DESPACHOS NO MUSEU: SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER... DESPACHOS NO MUSEU sabe-se lá o que vai acontecer... SUELY ROLNIK Psicanalista, Coordenadora do Núcleo de Estudos da Subjetividade da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP Resumo: A vida em suas diferentes fórmulas de criação constitui um dos alvos privilegiados do investimento do capitalismo contemporâneo. Para fabricar e comercializar clones, o capitalismo extrai as matrizes não só da biodiversidade na natureza, mas também do multiculturalismo de modalidades de produção de sentido, de territórios de existência e de subjetividade. Um dos maiores desafios do artista contemporâneo está em se instalar no próprio âmago dessa ambigüidade, associando-se ao investimento capitalista, mas negociando para manter a vida como princípio ético organizador, tolhendo assim seu vetor perverso. Palavras-chave: cultura e capitalismo; arte e resistência; instauração. Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto. um multiculturalismo de modalidades de constituição de subjetividade. Assim, o neocapitalismo convoca e sustenta modos de subjetivação singulares, mas para serem reproduzidos, separados de sua relação com a vida, reificados e transformados em mercadoria: clones fabricados em massa, comercializados como “identidades prêt-à-porter”(Rolnik, 1997). O que se vende são imagens destas identidades/ mercadorias que serão consumidas, inclusive, por aqueles de cuja medula subjetiva o capital se alimentou para produzi-las. Na reinvenção contemporânea do capitalismo, a distância entre produção e consumo desaparece: o próprio consumidor torna-se a matéria-prima e o produto de sua maquinação. Clones de subjetividade constituem padrões de identificação efêmeros. Para fazer girar esse mercado, é necessário que novos tipos de clone sejam produzidos o tempo todo, enquanto outros saem de linha, tornam-se obsoletos. A diferença entre anomalia e anormalidade pode ser útil para avançar nesta reflexão. “Anomalia” é uma palavra de origem grega, que designa o rugoso, o desigual, o singular, enquanto “anormalidade”, uma palavra de origem latina, qualifica aquele que contradiz a regra, definindo-se em relação a características genéricas. 1 Assim, na tradição latina, as manifestações do que é o mais próprio da vida, sua potência criadora, são interpretadas como negação e, conseqüentemente, condenáveis. Aparentemen- Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992:222) A vida, em sua potência de variação, constitui um dos alvos privilegiados do investimento do capitalismo contemporâneo. Tendo esgotado os horizontes visíveis para sua expansão, é no invisível que o capital irá descobrir esta sua mina inexplorada: extrair as fórmulas de criação da vida em suas diferentes manifestações será seu alvo e também a causa de sua inelutável ambigüidade. É que se, por um lado, para atingir seu alvo lhe será indispensável investir em pesquisa e invenção, o que aumenta as chances de expansão da vida, por outro, não é a expansão da vida a meta de seu investimento, mas sim a fabricação e a comercialização de clones dos produtos das criações da vida, de modo a ampliar o capital, seu princípio norteador. O exemplo mais óbvio são as pesquisas genéticas que resultam num banco de dados de DNA, que alimenta a indústria biotecnológica com matrizes a serem reproduzidas, até mesmo num futuro remoto. Porém, o capitalismo se interessa em extrair a fórmula não só da vida biológica, mas igualmente da vida subjetiva, na qual se produz o sentimento de si e se configura um território de existência, sem o qual dificilmente se consegue sobreviver. Como a biodiversidade na natureza, fonte exuberante de investimento para o capital, há 3 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 te, no modo de produção atual, esta tradição estaria se deslocando: as manifestações da potência criadora tendem a não mais ser interpretadas como anormalidade, transgressão de uma referência absolutizada, mas sim como anomalia; tomadas em sua positividade, tais manifestações deixam de ser malditas. Pelo contrário, a anomalia é acolhida exatamente por sua singularidade, ganhando não só lugar garantido, como também incentivo e prestígio. No entanto, a meta desse forte investimento na anomalia é sua conversão em matéria-prima na fabricação de novos clones, novas formas genéricas de viver, novos tipos de referência homogeneizadora. É, portanto, a tradição latina que insiste, numa versão atualizada. Em outras palavras, o estatuto da potência criadora hoje é intrinsecamente marcado por uma ambigüidade: a criação nunca foi tão festejada, mas desde que o princípio de sua produção deixe de ser prioritariamente a vida (a problematização do que impede sua expansão e a invenção de territórios que a viabilizem) para se submeter ao capital como princípio organizador central. Caso contrário, por não haver outras vias de reconhecimento social a não ser por semelhança e analogia em relação aos padrões mesmo que efêmeros, a anomalia corre o risco de cair numa espécie de limbo, sem qualquer presença efetiva na cena social e, portanto, sem qualquer poder de interferência nas transformações deste cenário. Assim, as subjetividades nesse regime têm duas opções: serem criadoras, mas para se converter em matéria-prima de identidades prêt-àporter, ou serem suas passivas consumidoras. Fora disso, as invenções da vida tendem a não ter qualquer sentido ou valor. Exploração invisível de um bem invisível, a vida, é igualmente no invisível que deverão operar as artimanhas para combatê-la. A resistência, hoje, tende a não mais se situar por oposição à realidade vigente, numa suposta realidade paralela; seu alvo agora é o princípio que norteia o destino da criação, já que, como visto, esta tornou-se uma das principais – senão a principal – matérias-primas do modo de produção atual. O desafio está em enfrentar a ambigüidade dessa estratégia contemporânea do capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do capitalismo na potência criadora, mas negociando para manter a vida como princípio ético organizador. Este é um desafio que se coloca atualmente em todos os meios, com problemas específicos em cada um deles. A arte é um meio no qual tal estratégia incide com especial vigor, pois constitui um manancial privilegiado de potência criadora, ativa na subjetividade do artista e materializada em sua obra. Artistas são por princípio anômalos: subjetividades vulneráveis aos movimentos da vida, cuja obra é a cartografia singular dos estados sensíveis que sua deambulação pelo mundo mobiliza. É a anomalia dos artistas e de suas criações que faz girar o mercado da arte. Porém, se, por um lado, isto intensifica as oportunidades de criação e circulação no mercado, por outro, a obra, para entrar no circuito, tende a ser clonada, esvaziada do problema vital que ela cartografou. Igualmente clonada tende a ser a subjetividade do artista, esvaziada de sua singularidade em processo e transformada em identidade, de preferência glamurizada. Juntas, obra e subjetividade traficadas, formam o pacote a ser veiculado pela mídia e vendido no mercado da arte, cujo valor será determinado por seu poder de sedução. Se atingir um valor alto, poderá ser ainda vendido em outros mercados – como é o caso da moda – para agregar valor de glamour cultural à marca que o comprar. Ao artista não clonado restam, em geral, poucas saídas para fazer circular sua obra. O destino de muitos é trabalhar nos departamentos de criação das agências que produzem as identidades prêt-àporter: design, publicidade, etc. É no meio da arte que este capitalismo renovado irá encontrar os artífices de suas clonagens. Em função dessa política específica de separação entre arte e vida, própria do contemporâneo, a utopia de religá-las continua na ordem do dia; mas esta questão, que atravessa toda a história da arte moderna, recoloca-se hoje em novos termos. É exatamente neste ponto que encontramos Tunga e suas “instaurações”, 2 que compreendem um dispositivo singular que, com sagacidade e humor, se instala no âmago da ambigüidade do capitalismo contemporâneo e, de dentro dele, o artista problematiza e negocia com sua nova modalidade de relação com a cultura. Esta estratégia mantém viva a função político-poética da arte e impede que o vetor perverso do capitalismo tome conta da cena, reduzindo a arte à mera fonte de mais-valia e esvaziando-a por completo de sua função. Embora o nome “instauração” seja uma invenção recente do artista, a proposta que a designa encontra-se em sua obra desde os primórdios.3 É a possibilidade de nomeála que surge certamente depois de um determinado ponto de sua trajetória, em que o procedimento se refina e se radicaliza, ganhando uma explicitação maior.4 É quando passam a acontecer mais sistematicamente as séries de instaurações em que os objetos, materiais, questões, personagens e elementos com os quais a obra se cria não ape- 4 DESPACHOS NO MUSEU: SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER... do limbo e volta a pulsar. Anarquiza-se a cartografia da avenida: instalados ali inteiramente à vontade, eles ganham uma existência na paisagem, agora não mais passível de ser ignorada: o espectador/transeunte é obrigado a vê-los, e a relação entre eles não pode mais ser denegada. A força do resultado formal, tanto na escolha dos objetos e corpos quanto em sua disposição na avenida, é inseparável do sucesso da problematização que a obra opera, seu efeito disruptivo. Já em Tereza, Tunga trabalhará com um grupo de semteto. O nome da instauração vem de uma conhecida prática dos presidiários que consiste em usar os cobertores disponíveis para fazer tranças de vários metros com as quais tentam fugir da prisão. Os sem-teto deverão fazer “terezas” que, neste caso, servirão para fugir do museu ou galeria onde a instauração se faz. Como pontua o próprio artista, a obra aqui é, ao mesmo tempo, individual e coletiva; escultura e instrumento de fuga do espaço da arte; instauração de uma ligação entre o espaço do museu e o espaço da rua onde vivem os sem-teto. Mais uma vez, instaura-se uma confusão no mapa dominante, ao qual estes personagens não estavam incorporados, como os office boys Cem Terra. Em várias vezes que realizou tanto Cem Terra como Tereza, Tunga foi obrigado a utilizar figurantes classe D para fazer os papéis de office boys ou presidiários. A razão alegada foi a exigência de leis trabalhistas que protegem os atores, mas talvez a razão implícita, mais decisiva, tenha sido o pavor provocado pela idéia de os espaços institucionais da arte serem ocupados por esta “corja de marginais”. De qualquer modo, a estratégia não perde seu vigor, pois o que são tais figurantes senão desempregados que desempenham papéis de quem não teve oportunidade de aprender coisa alguma, e só cumpre funções inespecíficas tanto no palco como na vida. Eles pertencem à mesma população que office boys, sem-terra e semteto, adultos ou meninos – todos eles figurantes classe D deste mundo em que vivemos. 6 Continua portanto sendo no mesmo meio que o trabalho instaura um deslocamento crítico. Em todas estas instaurações, reativa-se a função poético-política da arte, produz-se uma resistência à tentativa de pervertê-la: a obra volta a ser problematizadora do meio onde ela se faz. Na contramão do sistema que ou reconhece modos de fazer território para cloná-los, ou marginaliza os inclonáveis, Tunga cria para estes modos de subjetivação um espaço de visibilidade onde eles atuam ao vivo, protagonistas de si mesmos, com seu próprio elen- nas são extraídos do próprio meio onde a instauração se faz, mas, o que é mais significativo, muitas vezes são componentes do modo de fazer território no meio em questão. Além disso, os universos escolhidos são não apenas os mais distantes do universo da arte, mas principalmente aqueles em que o vetor perverso do modo de produção dominante atinge seus extremos. Numa ponta, office boys, figurantes classe D, desempregados, sem-teto, sem-terra, ex-presidiários e, mais recentemente, meninos que já viveram na rua,5 ou seja, as sobras do sistema, aqueles que, não podendo ser nem matriz de clone, nem seu consumidor, não chegam sequer a entrar no circuito e ficam vagando pelo limbo. Na outra ponta, top-models, as mais radicalmente reduzidas a suporte de identidade prêt-à-porter, adolescentes cujo maior desejo é prestar-se à clonagem, assim como consumir os clones de si mesmas, a tal ponto que, quando acaba a adolescência e são expelidas deste mercado, é comum sua subjetividade esvaziada cair em depressão. Assim, os protagonistas que Tunga elege para suas instaurações são aqueles que ficam fora do campo de visibilidade e aqueles que, ao contrário, ocupam toda a extensão do campo e que são eles mesmos pura imagem: os totalmente excluídos e os totalmente incluídos – duas formas de empobrecimento da vida enquanto potência criadora. Miséria material e social de uns; miséria espiritual e subjetiva de outros. O que acontece quando estas figuras tornam-se personagens de si mesmos no cenário da arte? Examinemos algumas instaurações de Tunga. Convidado pelo Instituto Itaú Cultural para propor uma obra na avenida Paulista, Tunga decide trabalhar com office boys, numa instauração que ele chamará de Cem Terra. Office boys transitam pela avenida durante todo o horário do expediente, pois são eles os mensageiros não-eletrônicos entre os escritórios de luxo das corporações que substituíram as mansões dos barões do café e a elegante avenida e outras áreas da cidade. No entanto, é como se não pertencessem à paisagem oficial, que se interpõe entre o olho e a realidade, como um filtro que impede de enxergálos e os transforma em “sem-terra”. Quando Tunga leva uma centena deles a ocupar um quarteirão inteiro da avenida, o que se instaura ali é uma terra que eles criam a seu modo, com a cultura de seus gestos, suas marmitas, as redes onde descansam seus corpos nordestinos, sua facilidade em montar barraca em qualquer lugar a qualquer hora, habituados que estão a nomadizar pela cidade. É a instauração deste mundo que se fará aqui obra de arte. O nada daquelas vidas supostamente inexistentes reanima-se, sai 5 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 co de ferramentas e materiais de construção de território. Os clonáveis, como é o caso das top-models, vivem na cena o movimento contrário àquele que os converte em clichês: a instauração parte exatamente de sua imagem clonada, no próprio meio em que é lançada ao mercado, o desfile de moda, mas para tentar liberar a vida que ficou ali aprisionada. Os não-clonáveis, sobras tornadas invisíveis, como office boys, sem-teto, presidiários e figurantes de classe D, saem dos bueiros da marginalidade e ganham a cena. Embaralham-se as cartas, redistribuem-se os sujeitos no campo de visão, desautoriza-se a cartografia oficial estabelecida pelo capital como princípio norteador. Neste contexto, pode-se problematizar a instauração Salitre + Enxofre + Carvão, que Tunga propôs para a parceria entre A Quietude da Terra II e o Projeto Axé. 7 O objetivo era criar um cotidiano de convívio entre um certo tipo de artistas, de diferentes origens, e garotos ex-habitantes das ruas de Salvador que, inseridos no Projeto Axé, tentam libertar-se do confinamento na marginalidade, tendo na arte uma de suas principais armas. A que vem esta curiosa iniciativa? É verdade que entre crianças e artistas há ressonâncias: ambos tendem a explorar o meio onde vivem, ensaiar conexões e desconexões, experimentar devires. É nessa lúdica irreverência que tomam corpo seus territórios de existência – brincadeira, num caso, obra, no outro –, subjetividades em elaboração, indissociáveis do meio. Criança e artista seriam, portanto, os modos de subjetivação que mais se distanciam da situação reinante de torpor do sensível e nivelamento da percepção e que mais se aproximam da anomalia. Entretanto, a realidade está longe disso: exatamente por sua anomalia, artistas e crianças interessam especialmente ao capitalismo renovado. Se o artista, como visto, é incontestavelmente atraente para a indústria da clonagem, na criança, o exercício da capacidade poética tende a ser inibido pela infantilização, produto das forças aliadas do familialismo, da pedagogização e do mercado que fazem dela um consumidor mirim. Ora, crianças que vivem ou viveram na rua talvez sejam as que mais escapem à infantilização, pois sua própria condição as obriga a explorar e cartografar os meios por onde circulam, de modo a improvisar territórios de existência. São pequenas comunidades autogeridas, que se formam e se dissolvem na velocidade de seu nomadismo forçado pelos imprevisíveis remansos da vida urbana. Mas atenção, seria certamente ingênuo idealizar essas crianças: confinado à cloaca da cidade, o exercício desta sua potência não desemboca em nada além da sobrevivência, isto quando bem-sucedido, o que já é muito em face do destino de morte violenta e prematura que ameaça aquelas existências sem-valia. É verdade que o equívoco mais recorrente em relação a essas crianças não é sua idealização, mas sua diabolização ou vitimização. Quando diabolizadas, o desejo é de eliminá-las do cenário, e o caso é de polícia ou de justiça; quando vitimizadas, o desejo é de salvá-las, e o caso fica então entre à psicologia, à pedagogia e à arte. É evidente a necessidade de serem criadas, para estas crianças, oportunidades de sair da marginalidade e, portanto, é incontestável o valor de iniciativas com esta pretensão, seja da psicologia, da pedagogia, da arte, ou de qualquer tipo de associação entre elas. O perigo é de, ao invés de reconhecerem o modo próprio de subjetivação daquelas crianças em sua positividade, para dele extrair uma potência em sua inserção, tais iniciativas as enxerguem como vítimas que deverão ser salvas através do modelo da criança infantilizada, que tentam projetar sobre elas. Quando isto prevalece, um efeito paradoxal pode resultar da generosidade que move esse tipo de prática: não encontrando ressonância, a força poética, especialmente viva naquelas existências, corre o risco de minguar. Neste caso, em vez de combatida, a inibição dessa força estará sendo reiterada, agora não mais pela exclusão social, mas pela domesticação, que pretende integrar essas crianças ao mundo dos clones infantis; no lugar de anômalos, lhes caberá então o destino de cidadãos normais, provavelmente com menos chances de “sucesso” – isto quando não caírem na categoria de anormais e em sua conseqüente patologização. Como criar meios para favorecer a inserção dessas crianças sem que elas percam sua preciosa anomalia? O que a arte tem a ver com isto? Estas e outras perguntas envolvem tal complexidade, que a única coisa que se pode pretender é pensá-las o mais precisamente possível, e experimentar estratégias que as problematizem o mais fortemente que se conseguir. A proposta de Tunga vai nesta direção: encontrar procedimentos que façam do encontro com aqueles garotos a ocasião, por mais fugaz e incerta, de driblar, na alma da criança que já viveu na rua, mas igualmente na alma do artista, a faceta perversa do sistema econômico vigente que tende a cercear sua potência criadora, excluindo um e clonando o outro. Para isso o artista terá que contar com a cumplicidade de uma sintonia efetiva com aquelas crianças. É na anomalia, comum aos dois, que ele irá encontrar esta cumplicidade; mais precisamente, na anomalia que busca afirmar-se enquanto tal sem ser clonada, nem mar- 6 DESPACHOS NO MUSEU: ginalizada. De fato, há provavelmente sintonia entre uma criança que já viveu na rua e está em luta contra sua marginalização, mas tentando através da arte não perder sua singularidade, e um artista que se associa ao sistema da arte que lhe oferece oportunidades de realização, mas não perde a força problematizadora de seu trabalho de criação, artista que resiste, portanto, à cafetinagem do sistema, sem cair no man’s land da marginalidade – sem dúvida, o caso de Tunga. De todo modo, há provavelmente mais sintonia entre este tipo de criança e este tipo de artista do que entre uma criança que já viveu na rua e a maioria das crianças infantilizadas que vivem em família. Do mesmo modo, há provavelmente mais sintonia entre este tipo de artista e este tipo de criança, do que entre ele e artistas que se submetem sem crítica a tal cafetinagem, e até a desejam, chegando inclusive a conduzir a criação para tornar-se seu objeto (Gil, 1998); ou entre este tipo de artista e aqueles que se mantêm fora da jogada, remanescentes tardios de um romantismo supostamente heróico. Atualizar esta sintonia virtual entre anômalos, para criar um campo de forças que os sustente, que lhes permita resistir à cafetinagem de sua força criadora e que libere devires nos dois campos, ainda que infinitesimais, é o desafio que Tunga parece propor-se a enfrentar. O quanto isso será possível não dá para prever. Efeitos deste tipo dependem de uma trama complexa e sutil de fatores; não há como planejá-los; eles acontecem ou não. Tunga apostará todas suas fichas na potência do ritmo na cultura baiana, que ele pretende convocar em sua instauração Salitre + Enxofre + Carvão. Este ritmo é uma importante força no processo de subjetivação dos baianos que, por sua exuberância, tornou-se de uns anos para cá a menina dos olhos da indústria fonográfica, a qual extrai daí matéria-prima para a fabricação de um de seus mais rentáveis produtos, seguindo a lógica do capitalismo contemporâneo anteriormente mencionada. Em sua ambigüidade imanente, esta estratégia tem ampliado espantosamente as oportunidades para os músicos baianos; mas, por outro lado, a tendência é o ritmo ser clonado e destituído de sua vitalidade, para ser devolvido ao mercado como um conjunto limitado de trejeitos estereotipados, mímica empobrecida que forma a identidade prêt-à-porter “estilo baiano”: carcaça de um corpo reduzido a clichês de sexualidade, que perdeu o erotismo e a potência poética de sonhar mundos. A vertente perversa se completa com o consumo deste produto pelo próprio baiano de quem se extraiu a seiva para produzi-lo. O “baiano” que vem conquistando seu lugar no mercado multicultural do Brasil e SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER... do mundo globalizado tende a ser, em muitos casos, esta imitação servil de seu clone. “Axé music” é o nome de um dos produtos desta vampirização do “axé” – palavra de origem iorubá que designa a energia sagrada dos orixás, poder vital presente em todos os seres e todas as coisas, força criadora, e que neste sentido mais amplo foi incorporada à língua brasileira. A indústria fonográfica, em seu vetor perverso, tem o cínico requinte de usar o próprio nome da força que parasitou – o axé –, para batizar seu clone estéril que ela fabrica e comercializa. Porém, o ritmo naquela cultura é um manancial tão rico que, apesar do sucesso desta maquinação sinistra, seu axé não se esgota, sua força de existencialização mantém-se viva, a criação não pára. A instauração terá início com os garotos reunidos numa área lateral da exposição, como numa concentração de escola, formando um grupo compacto e fazendo uma certa algazarra. Com um aceno de Tunga, a arruaça se generalizará sob a forma de um bloco que desfilará arrastando e rolando os tambores pelo chão, armando uma verdadeira hecatombe musical. Aos poucos, cada um irá se desgarrando do grupo, sozinho ou em par, com a tarefa de encontrar seu lugar naquele espaço. Uma vez instalado, irá descobrir as substâncias e utensílios domésticos que Tunga colocou a seu dispor.8 Com curiosidade investigativa, deverá então improvisar um uso musical daqueles apetrechos, com a única ressalva de evitar qualquer referência conhecida. Tunga fará do museu o espaço de um ritual, que oficiará a abertura da exposição, transformando o museu num híbrido de arte e terreiro. Ao pedir aos garotos que busquem um a um seu lugar naquele espaço, é o traçado de seus corpos que demarcará ritualmente os territórios, criando uma nova paisagem na geografia tanto do museu quanto de suas existências. Ao pedir em seguida, que uma vez instalados, pesquisem os utensílios de seu cotidiano e façam com eles um som desconhecido, também os objetos estarão adquirindo uma função ritualística. O tambor é o objeto emblemático por excelência do tráfico do ritmo efetuado pela indústria fonográfica, a qual o faz transitar de instrumento ritualístico e criador, para matriz de clonagem e sua mimese. Não por acaso, aqui é exatamente o tambor que será o agente do caminho de volta, ou mais precisamente do caminho de ida, agente da resistência. Com os tambores se arrastando e rolando pelo chão, produzindo aquela balbúrdia sonora e, depois, no encontro dos tambores com os utensílios domésticos transformados em instrumentos improvisados, gerando aquele som 7 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 estranho, um quebra-quebra ou arrastão sonoros se anunciarão eventualmente na memória. Porém, na verdade, se algo estará se quebrando, por um breve momento, é o invisível jogo de cartas marcadas da relação entre o museu e seu fora, levando de roldão a marginalização daqueles meninos, a clonagem de seu ritmo e da força do artista. Por um breve momento, talvez se quebre a tendência de mimetizar o clone de si mesmo que uma cena como esta, de grande visibilidade e prestígio, poderia estar mobilizando no artista, como nos garotos; e, ao invés disso, se reative, no artista, a potência crítica da arte e, nos garotos, a potência do ritmo como agente de construção de território. Um quebra-quebra invisível, macumba para os novos tempos. O caráter ritual das instaurações de Tunga situa-se no rastro do caminho aberto na arte por Lygia Clark, para quem o artista contemporâneo é o propositor de “um rito sem mito”. De fato não haverá aqui nem rito, nem mito, estabelecidos a priori. O ritual será comandado pela realidade sensível daqueles garotos, convocada em sua alma e encarnada em seus gestos, na ginga refinada de seus corpos e em seu modo de explorar os objetos conhecidos naquele universo desconhecido, tateando o estranhamento que esta ambigüidade mobiliza. O mito se engendrará do próprio ritual, mapa imanente da singularidade daquelas vidas. É esta liberdade de cartografar, driblando a clonagem de suas cartografias, que estará se inscrevendo em sua alma, como um mito apropriado para o contemporâneo, na contracorrente da eternidade de mitos absolutizados do passado, mas também do valor genérico dos mitos descartáveis do presente. Terminada a instauração, espera-se que o acontecimento não se pacifique e que sua memória permaneça vibrando durante todo o tempo da exposição, nos objetos que compõem a instalação: restos do ritual que se deu naquele recinto, como ficam restos de despachos na natureza ou em encruzilhadas das cidades, esperando que o recado chegue aos Orixás. Contaminada pelo meio onde se produziu desta vez, a obra de arte revela-se como despacho, portadora de um poder mágico de interferência energética no ambiente, para nele combater as forças reativas e liberar a criação. Interferência imperceptível, mas efetiva. E, como todo despacho, fica na obra gravada a memória desta experiência: a afirmação da força político-poética na prática artística e a afirmação da força do ritmo de criança não infantilizada na subjetividade daqueles meninos – memória de uma linha de desterritorialização que os arrastou ambos, o que só foi possível por se tratar de um encontro entre as forças da anomalia em cada um deles, e assim mesmo por um breve instante. Não dá para saber se esta memória estará reverberando naqueles objetos, se os Orixás a terão ouvido e abençoado, nem por quanto tempo permanecerá no ar depois que a instalação tiver sido desmontada. “Não há ato de criação que não pegue a revés, ou não passe por uma linha liberada”, escrevem Deleuze e Guattari (1997). Promover algo que se pareça “com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se” (Nietzsche apud Deleuze e Guattari, 1997:363), ainda que fugazmente, é o que Tunga deseja com seus despachos nos museus. E, mesmo assim, como ele próprio prudentemente adverte, “sabe-se lá o que vai acontecer...”. NOTAS E-mail da autora: [email protected] Conferência apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts and Crafts (São Francisco, 2000). 1. Distinção proposta por Canguilhem (s.d.:81-82), e retomada por Deleuze e Guattari (1997). 2. Antonio Mourão, conhecido por Tunga, que nasceu em Palmares-PE, em 1952, é um artista reconhecido não só no país, mas com trabalhos que circulam no cenário internacional. “Instauração” é o nome dado por Tunga para uma estratégia recorrente em seu trabalho, consiste em incorporar à obra pessoas estranhas ao mundo da arte, protagonistas de uma espécie de performance, seguindo um ritual com objetos e materiais sugeridos pelo artista; restos da performance compõem uma instalação que permanece exposta. O conjunto formado pela performance + processo + instalação “instaura” um mundo. 3. Já em Camera Incantate (Palazzo Reale, Milão, 1980), obra em que Tunga trabalha com vários tipos de luz, o artista incorpora a performance de dois albinos e dois negros, o claro e o escuro. O albino fica dizendo que veio fazer uma “instalação” elétrica e que esse negócio de arte não lhe interessa. Depois desta primeira experiência, virão instaurações que se repetirão em diversos contextos, diferenciando-se a cada vez, formando séries, como acontece com suas instalações. São elas: Xifópagas Capilares (três vezes, em 1985, e três vezes, em 1989); Sero te Amavi (três vezes, em 1992 e uma, em 1995); Caro Amigo (1996); Passeio de Vanguarda em Veneza ou Debaixo do meu Chapéu (abertura da Bienal de Veneza, 1995 e retorna incorporada à Inside Out, Upside Down, abertura da X Documenta, Kassel, 1997). As séries de instaurações são sempre intercaladas com séries de desenhos, esculturas, ou instalações sem performance. Além disso os vários tipos de séries se compõem entre si, resultando em outras tantas obras. Por exemplo: Xifópagas Capilares com a instalação Lagarte/Lizart/Lesarte (Congresso de Psicanálise, Rio de Janeiro,1985). 4. Com Espasmos Aspiratórios Ansiosos (AIS ou Anxious Inhaled Startles; Rio de Janeiro, MAM, 1996); Experiência de Física Sutil (An Experiment on Keen and Subtle Physics) ou Avant-Garde Walk in Soho (Nova York, 1996), que retorna com outro nome em 1996 e novamente em 1997, incorporada à Inside Out, Upside Down. 5. É o caso das instaurações: Cem Terra, São Paulo, 1997, que volta no Reina Sofia, Madrid, 2001; Tereza, entrega do prêmio Johnny Walker, Museu de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1998, que retorna no mesmo ano na galeria Cristopher Grime, Los Angeles, em 1999, no Centro Cultural Ricoleta, Buenos Aires, e em 2000, na Bienal da Coréia e na Bienal de Lyon; e, por último, a proposta para The Quiet in the Land II, Salvador, 2000, aqui privilegiada. 6. A esse respeito, são significativas as anedotas em torno de Tereza. Quando a instauração foi feita pela primeira vez, com figurantes recrutados no Rio de Janeiro, muitos deles já haviam passado por registro policial, talvez a maioria deles fosse composta de ex-presidiários. Quando Tunga lhes ensinou como fazer uma 8 DESPACHOS NO MUSEU: tereza, foi motivo de gargalhada geral. Na terceira vez que a instauração foi feita, em Buenos Aires, os protagonistas foram sem-teto recrutados nas ruas por um grupo de jovens anarquo-surrealistas. A notícia de uma vaga de emprego, tão rara para aquela população, espalhou-se muito rapidamente pela cidade, provocando uma fila enorme de candidatos no dia da seleção. SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER... em barracas de feira, lamparinas, fiofós, agulhas e fios. Acrescentará, ainda, objetos de algodão – rolos e cotonetes –, mas também limpadores de copo e garrafa, coadores de café, etc. E mais outros tantos apetrechos: luvas de borracha de operário, rabinhos de coelho, etc. Entre as substâncias, ceras, farinhas e ingredientes do gênero, e três bacias contendo salitre, enxofre e carvão, respectivamente. 7. A Quietude da Terra II é um projeto criado por France Morin (fundadora da revista de arte canadense Parachute e ex-curadora do New Museum of Contemporary Art de Nova York). A curadora convidou 17 artistas contemporâneos de diferentes países, para que cada um desenvolvesse, durante um mês e meio, um projeto com grupos de crianças que já viveram nas ruas de Salvador. O conjunto dos trabalhos teve sete meses de duração, entre 1999 e 2000. Uma exposição com as obras resultantes dos 17 projetos foi organizada no MAM da Bahia, em julho de 2000, acompanhada de um livro/catálogo bilíngüe. O acesso às crianças se deu através de uma parceria com o Projeto Axé, instituição baiana que há vários anos vem desenvolvendo um trabalho pedagógico e artístico com meninos que vivem na rua. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANGUILHEM, G. Le normal et le Pathologiqe. s.l., PUF, s.d. