MORRO DO QUEROSENE: ASPECTOS DA PESQUISA EDUCACIONAL
PRODUZIDA EM MINAS NOS ANOS 50/60
Maria do Carmo Xavier/UFMG
Partindo do suposto que entre os anos de 1955 e 19651 existia em Minas Gerais uma
situação favorável ao desenvolvimento de uma produção sociológica interessada no
esclarecimento dos problemas sociais e educacionais, a intenção desse texto é apresentar
alguns elementos dessa produção e contribuir para o debate sobre as relações entre educação e
ciências sociais, no período em tela. Como estratégia de abordagem da questão optou-se pela
apresentação do estudo monográfico “Morro do Querosene: alguns aspectos da formação de
uma favela”. Trata-se de um survey dirigido por Hiroshi Watanabe e Welber Braga,
sociólogos encarregados da Seção de Pesquisa Sociais do Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de Minas Gerais (CRPE-MG), sobre as condições de vida dos moradores
daquela favela nos anos de 1958 e 1959. O levantamento foi conduzido pelo Departamento de
Bairros Populares (DBP) da Prefeitura de Belo Horizonte e publicado em 1960, através do
Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia da antiga Universidade de Minas Gerais.
Pretende-se, através do relato dessa experiência, destacar o percurso e os percalços vividos
pelos pesquisadores na elaboração do trabalho e discutir o tratamento dado à pesquisa social
em Minas Gerais, numa época de afirmação das ciências sociais como campo de pesquisa e de
demanda desse saber como instrumento de planejamento social, por parte do Estado.2
Mas, antes de apresentar a pesquisa, farei alguns comentários sobre o projeto do Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) do qual fazia parte o CRPE-MG. O intuito é o
de oferecer elementos que permitam uma compreensão da relação estabelecida entre educação
e ciências sociais no Brasil e o investimento do CBPE no seu potencial de revelação da
complexidade da realidade nacional e de encaminhamento dos problemas educacionais do
país. Para tanto, utilizo como referência os estudos de Marcos Cezar Freitas (2001) Mariza
1
Esse período corresponde ao da existência do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais
(CRPE-MG) um dos cincos centros regionais que compunham o Projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais (CBPE) (os outros se localizavam em Recife, Salvador, Porto Alegre e São Paulo).
2
Vale lembrar que a afirmação das ciências sociais como campo de pesquisa acadêmico só irá ocorrer a partir da
década de 70, com a implantação dos Programas de Pós-graduação nas Universidades.
Corrêa (1988), Libânea Xavier (1999) e Graziella Silva (2002). Na seqüência, apresento a
referida pesquisa e busco problematizar as perspectivas institucionais que demarcaram a sua
produção e as interfaces que se estabeleceram em Belo Horizonte entre a Seção de Pesquisa
Social do CRPE-MG, o Departamento de Habitação e Bairros Populares (DBP) da Prefeitura
de Belo Horizonte, e do curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade
de Minas Gerais, na produção da pesquisa social.
Ciências Sociais, Planejamento e Desenvolvimento: o papel do Centro Brasileiro e dos
Centros Regionais.
Para entender o lugar ocupado pelo Projeto CBPE e seus Centros Regionais adjuntos é preciso
ter em mente que no período em que se convencionou denominar como nacionaldesenvolvimentismo (1945-1964) a preocupação com a educação foi deslocada do lugar de
centralidade que ocupou durante os onze anos do ministério Capanema para alocar-se em
estruturas paralelas criadas, especialmente na política desenvolvimentista do governo JK, para
responder pelo planejamento de áreas específicas do desenvolvimento do país3. A criação do
CBPE - órgão encarregado de estudar e planejar políticas públicas na área educacional - davase em função da lógica administrativa do governo e do ideário organizado por uma geração de
intelectuais, educadores e homens públicos que, entre 1920 e 1930, promoveu um amplo
debate sobre a necessidade de tratamento científico das questões educacionais e o seu
planejamento como chave para o desenvolvimento da nação. Naqueles anos ocorre uma
primeira aproximação entre ciências sociais e educação que se manifestou, principalmente, na
luta pela profissionalização do magistério e na aplicação de princípios científicos ao
planejamento e a prática escolar. A partir de então se consolidou no país o campo de estudos
superiores em Educação e Ciências Sociais, expresso na criação da Escola Livre de Sociologia
e Política da USP, da Universidade do Distrito Federal (UDF), da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL/USP). Essa primeira aproximação entre sociologia e educação,
oriunda do pensamento dos pioneiros, terá na obra de Fernando Azevedo seu maior
representante, mas não encontrará espaço de atuação na política educacional do Estado Novo.
