MORRO DO QUEROSENE: ASPECTOS DA PESQUISA EDUCACIONAL PRODUZIDA EM MINAS NOS ANOS 50/60 Maria do Carmo Xavier/UFMG Partindo do suposto que entre os anos de 1955 e 19651 existia em Minas Gerais uma situação favorável ao desenvolvimento de uma produção sociológica interessada no esclarecimento dos problemas sociais e educacionais, a intenção desse texto é apresentar alguns elementos dessa produção e contribuir para o debate sobre as relações entre educação e ciências sociais, no período em tela. Como estratégia de abordagem da questão optou-se pela apresentação do estudo monográfico “Morro do Querosene: alguns aspectos da formação de uma favela”. Trata-se de um survey dirigido por Hiroshi Watanabe e Welber Braga, sociólogos encarregados da Seção de Pesquisa Sociais do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais (CRPE-MG), sobre as condições de vida dos moradores daquela favela nos anos de 1958 e 1959. O levantamento foi conduzido pelo Departamento de Bairros Populares (DBP) da Prefeitura de Belo Horizonte e publicado em 1960, através do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia da antiga Universidade de Minas Gerais. Pretende-se, através do relato dessa experiência, destacar o percurso e os percalços vividos pelos pesquisadores na elaboração do trabalho e discutir o tratamento dado à pesquisa social em Minas Gerais, numa época de afirmação das ciências sociais como campo de pesquisa e de demanda desse saber como instrumento de planejamento social, por parte do Estado.2 Mas, antes de apresentar a pesquisa, farei alguns comentários sobre o projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) do qual fazia parte o CRPE-MG. O intuito é o de oferecer elementos que permitam uma compreensão da relação estabelecida entre educação e ciências sociais no Brasil e o investimento do CBPE no seu potencial de revelação da complexidade da realidade nacional e de encaminhamento dos problemas educacionais do país. Para tanto, utilizo como referência os estudos de Marcos Cezar Freitas (2001) Mariza 1 Esse período corresponde ao da existência do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais (CRPE-MG) um dos cincos centros regionais que compunham o Projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) (os outros se localizavam em Recife, Salvador, Porto Alegre e São Paulo). 2 Vale lembrar que a afirmação das ciências sociais como campo de pesquisa acadêmico só irá ocorrer a partir da década de 70, com a implantação dos Programas de Pós-graduação nas Universidades. Corrêa (1988), Libânea Xavier (1999) e Graziella Silva (2002). Na seqüência, apresento a referida pesquisa e busco problematizar as perspectivas institucionais que demarcaram a sua produção e as interfaces que se estabeleceram em Belo Horizonte entre a Seção de Pesquisa Social do CRPE-MG, o Departamento de Habitação e Bairros Populares (DBP) da Prefeitura de Belo Horizonte, e do curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, na produção da pesquisa social. Ciências Sociais, Planejamento e Desenvolvimento: o papel do Centro Brasileiro e dos Centros Regionais. Para entender o lugar ocupado pelo Projeto CBPE e seus Centros Regionais adjuntos é preciso ter em mente que no período em que se convencionou denominar como nacionaldesenvolvimentismo (1945-1964) a preocupação com a educação foi deslocada do lugar de centralidade que ocupou durante os onze anos do ministério Capanema para alocar-se em estruturas paralelas criadas, especialmente na política desenvolvimentista do governo JK, para responder pelo planejamento de áreas específicas do desenvolvimento do país3. A criação do CBPE - órgão encarregado de estudar e planejar políticas públicas na área educacional - davase em função da lógica administrativa do governo e do ideário organizado por uma geração de intelectuais, educadores e homens públicos que, entre 1920 e 1930, promoveu um amplo debate sobre a necessidade de tratamento científico das questões educacionais e o seu planejamento como chave para o desenvolvimento da nação. Naqueles anos ocorre uma primeira aproximação entre ciências sociais e educação que se manifestou, principalmente, na luta pela profissionalização do magistério e na aplicação de princípios científicos ao planejamento e a prática escolar. A partir de então se consolidou no país o campo de estudos superiores em Educação e Ciências Sociais, expresso na criação da Escola Livre de Sociologia e Política da USP, da Universidade do