores descontentamentos durante o período no eremitério foi que
por um lado era plenamente consciente do valor da solidão para seu crescimento espiritual,
mas por outro, sentia a necessidade de comunicar-se com as outras pessoas. À medida que
crescia sua experiência de Deus, sentia uma maior responsabilidade pelo bem do outro e de
toda a sociedade. Escrever era a maneira que tinha para poder comunicar. Foi uma verdadeira
missão e vocação que cresceram de sua experiência de Deus.
Em meio a uma vida cheia de desejo em corresponde à vontade de Deus, TM vive
uma forte paixão. A importância deste fato, que o mesmo o tornou significativo em seu diário,
estar em assumir seus próprios sentimentos.
8 Entre uma paixão e o mosteiro
Era março de 1967 quando teve de ser submetido a uma cirurgia. E enquanto
estava em recuperação no hospital, conhece uma enfermeira que tinha sido designada para
689
Ibid., p 267.
Cf. GARCIA RUBIO, A. Unidade na pluralidade: os ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São Paulo:
Paulus, 2001. p 452-454
690
373
cuidar de seus curativos. No seu diário escreveu: “Neste dia me mandaram, como enfermeira
ainda estudante, para cuidar especialmente de mim, mudar as compressas na minha coxa... em
uma semana estávamos apaixonados” 691. Ele amou e permitiu-se ser profundamente amado.
TM pôde experimentar em sua liberdade o sentimento de amor por uma mulher,
arriscou-se amá-la sem medo! Em nenhum momento negou a si mesmo. Estava nesta relação
por inteiro e por isso pôde com mesma liberdade com que amou, dizer a si mesmo, que não
poderia viver sem o eremitério, sem ser fiel ao voto de castidade e a tudo que prometera a
Deus.
Nele percebemos que a mais repressiva ascese não consegue apagar as poderosas
correntes subterrâneas de nosso psiquismo. As paixões não conhecem a linguagem da
repressão, mas da integração.
Ele reconheceu que tudo o que vivia não era apenas desejo seu, mas que a “solidão
é a vontade de Deus pra mim – não é apenas que eu ‘obedeça’ às autoridades e às leis da
Igreja. É mais do que isso. É aqui que estão minhas raízes” 692.
E, em junho de 1966, rompe seu relacionamento voltando ao primeiro amor,
lembrando de seus votos de entrega incondicional a Deus.
Para TM suas escolhas e decisões, bem como sua compreensão sobre as
experiências religiosas, são agora, iluminadas por seu profundo desejo de corresponder à
vontade de Deus, que se refletia na sua constante busca de uma melhor relação com o mundo,
com as pessoas e com Deus.
9 A viagem ao Oriente
Depois deste momento tão significativo para TM, persistia nele mesmo vivendo
em seu eremitério, o desejo do silêncio e da contemplação.
Toda sua angustia o fazia procurar nas leituras sobre a mística Oriental uma nova
maneira de reencontrar seu caminho, porque nela muito o impressionava a busca da
contemplação e a idéia de solidão como parte da clarificação que inclui viver para os outros, a
dissolução do ego ao ‘pertencer a todos’ por considerar como seus os sofrimentos alheios.
Quando leu um livro sobre o budismo que falava da meditação, fez o seguinte
comentário: “Um dos livros mais belos que já li. Dá-me uma visão toda nova (velha) de
minha própria vida...Profundamente comovedor em todos os sentidos. Raras vezes encontrei
691
692
HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op. Cit. p. 351
MERTON, Thomas. A montanha.... p. 348
374
um livro ao qual eu reagisse tão totalmente assim”693. Esta não foi sua primeira leitura sobre o
budismo ou sobre as místicas Orientais. E os reflexos destas estavam em sua busca pela
essência da contemplação e solidão.
O monaquismo Oriental, a sabedoria o Oriente e seu pendor para valorizar o
invisível, o absoluto, cada vez mais o atraíam para um estudo aprofundado que traria para o
cristianismo ocidental novas riquezas por vezes esquecidas ou postas de lado.
TM quis encontrar-se com a solidão e deixar que tudo acontecesse de maneira
silenciosa e invisível. E, em um convite que recebeu para participar de um Congresso
ecumênico, organizado pelos beneditinos em Bangoc, na Tailândia, percebeu que era sua a
chance de estabelecer contatos com monges e dirigentes budistas.
Era também a oportunidade para reencontrar seu caminho, assim, escreveu em seu
diário:
Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha
esperança é simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar proveito,
aprender, mudar... Talvez isso não seja tão importante. A grande coisa é
corresponder perfeitamente à Vontade de Deus nessa ocasião providencial,
seja o que for que ele traga 694.
O percurso de sua viagem foi grande, passou por vários lugares antes de chegar à
Indonésia, e a ela se referiu escrevendo: “Estou indo para casa, a casa onde jamais estive com este
corpo, onde jamais estive com este terno lavável... Que eu não volte sem haver resolvido a grande
questão. Nem sem haver também descoberto a grande compaixão, mahakaruna”
695
. E na Ásia, TM
visita vários países. Na China conversou com Phara Khantipalo (autor de livros sobre o
budismo), sobre meditação e com o abade budista Chão Khun, conversaram sobre os
objetivos do budismo theravada696.
Todas estas conversas possibilitaram uma melhor compreensão das experiências
religiosas vividas nas religiões orientais, de sua disciplina e dedicação.
Teve também encontros com o Dalai Lama, que lhe causou forte impressão, no seu
diário registrou; “é ativo e forte, mais alto do que eu esperava. Um homem sólido, cheio de
energia, generoso e cordial” 697. As conversas foram sobre religião, filosofia e particularmente
sobre meditação e seus métodos.
693
HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op. Cit. p. 380
Ibid., p. 386
695
Ibid., p. 390
696
Theravada ( Pali: thera "anciãos" + vada "palavra, doutrina" ), a "Doutrina dos Anciãos", é o nome da escola
de Budismo que tem suas escrituras no Cânone em Pali ou Tipitaka, que os acadêmicos em geral aceitam como
sendo o registro mais antigo dos ensinamentos do Buda.
697
HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op. Cit. p. 399
694
375
Conversaram também sobre epistemologia e mente. TM lhe falou que “era
importante que os monges no mundo, fossem exemplos vivos da libertação e transformação
da consciência que a meditação pode dar” 698. E o Dalai Lama lhe falou sobre samadhi699, no
sentido de concentração controlada, referindo-se a mente como “aquilo no que alguém se
concentra”, insistindo no “desapego, numa vida não-mundana, como caminho para o perfeito
entendimento e participação nos problemas da vida e da sociedade” 700.
O que seria importante para esta atitude, colaborando com o que TM acreditava ser
necessário para a vida contemplativa, era de que os monges tivessem um tempo pessoal, que
não fosse dominado pelo ego e suas exigências. Para que fosse aberto para o outro, um tempo
compassivo701.
Logo após este encontro, já perto de sua partida, TM teve uma experiência única
quando andava por uma trilha e se deparou com grandes imagens do Buda esculpidas em
pedras:
O silêncio de suas extraordinárias face. Os sorrisos largos. Imensos, porém
sutis... Olhando-as fui bruscamente e quase à força arrancado para ficar
livre do modo habitual de ver as coisas, já em si algo exausto, e uma clareza
interior, uma nitidez que parecia explodir das pedras, tornou-se manifesta e
óbvia.... a grande questão, sobre isso tudo, é que não há enigma, não há
problema, não há ‘mistério’. Todos os problemas já estão resolvidos e tudo
está muito claro, simplesmente porque o que importa está claro. A pedra,
toda a matéria, toda a vida, está imantada de dharmakaya – tudo é vazio e
tudo é compaixão. Não sei quando em minha vida tive um tal senso de
beleza e vitalidade espiritual a fluir juntas numa mesma iluminação
estética....Quero dizer que eu sei e vi aquilo de que andava obscuramente à
procura. O que resta, não sei, mas agora já vi, penetrei pela superfície
adentro e fui além da sombra e do disfarce702
Esta experiência que viveu TM provocou um mergulho em si mesmo. Como ele
mesmo disse: “Somente quando não resta mais nenhum vestígio do eu como ‘lugar’ no qual
Deus age, somente quando Deus age puramente em si mesmo, nós, enfim, recobramos nosso
‘verdadeiro eu’, (que nos termos Zen, é não-eu, não-ser)” 703.
Todo o caminho percorrido, até mesmo antes de sua viagem, as conversas e
escutas de tantas pessoas nestas terras (no oriente), estranhas ao seu corpo, mas tão familiares
ao seu desejo, lhe possibilitaram de uma forma inimaginável este desvelamento.
698
Ibid., p. 402
Significa concentração correta na meditação.
700
HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op.Cit. p. 403
701
Cf. Ibid., p. 403
702
Ibid., p 416-417
703
MERTON, Thomas. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. p 15
699
376
10 O congresso e o fim misterioso de uma “viagem”
Estava próximo o dia da realização do Congresso em que ele iria falar para cristãos
e budistas. Partiu, então, para Tailândia, e em sua conferência intitulada ‘Marxismo e
perspectivas monásticas’, ressaltou “O valor do diálogo e do intercâmbio entre as pessoas de
várias religiões que procuram penetrar o terreno fundamental de suas crenças através de uma
transformação da consciência religiosa”.