3
E cabe destacar que esse movimento caracteriza uma das facetas da ideologia desenvolvimentista. A
descentralização do foco de decisão, através do deslocamento do debate da área política para a área econômica
fazia com que a perspectiva da racionalidade e do pragmatismo no tratamento das questões nacionais,
sobrepujasse o campo da ação política. Cardoso (1977)
A base autoritária do projeto educacional estadonovista, ao priorizar o investimento na
afirmação de uma cultura nacional, substitui a fórmula escolanovista do “educar para a
sociedade” pelo princípio nacionalista do “educar para pátria”. O investimento do Estado irá
priorizar naquele momento o ensino profissional e superior e eleger como perspectiva
sociológica as idéias de Oliveira Viana.4 Nos anos do pós-guerra um novo movimento de
reaproximação entre Ciências Sociais e a Educação volta a ocorrer no país, agora, estimulado
em grande parte pelo ideário formado em torno da UNESCO. A agência internacional postula
a necessidade da erradicação do analfabetismo no mundo - entendida como medida preventiva
aos regimes totalitários - fomenta a difusão da educação como mecanismo de preservação das
sociedades democráticas e destina recursos e auxílio técnico para a pesquisa científica no
chamado terceiro mundo, especialmente, na América Latina.5 No Brasil, a liberdade política
garantida pela constituição de 1946 favorece a retomada dos debates sobre o papel da escola,
vista como instrumento de equilíbrio social e como mecanismo fundamental ao crescimento
econômico do país. Valorizada em seu mérito democrático e tratada como objeto de reflexão
científica e política, a educação reaparece, naquele momento, como objeto de estudo das
ciências sociais que, em seu movimento particular, retornava à vida pública, agora, dotada de
legitimidade científica6.
É nesse quadro que, ao assumir a direção do INEP em 1952, Anísio Teixeira anuncia a
transformação daquele órgão em uma “grande máquina de ciências sociais, de intelectuais
tratando da problemática da educação” (Mariani, 1972:181)7. A criação do CBPE, fruto da
cooperação e do apoio da UNESCO, viria imprimir à educação uma orientação pragmática, de
base científica e fundada na perspectiva da aplicação da pesquisa sociológica à política
4
Silva, 2002, informa que Oliveira Viana foi consultor do Ministério do Trabalho durante o Estado Novo e suas
idéias fundamentam a discussão da questão trabalhista e da elaboração da legislação corporativista do trabalho.
Mas, lembra. Uma exceção deve ser mencionada em relação à sociologia produzida nesta época. A influência da
Escola de Chicago na ELSP da USP que se faze sentir especialmente com a vinda de Donald Pierson em 1939.
Esta influencia terá papel central no estabelecimento da sociologia no período pós-45.
5
Mariza Corrêa destaca a forte presença de latinos americanos e brasileiros nos círculos da UNESCO, neste
momento. À frente do seu Depto de Ciências Sociais estava, desde 1949, o brasileiro Artur Ramos.
6
Para saber mais sobre o movimento da sociologia da educação no Brasil ver Silva, 2002.
7
Vale lembrar que especialmente na gestão de Murilo Braga (1946-1952), mas também antes disso com
Lourenço Filho (1938-1945) o INEP tinha restringido seu caráter de instituto de pesquisas e encontrava-se
mergulhado em serviços burocráticos. A administração dos recursos do extinto Fundo Nacional do Ensino
Primário ocupava a centralidade das ações do INEP que se volta prioritariamente para a tarefa de construção de
escolas. Mariani, 1982.