Distrito Federal (UDF), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL/USP). Essa primeira aproximação entre sociologia e educação, oriunda do pensamento dos pioneiros, terá na obra de Fernando Azevedo seu maior representante, mas não encontrará espaço de atuação na política educacional do Estado Novo. 3 E cabe destacar que esse movimento caracteriza uma das facetas da ideologia desenvolvimentista. A descentralização do foco de decisão, através do deslocamento do debate da área política para a área econômica fazia com que a perspectiva da racionalidade e do pragmatismo no tratamento das questões nacionais, sobrepujasse o campo da ação política. Cardoso (1977) A base autoritária do projeto educacional estadonovista, ao priorizar o investimento na afirmação de uma cultura nacional, substitui a fórmula escolanovista do “educar para a sociedade” pelo princípio nacionalista do “educar para pátria”. O investimento do Estado irá priorizar naquele momento o ensino profissional e superior e eleger como perspectiva sociológica as idéias de Oliveira Viana.4 Nos anos do pós-guerra um novo movimento de reaproximação entre Ciências Sociais e a Educação volta a ocorrer no país, agora, estimulado em grande parte pelo ideário formado em torno da UNESCO. A agência internacional postula a necessidade da erradicação do analfabetismo no mundo - entendida como medida preventiva aos regimes totalitários - fomenta a difusão da educação como mecanismo de preservação das sociedades democráticas e destina recursos e auxílio técnico para a pesquisa científica no chamado terceiro mundo, especialmente, na América Latina.5 No Brasil, a liberdade política garantida pela constituição de 1946 favorece a retomada dos debates sobre o papel da escola, vista como instrumento de equilíbrio social e como mecanismo fundamental ao crescimento econômico do país. Valorizada em seu mérito democrático e tratada como objeto de reflexão científica e política, a educação reaparece, naquele momento, como objeto de estudo das ciências sociais que, em seu movimento particular, retornava à vida pública, agora, dotada de legitimidade científica6. É nesse quadro que, ao assumir a direção do INEP em 1952, Anísio Teixeira anuncia a transformação daquele órgão em uma “grande máquina de ciências sociais, de intelectuais tratando da problemática da educação” (Mariani, 1972:181)7. A criação do CBPE, fruto da cooperação e do apoio da UNESCO, viria imprimir à educação uma orientação pragmática, de base científica e fundada na perspectiva da aplicação da pesquisa sociológica à política 4 Silva, 2002, informa que Oliveira Viana foi consultor do Ministério do Trabalho durante o Estado Novo e suas idéias fundamentam a discussão da questão trabalhista e da elaboração da legislação corporativista do trabalho. Mas, lembra. Uma exceção deve ser mencionada em relação à sociologia produzida nesta época. A influência da Escola de Chicago na ELSP da USP que se faze sentir especialmente com a vinda de Donald Pierson em 1939. Esta influencia terá papel central no estabelecimento da sociologia no período pós-45. 5 Mariza Corrêa destaca a forte presença de latinos americanos e brasileiros nos círculos da UNESCO, neste momento. À frente do seu Depto de Ciências Sociais estava, desde 1949, o brasileiro Artur Ramos. 6 Para saber mais sobre o movimento da sociologia da educação no Brasil ver Silva, 2002. 7 Vale lembrar que especialmente na gestão de Murilo Braga (1946-1952), mas também antes disso com Lourenço Filho (1938-1945) o INEP tinha restringido seu caráter de instituto de pesquisas e encontrava-se mergulhado em serviços burocráticos. A administração dos recursos do extinto Fundo Nacional do Ensino Primário ocupava a centralidade das ações do INEP que se volta prioritariamente para a tarefa de construção de escolas. Mariani, 1982. educacional. Rejeitando a antiga perspectiva da atuação do INEP - pautada em estudos de base psicométrica e estreitamente associados à questão pedagógica - o CBPE propõe um amplo estudo dos problemas sociais e educacionais do país a partir a partir do foco das ciências sociais aplicadas. Tratando a educação como problema social, cultural e antropológico, Anísio Teixeira - idealizador do CBPE - pretendia, não apenas, instaurar um espaço de produção de pesquisa sobre a cultura e a sociedade brasileira, mas vincular a questão educacional à Universidade e aos intelectuais, estabelecendo um diálogo entre o governo e a sociedade com vistas