Para ele, na experiência religiosa, há uma real ‘semelhança existencial’, em que
possibilita ‘uma comunicação em profundidade’. E afirma que:
O nível mais profundo da comunicação não é a comunicação, mas a
comunhão. Ela está além das palavras, dos discursos e dos conceitos. Aqui,
não estamos descobrindo uma unidade nova e sim antiga. Nós já somos
Um, mas imaginamos não ser. O que temos de reencontrar é nossa unidade
original. O que temos de ser é o que nós somos 704.
Logo, em conseqüência das experiências de tantas outras religiões, se tem não só o
aperfeiçoamento, e a qualificação da vida cristã, mas da própria descoberta de quem somos.
Após esta conferência, TM se recolheu e, em seu quarto, acidentalmente morre
eletrocutado por um ventilador com defeito. Estava com 53 anos.
Existem muitas especulações de que sua morte nada foi acidental. Por causa do
momento de crise em que estava o mundo, era tempo de guerra do Vietnã, esta palestra não
ficaria impune. TM sempre demonstrou ser contrário e havia contribuído para a criação de
vários movimentos contra todo ato violento.
Um jornalista chamado Bob Grip, foi quem mais escreveu a respeito. Ele solicitou
a abertura dos arquivos do FBI e da CIA, e estes revelaram que TM era uma pessoa visada por
órgãos de segurança. Um grupo de católicos ultranacionalistas enviou ao FBI uma carta
sugerindo que os passos de TM fossem vigiados, por se tratar de uma pessoa perigosa e ter
sido comunista na juventude. Estes foram os seus grandes inimigos, chegaram a queimar
publicamente suas obras, chamando-o de ateu e antipatriota, por se opor a guerra do Vietnã705.
O fato é que TM em meio a tropeções e quedas percorreu seu caminho. Deixou
marcas de uma personalidade forte e terna por onde passou. E, em fim, conhece agora quem
tanto amou e ouve com clareza sua voz. Seu amor proclamado quando escreveu rezando,
anunciava mais uma vez seu desejo de abandono, de entrega total e da certeza que tinha de ser
amado:
704
705
BASSET, Jean-Claude. Le Dialogue Interreligieux, histoire et avenir, Paris, Ed. du Cerf, 1996, p. 122
Cf. www.ihu.unisinos.com.br
377
Pai, eu te amo, a ti que não conheço, e te abraço sem ver-te, abandono-me a
ti a quem ofendi porque me amas em teu unigênito. Vês ele em mim,
abraças a ele em mim porque ele quis identificar-se completamente comigo
por aquele amor que o levou à morte, por mim, na cruz 706.
Conclusão
Thomas Merton foi um homem que desfrutou de uma vida intelectual brilhante,
desde sua juventude, quando percorria um caminho de desilusão e conflitos, até que no
encontro consigo mesmo em Deus, assumiu-se como um escritor apaixonado. Em seu diário
anotou que escrever “é pensar e viver – e até rezar”, “escrever é amar”. E desta forma, além
de suas conferências manteve-se em contato com o mundo, consigo mesmo e com Deus.
Concluímos diante de tudo o que nos foi apresentado nesta pesquisa que sua
trajetória, sua espiritualidade e mística profundamente enraizadas no Evangelho em uma
radical solidariedade com os pobres, excluídos e marginalizados do mundo, é um convite a
uma experiência sadia com Deus, deixando a sedução do que aliena pela sedução do
Absoluto. Que se traduz em uma abertura ao outro, ao diferente; em um diálogo interreligioso frutuoso e enriquecedor.
Referências
BASSET, Jean-Claude. Le Dialogue Interreligieux, histoire et avenir, Paris, Ed. du Cerf, 1996.
GARCIA RUBIO, A. Unidade na pluralidade: os ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São
Paulo: Paulus, 2001.
HART, Patrick, e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Rio de
Janeiro: FISUS, 2001.
MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares. Petrópolis: Vozes. 2005.
________, Reflexiones sobre Oriente. Barcelona: Ediciones Oniro, 1997.
________, Na liberdade da solidão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
________, Homem algum é uma ilha. Campinas, SP: Verus Editora, 2003.
________, Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
SOUZA, Maria E. e Silva. Thomas Merton: um homem feliz. Petrópolis: Vozes, 2003.
706
MERTON, Thomas. Na liberdade da solidão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 58
378
NO PRINCÍPIO ERA A FEITIÇARIA:
A Feitiçaria Transformou-se Tecnologia e Habita entre Nós
Francisca Niédja Barros Teixeira707
RESUMO: Este artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre a medicina natural e a
Imposição de Mãos para cura. Apresento uma breve exposição dos feiticeiros da era moderna; o
magnetismo, o misticismo e as fórmulas miraculosas cedendo lugar à tecnologia. O avanço da ciência
um olhar sobre essa energia que circunda o universo e nos atinge a todos, independentemente de
crença ou credo. Fatos que transformaram inocentes em vítimas levando-os à fogueira, hoje atuais na
medicina alternativa. As transformações das feitiçarias do passado presente na tecnologia do futuro.
ABSTRACT: This article has as objective to contribute for a reflection about the natural medicine
and the Imposition of Hands for cure. I present a brief exposition of the wizards of the modern age, the
magnetism, the misticismo and the miraculous formulas yielding place to the technology. The advance
of science, look at on this energy that surrounds the universe and them reaches to all, independent of
belief or creed. Facts that transformed innocents in victims, taking them it the bonfire, present today
and sufficiently current in the alternative medicine, the transformations of witchcraft of the past and
present in the technology of the future.
Introdução
Muito se tem falado sobre o toque terapêutico. A literatura é vasta, há um
histórico universal do uso das mãos em rituais de cura em qualquer cultura ou civilização em
que nos debrucemos. Neste artigo, analiso a aplicação da energia vital na cura, o que há muito
é do conhecimento dos curadores e místicos, vem interessando ultimamente a pesquisadores
de diversas áreas. Nossa religiosidade sempre incluiu aspectos místicos difundidos na cultura
em geral, no misticismo, esotérico e na psicologia. Com o desenvolvimento das ciências, os
antigos xamãs, curandeiros, adivinhos e outros foram cedendo lugar aos profissionais da
saúde e à tecnologia.
1 A imposição das mãos e o toque terapêutico
O século XVII é um marco na difusão da medicina magnética. Em 1779, Franz
Anton Mesmer médico alemão, publica a obra Magnetismo Animal em que expõe a tese da
existência de um fluido que interpenetrava tudo e que dava às pessoas propriedades análogas
àquelas do ímã. Tratou vários tipos de doenças e teve resultados maravilhosos para a época. A
Imposição de Mãos no Novo Testamento fundamentavam-se nos escritos do Antigo
Testamento, era usado na consagração de pessoas para o ministério (governar,
707
Mestranda em Ciências da Religião – UNICAP.
379
profetizar).Segundo as práticas judaicas, a Igreja realizava nas sinagogas,cultos e reuniões de
oração em que o jejum era comum (Atos 13: 1-3). O capítulo 13 de Atos dos Apóstolos,
especificamente o verso 3. "Então, jejuando e orando, e impondo as mãos sobre eles (Paulo e
Barnabé), os despediram" essa cerimônia era praticada pela Igreja Primitiva, não apenas para
cumprir uma tradição eclesiástica, mas servia para autenticar a obra do Espírito Santo na Igreja.
Durante a década de 80, o cientista Dr. John Zimmerman, na Faculdade de
Medicina da Universidade do Colorado EUA, realizou uma série de experimentos sobre o
toque. Em estudos utilizando SQUID708 foi detectada emanação magnética das mãos do curador
durante o processo de cura, demonstrando elevações na intensidade dos campos magnéticos
emitidos, sugerindo propriedades magnéticas. A Drª Dolores Krieger, doutora em Filosofia,
prof. de Enfermagem na Universidade de Nova Iorque “...tive oportunidade de observar o
desempenho do Coronel Stabany (um conhecido curador Húngaro, reformado do exército, com
fama de ter capacidades magnéticas curativas) durante várias semanas de cada verão, numa
clínica (provisória) de cura. Ela ficou impressionada com a quantidade de pessoas, cuja saúde
melhorava, inclusive casos dados como perdidos pela medicina.”(Coddingyon,cap.13). Assim
sendo, ela decidiu investigar.Utilizou um grupo de vários doentes, que recebeu o tratamento
direto, por imposição das mãos. A Dr.ª Krieger mediu os níveis de hemoglobina, antes e depois
do passe magnético (imposição das mãos) efetuado pelo Coronel Stabany, e “Constatou a
ocorrência de aumento significativo nos níveis de hemoglobina dos pacientes do grupo que
recebeu o passe.” (Gerber, cap. VIII)
Pesquisas científicas no campo da Parapsicologia mostraram que existem leis
naturais que regem a prática da cura pela Imposição das Mãos, estão estritamente relacionadas
com o poder da mente. Em muitos países, inclusive entre os mais desenvolvidos, essa prática é
diretamente associada a práticas médicas realizadas em hospitais e centros de saúde.
À luz dos acontecimentos naturais, a Imposição de Mãos é explicada não só com a
influência psíquica como também ao fenômeno paranormal, principalmente nos que dizem
respeito aos de cura. A força do pensamento e sua ação sobre a matéria tornaram-se
comprovadas trazendo de culturas antigas aos tempos modernos, práticas utilizadas pelos Reis
Taumaturgos, em que qualquer pessoa pode “exercitar-se” para receber o dom de manipular a
“energia inteligente”, deixando de ser um privilégio dos sacerdotes, reis ou iluminados, ficando
à parte o lado sobrenatural ou miraculoso que as religiões intencionalmente tentam mostrar, os
fenômenos psíquicos sempre está presente onde existem as curas.