educacional. Rejeitando a antiga perspectiva da atuação do INEP - pautada em estudos de base
psicométrica e estreitamente associados à questão pedagógica - o CBPE propõe um amplo
estudo dos problemas sociais e educacionais do país a partir a partir do foco das ciências
sociais aplicadas. Tratando a educação como problema social, cultural e antropológico, Anísio
Teixeira - idealizador do CBPE - pretendia, não apenas, instaurar um espaço de produção de
pesquisa sobre a cultura e a sociedade brasileira, mas vincular a questão educacional à
Universidade e aos intelectuais, estabelecendo um diálogo entre o governo e a sociedade com
vistas ao planejamento da política de educação do país. Entretanto, analisa Mariza Corrêa, o
“espírito universitário” desejado por Anísio - “um colégio de pessoas livres, imaginativas,
abertas, estudando e documentando o problema brasileiro da educação”,8 não chegou a se
concretizar plenamente. Ainda que o projeto CBPE tenha atraído o interesse de importantes
intelectuais da época,
“(...) o grupo de cientistas sociais que ele reuniu em torno de si, no
CBPE e no INEP, ao mesmo tempo em que fazia pesquisas, ou criava
cursos de especialização que contribuíam para a grande reforma
educacional que ele [Anísio] pretendia, perseguia também objetivos
localmente, ou institucionalmente, determinados e que, eventualmente,
desembocariam bem longe de seus planos iniciais”.(Corrêa, 1988:19)
A situação apontada por Mariza Correia em relação ao Centro Brasileiro não parece ter se
diferenciado nos Centros Regionais. Criadas para atuar como frentes avançadas do projeto de
intervenção do CBPE, as unidades regionais foram encarregadas de contribuir na elaboração
do “mapa sociológico” e do “mapa educacional” do Brasil. Deveriam, conforme estabelece o
decreto 38.460 de 28 de dezembro de 1955, dedicar-se a realização de pesquisas capazes de
identificar “as condições culturais e escolares e as tendências de desenvolvimento de cada
região e da sociedade brasileira como um todo, tendo em vista a elaboração gradual de uma
política educacional do país” (Boletim CRPE, n.1 s/d).
8
Carta de Anísio Teixeira a Péricles Madureira de Pinho apud Corrêa, 1988.
Interpretada no contexto dos anos 50/60, essa preocupação em desvendar, nas diferentes
regiões do país, o complexo relacionamento entre a escola e a realidade cultural pode ser
tomada como uma condição necessária ao planejamento adequado das diferentes demandas
locais e regionais. Entretanto, o que se percebe é que no âmbito das ciências sociais, o
interesse pelo investimento na pesquisa empírica, capaz de revelar a realidade microscópica de
cada região ou local, fazia parte de uma mudança de perspectiva teórica e temática que as
ciências sociais brasileiras viria a experimentar, a partir dos anos 50. Naqueles anos,
metodologias desenvolvidas no meio acadêmico - especialmente aquelas oriundas da
Universidade de Chicago e adotada na experiência de pesquisa do Departamento de Sociologia
e Antropologia da ELSP/USP (como por exemplo, os “Estudos de comunidade”) ganhavam
cada vez mais espaço no meio social e rompiam uma tradição interpretativa de cunho teórico e
ensaísta presente tantos nos estudos sobre a sociedade brasileira quanto a chamada sociologia
educacional.9
Marcando a uma nova fase da produção no campo das ciências sociais, o programa de
pesquisas do CBPE surge como uma indispensável fonte de financiamento das pesquisas, num
momento de ausência de uma estrutura organizada nas Universidades. E, pode-se dizer que
mais do que uma atração pela temática educacional a aproximação dos pesquisadores ao
Projeto CBPE dava-se mais em função da possibilidade de experimentação das novas opções
metodológicas e demarcação de novos padrões de cientificidade.10 A relação estabelecida
entre ciências sociais e educação e a maneira como as novas metodologias de pesquisas
repercutem, ou são apropriadas pela produção científica fora do eixo do eixo Rio - São Paulo,
ainda é pouco conhecida. Sabemos em relação ao CBPE que a articulação educação e ciências
sociais foi precária não chegando a consolidar uma produção científica harmonizada com o
planejamento educacional. Segundo Mariza Corrêa
“(...) boa parte dos pesquisadores principais já estava na universidade
e, embora sua contribuição ao projeto educacional do país pudesse ter
sido relevante (o que é difícil de avaliar, dado o desenrolar dos fatos
9
A principal referência na sociologia da educação é a obra de Fernando Azevedo e no campo das ciências sociais
as obras clássicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda. Sobre o tema ver Freitas, 2001.
10
Essa questão preocupa, por exemplo, Florestan Fernandes que desconfiado faz restrições à proposta de
elaboração de um mapa cultural e educacional do país proposto pelo CBPE. Teme a disseminação de uma visão
políticos a partir de 1964), lidas de hoje elas parecem se inserir mais no
projeto individual, ou institucional, de seus autores. (...) Seus títulos,
remetem antes à carreira de seus autores, pouco ou nada vinculados à
reforma pedagógica planejada por Anísio Teixeira” (Correia, 1988:20).