ao planejamento da política de educação do país. Entretanto, analisa Mariza Corrêa, o “espírito universitário” desejado por Anísio - “um colégio de pessoas livres, imaginativas, abertas, estudando e documentando o problema brasileiro da educação”,8 não chegou a se concretizar plenamente. Ainda que o projeto CBPE tenha atraído o interesse de importantes intelectuais da época, “(...) o grupo de cientistas sociais que ele reuniu em torno de si, no CBPE e no INEP, ao mesmo tempo em que fazia pesquisas, ou criava cursos de especialização que contribuíam para a grande reforma educacional que ele [Anísio] pretendia, perseguia também objetivos localmente, ou institucionalmente, determinados e que, eventualmente, desembocariam bem longe de seus planos iniciais”.(Corrêa, 1988:19) A situação apontada por Mariza Correia em relação ao Centro Brasileiro não parece ter se diferenciado nos Centros Regionais. Criadas para atuar como frentes avançadas do projeto de intervenção do CBPE, as unidades regionais foram encarregadas de contribuir na elaboração do “mapa sociológico” e do “mapa educacional” do Brasil. Deveriam, conforme estabelece o decreto 38.460 de 28 de dezembro de 1955, dedicar-se a realização de pesquisas capazes de identificar “as condições culturais e escolares e as tendências de desenvolvimento de cada região e da sociedade brasileira como um todo, tendo em vista a elaboração gradual de uma política educacional do país” (Boletim CRPE, n.1 s/d). 8 Carta de Anísio Teixeira a Péricles Madureira de Pinho apud Corrêa, 1988. Interpretada no contexto dos anos 50/60, essa preocupação em desvendar, nas diferentes regiões do país, o complexo relacionamento entre a escola e a realidade cultural pode ser tomada como uma condição necessária ao planejamento adequado das diferentes demandas locais e regionais. Entretanto, o que se percebe é que no âmbito das ciências sociais, o interesse pelo investimento na pesquisa empírica, capaz de revelar a realidade microscópica de cada região ou local, fazia parte de uma mudança de perspectiva teórica e temática que as ciências sociais brasileiras viria a experimentar, a partir dos anos 50. Naqueles anos, metodologias desenvolvidas no meio acadêmico - especialmente aquelas oriundas da Universidade de Chicago e adotada na experiência de pesquisa do Departamento de Sociologia e Antropologia da ELSP/USP (como por exemplo, os “Estudos de comunidade”) ganhavam cada vez mais espaço no meio social e rompiam uma tradição interpretativa de cunho teórico e ensaísta presente tantos nos estudos sobre a sociedade brasileira quanto a chamada sociologia educacional.9 Marcando a uma nova fase da produção no campo das ciências sociais, o programa de pesquisas do CBPE surge como uma indispensável fonte de financiamento das pesquisas, num momento de ausência de uma estrutura organizada nas Universidades. E, pode-se dizer que mais do que uma atração pela temática educacional a aproximação dos pesquisadores ao Projeto CBPE dava-se mais em função da possibilidade de experimentação das novas opções metodológicas e demarcação de novos padrões de cientificidade.10 A relação estabelecida entre ciências sociais e educação e a maneira como as novas metodologias de pesquisas repercutem, ou são apropriadas pela produção científica fora do eixo do eixo Rio - São Paulo, ainda é pouco conhecida. Sabemos em relação ao CBPE que a articulação educação e ciências sociais foi precária não chegando a consolidar uma produção científica harmonizada com o planejamento educacional. Segundo Mariza Corrêa “(...) boa parte dos pesquisadores principais já estava na universidade e, embora sua contribuição ao projeto educacional do país pudesse ter sido relevante (o que é difícil de avaliar, dado o desenrolar dos fatos 9 A principal referência na sociologia da educação é a obra de Fernando Azevedo e no campo das ciências sociais as obras clássicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda. Sobre o tema ver Freitas, 2001. 