708
Superconducting Quantum Interference Device -Dispositivos supercondutores de interferência quântica,ultrasensíveis, para medir magnetismo.
380
A ciência tendo por base várias pesquisas admite que o exercício na utilização
dessa energia independe da fé de quem as recebe. O fenômeno que significa na religião algo
misterioso, na física é toda manifestação que acontece no tempo e no espaço, onde não
existem acasos, o conceito de energia pode ser intuitivo, não se pode tocar com as mãos,
porém, podemos sentir suas atuações.
Pessoas com a saúde debilitada, ao receber o toque terapêutico da energia em
forma de doação, tem uma melhora bastante significativa. “A Universidade do Hospital
Memorial de Massachusetts se tornou um centro especializado para crianças prematuras,
quando Brendan e Sara que pesaram 4 libras709, e 2 libras 7 onças710 respectivamente ao
nasceram, ficaram um mês em uma unidade de cuidado intensivo neonatal de Boston (NICU),
a equipe do centro médico, decidiu colocar os bebês juntos na mesma incubadora, a
recuperação foi imediata.
Anos depois Brielle e Kyrie nasceram prematuramente aos 6 meses em um
hospital em Worcester, Massachusetts.Brielle pesava 2 libras e com sérios problemas;os
níveis de oxigênio no sangue estavam baixos, dificuldade respiratória e mau funcionamento
do coração.Kyrie com 2 libras 3 onças, foi considerada a mais forte das duas. A enfermeira
decidiu repetir a experiência do Hospital Memorial de Massachusetts, o resultado foi
considerado um milagre. Os bebês abraçaram-se. Brielle acalmava a respiração, o ritmo
cardíaco voltava ao normal e os níveis de oxigênio no sangue melhoraram, simplesmente o
toque de Kyrie pareceu fortalecer Brielle. Fotos de Kyrie com seu braço em torno de Brielle
tornaram as irmãs famosas pelo abraço salvar”711
709
1 libra equivale aproximadamente a 453,6g
1 onça equivale aproximadamente a 28,35g
711
University of Massachusetts Memorial Hospital and immortalized by Co-bedding can be wonderfully
beneficial for premature infant twins, particularly for sick babies.When Patty Dilbarian saw her fragile, week-old
twins cuddling together in an isolette for the first time, she wept. "It was awesome," said the Boston area mother.
Her fraternal twins Brendan and Sara—who weighed 4 pounds, and 2 pounds 7 ounces respectively when they
were born at 31 weeks—were relatively healthy. Sure, they spent the first month of their lives in a Boston neonatal
intensive care unit (NICU). Brendan had been on a ventilator for a brief period. But at no time after they were
born, Dilbarian said, did she ever believe their lives were in serious danger. So when the staff at the Beth Israel
Deaconess Medical Center in Boston asked her permission to put the two babies in the same incubator, Dilbarian
said she hadn't given the idea much thought. While the benefits of "co-benefits of "co-bedding" premature twins
have been touted as a growing national trend, particularly for sick babies, when Dilbarian's kids were born in the
spring of 1998 not everyone was doing it, especially for preemies like Brendan and Sara who were doing well in
the NICU. That's something 19-year NICU Nurse Gayle Kasparian is hoping to change. Five years ago, Kasparian
unwittingly became involved in a case that melted hearts nationwide when she suggested putting two premature
twin girls in the same incubator. Brielle and Kyrie Jackson were born 12 weeks early at a hospital in Worcester,
Massachusetts. Brielle weighed 2 pounds and was struggling with a battery of problems ranging from breathing
issues and troubling blood-oxygen levels, to heart rate difficulties. Her sister, 2 pounds 3 ounces, was considered
the stronger of the two. When they were a little less than a month old, Brielle had a very difficult day, according
to Kasparian. "She was frantic," the nurse recalled, saying that neither she nor the baby's parents could calm
Brielle down as her condition worsened and she became increasingly stressed. "To me, all I can tell you is that
710
381
Trabalho semelhante vem sendo realizado em vários Hospitais no Brasil. O Método Mãe
Canguru foi idealizado em 1978 na Colômbia, pelos doutores Rey e Martinez, no Brasil, os
primeiros programas aplicando esta nova tecnologia foram o Hospital Guilherme Álvaro em
Santos (1992), e depois no Instituto Materno-Infantil de Pernambuco - IMIP (1994) no
Recife. Em 1997, o modelo de assistência Mãe - Canguru do IMIP foi reconhecido pela
Fundação Getúlio Vargas na premiação "Gestão Pública e Cidadania", tendo uma repercussão
nacional. A partir de então, alguns hospitais brasileiros começaram a realizar a Posição
Canguru, isto é, a colocação do recém-nascido em contato pele a pele sobre o peito da mãe.712
2 A tecnologia substituindo o toque das mãos nos processos de cura
Por volta de 1774, quando se tornou moda o uso de ímãs como terapêutica para as
doenças do corpo, Dr. Mesmer aplicava diretamente sobre regiões enfermas, magnetizava
vários objetos, procurou um meio de acumular a energia magnética, construiu então o
"baquet"713, ou cuba da saúde, que viria a ser conhecido como a tina das convulsões. Era um
this baby was trying to tell me something. I just wasn't getting it." So Kasparian thought she'd try a technique
she'd heard only a little about: co-bedding premature twins. After the mother gave permission, Kasparian put the
two babies together in one incubator, hoping it would do some good. The Rescuing Hug The Benefits of CoBedding Infant Twins"Oh, it was instant, it was so instantaneous that day, I thought my equipment was
malfunctioning," Kasparian said. ". . . What happened to that baby, it was miraculous. Nothing else worked."
Instantly, Brielle calmed down. The two frail babies nestled together. Brielle's breathing regulated to Kyrie's
pace. Her blood oxygen levels improved. Her heart rate improved. Simply experiencing Kyrie's touch seemed to
make Brielle stronger, Kasparian said. "The difference is day and night," their mother Heidi Jackson told the
Worcester Telegram & Gazette at the time. "She's just less stressed. She likes being with her sister. She's much
more comfortable now." When word got out about the two twins sharing the same incubator and the Telegram &
Gazette ran a photo of Kyrie with her arm around Brielle, Kasparian and the Jackson family were besieged with
calls. And when the picture—dubbed the "Rescuing Hug" photo—ran in both Life and Reader's Digest, the twins
became famous and interest in co-bedding spiked. The photo of the twins, now five, has recently resurfaced on
the Internet and in widely circulated e-mails messages, particularly in circles of mothers of twins. (The parents of
the Jackson twins, who overrun with requests for interviews, have declined to respond to interview requests.)
Now the technique Kasparian started at the the "Rescuing Hug,"
712
Em 5 de julho foi publicada a Portaria 693/GM que estabeleceu a Norma de Orientação para a Implantação do
Método Canguru, tornando o Método Mãe Canguru uma política pública.(Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro,
22(3):597-607, mar, 2006)
713
Foi Maria Antonieta, principalmente, quem se tornou uma grande divulgadora da energia mesmérica.
Encontrava-se, nessa época, em França, o admirável militar estadunidense, General Lafayette; ele havia viajado
à Europa para comprar armas e, diante da revolução operada por Mesmer através do "baquet" ou tina das
convulsões - uma grande tina de carvalho, na qual eram colocadas água e peças de metais imantados e em torno
dela vários pequenos bancos e nela próprios diversos orifícios por onde saíam hastes metálicas, que estavam
introduzidas no ímã e nos demais elementos dentro da tina, que as pessoas seguravam com o objetivo de
provocar choques convulsivos ( daí o "baquet" ter passado à posteridade com o nome de tina das convulsões) onde as pessoas, por esta ou aquela razão, entrando num estado alterado de consciência asseveravam estar
melhorando dos problemas psicossomáticos, de que eram objeto e porque Maria Antonieta, que era portadora de
uma grande enxaqueca, asseverasse haver-se curado ao sentar na tina das convulsões, ele manda essa experiência
para a América, através de uma carta memorável, a fim de que chegasse ao novo Mundo o último fenômeno que
visitava Paris. Depois da Revolução Francesa, o "baquet" entrou em relativa decadência. Mais tarde, por volta de
1825, as experiências mesméricas ganharam um admirável colaborador, o marquês de Puységur, que se tornou
382
grande tanque de água em que "duas garrafas cheias de água magnetizada correm
convergentes para uma barra provida de pontas condutoras móveis, das quais os pacientes
podem aplicar algumas nas regiões doentes”(ZWEIG, 1956. p.37).
Um outro meio de cura que está revolucionando a área terapêutica, é o uso da
nanotecnologia no tratamento ortomoleular com Tecnologia Quântica. Carlos Belohlavek,
nascido na Europa e naturalizado argentino, se diz criador dessa tecnologia. Detentor da
patente do “Túnel Fotônico” o método terapêutico é executado há 34 anos, batizado de
HAD714, um pequeno aparelho eletrônico, portátil, blindado em bronze, e de forma cilíndrica,
por meio de emissão de ondas de baixa freqüência, atua diretamente nos campos associados
aos átomos715equilibrando cargas elétricas.Regulando a função Bioquímica, age controlando
as propriedades atômicas da matéria, fortalecendo e corrigindo falhas no funcionamento
biológico de forma gradual, reduzindo inclusive a entropia. Sr.Belohlavek, utiliza técnica
semelhante à utilizada por Mesmer em 1775 nas experiências com garrafas e ímãs. Entretanto,
uma resolução oficial da ANMAT716 em nota oficial intimou o Sr. Carlos Belohlavek,
proibindo a fabricação e a comercialização em todo o país sob a alegação de falta de estudos
prévios, segurança e eficácia do mencionado dispositivo.717
um admirável magnetizador. Em 1828, chega a Paris o jovem professor Hippolyte Léon Denizard Rivail e,
diante da moda que tomava conta dos gabinetes de pesquisas, ele também adotou o comportamento de
magnetizador. (...) Então, esse magnetismo, mais tarde, a partir de 1856, foi aplicado na terapia de pacientes de
vária ordem. À medida que a doutrina espírita se popularizou, aquela aplicação de energias magnéticas passou a
ter o contributo também fluídico, graças à interferência dos Espíritos. Fonte: Trechos do Projeto Manuel P. de
Miranda, Terapia pelos passes , Salvador, BA: LEAL, 1996, p.85 - 7.