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. “Percepto, afecto e conceito”. O que é a filosofia? São Paulo, Ed. 34, 1992 (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz). _________ . “1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível…”. Mil Platôs. São Paulo, Ed. 34, v.4, 1997 (Tradução Suely Rolnik). 8. Entre os objetos, Tunga privilegia os de folha de flandres, utensílios artesanais que imitam aqueles de alumínio fabricados industrialmente e recriam, à sua maneira no dia-a-dia das casas mais humildes, um certo cenário das casas abastadas – funis, raladores, assadeiras, batedores de clara, pás de pegar farinha ou açúcar GIL, J. “A confusão como conceito”. Os anos 80. Lisboa, Culturgest, 1998. ROLNIK, S. “Toxicômanos de identidade”. Conferência na X Documenta. Kassel, 1997. 9 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA JOSÉ MARIO ORTIZ RAMOS Professor do Departamento de Sociologia do IFCH da Unicamp MARIA LUCIA BUENO Professora do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi Resumo: Tendo como fio condutor a cultura audiovisual e as artes plásticas contemporâneas, procurou-se enfocar a reorganização da produção cultural no cenário globalizado, considerando particularmente a participação de dois fatores: as políticas culturais e as pesquisas acadêmicas. Palavras-chave: cultura e globalização; cinema e televisão; arte contemporânea. de mais de 16 bilhões de francos. 1 Ultimamente, se em países onde este mercado já está consolidado – como os Estados Unidos ou mesmo a França – alguns setores começam a colocar em questão o grande afluxo de capitais consumido pelo setor, trata-se de uma outra questão. Para a reflexão neste artigo, o que importa reter é que, de diferentes formas, com maior ou menor participação, o Estado aparece como parceiro na organização do campo da economia da cultura no contexto globalizado. Foi nos Estados Unidos, na década de 30, durante a depressão econômica, que ocorreu o primeiro surto de expansão da cultura e das artes, particularmente da indústria cultural, que, apesar de ser um fenômeno norte-americano, adquiriu proporções internacionais. Em menor escala a questão entrou também para a pauta dos projetos do Estado e do mercado de parte dos países do mundo ocidental. A explosão da indústria cinematográfica em Hollywood e a emergência dos museus de arte moderna em Nova York e nas principais cidades dos Estados Unidos estão entre as expressões mais significativas deste processo no cenário norte-americano. No pós-guerra, principalmente depois dos anos 60, esse processo de expansão da cultura acentuou-se, levando inclusive a uma redefinição do papel da produção cultural na sociedade contemporânea, como também a uma reorganização das formas de gestão e organização dos domínios da cultura. Na base dessas transformações, pode- o final do século XX, a produção cultural transformou-se num dos principais domínios da economia mundializada, sem que este fenômeno tenha derivado um estado de degradação cultural generalizada, conforme os prognósticos mais pessimistas de Theodor Adorno. Porém, o processo de consolidação da cultura em setor econômico, após os anos 60, só veio a ser um empreendimento bem-sucedido, nos países ricos, graças à atuação conjunta do mercado com o Estado (Pommerehne e Frey, 1993). A gestão cultural do Estado na sociedade contemporânea ocorre de forma diversa dos momentos históricos anteriores, quando assumia um caráter intervencionista, procurando orientar e conduzir a organização da produção. Atualmente sua ação se mantém restrita ao papel de parceiro da cultura, fornecendo subsídios e suporte, sem interferir diretamente sobre os conteúdos. A consolidação da cultura como um campo econômico foi um trabalho que envolveu políticas culturais, alterações nas legislações, criação de novos mecanismos fiscais e, sobretudo, aplicação de um volume de capitais considerável. Um caso exemplar é o da evolução do orçamento do Ministério da Cultura francês desde a gestão de Andre Malraux em 1968, quando girava em torno de 0,38% do PIB, até a atual, de Catherine Tasca, que em 2001 atingiu a cifra de 0,98%, representando a mais alta dotação para a cultura da história do país, envolvendo um capital N 10 CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA se mencionar o peso considerável de pelo menos dois fatores. O desenvolvimento do que Armand Mattelart (1994) designa sistema de comunicação mundo construiu uma nova base material, a partir da qual a vida, em diferentes partes do planeta, passa a evoluir num movimento de conexão crescente, desempenhando um papel determinante na ampliação da esfera da cultura. Aliado a esse fenômeno, no âmbito da cultura contemporânea, houve uma multiplicação dos campos de produção em diferentes regiões do planeta, que redundou na desterritorialização da indústria cultural. Aquilo que até então era um fenômeno norte-americano com expressão internacional assumiu uma diversidade de configurações, que começaram a entrar em confluências e a se entrelaçar, com o desenvolvimento do sistema de comunicação, formando os fluxos que constituem o espaço cultural globalizado em que vivemos. O sistema de fluxos impõe uma dinâmica nova à realidade contemporânea e, através dele, os componentes se misturam aleatoriamente numa seqüência sem princípio e nem fim, que está em constante transformação. Alguns conteúdos adquirem mais visibilidade – seja por estarem ligados a tradições fortes, seja por contarem com um respaldo sólido da mídia, como é o caso das produções cinematográficas hollywoodianas que combinam as duas condições. Em decorrência da influência desses dois fatores – o desenvolvimento do sistema de comunicação mundo e a desterritorialização da indústria cultural – tem-se uma expansão sem precedentes do universo da cultura, que termina transformando o setor numa das principais economias da sociedade globalizada. Essa mudança quantitativa implicou outras transformações de caráter qualitativo, trazendo redefinições ao papel da cultura num contexto social que se globaliza marcado por um crescimento acelerado da população do mundo. Uma das mudanças qualitativas, relacionada com a questão da recepção, diz respeito ao fato de a arte e a cultura, após a década de 60, terem se transformado de simples reduto de lazer numa das principais esferas de construção de identidade. Andreas Huyssen (1997:247) observa que, “sobretudo nas culturas ou subculturas juvenis, as identidades se adotam provisoriamente e se articulam mediante pautas de vida e complicados códigos subculturais. A atividade cultural em geral não é mais encarada como algo que ofereça descanso e compensação (..) O crescimento e a proliferação da atividade cultural são melhor interpretados como um agente da modernização, representante de uma nova etapa da sociedade de consumo.” Outra mudança referente à esfera da produção cultural está intimamente relacionada com os redirecionamentos da função da cultura no âmbito da recepção. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a produção cultural e artística não pode mais ser encarada apenas do ponto de vista do entretenimento ou do prazer estético. A partir de então, fica patente uma das principais vocações da cultura e da arte moderna desde o final do século XIX, que é a de se tornarem espaços que trazem à tona problemáticas importantes do mundo contemporâneo, que podem ser tanto de ordem local como universal, discorrendo sobre temáticas muito variadas que abarcam tanto a esfera pública quanto o domínio da intimidade. No final dos anos 70, teve início uma nova revolução no domínio da indústria cultural, desta vez no âmbito da tecnologia. Um novo aparato tecnológico, até então de difícil manipulação e de alto custo, tornou-se acessível ao uso doméstico, introduzindo transformações nas relações das pessoas com o universo audiovisual. Esse fenômeno é responsável por uma nova reorientação no mundo da cultura. Os aparelhos mais econômicos e de fácil manipulação transformam todo receptor num produtor virtual. Com isso, tem-se uma nova forma de desterritorialização da produção audiovisual: para além das fronteiras dos grandes estúdios e das grandes gravadoras. Nos anos 80 e 90, houve uma ampliação considerável do número de produtores que conseguiram entrar no mercado utilizando a tecnologia doméstica. O campo das artes plásticas também foi afetado, com os artistas incorporando em suas produções os recursos audiovisuais, modificando o próprio universo material do artista plástico. Outra mudança mais radical, ainda associada à tecnologia, diz respeito ao próprio processo de recepção, que passou por grandes transformações com o uso corrente de aparelhos como o videocassete, as câmeras de vídeo e, mais recentemente, os microcomputadores. Manuel Castells (2000) observa que, a partir de então, a audiência deixou de ser objeto passivo para se tornar sujeito interativo. As pessoas “começaram a filmar seus eventos, de férias a comemorações familiares, assim produzindo as próprias imagens, além do álbum fotográfico. Apesar de todos os limites dessa autoprodução de imagens, tal prática realmente modificou o fluxo de mão única das imagens e reintegrou a experiência de vida e a tela” (Castells, 2000:363). Conseqüentemente, houve uma complexificação do fluxo e uma intensificação da segmentação da recepção no domínio da cultura de massa. Seria o que Nestor Garcia Canclini (1997:304) designa como 11 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 descolecionamento: “As culturas já não se agrupam mais em grupos fixos e estáveis (...) Agora as coleções renovam sua composição e sua hierarquia com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer sua própria coleção. As tecnologias de reprodução permitem a cada um montar em sua casa um repertório de discos e fitas que combinam o culto com o popular, incluindo aqueles que já fazem isso na estrutura das obras.” Com a globalização, as imagens e os conteúdos culturais passam a circular e interagir em escala planetária, transformando o espaço da cultura de massa (compreendida como ampliação do público) e da indústria cultural num domínio da diversidade e da heterogeneidade, mesmo que elas ainda dependam de formatos e padrões para serem veiculadas. No entanto, estes padrões vêm se revelado cada vez mais flexíveis, com um grande potencial para incorporar as inovações. A partir de então verificou-se – nos países ricos – um aumento da atuação do Estado na área, fomentando o crescimento do setor cultural, sem deixá-lo inteiramente ao sabor do mercado em globalização, procurando fornecer respaldo aos núcleos de produção nacionais. Esta atuação do Estado, na maior parte dos países onde se concretizou, viabilizou-se embasada em extensas pesquisas no setor, que levaram a uma expansão da sociologia da cultura, da comunicação, das artes e, posteriormente, dos estudos econômicos aplicados a esses domínios. O aumento deste campo de estudos nas últimas décadas se deu em decorrência de dois fatores. O primeiro está ligado à ampliação do público, do mercado de bens simbólicos e da importância do setor na sociedade, que o transformou em alvo privilegiado dos pesquisadores. Este crescimento sem precedentes da área levou, como já mencionado, a uma reorganização do mundo da cultura e das artes, implicando também redefinições das formas de gestão pública e privada nesse domínio. Os novos desafios derivados das mudanças, que abarcam desde a ampliação e a segmentação do público, até a redefinição das fronteiras tradicionais – entre o alto e o baixo – que haviam configurado este universo, geraram uma série de pesquisas acadêmicas formuladas a partir de demandas específicas do setor, que se transformaram em base de informação para as estratégias de atuação nesse campo. O fenômeno acarretou duas transformações fundamentais. Através das políticas estatais, houve um crescimento da participação dos intelectuais no desenvolvimento do campo cultural, exemplificando bem o que Anthony Giddens (1990) designa como o papel reflexivo de ciências, tais como a sociologia e a economia, na constituição da sociedade contemporânea. A segunda transformação importante foi a reestruturação, a partir de então, do debate intelectual em torno da questão da cultura e da comunicação. Até os anos 60 e 70, o campo intelectual, na sua maior parte, atuava com uma autonomia considerável, se contrapondo ao campo empírico das pesquisas de mercado. Nesse universo, disciplinas ligadas à estética e à semiologia tendiam a dar o tom nos estudos. Com a ampliação das pesquisas acadêmicas geradas pelas demandas governamentais e privadas, desenvolveu-se uma nova área, fundada na sociologia, na história e, posteriormente, na economia, que tem como principal objetivo mapear os campos de produção e recepção, procurando identificar a dinâmica de seu funcionamento, apoiando-se em extensas pesquisas empíricas. A propósito, Bernard Miége (1999:37) observa: “Na França as pesquisas em comunicação se orientaram desde cedo para o estudo das indústrias da cultura e da informação dentro de perspectivas que misturam as aproximações econômicas e sociopolíticas, mesmo as geopolíticas, com a preocupação, apesar das diferenças entre os autores, de ultrapassar visões muito unilaterais como as da Escola de Frankfurt ou as análises do Imperialismo cultural.” Focando o caso francês, observa-se que, a partir dos anos 70, houve uma multiplicação de institutos de pesquisa e instituições de fomento à produção cultural operando em estreita cooperação com o Estado (Pineau, 1999; Moulin, 1992; Domínguez e Morató, 1991). Um exemplo é a constituição de um organismo como o La Documentation Française, que centraliza as pesquisas governamentais, contemplando uma gama ampla de setores (cultura, saúde, política internacional, etc.) e congregando, no interior de cada área, diferentes núcleos de pesquisa. O curso destas pesquisas vem se desenvolvendo em consonância com as direções imprimidas às políticas culturais. No decorrer dos anos 70 e 80, por exemplo, as pesquisas no setor cultural de um modo geral contemplaram prioritariamente aspectos relacionados à produção e à criação. Na década de 90, houve um crescimento das pesquisas de recepção. Esta mudança de rumo está associada a uma alteração de orientação das políticas culturais, relacionada com a segmentação do público. Se até a gestão de Jack Lang, no governo François Mitterrand, elas se concentravam no âmbito da criação cultural, atualmente a tendência é de, cada vez mais, canalizar os esforços para atrair 12 CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA No livro Cinema, Estado e lutas culturais, anos 50/ 60/70 (Ortiz Ramos, 1983), é enfocado o início desse processo no Brasil, com a criação da Embrafilme, no final dos anos 60, e seu desenvolvimento pleno na década de 70. O cinema brasileiro chegou a produzir 100 filmes em 1978 e ficou na faixa de 80 a 100 filmes nos anos 80, indo à bancarrota com a chegada de Collor à Presidência do país, que praticamente extinguiu o aparato de fomento estatal. Na França, até hoje o Estado mantém apoio ao cinema, que vem conseguindo, durante toda a década de 90, ocupar cerca de 30% a 40% do mercado, enfrentando seu principal opositor que é, obviamente, os Estados Unidos (Documentation Française, 1998). Na Europa presenciou-se – desde 1995, mas com mais intensidade a partir de 1997 – uma verdadeira revolução no campo da produção cinematográfica, através das televisões privadas, na tentativa de fazer frente às produtoras norte-americanas, transformando-se nas principais agentes do cinema europeu contemporâneo. Itália, França, Alemanha, Espanha e Reino Unido – nesta ordem – são os pólos cinematográficos mais beneficiados por essa ação. A parceria entre cinema e televisão na Europa não é nova. Ela surgiu na década de 70, por uma determinação das políticas culturais nacionais, visando a proteção das indústrias cinematográficas locais. No entanto, foi apenas nas últimas duas décadas, através das cadeias privadas, numa política de consolidação da indústria audiovisual européia, que essa relação veio assumir grandes proporções, transformando a televisão numa parceira fundamental do cinema. O canal + ( Plus) francês aparece como o mais importante agente desse processo, tendo sido responsável pela realização de 108 produções cinematográficas, em 1997, e 111, em 1998 (Le Monde, junho de 1999). Embora o parque cinematográfico europeu fique com a maior fatia dos investimentos, a atuação do canal + é mais desterritorializada, sendo que algumas produções brasileiras já vêm se beneficiando com ela. Um exemplo é o filme dirigido por Walter Salles, “O primeiro dia”, que foi uma produção da televisão francesa. Paralelamente, o Estado francês, ancorado em instituições como o CNC (Centre National de la Cinematographie), o INA (Institut National de l’Audiovisuel) e o CSA ( Conseil Supérieur de L’Audiovisuel), que atuam simultaneamente como núcleos de pesquisa e agências de fomento à produção, vem desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da indústria cinematográfica francesa. Boa parte dessa nova geração de pesquisadores pode contar com recursos vultosos que lhes possibilitaram a diferentes segmentos do público, concentrando uma parte substantiva dos recursos na construção da recepção (Telerama, 2000b). A seguir, a abordagem enfoca o tema a partir de dois domínios específicos: a cultura audiovisual e a arte contemporânea, sendo que em ambos continua-se a privilegiar o contexto francês. CULTURA AUDIOVISUAL A produção audiovisual – o cinema e, particularmente, a televisão – é um caso exemplar e se constitui num dos setores mais sólidos da economia da cultura. Com relação ao cinema, a sua expansão começou nos anos 30 nos Estados Unidos, durante a recessão provocada pela queda da bolsa em 1929. No final da década, a indústria cinematográfica já havia se transformado na 14a dos Estados Unidos em volume e na 11a em patrimônio, sendo que na ocasião existiam mais cinemas (15.115) do que bancos no país (14.952). Inicialmente o boom da indústria cinematográfica foi um fenômeno identificado com os grandes estúdios de Hollywood. Após o final da Segunda Guerra Mundial, emergiram novos pólos cinematógráficos, em diferentes países, que, apesar de apoiados em bases indústriais pouco sólidas, conseguiram um impacto cultural muito forte, vindo a redirecionar não apenas os caminhos da produção e da linguagem cinematográficas, mas também o papel do cinema enquanto produção cultural no mundo contemporâneo. Podem ser citados como exemplares o cinema neo-realista italiano, logo após a guerra, a nouvelle vague francesa e o cinema novo no Brasil. A maior parte dos governos não ficou insensível ao potencial cultural explosivo desses produtores emergentes, dando-se conta também que um movimento apoiado em bases culturais tão frágeis não teria condições de ir adiante sem o respaldo de subsídios do Estado. Paralelamente, ocorreu um outro fenômeno, que foi a expansão da indústria televisiva, com o preço dos aparelhos domésticos tornando-se cada dia mais acessível, configurando-se no novo campo audiovisual como uma ameaça à indústria cinematográfica. Na França, desde o início da década de 70, o Estado passou a intervir gradativamente no setor. Depois dos anos 80, com a expansão das televisões comerciais francesas, multiplicaram-se os núcleos de pesquisa em torno da questão, que passaram a se constituir numa das bases da construção de um projeto de políticas públicas na área. 13 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 produção de trabalhos que revolucionaram o campo de estudos da cultura, porém, procurando sempre preservar com relação à abordagem um enfoque crítico. Armand Mattelart (1999:20-2) enfatiza que o objetivo de realizar um balanço crítico atravessa todos os projetos na área do audiovisual, sendo que a produção do Ministério da Pesquisa e da Tecnologia – envolvendo pesquisadores do CNRS, das Universidades e do INA – é reveladora dessa preocupação. Nessa geração desponta, entre os pioneiros e como inovador, Michel de Certeau (1980), que, através de seu trabalho tematizando as “artes de fazer”, redimensionou os estudos sobre recepção, retirando-os do impasse construído pelas teorias funcionalistas. Richard Hoggart (1975), um dos fundadores dos Cultural Studies, também é figura fundamental na concretização desses estudos, com a obra precursora As utilizações da cultura, cuja primeira edição é de 1957. Contudo, Armand Mattelart observa que o “enfoque precoce sobre os receptores nas análises de Hoggart não impedem que suas hipóteses permaneçam profundamente marcadas pela desconfiança face à industrialização da cultura. A própria idéia de resistência das classes populares que sustenta a aproximação das práticas culturais das mesmas está ancorada nesta crença.” (Mattelart e Neveu, 1996:17). Ainda em relação às indústrias culturais, não pode deixar de apontar que elas já atraíram a atenção até mesmo de um sociólogo do porte de Pierre Boudieu. Em 1974 Bourdieu enfocou as empresas de jornalismo em um artigo na revista Actes de la recherche en sciences sociales. Posteriormente publicou um pequeno livro, já traduzido para o português em 1997, com o título Sobre a televisão (Bourdieu, 1997). Pode-se citar, na discussão sobre “informação e comunicação”, a recente entrevista de Armand Mattelart (2001) –professor de l’Université Paris VIII –, na qual menciona uma “outra” sociedade de informação, que poderia beneficiar uma maioria. Aqui, concentra-se a abordagem na França, onde essa relação entre Estado, mercado e pesquisa acadêmica é muito forte, dando origem a esse modelo de organização que fortaleceu a indústria cultural francesa e a vem tornando competitiva no contexto globalizado. O objetivo da pesquisa realizada no espaço francês foi elaborar uma análise que estabelecesse um contraponto com a história e a organização do contexto brasileiro. No entanto, é inevitável, e impossível, qualquer abordagem da indústria audiovisual no segundo milênio sem se referir à produção norte-americana, que ainda permanece como uma referência forte no espaço globalizado, com a qual as demais produções têm necessariamente que se defrontar. ARTE CONTEMPORÂNEA No caso da arte contemporânea, presenciou-se, no pósguerra, um fenômeno análogo ao que ocorreu no cinema e em outras esferas culturais, com uma multiplicação de campos de produção fortes em vários países do mundo. A Arte Povera italiana e o neoconcretismo no Brasil são alguns produtos desse movimento, que no domínio da arte contemporânea têm um caráter complicador, em virtude da repercussão extremamente restrita dessas produções. Nos países ricos os setores público e o privado se deram conta, desde os anos 60, que, sem o suporte de uma política cultural muito bem articulada, este campo de produção não teria condições de sobreviver. Antes de se avançar nesta análise, é necessário definir o que se compreende por arte contemporânea. Muito mais do que um critério de periodização, o termo é utilizado para identificar um segmento específico da produção artística atual. Nem toda arte produzida hoje pode ser classificada como contemporânea. A designação é atribuída à produção de artes plásticas que começou a se desenvolver depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se visível a partir da década de 60. Assumindo configurações muito diferenciadas, que culminam em repertórios teóricos e materiais muito distintos, tende sempre a estabelecer uma conexão estreita com a tradição artística ocidental. Isto não significa que a arte contemporânea seja um produto ou uma evolução da história da arte. É certamente informada por ela. Porém, a história da arte, neste caso, é antes de tudo um canal através do qual um grupo de artistas estabelece conexão com um mundo da arte específico e com o qual desejam ver os seus trabalhos identificados. Para Nathalie Heinich (1998a), trata-se de um gênero da arte atual – como foram, em outras épocas, a pintura histórica e a pintura de paisagens – e, da mesma forma que todo gênero, tem como principal finalidade organizar a produção no mercado. O mundo da arte contemporânea é um espaço internacionalizado, gerido pelas redes de galerias e de instituições, em que a participação das instituições nos últimos anos vem se revelando cada vez mais preponderante. A partir da década de 80, as fronteiras deste espaço têm se mostrado cada vez mais fluídas, sendo que o número de produções que circulam em seu interior está se ampliando consideravelmente (Zolberg e Cherbo, 1997). 14 CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA A base do circuito contemporâneo surgiu no início do século XX, a partir da arte moderna. Na passagem de uma produção para outra, registrou-se uma mudança na dinâmica de operação do universo. O campo da arte moderna organizava-se como uma esfera de bens restritos, de fronteiras muito delimitadas, em que predominava uma cultura de iniciados (Bourdieu, 1996), pontuada por um mercado de elite que girava em torno dos colecionadores particulares (Moulin, 1967). O pós-guerra assinalou uma ampliação considerável do mundo das artes plásticas em escala internacional, que está vinculado ao desenvolvimento de um sistema de comunicação mundo, passando a se converter num eficiente veículo de divulgação da produção cultural de um modo geral. A expansão da cultura nos anos 60 está relacionada com esse processo. Neste novo contexto, as artes plásticas se consolidam, operando a partir de um novo regimento: o da comunicação, muito diferente do sistema de consumo restrito da arte moderna, no qual “a realidade da arte contemporânea constrói-se fora das qualidades próprias da obra, na imagem que ela suscita nos circuitos de comunicação” (Cauquelin, s.d.). A partir de então, assinalam-se duas transformações importantes nesse domínio. Primeiramente, neste novo modo de operação, a cultura de exposição vem se afirmando cada vez mais como a principal vocação da arte contemporânea. No contexto atual, o mercado privado de colecionadores passa adquirir um caráter secundário, à medida que a produção contemporânea, obedecendo a mesma lógica presente nos cinemas e nas salas de concerto, torna-se objeto de um consumo puramente simbólico, com o espectador pagando um ingresso para ver a exposição, mas sem deter a propriedade privada das obras. Em seguida, e em conseqüência desta transformação, na proporção em que a globalização se consolida, as artes plásticas passam a operar na esfera da indústria cultural (Huyssen, 1997). As mostras de artes plásticas, a partir da década de 80, convertem-se, cada vez mais, em acontecimentos midiáticos, envolvendo o trabalho de muitos profissionais e tendo como objetivo o grande público (Selbach, 2000). Atualmente, por exemplo, o custo de uma grande exposição é equivalente ao de uma produção cinematográfica de porte, sendo que o público e as receitas obtidas nas duas categorias de eventos também se equiparam (Bueno, 1999). No entanto, arte moderna e arte contemporânea são ambas produtos do ciclo da modernidade que se inicia no século XIX e apresentam alguns traços característicos em comum: estão constantemente transgredindo os critérios artísticos estabelecidos, uma vez que elas não se pautam mais pelas normas da história da arte (Belting, 1987) e sempre foram objetos de rejeição sistemática pelo público (Heinich, 1998b). Se, no mundo da arte moderna, a sua impopularidade se constituía como um valor – reforçando o caráter elitista de seu campo –, no contexto da arte contemporânea ela se converteu num obstáculo (Bueno, 1999). Este problema é superado com a criação de um sistema de mediação que ajuda a decifrar o segredo, colocando a produção ao alcance do público. Nathalie Heinich (1998a) considera que este é o triplo jogo que marca o modus operandi da arte contemporânea: a transgressão das fronteiras da arte pelos artistas; as reações negativas do público; e a integração da produção a partir da intermediação de instituições e especialistas. Este triplo jogo é um dos componentes responsáveis pelas constantes redefinições no conceito de arte corrente e também pelo movimento de ampliação dos domínios do mundo da arte. Tendo em vista que a circulação da arte contemporânea só se concretiza a partir do desvendamento da produção para o público, a construção da recepção passou a ser um elemento fundamental na organização de seu universo. Na esfera restrita do mercado de arte moderna, o marchand e o crítico realizavam essa operação junto aos diretores de museus e colecionadores. No contexto atual, com as instituições artísticas funcionando como ramos da indústria cultural, voltadas para um público ampliado, este empreendimento revelou-se não apenas mais custoso, como também mais complexo. Na sociedade globalizada, essa integração gradativa da produção artística contemporânea, e da cultura de um modo geral, vem se consolidando nos países ricos a partir de um modelo de operação que se desenvolve entre o mercado e o Estado. Contrariando algumas leituras rápidas do processo de globalização, nas décadas de 70 e 80 a participação e a intervenção do Estado na economia e na organização da cultura apresentou um crescimento sem precedentes. Podem ser citadas, como casos exemplares, a implantação de uma política para a recuperação e a reorganização dos museus de arte na Europa e nos Estados Unidos (Dimaggio, 1986; Pommerehne e Frey, 1993) – que durante a década de 60 encontravam-se praticamente arruinados – , além da criação de importantes fundos para as artes, como o National Endowment for the Arts, em 1965, nos Estados Unidos (Crane, 1987; Zolberg, 1997), e os Fonds d’Intervention Culturelle, em 1971, na França (Moulin, 1992). Estes aparelhos atendem a uma dupla finalidade: fornecer subsídios básicos para que a produção possa 15 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 materializar-se, provendo suporte à sua circulação e à sua recepção. A produção da arte contemporânea implica, geralmente, um empreendimento de alto custo, pois inicialmente, sua concretização envolve um projeto de elaboração e execução de longa duração e, depois, a realização deste projeto abarca um capital considerável, porque os materiais envolvidos, na maior parte das vezes, embora muito diversos, são caros (ferro, concreto, computadores, vídeos, etc.) e, em outras ocasiões, embora de pequeno custo, envolvem uma coleta longa e trabalhosa (como talheres de companhias aéreas, sacolas plásticas de museus, sapatos velhos, cascas de ovos, vestidos de noiva, etc.). No caso das performances, estas podem depender de uma mobilização intensa dos meios de comunicação. Dependendo do projeto, surgem outras variantes que pesam, como serviços de terceiros, muitos deslocamentos, longas filmagens e até negociações com as autoridades políticas, que se estendem por anos, como é o caso dos trabalhos do artista plástico búlgaro, Christo, que estabelecem quase sempre uma relação com monumentos públicos em diferentes cidades do mundo. O mundo da arte contemporânea já extrapolou há muito tempo o universo da pintura e da escultura, muito embora elas ainda permaneçam como parte dele, ressurgem com uma outra apresentação mais sintonizada com as expressões do repertório de comunicação da época em que vivemos. Em suma, as artes plásticas contemporâneas para poderem se realizar plenamente necessitam do apoio de recursos substanciais, que possibilitem não apenas sua recepção e circulação, mas também sua produção. No caso das artes plásticas, na base desta ampliação estão as novas políticas culturais responsáveis pela redefinição das instituições, que passaram de redutos de uma cultura de elite para atuar como espaços da cultura de massa. A repercussão das exposições de arte organizadas em São Paulo por ocasião dos 500 anos da descoberta do Brasil é um exemplo desse fenômeno globalizado que se estende, ainda de forma errática, ao contexto cultural brasileiro. Em muitos países presencia-se a intervenção do Estado nesse processo, gerando pólos de pesquisa fortes que alimentam projetos culturais, cuja principal finalidade vem sendo impedir que esta expansão da cultura corra ao sabor do mercado e à deriva dos fluxos globalizados (Moulin, 1967). É o suporte desses projetos o responsável pela viabilização e pelo fortalecimento de algumas produções em detrimento de outras no circuito globalizado. Cabe aqui mencionar os trabalhos pioneiros de Bourdieu e Darbel (1969), encomendado pela Associação Européia dos Museus de Arte, e de Moulin (1967), publicados ainda na década de 60, assinalando o início de uma parceria entre o campo acadêmico e os projetos públicos, que permanece como um dos traços característicos da gestão cultural na França contemporânea, mas que está presente também na comunidade européia em geral (Documentation Française, 1987), nos Estados Unidos e no Canada. É importante enfatizar que, muito embora a partir da década de 90 tenham surgido facções políticas em diferentes países, questionando a extensão do apoio do Estado à cultura e às artes, esse debate se dá num momento em que estes universos já se encontram consolidados (Zolberg, 1996; Telerama, 2000a e b). Sendo assim, o modelo de organização das artes plásticas contemporâneas, implantado na França e nos Estados Unidos, não apenas respaldou a sua constituição num campo de pesquisa, como também continua evoluindo até hoje fundamentado nele. No Brasil, está se iniciando, tardiamente, um esforço de pesquisa ainda para tentar mapear esse universo. NOTAS E-mail dos autores: [email protected] e [email protected] O presente texto é uma explanação inicial elaborada a partir de uma pesquisa realizada em 2000, em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales/ Centre des Recherches sur le Brésil Contemporain, cujos dados ainda estão sendo processados. Neste projeto, José Mario Ortiz Ramos contou com o apoio de uma bolsa de Pesquisa no Exterior, da Fapesp. 