10 Essa questão preocupa, por exemplo, Florestan Fernandes que desconfiado faz restrições à proposta de elaboração de um mapa cultural e educacional do país proposto pelo CBPE. Teme a disseminação de uma visão políticos a partir de 1964), lidas de hoje elas parecem se inserir mais no projeto individual, ou institucional, de seus autores. (...) Seus títulos, remetem antes à carreira de seus autores, pouco ou nada vinculados à reforma pedagógica planejada por Anísio Teixeira” (Correia, 1988:20). Em relação a São Paulo, Marcos Cezar Freitas destaca a estreita relação estabelecida com a Universidade e a força da perspectiva epistemológica formada ao redor de Antonio Candido e de Florestan Fernandes, que naqueles tempos alcança suas máximas expressões nas novas e mais elaboradas versões do dualismo brasileiro.11 No CRPE-SP a questão metodológica talvez tenha funcionado mais como aspecto de identificação e relevância para os pesquisadores do que a própria temática da educação. A produção de conhecimentos acerca da realidade regional e a intenção de construir um mapa cultural e (um mapa) educacional do Brasil se traduziu em um conjunto de estudos que revelavam a percepção da dualidade arcaico/moderno presente na metrópole brasileira, e, especialmente, na análise do distanciamento que no Brasil dos anos 50 se estabelecia de grupos para grupos e não mais de regiões para regiões. O autor avalia que a produção do centro paulista, especialmente a do professor Luiz Pereira12, promoveu um deslocamento da idéia de regional na pesquisa educacional em São Paulo. A argumentação desenvolvida por Luiz Pereira sobre a falta de homogeneidade na sociedade brasileira teria comparecido como “figura-chave nas análises que pediam a transferência do debate educacional para os domínios da planificação racional”. (Freitas, 2001:48). Diante desse quadro, qual terá sido a experiência do fazer sociológico dos pesquisadores que se envolveram com o projeto do CRPE em Minas? Quais foram as suas opções metodológicas e que padrão de cientificidade se procurou estabelecer? As vinculações, perspectivas e interesses destes sujeitos confirmam o roteiro proposto pelo CBPE ou acrescentam perspectivas que podem diferenciar o caso mineiro? estática da realidade e o abandono da compreensão de que a sociedade é permanentemente móvel e plástica. Sobre a questão ver Freitas, 2001. 11 Freitas 2001 discute como os encaminhamentos metodológicos usados no CRPESP, nos anos 50 promoveu uma renovação do olhar euclidiano sobre a realidade nacional. Assim, a principal diferença entre as falas euclidianas e a fala dos pesquisadores do CRPESP ou entre a tradição realista e as pesquisas de campo estariam relacionadas à renovação do acervo de metáforas sobre o arcaísmo cultural. Freitas, 2001:33-50. 12 Assistente de Florestan Fernandes, Luiz Pereira foi um dos pesquisadores mais envolvidos com o CRPESP e responsável pela produção do Projeto “Rendimento e Deficiências do Ensino Primário” (1959) Freitas, 2001 A Pesquisa em Ciências Sociais em Belo Horizonte: Em 1960, quando entregam para a publicação do Diretório Acadêmico “Professor Artur Versiani Vellloso” o texto final do estudo sobre o Morro do Querosene, Hiroshi Watanabe e Welber Braga anunciam que aquele objeto de estudo era “praticamente virgem de análises mais sérias” e representava um primeiro passo rumo a “tempos mais propícios” para a pesquisa social em Belo Horizonte. Segundo os jovens bacharéis em ciências sociais, egressos da Faculdade de Filosofia da antiga Universidade de Minas Gerais, o plano da equipe13 era o de continuar os trabalhos. Pretendiam estudar os aspectos sócio-econômicos do favelamento na Capital e a ampliar a discussão de toda gama de problemas sociais que envolviam a temática. Um otimismo que fazia eco com a expectativa de Abgar Renault, diretor do CRPEMG, em relação ao futuro da pesquisa em Ciências Sociais em Belo Horizonte. Para ele a ação dos centros regionais fazia com que a pesquisa social deixasse de ser uma “idéia obscura, senão desconhecida, para despertar o interesse dos administradores e do magistério em geral”. Havia, cada vez mais ciência da sua utilidade e necessidade como instrumento de indagação e diagnóstico da realidade. Esperava-se, assim, que a ação daqueles pesquisadores viesse a contribuir para o planejamento sócio-econômico do Estado e para a elaboração de políticas públicas, particularmente da política educacional. (Boletim CRPE, n º 4). A expectativa em torno da possibilidade de contribuição das ciências sociais para o encaminhamento dos problemas sociais pode ser vislumbrada no estudo sobre o Morro do Querosene. A pesquisa sociológica caracterizada como um survey, foi realizada em caráter de emergência, entre novembro de 1958 e março de 1959 pela Assessoria Sociológica do Departamento de Municipal de Habitações e Bairros Populares (DBP) sob a direção dos pesquisadores Hiroshi Watanabe e Welber Braga, encarregados da Seção de Estudos Sociais do CRPE-MG. Os dados empíricos foram coletados pela equipe e pela Assistente Social Catharina Maria Van Brederode e oferecem um quadro detalhado das condições de vida dos moradores do “Morro de São José”, popularmente conhecido como “Morro do Querosene”. 