714
Hole Absorption Device
715
Quantum Dots
716
ANMAT (Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica) Poder do Executivo
Nacional, Ministério da Saúde da Argentina.
717
“Disposición nº 5030/2000 (18 de agosto de 2000) Las actuaciones se iniciaron como consecuencia de la toma
de conocimiento, por parte de la ANMAT, de un folleto publicitario no autorizado. En dicho anuncio se destaca
la supuesta eficacia terapéutica de un "Sistema Túnel Fotónico", utilizado por el "Complejo Túnel Fotónico Clínica Médica", en el tratamiento de distintas afecciones y patologías. Por ese motivo, agentes de la Dirección
de Tecnología Médica de la ANMAT realizaron un procedimiento en la clínica en cuestión, ubicada en la calle
La Pampa 2753, piso 1º, de la Capital Federal. Durante la inspección, realizada el 9 de junio de 1998,
compareció el Sr. Carlos Belohlavek, quien presentó el original de la autorización para usar y comercializar el
"Sistema Túnel Fotónico". La aprobación fue otorgada por el ex Ministerio de Salud y Acción Social, con la
aclaración de que la misma no avalaba los resultados clínicos que se anunciaban.
Por ese motivo, los funcionarios indicaron al Sr. Belohlavek que debería presentar ante la ANMAT los ensayos
clínicos pertinentes, en los términos de la Disposición nº 969/97, para demostrar la seguridad y eficacia del
dispositivo. Asimismo, se aclaró que no se podría realizar ninguna publicidad radial, gráfica ni televisiva sobre el
"Sistema" em cuestión. En diciembre de 1998, el Sr. Belohlavek adjuntó nueve libros anillados con las
actuaciones de la 1ª a la 8ª Jornadas Latinoamericanas del "Sistema Túnel Fotónico" y un libro que contenía
información técnica bajo el título "Protocolo de Investigación Clínica". El 2 de marzo del 2000, la Dirección de
Tecnología Médica solicitó al titular del "Sistema" la documentación faltante para la evaluación del trámite,
pedido que se reiteró quince días después. Luego de una prórroga pedidas por el Sr. Belohlavek, el pasado 12 de
abril se le concedió un último plazo de 10 días para que aportara el material correspondiente. Una vez
transcurrido ese período, se evaluaría de acuerdo a la documentación presentada en los actuados.
Cumplido el plazo, y evaluadas las constancias aportadas, se concluyó que no se han realizado ensayos
383
Este equipamento vem sendo comercializado e utilizado como forma terapêutica
de cura em larga escala aqui no Brasil, em várias cidades como São Paulo-SP, Curitiba-PR,
Fortaleza-CE, Belém-PA e Recife-PE. Depoimentos de pessoas que se utilizaram dessa
técnica afirmaram terem conseguido excelentes resultados; diabetes, pressão arterial, artrose e
osteoporose, ”...já numa cadeira de rodas para se locomover. Em 15 dias que passamos
naquela Clínica, ela voltou andando sem auxílio sequer de uma bengala, naturalmente para
uma cura completa precisaria de muito mais aplicações e tempo. Voltamos lá várias vezes e
indicamos este tratamento a muitas pessoas, até que no final do ano de 1994, compramos o 1º
aparelho e montamos uma clínica aqui no Recife onde já existem várias funcionando. Hoje,
apesar de sua idade 67 anos minha esposa, não sofre de nenhuma doença degenerativa, apesar
de ter seqüela de um problema de paralisia infantil na idade de 2 anos.” (Avellar, Engº Civil Terapeuta Ortomolecular).
A Rede Globo no programa Fantástico relaciona o stress, pressão alta entre outras
doenças com a síndrome da escassez magnética. A terapia biomagnética a base de ímãs, está
atraindo esportistas e fisioterapeutas americanos, vários times estão utilizando imãs para
auxiliar na cicatrização de cirurgias. No golf sênior profissional, 8 entre 10 jogadores usam
imãs para aliviar as dores nos ombros. No ano passado a indústria de ímãs medicinais
movimentou 1 bilhão e meio de dólares no mundo inteiro, estão disponíveis no mercado;
braceletes,máscaras,colchão magnético etc... Cientistas e adeptos concordam que elas formam
um pequeno campo elétrico que altera o fluxo sanguíneo na área machucada diminuindo a dor
e o inchaço acelerando o processo de cura. O argumento sobre o efeito placebo ou
psicológico, cai por terra a partir do momento em que está sendo utilizado na Medicina
Veterinária; um cavalo curado não seria por auto-sugestão.
A medicina vem utilizando o magnetismo para salvar vidas, Hospitais
Americanos estão testando o que poderá ser no futuro a solução para doenças neurológicas,
uma nova cirurgia de cérebro utilizando ímãs para operar vasos sanguíneo sem abrir o crânio.
A técnica foi desenvolvida por médicos de um hospital em Chicago e consiste em um cateter
especial muito fino e flexível com um ímã na ponta inserido por meio de uma pequena incisão
preclínicos ni otro tipo de estudios previos a la utilización del "Sistema Túnel Fotónico", en pacientes afectados
por las diversas patologías publicitadas. Además, el "Protocolo de Investigación Clínica" presentado no se ajusta
mínimamente a los requisitos exigidos en los procedimientos establecidos en la normativa vigente. Por todo lo
expuesto, se prohibió la fabricación, uso y comercialización en todo el país del dispositivo mencionado, en todos
sus modelos y versiones, hasta tanto se presenten evidencias ciertas de eficacia y seguridad mediante la
realización de ensayos clínicos controlados. Además, se intimó al titular del "Sistema" el inmediato cese de la
publicidad.
384
na virilha, segue por uma artéria até os vasos sanguíneos do cérebro, com ajuda de
computadores e raios X, o cirurgião produz um campo magnético em volta da cabeça,
permitindo que o cateter com o ímã alcance os vasos minúsculos com precisão. A cirurgia
magnética vai auxiliar no tratamento de uma série de doenças de forma menos agressiva para
o paciente submetido à neurocirurgia magnética.
Conclusão
A tecnologia nos dias atuais assumiu a postura de verdadeiros curandeiros
travestidos de nomes variados que assim pede a modernidade. Entretanto, com toda eficácia
que diz possuir não conseguiu acabar com as benzedeiras, com os passes nas casas espíritas
nem os rituais dos sacramentos. Em suas várias denominações, o fluido vital tem as mesmas
propriedades; cura, interpenetra tudo, emana do corpo humano e tem sido especialmente
detectada nas pontas dos dedos e olhos, é passível de ser conduzida por metais e fios de seda,
de ser armazenada, pode ser controlada pela mente, e usada tanto para o bem ou para o
mal.Do ponto de vista einsteiniano, o ideal seria curar as doenças atuando nos campos sutis
injetando energia no corpo, mantendo o seu equilíbrio em lugar de manipular as células com
uso de drogas, os avanços farmacocinéticos deixaram de lado a oportunidade de
reexaminarmos a medicina hipocrática vis medicatrix naturaee, (o poder de cura da natureza),
e o princípio básico de Samuel Hahnemann (1755-1843) de que o “ semelhante cura o
semelhante”.
Todos os tratamentos têm a finalidade de melhorar a saúde do homem, sob todos
os seus aspectos.A Ciência do futuro sempre necessitará de rever os trabalhos executados em
nosso milênio e nos anteriores. A energia cósmica atua nos seres independentemente de onde
estejam; o universo inteiro parece uma teia de energia onde não há fenômeno sem causa;
diante dos avanços tecnológicos qual será o futuro das religiões?
Referências
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1996. 240 p.
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BÁRBARA, Ann Brennan. Mãos de Luz.São Paulo: Ed. Pensamento,1993.348 p.
385
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Acesso em 10 de julho de 2007.
386
A PROVIDÊNCIA DE DIVINA NÃO ANULA A RESPONSABILIDADE HUMANA718
Francisco da Silva Cardoso719
Prof. Dr. Degislando Nóbrega de Lima720
RESUMO: Deus atua providencialmente no mundo, exercendo o seu governo, mas, ao mesmo tempo,
o homem é livre, portanto, moralmente responsável pelos atos. Esta é a problemática abordada nesta
pesquisa. Será apresentado, então, o ensino sobre esta questão que tem inquietado a muitos cristãos.