1. No Brasil, em 1995, os gastos públicos com a cultura representaram 0,089% do PIB e um total de 692 milhões de reais (Fundação João Pinheiro, 1998). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELTING, H. L’Histoire de l’art est-elle finie? 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Palavras-chave: cultura; bienal; arte; artes plásticas; política cultural. parceiros que surgia juntamente com uma nova etapa no desenvolvimento capitalista, na qual a internacionalização do capital começava a despontar liderada pelos Estados Unidos, fazendo-se acompanhar pelo surgimento de um mercado internacional de arte (Bueno, 1999). Para aqueles que protestavam na entrada da bienal naquela chuvosa noite de outubro, a parceria estabelecida entre Rockefeller e Ciccilo Matarazzo representava a força do imperialismo corrompendo pintores, desenhistas, escultores e arquitetos com prêmios oferecidos por empresas interessadas na expansão ideológica americana (Jornal Voz Operária, 13/10/1951). Para o proprietário da Metalúrgica Matarazzo, o estreitamento das relações econômicas, culturais e, no limite, políticas, entre Brasil e Estados Unidos poderia significar um espaço diferenciado a ser ocupado por um empresário-mecenas atuante internacionalmente. O momento era pontuado por importantes transformações em toda a América Latina. O final da Segunda Guerra anunciava novos horizontes econômicos, políticos, intelectuais e artísticos. Um novo ordenamento mundial e novas relações políticas articulavam-se a uma nova postura das classes dirigentes, assim como de intelectuais e artistas. Estavam sendo deixadas para trás as décadas fundamentadas no desenvolvimento nacional, com um projeto nacional e por uma burguesia também nacional. No pósguerra, o jogo das forças internacionais tem suas regras m 20 de outubro de 1951 a Av. Paulista vivia um dia marcante na sua história. A festa de abertura da primeira Bienal de São Paulo reunia a nata da elite política, econômica e cultural do país. Do lado de fora do Edifício Trianon (onde hoje, coincidentemente, encontra-se o Masp), militantes políticos e sindicalistas bradavam contra aquilo que chamavam de manobra imperialista e verdadeira farra de tubarões. Sob a conhecida garoa paulistana, os manifestantes e curiosos assistiam ao desfile da granfinagem (Jornal Hoje, 02/09/1951 e 21/ 10/1951), enquanto os bancários exibiam suas tabuletas nas quais se lia: Chega de fome! Viva a greve! Do lado de dentro do edifício, Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, sua esposa, comandavam a festa oferecida a milhares de convidados, ciceroneando o Ministro da Educação e Saúde, o sr. Simões Filho, e a sra. Vargas, ambos representantes do Presidente da República. O principal ponto de discórdia entre esses dois lados recaía sobre Nelson Rockefeller, o magnata do petróleo e peça-chave na política de expansionismo cultural do Departamento de Estado norte-americano no pós-guerra. Poucos dias antes da abertura da Bienal de São Paulo, Yolanda Penteado havia promovido um baile no próprio Edifício Trianon, com a intenção de arrecadar fundos para o evento do MAM. Os jornais noticiaram a festa dançante, dando destaque ao presidente da Standard Oil enlaçado à anfitriã brasileira. A imagem simbolizava uma união de E 18 BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA alteradas e o capitalismo passa a propor o desenvolvimento transnacional ou associado. Dentro desse contexto, a cidade de São Paulo vislumbrava um cenário favorável ao seu desenvolvimento econômico e cultural. No início da década de 50 a cidade já registrava a maior concentração de brasileiros vindos de outros Estados e também já abrigava expressivo contingente de imigrantes, inclusive daqueles estrangeiros que para cá se dirigiam para instalar seus negócios, fábricas e empresas, fugindo das catástrofes econômicas e sociais do pós-guerra europeu (Pedrosa, 1995:220). Com o surto de industrialização impulsionado pela substituição de importações, a população urbana teve um brutal crescimento e a população operária mais que dobrou entre 1940 e 1950. São Paulo acelerava sua ascensão econômica e industrial como síntese do Brasil e vitrine do mundo. A precariedade da indústria cultural brasileira deu lugar ao processo de modernização dos meios de comunicação de massa, que passaram a desempenhar um papel fundamental na busca de integração nacional. A consolidação de uma sociedade urbano-industrial fez-se acompanhar de um amadurecimento e uma ampliação de um mercado de bens simbólicos (Ortiz, 1991:43-49). Do ponto de vista cultural, o rádio consolidou-se como veículo de massa; o cinema tornou-se, de fato, um bem de consumo; o mercado de publicações ampliou-se com o maior número de jornais, revistas e livros; a publicidade foi dinamizada com a introdução das multinacionais no país. Impunha-se, especialmente em São Paulo, uma linguagem metropolitana (Arruda, 2000). Buscava-se ampliar a adesão ao novo estilo urbano que exercia pressão, permeado pela afirmação do progresso recém-iniciado, em que o presente e o futuro importavam mais que o passado. Entre a aceleração cosmopolita vivida em São Paulo e os reais avanços culturais havia um imenso abismo e a Bienal de São Paulo surgia como um ponto de equilíbrio. Os seus criadores buscavam estimular os avanços na produção artística nacional, mas não escondiam o fato de que um evento como esse só poderia acontecer num ambiente semeado pelo espírito da modernização. No catálogo de apresentação da primeira bienal, o Ministro da Educação e Saúde já destacava que São Paulo seria “a terra predestinada aos ímpetos da evolução brasileira”, por ser o “centro natural do modernismo brasileiro e do progresso industrial” (Simões Filho, 1951:10). Segundo Lourival Gomes Machado, diretor do MAM-SP e diretor artístico da mostra, a bienal deveria cumprir duas tarefas: “colocar a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas BRASILEIRA em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial” (Machado, 1951:14), tendo como referência a cidade de Veneza. Esse espírito de modernização que permeava a realização da bienal envolvia uma disputa pela hegemonia entre Rio e São Paulo. Na primeira, a capital da República, as iniciativas vinham basicamente do Estado; já na segunda, principal sede do surto de crescimento industrial e demográfico, as coisas começavam a se fazer por intermédio de particulares (Pedrosa, 1995:239), representantes de uma nova prática cultural que emergia com as transformações pelas quais a cidade passava. Naquele momento, realizar uma bienal significava colocar a cidade de São Paulo no patamar das práticas sociais vividas pelas nações modernas. A bienal nasce, portanto, como um produto cultural construído a partir das relações entre determinados produtores culturais, instituídos a partir de relações sociais. Essas práticas sociais envolvem a vida econômica, o cotidiano da metrópole, a formação de uma nação tipicamente moderna e a intenção de acompanhar as práticas metropolitanas internacionais. O PÓS-GUERRA EM SÃO PAULO Os novos empreendimentos culturais na capital paulista foram sustentados por um novo mecenato, proveniente dos setores emergentes da sociedade: a indústria e as organizações da imprensa. Nos anos 20 e 30, os escritores e pintores modernistas haviam sido ‘adotados’ pela burguesia local, principalmente pelas famílias Prado, Penteado e Freitas Valle. Nessa adoção, pretendiam repetir nas suas mansões o modelo dos salões literários franceses descritos por Marcel Proust. Empenhavam-se numa tarefa civilizadora, numa São Paulo ainda provinciana. Já nos anos 40 a relação entre a produção artística e o mecenato seria bem diferente. A atmosfera dos salões seria deixada de lado em nome da criação de uma série de instituições artísticas bastante internacionalizadas. Esses novos personagens do fomento cultural localizavam-se num pequeno grupo de burgueses, fruto de uma mistura da antiga elite da terra e de uma elite mais recente de origem italiana. Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, esse processo foi um “sintoma de deslocamento, ou perda de exclusividade dos grupos tradicionais e, de toda espécie, manifestação insofismável de transformação das atividades produtivas (Arruda, 2000:33). Essa camada emergente passava a financiar a cultura em empreendimentos 19 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 conectados a um movimento de ascensão e de busca de legitimidade. A velha intelectualidade oficial burguesa incorporava uma nova intelectualidade surgida no seio da classe média, especialmente por meio daquela formada na década de 40 pela USP. Esse novo mecenato, diversamente daquele característico dos anos 20 e 30, dirigiu-se para a criação de instituições, alterando as bases dessa atividade e da vida cultural paulistana. As atividades culturais passaram a usufruir, de diversas maneiras, da presença dessas instituições. Dois empresários paulistas começaram, no pós-guerra, a descobrir os caminhos de um certo mecenato moderno: de um lado, Assis Chateaubriand (1891-1968), empresário ligado às comunicações que se embrenhou pelos trâmites artísticos; do outro, Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977), o Ciccilo, industrial de ascendência italiana, hoje considerado Presidente Perpétuo da Fundação Bienal. Chateaubriand e Ciccilo acrescentaram aos seus dotes empresariais uma atitude de mecenas que os fez entrar para a história deste país com esta marca. As disputas entre esses dois empresários, afeitos ao mecenato, tornaram-se quase um folclore na cidade de São Paulo. Ambos apareceram como um novo tipo de empresariado que buscava se projetar no mundo econômico através dos empreendimentos culturais de cunho internacional. Ciccilo Matarazzo era sobrinho do Conde Francisco Matarazzo, italiano que construiu um dos maiores complexos industriais do Brasil. Francisco Matarazzo Sobrinho nasceu em 1898, em São Paulo, na rua Major Quedinho. Estudou no conceituado Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República, mas em 1908 foi enviado a Nápoles, acompanhado de um preceptor, a fim de completar o ensino médio. Depois seguiu para Liège, na Bélgica, onde cursou engenharia na universidade local. Viveu na Europa entre os 10 e os 20 anos, recebendo formação humanística da belle époque. Por conta desses anos vividos na Europa e da forte ascendência italiana, seu sotaque ficaria marcado para o resto da sua vida, com uma mistura de italiano e francês ao falar o português. Nessa época gostava de pinturas, mas seu gosto estava apegado ao estilo acadêmico. Ciccilo deixava-se atrair mais por “uma Bugatti reluzente ou uma Fiat modelo esportivo” (Almeida, 1976:20) do que pelas artes. O pós-guerra abria caminho para o fortalecimento institucional e a atuação desse novo mecenato cultural e, em 1948, Ciccilo Matarazzo e Franco Zampari fundaram o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O engenheiro Zampari era amigo de infância, compatriota e funcioná- rio de Ciccilo. Dentre tantos outros empreendimentos culturais construídos por estrangeiros já aclimatados, “o TBC acabou sendo reconhecido como símbolo da cidade” (Arruda, 2000:138). No ano seguinte, Ciccilo Matarazzo fundou a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, também em parceria com Zampari. Desde o início, a Vera Cruz foi um projeto da burguesia paulista de criação de um cinema de qualidade no país. A dupla de origem italiana sonhava trazer para o ABC paulista a posição ostentada pela carioca Atlântida. Para dar início ao projeto, Ciccilo cedeu parte do terreno de sua granja, em São Bernardo do Campo (hoje Jardim do Mar), para erguer os estúdios da Cia. Cinematográfica, que durou até 1954. A criação do TBC e da Vera Cruz não foi um fenômeno isolado. Pelo contrário, eles inscreveram-se em outras iniciativas que procuravam fazer de São Paulo um pólo cultural, contribuindo para transformar esta capital, no final dos anos 40, num importante centro de produção de cultura. Em 1947, Chatô havia inaugurado o Masp e destacava-se como empresário da cultura que acenava para algo novo: o empreendimento cultural como uma forma de luta hegemônica. Ciccilo também fundou ‘seu’ museu, o de Arte Moderna, no ano seguinte. Em 1951, como extensão das atividades do MAM, Ciccilo criou o seu mais poderoso empreendimento: a Bienal de São Paulo. As primeiras bienais contaram com o esforço de Yolanda Penteado, esposa de Ciccilo na época. D. Yolanda pertencia a uma tradicional família paulista que construiu sua fortuna a partir da cultura do café (Penteado, 1976). Nasceu em 1903, na Fazenda Empyreo, em Leme, interior de São Paulo. Foi criada num ambiente de senhores de escravos e teve, durante sua infância, muitas mães-pretas. Viveu até os sete anos na fazenda e depois mudou-se com a família para São Paulo. Seu pai era amigo de Júlio Mesquita e de Antônio da Silva Telles, pai de Jayme Telles (o ‘Rodolfo Valentino’) com quem Yolanda viria a se casar mais tarde. Assim como Ciccilo, Yolanda também estudou no Caetano de Campos e, depois, como interna, no Colégio Des Oiseaux, onde só se falava francês. Mais tarde passou a estudar em casa, com professores particulares. Era sobrinha de dona Olívia Guedes Penteado, que nos anos 20 e 30 freqüentava os salões de Freitas Valle e costumava também acolher em sua casa artistas modernistas. Entretanto, Yolanda Penteado teve, aparentemente, pouco contato com essas rodas artísticas e com a arte moderna, pois não menciona isso em sua autobiografia. Sua juventude foi marcada pelo interesse que despertava nas pessoas ao seu redor. Jovem, bonita, culta e alegre, 20 BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA BRASILEIRA Moderna de Nova York (Jornal Hoje, 15/08/1951). Mas as relações com Rockefeller para a criação do MAM de São Paulo já tinham sido iniciadas anos antes de Ciccilo atentar para essa questão, e diziam respeito às articulações do envolvimento do Brasil nas transformações da economia mundial. Entre o final dos anos 30 e o início dos 40, Sérgio Milliet, como professor da Escola de Sociologia e Política, esteve em contato com representantes americanos interessados na política de aproximação com os países latino-americanos. Em 1942, o dr. David Stevens, diretor da Divisão de Humanidades da Fundação Rockefeller, visitou a Escola e doou cinco contos de réis destinados à constituição de um acervo bibliográfico e à pesquisa social, repetindo a atitude em 1944 e 1946. O adido cultural do Consulado Americano em São Paulo, Carleton Sprague Smith, era também professor na Escola de Sociologia e Política e empolgava-se, àquela altura, com a idéia da criação de um museu de arte moderna, acabando por tornarse um intermediário desse processo com a Fundação Rockefeller (Gonçalves, 1992:80). Segundo Lisbeth Gonçalves, São Paulo recebeu, em 1946, a primeira doação de Nelson Rockefeller para a constituição de um museu, num total de sete obras que ficaram sob a guarda do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB),1 mas que permaneceram na Biblioteca Municipal, provavelmente na Seção de Arte criada por Milliet no ano anterior (Gonçalves, 1992:81). A partir desse momento, cresceu rapidamente o número daqueles que apoiavam o projeto do museu, envolvendo arquitetos, jornalistas, intelectuais e artistas que se encontravam nas sucessivas reuniões no Instituto dos Arquitetos. Chateaubriand e Ciccilo também aderem ao projeto, participando das reuniões no IAB. A partir do aval americano, Matarazzo passou a encabeçar a lista daqueles que apoiavam essa idéia. Segundo Vilanova Artigas, em depoimento à Lisbeth Gonçalves (1992:82): “A palavra final que leva ao encaminhamento do processo de criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo sob a liderança de Matarazzo surge numa reunião de Nova York, da qual ele participa, quando bolsista nos Estados Unidos. Carleton Sprague Smith é o porta-voz de Rockefeller, falando do seu interesse pela participação daquele empresário no projeto”. Esse novo tipo de mecenato representado por Ciccilo Matarazzo surge num período de expansão do capitalismo internacional que exigiu mudanças também na atuação dos representantes da burguesia local, a qual passou a adotar uma posição aberta à penetração das grandes cor- Yolanda colecionava uma legião de fãs, entre eles Júlio Mesquita Filho, Alberto Santos Dumont e, principalmente, Assis Chateaubriand, que a teria pedido em casamento várias vezes. Ela dedica muitas passagens de sua autobiografia a ele, a quem se refere como o melhor amigo que já tivera. No decorrer de sua vida, a roda de amizades de Yolanda Penteado incluiu Getúlio Vargas, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Maria Martins e Gilberto Freyre. Separou-se de Jaime Telles em 1934 e, com 30 anos e sozinha, tornou-se responsável pela Fazenda Empyreo. Por lá passaram alguns dos principais personagens do cenário artístico, intelectual, político e econômico do país. Yolanda Penteado sabia receber e o fazia muitíssimo bem, especialmente em sua fazenda. Durante as primeiras bienais, por exemplo, ela organizou inúmeros jantares para os convidados especiais do evento. A abertura da IV Bienal de São Paulo (1957) deu-se na fazenda de Leme, com os convidados transportados em aviões que pousavam na pista construída nas terras de Yolanda e depois cedida ao poder público municipal. Naquela noite, o principal convidado era o presidente Juscelino Kubitsckek, que jantou e pernoitou no local. MUSEU DE ARTE MODERNA Yolanda Penteado casou-se com Ciccilo em 1947, enquanto estavam em Roma. De lá partiram para Paris, onde Ciccilo adoeceu. Por recomendação médica, foram passar uma temporada de sete meses em Davos, no sanatório Schatzalp, onde ocuparam o melhor quarto. Durante esse período, conviveram com pessoas que lhes revelaram o mundo das artes e atuaram de forma definitiva na fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ciccilo registrou apenas que já planejava a organização de um museu por ocasião de sua estadia no sanatório (Penteado, 1976:34). Lá conheceu o museólogo Karl Nierendorf, diretor do Museu Guggenheim, com quem idealizou a montagem de uma exposição de arte abstrata para a abertura do museu paulistano. Nierendorf, com quem tinha uma convivência diária no cenário de Montanha Mágica, havia pertencido à Bauhaus e durante a guerra tinha ido para os Estados Unidos, onde lidou com arte e freqüentava as rodas modernistas. Pelo contato com Nierendorf, foi estabelecido um acordo entre Ciccilo Matarazzo, responsável pelo MAM-SP e Nelson Rockefeller, da Standard Oil, estabelecendo a fusão das atividades do museu paulista e do Museu de Arte 21 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 porações estrangeiras (Fernandes, 1975). Com isso a burguesia ganhou condições mais vantajosas para estabelecer uma relação mais íntima com o capitalismo financeiro internacional, sustentando-se sobre uma base nacional e outra internacional. Essa burguesia mudou seu relacionamento com o poder político estatal e o funcionamento do Estado, alterando sua capacidade de aproximação com o capital financeiro internacional e com a intervenção do Estado na vida econômica, ganhando maior controle da situação interna. As grandes corporações, por outro lado, passaram a concorrer fortemente entre si pela expansão induzida das chamadas economias periféricas. Foi nesse contexto que se deu a aproximação entre Ciccilo Matarazzo e a Fundação Rockefeller. No momento em que o capitalismo monopolista investia suas energias nas nações do continente latino-americano, a burguesia mudava sua estratégia com relação ao poder político e passava a atuar visando o capital internacional. O MAM de São Paulo foi uma das instituições organizadas a partir desse estreitamento das relações entre a burguesia industrial brasileira e as grandes corporações norte-americanas. Fundado em 1948, mas inaugurado em março de 1949, o MAM chamou para si toda a polêmica que girava em torno da ascendente arte abstrata, organizando, para a sua abertura, a mostra Do figurativismo ao abstracionismo que, apesar do nome, só trazia trabalhos abstracionistas. Tanto o MAM quanto o Masp carregavam consigo promessas civilizatórias relativas às “ações de grupos esclarecidos da classe dominante, ou dos seus representantes, que desenvolviam uma pedagogia em relação à sociedade, tendo em vista educá-la” (Arruda, 2000:280). Esses dois museus de arte paulistanos foram criados numa conjuntura tensa, num momento fervilhante de debates em que artistas, intelectuais e escritores, polarizavam-se em torno das polêmicas sobre a cultura de participação da arte social, base dos conflitos entre novas e antigas gerações que desaguavam na questão do realismo e abstracionismo. uma extensão do MAM e completando sua função, que era a de fornecer, como em Veneza, uma possibilidade de iniciação às novas correntes de arte. Um esforço conjunto tentava ligar a América Latina ao circuito internacional de arte e a bienal funcionou como um mecanismo de divulgação e consolidação da arte moderna e do campo artístico internacional (Bueno, 1999:151). Para dar conta dessa empreitada, Yolanda Matarazzo viajou por toda a Europa juntamente com a escultora Maria Martins em caráter semi-oficial e com o apoio irrestrito de Getúlio Vargas, que telegrafara às embaixadas brasileiras pedindo que fosse dado todo apoio às duas senhoras (Penteado, 1976:178). A I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, presidida por Francisco Matarazzo Sobrinho, foi considerada um sucesso e colaborou para a sedimentação do museu como uma instituição cultural alinhada ao mercado artístico internacional. Mas o sucesso e a continuidade da bienal devem-se, em grande medida, às atuações de Sérgio Milliet e Lourival Gomes Machado à frente da diretoria artística do evento durante suas primeiras edições. Os anos 40 viam entrar em cena uma nova crítica de arte decorrente da institucionalização da vida universitária que exalava principalmente da USP (Pontes, 1998). Dentro da nova linguagem metropolitana que ganhava espaço em São Paulo, a crítica de arte sofria transformações pela atuação de jovens intelectuais recém-saídos da Faculdade de Filosofia, inaugurando um novo sistema de produção intelectual totalmente firmado em critérios científicos e acadêmicos. O estilo acadêmico de cultura passa a constituir um estilo de vida. O saber científico é visto como o fundamento da dignidade e do prestígio profissional. O conhecimento, enfim, começa a exigir novos requisitos: a produção norteada pelos cânones científicos, as reflexões apoiadas em exaustivas referências bibliográficas e erudições pertinentes ao campo da investigação. Nos anos 40 e 50, ao contrário do que ocorria com as gerações passadas, a elaboração de idéias e a atividade intelectual sofriam os rigores das exigências acadêmicas. A presença de Lourival Gomes Machado (1917-1967), na época, diretor do MAM, foi fundamental para o sucesso da primeira edição da Bienal de São Paulo, em 1951. Como diretor artístico do evento, adaptou o regulamento da Bienal de Veneza às características nacionais e supervisionou a montagem das instalações e seleção das obras. Sua carreira de crítico de artes plásticas teve origem no seio da academia, mas foi como diretor da revista Clima, lançada em maio de 1944, que se notabilizou na área, pas- A BIENAL DE SÃO PAULO A organização de uma mostra bienal – ou um festival nos moldes do festival de Veneza, como afirmou Ibiapaba Martins, um dos diretores do recém-fundado museu (apud Amaral, 1987:236) – já estava nos planos de Ciccilo desde os primeiros momentos do MAM. Se a meta era a internacionalização, o melhor caminho seria a criação de uma bienal. A Bienal de São Paulo surgiu, assim, como 22 BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA sando a constituir essa nova geração de críticos ligados ao conhecimento acadêmico. Lourival Gomes Machado foi o primeiro diretor artístico da Bienal de São Paulo e, sem dúvida, um dos principais mentores do evento e dos mais atuantes na sua implantação. Sérgio Milliet (1898-1966) foi primeiro-secretário na I Bienal e a partir da segunda substituiu Lourival Gomes Machado na diretoria artística. Citando Antônio Cândido, Lisbeth Gonçalves considera Milliet o homem-ponte entre a geração modernista e a geração de artistas que surgiram nas décadas de 30 e 40. Milliet era “consciente defensor da criação de entidades voltadas para a ação organizada em prol da arte moderna na cidade” (Gonçalves, 1992:XV) e por isso seu nome liga-se à criação do Departamento de Cultura, da Biblioteca Municipal, do Museu de Arte Moderna e da bienal. Milliet nasceu em São Paulo, adquiriu conhecimentos de sociologia em Genebra e Berna em longos anos de educação suíça, impregnando-se de discussões acerca da verdade e da objetividade que ocupavam todo o pensamento europeu a partir do reconhecimento do valor da ciência para o conhecimento da realidade. Assim, como crítico, trazia a sociologia como principal eixo de reflexão. A partir da aproximação das posições do cristianismo social ou socialismo cristão que proliferavam na Suíça durante os anos em que lá morou, Sérgio Milliet foi mais tarde tocado diretamente pela questão engajamento/não-engajamento e o papel do intelectual no seu tempo. No Brasil dos anos 30 foi um dos primeiros a aderir ao Partido Socialista, tendo inclusive participado da Revolução de 1932 como informante (Gonçalves, 1992:20 e 57). Nas noites paulistanas passou a freqüentar a casa de Paulo Duarte, onde conviveu intensamente com intelectuais e políticos de tendência liberal, em encontros que resultaram na idealização do Departamento de Cultura dirigido nos anos 30 por Mário de Andrade. No Departamento de Cultura Milliet atuou como diretor da Divisão de Documentação Histórica e Social. No início dos anos 40, já sob a intervenção do Estado Novo na prefeitura paulistana, Milliet foi transferido para a Divisão de Bibliotecas, vindo a atuar na Biblioteca Municipal, onde criou a Seção de Arte em 1945. Essa seção da Biblioteca Mário de Andrade, que hoje se chama Sérgio Milliet, surgiu da necessidade de se erguer instituições voltadas para a arte moderna na cidade e fundamentadas por ações mais organizadas. Desde o final dos anos 30, Milliet e Mário de Andrade anunciavam a necessidade da criação de um museu de arte moderna em São Paulo. Foi na Biblioteca, com a Seção de Arte organizada por Milliet, BRASILEIRA que se iniciaram as bases essenciais para a criação do MAM. Ao mesmo tempo em que atuava na prefeitura, Milliet colaborava na Escola de Sociologia e Política desde sua abertura, primeiro como secretário, depois como professor e tesoureiro. Ao longo da década de 50, o projeto de Sérgio Milliet reforçou o internacionalismo na arte, movimento que já vinha se manifestando de modo gradativo em eventos anteriores mesmo às bienais, entre os quais os Salões de Maio e o advento dos museus em São Paulo. Milliet trouxe para a crítica o cosmopolitismo de sua formação européia: nunca assumiu a ótica da ‘cultura nacional’ e nunca se prostrou em reverência pelo que era importado. Era um polivalente que escrevia com igual propriedade de conhecimentos sobre literatura e artes visuais, sociologia e política, filosofia e psicologia. Com gosto pelas viagens e atento, Milliet inaugurou um novo perfil profissional no meio até então dominado por bacharéis apegados a frases rebuscadas, egressos da advocacia ou da medicina, no geral contrários às novas linguagens. A II Bienal do museu, realizada em 1953, aconteceu sob a direção artística de Milliet e pegou uma carona no ritual de celebração do IV Centenário da cidade de São Paulo. Mais conhecida como a Bienal da Guernica, aquela edição nunca foi superada em importância e respeito. Milliet atuou ainda como diretor artístico na terceira e quarta bienais realizadas pelo Museu de Arte Moderna (1955 e 1957), colaborando de maneira fundamental para a sedimentação e continuidade deste evento que estava inserindo a cidade de São Paulo no seleto circuito internacional de arte. Nos anos em que esteve à frente da diretoria artística da bienal, Milliet deixou transparecer, mais uma vez, a característica pedagógica que marcou sua atuação como crítico de arte, privilegiando a preocupação com a formação e informação dos artistas e do público, com a educação do gosto da comunidade, de modo a abrir condições para o diálogo com a arte do presente (Gonçalves, 1992:87). De uma certa forma, essa preocupação pedagógica estaria presente em toda a história da Bienal de São Paulo, chegando ao final do século XX como um dos seus principais pontos de apoio. Em 1959, a V Bienal voltou a contar com Lourival Gomes Machado à frente da direção artística. Essa foi a última bienal realizada pelo MAM; a partir da VI edição, a mostra passou a ser organizada pela Fundação Bienal. Em 1961, a bienal passou a ser uma entidade autônoma com a autorização do presidente Jânio Quadros ao crítico Mário Pedrosa, então secretário do Conselho Nacional de 23 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 Cultura, para que a tornasse uma instituição pública a partir da redação um projeto de lei (Amarante, 1989:106). Transformada em Fundação, a Bienal de São Paulo poderia passar a receber verbas da prefeitura e do governo do Estado para a execução da exposição. Até então, as exposições do Ibirapuera eram financiadas basicamente – e oficialmente – pela iniciativa privada. A VI Bienal (1961) comemorou os dez anos de bienais com o crítico Mário Pedrosa como diretor-geral, mas foi apenas na sétima edição (1963) que a bienal ocorreu definitivamente desvinculada do MAM, mas ainda sob a presidência de Ciccilo Matarazzo. Quatro meses após o término dessa bienal os militares tomariam o poder no Brasil e, daí para frente, a Fundação Bienal começa a entrar numa outra etapa de sua existência. A edição de 1967 (IX Bienal) foi a Bienal Pop, nas palavras de Liliana H. T. Mendes de Oliveira (1993). As categorias tradicionais de classificação das obras de arte (pintura, escultura, desenho e gravura) já não mais comportavam as obras de última geração e o regulamento foi alterado de modo a permitir as inovações radicais que estavam em plena expansão (Pedrosa, 1995:273), como a arte cinética de Júlio Le Parc, por exemplo. No mesmo ano em que a censura apenas começava a mostrar suas garras, a pop art americana chegava ao público brasileiro através de uma sala especial com a participação de Hooper, Warhol, Rauschenberg e Lichtenstein. A partir da X edição (1969), a pressão da ditadura militar começou a aumentar. Financiada agora pelo poder público, a Bienal de São Paulo começava a entrar num longo período de decadência de seu prestígio internacional. A censura e os conseqüentes boicotes por parte de delegações estrangeiras esvaziavam paulatinamente a bienal. Em 1975, por ocasião da XIII Bienal, Ciccilo não mais exercia controle total sobre a Fundação. Doente, pediria demissão naquele mesmo ano. Dois anos depois, a Fundação Bienal organizava sua primeira mostra sem o seu fundador, que morrera seis meses antes. Oscar Landmann seria o primeiro presidente da Fundação Bienal depois da Era Ciccilo. A partir desse momento, as bienais passariam a ter a cara de seus presidentes e a história da Fundação Bienal passaria a ser a história da sucessão desses homens. A Fundação Bienal viu a década de 80 chegar, tendo de enfrentar sérios problemas para se sustentar. Com a abertura política e a mudança nas relações dos poderes público e privado com a cultura, a forma de financiamen- to da Fundação Bienal passaria por uma drástica transformação, especialmente por conta do expressivo aumento da participação da iniciativa privada no patrocínio da mostra. Transformações rápidas estavam começando a acontecer, especialmente na estrutura da Bienal, envolvendo, além da forma de financiamento, também o final das premiações. Era um momento de tentativa de desvinculação do oficialismo e do surgimento dos curadores como produtores. Essas