Em relação a São Paulo, Marcos Cezar Freitas destaca a estreita relação estabelecida com a
Universidade e a força da perspectiva epistemológica formada ao redor de Antonio Candido e
de Florestan Fernandes, que naqueles tempos alcança suas máximas expressões nas novas e
mais elaboradas versões do dualismo brasileiro.11 No CRPE-SP a questão metodológica talvez
tenha funcionado mais como aspecto de identificação e relevância para os pesquisadores do
que a própria temática da educação. A produção de conhecimentos acerca da realidade
regional e a intenção de construir um mapa cultural e (um mapa) educacional do Brasil se
traduziu em um conjunto de estudos que revelavam a percepção da dualidade arcaico/moderno
presente na metrópole brasileira, e, especialmente, na análise do distanciamento que no Brasil
dos anos 50 se estabelecia de grupos para grupos e não mais de regiões para regiões. O autor
avalia que a produção do centro paulista, especialmente a do professor Luiz Pereira12,
promoveu um deslocamento da idéia de regional na pesquisa educacional em São Paulo. A
argumentação desenvolvida por Luiz Pereira sobre a falta de homogeneidade na sociedade
brasileira teria comparecido como “figura-chave nas análises que pediam a transferência do
debate educacional para os domínios da planificação racional”. (Freitas, 2001:48).
Diante desse quadro, qual terá sido a experiência do fazer sociológico dos pesquisadores que
se envolveram com o projeto do CRPE em Minas? Quais foram as suas opções metodológicas
e que padrão de cientificidade se procurou estabelecer? As vinculações, perspectivas e
interesses destes sujeitos confirmam o roteiro proposto pelo CBPE ou acrescentam
perspectivas que podem diferenciar o caso mineiro?
estática da realidade e o abandono da compreensão de que a sociedade é permanentemente móvel e plástica.
Sobre a questão ver Freitas, 2001.
11
Freitas 2001 discute como os encaminhamentos metodológicos usados no CRPESP, nos anos 50 promoveu
uma renovação do olhar euclidiano sobre a realidade nacional. Assim, a principal diferença entre as falas
euclidianas e a fala dos pesquisadores do CRPESP ou entre a tradição realista e as pesquisas de campo estariam
relacionadas à renovação do acervo de metáforas sobre o arcaísmo cultural. Freitas, 2001:33-50.
12
Assistente de Florestan Fernandes, Luiz Pereira foi um dos pesquisadores mais envolvidos com o CRPESP e
responsável pela produção do Projeto “Rendimento e Deficiências do Ensino Primário” (1959) Freitas, 2001
A Pesquisa em Ciências Sociais em Belo Horizonte:
Em 1960, quando entregam para a publicação do Diretório Acadêmico “Professor Artur
Versiani Vellloso” o texto final do estudo sobre o Morro do Querosene, Hiroshi Watanabe e
Welber Braga anunciam que aquele objeto de estudo era “praticamente virgem de análises
mais sérias” e representava um primeiro passo rumo a “tempos mais propícios” para a
pesquisa social em Belo Horizonte. Segundo os jovens bacharéis em ciências sociais, egressos
da Faculdade de Filosofia da antiga Universidade de Minas Gerais, o plano da equipe13 era o
de continuar os trabalhos. Pretendiam estudar os aspectos sócio-econômicos do favelamento
na Capital e a ampliar a discussão de toda gama de problemas sociais que envolviam a
temática. Um otimismo que fazia eco com a expectativa de Abgar Renault, diretor do CRPEMG, em relação ao futuro da pesquisa em Ciências Sociais em Belo Horizonte. Para ele a ação
dos centros regionais fazia com que a pesquisa social deixasse de ser uma “idéia obscura,
senão desconhecida, para despertar o interesse dos administradores e do magistério em
geral”. Havia, cada vez mais ciência da sua utilidade e necessidade como instrumento de
indagação e diagnóstico da realidade. Esperava-se, assim, que a ação daqueles pesquisadores
viesse a contribuir para o planejamento sócio-econômico do Estado e para a elaboração de
políticas públicas, particularmente da política educacional. (Boletim CRPE, n º 4).