13 Composta além dos pesquisadores pela assistente social Catharina Maria Van Brederode, da Assessoria Sociológica do DBP pelas bacharelandas do curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia da UMG, Onira Naquela época, a população do Morro - localizado nas imediações da área de expansão do Bairro Cidade Jardim, lugar de residências modernas e de alto luxo - encontrava-se ameaçada de despejo pelo Exército Brasileiro, proprietário de parte dos terrenos ocupados. Ainda que o núcleo populacional mais antigo ocupasse o local a mais de quinze anos, verifica-se a partir de 1955 uma intensa expansão do favelamento nas encostas do Morro e um rápido processo de adensamento e valorização imobiliária do bairro Cidade Jardim. A situação criava conflitos entre os moradores e promovia um movimento de pressão da opinião pública e dos proprietários dos terrenos sobre a Prefeitura, para a retirada daquela população. Para encaminhar a questão o DBP inicia um levantamento sobre as condições de vida da população da favela visando o seu deslocamento para outras áreas, nas quais pudessem construir suas moradias através de programas de ajuda mútua.14 Entretanto, em fins de 1958, antes da conclusão do levantamento do DBP, o Exército Brasileiro, proprietário de parte dos terrenos da favela iniciou um movimento de retirada dos moradores do local. Desconsiderando o movimento que vinha sendo feito pelo DBP, o Exército utilizou mecanismos variados para liberar a área - desde o pagamento de uma pequena indenização até a repressão com a imposição de patrulhas militares na área, a instalação de cercas com postes de concreto e arame farpado dificultando o trânsito dos moradores. Essas medidas traumatizaram e assustaram a população que teve sua rotina diária dificultada em relação ao abastecimento de água, as idas e vindas a empregos e escolas, saídas para compras, encontros usuais, freqüência a Igreja, dentre outros. A população procurou reagir derrubando alguns pontos da cerca (que eram reerguidos pelo Exercito), buscando ajuda junto ao Padre José Lages15 e ao DBP16. Entretanto, nenhuma dessas ações conseguiu evitar a desagregação do grupo. No final de 1959 a favela já havia praticamente desaparecido. Carvalho Barros e Gladys Mary Corfield, e Nilza Silva Rocha, aluna do curso de Pedagogia da mesma Faculdade e auxiliares de pesquisa da Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais do CRPE-MG. (p.19) 14 O problema habitacional em BH vinha de longa data e desde a gestão de Negrão de Lima (1947-1951) a Prefeitura tentava conter a expansão desordenada da população dentro da cidade planejada com a transferência desses moradores para áreas distantes do centro urbano. Nesta lógica haviam sido construídos a Vila do Matadouro (hoje bairro S.Paulo) e o conjunto Santa Maria Segundo Watanabe e Braga, a ação do DBP inspiravase na experiência do Centro Interamericano de Vivienda y Planejamento, ligado a OEA, com sede em Bogotá. 15 O Padre José Lages era capelão da Igreja do Calafate e conhecido na cidade pelo apoio que sempre prestou às reivindicações populares de caráter social fundando entre eles Associações de Defesa Coletiva-ADC 16 O DBP encontrava-se envolvido em outros processos de desfavelamento e não conseguiu prestar, naquele momento a assistência social adequada. A narrativa desses fatos nos remete inicialmente para a reflexão sobre o lugar ocupado pesquisa social nesse episódio. Primeiramente cabe destacar que a vinculação entre o DBP e os pesquisadores do CRPE-MG dava-se de maneira pragmática, vinculado à idéia do planejamento e do encaminhamento de problemas de ordem urbanística da cidade. O estudo serviria como instrumento da racionalidade no planejamento do uso do espaço numa cidade que havia sido projetada para cifras conhecidas de habitantes e que enfrentava um extraordinário crescimento populacional.17 Ao lançar mão da pesquisa social a administração municipal apostava num instrumento racional para o encaminhamento dos graves problemas urbanos. Mas, como a dinâmica social não espera pelas análises das ciências sociais, o instrumento acabou sendo descartado e a questão encaminhada através de outros mecanismos. Os dados coletados pelos