mudanças, sem dúvida, vão aparecer mais concretamente na segunda metade dos anos 80. Em 1981, com o industrial Luiz Villares como presidente e Walter Zanini como curador, a XVI Bienal foi um marco na história desse evento e o início da retomada do prestígio internacional. A forma de organizar a mostra mudou, abandonou-se a montagem com separações por países e introduziu-se o trabalho curatorial baseado em analogias de linguagem. Saía de cena o poder público como o principal patrocinador das exposições bienais e entrava em jogo a iniciativa privada, que descobria o marketing cultural como uma forma de associar sua imagem a projetos culturais de cunho internacional. Na edição de 1983, também sob a responsabilidade da dupla Villares/Zanini, 50% do orçamento do evento derivara da contribuição da iniciativa privada (Villares, 1983:3). Roberto Muylaert, Jorge Wilheim e Alex Periscinoto, presidentes da Fundação Bienal entre a XVIII e XX bienais, buscaram aprofundar essa participação da iniciativa privada e o desvinculamento dos trâmites oficiais. A XXI Bienal de São Paulo, realizada em 1991 sob a presidência de Jorge Stocker, foi bastante polêmica. O regulamento fez retornar a seleção das obras a partir de um júri e foi reinstituída a premiação. Após esse breve retorno a alguns princípios tradicionais na organização do evento, a XXII e a XXIII bienais (1994 e 1996), lideradas pelo banqueiro Edemar Cid Ferreira e pelo curador Nelson Aguilar, fizeram intensificar pesadamente os investimentos da iniciativa privada e o trabalho curatorial na organização do evento. Com o segmento Universalis, evidenciava-se a “abolição da inércia de tentativas anteriores, nas quais a instituição era mera hospedeira de representações nacionais” (Ferreira, 1996:17). Era a retomada da proposta de Walter Zanini e a confirmação de que a atuação do curador tornava-se cada vez mais importante. Em 1998, o industrial Júlio Landmann e o curador Paulo Herkenhoff organizaram a XXIV Bienal de São Paulo, considerada pela revista Artforum (2000) como uma das dez exposições mais importantes da década de 90 em todo o mundo. Com essa edição, a Bienal de São Paulo chegou 24 BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA ao final do século como uma mostra renovada e bastante reconhecida no circuito internacional de arte, com um público de quase 500 mil pessoas e orçamento de 12 milhões de dólares. Os pesados investimentos da iniciativa privada colaboraram para que o maior evento das artes plásticas no Brasil chegasse à beira de completar cinco décadas de existência cumprindo um dos objetivos propostos desde o seu início, em 1951: apresentar-se como uma exposição de massa. Apesar do que se pode pensar num primeiro momento, a Bienal de São Paulo não é um evento restrito à esfera da cultura erudita ou letrada, mas sim um produto cultural que mescla cuidadosamente elementos populares e massivos da cultura àqueles típicos de uma cultura dita elevada. Assim como as Exposições Universais do século XIX europeu, a Bienal de São Paulo, seguindo o exemplo de Veneza, sempre pretendeu portar-se como um canal para os ideais civilizatórios, ligado ao poder das nações hegemônicas. Nesse processo, novas instâncias de decisão foram surgindo e novos atores foram ganhando destaque, na medida em que a divisão do trabalho foi incorporando a especialização das funções na sua produção. No final dos anos 90, a produção da Bienal de São Paulo envolveu um complexo processo coletivo de criação compreendendo o presidente, os curadores, arquitetos, diretores e montadores. As articulações institucionais e financeiras transformaramse numa verdadeira ‘força-tarefa’ para erguer um evento desse porte. A investigação dos propósitos e dos caminhos tomados nessa produção revela um determinado formato pretendido por esses agentes espalhados por diversos níveis de decisão dentro da instituição. BRASILEIRA cional, envolvendo profissionais das mais diversas áreas encabeçados, costumeiramente, pela figura do curador” (Chiarelli, 1998:32). Até os anos 70, os curadores estavam basicamente ligados à atividade museológica de lida com o acervo e sua função não era muito bem definida, confundindo-se com a figura do diretor do museu, responsável também pela gestão administrativa e articulações políticas. Entretanto, as grandes exposições comemorativas ou os grandes eventos artísticos, como a bienal, por exemplo, já possuíam seus curadores que, com pouca notoriedade, eram conhecidos como operadores culturais. No caso da bienal isso passou a acontecer especialmente a partir de 1977, quando o Conselho de Arte e Cultura foi criado, mesmo ano em que Ciccilo faleceu. Tadeu Chiarelli (1998:14), ex-curador do MAM-SP, aponta: “Com o processo de espetacularização destes eventos – que a cada edição tornavam-se mais e mais impressionantes pela quantidade de obras, pelo caráter cenográfico e espetacular – a figura do curador convidado a concebê-la e organizá-la foi aos poucos ganhando um destaque cada vez maior, em alguns casos chegando a ofuscar as obras e os artistas participantes da mostra”. A transformação do papel do curador acompanhou as mudanças ocorridas na atividade museológica principalmente a partir dos anos 80, quando a explosão de público na Europa e nos EUA apontou a mudança dessas instituições e suas atividades. A museumania, segundo Andreas Huyssen (1997:223), incorpora definitivamente os museus à cultura de massa: “O papel do museu como um local conservador elitista ou como um bastião da tradição da ata cultura dá lugar ao museu como cultura de massa, como um lugar de um miseen-scène espetacular e de exuberância operística”. Para Huyssen (1997:232), “‘curar’ hoje não significa desempenhar a função de ‘guardião’ de coleções (...) mas significa mobilizar coleções, colocá-las em ação nas paredes dos museus particulares”. Nessa mobilização das obras, o trabalho do curador envolve sempre uma atividade reflexiva e interpretativa. No seu trabalho, o curador opta sempre por uma narrativa que alinhave a exposição. Na XXIV Bienal de São Paulo (1998) um dos principais nomes, sem dúvida, foi Paulo Herkenhoff, curadorgeral da mostra. Sob o tema Antropofagia, Herkenhoff buscou organizar a mostra a partir do público que a visitaria, tentando, nas suas palavras, torná-la mais legível e assimilável (apud Fioravante, 1998) para cada um dos milhares de visitantes da exposição. A VEZ DOS CURADORES Se nas primeiras bienais os diretores artísticos e os montadores responsabilizavam-se pelo conjunto da exposição, nas últimas edições vimos surgir cada vez mais evidente a figura do curador. Hoje em dia, os curadores são, muitas vezes, os principais produtores dessas grandes mostras. Para Teixeira Coelho (2000:251) “quando vamos a uma exposição hoje, uma exposição dessas que têm linha, tema, vamos ver antes o trabalho de um supra-artista, o curador, do que o trabalho de vários artistas que fazem cada um sua obra. Os artistas, estes, são instrumentos para o curador. O curador é o grande artista”. Embora nem sempre o grande público se dê conta, por trás das exposições de arte “existe todo um trabalho conceitual e opera- 25 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 UMA FEIRA MODERNA PARA UM PÚBLICO DE MASSA A estrutura formal de organização do evento não sofreu muitas alterações com relação à mostra de 1996 e foi dividida em quatro segmentos: o tradicional Representações nacionais, que, à exemplo da Bienal de Veneza, recebe os trabalhos enviados a partir de relações diplomáticas entre o Brasil e dezenas de países participantes; o Núcleo histórico, dedicado a discutir o tema Antropofagia e histórias de canibalismos e tem sido de extrema importância para a captação de recursos da iniciativa privada pela atração que exerce perante o grande público; o segmento Roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, uma mostra internacional de arte contemporânea realizada nos moldes do segmento Universalis da Bienal de 1996, fundamentalmente baseada no forte trabalho curatorial; e, por fim, o segmento Arte contemporânea brasileira, uma novidade na história do certame brasileiro que foi proposta por Júlio Landmann, presidente da Fundação Bienal. As bienais paulistanas, pode-se dizer, não são apenas eventos dirigidos às massas, mas também um novo modo de comunicação entre as classes, e por isso recebe em seu formato as marcas dessa negociação conflituosa que se dá no campo das lutas hegemônicas. A Bienal de São Paulo teve seu formato transformado ao longo dos seus quase 50 anos devido às diversas estratégias utilizadas para a viabilização da sua produção. Até um determinado momento, essas estratégias exigiram a força das representações nacionais, organizadas a partir de relações diplomáticas; mas, para continuar existindo como uma mostra importante para sua época, a Fundação Bienal teve de mudar as regras do jogo, transformando o formato da mostra. No final dos anos 90, o necessário apoio governamental e diplomático inviabilizou a extinção total das delegações nacionais; a busca do público massivo impediu que os curadores apostassem apenas na arte contemporânea e prescindissem do Núcleo histórico; a necessidade de um forte apoio financeiro da iniciativa privada exigiu que a visitação fosse record, colaborando para fortalecer a oferta de obras históricas e consagradas. Ao mesmo tempo, a Fundação Bienal procurou investir também na arte contemporânea – especialmente a brasileira e a latino-americana – com uma montagem realizada a partir de contaminações e do diálogo entre curadores, obras e artistas. Com a aceleração do processo de globalização, a Bienal preocupou-se em abolir as fronteiras entre as delegações nacionais e entre os segmentos históricos e contemporâneos, apostando no diálogo entre diferentes temporalidades e espacialidades na montagem da sua última exposição do século XX. A Bienal de São Paulo atravessou a segunda metade do século XX como uma produção cultural que foi adquirindo uma determinada forma bastante parecida com as grandes feiras. Além da exposição, esse formato engloba várias atividades que ocupam espacialmente o evento, como os diversos stands de serviços e publicidade, lojas, lanchonetes, etc. Essas atividades e serviços paralelos ocupam, sem dúvida, um espaço cada vez maior e mais importante para o evento, tanto do ponto de vista financeiro da mostra, quanto das atrações oferecidas ao público. Desde o seu início, em 1951, a Bienal já oferecia esses serviços e atividades paralelos à exposição, como intérpretes, informações e turismo, telégrafo, café, restaurante, livraria e papelaria, que visavam proporcionar facilidades aos visitantes (Tribuna da Imprensa, 13/10/1953). Além desses, a Bienal trazia uma seção de vendas, por meio da qual os artistas comercializavam suas obras expostas. Por esse serviço, a Bienal estabelecia uma comissão de 10% sobre o líquido das aquisições. Parece estranho, a partir da Bienal que se conhece hoje, pensarmos num stand de vendas das obras expostas. Atualmente o aspecto comercial presente na Bienal não está mais ligado diretamente às obras originais, mas se pulveriza por uma série de atividades e facilidades à disposição do público. A XXIV Bienal trouxe, como uma de suas características básicas, o grande número de stands que ofereciam inúmeros serviços e produtos aos milhares de visitantes da mostra. Logo à entrada o visitante percorria a Alameda de serviços, um corredor repleto de lojas que buscavam divulgar, especialmente, algumas publicações da mídia impressa ou os serviços oferecidos por instituições financeiras, principalmente aquelas patrocinadoras do evento. A loja de souvenirs é sempre um dos stands mais concorridos em qualquer grande museu do mundo e na bienal isso não é diferente. Andreas Huyssen comenta que dentro das novas características do museu contemporâneo está o sucesso dessas lojas, muitas delas responsáveis por maiores receitas do que a bilheteria das instituições. Ele aponta ainda, dentro do que denominou museumania, a expansão de veneráveis artigos de museus e do marketing da mostra estampado nas camisetas e pôsteres em que a obra de arte original surge como um meio para vender seus múltiplos derivados, e a reprodutibilidade como uma estratégia para aureolar o original (Huyssen, 1997:236). Com 26 BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA a venda de cartazes, canecas, chaveiros e camisetas, a obra de arte parece ganhar uma nova vida, uma nova aura. Para Walter Benjamin, a reprodução técnica significou a atrofia da aura, mas ao mesmo tempo libertou a obra de arte do domínio da tradição (Benjamin, 1993:168-69). Ele já sabia que essa reprodução técnica significava maior autonomia para o original, aproximando o indivíduo da obra e fazendo as coisas ficarem mais próximas, mas não imaginou que nas lojas de souvenirs dos museus e das exposições no final do século XX as obras originais pudessem ter sua aura reforçada pela venda de suas reproduções em objetos do cotidiano. No caso da Bienal de São Paulo, nas suas primeiras edições, a Seção de Vendas era a encarregada de comercializar os originais. Em suas últimas edições, as obras expostas foram comercializadas na forma de souvenirs. Esse processo relaciona-se a todo modo de vida condicionado pela dimensão estética que penetra o cotidiano das pessoas e define um consumo cultural voltado para a busca de distinção (Featherstone, 1995:97). Mas as principais atividades da Alameda de serviços diziam respeito aos projetos pedagógicos concentrados na monitoria digital e no núcleo de educação. A monitoria digital era feita por um CD com 70 minutos de duração dividido em 46 faixas que podiam ser escolhidas conforme a preferência do visitante que alugasse o equipamento. O nome dos artistas eram associados a uma faixa onde o visitante ficava conhecendo dados sobre sua vida e obra. Uma discreta sinalização no chão indicava se o artista estava incluído no CD. Essa monitoria digital, que há muitos anos não é novidade nos museus estrangeiros, faz parte também do contexto de espetacularização das grandes exposições de arte e reflete o importante papel que a tecnologia desempenha como atrativo para o grande público. A XXIV edição da Bienal de São Paulo foi concebida sobre três ‘es’: Exibição, Educação e Edição, três bases que refletiam as linhas de atuação propostas pelo presidente Júlio Landmann: a ênfase no arranjo curatorial da mostra, a aposta no projeto educacional e o investimento na produção de quatro catálogos cuidadosamente pensados e produzidos. Essas eram também as bases para a captação de recursos com a iniciativa privada, que poderia patrocinar as salas especiais, os catálogos ou os projetos pedagógicos. Assim, a Diretoria de Educação recebeu o apoio de US$1 milhão do banco HSBC, uma quantia que foi uma novidade até para os organizadores do evento. O resultado foi um megaprojeto de educação envolvendo um intenso programa de cursos e seminários que atingiu mais de mil profissionais do ensino público e quase 120 mil alu- BRASILEIRA nos da rede pública que tiveram ingressos gratuitos. Monitores volantes passeavam pela mostra com seus grupos, enquanto dezenas de monitores fixos encarregavamse de tirar as dúvidas do visitante independente. Grupos especiais com portadores de limitações físicas ou mentais eram atendidos pelo Projeto Diversidade, que oferecia roteiros especiais em duas horas de atividades pela mostra. Para um público de massa, a bienal necessitou de projetos pedagógicos também de massa. Isso foi necessário para que o evento cumprisse os objetivos civilizatórios que estavam na base de sua constituição desde os primeiros momentos. Pelo menos desde a segunda edição, em 1953, a atividade educativa foi considerada essencial para que o público pouco habituado à arte moderna pudesse ir incorporando a nova linguagem especialmente vinda com o cubismo e o abstracionismo. Desde então, a atividade pedagógica vem fazendo parte da missão que a bienal sempre carregou consigo: levar ao longínquo país latino-americano um pouco da arte e da cultura produzidas nos grandes centros cosmopolitas da Europa e dos Estados Unidos. Isso faz parte, de uma certa maneira, do longo processo de enculturação descrito por Jesús Martín-Barbero (1997), no qual um trabalho hegemônico realizado por um saber dominante atua na transformação de uma cultura popular atrelada a modos tradicionais de saber e de transmissão deste saber. Nesse contexto, a Bienal de São Paulo não apenas possui projetos pedagógicos, como ela própria é um longo e bem-articulado projeto pedagógico com cinco décadas de existência. NOTAS E-mail da autora: [email protected] 1. A doação total foi de 13 obras, entre guaches, óleos, têmperas e um móbile, que foram divididos entre Rio de Janeiro e São Paulo (Arruda, 2000:291). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T. “A indústria cultural”. In: COHN, G. (org.). Comunicação e indústria cultural. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1972. ALMEIDA, F.A. de. O franciscano Ciccilo. São Paulo, Pioneira, 1976. AMARAL, A. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira (19301970). São Paulo, Nobel, 1987. AMARANTE, L. As bienais de São Paulo, 1951 a 1987. São Paulo, Projeto, 1989. ARRUDA, M.A. do N. Metrópole e cultura: São Paulo meio de século. Tese de Livre-Docência. São Paulo, Departamento de Sociologia, FFLCH-USP, 2000. BAKHTIN, M. 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Palavras-chave: telenovela; produção televisual; territórios de ficcionalidade; recepção. epois de mais de uma década no envolvimento com pesquisas sobre ficção seriada na TV,1 é possível afirmar que a telenovela conquistou seu espaço no campo cultural e ganhou visibilidade no debate em torno da cultura brasileira. Em 1986, quando foi iniciado o projeto de mapeamento da história e produção da telenovela no Brasil (Ortiz, Borelli e Ramos, 1989), ainda não existiam muitas pesquisas acadêmicas sobre o tema.2 Porém, naquele momento, já se considerava a importância da ficção televisiva seriada – mais especialmente a telenovela, no caso brasileiro e latino-americano – como um objeto privilegiado para a compreensão da cultura contemporânea. Ainda assim, a maior parte dos dados coletados em 1986 constava de fontes primárias – evidenciam-se, entre elas, depoimentos e entrevistas3 com autores, diretores, atores e demais produtores culturais envolvidos no processo de construção da narrativa da telenovela – e de informações compiladas por agências de publicidade e propaganda, institutos de pesquisa de mercado e mídia impressa. Devese ressaltar, ainda, que um dos elementos mais significativos na composição do protocolo metodológico desta pesquisa centrou-se na realização de uma etnografia de produção no interior das principais redes de televisão voltadas para a produção de telenovelas neste período: Globo e Manchete. O que se pode constatar, a partir dessas considerações preliminares, é que, apesar de a televisão já ter comemo- rado 51 anos de história (1950-2001) e de a telenovela constar de sua grade de programação, desde a origem – a primeira delas, Sua vida me pertence, de Walter Foster, foi ao ar na extinta TV Tupi, em 1951 –, e permanecer, até hoje, como uma de suas principais atrações, a academia levou cerca de três décadas para começar a refletir sobre o lugar ocupado pela telenovela no campo cultural brasileiro e na vida cotidiana dos receptores. D TELENOVELA E CAMPO ACADÊMICO Muito se debateu 4 estes anos todos sobre os perigos de manipulação, evasão e alienação que emanariam dos enredos melodramáticos e alcançariam o público-alvo – primeiro só as mulheres, depois toda a família –, de forma a transformá-lo num mero reduto de sonhos e lágrimas, vazio de vontades, pleno de ilusões. Esta tendência, sem dúvida hegemônica no campo da sociologia da cultura e mesmo no de uma certa teoria da comunicação com tendência mais crítica, atravessou os anos 70 e parte dos 80 sem que se tivesse alterado, neste período e de forma significativa, um certo preconceito acadêmico em relação à telenovela. Mesmo o aumento gradativo de pesquisas e pesquisadores preocupados com a temática (Fadul, 1993) não conseguiu reverter tal estado da arte. Um dos maiores desafios das pesquisas sobre telenovela corresponde ao confronto com os critérios que legi- 29 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 timam e consagram os objetos dentro do campo cultural e do debate acadêmico. Tais critérios concebiam – e ainda concebem – as narrativas ficcionais televisivas apenas como produtos industriais, simples entretenimento, exteriores à produção artística e às tradições e distantes da esfera dos bens culturais. As críticas negativas foram veementes, até que a telenovela se incorporasse ao rol dos objetos de reflexão ou fosse considerada parte constitutiva do campo cultural brasileiro e latino-americano. Com o passar dos anos, algumas pesquisas se dispuseram a enfrentar o paradoxo que resulta de análises e interpretações sobre os variados e complexos produtos da indústria cultural: se, por um lado, deve-se afirmar sua condição de “mercadorias” – mesmo que “impalpáveis”, como diria Morin (1984:14) – por outro, podem ser considerados “formas culturais” (Williams, 1977; 1992) ou “territórios” de ficcionalidade (Calvino, 1984:49-56) capazes de estabelecer profundas relações de mediação e empatia com os receptores. As razões que justificam a afirmação anteriormente mencionada, sobre a existência de um certo preconceito acadêmico diante do fenômeno das telenovelas, residem no fato de que, neste debate, cultura sempre foi considerada sinônimo de culto, erudito. Ainda que se tenha preservado, no contexto acadêmico, um espaço para a análise de manifestações da cultura popular – compreendida como tradições, raízes –, o popular e o erudito ocuparam lugares distintos e excludentes no cenário da cultura brasileira: o culto restou consagrado aos museus, academias, institutos de arte, grupos literários, enquanto o popular – tratado, muitas vezes, pelo universo culto, como algo necessário a “que se deva conceder” (Matos, 1993) – ficou reservado às etnias, comunidades, “classes subalternas” (Gramsci, 1986) ou ao cotidiano vivido pelos trabalhadores. Os contornos desta reflexão emaranharam-se, e muito, com a consolidação histórica da cultura de massa e a ampliação dos espaços das mídias em todo o mundo. No Brasil, isso ocorre a partir de meados dos anos 60, quando se observa uma cisão que segmentou o campo cultural em três fragmentos polarizados e excludentes: o culto, o de massa e o popular. Por questões que hoje parecem óbvias, o massivo foi responsabilizado, ao mesmo tempo, pela vulgarização do erudito e pela degradação do popular. Para os críticos deste projeto de modernidade, a “cultura de massa” (Morin, 1984) – que não deve ser confundida com a noção de “indústria cultural” (Adorno, 1986) – tornou-se a razão mesma do processo de modernização e os meios de comunicação passaram a ser seus principais instrumentos de realização. A televisão e as telenovelas, fundamentos de uma nova ordem, aparecem como elementos capazes de ocasionar desordens até então inconcebíveis: invadem lares; alteram cotidianos; desenham novas imagens – seria possível uma estética televisual? –; propõem comportamentos e consolidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto para os modelos clássicos e cultos quanto para as tradições populares. Do ponto de vista teórico, o que se pode observar neste debate, hoje em dia, é a presença hegemônica da tradição frankfurtiana para se pensar a cultura contemporânea. Os parâmetros da Escola de Frankfurt começaram a ser apropriados, no Brasil, no final dos anos 60, tanto por intelectuais marxistas quanto por críticos radicais ao marxismo. Um dos trabalhos pioneiros sobre Benjamin e Marcuse é de autoria de Merquior (1969), um “liberal” e “impenitente adversário dos frankfurtianos” (Cohn, 1986:29). No mesmo ano, entretanto, a editora Civilização Brasileira publicou, numa tradução pioneira de José Lino Grünnewald, a hoje famosa reflexão de Benjamin (1969) sobre obra de arte e reprodutibilidade técnica. Em seguida, nos anos 70 e 80, o pensamento frankfurtiano construiu uma trajetória bastante visível e se consolidou no interior de um debate marxista, já significativo nas décadas anteriores, mas apropriado e adaptado, nesta época, com o objetivo de interpretar, criticamente, o modelo de modernização e os processos de industrialização da cultura no Brasil. São vários os intelectuais que escreveram sobre Benjamin e Adorno, ou traduziram seus artigos, 5 passando a desenvolver uma reflexão baseada nos princípios da teoria crítica (Cohn, 1986), abrindo brechas para problematizar o lugar da cultura no interior do debate marxista – determinação/dominância, superestrutura/ infra-estrutura – e sedimentando uma tradição de pensar as mídias – com uma melhor precisão do conceito frankfurtiano: pensar a indústria cultural – sob a ótica do que se denominou “crítica ideológica dos meios” entendidos, estes últimos, como representantes de uma fase complexa de modernização do “capitalismo administrado”. Esta abordagem atravessou as últimas décadas, mantendo-se ativa e hegemônica, até hoje. Todavia, o que se pode observar nos últimos anos é a presença de um certo deslocamento do eixo dessa hegemonia frankfurtiana – ou melhor esclarecendo, hegemonia do pensamento adorniano – em direção a uma reflexão que, por um lado, retoma o diálogo com a tradição inglesa do cultural studies – 30 TELENOVELAS BRASILEIRAS: Hoggart (1973), Thompson (1963) e, principalmente, Williams (1958, 1961 e 1977) e Hall (1975) – e, por outro, recoloca no cenário das tendências o pensamento de Gramsci (1986 e 1999), também presente entre os marxistas brasileiros, desde o final dos anos 60. Entretanto, a perspectiva gramsciana é agora apropriada não como prioridade da reflexão no campo da ciência política, mas também como instrumento privilegiado na análise da cultura e dos conflitos resultantes dos embates e simbioses processados entre as esferas culturais populares, massivas e eruditas. Além disso, mantém-se o diálogo com a Escola de Frankfurt privilegiando, entretanto, menos as tendências preconizadas por Adorno – que, para vários autores, estariam centradas numa radical perspectiva da “dialética da negatividade” – e mais um certo “tom” benjaminiano de crítica à modernidade. 6 O ponto central, capaz de esclarecer este deslocamento, situa-se na possibilidade de incorporar, para além da análise dos meios – produção, ideologia e materialidades econômicas – , outros elementos aptos a dar conta, no caso da telenovela por exemplo, das especificidades do produto – linguagens, “formas” narrativas, “territórios” de ficcionalidade, dimensões da videotécnica – e dos receptores, compreendidos como sujeitos que se apropriam de enredos e tramas e os transformam em novas histórias, mediadas por suas experiências cotidianas, “lógicas dos usos” (Certeau, 1994) e formas de subjetivação. Esta tendência mencionada tem sido assumida e veiculada por vários pesquisadores em todo mundo7 e, em particular, por alguns latino-americanos, entre eles, MartínBarbero (1987 e 1999) e Canclini (1982 e 1990). Conectados ao debate mais geral sobre cultura contemporânea dentro do campo marxista, estes autores situam a cultura dentro de um contexto latino-americano de “modernidade tardia” e problematizam, de forma articulada, as relações entre cultura popular e cultura de massa. Canclini defende, nesse sentido, que a cultura deve ser concebida dentro de contextos históricos “híbridos”. Martín-Barbero caminha em direção semelhante, propondo que, por meio do conceito de “cultura popular de massa”, se possa construir uma totalidade cultural conflitiva e complexa, a partir da qual popular e massivo se entrelaçam, configurando novas formas resultantes da tessitura de diferentes matrizes culturais: não apenas massivo, nem só popular, mas espaço de entrecruzamento, mestiçagem, embate entre elementos da tradição, com outros, que resultam de invenções, variações e rupturas engendradas pelo próprio processo de modernização. BALANÇOS E PERSPECTIVAS É fundamental esclarecer que as abordagens, perspectivas teóricas e autores até então referidos não devem ser encarados de maneira excludente, mas sim de forma a permitir a composição de uma rica teia de conhecimentos, complexamente relacionados. Elucidando melhor: desse princípio – conhecimentos complexamente relacionados – resulta a hipótese de remontar variadas trocas e restituir a origem de muitos dos conceitos que são utilizados, hoje, nesse contexto de reflexão sobre cultura contemporânea. Entre os diálogos possíveis, destacam-se, por exemplo: - as presenças inequívocas de Gramsci – principalmente em relação aos conceitos de “hegemonia” e “cultura popular” – e da perspectiva do cultural studies – sólida na Inglaterra desde os anos 60 –, que permitiram aos latinoamericanos não só reavaliarem o sentido atribuído ao popular, à cultura “comum”, diante da presença cada vez mais forte da cultura de massa, mas também assumirem o objetivo da construção de um conhecimento capaz de superar as barreiras e invadir as fronteiras segmentadas dos saberes “disciplinarmente” constituídos (Barker e Beezer, 1992); - os nexos possíveis entre Gramsci e Bakhtin (Brandist, 1995) e as conexões que Williams (1977 e 1992) estabelece entre os conceitos gramsciano e bakhtiniano de “hegemonia” e “forma”; - o quanto este resgate foi fundamental na delimitação de algumas das noções básicas do pensamento de Williams (1961 e 1977) como as de “estruturas de sentimento”, “tradição seletiva”, “dominante, residual e emergente”; - as tantas heranças que ficaram de Simmel e Benjamin – a brecha possível para a presença dos “narradores” na modernidade, uma particular visão de história e do papel do historiador materialista, a obsessão pela salvação das “origens”, a indagação sobre a possibilidade da “experiência” no mundo moderno, a incorporação das dimensões relativas às “subjetividades do homem contemporâneo” e, ainda, o conceito de “mediação”, que Martín-Barbero (1999) afirma ter herdado de Benjamin; - a hipótese de levar adiante a perspectiva assumida por Morin (1984) da busca de um conhecimento complexo capaz de dialogar com tantas referências e problematizar as também complexas relações colocadas pela cultura de massa na contemporaneidade. O resultado deste mapeamento permite que se qualifique um pouco mais aquilo que anteriormente se denominou “deslocamento do eixo analítico”, retomando-se, agora em outro 31 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 patamar, os seguintes pressupostos: no lugar da reflexão que privilegia a análise dos meios, das indústrias culturais e das mídias, uma outra, que busca as demais complexidades envolvidas nas relações; não apenas TV, enquanto meio de comunicação, mas todo o processo que envolve tanto o pólo de produção das materialidades econômicas – e aqui a contribuição de Frankfurt é imprescindível e deve ser incorporada ao protocolo teórico-metodológico – quanto os demais elementos – linguagens, “territórios” de ficcionalidade, apropriações, usos – entendidos como componentes de uma cadeia de mediações que relacionam indústrias culturais, produtores, produtos e receptores. É a partir deste cenário, em que conhecimentos objetos e saberes batalham por sua legitimidade e consolidação, que podem ser propostas alternativas para os estudos de ficção seriada ou, mais especificamente, para se pensar a importância da telenovela como objeto privilegiado neste contexto de reflexão. Adotando-se como parâmetro a relação entre autores, abordagens e perspectivas anteriormente referidos, tornase possível afirmar que o objetivo mais geral deste trabalho tem sido o de construir uma reflexão que seja capaz de dialogar com conhecimentos que resultam de diferentes origens e inserções e pensar a telenovela a partir de quatro momentos articulados e não dissociados. Nos anos 50 e 60, a “forma” da telenovela encontrase, no Brasil, bastante próxima e indiferenciada dos padrões que lhe dão origem. Pode-se arrolar, aqui, algumas das principais características que compõem o cenário de constituição e consolidação do campo televisivo e, em especial, da esfera de produção das telenovelas, neste período: - fronteiras ainda difusas, em busca de uma linguagem televisual própria, que possa se diferenciar da “forma” literária, radiofônica, teatral ou cinematográfica – notamse, neste contexto, os conflitos e simbioses processados entre os campos da literatura, imprensa, rádio, teatro e cinema, articulados, na TV, ao redor de um importante mecanismo de reprodução das indústrias culturais, a serialização; - narrativa melodramática, com tendência ao dramalhão, ambos “territórios” de ficcionalidade característicos das radionovelas, novelas semanais e dos filmes do cinema de lágrimas; - fabricação em bases mais artesanais que industriais, marcada pela improvisação técnica e pela