A expectativa em torno da possibilidade de contribuição das ciências sociais para o
encaminhamento dos problemas sociais pode ser vislumbrada no estudo sobre o Morro do
Querosene. A pesquisa sociológica caracterizada como um survey, foi realizada em caráter de
emergência, entre novembro de 1958 e março de 1959 pela Assessoria Sociológica do
Departamento de Municipal de Habitações e Bairros Populares (DBP) sob a direção dos
pesquisadores Hiroshi Watanabe e Welber Braga, encarregados da Seção de Estudos Sociais
do CRPE-MG. Os dados empíricos foram coletados pela equipe e pela Assistente Social
Catharina Maria Van Brederode e oferecem um quadro detalhado das condições de vida dos
moradores do “Morro de São José”, popularmente conhecido como “Morro do Querosene”.
13
Composta além dos pesquisadores pela assistente social Catharina Maria Van Brederode, da Assessoria
Sociológica do DBP pelas bacharelandas do curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia da UMG, Onira
Naquela época, a população do Morro - localizado nas imediações da área de expansão do
Bairro Cidade Jardim, lugar de residências modernas e de alto luxo - encontrava-se ameaçada
de despejo pelo Exército Brasileiro, proprietário de parte dos terrenos ocupados. Ainda que o
núcleo populacional mais antigo ocupasse o local a mais de quinze anos, verifica-se a partir de
1955 uma intensa expansão do favelamento nas encostas do Morro e um rápido processo de
adensamento e valorização imobiliária do bairro Cidade Jardim. A situação criava conflitos
entre os moradores e promovia um movimento de pressão da opinião pública e dos
proprietários dos terrenos sobre a Prefeitura, para a retirada daquela população. Para
encaminhar a questão o DBP inicia um levantamento sobre as condições de vida da população
da favela visando o seu deslocamento para outras áreas, nas quais pudessem construir suas
moradias através de programas de ajuda mútua.14
Entretanto, em fins de 1958, antes da conclusão do levantamento do DBP, o Exército
Brasileiro, proprietário de parte dos terrenos da favela iniciou um movimento de retirada dos
moradores do local. Desconsiderando o movimento que vinha sendo feito pelo DBP, o
Exército utilizou mecanismos variados para liberar a área - desde o pagamento de uma
pequena indenização até a repressão com a imposição de patrulhas militares na área, a
instalação de cercas com postes de concreto e arame farpado dificultando o trânsito dos
moradores. Essas medidas traumatizaram e assustaram a população que teve sua rotina diária
dificultada em relação ao abastecimento de água, as idas e vindas a empregos e escolas, saídas
para compras, encontros usuais, freqüência a Igreja, dentre outros. A população procurou
reagir derrubando alguns pontos da cerca (que eram reerguidos pelo Exercito), buscando ajuda
junto ao Padre José Lages15 e ao DBP16. Entretanto, nenhuma dessas ações conseguiu evitar a
desagregação do grupo. No final de 1959 a favela já havia praticamente desaparecido.
Carvalho Barros e Gladys Mary Corfield, e Nilza Silva Rocha, aluna do curso de Pedagogia da mesma Faculdade
e auxiliares de pesquisa da Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais do CRPE-MG. (p.19)
14
O problema habitacional em BH vinha de longa data e desde a gestão de Negrão de Lima (1947-1951) a
Prefeitura tentava conter a expansão desordenada da população dentro da cidade planejada com a transferência
desses moradores para áreas distantes do centro urbano. Nesta lógica haviam sido construídos a Vila do
Matadouro (hoje bairro S.Paulo) e o conjunto Santa Maria Segundo Watanabe e Braga, a ação do DBP inspiravase na experiência do Centro Interamericano de Vivienda y Planejamento, ligado a OEA, com sede em Bogotá.
15
O Padre José Lages era capelão da Igreja do Calafate e conhecido na cidade pelo apoio que sempre prestou às
reivindicações populares de caráter social fundando entre eles Associações de Defesa Coletiva-ADC
16
O DBP encontrava-se envolvido em outros processos de desfavelamento e não conseguiu prestar, naquele
momento a assistência social adequada.
A narrativa desses fatos nos remete inicialmente para a reflexão sobre o lugar ocupado
pesquisa social nesse episódio. Primeiramente cabe destacar que a vinculação entre o DBP e
os pesquisadores do CRPE-MG dava-se de maneira pragmática, vinculado à idéia do
planejamento e do encaminhamento de problemas de ordem urbanística da cidade. O estudo
serviria como instrumento da racionalidade no planejamento do uso do espaço numa cidade
que havia sido projetada para cifras conhecidas de habitantes e que enfrentava um
extraordinário crescimento populacional.17 Ao lançar mão da pesquisa social a administração
municipal apostava num instrumento racional para o encaminhamento dos graves problemas
urbanos. Mas, como a dinâmica social não espera pelas análises das ciências sociais, o
instrumento acabou sendo descartado e a questão encaminhada através de outros mecanismos.