pesquisadores foram abandonados pelo DBP e só posteriormente resgatados pelos pesquisadores do CRPE-MG que, contando com a parceria da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, através das alunas dos cursos de Ciências Sociais e Pedagogia, puderam elaborar e publicar o já referido estudo monográfico abordando os “aspectos da formação de uma favela”. Uma questão que, como afirmavam os autores na apresentação do trabalho era “um tema praticamente virgem de análises mais sérias”. Transformada em objeto de estudo das ciências sociais, a favela deslocava-se do campo do conflito social, do planejamento urbanístico, do assistencialismo e da moralização para ser interpretada enquanto “fenômeno social e urbano, reflexo e conseqüência de um conjunto de situações sociais, econômicas desfavoráveis e responsáveis por sua formação”. (Watanabe e Braga, 1960:24). É interessante perceber que enquanto construção social a favela é muito anterior à entrada em cena dos pesquisadores e especialistas em ciências sociais. No Brasil, a temática da favela e do favelamento foi foco da atenção e da intervenção de diferentes campos do saber, desde o final do século XIX.18 Associada à pobreza, aos vícios, à ociosidade e à degeneração, a favela receberá todo um percurso de tratamento que vai do assistencialismo a intervenção policial e envolve a atuação de médicos, engenheiros e arquitetos, cronistas e jornalistas, filantropos e 17 Relatório do Prefeito Negrão de Lima (1949). Cabe destacar que em dez anos BH praticamente duplicou sua população, de 351.724 habitantes em 1950 para 693.328 pessoas em 1960. 18 A história da favela nos remete para todo um percurso de tratamento das camadas pobres que vai do assistencialismo a ameaça e envolve a atuação de médicos, engenheiros e arquitetos, cronistas e jornalistas, administradores públicos, que ao longo das primeiras décadas do século XX construíram diferentes discursos e práticas de atuação junto à população favelada. Entretanto, as primeiras iniciativas de tratamento da questão enquanto campo de pesquisas só se dará a partir das primeiras iniciativas de pesquisas no campo das ciências sociais, como a descrita neste texto. Vinculada ao próprio movimento de consolidação do campo das ciências sociais e inserida no ideário da reconstrução social que se pretendia empreender no país nos anos 50/60, com a contribuição imensa dos instrumentos próprios da sociologia e da economia, a favela é transformada em objeto de estudos de uma geração de pesquisadores que a consagra como mote de uma extensa literatura produzida sobre a pobreza urbana no Brasil. Em Belo Horizonte, a inauguração dessa nova fase do saber e da reflexão sobre a favela é reveladora também do tratamento dado à pesquisa social. Sem poder contar com a estrutura universitária paulista os pesquisadores mineiros estabeleceram vínculos e constituíram as parcerias possíveis para alcançar um objetivo, segundo eles, era modesto - o de “contribuir objetivamente para o conhecimento de um problema como esse”. E por mais precárias que tenham sido as condições de produção do estudo, percebe-se que esses intelectuais se esforçaram para distinguir a análise científica de práticas políticas. filantropos e administradores públicos, que construíram diferentes discursos e práticas de atuação junto à população favelada no Brasil. Sobre o tema ver. Lícia Valladares, 2000. BIBLIOGRAFIA CARDOSO, Mirian Limoeiro. “Ideologia do desenvolvimento: JK-JQ” Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. CORREIA, Macheza. “A Revolução dos Normalistas”. Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, São Paulo (66), p.13-24, agosto, 1988. FREITAS, Marcos Cezar. “História, Antropologia e Pesquisa Educacional: itinerários intelectuais”, São Paulo, Cortez, 2001. SILVA, Graziella Morais Dias da. “Sociologia da Sociologia da Educação: caminhos e desafios de uma policy science no Brasil (1920-1979)” Bragança Paulista, EDUSF, 2002. VALLADARES, Lícia. “A Gênese da Favela Carioca: a produção anterior às ciências sociais”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 15, n º 44, outubro 2000. XAVIER, Libânia Nacif. O Brasil como Laboratório: educação e ciências sociais no projeto dos Centros Brasileiros de pesquisas educacionais, Bragança Paulista: IFAN / CDAPH / EDUSP, 1999. WATANABE, Hiroshi. BRAGA, Welber da Silva. “Morro do Querosene: aspectos da formação de uma favela. Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1960”.