ausência de critérios de divisão do trabalho capazes de definir, com clareza, as diferentes etapas da produção – roteiros, direção, figurinos, cenários, iluminação, sonoplastia, etc.; - migração de produtores culturais – autores, diretores, atores e demais componentes do processo – que vieram de outros campos como o rádio, o teatro e o cinema; disto resulta um corpo de profissionais não-especializado – afinal, a televisão estava apenas começando, sem qualquer acúmulo de capital cultural que pudesse permitir que os agentes dessem conta dos novos desafios; HISTÓRIA, PRODUÇÃO, TERRITÓRIOS DE FICCIONALIDADE, RECEPÇÃO A telenovela emerge como um objeto de padrão massivo, constituído em constante diálogo com matrizes populares: para considerar o quadro conceitual anteriormente referido, uma manifestação da “cultura popular de massa” (Martín-Barbero, 1987). Originária de tradições, ao mesmo tempo populares e massivas, das narrativas orais, do romance-folhetim ou das novelas semanais (Meyer, 1996 e Sarlo, 1985), das radionovelas (Belli, 1980), do cinema de lágrimas (Oroz, 1992) e da soap opera norte-americana (Allen, 1995), a telenovela brasileira distingue-se, na atualidade, por ser um produto cultural diferenciado, fruto de especificidades das histórias da televisão e da cultura no Brasil. Mesmo que se possa falar genericamente de telenovelas, supondo um formato universalizante de produção e narrativa – e ainda que haja uma proximidade entre as telenovelas latino-americanas e as brasileiras – é importante delimitar as particularidades da história dos campos culturais em que são produzidas, veiculadas e recebidas. - grande número de telenovelas adaptadas de textos literários e, em curso, um processo experimental de formação de autores, em busca de “textos” adequados à linguagem da TV (sinopses, scripts, roteiros), de diretores “aprendendo” a lidar com os recursos técnicos e imagéticos, de atores ultrapassando os limites da “voz” e da experiência radiofônica, para encarar a necessária simbiose entre “fala” e “imagem que fala”, e dos demais agentes envolvidos no processo. Esse panorama alterou-se somente ao final dos 60 e início dos 70, quando começaram a surgir inovações que racionalizaram e sofisticaram o processo produtivo. Destacamse, a partir daí, algumas transformações relacionadas à tecnologia, ao gerenciamento administrado, à qualificação dos profissionais, ao fortalecimento do setor das telecomunicações no Brasil e, também, ao próprio modelo narrativo: 32 TELENOVELAS BRASILEIRAS: - aparecimento do videoteipe, que revoluciona o fazer televisivo e introduz um certo grau de organização, planejamento, “antecipação”, além da possibilidade de repetir, corrigir, restaurar e, mais do que isto, guardar, arquivar, compor um acervo, uma história, uma memória; BALANÇOS E PERSPECTIVAS O principal deslocamento de eixo temático pode ser detectado na ênfase que se coloca, a partir daí, nos enredos voltados à veiculação de imagens da realidade brasileira; incorpora-se à trama um tom de debate crítico sobre as condições históricas e sociais vividas pelos personagens; articulam-se, no contexto narrativo, os tradicionais dramas familiares e universais da condição humana, os fatos políticos, culturais e sociais, significativos da conjuntura no período; esta nova forma inscreve-se na história das telenovelas como uma característica particular da produção brasileira; e estas narrativas passam a ser denominadas “novelas verdade”, que veiculam um cotidiano que se propõe crítico, por estar mais próximo da vida “real” e por pretender desvendar o que estaria ideologicamente camuflado na percepção dos receptores. Destacam-se como exemplos, no interior dessa tendência dos anos 70, autores e telenovelas9 como Bandeira 2 e Saramandaia (Dias Gomes, 1971-72; 1976), Irmãos coragem (Janete Clair, 1970-71), Os deuses estão mortos, Escalada e Casarão (Lauro César Muniz, 1971; 1975; 1976), Gabriela (Walter George Durst, adaptação de Jorge Amado, 1975), entre outros. Com eles, a produção da telenovela no Brasil busca legitimidade por meio do diálogo estabelecido com os campos do cinema, literatura e teatro, todos voltados, desde a década anterior, para a construção de uma crítica articulada ao projeto já anteriormente mencionado: grupos de intelectuais marxistas que se propuseram a enfrentar o debate sobre as relações entre cultura e arte, sobre as exclusões entre popular, massivo e erudito, com o objetivo consonante – ainda que com leituras e interpretações diversas, dependendo da ótica ou da inserção político partidária de seus membros – de conceber uma teoria crítica capaz de projetar novos rumos para a sociedade brasileira, diferentes daqueles propostos pelo padrão de modernização até então vigente. Entretanto, esses intelectuais – antes reconhecidos em seus campos de origem como escritores, cineastas e diretores, mas agora como produtores de TV – tiveram e continuam tendo enorme dificuldade em legitimar seu trabalho, mesmo entre seus próprios pares, pois escrevem, dirigem e atuam numa indústria cultural; estão longe, portanto, de colaborar para a preservação dos padrões artísticos, culturais e cultos, imprescindíveis na construção desta crítica ao modelo de modernidade administrada. Ainda assim, estes autores e suas telenovelas deixaram marcas de distinção e legaram uma herança que se reitera durante a década de 80 e persiste em anos mais recentes; continuam a produzir telenovelas com o objetivo de man- - câmaras cada vez mais leves, que podem ser carregadas ao ombro e que passam a filmar o “mundo lá fora”; estas imagens criam novas atmosferas e propiciam que as tramas não fiquem circunscritas apenas aos cenários “artificiais” dos estúdios, incorporando um tom mais “realista” e “natural” favorecido pelas “cenas externas” – as grandes metrópoles e outras capitais do país, com suas ruas e ladeiras já inscritas no imaginário dos receptores, como cartões postais que divulgam uma cara, uma identidade brasileira, as personagens de ficção que se misturam às pessoas comuns e circulam com elas pela cidade; - introdução da cor, que altera significativamente o modelo produtivo – cenários, figurinos, iluminação, que necessitam não só conceber a imagem nas fronteiras entre o preto, o cinza e as demais gradações até que se atinja a luminosidade do branco, mas também incorporar os múltiplos tons e as diversas transições de uma cor para outra e das variações de tonalidades dentro de um mesmo campo de cores; - maior investimento no treinamento e formação de pessoal para atuar “com qualidade” e com as especificidades do meio, de forma a permitir, mesmo que embrionariamente, a constituição de um corpo de profissionais aptos a responder sobre “o que é fazer TV” e não mais continuar produzindo teatro, cinema, rádio e literatura “na” televisão; - processo de divisão do trabalho que cria departamentos próprios responsáveis pelos figurinos – as atrizes, por exemplo, não necessitam mais trazer de casa seus próprios vestidos de noiva para que a personagem possa se casar – , cenografia, iluminação, música, sons que administram e “industrializam” o processo produtivo, rompendo, em parte, com a improvisação e a artesanalidade; - e, finalmente, para alguns canais de televisão, a transmissão da programação em rede nacional, que resulta da ação concatenada entre o avanço do setor das telecomunicações e a potencialidade de novas tecnologias, em rápida ascensão nos anos 70. 8 O modelo narrativo passa, também, por significativas transformações com a introdução de novas temáticas e do diálogo do melodrama com outros “territórios” de ficcionalidade. 33 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 ter a perspectiva crítica, por meio do diálogo com a realidade brasileira. É interessante observar que muitos receptores referendam estes mesmos critérios de distinção e afirmam que estas são as telenovelas que permanecem na memória: estão catalogadas no rol “das grandes histórias”, “daquelas que ficam”.10 Entre as freqüentemente citadas, destacam-se: Terras do sem fim (Walter George Durst, adaptação de Jorge Amado, 1981-82), Roque Santeiro (Dias Gomes, 1985-86), Roda de fogo (Lauro Cesar Muniz, 1986-87), Tieta e A indomada (Aguinaldo Silva, adaptação de Jorge Amado, 1989-90; 1997), Renascer, Rei do gado e Terra nostra (Benedito Ruy Barbosa, 1993; 1996-97; 1999-00). Além do deslocamento de eixo temático, pode-se também observar, a partir dos anos 70, um descentramento da hegemonia do melodrama provocado pela invasão de outros “territórios” de ficcionalidade,11 como a comicidade, a aventura, a narrativa policial, o fantástico e o erotismo. São tramas que, paralelamente ao fio condutor melodramático, inserem-se no contexto do enredo e passam a dialogar com matrizes constitutivas destes outros “territórios”. Alguns exemplos concretos podem colaborar no esclarecimento desta “mélange” de formas e matrizes: - telenovelas como as de Bráulio Pedroso – Super plá (1969-70), O cafona (1971), O bofe (1972), O rebu (197475), O pulo do gato (1978), Feijão maravilha (1979) –, de Silvio de Abreu – Guerra dos sexos (1983-84), Cambalacho (1986), Sassaricando (1987-88), Deus nos acuda (1992-93), além de outros autores como Carlos Lombardi (Uga-Uga, 2000), apostam num padrão narrativo que mistura traços constitutivos do melodrama com outros da comicidade: a morte e o riso, a maldade e o riso, a tensão e o riso. São estas as matrizes clássicas do melodrama cômico que relacionam, ao mesmo tempo, o riso à gargalhada trágica (Prado, 1972:89-90). Reiterando, há um processo de incorporação de traços da comicidade ao padrão tradicional do melodrama e dele emergem o humor, a sátira e a farsa, em enredos que continuam a falar de amores e ódios, pobres e ricos, justiças e injustiças. Nesse sentido, a comicidade é constitutiva e não exterior ao universo melodramático e estas narrativas podem ser historicamente localizadas nos variados contextos da cultura popular (Bakhtin, 1987); O fantástico desenvolve-se ao redor de um padrão marcado por surpresas não decifráveis pelos mecanismos da lógica racional. A pergunta que o receptor normalmente formula é: aquilo realmente aconteceu? Oscilando e hesitando entre a crença e a dúvida, ele passa a buscar eventuais falhas no sentido narrativo ou mesmo apela para uma explicação sobre a irracionalidade ali contida.12 Estas “novidades” invadem gradativamente o espaço constituído do melodrama e, mesmo sem romper com sua hegemonia, flexibilizam o modelo narrativo gerando alterações significativas no padrão tradicional. Recompor, portanto, a história das telenovelas no Brasil, sob a ótica dos territórios de ficcionalidade, supõe considerar este processo de elaboração e entrecruzamento de traços das matrizes culturais originárias. Isto tudo, aliado aos aspectos já citados de alterações no processo produtivo nos anos 70, 80 e 90, diferencia, e muito, as telenovelas brasileiras das latino-americanas, que permanecem fiéis não só às matrizes clássicas do melodrama, mas também a padrões de produção menos complexos e sofisticados que os de algumas TVs no Brasil. 13 Os territórios de ficcionalidade são fundamentais no processo de construção das mediações e ampliam o leque de conexões e alternativas de constituição do diálogo entre produção, produtos e receptores. Nesse sentido, e com o objetivo de atribuir coerência aos pressupostos teóricos anteriormente analisados, ou seja, o de realizar uma reflexão que possa dar conta tanto da especificidade dos meios – produção de TV, produção de telenovelas –, quanto das particularidades do produto – linguagens, “formas” narrativas, “territórios” de ficcionalidade –, faltam algumas considerações finais sobre a importância de incorporar os receptores ao quadro analítico e concebê-los como um pólo ativo nessa cadeia de mediações; receptores capazes de se apropriar de enredos e tramas e transformálos em novas histórias, mediadas por suas experiências cotidianas, repertórios e formas de subjetivação. Algumas pesquisas de recepção recentemente realizadas (Lopes, Borelli e Resende, 2001) têm confirmado o pressuposto teórico da existência de um contrato de leitura, ou melhor, de um pacto de recepção que prevê que os leitores/espectadores possam se situar como sujeitos ativos, constitutivos e constituintes, dos processos de comunicação. Mediados por suas experiências cotidianas, e por repertórios que resultam de suas posições de classe, gênero, geração, etnia e formas de subjetivação, os receptores mergulham no fascínio das narrativas, histórias, enredos e personagens, reconhecendo os territórios de ficcionalidade, - telenovelas de autores como Aguinaldo Silva, por exemplo – A indomada (1997), Porto dos milagres (2001), entre outras –, dialogam com a narrativa fantástica (Todorov, 1975), sustentada no pressuposto da existência de uma outra lógica, que não a da experiência “real” e cotidiana. 34 TELENOVELAS BRASILEIRAS: BALANÇOS E PERSPECTIVAS dialogando com as dimensões da videotécnica, estabelecendo conexões de projeção e identificação e construindo uma competência textual narrativa. Afirma-se, dentro desta tendência, o pressuposto da existência de um repertório compartilhado, em que produtores, narrativas e receptores – situados em diferentes posições de classe social, gênero, geração, etnia e formas de subjetivação – encontram-se articulados, conflituosamente, numa cadeia de mediações que não diluem em hierarquias, mas também não excluem nenhum de seus elementos da composição dessa totalidade. tores, produtos e receptores Os territórios de ficcionalidade são compreendidos não apenas como modelos literários, mas como matrizes, fatos culturais presentes em inúmeras manifestações da cultura popular de massa; são fluidos, dinâmicos, entrelaçam-se e encontram-se em permanente processo de redefinição e hibridização; ou seja, uma mesma narrativa pode conter traços de variadas matrizes: o melodrama, que se mistura à comicidade e esta, por sua vez, que dialoga com a narrativa fantástica, e assim sucessivamente. NOTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E-mail da autora: [email protected] ADORNO, T.W. “A indústria cultural”. In: COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986, p.92-99. 12. Há, também, outros exemplos de telenovelas em que o melodrama dialoga com matrizes como as da aventura e do erotismo, sendo que esta última apresenta-se como um dos mais significativos elementos de distinção entre as telenovelas brasileiras e outras produções similares. 13. É importante esclarecer que não se pode afirmar a existência de “um” modelo de produção televisiva no Brasil. Uma avaliação mais acurada sobre a produção de telenovelas nas últimas décadas permite perceber que apenas a Rede Globo conseguiu manter um padrão reconhecido de qualidade, com televonelas que são bem-sucedidas em termos de público e exportadas para diversos países. 1. O resultado desse percurso – que envolve várias pessoas, em diferentes momentos – pode ser acompanhado em: Borelli (1996, 1997, 2000a, b e c, 2001); Borelli e Mira (1996); Borelli e Priolli (2000); Lopes, Borelli e Resende (2001); Ortiz, Borelli e Ramos (1989). ALLEN, R. (ed.). To be continued... soap operas around the world. Londres, Routledge, 1995. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento . São Paulo, Hucitec/UnB, 1987. 2. Destacam-se, nesse período, alguns trabalhos pioneiros, como os de Miceli (1973), Khel (1980 e 1986), Campadelli (1980 e 1985), Leal (1985) e Marcondes Filho (1986). BARKER, M. e BEEZER, A. (ed.). Reading into cultural studies. London, Routledge, 1992. 3. Tanto aqueles que fazem parte dos acervos de Idart e Funart, quanto os inúmeros depoimentos coletados durante a realização do trabalho de campo. BELLI, Z.P.B. Radionovela: análise comparativa na radiodifusão na década de 40. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ECA-USP, 1980. 4. Cabe esclarecer que o “debate” a que se fará referência, algumas vezes, neste artigo, diz respeito a uma reflexão assumida por intelectuais marxistas, preocupados em responder pelos rumos da cultura diante de um modelo de modernização que tem priorizado a consolidação das indústrias culturais e a expansão do mercado de bens simbólicos. É evidente que há, fora do campo marxista, outras abordagens, como aquelas vinculadas às teorias funcionalista, dos efeitos, da persuasão, entre outras que não fazem parte das prioridades analíticas desta reflexão. BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: s.ed. (org.). A idéia do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969. _________ . Correspondance (1910-1928/1929-1940). Paris, Aubier Montaigne, 1979. BORELLI, S.H.S. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo, Educ/Estação Liberdade/Fapesp, 1996. _________ . “Los géneros ficcionales en las telenovelas brasileñas”. In: VERÓN, E. e CHAUVEL, L.E. (orgs.). Telenovela: ficción popular y mutaciones culturales. Barcelona, Gedisa, 1997, p.169-178. 5. Ver o levantamento das publicações e traduções dos frankfurtianos no Brasil em: Kothe (1985), Cohn (1986) e Freitag (1986). 6. Alguns autores vêm trabalhando, nos últimos anos, com o objetivo de avaliar as diferenças entre Benjamin e Adorno – análises que priorizam mais as variações/conflitos e menos as recorrências/concordâncias capazes de configurar uma perspectiva frankfurtiana – e de buscar uma certa autonomia de Benjamin em relação aos princípios norteadores da Escola de Frankfurt: ver a instigante reflexão de Buck-Morse (1989) sobre as passagens benjaminianas que utilizou, entre outras fontes de pesquisa, a correspondência de Benjamin (1979) e as trocas entre ele e Adorno. Ver, também, Kothe (1978) e Martín-Barbero (1987). _________ . “Telenovelas brésiliennes, matrices populaires et langages audiovisuels”. In: MIGOZZI, J. (org.). 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É importante salientar que muitas das alterações que definem novos rumos e um patamar diferenciado de produção televisiva no Brasil resultam da entrada da Rede Globo, a partir de 1965 – e de sua consolidação nos anos 70 –, no campo televisual brasileiro (ver Borelli e Priolli, 2000). BORELLI, S.H.S e MIRA, M.C. “Localidades, universalidade: radionovelas e telenovelas no Brasil”. Dinâmicas multiculturais, novas faces, outros olhares. Lisboa, Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, v.II, n.7, nov. 1996, p.755-778. 9. As telenovelas aqui citadas fazem parte do acervo de produção da Rede Globo e sua escolha justifica-se pelo fato de ser esta a única emissora de TV a manter, desde sua fundação, em 1965, um projeto regular de produção de teledramaturgia, com vários horários reservados à ficção seriada em sua grade de programação. BORELLI, S.H.S.; OLIVEIRA, R. de C. e SILVA, E.F. da. Entrevista com Jesús Martín-Barbero. São Paulo, 2000 (no prelo). BORELLI, S.H.S. e PRIOLLI, G. (coords.). A deusa ferida. Por que a rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência . São Paulo, Summus, 2000. 10. Informações obtidas tanto através de realização de Pesquisa Quali, com oito grupos de receptores, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (Borelli e Priolli, 2000:211-253), quanto da pesquisa de recepção de telenovelas com famílias na cidade de São Paulo (Lopes, Borelli e Resende, 2001). BRANDIST, C. “Bakhtin, Gramsci and the semiotics of hegemony”. Max Hayward Fellow in Russian Literature. St Anthony’s College, Oxford (HRB Research Fellow, Bakhtin Centre Copyright), 1995. 11. Os conceitos de “gêneros ficcionais” (Borelli, 1996 e 1997) e “territórios de ficcionalidade” (Borelli, 2001 e Lopes, Borelli e Resende, 2001) têm sido concebidos como elementos de mediação nas relações que se estabelecem entre produ- BUCK-MORSE, S. The dialectics of seeing. Walter Benjamin and the Arcades project. Londres, The MIT Press, 1989. 35 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 CALVINO, I. La machine littérature. Paris, Seuil, 1984. _________ . (org.). Walter Benjamin. São Paulo, Ática, 1985. CANCLINI, N.G. Las culturas populares en el capitalismo. México, Nueva Imagem, 1982. LEAL, O.F. A novela das oito. Petrópolis, Vozes, 1985. LOPES, M.I.V.; BORELLI, S.H.S. e RESENDE, V. da R. (coords.). Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo, 2001 (no prelo). _________ . Culturas híbridas. México, Grijalbo, 1990. CAMPADELLI, S.Y. A telenovela, instrumento de educação permanente. Petrópolis, Vozes, 1980. MARCONDES FILHO, C. “Telenovela e a lógica do capital”. Quem manipula quem? Petrópolis, Vozes, 1986. _________ . A telenovela. São Paulo, Ática, 1985. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones. Mexico, Gustavo Gili, 1987. COHN, G. “Adorno e a teoria crítica da sociedade”. 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Palavras-chave: urbanismo; imaginário urbano; complexidade; interdisciplinaridade. Fornecer respostas a estas questões implica a construção de outras formas de compreensão da cidade e do fenômeno urbano, como parte integrante de um projeto de sociedade planetária, estabelecendo um diálogo interdisciplinar que busque interconexões e possa constituir as bases para um saber menos restritivo e redutor. Nessa perspectiva, as crises urbanas não podem ser pensadas como resultado de um processo linear ou determinado, mas como um processo complexo, que requer uma visão macroscópica, capaz de identificar seus atributos, suas tendências, contratendências, determinações e indeterminações. É certo que a escolha de futuros possíveis é extremamente ampla e variada. Cada opção pode nos parecer como um espelho de nossas esperanças e desejos de ambientes mais humanizados. Marshall McLuhan sugeriu, em 1960, que o mundo inteiro iria se tornar, um dia, uma “aldeia global”, na qual todos os membros da humanidade poderiam interagir num simulacro em tempo real de uma comunidade neolítica. Passados 40 anos, a presença das assim chamadas comunidades virtuais expressa, de certo modo, a realização dessa profecia. Movimentos ambientalistas preconizam o “retorno à natureza”, por meio do estabelecimento de comunidades rurais às margens da civilização urbanizada, enquanto outros movimentos também têm pregado os kibbutzen urbanos, localizados no coração de grandes cidades como Londres, Paris e Nova York. A condição urbana baseia-se na coexistência de oposições e uma só imaginação não basta para integrar as verdadeiras contradições. Rem Koolhaas Desenhar a cidade dos sonhos é fácil; reconstruir a vida requer imaginação. Jane Jacobs valiando-se o quadro geral das cidades atuais – em que os problemas se acumulam em velocidade sempre superior às possibilidades de solução –, algumas questões impõem-se à reflexão: o modelo de cidade moderna, ou pós-moderna, responde às exigências impostas pelo mundo nesta entrada de milênio? O pensamento sobre as cidades, que repousa nos princípios herdados do racionalismo, ainda consegue responder à necessidade de garantir o planejamento e os projetos de sistemas complexos como a cidade e o território? Será que os valores implícitos nesse paradigma ainda são compatíveis com as grandes transformações em curso, como o movimento de desterritorialização, novos princípios de organização do espaço baseados na idéia de fluxos – de matéria, de mercadorias, de capitais, de pessoas, de bens, de informações? Como pensar e projetar o futuro, de forma a garantir que a realidade urbana possa ser vivida como experiência humana, individual e coletiva? A 37 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 As imagens do futuro tecnológico apresentadas pela literatura e pelos filmes têm como motor uma visão pósapocalíptica da sociedade industrial e das grandes cidades, sugerindo perspectivas pouco promissoras para as cidades contemporâneas. De fato, artistas, poetas, romancistas e filósofos, contrapondo-se ao entusiasmo que permeia propostas e intervenções deliberadamente produzidas a partir de princípios de organização técnico-racional, expressam sua preocupação com um futuro utópico baseado não em experiências compartilhadas, mas no conhecimento técnico e seus efeitos em relação às diferentes formas de poder – administrativo, legal e físico –, que se desdobram em imagens de governos repressivos, sociedades violentas, lugares desagradáveis, perda de referências para a identidade pessoal, indivíduos que cumprem rotinas, mas que se saciam nos prazeres materiais. Essa mesma visão também constitui a base para diagnósticos pessimistas sobre o devir das cidades, que se expressam na falta de esperanças quanto a um futuro que possa tornar viáveis espaços urbanos para cidadãos e que possa reverter na melhoria da qualidade de vida, entendida na plenitude dos enraizamentos biopsicoantropossociais do homem. Lewis Mumford construiu a metáfora da cidade como “megamáquina moderna” para expressar suas preocupações sobre as tendências observadas em cidades baseadas no desenvolvimento de um sistema de gestão e administração “maquinal”: “é uma máquina enorme e irracional que ordena, organiza e controla tudo o que pode […] como o Pentágono, a megamáquina é insensível à informação, especialmente a informação da qualidade, que não é compatível com o seu sistema e atrai especialistas, poder e dinheiro para fins que ultrapassam os limites da razão humana. Só tem uma velocidade de funcionamento – mais rápido; só um destino atrativo – mais longe; só um tamanho desejável – maior; só um objetivo racional – mais” (Mumford apud Relph, 1990:120-21). A escala e complexidade da paisagem propiciada por essa megamáquina moderna podem ser percebidas em seus produtos, que incluem arranha-céus, reatores atômicos, terrenos suburbanos sendo ocupados crescentemente, centros comerciais, aeroportos internacionais, parques, shopping centers e tudo o mais que compõe a paisagem contemporânea. Aquilo que deveria ser evidente não é, ou seja, em tal escala e complexidade, tudo o que a compõe depende e resulta de conhecimentos técnicos e de níveis de organização sofisticados. De fato, essa percepção parece não ser imediata, quer porque a preocupação maior esteja voltada à paisagem em si e não às suas origens, quer porque estejamos alienados com as ilusões “imaginhadas”, conforme observa Edward Relph.1 Outras visões, denominadas tecno-otimistas, compartilhadas por autores como Mike Davis (1993), Alan Jacobs e Donald Appleyard (1996), dentre outros, para os quais a tecnologia é pressuposto básico para a melhoria das condições de vida urbana, fornecem recursos para pensar os problemas, a integridade e a viabilidade do futuro dos grandes centros urbanos. Encaminham propostas que remetem a paisagens nas quais à tecnologia agregam-se arquitetura, design, preservação do patrimônio histórico, nobilitação comercial, residencial e planejamento comunitário. Ambas as perspectivas têm fornecido propostas e alternativas para as cidades do amanhã, que oscilam entre o combate e a necessidade de tomar partido das tendências apontadas pelo presente, marcadas pela proliferação de parques temáticos, de experiências urbanas que tendem ao isolamento de grupos, como os condomínios fechados, dos hotéis, aeroportos e shopping centers. Freqüentemente, ao tecno-otimismo opõe-se o tecnopessimismo, lançando prognósticos sombrios baseados na paisagem inóspita e na falta de identidade com os lugares, na perda de autonomia dos indivíduos, presentes em filmes de ficção científica e histórias em quadrinhos. Podese pensar, entretanto, que utilizados em relação de complementaridade, esses termos, relacionados a princípios que operam em níveis distintos, possam contribuir para a construção de um olhar sobre a cidade capaz de captar não apenas suas dimensões objetivas – estrutural, funcional, histórica – mas também subjetivas, referentes a aspectos do inconsciente coletivo que muitas vezes analistas e pesquisadores não conseguem perceber, fornecendo condições para interrogarmos o presente e projetarmos o futuro. Edificadas a partir de princípios universais, presentes num mundo unificado sob o signo da ciência, nossas cidades, e especialmente as grandes metrópoles, ostentam as marcas daquilo que Ramonet denominou “pensamento único” (1995), definindo-o como “a transposição, em termos ideológicos – que se pretendem universais –, de interesses de um conjunto de forças econômicas e, especificamente, daquelas ligadas ao capital internacional”, cujo caráter é restritivo: o econômico prevalece sobre o político, vivencial e simbólico. Sob esse princípio, a par da crise em que se encontram as diversas áreas do conhecimento, em que prevalecem as idéias de ordem, regularidade, previsão, controle, otimização, também se encontram exau- 38 CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE ridos muitos dos conceitos e operadores por meio dos quais as cidades têm sido pensadas, como o planejamento, standardização, técnicas de previsão, tendendo a uma visão reducionista e mecanicista. Torna-se cada vez mais difícil sustentar, nos dias que correm, a idéia de que é possível prever a evolução da cidade a partir de leis simples e regulares. Dada a complexidade das cidades contemporâneas, não é mais possível imaginar, também, que a intervenção em uma parte da cidade não afete o todo ou que os efeitos produzidos por causas diversas possam ser somados segundo procedimentos lineares. Nessa mesma perspectiva, a perda de eficácia desses conceitos e procedimentos pode ser melhor observada quando as cidades são referidas a partir de seus habitantes, em termos de atendimento de suas necessidades materiais e imateriais. Não obstante, a preocupação maior dos urbanistas, planejadores e administradores tem se voltado à cidade e ao território físico, quase como um “indistinto geométrico” (Scandurra, 1998:92-103), a ser ocupado e otimizado; trabalhando, na maior parte dos casos, com evidências empíricas, suas propostas de ocupação, ordenamento, revitalização ou reorganização dos espaços urbanos não alcançam aspectos essenciais que dizem respeito à forma pela qual os habitantes de uma cidade vivem, percebem e imaginam o espaço em que constroem suas vidas. Do mesmo modo, planejadores e administradores ainda orientam suas políticas de intervenção por princípios enunciados há quase um século, pautados por um pensamento contaminado pela ênfase nos negócios e pela ausência de objetivos sociais e políticos que possam reverter na melhoria das condições de vida para a totalidade dos cidadãos. A despeito de haver uma infinidade de estudos da desordem e da decadência das cidades, lançando prognósticos para seu devir, os poucos que apontam na direção de melhorar as condições urbanas e fixar normas para seu crescimento e desenvolvimento prendem-se a visões inocentemente utópicas: de um lado, porque suas bases repousam na crença sem reservas dos dúbios imperativos de uma economia sempre em expansão; de outro, por atribuírem à técnica e à ciência importância máxima e suficiência em relação ao futuro da cidade, como se ambas pudessem, por si, fornecer os instrumentos necessários ao entendimento e à intervenção na cidade, em conjunto com os demais subsistemas que a compõem: tecnológicos, culturais, científicos, sociais e políticos. Com freqüência, quando não secundários, são deixados de lado os aspectos relacionados a seus ritmos, signi- ficados e elementos estruturadores de uma identidade cosmopolita, que poderiam contribuir para alargar o conhecimento sobre a cidade. Prestar mais atenção à sensibilidade dos filósofos, artistas e literatos e de urbanistas que incorporam essa mesma sensibilidade talvez seja um bom caminho para a edificação de projetos urbanos capazes de articular ética e estética, não apenas em termos de um planejamento normativo, mas instaurativo, capaz de conduzir a outras formas de sociabilidade e remetendo-se ao “direito à cidade”, tal como Henri Lefebvre (1991) definiu, em sua utopia urbana. Tais questões estabelecem a necessidade de introdução de alguns elementos essenciais à compreensão das cidades, que têm sido tratados, freqüentemente, de modo fragmentário. Uma questão primordial diz respeito à forma de olhar a cidade que, longe de traduzir apenas imagens parciais, revela “qualificações” do espaço urbano. Além de desvelar o imaginário urbano presente em cada momento, um “olhar consciente” sobre a cidade permite a identificação da relação entre esta e o próprio pensamento, entre o público e o privado, entre os espaços da intimidade e os grandes espaços coletivos urbanos, entre a emergência de distintas formas de sociabilidade e os signos que as sustentam, recuperando algumas das prom essasde nossa cultura.