Os dados coletados pelos pesquisadores foram abandonados pelo DBP e só posteriormente
resgatados pelos pesquisadores do CRPE-MG que, contando com a parceria da Faculdade de
Filosofia de Minas Gerais, através das alunas dos cursos de Ciências Sociais e Pedagogia,
puderam elaborar e publicar o já referido estudo monográfico abordando os “aspectos da
formação de uma favela”. Uma questão que, como afirmavam os autores na apresentação do
trabalho era “um tema praticamente virgem de análises mais sérias”. Transformada em objeto
de estudo das ciências sociais, a favela deslocava-se do campo do conflito social, do
planejamento urbanístico, do assistencialismo e da moralização para ser interpretada enquanto
“fenômeno social e urbano, reflexo e conseqüência de um conjunto de situações sociais,
econômicas desfavoráveis e responsáveis por sua formação”. (Watanabe e Braga, 1960:24).
É interessante perceber que enquanto construção social a favela é muito anterior à entrada em
cena dos pesquisadores e especialistas em ciências sociais. No Brasil, a temática da favela e do
favelamento foi foco da atenção e da intervenção de diferentes campos do saber, desde o final
do século XIX.18 Associada à pobreza, aos vícios, à ociosidade e à degeneração, a favela
receberá todo um percurso de tratamento que vai do assistencialismo a intervenção policial e
envolve a atuação de médicos, engenheiros e arquitetos, cronistas e jornalistas, filantropos e
17
Relatório do Prefeito Negrão de Lima (1949). Cabe destacar que em dez anos BH praticamente duplicou sua
população, de 351.724 habitantes em 1950 para 693.328 pessoas em 1960.
18
A história da favela nos remete para todo um percurso de tratamento das camadas pobres que vai do
assistencialismo a ameaça e envolve a atuação de médicos, engenheiros e arquitetos, cronistas e jornalistas,
administradores públicos, que ao longo das primeiras décadas do século XX construíram
diferentes discursos e práticas de atuação junto à população favelada. Entretanto, as primeiras
iniciativas de tratamento da questão enquanto campo de pesquisas só se dará a partir das
primeiras iniciativas de pesquisas no campo das ciências sociais, como a descrita neste texto.
Vinculada ao próprio movimento de consolidação do campo das ciências sociais e inserida no
ideário da reconstrução social que se pretendia empreender no país nos anos 50/60, com a
contribuição imensa dos instrumentos próprios da sociologia e da economia, a favela é
transformada em objeto de estudos de uma geração de pesquisadores que a consagra como
mote de uma extensa literatura produzida sobre a pobreza urbana no Brasil.
Em Belo Horizonte, a inauguração dessa nova fase do saber e da reflexão sobre a favela é
reveladora também do tratamento dado à pesquisa social. Sem poder contar com a estrutura
universitária paulista os pesquisadores mineiros estabeleceram vínculos e constituíram as
parcerias possíveis para alcançar um objetivo, segundo eles, era modesto - o de “contribuir
objetivamente para o conhecimento de um problema como esse”. E por mais precárias que
tenham sido as condições de produção do estudo, percebe-se que esses intelectuais se
esforçaram para distinguir a análise científica de práticas políticas.
filantropos e administradores públicos, que construíram diferentes discursos e práticas de atuação junto à
população favelada no Brasil. Sobre o tema ver. Lícia Valladares, 2000.
BIBLIOGRAFIA
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CORREIA, Macheza. “A Revolução dos Normalistas”. Cadernos de Pesquisa, Fundação
Carlos Chagas, São Paulo (66), p.13-24, agosto, 1988.
FREITAS, Marcos Cezar. “História, Antropologia e Pesquisa Educacional: itinerários
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SILVA, Graziella Morais Dias da. “Sociologia da Sociologia da Educação: caminhos e
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VALLADARES, Lícia. “A Gênese da Favela Carioca: a produção anterior às ciências
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XAVIER, Libânia Nacif. O Brasil como Laboratório: educação e ciências sociais no projeto
dos Centros Brasileiros de pesquisas educacionais, Bragança Paulista: IFAN / CDAPH /
EDUSP, 1999.
WATANABE, Hiroshi. BRAGA, Welber da Silva. “Morro do Querosene: aspectos da
formação de uma favela. Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia da Universidade de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 1960”.
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