Nesta conexão, discutiremos questões tais como: será que cada minúcia da história humana e de nossa
experiência tem um propósito ou constitui parte dos objetivos de Deus? De que maneira seríamos nós
responsáveis pelas nossas ações? Como podem se coadunar a Soberana Providência de Deus e o
exercício da liberdade humana? A partir destes problemas gerais vêm outros, os quais tentaremos
solucionar a partir de uma perspectiva bíblico-reformada (calvinista), como a encontramos delineada
na Confissão de Fé de Westminster. Assim, queremos mostrar que, mais do que o acaso e a
necessidade radicais, o que realmente dá conta da realidade na qual estamos inseridos como seres
humanos é a crença segundo a qual Deus é soberano e cada indivíduo moralmente responsável pelos
seus atos. Palavras-chave: Deus, providência, responsabilidade e homem.
ABSTRACT: God governs the world and executes the works of His providence, but at the same time,
man is free, therefore, man is held morally responsible for his acts. That’s the issue approached in this
article. So this Bible doctrine which has troubled many Christians throughout history will be laid out
as it is discussed issues such as: is it convincing that each detail in human life and in our experiences is
part of God’s purposes? In which manner shall we be held responsible for our actions? How can we
reconcile God’s sovereign providence and human freedom? As we deal with these general problems
there will come up others which we will try to tackle, so to speak from a Reformed perspective as we
find it delineated in the Westminster Standards. So we will try to show that much more than chance
and radical necessity, a better explanation on the reality we find ourselves in is to believe that God is
sovereign and each individual is morally responsible for his acts. Key-words: God, responsibility,
providence and man.
Introdução
Neste artigo, nós vamos tratar a respeito de uma questão que tem inquietado a
muitos cristãos. Diz respeito à Providência de Deus e à liberdade humana. Nesta conexão,
discutiremos questões tais como: será que cada minúcia da história humana e de nossa
experiência tem um propósito ou constitui parte dos objetivos de Deus? De que maneira
seríamos nós responsáveis pelas nossas ações? Como podem se coadunar a soberania de Deus
e o exercício da liberdade humana? Tentaremos mostrar como a Teologia Reformada procura
solucionar estes problemas.
718
O presente artigo é o resumo de uma monografia apresenta, sob o mesmo tema, para a conclusão do curso de
bacharel em teologia pela UNICAP.
719
Bacharel em Teologia pela UNICAP. Endereço residencial: Rua Prof. Ângela Pinto, 97. Apto 901-A. RecifePE. Endereço eletrônico: [email protected]
720
Professor no curso de teologia da UNICAP.
387
Os que aceitam a solução arminiana721 ou determinista, expulsam de suas
cogitações quaisquer sombras da doutrina dos decretos de Deus, atribuindo, destarte, toda
responsabilidade aos homens. Em contrapartida, uma forma exacerbada de determinismo
atribui tudo a Deus. Qual destas compreensões nós devemos aceitar? Qual destas é a mais
sólida, biblicamente falando?
A solução para este problema traz uma compreensão mais adequada no que tange
aos rumos que a humanidade segue e a sua importância será sentida na própria teologia
sistemática em termos de se perceber melhor a correlação da Providência de Deus com outras
doutrinas tais como a Presciência, a Soberania, a Onisciência e os Decretos Divinos, bem
como um entendimento sobre até que ponto se estende o Livre-arbítrio humano.
No primeiro capítulo, trataremos de analisar a Providência em suas várias
dimensões; no segundo, veremos a relação entre a Providência e alguns temas teológicos
pertinentes a ela; por último, nos deteremos no estudo da Providência como esta se apresenta
na prática. Faremos isso sempre com a intenção de mostrar que a Providência de Deus não
anula a responsabilidade humana.
1 A Providência de Deus – uma análise
1.1 Providência de Deus – conceituação
A Providência de Deus é, por definição, a suprema sabedoria com que Deus
conduz todas as coisas ou, dito de outra forma, é o constante exercício do cuidado pelo qual o
Criador preserva todas as coisas para determinado fim. Na verdade, como João Calvino
afirma, a providência é um corolário lógico da criação, que, por isso, não se disjungem.722
Definir a Providência de Deus desta maneira sugere a existência de três elementos, a saber: a
concorrência, a preservação e o governo.
Entende-se a concorrência como sendo a cooperação do poder divino com todos os
poderes sujeitos, em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir,
e agir precisamente como agem. Alguns têm a tendência de restringir a operação da
concorrência no que concerne ao homem, às ações humanas moralmente boas e, portanto,
recomendáveis; outros, mais logicamente, estendem-na às ações de toda a sorte.
721
O termo refere-se à teologia desenvolvida por Jacob Arminius (séc XVII), o qual se opôs ao calvinismo,
defendendo a capacidade humana em termos de salvação.
722
João Calvino. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Casa Editora Presbiteriana. 2ª edição. 1985. pg.
213.
388
A preservação nunca se volta contra a criação. O que Deus estabeleceu na criação,
Ele não viola na Providência. Usualmente se define a preservação como sendo a obra contínua
de Deus pela qual Ele mantém as coisas que criou, juntamente com as propriedades e poderes
de que as dotou.
Define-se o governo de Deus dizendo que se trata da contínua atividade de Deus
pela qual Ele rege todas as coisas teleologicamente com vistas a garantir a realização de seus
decretos. A concorrência e a preservação distinguem-se do governo porque este não é apenas
parte da Providência, como os dois primeiros, mas é toda ela, agora considerada sob o prisma
do fim para o qual Deus guia todas as coisas da criação, que é a glória do seu nome.
O termo “Providência” vem do latim e, etimologicamente, significa “previsão”,
não simplesmente no sentido de ver antecipadamente, mas no sentido de cuidar do futuro ou,
ainda, em um sentido que aponta para a ordenação de todas as coisas e eventos seguindo um
plano predeterminado e inteligente.723 Não há equivalente hebraico para a “Providência” e a
palavra grega que poderia ser traduzida assim, “pronoia”,724 é empregada apenas para a
previsão humana, sendo isto patente em Atos 24:2 e em Romanos 13:14.
O teólogo reformado Louis Berkhof nos diz que “em Tomás de Aquino a doutrina
da providência de Deus segue em geral a de Agostinho, e sustenta que a vontade de Deus,
como determinada pelas Suas Perfeições, preserva e governa todas as coisas; ao passo que
Duns Scotus e nominalistas como Biel e Occam declaravam que tudo depende da vontade
arbitrária de Deus. Isso foi uma virtual introdução do governo do acaso”.725 A posição
assumida neste artigo é aquela esposada por Agostinho e Tomás de Aquino
1.2 Discussão atual
Muitas pessoas hodiernamente não dedicam muita importância a esta tão instigante
doutrina que é a Providência de Deus.
É provável que isto aconteça porque a Providência de Deus não é uma doutrina de
muito destaque e muitos não se sentem atraídos por ela. Alguns tendem mesmo a minimizar a
relevância da Providência de Deus; outros, por sua vez, exageram-na.
Segundo o deísmo (que é uma compreensão exagerada da transcendência de
Deus), o mundo é apenas uma máquina que Deus acionou e deixou entregue ao sabor do
723
William S. Plumer. Jehovah-Jireh ou A Treatise on Providence. Splinkle Publications. 1997. p. 13.
Louis Berkhof. Teologia Sistemática. Ed. Luz Para o Caminho. 2ª edição. 1992. p. 164.
725
Louis Berkhof. Teologia Sistemática. Ed. Luz Para o Caminho. 2ª edição. 1992. p. 165.
724
389
acaso. Esta idéia deísta da Providência, típica do pelagianismo726, foi defendida por vários
teólogos católicos romanos, pelo socianismo727 e foi apenas um dos erros básicos do
arminianismo.
O panteísmo (que é, por seu turno, uma compreensão exagerada da doutrina da
imanência de Deus), em sua concepção da Providência, não reconhece a distinção que há
entre Deus e o mundo. Os panteístas encontram-se numa bifurcação em que se faz absorver de
maneira ideal o mundo em Deus, ou de modo material, Deus no mundo.
Não há lugar para a Criação nem para a Providência de Deus em ambos os casos.
O fato é que os panteístas falam de Providência, mas a Providência como eles a entendem é
simplesmente semelhante ao curso da natureza, e esta não é nada menos que a auto-revelação
de Deus, uma auto-revelação que não deixa lugar para a independente operação de causas
secundárias. A partir desta concepção, o sobrenatural é impossível, ou melhor, o natural e o
sobrenatural são idênticos, a consciência de livre autodeterminação do homem é uma ilusão, a
responsabilidade é uma fantasia da imaginação, a oração e o serviço religioso são
superstições. Durante o século XIX, o panteísmo se entrincheirou em meio à teologia liberal
com a roupagem da doutrina da imanência, embora a teologia tenha se resguardado muito de
seus perigos.
1.3 A que áreas se estende a Providência de Deus?
Agostinho afirmava que “tudo estava sujeito à vontade de Deus”728. A Providência
de Deus, segundo o Bispo de Hipona, conduz a história da humanidade de Adão até o final
dos tempos, à semelhança da história de um homem que, passo a passo, caminha da infância
até a velhice. Nesta conexão, Loraine Boettner, teólogo reformado do século XX, afirma que
no que diz respeito à providência de Deus, “nós devemos entender que Ele está intimamente
atento a cada detalhe das fainas humanas e do curso da natureza.”729
726
O pelagianismo foi um sistema criado por Pelágio, monge britânico do séc. V, e que negava a doutrina do
pecado original. Como resultado disso, rejeitava as doutrinas da graça e da soberania de Deus na salvação.
Agostinho, bispo de Hipona, foi seu grande adversário nesta disputa (Extraído do Dictionary of Theological
Terms, de Alan Cairns. Ambassador Emerald International. Belfast/Greenville. 2002, pg 324).