“Se a cidade tem sido um locus de poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e completos à imagem do próprio homem, também tem sido nela que essas imagens se estilhaçaram, no contexto de agrupamentos de pessoas diferentes – fator de intensificação da complexidade social – e que se apresentam umas às outras como estranhas”, conforme aponta Richard Sennett (1997:24), ao procurar entender como os diversos aspectos da experiência urbana – em sua diferença, complexidade, estranheza – sustentam a sociabilidade humana em sua resistência à dominação. Considerando a cidade como “obra de arte” e não como mero artefato, Sennett (1990:170) acredita que impulsos para o desenvolvimento de um olhar consciente possam ser, igualmente, as fontes necessárias para a emergência e mobilização de energias criativas, tornando as pessoas visíveis e recuperando a plenitude dos sentidos. Outro aspecto importante volta-se à necessidade de se reinserir nas análises da cidade a relação entre tempo e espaço, muitas vezes elidida. Na cidade moderna, a relação do caráter estético da unidade entre espaço e tempo e do caráter da sociedade tem sido marcadas pelo divórcio entre ambos, de acordo com a interpretação de Sennett (1990:170). Exemplificando, esse contraste foi a marca, 39 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 no século XX, de projetos como aqueles de Mies Van der Rohe ou de Le Corbusier. Este último queria demonstrar a necessidade de liberdade de movimento em formas perfeitamente coordenadas, expressas no desenho racional das ruas e na fachada de seus edifícios, rejeitando a idéia de que nossas vidas não seriam, nem mais nem menos, uma continuidade ou adição ao passado. Deve-se ressaltar que a revalorização das referências históricas locais, por meio da preservação do patrimônio e do retorno às raízes, tem fornecido paisagens urbanas que aparecem como unidade na diversidade, rompendo com as dualidades que situam a cidade entre a tradição e a modernidade ou, dito de outro modo, entre um passado bárbaro e um futuro prometedor, como na visão iluminista, ou ainda como a traição de um passado perfeito, de acordo com a visão antiindustrial. Vários projetos exemplificam a possibilidade de superação dessas dualidades, conciliando passado e presente, como o fenômeno da crescente ocupação de antigas cidadezinhas medievais que haviam sido abandonadas, especialmente na Itália e na França. Visando estabelecer condições para padrões mais elevados de qualidade de vida, profissionais liberais e artistas recuperaram essas formações, dotando as edificações de todos os requisitos necessários à vida moderna, dentre eles os meios de comunicação e conexão com os grandes centros urbanos, compatibilizando suas necessidades de trabalho com a simplicidade da vida no campo. A revitalização de áreas históricas de Barcelona, Bolonha e Rio de Janeiro, bem como de quadriláteros em Manhattan como Grammercy Park e de ruas como Oxford Street em Londres ou, ainda, de quarteirões em Paris, recuperando exatamente atributos ligados à historicidade, também exemplifica a construção de propostas que tendem a chamar a atenção para a paisagem urbana como conjunto, como contexto formado por elementos múltiplos, fornecendo a possibilidade de leituras menos fragmentárias. É importante, sem dúvida, recuperar a dimensão “antropológica” do espaço, relegada a um plano secundário, com o abuso da geometria euclidiana, segundo a qual as cidades passam a ser pensadas como espaço geometrizado, em que proliferam genealogias do território. Pierre Lévy (1995:22) chama a atenção para o fato de que, como espaço geometrizado, cada ponto é definido por um sistema de coordenadas, “um endereço, ainda que ninguém tenha lhe dado um nome. A história e o algoritmo têm lugar no sistema (do qual a Geografia científica representa evidentemente apenas um caso particular)”. Com isso, a dimen- são “antropológica” coloca-se em plano secundário, como se os seres humanos habitassem, somente, um espaço físico ou geométrico e não afetivo, estético, social, histórico, em síntese, espaço de significações em geral. Torna-se imperativo rever, também, a definição clássica de cidade com um centro, limites e periferia, a fim de se poder traçar as perspectivas para as cidades do futuro, a partir de dois argumentos centrais: o primeiro prendese a características presentes principalmente em grandes cidades e agrupamentos na Ásia e na África, mas também em algumas partes da Europa (mesmo prevalecendo a definição clássica de cidade), que se apresentam como um tecido urbano ininterrupto, no qual coexistem elementos rurais e urbanos, isto é, ausência de limites claros, o que impõe uma outra problemática. O segundo argumento prende-se à necessidade de se dar conta das novas formas de sociabilidade que nascem da sociedade em rede e já estimulam uma série de estudos acerca das comunidades e cidades virtuais. A exposição Mutations, atualmente sendo realizada em Bordeaux, exemplifica a necessidade de introdução de novos elementos nos diagnósticos e prognósticos sobre a condição urbana da época. O discurso de Rem Kolhaas, 2 uma das mais influentes expressões da arquitetura contemporânea, oscilando entre a retórica e o jogo da provocação, coloca os impasses do urbanismo diante de cidades contemporâneas instáveis e da presença de tecidos urbanos ininterruptos, nos quais não se percebem mais com clareza os limites entre rural e urbano. Quando projetou e construiu Euralille, o bairro francês concebido como um emaranhado de autopistas em torno de grandes edificações dedicadas ao comércio e ao transporte, ele chegou a identificar uma nova forma de urbanismo, cuja missão “já não seria dispor ordenadamente sobre o território objetos mais ou menos permanentes, senão colocar em cena a incerteza e o caos do momento”. Desse modo, o sentido da arquitetura não seria mais projetar e prever, mas tomar decisões estratégicas. É preciso entender bairros e áreas centrais, por exemplo, como um sistema dinâmico, com vários elementos em processo de interação e retroação. Assumindo a consciência dos efeitos e do grau de fiabilidade do sistema, os arquitetos deixariam de se levar pela evolução das cidades que ocorre independentemente deles, passando a fornecer instrumentos de reflexão sobre um novo fenômeno da paisagem urbana: a combinação de cityscape e landscape que deve se traduzir por um vocabulário capaz de descrever os fenômenos que circunscrevem novas situações híbridas. 40 CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE De sua experiência em cidades asiáticas veio o convencimento de que aquelas existentes no delta do Rio das Pérolas, na China, nas quais a diferença com o passado e a história da Europa não conta, representam a urbe do futuro. Se Paris foi a capital do século XIX e Nova York a do século XX, a capital do século XXI deverá se parecer com essa formação urbana, uma constelação formada por cerca de uma dúzia de cidades em que a principal é Shegzen, ao norte de Hong Kong. Contando hoje com cerca de 12 milhões de habitantes, prevê-se uma população, para 2020, de 36 milhões. É esse tipo de agrupamento que anuncia a cidade do século XXI, o que coloca em xeque a definição clássica de cidade com um centro, limites e periferia. Ao contrário, nesta nova forma de cidade terá desaparecido toda a idéia de centro e a densidade será completamente disseminada. Ele cita alguns exemplos: “já não haverá a necessidade de ter um metrô ao lado de arranha-céus, ou um arranha-céu ao lado de outro: a Internet e todas as formas de comunicação vão explodir e acabar com esse tipo de lógica. Poderemos ter uma povoação que tenha um arranha-céu de um lado e um campo de arroz do outro, sem que haja qualquer contradição entre estes elementos. São fenômenos que já se observam em certas cidades africanas, como Lagos, na Nigéria”. O tipo de identidade que esses agrupamentos poderão permitir constitui aspecto relevante nas projeções de Kolhaas. Para ele, as referências locais clássicas desaparecerão, entrando em cena a cidade “genérica”, que “será uma libertação, em comparação com identidades demasiado fortes e demasiado confinadas, em benefício de situações bastante mais vagas e portanto mais fáceis de controlar por aqueles que nelas habitam”. A instabilidade e a complexidade das novas formações urbanas não permitem mais que se possa conceber um plano urbano com configurações definitivas a serem mantidas durante 20 ou 30 anos, exigindo novas chaves para interpretação da arquitetura. Por outro lado, deve-se levar em consideração o fato de que nem os conhecimentos teóricos, nem os valores éticos transmitidos de uma geração a outra são adequados à interpretação e ao tratamento das grandes mutações urbanas ocasionadas por fenômenos de dimensões planetárias, como a economia de mercado, a informação, os conflitos bélicos, o que coloca a relação entre ética, estética e planejamento numa outra perspectiva de abordagem. Não obstante, os planos para o futuro da cidade representam, na maior parte das vezes, não um programa de ação ou aquilo que a cidade gostaria de se tornar amanhã, mas um poderoso discurso para nos brindar com um futuro perfeito. Nesse sentido, o pensamento urbanístico e as análises sociológicas tendem a operar diretamente com uma visão ingênua do tempo. O recurso ao passado da cidade oferece elementos para a definição de problemas a serem solucionados, como uma espécie de catálogo, cujos elementos podem indicar uma rota de salvação. Isso posto, parece claro não existir concordância quanto ao passado da memória, ao presente descrito e narrado e ao futuro da imaginação e do planejamento. O passado existe como projeção daquilo que concerne ao presente e o desejo da boa cidade do futuro também existe na imaginação do passado. O futuro perfeito do discurso urbanístico volta-se a predições por meio de escolhas, por meio da representação do presente, expressa no desenho e na arquitetura da cidade. Dessa maneira, o reformismo urbanista não reconhece a densa complexidade do presente senão por meio da representação de desejos que já tenham sido realizados, projetando acontecimentos futuros não como algo desconhecido, mas como representação de um passado a ser recriado, ainda que se assentando em outras bases. Politicamente, trabalhar desse modo com o desconhecido, isto é, buscando correlações de identidade ou uma substância que o articule às pessoas, aos cidadãos, à comunidade, é incompatível com uma imaginação radical democrática, que necessita da historicidade e da contingência para se exercitar na criação de significados. Assim, “o passado é uma projeção bem como uma determinação do presente; o futuro é menos um playground para especulações naturais que uma intimação à inventividade dentro de uma inextricável moldura repressiva” (Schorske, 2000:194). Nesse sentido, ainda que a imaginação necessária à construção e reconstrução de cidades seja produto de nossa tradição iluminista, temos de considerar que operamos numa temporalidade distinta. A definição do “agora” é fundamental para que estejamos inseridos na temporalidade presente, como forma de escapar às políticas que derivam de projeções autoritárias de princípios universais das cidades dos sonhos. Essa é, também, uma questão de liberdade, que consiste, tal como aponta Foucault, numa reflexão crítica sobre o presente. Isso implica a necessidade de se enfatizar a multiplicidade de sentidos e significações que o mundo urbano oferece. A resposta possível ao futuro das grandes cidades dirige-se a uma questão fundamental em nossos dias: revitalizar o sentido das utopias, buscando as energias criativas das manifestações artísticas e retomando o caráter 41 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 instaurativo das imagens urbanas como elemento fundamental. Em outros termos, pensar a cidade do futuro não a partir de perspectivas dualistas, mas colocando em relação dialógica a sensibilidade artística e a racionalidade técnica. É certo que o pensamento urbanístico realizou distinções significativas quanto ao lugar ocupado pela cidade no tempo, a partir de atitudes modelares. A cidade como virtude (medieval) e como vício (moderna), situada entre um passado de trevas (a visão do Iluminismo) ou como traição de um passado áureo (a visão antiindustrial), são idéias que povoaram o imaginário da passagem do século XIX ao XX. O lugar da cidade nesse imaginário só poderia ser salvo por utopia ou projeto radical de volta ao passado ou de salto para o futuro, na reação à falta de nacionalismo da elite liberal cosmopolita e culta, conforme apontavam tanto as propostas de urbanistas, como a produção literária e artística. Não obstante, ainda nesta passagem de século, o pensamento sobre a cidade ainda se nutre de significados que reforçam as tensões, associando-as, tanto aos demônios da natureza humana, com todas as suas perversidades e contradições reais, como à idéia de cidades ideais, que seguem o modelo da “revelação” ou da “purificação”. Nas utopias urbanas contemporâneas, a cidade se transforma em um atributo atemporal, refutando as bases de cem anos atrás, em que se assentavam as experiências urbanas sem, no entanto, desvencilhar-se das ambigüidades então presentes naquele período. Recorrendo a Carl Schorske (2000:67), pode-se afirmar que se “a cidade moderna oferecia um hic et nunc eterno, cujo conteúdo era a transitoriedade, mas cuja transitoriedade era permanente”, apresentando-se “como uma sucessão de momentos variegados, fugazes, e cada um deles deveria ser saboreado em sua passagem da inexistência ao esquecimento”, nas tecnotopias pós-modernas essa transitoriedade é retomada como algo não apenas presente, mas desejável e algo inescapável. É salutar que se tornem correntes, nesse início do século XXI, propostas pautadas por uma não-distinção entre cidade e natureza, que passam a ser interpretadas a partir de outros registros cognitivos, de outro vocabulário, em que comparecem os conceitos de entropia, co-evolução, bifurcação, instabilidade. Isso vem possibilitando a emergência de uma consciência que supera a contraposição entre aquilo que é natural, o que é humano e o que é tecnológico, respondendo à crescente demanda de complexidade, diante da qual não podemos mais reagir com respostas simplificadoras ou reducionismos incapazes de fornecer uma síntese unitária da realidade, concebida como equilíbrio instável. Assim, desenvolvimento da tecnologia, da natureza e da sociedade constituem elementos fundantes de um projeto de cidade de cidadãos, que necessita um olhar macroscópico, capaz de superar as disjunções entre lugar e não-lugar, territorialização e desterritorialização, natureza e cultura. Por outro lado, escapando às formas tradicionais do pensamento, as fontes artísticas e literárias permitem não apenas captar a “imaginação poética”, mas contribuem especialmente para a percepção do imaginário urbano em sentido amplo, isto é, os complexos processos e as múltiplas sociabilidades que a vida citadina apresenta. Em outros termos, se a imaginação poética difere da imaginação racionalista, isto ocorre, antes de tudo, porque a própria noção de espaço obedece a outras regras, distintas daquelas presentes no campo da instrumentalidade política. Ela é sensível à história dos diversos modos de mapear e representar o espaço de visão, perspectiva, plano e representação, convenções cartográficas, da simultaneidade do cubismo, das montagens cinemáticas, mas também dos diferentes modos da experiência subjetiva, em seus aspectos psíquicos, de projeção e introjeção. O olhar do artista, longe de traduzir apenas imagens fragmentárias, revela “qualificações” do espaço urbano. Contrapondo-se, em alguns momentos, convergindo, em outros, com a interpretação de urbanistas e arquitetos, 3 a cidade surge, para os artistas, como espaço de experiência polissensorial e dinâmica, a partir de estruturas denotativas de sua estrutura mental, cultural e física. Quem não reconhece a Paris moderna nas telas de pintores impressionistas como Manet, Monet, Renoir e outros? Ou São Petersburgo retratado nos textos de Dostoievski? Ou, ainda, a Paris de Baudelaire, Londres de Dickens? A Nova York de Woody Allen? Ou a São Paulo de Mário de Andrade e de Caio de Alcântara Machado? A metrópole representada, evocada ou reinventada pelos artistas, literatos e cineastas desde o final do século XIX até nossos dias, suscita interpretações múltiplas e contraditórias, revelando as metamorfoses profundas, as ameaças da civilização urbana, os modos de apropriação material e simbólica, os elementos vitais do imaginário urbano, resultando em imagens paradigmáticas. Assim, o recurso à literatura, às artes plásticas e ao cinema permite um processo de compreensão que evidencia uma forte correspondência entre a produção cultural e as experiências e modos de subjetividade especificamente urbanos: a frag- 42 CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE mentação, a falta de profundidade, o caráter de dispersão, a instabilidade, a descontinuidade, a experiência do tempo como um presente perpétuo, de caráter espacial. Artistas, escritores e cineastas aparecem como portadores de um pensamento e um conhecimento que sintetizam, simultaneamente, uma realidade material e ideal. Sua atividade não pode ser reduzida à interpretação do espaço urbano a partir de elementos visuais ou traços mnemônicos e imaginários, mas deve ser inserida na complexidade da vida urbana como experiência produzida por uma necessidade: “o que a produz é a necessidade, para quem vive e opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação espacial em que opera” (Argan, 1969:21). Em síntese, as artes realizam o que Jameson denomina “mapeamento cognitivo”,4 expressando um desejo de totalidade, constituindo imagens capazes de fornecer um sentido de tempo e de lugar a partir do qual pode-se construir não apenas um sentido de orientação para movimentação no espaço da cidade, mas também formas de compreensão da realidade cultural e sociopolítica que esta representa. Ao olhar as grandes cidades, chamam a nossa atenção o tráfego, as edificações, o movimento das pessoas, as diferentes combinações de informações e signos que permitem ao pensamento sociológico, político, econômico e cultural uma série de associações. Em nível mais profundo, temos de reconhecer que tais associações condensam um rigoroso espaço simbólico. Falamos em estar na cidade, em percebê-la e vivê-la não apenas porque vemos, ouvimos e sentimos, atribuindo significados a seus espaços, mas porque ela própria se converte em categoria do pensamento e da experiência. Penso que arquitetos e planejadores tenham de se voltar às formas pelas quais os ambientes são criados e recriados, tanto em sua dimensão lógica quanto estética, inserindo suas preocupações na perspectiva da ética. Mas a cidade não pode ser pensada apenas como projeto, espaço produzido, conjunto finito de bens e funções visíveis, mas como um sistema aberto. Na visibilidade de seus processos de desenvolvimento devem ser percebidos os elementos intangíveis, os aspectos e lugares simbólicos da cultura que permitem a construção de cidades imagináveis. Quando nos debruçamos sobre a reserva de memória coletiva, povoada por descontinuidades, desejos, sonhos, abrimos caminho para alimentá-la quanto às prospectivas para o tempo que está por vir. Torna-se urgente, nessa perspectiva, um enfrentamento dos desafios postos que também possibilite reencantar a consciência sociopolítica-cultural: há de se reconhecer as utopias, de modo a fazer frente ao criticismo doentio e ao ceticismo desabusado; sem resvalar no relativismo, buscar responder aos clichês dos discursos ético e político da mundialização, que asseguram uma imagem de mundo e das grandes metrópoles sob a aparência moral da homogeneização das culturas. Ética, estética e política devem e podem andar juntas para pensar o habitar ou o viver na cidade, desde que se desvencilhando das alternativas de modelização. Para isso torna-se condição necessária o reconhecimento da diferença, da singularidade e da universalidade, fazendo emergir o jogo das temporalidades e das incertezas presentes no contexto das metrópoles contemporâneas. A metáfora do hipertexto, 5 construída por Pierre Lévy para a compreensão da lógica que articula os elementos da comunicação, é válida, também, para todas as esferas da realidade em que as significações estejam em jogo e, portanto, para enriquecer nossa interpretação da cidade. Serve, principalmente, para sinalizar a possibilidade de saberes menos restritivos que, baseados em seus princípios, possam apontar um futuro promissor para as metrópoles contemporâneas. Podemos ter esperanças para nossas cidades? O que, em particular, podemos delas esperar? Todos nós almejamos viver em lugar seguro, sem transtornos e felizes; entretanto, que essas esperanças possam vir a ser fundadas numa outra forma de pensar a cidade, não mais a partir de padrões normativos ideais, mas no alargamento da imaginação, que deve contribuir para a apropriação do tempo, do espaço, da vida e do desejo, de modo a introduzir o rigor na invenção e o conhecimento na utopia. A arte, a técnica e a ciência, em perspectiva dialógica, podem contribuir para a constituição de procedimentos mentais capazes de apontar a emergência de modelos da realidade urbana, visando a restituir formas de sociabilidade pautadas pela apropriação e fruição de espaços e temporalidades múltiplas e reafirmando o direito à cidade como apelo, como exigência: “o direito à cidade não pode ser concebido como um direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada” (Lefebvre, 1991:116-17). Se a cidade é um espaço simbólico no qual exercitamos nossa imaginação, penso ser possível que ela própria contribua com respostas criativas para a definição de nosso ethos: de “como estar ‘em casa’, num mundo no qual nossa identidade não é dada, nosso estar junto está em ques- 43 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 em produções televisivas e cenários de filmes, a imaginharia ultrapassa esses limites, constituindo a base para a construção de aldeias-museu cuidadosamente recriadas em seus pormenores, mas que omitem seus aspectos negativos. Exemplos disso são as réplicas de colônias americanas como Pilgrim Fathers, em Massachusetts, as Habitações Históricas para o Futuro, em Toronto e Kimberley, réplica de uma cidade de mineradores construída na Columbia Britânica. Confome Relph (1990). tão, nosso destino é contingente e incerto: o mundo da violência de nossa própria auto-instituição” (Rajchmann, 1991). A alma de São Paulo, com seus encantos entrópicos, que se expressam no desejo de seus habitantes, 6 pode alimentar e conduzir a prospectivas para seu futuro: 2. Todas as referências a citações de Kolhaas foram extraídas de entrevistas concedidas aos jornais Público, Portugal, 02/04/1999 e El País, Espanha, 17/02/2001. Rem Kolhaas é, também, um dos organizadores do catálogo da Exposição Mutations e autor da obra Delirious New York, publicada pela Routledge, Nova York, 1991. São Paulo, 25 de janeiro de 2034, 17h:15m. A conclusão do megaprojeto 2001 marca os 480 anos da cidade. 3. Este foi o tema de uma exposição realizada em Barcelona, entre junho e outubro de 1994, intitulada “Europa 1870-1993. Visiones urbanas. La ciudad del artista. La ciudad del arquitecto”. A comemoração dos 480 anos de São Paulo tem, hoje, um sabor especial. Multidões celebram em praças, ruas e avenidas a concretização do megaprojeto, iniciado no ano 2001, visando a melhoria das condições de vida e de renovação da cidade. Os conselhos comunitários das subprefeituras prepararam os festejos que acontecem em vários lugares: às margens dos Rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros, com águas limpas nas quais se pode novamente nadar, como há 100 anos, cujo projeto de urbanização se completou com a entrega dos parques que os ladeiam, abrigando uma série de atividades desportivas e culturais; no centro da cidade que, após a reabilitação de edifícios, trouxe de volta muitas pessoas que ali moram, trabalham e podem desfrutar dos prazeres de andar a pé para fazer compras, apreciar as artes plásticas, a música e as manifestações de grupos artísticos em completa segurança. Estes festejos acontecem, também, em todos os bairros, comemorando a implantação do sistema integrado de transportes que funciona por transmissão mista – térmica e elétrica – que, mesmo antes de ser completada, já vinha trazendo benefícios às populações locais, sendo mais baratas, reduzindo os níveis de poluição do ar e os ruídos. Finalmente, a metrópole saudável, equilibrada, responsável e cidadã, desejada por seus habitantes em 1999, está se tornando realidade… 4. Conforme Jameson (1995:14). O autor constrói o conceito de mapeamento cognitivo reportando-se ao pós-modernismo, atribuindo-lhe uma função política, na medida em que considera a efetividade do aparato cultural do pós-modernismo como veículo de um novo tipo de hegemonia ideológica, por meio da exportação da lógica consumista norte-americana, bem como de seus produtos e valores culturais, pelos instrumentos da globalização. Tomo emprestado o conceito não como instrumento de despolitização, conforme o sentido atribuído pelo autor, mas como instrumento de politização, isto é, como elemento instaurativo de estratégias de representação e mapeamento da cidade, presentes nas formas e práticas urbanas. 5. Seis são os princípios que articulam a lógica hipertextual, segundo Lévy: os princípios da metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade e escala, exterioridade, topologia e mobilidade dos centros, que levam à interpretação das imagens e paisagens de sentido. Conforme desenvolvido por Lévy (1990). 6. As fontes dessas “predições” são entrevistas com arquitetos, urbanistas, artistas e moradores de São Paulo publicadas em jornais e revistas, na passagem dos anos 2000 e 2001. Conforme O Estado de S. Paulo, (30/12/1999 e 31/12/2000) e Revista Veja São Paulo, (22/01/2001). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGAN, G.C. La storia dell’arte. Milão, Einaudi, n.1-2, 1969, p.21. DAVIS, M. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Ed. Página Aberta, 1993. JACOBS, A. e APPLEYARD, D. “Touvard na urban design manifesto”. In: LEGATES, R. e STOUT, R. The city reader. Nova York, Routledge, 1996. JAMESON, F. Espaço e imagem. Teoria do pós-modernismo e outros ensaios. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995, p.14. LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo, Ed. Moraes, 1991. LÉVY, P. L’intelligence collective. Paris, Éditions La Découvert, 1995, p.22. _________ . Les technologies d’intelligence. L’avenir de la pensée à l’ère informatique. Paris, Éditions La Découverte, 1990. O ESTADO DE S. PAULO. “Como será a São Paulo de 2020”. 31/12/1999. _________ . “A São Paulo que gostaríamos de ver” 31/12/2000. RAJCHMANN, J. Truth and Eros. Foucault, Lacan and question of Ethics. Londres, Routledge, 1991. RAMONET, I. Le monde sans route. Le monde diplomatique. Paris, out.1995 (suplemento). RELPH, E. A paisagem urbana moderna. Lisboa, Edições 70, 1990. NOTAS E-mail da autora: SCANDURRA, E. “L’urbanistica: la disciplina ‘moderna’ a cultura contemporânea” Revista Pluriverso. Milão, n.2, 1998, p.92-103. SCHORSKE, C. Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. [email protected] 1. Edward Relph desenvolveu o conceito de “imaginharia” como engenharia imaginativa da ilusão. É o mundo de Walt Disney, que capta o verdadeiro caráter da criatividade apoiada técnica e cientificamente, que subjaz às ilusões da Segunda Idade da Máquina. Embora mais concentrada em lugares como a Disneylândia, SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1997. _________ . The conscience of the eye. The design and social life of cities. Nova York, Norton, 1990. 44 CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA ANTONIO PEDRO TOTA Professor de História Contemporânea do Departamento de História da PUC-SP Resumo: A produção musical de Noel Rosa, embora importante, é pouco notada pelo meio acadêmico. A obra deste artista demonstra (evidencia ou participa das) as mudanças na estrutura estética da música popular e, principalmente, consegue captar as transformações da sociedade em época de transição. Palavras-chave: modernidade; urbanização; samba. o plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba do ritmo amaxixado, dando uma pontuação mais elaborada e em sintonia com o processo de urbanização. No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/ moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932, São coisas nossas, uma clara referência ao primeiro filme falado brasileiro – Coisas nossas (Catani e Souza, 1983). A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira: Queria ser pandeiro/ prá sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa (...). A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na pele do pandeiro/corpo brasileiro despontam a saudade daquilo que está distante e impossível de ser revertido, isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de nossas contradições: O samba, a prontidão e outras bossas,/ São nossas coisas... São coisas nossas! Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa sem dinheiro e, na música de Noel, o termo prontidão é usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira. Baleiro, jornaleiro/ Motorneiro, condutor e passageiro/ Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça/ Coisa nossa, coisa nossa (...). Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas “profissões”, no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – “profissões” de homens sem profissão. A idéia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 30: Noel coloca sentados, lado a lado, no bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra a prestação como com o agiota que empresta a juros extorsivos, explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho. O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da modernidade coletivizadora lembrado por um João do Rio, na realidade carioca, ou cantado por um Mário de Andrade, na sua paulicéia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já o se- N 45 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 gundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário. Menina que namora/ Na esquina e no portão/ Rapaz casado com dez filhos, sem tostão/ Se o pai descobre o truque dá uma coça/ Coisa nossa, muito nossa! Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo. Menina que namora no portão guarda restos do namorico inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico e sacana (tua mão na minha pele a batucar). Esse namorico inocente de portão é posto em cheque com a revelação do namorado rapaz casado com dez filhos (e o que é pior, sem tostão). Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer que essa classe média só vai adquirir identidade com a futilidade proporcionada pela mídia impressa, radiofonisada e depois televisiva das décadas de 50 e 60. Noel, como extraordinário crítico da sociedade, é também o flaneur moderno que atribui à multidão uma alma. O artista valia-se de métodos modernos para denunciar o impacto da modernidade. O moderno, em certos momentos, como limitador das manifestações lúdicas do amor, pode ser combatido com a própria modernidade. É o caso de Três apitos, composição de 1933: Quando o apito/ Da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos/ Eu me lembro de você Pois você anda/ Sem dúvida bem zangada/ E está interessada/ Em fingir que não me vê Você que atende ao apito/ De uma chaminé de barro/ Por que não atende ao grito tão aflito/ Da buzina do meu carro? Sou do sereno/ Poeta muito soturno (...). O flaneur luta contra o apito da fábrica de tecidos, utilizando outro instrumento da modernidade: a klaxon, isto é, a buzina. Os duelos baudelerianos davam-se entre o proletariado-esgrimista e a modernidade burguesa que o gestava e o aniquilava de um só golpe (Berman, 1989). No Brasil, Noel se aproxima mais da proposta oswaldiana, que apresenta o boêmio (sou do sereno) como o contrário do burguês e não o proletário clássico, expropriado da mais valia marxista. Daí o automóvel, outro ícone da modernidade individualizadora, símbolo da velocidade amorosa dos modernistas/futuristas, usado contra os apitos das chaminés que ferem os ouvidos do homem sensível às transformações antilúdicas amorosas. Diz-se que Noel tinha ciúme de um guarda-noturno que namorava Josefina, a musa inspiradora de Três apitos. Noel dividia a tecelã com o guarda-noturno, mas tinha outros amores também numa confusão de paixões e desilusões que, sem dúvida, o inspiraram na composição de várias canções: Mas você sabe/ que enquanto você faz pano/ Faço junto ao piano/ Esses versos prá você. Relações afetivas pessoais cruzando com a crítica social. Em 1931, Noel entrou em contato com Erastótenes Frazão, importante homem de teatro do Rio de Janeiro e freqüentador da Praça Tiradentes, onde estavam localizados o teatro Recreio, vários bares e cafés, ponto de encontro de compositores, jornalistas, artistas, malandros e trabalhadores do teatro. Frazão foi apresentado a Noel por Nássara,1 chargista e conhecido compositor-boêmio carioca, campeão de concursos de músicas carnavalescas. Frazão convidou Noel para trabalhar em Café com música, peça inspirada nos bares que serviam café e incluíam, no cardápio, apresentações de sambas de novos compositores. Para a peça de Frazão, Noel compôs Quem dá mais (ou Leilão do Brasil): Quem dá mais?/ Por uma mulata que é diplomada/ Em matéria de samba e de batucada/ Com as qualidades de moça formosa/ Fiteira e vaidosa, e muito mentirosa Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis!/ Ninguém dá mais de um conto de réis?/ O Vasco paga o lote na batata/ em vez de barata/ Oferece ao Russinho uma mulata (...). O primeiro “artigo” brasileiro a ser oferecido é a mulata, logo na primeira estrofe. Noel dá um tratamento à temática que faria arrepiar os estudiosos de gênero e, principalmente, os de etnias, num momento em que o chamado multiculturalismo está em voga. Será fácil fazer uma crítica ao compositor de Vila Isabel sem levar em conta sua época. Mas o tom absolutamente melancólico do leiloeiro que apregoa o “artigo” (tento relativizar o Noel politicamente incorreto com as aspas) sugere ao ouvinte que ele não quer se “desfazer” do “produto”. A mulata metamorfoseada em Brasil insere-se na economia de mercado numa antecipação às privatizações feitas, sintomaticamente, em leilões multinacionais: as qualidades são anunciadas e os lances são repetidos monotonamente. Diplomada em matéria de samba e de batucada. A sensualidade da mulher brasileira é, mesmo num samba mais “político”, tema recorrente: feiticeira, vaidosa... Foram essas qualidades das brasileiras que fizeram Waldo Frank, o intelectual socialista americano da Política da Boa Vi- 46 CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA zinhança (Frank, 1943), repensar, 11 anos depois, as relações de gênero que trazia de seu país. Claro que às qualidades referidas somava-se a mentira que, para Noel, era positivo (A mulher que não mente não tem valor, do samba Mentir [Mentira necessária] de 1932 gravado por Mário Reis). Quem levou a mulata foi o português do Vasco. Segundo Omar Jubran (2000), no irrepreensível trabalho de recuperação da obra do Poeta da Vila, Russinho, “jogador de futebol mais popular do Brasil”, havia sido premiado com uma barata da Chrysler, como eram chamados os automóveis esportivos na época. Mas Noel troca semanticamente a barata por uma mulata, e passa na segunda estrofe a oferecer outro produto, marca da brasilidade: (...) Quem dá mais.../ Por um violão que toca em falsete,/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio/ Foi posto no prego por José Bonifácio Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis!/ Quem arremata o lote é um judeu/ quem garante sou eu/ Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...). Noel sugere nossa desestruturação cultural: o violão tocando em falsete, um violão que só existe na metáfora. O artigo foi posto no prego pelo patriarca da independência, como forma de levantar fundos para tapar os buracos da nossa dívida externa feita por D. Pedro. O lote, talvez de violões que pertenceram ao imperador, foi arrematado por um judeu. Só mesmo ignorando a História e a historicidade de Noel para acusá-lo de anti-semita, como fez “Jorge Mautner, romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda pop [que] preferiu esquecer o Noel compositor e letrista” (Máximo e Didier, 1990:491). Isto porque, em Cordiais saudações, Noel já havia se empenhado nas mãos de um judeu: “Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude na intimidade/ (...) A vida lá em casa está horrível/ Ando empenhado nas mãos de um judeu”. E o leilão do Brasil continua: Quem dá mais.... quem dá mais?/ Quem dá mais de um conto de réis?/ Dou-lhe uma, dou-lhe duas, doulhe três/ Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/ Que também é brasileiro/ Que em três lotes vendeu o Brasil inteiro/ Quem dá mais????? À venda estava o Brasil lúdico, do samba que exprime dois terços do Rio de Janeiro, expressão da singularidade cultural brasileira. Assim, Noel aponta, seguindo uma tradição de pensadores do porte de Dunshee de Abraches, Manoel Bomfim, Silva Jardim e Lima Barreto, a submissão de uma classe dominante em relação ao capital estrangeiro. A dívida externa, a nossa dependência e o sentido do progresso foram objetos de várias outras composições do autor em vôo solo ou em parceria. Em 1933, Noel compôs com Orestes Barbosa Positivismo que, como pode ser depreendido pelo título, não tinha como fonte de inspiração nenhum objeto mais prosaico: A verdade meu amor mora num poço/ É Pilatos lá na bíblia quem nos diz/ e também faleceu por ter pescoço/ O inventor da guilhotina em Paris Vai orgulhosa querida/ Mas aceita esta lição:/ No câmbio incerto da vida/ A libra sempre é o coração/ O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que dever vir por fim/ Desprezaste esta lei de Augusto Comte/ E foste viver feliz longe de mim/ Vai coração que não vibra/ Com teu juro exorbitante/ Transformar mais esta libra/ Em dívida flutuante. O progresso enaltecido pelo positivismo liga-se à guilhotina jacobina. O nosso jacobinismo, o da República da Espada, não conseguiu livrar-nos da dívida externa em libra acumulada pelos vários empréstimos. Os juros eram exorbitantes. A Revolução de 1930 retomou a política de valorização do café, produto em queda no mercado consumidor internacional arrasado pela profunda crise do capitalismo. A política de valorização do café, pela queima ou destruição da safra, alterou, ainda que não profundamente, o quadro. A dívida foi postergada: o governo Vargas tomou algumas medidas que contrariavam os interesses dos credores internacionais. A destruição do café e a crise geral brasileira foram mote para outra canção de Noel. Em Samba da boa vontade, composto em parceria com João de Barro, em 1931, são apontadas, por meio de uma fina ironia, as mazelas de país dependente em época de crise internacional. A música composta por Braguinha e Noel era contemporânea dos acontecimentos decorrentes da Revolução de 1930: (...) Viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o teu sorriso/ Mesmo que a vida esteja feia/ e que vives na pinimba/ Passando a pirão de areia (...) Comparo meu Brasil/ A uma criança perdulária/ que anda sem vintém/ Mas tem a mãe que é milionária/ E que jurou, batendo o pé/ Que iremos à Europa/ Num aterro de café. Clara referencia à malversação de nossas riquezas. Riqueza e pobreza eram temas presentes em praticamente toda obra de Noel. Filosofia, samba de 1933, é um dos muitos exemplos: “Mas a filosofia/ Hoje me auxilia/ A viver indiferente assim/ Nesta prontidão sem fim/ vou fingindo que sou rico/ Pra ninguém zombar de mim.” Porém, a riqueza e a pobreza, em Samba da boa vontade, referiam-se ao país e não ao indivíduo. A riqueza jogada no mar, ou seja, o café faria um aterro que daria para che- 47 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 gar na Europa (Jubran, 2000:24). Riqueza de país monocultor-colonial em meio à pobreza generalizada. Para além da crítica social, a obra de Noel está cheia de signos pessimistas. Mesmos nas canções compostas com certo humor, percebe-se o crescente uso de temas como tristeza, pobreza, felicidade, infelicidade, saúde, paixão, etc. Já em Cordiais saudações, samba de 1931, cantado por Noel acompanhado pelo Bando de Tangarás, o tratamento melancólico da melodia é acentuado pela interpretação do autor: Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude, na intimidade/ Vá te encontrar gozando saúde/ Na mais completa felicidade. O defeito físico de Noel – o queixo afundado – ficava mais notável com a fase adulta e, por isso, evitava grandes reuniões sociais. Entretanto, ele tornava-se cada vez mais conhecido pelas suas músicas. Aos 22 anos já era uma figura pública. Como flaneur buscava nos bares, botequins e cabarés, cada vez mais, seu refúgio. Nestes lugares há uma certa identidade de objetivos dos freqüentadores: a busca da felicidade mesmo que efêmera, como pode ser visto em Quem ri melhor, samba de 1936: Pobre de quem já sofreu nesse mundo/ a dor de um amor profundo/ Eu vivo bem sem amar a ninguém/ Ser feliz é sofrer por alguém/ Zombo de quem sofre assim/ Quem me fez chorar hoje chora por mim/ Quem ri melhor é quem ri no fim. Numa festa, a anfitriã não conseguiu esconder o espanto diante do defeito físico do compositor. Noel sentiu, e compôs a canção, já mencionada, Mentir (Mentira necessária): Mentir, mentir somente para esconder/ A mágoa que ninguém deve saber/ Mentir, mentir, em vez de demonstrar/ a nossa dor num gesto ou num olhar/ Saber mentir é prova de nobreza Para não ferir alguém com a franqueza/ Mentira não é crime/ É bem sublime o que se diz/ Mentindo pra fazer alguém feliz. A máscara e a face. Uma saída afetiva para serem contornadas as mazelas de uma alma ferida. Em Fita amarela, o conflito entre os opostos inseparáveis, isto é, a vida e a morte: Quando eu morrer/ não quero choro nem vela (...) Se existisse alma/ si há outra encarnação/ eu queria que uma mulata/ Sapateasse no meu caixão. Morte anunciada atenuada pela sensualidade. A mulata dançando sobre o caixão representa a vida erotizada. A música de Fita amarela não chega a sugerir algo melancólico, imprimindo vida à letra que fala da morte. Depois que Noel encontrou Oswaldo Gogliano, o Vadico, as composições ficaram ainda mais melancólicas e pessimistas. É o que acontece com Feitio de oração, a primeira canção que fizeram juntos, música de Vadico e letra de Noel: Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ O meu peito invade. A cada dia Noel consumia mais álcool. Cervejas e biritas, na expressão de Aracy de Almeida, eram lenitivos e anestésicos para a alma perturbada do poeta. Boêmio, ia dormir muito tarde. Chegava em casa com o sol nascendo. Alimentava-se mal. Começava a trabalhar por volta das 5 horas da tarde. Ia para um bar encontrar outros compositores, ou a uma estação de rádio ou gravadora. A vida amorosa do boêmio Noel era coerente com a busca angustiante de si mesmo: de namoricos no portão às paixões arrrebatodoras pelas damas de cabarés. Uma tocou fundo seu coração, tratava-se de Ceci. Porém, o namoro “sério” foi com Lindaura, mulher de 17 anos, cuja mãe acusou Noel de sedução de menor de idade: ou casa ou vai para a cadeia. Noel preferiu cadeia (Máximo e Didier, 1990:280). O artista parecia responder, aos que exigiam dele uma satisfação, com sambas como Capricho de rapaz solteiro: Nunca mais essa mulher/ me vê trabalhando/ Quem vive sambando/ Leva a vida para o lado que quer/ De fome não se morre/ Nesse Rio de Janeiro/ Ser malandro é capricho de rapaz solteiro/ A mulher é um achado/ Que nos perde e nos atrasa/ Não há malandro casado/ Pois malandro não se casa. A pressão familiar, de ambos os lados, não deixou outra saída senão o casamento. Aos 23 anos, sem festas, Noel parecia entrar em contradição, pois malandro não se casa. Talvez Noel fosse um malandro às avessas, como as letras de suas canções Malandro medroso e João Ninguém. Mesmo assim, encarava o casamento como simples acidente. Na luta interna que se travava no interior de sua alma, Tanatos parecia levar a melhor sobre Eros. Noel tinha seus pulmões tomados pela tuberculose, doença que atingia parcela considerável dos boêmios. Na mesma proporção que a doença avançava, a situação na casa parecia cada dia mais insuportável. Dinheiro cada vez mais escasso e Lindaura, a esposa, queria trabalhar. Noel respondeu: Você vai se quiser/ Pois a mulher/ Não se deve obrigar a trabalhar/ mas não vá dizer depois/ que você não tem vestido/ E o jantar não dá pra dois (...). O médico de Noel, Dr. Graça Melo, sabia que a única saída era a mudança radical de estilo de vida. Isto era impossível para o poeta/moderno/esgrimista que se entregava à boemia, em especial onde trabalhava Ceci, sua amada do cabaré. Eram atitudes suicidas afinadas com a posição 48 CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA fim a mão de Noel se quedou imóvel” (Almirante, 1977:213). Aracy de Almeida e Benedito Lacerda tinham acabado de gravar, naquela mesma noite, Eu sei sofrer, uma das últimas composições de Noel: Quem é que já sofreu mais do que eu/ quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi um prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/ Quem sofreu mais do que eu não nasceu/ Com certeza Deus já me esqueceu Mesmo assim não cansei de viver/ E na dor eu encontro prazer/ Saber sofrer é uma arte/ E pondo a modéstia de parte,/ Eu posso dizer que sei sofrer (...) Conflito, crítica e pessimismo estiveram sempre presentes em grande parte da obra de Noel Rosa. Mesmo nas canções mais hilariantes e humoradas, denota-se um certo pessimismo. Conflito entre a vida e a morte. Os limites entre Eros e Tanatos. A poesia conflituosa do poeta urbanista. Noel fraquejava diante das forças superiores da modernidade que pesavam sobre seus ombros. Forças desproporcionais. Baudelaire, Balzac, Nietzche sentiram o mesmo. Suicídio e modernidade. Suicídio não como fuga covarde. Benjamin suicidou-se... Não fazer concessões ao ambiente que é hostil ao artista. Tal suicídio não é desistência, mas heróica paixão (Benjamin, 1985; Berman, 1989). do “herói moderno”. Mesmo assim, fez a tentativa: seguiu o conselho do médico e mudou de ares. Foi para Belo Horizonte e, da capital mineira, escreveu ao Dr. Graça Melo: Já apresento melhoras,/ Pois levanto muito cedo/ E ...deitar as nove horas/ Para mim é brinquedo A injeção me tortura/ E muito medo me mete/ Mas minha temperatura/ Não passa de trinta e sete! (...) Creio que fiz muito mal/ Em desprezar o cigarro/ Pois não há material/ Para o exame de escarro! (...). Em Belo Horizonte começou a trabalhar na Rádio Mineira e entrou em contato com compositores, voltando novamente para a noite boêmia. Belo Horizonte tornouse pequena para o herói suicida. Voltou para o Rio de Janeiro dizendo-se curado. Tuberculose curava-se com tratamento prolongado e o de Noel foi rapidíssimo, ou seja, não estava curado. Voltou a freqüentar os bares e a trabalhar na composição de novas canções. No Bar do Ponto, o Dr. Graça Mello encontrou o compositor e o alertou, mas Noel continuou sua saga. Encontrava-se com mais freqüência com Ceci, a dama do cabaré. Ela tentava evitálo, pois tuberculose era facilmente transmissível. Noel, sentindo-se rejeitado, compôs: Provei do amor todo o amargor/ Que ele tem/ Então jurei/ Nunca mais amar ninguém (...) O pai, que estava internado num sanatório, havia se enforcado. Aliás, o suicídio fazia parte da história da família. Durante a juventude do compositor, a avó havia se enforcado em uma árvore no quintal do “chalé modesto”. Profundamente deprimido, Noel bebia, fumava e emagrecia rapidamente. Tentou, ainda por duas vezes, mudar de ares, mas a proximidade da morte de um poeta angustiado deixava claro que era inútil. No Rio de Janeiro, no chalé com a família, sentado na cadeira, pouco se movimentava. Almirante (1977) registrou em No tempo de Noel Rosa – livro clássico para os estudiosos da música brasileira – os últimos momentos do poeta da Vila: “No dia 4 de maio [1937] na rua Teodoro da Silva no 385 festejava-se o aniversário de Dona Emília, esposa do violonista Vicente Gagliano (...) Pela noite adentro ouviase o conjunto de Heitor que, entre diversos números populares, não deixava de executar as músicas de Noel (...) Por volta das 21:30hs, enquanto D. Marta [mãe de Noel] e Lindaura no portão se despediam de amigos da família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira notou que o doente abria os olhos esgazeadamente (...) Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a mesinha da cabeceira, em cujo tampo (...) ficou batendo pancadas surdas, ritmadas, esmorecendo (...) Por NOTAS E-mail do autor: [email protected] 1. Em entrevista concedida ao autor, em maio de 1978, Nássara confirmou a versão entremeada de vários episódios pitorescos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977. BENJAMIN, W. “A modernidade”. In: KOTHE, F.R. (org.). Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo, Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais). BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1989. CATANI A.M. e SOUZA, J.I. de M. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1983. FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1976. FRANK, W. South American Journey. Nova York, Duell, Sloan and Pearce, 1943. JUBRAN, O.A.J. Noel pela primeira vez. Brasília, Funarte – Ministério da Cultura, 2000 (livreto). MÁXIMO, J e DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1990. 49 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO São Paulo território de Adoniran Barbosa MARIA IZILDA SANTOS DE MATOS Professora do Departamento de História da PUC-SP. Entre suas obras destacam-se: Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues; Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana; Meu lar é o botequim. Resumo: Estas reflexões focalizam a produção musical e a trajetória artística de Adoniran Barbosa, privilegiando os anos 40, 50 e 60. Suas composições são identificadas como uma forma de estar e se apropriar da cidade, e nelas emergem experiências urbanas intensas e emocionais, rastros de memória afetiva da São Paulo de outros tempos. Palavras-chave: São Paulo; música; Adoniran Barbosa. le é a voz da cidade”, dizia Antonio Cândido sobre Adoniran. Em suas músicas captura-se uma memória afetiva da cidade de ou1 tros tempos e sua produção é uma construção de memória possível para a cidade, portanto seletiva na escolha dos territórios urbanos e de seus personagens, permitindo perceber as múltiplas experiências urbanas na São Paulo que, cada vez mais, nos anos 40, 50 e 60, assumia as relações de cidade-progresso. A urbanização acelerada caracteriza São Paulo nesse período; o intenso crescimento transformaria a cidade em uma metrópole moderna. Nesse processo coexistiam permanências, demolições e construções, ampliavam-se obras públicas e novos territórios passavam a ser definidos, novas áreas comerciais e financeiras, além da reterritorialização da zona do meretrício e da boêmia. Os planos de intervenção urbana, orquestrados nas gestões de Fábio Prado (1935-38) e Prestes Maia (1938-45), procuraram remodelar a cidade e tornaram viáveis novas áreas em expansão, como os projetos da Companhia City, os jardins (Europa, Paulista, América), que traziam a moderna maneira de viver. Convivia-se com muita novidade, o Mercado Novo, o estádio Municipal do Pacaembu, os novos viadutos do Chá, Major Quedinho e Martinho Prado, a Avenida 9 de Julho e a Biblioteca. Também se formaram novas periferias e a cidade crescia sem parar, reconstruindo intensamente a relação centro-periferia. Na administração de Prestes Maia foi estabelecido um novo desenho urbano – o Plano Avenidas – que procurava ampliar o centro comercial, como também era claro o incentivo ao mercado imobiliário e o estímulo ao crescimento da cidade e sua verticalização. 2 As construções cresciam, migrantes do Nordeste e do interior do Estado de São Paulo chegavam em número significativo e ajudavam a erguer a cidade, contribuindo para a mistura que se caracterizava pelos contrastes, ambigüidades, incorporações desiguais e combinações inquietantes. Formava-se um mosaico de grupos étnicos e seus descendentes, que simultaneamente desejavam se incorporar e diferenciar, e davam novas sonoridades à cidade, impregnando-a de múltiplos sotaques e várias tradições. 3 Com a intensificação industrial e comercial, quarteirões e bairros diferenciavam-se segundo a predominância das atividades ali estabelecidas; ruas, vilas e cortiços/malocas povoados por migrantes mostravam a latência de um espaço entre a casa e a rua em que ocorriam trocas permanentes, estabelecendo relações dinâmicas, criando laços de solidariedade e estratégias de sobrevivência. No ano de 1954, São Paulo comemorou seu IV Centenário de forma emblemática e, dando tom às festividades, escolheu-se como slogan a frase “São Paulo – a cidade que mais cresce no mundo”, síntese da exaltação ao progresso, marca de ufanismo num quadro de apologia das “E 50 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO conquistas, triunfos e glórias dos paulistas. A “invenção” da paulistaneidade forjou-se na perspectiva do progresso, do trabalho, nos signos da metrópole industrial e das chaminés, pressupondo certas construções do passado: a fundação da vila pelo jesuíta José de Anchieta, o palco da independência, elegem-se como mito os bandeirantes, identificando-os como “heróicos paulistas que desbravaram os sertões e construíram a grandiosidade do território nacional”. O ritmo da modernidade contaminava São Paulo, transformando-a em um novo território repleto de automóveis, ônibus, caminhões, buzinas, sons e odores, o ritmo acelerado dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, a falta de tempo, os novos magazines, os modernos edifícios do centro novo cada vez mais altos. São Paulo assumia o emblema da modernidade, os arranha-céus e as chaminés, “a cidade que não podia parar”, mas mantinha a sua garoa como símbolo. O viver moderno de São Paulo trouxe transformações culturais e nos significados das experiências, mas sem que outras formas de vivência tenham desaparecido: mantiveram-se residuais, convivendo com experiências emergentes (Williams, 1992), sendo possível reconhecer um campo em comum entre os sujeitos históricos que as vivenciavam. Estabelecia-se uma tendência, uma espécie de vetor comum homogeneizador que criava a impressão de que os elementos da modernidade predominavam de modo absoluto, contudo fatores tradicionais exerciam ações reguladoras, podendo-se dizer que não ocorria uma simples substituição de padrões, mas a redefinição dos elementos tradicionais, um ajustamento que comportava, ao mesmo tempo, resistência e/ou inconformismo (Cândido, 1982). Essas modificações pautaram-se por novas vivências cotidianas, nas quais se constituíram novas organizações do tempo-espaço, e originaram-se outras formas de homens e mulheres apreenderem os fenômenos que vivenciavam. Não que todos compulsoriamente tenham passado a viver de acordo com esses padrões e absorvido as perspectivas de vida que se formaram, mas as imagens desse novo ideal de vida não deixaram de ser sonhadas, desejadas e incorporadas por uns e refutadas por outros. O crescimento urbano era tenso de nostalgia,4 de uma cidade que não podia mais se recuperar, cujas memórias se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas: quebra de valores tradicionais, destruição de vínculos afetivos, amizades, vizinhanças, cadeiras na calçada, serestas na garoa, feiras e festas, destruição de espaços e territórios. Uma cidade que tentava escapar, por mais TERRITÓRIO... que seu crescimento procurasse estabelecer novas formas de controle. A cidade de São Paulo transformava-se incessantemente. Adoniran, um observador atento, captava, com um sotaque próprio (ítalo-paulistano-caipira), os flashes do cotidiano, as experiências de muitos que viveram esse processo, nos cortiços, malocas e bairros como Brás, Bexiga, Barra Funda, Casa Verde. Esse observar a cidade implicava o exercício de caminhar a pé (de dia e de noite), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as entonações, sintaxes, sonoridades e também se distanciar, buscando a inspiração-reprodução concretizada nas composições. As canções podiam surgir de um caminhar pela cidade, como flaneur (é o caso de Saudosa maloca, 1951); a matéria modelar de suas músicas subentendia integrarse com essas experiências pelo seu falar, não só presente no sotaque ítalo-paulistano-caipira, mas também na melodia e no modo de cantar, específicos da cultura urbana paulista. Os anos 50 são caracterizados por uma certa euforia, particularmente vivenciada em São Paulo. Durante o governo JK (1955-60), a cidade conviveu com a aceleração da industrialização, entrada do capital estrangeiro, modernização da produção, ampliação de certos bens de consumo, em particular os automóveis, tornando a sociedade mais veloz, também mais conectada pelo rádio e particularmente mais visual com a penetração lenta da TV e marcada por um número crescente de cinemas e teatros. 5 NA SONORIDADE DA ERA DE OURO DO RÁDIO Os anos 40 e 50 são conhecidos como a “era de ouro do rádio” no país. Nesse período, as rádios expandiram-se por todo o país e passaram a ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas, informando, divertindo e emocionando, somadas à circulação nacional do disco, às publicações especializadas, ao cinema americano e nacional.6 Nesses anos, o rádio divulgava um samba que se diversificava rítmica e poeticamente,7 sua cadência mais tradicional começou a ser substituída segundo os novos gostos. 8 O samba de meio-de-ano dominava a noite. Assim, um mercado musical (fonográfico e radiofônico) se estabelecia e generalizava, no qual o popular, em transformação, convivia com a música internacional na dinâmica da oralidade no cotidiano citadino em ebulição (Wisnik, 1983). Em São Paulo, a rádio surge fundada por Assis Chateaubriand (Tupi), unindo-a aos jornais. Em 1940 ha- 51 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 via um total de 12 emissoras, nos anos 50 já eram 17, com destaque para a líder de audiência, a Record, que teve participação ativa no Movimento Constitucionalista de 1932. No seu apogeu, além da rádio-novela e do rádio-jornal, havia programas de auditório, tanto musicais como humorísticos, todos com boa audiência. O trabalho nas rádios contava com artistas de circo, teatro, e também anônimos, cantores e aventureiros. A rádio em São Paulo mantinha conexões com as emissoras do Rio de Janeiro, particularmente com a Rádio Nacional, e os sucessos circulavam nacionalmente, mas também se veiculava toda uma produção de caráter regional, atingindo mais diretamente a informação, o humor e o gosto musical local. No humor, além dos grandes sucessos do Rio de Janeiro (Balança mas não cai, Tancredo e Trancado), em São Paulo destacavam-se a Marmelândia (Max Nunes e Haroldo Barbosa), a Rua do Sossego e Histórias das malocas (Record, 1955) que mantêm boa audiência até 1966, entrando em declínio a partir de 1967. Através do humor, o residual podia ser recuperado, o estranhamento perante o emergente e/ou moderno era colocado, o antigo tornava-se arcaico, a inversão possibilitava dizer o não-dito, ou o repetido que circulava no cotidiano, fazendo surgir anti-heróis, trocadilhos, paródias, personagens tragicômicos e outros elementos, levando os criadores a construir conexões com os ouvintes. Nesse contexto Adoniran atuou com maestria, como humorista e sambista. de urbana. Freqüentava as lojas de música do centro, ponto de encontro de interessados, pois começava a fazer músicas. Também tentou o teatro e, sem muito sucesso, arriscou-se em programas de calouros. Por sugestão de Antonio Rago, tentou a Rádio Fontoura, ainda nos seus primórdios, na qual passou a cantar com Laurindo de Almeida, João do Banjo e Aragão do Pandeiro. Em 1933, fruto de muita insistência, consegue seu primeiro contrato como cantor e depois como locutor. Dessa época, datam seus primeiros sambas: Minha vida se consome e Teu orgulho acabou. Mas em 1934 se destacou quando obteve o 1º lugar no concurso carnavalesco da Prefeitura de São Paulo, com a marchinha carnavalesca Dona boa.10 Começaria uma trajetória pelas rádios. Por volta de 1935 foi contratado pela Rádio São Paulo e depois pela Difusora. Como o trabalho com a música era eventual e não possibilitava um ganho fixo, outras estratégias apareceriam, como trabalhar num escritório de contabilidade ou morar com a sogra no Tatuapé. O retorno ao rádio ocorreria na Rádio Cruzeiro do Sul, aí permanecendo até 1941, quando passou a trabalhar na Record, em rádio-teatro e musicais, como discotecário, locutor e rádio-ator. Nos anos 40 o destaque na trajetória de Adoniran é sua atividade como rádio-ator. Seus tipos eram inspirados em pessoas comuns, falas e entonações desenvolvidas nos diferentes territórios da cidade, e o ser ator acabou imprimindo elementos que se tornariam fundamentais para o compositor. A atuação de Adoniran era cotidiana, segundo a revista Rádio-teatro (Krausche, 1985). Nas segundas-feiras assumia o humilde marido Confúcio das Dores, às 21 horas, em Solteiro é melhor; já nas terças estava no Convite ao samba; às quartas, em Show castelo e em Vale quanto pesa; às quintas, em A presença do trio; às sextas, em O crime não compensa; aos sábados, em Sítio do bicho-de-pé; e aos domingos, em A grande filmagem, compondo o cast com Anselmo Duarte, Ilka Soares, duas orquestras, regionais e cantores, sob a direção de Blota Jr. Além de se apresentar diariamente em Charuto e fumaça, sátira do esporte, e no Sítio dos tangarás, aos sábados, no qual assumia vários personagens: caipira, cantor, vilão, viajante, etc. Entre seus sucessos, destacam-se Barbosinha mal-educado da Silva, aluno da Escolinha Risonha e Franca; Guiseppe Pernafina, motorista de táxi do Largo do Paissandu; dr. Sinésio Trombone, o gostosão da Vila Matilde; Moisés Rabinovitch e o Zé Cunversa, do programa Casa da sogra. A VOZ DE SÃO PAULO: ADONIRAN BARBOSA Adoniran Barbosa9 nasceu João Rubinato, em 6 de agosto de 1910, em Valinhos, São Paulo. Era filho de imigrantes italianos, e ainda menino, já residente em Jundiaí, começou a trabalhar com o pai no serviço de cargas da São Paulo Railway. Não terminou o curso primário, exerceu várias atividades como entregador de marmitas, varredor de fábrica, tecelão, pintor, encanador, serralheiro e garçom. Aprendeu o ofício de metalúrgico-ajustador no Liceu de Artes e Ofícios, mas por problemas pulmonares passou a ter outras ocupações. Em 1932, em São Paulo, ao mesmo tempo que exercia as funções de entregador de uma loja de tecidos da 25 de março, tornou-se cantor-ambulante batucando na caixinha de fósforo, marcando, como outros cantantes, a sonorida- 52 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO O sucesso maior foi obtido no programa Histórias das malocas (1955), com destaque para Charutinho, o malandro malsucedido e desocupado do Morro do Piolho, tangenciando para a crítica social. Trazia o caráter nostálgico da denúncia de uma cidade em construção-destruição, com movimento e ritmo assustadores num presente degradado, que só uma sintonia com esses tempos de transformação poderia captar: algo que muitos sentiam mas não sabiam transmitir. Como artista intimamente ligado ao rádio, o sucesso neste veículo mostrou sua afinação com a sensibilidade do seu público, as camadas populares da metrópole paulista que lhe possibilitavam audiência garantida. Os textos do programa eram de Oswaldo Moles, mas os elementos de oralidade, as entonações e o timbre, eram uma criação-recriação de Adoniran. A parceria com Oswaldo Moles na criação dos textos humorísticos e musicais marcou o caráter da crítica social, o humor do programa centrava-se numa construção caricatural do cotidiano dos habitantes da favela do Morro do Piolho, onde não só se tornava viável a comicidade, como era possível apontar as tensões-contradições sociais: “Terezoca – Pois é Deus fez o mundo... Os anjo fizero os passarinho... Os muleque fizero as arapuca. Charutinho – Os engenheiro fizero as casa e as ponte. Terezoca – Despois veio os trabaiadô e fizero as rua. Charutinho – Vieram os chanfé e fizero osa lotação. Terezoca – Depois viero os sabido e fizero os barcão. Charutinho – Depois vieram os vagabundo... E eles falaram, ansin. Sabe o que nóis faiz? Nóis num faiz nada...” (Bento, 1990). Nesse sentido, temos a atuação de Adoniran como humorista, seus personagens, seus sotaques e suas falas representam os burburinhos de uma cidade em mudança, que ele mesmo definia como “osservatore dos tipos de rua”, característica presente nas suas composições, também marcadas por suas experiências boêmias. As composições se ampliam a partir de 1935: Agora podes chorar; A canoa virou; Chega; Mamão; Pra esquecer; Um amor que já passou; canções diversificadas, diferenciando-se do estilo que posteriormente iria lhe trazer o sucesso. A fusão do humor e da música atingia a maturidade nos anos 50, e vieram os sucessos nas vozes TERRITÓRIO... dos Demônios da Garoa, com Malvina, que em 1951 ganhou o 1 o lugar num concurso carnavalesco, Joga a chave, em 1953, Saudosa maloca, composta em 1951,11 Samba do Arnesto e as Mariposas de 1955, que serviram de inspiração para o programa Histórias das malocas. Dessa experiência surgem outras composições: Segura o apito e Aqui Gerarda, mas foi em 1964 que ocorreu o estouro com o Trem das onze, seguido de outros sucessos. Esse momento de maior sucesso do compositor coincidiu com a efervescência do desenvolvimento urbanoindustrial da cidade. Nos programas Histórias das malocas e nas composições desse período, Adoniran passou a mostrar uma sintonia cada vez maior com o cotidiano da cidade, seus personagens, a linguagem, a maneira de falar, os dramas que envolviam a população pobre dos cortiços e favelas. Suas composições se caracterizaram pela síntese de sotaques, entonações peculiares das múltiplas migrações que povoaram e repovoaram a cidade de São Paulo. Seus papéis no cinema e na TV foram mais discretos; seu grande veículo foi o rádio, no qual recebeu vários prêmios como humorista. Na procura de uma conexão mais direta com o público levou seu programa humorístico para os circos na periferia da cidade, mas o sucesso não lhe possibilitou grandes ganhos financeiros. Astro de rádio, circo, disco, cinema nacional e também TV. No cinema, atuou em Caídos do céu (1946), ao lado de Dercy Gonçalves, fez Pif-paf (1947) e O cangaceiro (1953). Ao lado de Mazzaropi destacou-se em Candinho, Nadando em dinheiro e A carrocinha. Também atuou em Esquina de ilusão e Bruma seca. Em 1968, na I Bienal do Samba, teve desclassificada a composição Patrão, mulher e cachaça, em parceria com Oswaldo Moles. Nesse mesmo ano, a audiência do programa Histórias das malocas caía e com o suicídio de Oswaldo Moles foi tirado do ar. Adoniran não era mais tão requisitado, de vez em quando uma ponta na TV Record, pequenas atuações como em Ceará contra 007 (novela humorística) e Papai sabe nada, assim se mantendo até a aposentadoria (1972), com um mísero ordenado. Entre 1973/76 atuou em algumas novelas da Tupi: Mulheres de areia, Os inocentes, Xeque-mate e Ovelha negra. Nos anos finais da vida não abandonou sua peregrinação diária: o restaurante Parreirinha (reduto de sambistas), o La Barca (um bar da General Jardim) e a passada no Estúdio Eldorado, um pouco mais cedo, como boêmia vespertina. 