727
Socianismo é uma referência a Faustus Socinus (1539-1604), teólogo italiano, o qual, além de negar a
doutrina da Trindade, negou também a doutrina da predestinação e do governo soberano de Deus (Extraído do
Dictionary of Theological Terms, de Alan Cairns. Ambassador Emerald International. Belfast/Greenville. 2002,
pgs 420-421).
728
Louis Berkhof. Teologia Sistemática. Ed. Luz Para o Caminho. 2ª edição. 1992. Pág. 165.
729
Loraine Boettner. The Reformed Doctrine of Predestination. The Presbyterian and Reformed Publishing
Company. 1969. pg. 35.
390
É bastante evidente que a Escritura ensina a Providência de Deus sobre eventos
contingentes: I Sm. 23:10-13; Is. 42:9. Ademais, a Providência de Deus não nos deixa em
dúvida quanto à liberdade do homem.
1.4 A complexidade da Providência de Deus
Será que a Providência de Deus é aplicável a todos os homens indistintamente?
Em consonância com a doutrina da graça, a providência de Deus pode ser estudada em termos
de Providência comum e Providência especial. Aquela mais preocupada com os aspectos
gerais e esta, em particular, voltada para a concorrência dos fatos relativos às vidas dos
cristãos devotos a Deus. A resposta é sim, mas nem todos recebem o mesmo cuidado da
Providência de Deus.
A providência de Deus é bem mais complexa do que Jó demonstrou imaginar no
capítulo 38, versículos 22-30. Segue-se o texto aludido: “Acaso entraste nos depósitos da
neve, e viste os tesouros da saraiva, que eu retenho até ao tempo da angústia, até ao dia da
peleja e da guerra? Onde está o caminho para onde se difunde a luz e se espalha o vento
oriental sobre a terra? Quem abriu regos para o aguaceiro, ou caminho para os relâmpagos dos
trovões; para que se faça chover sobre a terra, onde não há ninguém, e no ermo em que não há
gente; para dessedentar a terra deserta e assolada, para fazer crescer os renovos da erva?
Acaso a chuva tem pai? Ou quem gera as gotas do orvalho? De que ventre procede o gelo? E
quem dá a luz à geada do céu? As águas ficam duras como a pedra, e a superfície das
profundezas se torna compacta”.730
E ainda, a Bíblia é categórica em mostrar o governo providencial de Deus sobre o
universo em geral (Dn 5:35). Sobre o mundo físico (Jó 37:5); sobre a criação inferior (Sl
104:21); sobre os negócios das nações (Jó 12:23); sobre o nascimento do homem e sua sorte
na vida (I Sm. 16:1); sobre as vitórias e fracassos que sobrevêm às vidas dos homens (Sl.
75:6,7); sobre coisas aparentemente acidentais ou insignificantes (Pv. 16:33); na proteção (Sl.
4:8); quanto ao suprimento das necessidades do povo de Deus (Gn. 22:8); nas respostas à
oração (I Sm. 1:19); e mesmo no castigo dos ímpios (Sl. 7:12,13).
730
Todas as citações feitas nesta monografia são extraídas da Bíblia na versão “Edição Revista e Atualizada”, da
Sociedade Bíblica do Brasil, a menos que indicado o contrário.
391
2 Providência de Deus e temas teológicos afins
2.1 A Providência de Deus e os seus mandamentos
Em relação aos homens, juntamente com a Providência de Deus vêm certos
mandamentos a serem cumpridos.
No versículo 2, do capítulo 16 do Livro de Êxodo, quando o povo que saiu do
Egito sob a direção de Moisés, estando no deserto, começou a murmurar, percebemos as
circunstâncias da Providência de Deus combinadas para provar a fé e a obediência de Israel.
Os versículos 4, 20 e 26 do mesmo capítulo dão a entender que, com a Providência
de Deus, que de modo especial abarca os cristãos, encontram-se mandamentos a serem
observados. Estes mandamentos têm o objetivo, no caso dos cristãos devotos, de verificar até
que ponto estes têm apreendido o fato da solicitude divina em beneficiá-los visando a sua
própria glória.
No versículo 4, Deus diz que providenciava e dispunha os acontecimentos que
envolviam a vida de seu povo para provar a confiança de Israel n’Ele. Segue-se o versículo
aludido: “Então disse o Senhor a Moisés: Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá,
e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei
ou não”.
2.2 A Providência e a graça de Deus
A graça comum é um desmembramento da Providência de Deus. A teologia
reformada, calvinista, não entende que a graça comum faça parte da soteriologia. Porém, ela
reconhece a relação do Espírito Santo na esfera da criação e Suas operações na esfera da
redenção, de modo que não convém que as separemos.
Por definição, graça é a perfeição de Deus em virtude da qual Ele mostra
imerecido favor ao homem. Agostinho concorda com esta definição ao dizer que: “Esses e
outros testemunhos divinos demonstram a concessão da graça de Deus não em atenção aos
nossos merecimentos. Às vezes verifica-se a concessão não somente faltando merecimentos,
392
mas existindo desmerecimentos prévios.”731 Na Confissão de Fé de Westminster, as operações
ordinárias do Espírito Santo, em distinção das suas operações naturais ou usuais contrastamse com as que são invulgares e sobrenaturais.
A graça especial tem sua extensão determinada pelo decreto da eleição. Limita-se,
pois, a graça especial aos eleitos, em contrapartida, a graça comum é dada indistintamente a
todos os homens.
A graça comum relaciona-se com a Providência de Deus em termos de que as
operações gerais do Espírito Santo pelas quais Ele, sem renovar o coração, exerce tal
influência sobre o homem através da Sua revelação geral ou especial732. Assim, o pecado
sofre limitação, a ordem é mantida na vida social e a justiça civil é promovida. Sendo ainda
pela graça comum que Deus beneficia a todos os homens indistintamente com chuva, sol,
água, alimento, etc.
Por sua Providência, Deus refreia a perversidade da natureza humana, impedindo-a
de entrar em ação, mas sem torná-la interiormente pura. O processo de degradação, em todas
as suas modalidades, em que jaz a humanidade, é como que arrefecido; o mal continua a
existir, mas numa escala menor do que se não houvesse a graça comum.
A relação entre a providência e a graça de Deus é percebida em que aquela se
desenrola na base da graça de Deus, em seus dois aspectos, comum e especial. O que Deus
faz e dispõe acontece pela Sua graça, a qual está espalhada por todos os lugares onde haja
vida.
2.3 A Providência e a Onisciência de Deus
No Salmo 139, temos a descrição da onisciência de Deus. O Salmista afirma que
Deus sabe todas as coisas pertinentes à sua pessoa, desde quando estava no útero de sua mãe,
até seus pensamentos, antes mesmo de serem formulados.
Há quem afirme que a onisciência, interpretada no sentido de presciência, não se
compatibiliza com o livre-arbítrio humano. No entanto, Anselmo diz que “o que Deus
conhece de antemão, Ele que prevê que uma coisa será feita só pela vontade, é que a vontade
731
Santo Agostinho. A Graça (II). Série Patrística. Paulus. 1999. p 37.
Na Teologia Reformada ou calvinista, revelação geral é a revelação que Deus fez de si mesmo na natureza, ao
passo que revelação especial é a revelação que Deus faz de si mesmo na Bíblia.
732
393
não é nem forçada nem impedida por nada nem ninguém, e que o que ela realiza o faz
livremente. Se se compreende bem isto, penso que nenhuma contradição impede a
coexistência da presciência divina e o livre-arbítrio733.
Aquilo que Deus sabe a respeito dos atos de alguém está condicionado àquilo que
a pessoa faz. Neste sentido relacional, pois, uma pessoa tem o poder de agir de tal maneira
que o passado é como ele se apresenta, ou seja, Deus, de fato, crê em algo que diz respeito ao
presente.
Por conseguinte, não existe contradição entre o livre-arbítrio humano e a
presciência divina. Em relação à Providência, o que vimos demonstra, outrossim, que o
governo de Deus não anula a responsabilidade que cada indivíduo tem por seus atos, embora,
por outro lado, inclusive o livre-arbítrio do homem esteja sujeito à Providência de Deus.
2.4 A Providência e a Soberania de Deus
A teologia reformada dá ênfase à soberania de Deus, em virtude da qual Ele
determinou soberanamente, desde toda a eternidade, tudo quanto há de suceder, e executa a
sua soberana vontade em Sua criação toda, natural e espiritual, de conformidade com o Seu
plano predeterminado.
O apóstolo Paulo refere-se ao “propósito daquele que faz todas as coisas conforme
o Conselho da Sua vontade” (Ef. 1:11). O Breve Catecismo de Westminster oferece esta
definição clássica: “Os decretos de Deus são o Seu eterno propósito segundo o Conselho da
Sua vontade, pelo qual, para Sua glória, Ele predestinou tudo que acontece”734. Dentro desta
concepção está a suprema sabedoria com que Deus conduz todas as coisas.
Até que ponto a liberdade do homem coloca limitações ao controle soberano de
Deus sobre os acontecimentos? Ao procurar a resposta nas várias correntes teológicas, o
pesquisador perceberá que os cristãos se dividem em dois grupos, a saber: a) os defensores da
soberania específica: aqueles cristãos que acreditam que o livre-arbítrio humano não impõe
limites à soberania de Deus. Em outras palavras, eles crêem que a liberdade do homem de
maneira nenhuma limita a capacidade de Deus quanto à realização daquilo que Ele quer que
aconteça; b) os adeptos da soberania geral: contrariamente a estas opiniões, outros cristãos
733
Santo Anselmo. Livre-Arbítrio e Predestinação. Uma Conciliação entre a Presciência e a Graça Divina. Fonte
Editorial. 2006. Págs. 21, 22.
734
Breve Catecismo de Westminster. Editora Cultura Cristã. Pergunta 7.
394
negam que Deus exerça uma soberania específica. Estes acreditam que o livre-arbítrio do
homem realmente limita o controle de Deus sobre os acontecimentos terrenos.
3 A Providência de Deus na prática
3.1 O destino se aplica aos cristãos?
É importante lembrar que Deus não cessou de reger os destinos do mundo em que
sua causa triunfará (Sl. 9:4). Nessa perspectiva, pode-se aplicar esta verdade a cada pessoa. A
crença na sorte só subsiste porque, previamente, já se acredita em destino, ou seja, os valores
de sorte e azar não teriam razão de ser sem a compreensão de que há um encadeamento de
fatos determinados por leis necessárias ou fatais.
Basílio, o Grande, assevera, conforme Calvino o cita, “que sorte e acaso são
termos dos pagãos de cujo significado não devem se ocupar as mentes dos piedosos”735.
Afinal de contas, se todo bom êxito é benção de Deus, “toda calamidade e adversidade é
maldição Sua”, já nenhum lugar se deixa à sorte ou acaso nas decisões humanas. Ele diz
ainda: “Ele se preocupa carinhosamente com a vida e com a necessidade de cada criatura, não
importa quão pequena ou insignificante elas possam parecer para nós”736.
Entre os reformadores, Calvino parece ter sido o que mais enfatizou a providência
de Deus. Até porque, segundo Timothy George em sua obra intitulada “Teologia dos
Reformadores”, “Calvino era perseguido pelo espectro do curso aparentemente fortuito e sem
sentido da existência.”737 De acordo com Calvino, expressões como “talvez”, “quem sabe”,
“quiçá”, devem se referir à Providência de Deus. Afirmava Calvino, ainda, ter se arrependido
de afirmar “o que vulgarmente se designa sorte é também governado de ordenação oculta e as
coisas que chamamos ‘acaso’ não é mais do que o que a razão desconhece”. Isto porque
alguns têm o costume tendencioso de dizer: “Isto quis a sorte”, em vez de dizer: “Isto quis
Deus”.
O destino como tal não tem nenhuma aplicabilidade aos que crêem em Deus, visto
os mínimos detalhes de sua vida obedecerem a Deus, embora a mentalidade secular dos
735
João Calvino. Institutas da Religião Cristã. Livro I. Casa Editora Presbiteriana. 2ª edição. São Paulo. p. 223.
Extraído de “Deus Único Reverenciado na Santíssima Trindade”.
Autor: Bispo Alexander
(Mileant)Tradução:
Boris
Petrovich
Poluhoff.
Disponível
no
seguinte
endereço:
http://www.fatheralexander.org/booklets/portuguese/god_p.htm. Consulta realizada em 02/11/2006.
737
Timothy George. Teologia dos Reformadores. Edições Vida Nova. 1994. p. 203.
736
395
nossos dias ache isso absurdo. Não parecia absurdo para Jesus Cristo, Paulo, Agostinho,
Santo Anselmo, Calvino ou para os reformados que se seguiram a ele.
3.2 A Providência de Deus e as circunstâncias
“Eu sou eu a minha circunstância”, disse o pensador espanhol Ortega y Gasset. De
fato, o ser humano está envolto em um intricado cipoal de vicissitudes e de contingências de
várias ordens. Cada indivíduo é um caso e, em sendo considerado, na perspectiva da
providência de Deus, ele não é um acaso. Por exemplo, mal podia a filha de Faraó
compreender que a amarga tristeza de ficar sem filho, era o meio pelo qual Deus lhe estava
preparando o coração para sentir compaixão justamente na hora propícia. Assim, Deus pode
fazer que os mais desprezados sejam servidos pelos grandes da terra (Is. 49:33; Êx. 2:6).
O estudo das profecias da Bíblia capacita-nos a perceber como Deus dirige a
história, como realiza seus planos, como se aproveita das ações dos homens, sem constrangêlos a agir. Sendo Criador, tanto dos homens como das circunstâncias, Ele é capaz de decretar
ou preordenar as ações básicas ou definitivas dos homens.
Um caso significativo de profecia cumprida é o cativeiro de Israel sob os assírios e
o cativeiro de Judá sob os babilônios. Os reis da Assíria e da Babilônia foram usados por
Deus para castigar o seu povo, embora esses reis não soubessem que cumpriam os desígnios
de Deus, anunciados antes pelos profetas, conforme o livro do profeta Isaías 39:5-7, a saber:
“Então disse Isaías a Ezequias: Ouve a palavra do Senhor dos Exércitos: Eis que virão dias
em que tudo quanto houver em tua casa, com o que entesouraram teus pais até ao dia de hoje,
será levado para Babilônia; não ficará cousa alguma, disso o Senhor. Dos teus próprios filhos,
que tu gerares, tomarão, para que sejam eunucos do rei de Babilônia”.
Na história de José percebemos também como Deus moldou as circunstâncias.
Deus profetizou o que havia de acontecer através dos sonhos que Ele deu a José. Ao final,
aconteceu tudo que Deus havia predito ou, dito de outra forma, tudo aconteceu em
conformidade com o seu plano ou decreto. Jacó claramente tinha preferência por José, porque
era o primeiro filho de sua amada Raquel; o ódio dos irmãos, que resultava desse favoritismo
de Jacó; a ida de José, certo dia, ao encontro deles; a decisão deles de matá-lo; a interferência
de Rubem; a chegada dos ismaelistas, precisamente quando Rubem estava ausente, não
podendo intervir; a proposta de Judá quanto a vendê-lo; a compra de José por Potifar, oficial
de Faraó; os desejos impuros da mulher de Potifar, do que resultou ser José lançado à prisão
396
real; o padeiro-chefe e o copeiro-chefe de Faraó, que foram também presos; os sonhos que
estes tiveram e a interpretação exata que José lhes deu; os subseqüentes sonhos de Faraó e a
interpretação de José; Deus, que interferiu sobrenatural e providencialmente, favorecendo
José perante várias pessoas; sete anos de fartura e os outros sete anos de fome; enfim, todos
esses fatos, alguns naturais e outros sobrenaturais, decorreram do plano de Deus, anunciado a
Abraão muito antes que Abraão tivesse um filho: “Sabe, com certeza, que a posteridade será
peregrina em terra alheia, será reduzida à escravidão e será afligida por quatrocentos anos.
Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes
riquezas” (Gn. 15:13,14).
Infelizmente, por ignorância, há aqueles que vêem nisso um certo fatalismo. Ora,
os adeptos dessa compreensão da providência de Deus negam, terminantemente, o fatalismo.
No fatalismo, todas as coisas são predeterminadas por forças irracionais e cegas e, portanto,
não vale a pena qualquer esforço humano para mudar o que quer que seja. Não é assim,
contudo, na providência de Deus, como já temos visto aqui. E, ademais, “Calvino distinguia a
sua visão da providência de dois equívocos populares, o do fatalismo, por um lado, e o do
(que se tornou conhecido mais tarde como) deísmo.”738
3.3 Planejar algo é contra a Providência de Deus?
Freqüentemente, Deus trabalha mediante as leis naturais que Ele mesmo
estabeleceu para Sua criação. Às vezes, Ele age de modos que se superpõem às leis naturais.
Todavia, se Deus consistentemente estivesse interrompendo as leis naturais, o mundo logo se
tornaria um caos, no qual a ação moral humana seria impossível.
Deus é soberano em autoridade e poder, Ele decidiu, por Si mesmo, limitar Seu
poder e nos criar dotados de livre-arbítrio, para que pudéssemos fazer nossos planos. É
preciso que haja um mundo em que sejamos livres, para que haja ações morais e atendimento
relevante aos apelos de amor da parte de Deus.
738
Timothy George. Teologia dos Reformadores. Edições Vida Nova. 1994. p. 205.
397
3.4 O determinismo e as ações dos homens
De que maneira nós somos moralmente responsáveis pelas nossas ações? Se Deus
planejou e determinou o que faremos, não seria isso contrário à liberdade humana? Questões
como estas têm inquietado a muitos durante séculos, tanto a teólogos e filósofos quanto a
pessoas mais simples. Poucos cristãos negariam que, de algum modo, Deus é soberano e reina
sobre todas as coisas, mas, da mesma forma, poucos negariam o exercício da volição humana.
As perguntas feitas neste parágrafo constituem grandes dificuldades para os crentes
biblicamente ortodoxos, mais aferrados às Escrituras. A questão agora é saber: como estes
dois conceitos poderiam se coadunar? Ou seria este um problema fora do alcance da
compreensão humana? Será que deveríamos, quiçá, crer simplesmente na Bíblia, quando nos
afirma que Deus é soberano absoluto, e que nós somos livres, embora não sejamos capazes de
explicar como as duas doutrinas constituem verdades?
Esta noção de liberdade, ou livre-arbítrio, pode facilmente ser aplicada ao
relacionamento existente entre a soberania de Deus e a liberdade humana. Deus pode decretar
todas as coisas e, ao mesmo tempo, nós estaremos agindo livremente, de acordo com o
sentido compatibilista de liberdade. Deus pode garantir que seus objetivos sejam atingidos
livremente, mesmo quando alguém não deseja praticar um ato, visto que o decreto inclui não
apenas os fins escolhidos por Deus, mas também os meios para a consecução desses fins. Tais
meios abrangem todas e quaisquer circunstâncias e fatores necessários para convencer a
pessoa (sem constrangimento) de que a ação que Deus decretou é a ação que essa pessoa
deseja praticar. E assim, propiciadas as condições suficientes, a pessoa praticará a ação.
O escopo geral da Escritura revela que Deus decretou os atos livres dos homens,
mas também os que os promovem ou levam a efeito não são menos livres e, portanto, são
responsáveis por seus atos, conforme Gn. 50:19,20; At. 2:23; 4:27,28. Foi determinado que os
judeus levassem a efeito a crucificação de Jesus: contudo, eles decidiram livremente o que
queriam fazer e foram responsáveis pelo que fizeram.
Conclusão
Percebemos, ao longo deste artigo, que Deus age soberanamente em todas as
instâncias. Em Sua soberania, Deus decretou eventos que deveriam acontecer na história. A
Providência é a maneira como Deus administra os seus decretos. Considerando a Providência
398
de Deus em relação à liberdade humana, vimos que são perfeitamente conciliáveis,
guardando-se, vale salientar, as devidas proporções. A vontade de Deus, como definida pelas
Suas perfeições, preserva e governa todas as coisas. Quando o homem peca, ele o faz de
maneira livre, porque ele não perdeu suas faculdades características, as quais o tornam um
agente moral responsável. As Escrituras nos mostram que a Providência de Deus abrange,
inclusive, os eventos contingentes. Ficou claro também que a Providência em suas várias
dimensões de análise é uma doutrina complexa.
Ademais, podemos dizer agora, respaldados na pesquisa que fizemos não somente
a partir da Bíblia, mas também passando por expoentes da Patrística, da Escolástica, da
Reforma Protestante, do Puritanismo e mesmo por alguns teólogos contemporâneos, que a
Providência de Deus não anula as ações livres dos homens. Quando alguém chega a esta
conclusão, não murmura contra Deus por causa das adversidades do passado nem lança contra
Ele a culpa por suas iniqüidades. A Providência de Deus e a liberdade do homem são
realidades que se coadunam. O homem não é livre no sentido material, isto é, ele não pode
por si mesmo, racionalmente e em harmonia com a constituição moral original de sua
natureza, ir em direção ao Salvador. Deus decretou os atos livres dos homens, e as Escrituras
mostram, como já vimos, que estes são livres para efetuá-los, os homens são responsáveis
pelos atos e, portanto, a Providência de Deus não anula a responsabilidade humana. Ao invés
de se considerarem robôs, os cristãos podem tirar desta doutrina um grande motivo para
regozijo e podem conduzir as suas vidas sabendo que jamais estarão desamparados.
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400
CORTEJO DA FÉ:
Águas dos Rios Sanhauá e Paraíba Recebem a Virgem da Conceição739
Francisco de Assis Azevedo dos Santos740
RESUMO: Os trajetos das procissões de Nossa Senhora da Conceição são realizados pelas alamedas
das cidades. Contrapondo, a comunidade do Porto do Capim, em João Pessoa (PB), vem realizando a
mencionada louvação nas águas dos rios Paraíba e Sanhauá. Assim, emergiu a necessidade de
investigarmos as origens dessa procissão marítima. Para tanto, participaram da pesquisa 5 sujeitos. O
compromisso religioso e o tempo de permanência na comunidade foram os critérios de inclusão desses
sujeitos. A pesquisa foi realizada em dezembro de 2006. O sentimento de fé apresentado na fala desses
fiéis teve como conseqüências milagres alcançados que os levaram a desenvolver rituais de
agradecimento ao divino. Percebemos que através da fé, milagres, agradecimentos e penitências
começam a se formarem e logo se tornam manifestações populares. Palavras-chaves: Procissão, Fé,
Milagres.
ABSTRACT: The routes of the processions of Our Lady Conceição (Mary) are carried through by the
avenues of the cities. Opposing, the community of the Porto do Capim, in João Pessoa city, Paraiba
state (PB), comes carrying the mentioned praise in waters of the rivers Paraíba and Sanhauá. Thus, it
has emerged the necessity to investigate the origins of this maritime procession. For in such a way, 5
citizens have participated of the research. The religious commitment and the permanence period in the
community have been the criteria of inclusion of these citizens. The research was carried through in
December of 2006. The feeling of faith presented in discourses of these citizens have had as
consequences reached miracles that had taken them to develop rituals of gratefulness to the Holy
Ghost. We perceive that through the faith, miracles, gratefulness and penances to religious matrix
manifestations have then started to form and soon popular manifestations become. Key-Words:
Procession, Faith, Miracles.
A aproximação do tema se dá de forma singular, pois o autor do presente artigo
vem investigando, através de documentos eclesiais e de relatos de pessoas que vivenciam a fé
católica, as origens das procissões realizadas na cidade de João Pessoa, Paraíba.
Identificamos que tradicionalmente os trajetos das procissões em homenagem a
Nossa Senhora da Conceição e os demais santos de devoção são realizados pelas ruas das
cidades. Contrapondo com o tradicionalismo, a comunidade do Porto do Capim, vem
realizando a procissão de Nossa Senhora da Conceição nas águas dos rios Paraíba e Sanhauá.
É válido ressaltar que a comunidade mencionada está localizada, a margem do Rio
Sanhauá, no Centro Histórico da cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba, área
onde iniciou os primeiros passos para o surgimento dessa cidade. Esse cenário teve uma
efervescência econômica na década de 20, através das atividades portuárias. Passado os anos,
739
Texto apresentado na disciplina Seminário Avançado em Sociologia II do Programa de Pós-graduação em
Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, a qual cursei como aluno especial, contemplando o tema:
cultura, memória, identidade e diversidade.
740
Mestre em Serviço Social da UFPB. Aluno do curso de graduação em Teologia da UNICAP. E-mail:
[email protected]
401
com a decadência dessas atividades, a área do Porto do Capim foi gradativamente abandonada
pelos comerciantes, pelas indústrias e pelas famílias de classe média e alta.
Hoje as famílias que habitam a margem do Rio Sanhauá, vivem em situação de
pobreza e de miséria, tendo como fonte econômica ás atividades pesqueiras. O rio Sanhauá
oferece o sustento a essas famílias, através da pesca do caranguejo, ostra, marisco, peixes, siri
e entre outros frutos. Sabiamente, a comunidade em estudo iniciou a 17 anos a procissão
marítima de Nossa Senhora da Conceição nas águas dos rios Santauá e Paraíba. Nessas águas
que oferecem frutos, crenças são depositados verdadeiros rituais de fé e agradecimento.
Segundo Bosi (1999, p.11):
O tempo da cultura popular é cíclico. Assim é vivido em áreas rurais mais
antigas, em pequenas cidades marginais e em algumas zonas pobres, mais
socialmente estáveis, de cidades maiores. O seu fundamento é o retorno de
situações e atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor.
Ele ainda diz:
Nas manifestações rituais das classes pobres há uma conaturalidade entre os
eventos e os seus participantes. Uma festa popular identifica-se com os
festeiros e os convidados: está neles, está entre eles. O mesmo ocorre com
um desafio, uma cantoria, uma procissão, uma congada, um bumba-meu-boi,
uma reza pelas almas (1999, p. 11)
Dessa maneira, emergiu a necessidade de investigarmos as origens dessa
procissão marítima, procurando enfocar o trajeto e a devoção.
Os primeiros passam que adotamos para coletar os dados para o presente estudo
foi investigar os documentos do arquivo eclesiástico da Arquidiocese da Paraíba e o livro
tombo da Catedral Basílica Nossa Senhora das Neves, local onde esta comunidade estava
inserida pastoralmente até o dia 11 de janeiro de 2004. Atualmente, a referida comunidade
pertence à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, situada no bairro do Varadouro. Os
documentos pesquisados são relevantes para o estudo por serem considerados pela Igreja
Católica fontes oficiais onde podemos verificar com exatidão dados históricos da Igreja.
Entretanto, com essa investigação, detectamos que não á nenhum registro documental que
relate a procissão marítima de Nossa Senhora da Conceição realizada nas águas dos rios
Paraíba e Sanhauá.
Assim, sentimos a necessidade de partir para uma pesquisa de campo, utilizando a
história oral como método investigativo, que possa validar oficialmente a procissão em
estudo. Para tanto, participaram da pesquisa 5 pessoas responsáveis pela referida procissão.
402
Essas pessoas, além de serem devotos, participam de diversas atividades pastorais da Igreja e
estão inseridos nos grupos dos moradores mais antigos da comunidade. Portanto, o
comprometimento com atividades religiosas e, com a realização dessa procissão e o tempo
que está inserido na comunidade foram os critérios que utilizamos para incluir esses sujeitos
na pesquisa. A pesquisa foi realizada no mês dezembro de 2006, logo após a realização da
referida procissão, que é realizada no dia 8 de dezembro de cada ano. Esse dia é marcado pela
data oficial de devoção a Nossa Senhora da Conceição.
1 Os caminhos da devoção
Centenas de pessoas devotas a Nossa Senhora da Conceição, acompanham
tradicionalmente no dia 08 de dezembro, a procissão marítima que sai da Igreja São Frei
Pedro Gonçalves, no Centro Histórico de João Pessoa, até o trapiche do Porto do Capim, no
Varadouro. Com louvor esses devotos carregam com muita fé o andor da sa
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