53 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 Morreu em 23 de novembro de 1982, deixando a inesquecível imagem caracterizada pelo olhar inquieto, a gravata borboleta, o paletó e o chapéu. mem incorpora de forma mais dinâmica as intensas transformações no espaço público. Situação próxima encontra-se em Iracema, que morre atropelada por não conhecer bem os códigos da cidade que cresce em ritmo assustador: “Iracema, eu nunca mais eu te vi/ Iracema, meu grande amor, foi embora/ Chorei, eu chorei de dor porque,/ Iracema, meu grande amô foi você/ Iracema, eu sempre dizia/ cuidado ao atravessá essas rua/ Eu falava, mas você não me escuitava não,/ Iracema, você travessô contramão/ E hoje ela vive lá no céu/ E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor/ De lembrança, guardo somente suas meia e seus sapato/ Iracema, eu perdi o seu retrato./ (declama chorosamente) Iracema, fartavam vinte dias/ Pra o nosso casamento/ Que nóis ia se casá/ Você travessô a São João/ Vem um carro te pega/ E te pincha no chão/ Você foi pra assistência, Iracema/ O chofer não teve curpa, Iracema/ Paciência, Iracema, paciência”. (Iracema, Adoniran Barbosa, 1956) TERRITÓRIOS SONOROS12 DE ADONIRAN BARBOSA “...as melodias de Adoniran Barbosa fluíam como as próprias ruas da cidade: para cima e para baixo, mudando de direção, largas e estreitas” Zuza Homem de Mello O ritmo acelerado da cidade-progresso atraía e chocava no cantar de Adoniran; em Conselho de mulher, mostra humoristicamente a resistência ao trabalho, tendo como personagens o malandro e a mulher disciplinadora: “Quando Deus fez o homem/ Quis fazer um vagolinho que nunca tinha fome/ E que tinha no destino/ Nunca pegar no batente/ E viver folgadamente/ O homem era feliz enquanto Deus ansim quis/ Mas depois pegou Adão/ Tirou uma costela e fez a mulher/ Desde então o homem trabalha pr’ela/ Vai daí, o homem reza todo dia uma oração: ‘Se quiser tirar uma coisa de bão/ Que me tire o trabalho/ A mulher não’/ Progréssio, Progréssio/ Eu sempre escuitei falá/ Que o progréssio vem do trabaio/ Então amanhã cedo nóis vai trabaiá/ Progréssio/ Quanto tempo nóis perdeu na boemia sambando noite e dia/ Cortando uma rama sem parar/ Agora escuitando os conseio da mulhé/ amanhã vou trabalhar/ se Deus quiser/ (breque) Mas Deus não qué”. (Conselho de mulher – Adoniran Barbosa, Oswaldo Moles e João B. Santos, 1953) A canção retrata um fato cotidiano da metrópole – atropelamento. Rememora Adoniran: “Iracema foi que eu vi no jornal, cuitada, eu vi. E não foi na São João, foi na Consolação, foi no dia em que eu li a notícia... falei, aqui vai dar um sambinha. Foi o primeiro samba errado que eu fiz. Iracema...”. A cidade mostrava-se violenta em seu crescimento, as transformações urbanas são irreversíveis, criando uma visão idílica de um tempo-espaço perdido diante do progresso, um tipo de inconformismo que se aproxima da resistência e aponta a denúncia, apregoa a paciência e deixa claras a dor e as tensões da violência urbana. 13 A cidade de Adoniran encontra-se atravessada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, passando a ser reconhecida como espaço de tensões. Em Saudosa maloca, Abrigo de vagabundos e O despejo da favela têm-se as resistências ao dito processo civilizatório, da luta contra o “arcaico pela ordem e progresso”; de um desejo latente e generalizado de “ser moderno” que impregna a cidade, agindo de forma seletiva, construindo a questão social e a identificação do outro – o pobre, o migrante –, e tornando a questão da moradia uma tensão do momento: “Se o sinhô não tá lembrado/ dá licença de contá/ que aqui onde agora está/ esse edifiço arto, era uma casa véia/ um palacete assobradado. Foi aqui seu moço,/ que eu Mato Grosso e Joca A crítica não é ao trabalho em si, mas ao caráter que o trabalho assume como sombrio e pesado, manipulado e explorado na sociedade industrial. A canção apresenta todo um movimento, inicialmente enaltecendo o progresso e o trabalho possibilitados pela sociedade industrial e urbana, personificados pelos conselhos da mulher; em oposição aparece a boêmia “sambando noite e dia/cortando uma rama sem pará”, mas a inversão, a ironia e/ou o humor emergem com o breque, que possibilita a inversão do sentido contido na poética, ao romper a melodia que permite a entrada da frase “mas Deus não qué...”. Da mesma forma, o progresso faz-se presente em Viaduto Santa Efigênia, na qual Eugênia se deslumbra diante do novo viaduto mostrado pelo namorado, já que o ho- 54 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO construímos nossa maloca,/ mas um dia nós nem pode se alembrá veio os home co’ás ferramenta/ o dono mandô derrubá... Saudosa maloca, maloca querida/ donde nós passemos os dias feliz de nossas vida”. (Saudosa maloca, Adoniran Barbosa, 1955) TERRITÓRIO... rava no Brás; aparecem referências ao Morro do Piolho, a Casa Verde e a Vila Esperança; um samba tinha como território o Bexiga, outro focalizava o viaduto Santa Efigênia; e o trem partia para o Jaçanã. Sempre mostrando uma cidade em crescimento e transformação, que demolia e construía, enfim, que avançava. Em 1959, em Abrigo de vagabundos, ainda se conseguiria uma maloca perto da Mooca, mas em despejo da favela (1969) era-se expulso “pelo oficial de justiça” para uma outra periferia. Nesse momento, a cidade reorganiza seus territórios, a zona da boêmia encontra-se em processo de modernização o que exclui alguns, expulsando a malandragem e a prostituição; procura-se um saneamento social na região central, aliado a uma intensa especulação imobiliária e à expropriação. O tema da violência, da solidão urbana, articula-se com a nostalgia de tempos, espaços e sons perdidos, em que a tristeza emerge, como em Bom dia tristeza, em parceria com Vinicius de Morais: 14 “Bom-dia tristeza/ que tarde tristeza/ você veio hoje me ver/ Já estava ficando/ até meio triste/ de estar tanto tempo/ longe de você/ Se chegue tristeza/ e sente comigo/ aqui nessa mesa de bar/ Beba do meu copo,/ me dê o seu ombro que é pra eu chorar,/ chorar de tristeza,/ tristeza de amar”. Expressando o inconformismo (Chauí, 1989), a acomodação e a resistência, envolvido num discurso da denúncia, até certo ponto ingênua e plena de sensibilidade, Adoniram chama a atenção, traz à memória para que se lembre e observe o edifício “arto”, e em torno desse foco que relembra o acontecimento: a expulsão do cantor, juntamente com os companheiros Matogrosso e Joca. A expulsão segue-se à demolição, que permitia a emergência do novo empreendida pelos “home co’as ferramenta”. Matogrosso “quis gritá”, mas foi acomodado – “nóis arranja otro lugá”. O inconformismo ainda se mantém e “só se conformemo/ quando o Joca falou/Deus dá o frio conforme o cobertô”, o que poderia parecer conformismo encontra-se pleno de denúncia que surge no ato de rememorar os dias felizes passados na maloca querida, sendo que o engraçado não se reduz ao imediatamente alegre. No programa Histórias das malocas e nas canções destacava o caráter comunitário do viver-em-maloca, um lugar provisório, improvisado, vulnerável às adversidades e à escassez. Utilizando os comportamentos dominantes e criticando de forma contundente a sociedade e seus valores, polariza o rural e o urbano, o tradicional versus o moderno. Pode-se identificar todo um intenso e rico processo de circularidade entre esses valores, o qual permite questionar a tese do popular que se incorpora à modernidade, destacando as múltiplas tensões, apropriações, reapropriações, desvios e recriações da cultura popular urbana (Certeau, 1998). Assim a maloca é representada como espaço de refúgio e solidariedade: “Minha maloca/ A mais linda desse mundo/ Ofereço aos vagabundos/ Que não têm onde dormir” (Abrigo de vagabundos, Adoniran Barbosa). Adoniran consegue captar as transformações da cidade, a situação de degradação de certos habitantes contrastando com o crescimento propalado. As referências à cidade são constantes, aparecem não só em Saudosa maloca. O antigo cortiço poderia estar localizado na Rua Aurora, Guaianazes e imediações; o Arnesto mo- Apesar do lirismo desses versos em parceria com Vinicius de Moraes, as estratégias mais freqüentes de Adoniran se faziam através do humor, assim sua experiência como humorista impregnou a vivência como compositor, nesse sentido destacam-se Luz da Light, As mariposas, Samba do Arnesto, Casamento do Moacir e Trem das onze. Suas habilidades como compositor se aprimoravam, especializando-se em contar casos trágicos de despejos, abandono, atropelamento, demolição, desamor, desemprego, através de uma paródia bem elaborada de estrutura verbo-musical na tristeza das letras contrastando com a dimensão alegre e contagiante da melodia.15 A fala errada era intencional, a linguagem acaipirada e italianada, explícita, a trajetória do compositor como humorista e a dinâmica da circularidade cultural na cidade, marcada pela forte presença dos italianos, migrantes, além das origens rurais do samba paulista. O sucesso de Trem das onze definitivamente o consagrou como compositor: 55 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 “Não posso ficar/ Nem mais um minuto com você/ Sinto muito amor/ Mas não pode ser/ Moro em Jaçanã/ Se eu perder esse trem/ Que sai agora às onze horas/ Só amanhã de manhã/ Além disso, mulher/ Tem outra coisa/ Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar/ Sou filho único/ Tenho minha casa pra olhar/ Não posso ficar”. (Trem das onze, Adoniran Barbosa, 1964) Encontrei um papel escrito assim/ Pode apaga o fogo Mané/ Que eu não volto mais”. (Apaga o fogo Mané, Adoniran Barbosa, 1956) As canções explicitam as emoções do homem abandonado pela mulher amada; a resistência a assumir o abandono junta-se com o desespero do desaparecimento na cidade grande (tema constante na obra do autor), a cidade que oculta e onde tudo se perde, até o amor; a cidade tão populosa mas marcada pela solidão e pelo abandono. Cabe destacar que a produção artística não é portadora de apenas uma significação – a que o artista quis lhe imprimir –, mas de múltiplas que foram acumuladas nos usos e leituras que lhe foram impostas ao autor. Dessa forma, neste artigo tratou-se de alguns poucos aspectos a serem explorados, sob o foco da história e da música na rica produção de Adoniran Barbosa. Talvez tais reflexões possam inspirar outras pesquisas, em particular sobre a cidade, já que a maior parte focaliza as transformações urbanas e reproduz sem muita crítica o discurso das fontes oficiais, mostrando modelos de relações íntimas que procuram corrigir, extirpar e estigmatizar os comportamentos. Além de focalizar o momento tenso da separação do casal e apresentar as justificativas masculinas, tem como pano de fundo as intensas transformações urbanas. Na dita “cidade que mais cresce no mundo”, uma nova noção de tempo emerge, ela se encontra ancorada nas referências de progresso, produtivismo industrial, na conexão tempo-dinheiro-capitalismo, no desejo de não perder tempo, não perder a hora e na imposição de pontualidade. Essa noção que se queria hegemônica convivia no cotidiano com outras temporalidades marcadas pelo horário do último trem ou pelo enxadão da obra que batia às onze horas, marcando o almoço baseado no “ovo frito... arroz com feijão e um torresmo à milanesa da minha Tereza...” (Torresmo à milanesa), também presente em outras referências musicais. Nas tensões urbanas aparecem igualmente referências às relações afetivas, encontros e desencontros entre homens e mulheres: “O que será que aconteceu/ Que Maria não voltou?/ Será que se perdeu/ Ou arranjo um novo amor?” (Por onde andará Maria, Adoniran Barbosa e Rago, 1956). Também em: “Inês/ Inês saiu dizendo/ que ia comprá um pavio pru lampião/ Pode me esperá, Mané/ Eu volto já/ Acendi o fogão/ Botei água pra esquentá/ E fui pro portão/ Só pra ver Inês chegá/ Anoiteceu/ E ela não voltou/ Fui pra rua feito louco/ Só prá vê o que aconteceu/ Procurei na Central/ Procurei no Hospital/ E no xadrez/ Andei a cidade inteira/ E não encontrei Inês/ Voltei pra casa triste demais/ Que Inês me fez/ Não se faz/ E no chão bem perto do fogão/ NOTAS 1. A produção musical se apresenta para o pesquisador como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constituiu um dos poucos registros sobre certos setores relegados ao silêncio, permitindo recuperar a expressão de sentimentos abordando temáticas tão raras em outros documentos. Ao mesmo tempo em que é uma manifestação artística também apresenta aspectos da vivência cotidiana, urbana, particularmente das experiências afetivas de seus produtores e ouvintes. Investigações nessa área enfrentam o desafio de recuperar como as percepções, articulações, processos que chegam pela oralidade, pela mídia e pela música, influenciam os comportamentos, sensibilidades, percepções e memórias. Todavia, não se consideram os elementos da oralidade, em destaque a música, uma produção isolada e individual, mas um elemento de aprendizagem cultural, logo comportam práticas criadas e recriadas, manifestações autônomas, vigorosas e criativas, que se mantêm menos pelo racional e mais pelo emocional, intuitivo, sentimental e afetivo, e contribuem de forma significativa para o processo de constituição de subjetividades em múltiplos territórios. 2. Richard Morse destaca a grande expansão do setor da construção civil: “...em 1920 houve 1.875 novas construções, em 1930, 3.922, em 1940, 12.490 e em 1950, 21.600” (Morse, 1970:365). 3. Os dados de população são expressivos, permitindo perceber a intensidade desse processo. No início dos anos 20, momento de grande crescimento da cidade, São Paulo tinha uma população em torno de 500 mil habitantes; em meados dos anos 30 atingia pouco mais de um milhão; no início da década de 40 era de um milhão e 500 mil; mas foi no ano 1954 que, já como a maior cidade do país, aproximouse dos 2 milhões e 700 mil habitantes e atingiria os 3 milhões na década de 60. No início da década de 50, a população de São Paulo somava 2,2 milhões de habitantes. Desses, mais de 500 mil eram mineiros, 400 mil, nordestinos (cerca de 190 mil baianos, 63 mil pernambucanos, 57 mil alagoanos, 30 mil cearenses). 4. “Nossas reminiscências podem ser temerárias e dolorosas se não corresponderem às histórias ou mitos normalmente aceitos, e talvez por isso tentemos compô-las de modo as ajustar ao que é normalmente aceito” (Thomson, 1997). 56 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO TERRITÓRIO... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5. Se em 1940 a cidade contava com 16 bibliotecas públicas, 12 emissoras de rádio, 42 cinemas e 4 teatros, já em 1954 registrava-se a existência de 114 bibliotecas, 17 emissoras de rádio, 166 cinemas e 15 teatros e “mesmo assim a população acaba se comprimindo na porta (dos cinemas), em filas quilométricas, obrigando a sessões que começam às 10 horas da manhã e terminam às 2 da madrugada” (Linguanotto, 1954). BENTO, M.A. Um cantar paulistano: Adoniran Barbosa . Dissertação de mestrado. São Paulo, USP, 1990. BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velho. São Paulo, T.A.Queiroz/ Edusp, 1987. 6. O rádio cresceu devido à sua agilidade e ao barateamento progressivo do aparelho. As rádios funcionaram como um veículo integrado ao contexto histórico, utilizando e difundindo padrões de comportamento. O rádio-jornal, a novela, os programas de auditório envolviam cotidianamente a todos. Em virtude dessa importância, as questões em torno do rádio, rádio-ouvintes e da oralidade precisam ser refletidas com mais atenção pelos pesquisadores. CÂNDIDO, A. Os parceiros do rio bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação de seus modos de vida. São Paulo, Duas Cidades, 1982. CHAUÍ, M. Conformismo e resistência. São Paulo, Brasiliense, 1989. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1998. 7. A partir da década de 40, os circuitos internacionais da música interligavam cada vez mais intensamente as diferentes partes do mundo. Todo um mercado se abre especialmente à penetração da música internacional, em particular a norteamericana e com ela o jazz. GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografia do desejo . Petrópolis, Vozes, 1986. KRAUSCHE, V. Adoniran Barbosa. São Paulo, Brasiliense, 1985. 8. No final da década de 30, o Carnaval foi institucionalizado e passou a fazer parte das manifestações culturais promovidas pelo Estado, descendo o morro para a avenida. Paralelamente, ocorreu a expansão da radiofonia, que, juntamente com a institucionalização do Carnaval, levou o samba à pauta de consumo. Antes exclusividade do Carnaval, o samba passou a ser produzido e difundido com sucesso no meio do ano, explicitando tendências claras: samba apologético nacionalista, como os de Lamartine Babo e Ari Barroso; samba da malandragem, de Wilson Batista e Geraldo Pereira; samba-canção de conteúdo afetivo-apaixonado, líricoamoroso ou de dor-de-cotovelo (Matos, 1982). LINGUANOTTO, D. Revista Manchete. Rio de Janeiro, n.92, 23/01/54, p.31. 9. João Rubinato assumia o pseudônimo Adoniran (nome de um amigo boêmio) e Barbosa sob a inspiração do sambista carioca Luís Barbosa. MORSE, R.M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo, Difel, 1970. MATOS, C.N. de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. MATOS, M.I.S. de. Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997. _________ . Melodia e sintonia, o feminino, o masculino e suas relações em Lupicínio Rodrigues. 2a ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999. _________ . Meu lar é um botequim. São Paulo, Nacional, 2000. PECHMAN, R.M. (org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro, UERJ, 1994. 10. O Carnaval era um momento particular para a venda de discos e os contratos para cantar nas rádios e nos clubes e assim adquirir visibilidade. Muitas vezes, terminada a época de Carnaval, vinha o desemprego. ROLNIK, R. “História urbana: história na cidade”. In: FERNANDES, A. e GOMES, M.A. Cidade e história: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador, Faculdade de Arquitetura, 1992. 11. Saudosa maloca, no contrafluxo da linguagem apologética canta uma outra São Paulo, fazendo um imenso sucesso juntamente com Quarto centenário de Mário Zan e J.M. Alves, canção exaltação de São Paulo, e São Paulo quatrocentão (Krausche, 1985). SALVADORI, M.A.B. “Malandras canções brasileiras”. Cultura & Linguagem. Revista Brasileira de História. ANPUH/Marco Zero, v.7, n.17, 1986/87. SQUEFF, E. e WISNIK, J.M. Música: o nacional e o popular na Cultura Brasileira. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. 12. O espaço urbano, no seu processo de transformação, é simultaneamente registro e agente histórico. Nesse sentido, deve-se destacar a noção de territorialidade, identificando o espaço como experiência individual e coletiva, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias. Espaços que, além de sua existência material, são também codificados num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (Rolnik, 1992). SAROLDI, L.C. e MOREIRA, S.V. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 2 a ed. Rio de Janeiro, Martins Fontes/Funarte, 1988. SEVERIANO, J. e HOMEM DE MELLO, Z. A canção no tempo. São Paulo, Editora 34, 1997. THOMSON, A. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história e memória”. Projeto história. São Paulo, Educ, v.15, 1997, p.51-83. 13. Também presente na referência em Tiro ao Álvaro “teu olhar mata mais/...que atropelamento de automóveis...”. TATIT, L. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo, Edusp, 1996. 14. Pode-se, também, encontrar na sua produção obras de caráter mais intimista como Bom dia tristeza, com letra de Vinicius de Moraes, gravada inicialmente por Aracy de Almeida, mas que adquire maior expressividade com a gravação de Maysa Matarazzo. VIANA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed./Ed.UFRJ, 1995. VINCENT-BUFFAULT, A. História das lágrimas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 15. Destaque-se que muitas interpretações acabam por matizar este traço mais humorístico e caricatural dos sambas de Adoniran, mesmo com os Demônios da Garoa que tanto interpretaram Adoniran Barbosa, basta lembrar a gravação de Clara Nunes de Iracema. WISNIK, J.M. “Getúlio da paixão cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)”. In: Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. 57 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 FEMINIZAR É PRECISO por uma cultura filógina MARGARETH RAGO Professora do Departamento de História da Unicamp. Autora de Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo Resumo: Este texto traz algumas reflexões sobre o lugar do feminino em nossa cultura, tomando como ponto de partida a recorrente estigmatização da feminista como frustrada, assexuada e mal-amada. Pergunta pelas reações misóginas que a luta pela emancipação das mulheres tem provocado ao longo de sua história e sugere alternativamente a possibilidade da construção de uma cultura filógina. Palavras-chaves: feminismo; poder; discurso médico; sexualidade; filoginia. Ouso dizer que às vezes você se espanta com minha maneira independente de andar pelo mundo como se a natureza me tivesse feito de seu sexo, e não do da pobre Eva. Acredite em mim, querido amigo, a mente não tem sexo, a não ser aquele que o hábito e a educação lhe dão. Lágrimas! Mas por ventura chora uma feminista? Quando muito faz rir, quando passa pelas ruas a passo dobrado, consultando as horas como um homem, sem sorrir, porque já não tem sorriso sem faceirice, porque a fealdade das roupas lha veda, e sem o aprumo que devia dar-lhe o sentimento da sua coragem e da sua dignidade, por que sabe que estas coisas só merecem do vulgo o escárneo...” (Dolores, 1934:123).1 Embora construída por uma escritora bastante engajada nas questões da mulher, logo após a conquista do direito de voto feminino, esta imagem reforça o estereótipo socialmente difundido da feminista como uma figura dessexualizada, amargurada e sem perspectivas e, ao mesmo tempo, contrasta com as representações veiculadas pelas revistas feministas do período, ou com as informações referentes à vida cotidiana das escritoras, articulistas e ativistas políticas dos meios ricos e pobres, que se colocavam em luta pela independência de seu gênero, desde meados do século XIX, no Brasil. Foi esta, pois, a imagem da feminista que predominou na memória social sobre outras possíveis e, ainda hoje, as que lutam pela autonomia das mulheres continuam sendo desqualificadas por um estereótipo que vem de longa data, não apenas dos anos 70, definindo-as como machas, feias e mal-amadas. Do modernista Oswald de Andrade que ridiculariza as sufragettes inglesas como figuras que o assustavam profundamente, nos anos 20, aos “rapazes” de Frances Wright, feminista inglesa, em 1822 (Gay, 1995:306) m um conto intitulado “Jornal de uma feminista”, publicado num livro bastante raro, intitulado Almas complexas, a escritora gaúcha Carmen Dolores (1934) delineia uma imagem triste e patética da feminista. Refere-se a uma professora que vive no limite de suas possibilidades financeiras, ao lado da mãe viúva e dos irmãos pequenos e que, certo dia, se vê absolutamente sem recursos para enfrentar o cotidiano. Sentada diante do espelho, enquanto conversa consigo mesma, mal consegue suportar a própria imagem refletida. Sente-se um absoluto fracasso: os seus esforços de melhoria vão sempre por água abaixo; suas lutas são sempre inglórias. Pensa desolada: “Fito os olhos no vidro sarapintado pelas falhas do aço, fui-me sentindo pouco a pouco penetrada de uma piedade intensa e dolorosa, que me provocava a figura refletida nesse velho cristal; fiquei a olhá-la, como se não a conhecesse, assim, magra e abatida, com esse chapéu usado, essa jaquette surrada, correndo tão cedo à caça do pão – e de súbito um véu se interpôs entre mim e a face murcha que eu contemplava, e esse véu era feito de lágrimas... E 58 FEMINIZAR É PRECISO: esquerda do Pasquim, nos anos 70, investindo com unhas e dentes contra a estética de Betty Friedan, as feministas foram percebidas como mulheres feias, infelizes, sexualmente rejeitadas pelos homens e, convenhamos, não é muito raro ouvirmos outras mulheres reafirmando estes estigmas ainda hoje. 2 Deve-se perguntar, então, a que vem a perpetuação desse estigma sobre mulheres que lutam e lutaram por outras mulheres, que se empenham pela melhoria da condição feminina, que dão visibilidade a questões radicalmente novas, que propõem outras alternativas para o pensamento e que, sem dúvida alguma, ajudam a construir um mundo novo e muito mais saudável também para os homens? E mais, o que a utilização desse estigma nos informa sobre o lugar do feminino em nossa cultura e sobre a relação que se mantém com o diferente? A reflexão sobre essas questões nos ajuda a perceber como a sociedade reage ante a idéia de que as mulheres passem a se pensar com autonomia, como podendo figurar por conta própria na História, recusando-se a girar, como auxiliares ou sombras, em torno dos homens. A persistente associação da feminista com o lesbianismo, a histeria, o “furor uterino”, a incapacidade de ser amada por um homem, repondo-se todas as misóginas concepções vitorianas sobre a sexualidade feminina, marcam profundamente a referência pela qual se lida com o fenômeno, ainda hoje. Essa questão adquire maior importância quando levamos em conta que o feminismo colocou como uma de suas principais bandeiras as “políticas do corpo”, o direito ao próprio corpo, a reivindicação do prazer sexual para as mulheres e que, aliás, progrediu nessa direção. As críticas às misóginas leituras médicas do corpo feminino, que dessexualizaram e patologizaram cientificamente o corpo da mulher, foram manifestadas, embora por uma minoria, desde o século passado, ou seja, desde o momento mesmo em que estavam sendo formuladas e divulgadas. A redescoberta do clitóris, no final dos anos 60, foi inegavelmente uma conquista feminista, posteriormente apropriada por revistas femininas de grande circulação no mercado, a exemplo da Nova, lançada em 1972, pela Editora Abril Cultural, ou a Veja, que dá visibilidade ao tema, em sua edição de maio de 2001. Hoje, as feministas colocam como uma das mais importantes bandeiras de luta a questão dos direitos reprodutivos, aí incluindo-se temas como maternidade, aborto, violência doméstica e saúde integral da mulher. Por que, então, as feministas têm sido historicamente POR UMA CULTURA FILÓGINA dessexualizadas, se na prática têm reivindicado uma maior sexualização ou, em outros termos, o direito à própria sexualidade? Trata-se, sem dúvida, de uma disputa pelo controle do que significa ser mulher, mulheres e homens propondo interpretações historicamente muito diferentes e opostas. É óbvio que uma das questões centrais do feminismo, antes e agora, tem sido a de propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais. Uma recusa, portanto, das formas de sujeição impostas pelo olhar masculino, pela ciência, pela moral e pela cultura masculinas, principalmente nas últimas décadas em que cresce a luta mais pela “desidentificação”, ou pela possibilidade de construção de múltiplas subjetividades pessoais, grupais, sexuais. 3 É de se perguntar, portanto, a que vêm essas construções misóginas e por que foram e são amplamente aceitas? Como se explica que as feministas, que lutaram pela redescoberta da sexualidade feminina, fossem tachadas de dessexualizadas ou, no limite, de lésbicas? Será que essas imagens se ancoravam em amplas constatações empíricas, isto é, eram todas as feministas virgens solteironas ou homossexuais? E, afinal, por que até mesmo as mulheres, nem todas evidentemente, mas sobretudo as das gerações mais jovens não reconhecem o muito do que hoje se conquistou, as enormes possibilidades econômicas, sociais, sexuais e políticas abertas às mulheres, especialmente nas últimas três décadas, desde os direitos civis à revalorização do corpo e à autonomia sexual, como um resultado das pressões e lutas colocadas historicamente pelo feminismo? Como historiadora feminista, inquieta-me a maneira pela qual determinadas dimensões do passado são totalmente esquecidas, tão logo seus questionamentos tenham sido debatidos, avaliados e incorporados. Isso acontece com alguns pensadores, que, de repente, somem do cenário intelectual e político, enquanto suas idéias, que num momento preciso relampejaram fulminantes, “sacudindo as evidências”, como diz Michel Foucault, autonomizamse e passam a ser repetidas localmente, como se nascidas naquele preciso instante ou, então, como se estivessem sempre existido lá. Um fenômeno de autonomização das idéias, em que memória e história se descolam, em que presente e passado se desconectam e se descontextualizam, em que se borram, ou mesmo se perdem os movimentos de origem e as condições de possibilidade de determinados acontecimentos. Esse processo de eliminação da historicidade dos fenômenos, ou de naturalização pode ser claramente per- 59 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 cebido na relação estabelecida com vários movimentos sociais, entre o feminista, o hippie e o anarquista, entre outros, é claro. Como se se operasse um profundo corte entre gerações imediatamente sucessivas, o que é proposto de maneira impactante e conflituosa por uma, é vivido pelas seguintes com naturalidade, como ordem natural do mundo, esquecendo-se a dimensão da luta realizada para sua conquista e tachando-se o movimento originário de “derrotado”. Nem se está referindo, nessa direção, aos mecanismos já tão discutidos de apropriação e neutralização das reivindicações trabalhistas dos operários das primeiras décadas do século XX pelo governo Vargas, construído como o grande “pai dos pobres”, após a destruição desses mesmos movimentos sociais. Penso mais especificamente nas profundas críticas ao movimento hippie dos anos 60/70, visto como “alienado” pela esquerda marxista, radicalmente condenado por ter sido absorvido pelo “sistema”. Não se observa, por conseguinte, o quanto a sociedade ganhou e cresceu ao incorporar vários valores, concepções, atitudes e práticas anticapitalistas, libertários e dionisíacos, pregados por aqueles. O mesmo poderia ser dito em relação ao anarquismo, visto sempre como o “grande derrotado da História”, por não haver proposto o partido político, como se afinal os que o propuseram tivessem tido melhor sorte, ou como se a sociedade hoje não fosse muito mais libertária, especialmente no sentido de questionar mais sofisticadamente os macro e micropoderes, as relações de saber-poder, assim como os modos de sujeição, inclusive aqueles impostos pelas organizações partidárias. Parte-se, evidentemente, do suposto que apesar dos enormes retrocessos e das profundas intolerâncias que atravessam nossos tempos, vivemos também um mundo muito mais libertário e feminista, questionado ininterruptamente em todos os seus movimentos, seguramente há mais de 30 anos. Em relação ao movimento feminista, não é raro ser considerado atualmente como “coisa do passado” por muitos que se consideram aliviados por seu final, apesar das grandes conquistas femininas em curso e da enorme visibilidade – radiante e colorida –, é bom dizer, das mulheres em quase todas as profissões, na vida social, nas instituições, nos sindicatos, nas ruas, praças e nos bares da cidade. Ninguém duvida de que o mundo se tornou mais feminino e feminista, no Ocidente, entendendo no primeiro caso maior aceitação e reconhecimento da “cultura feminina”, de um “saber-fazer” específico das mulheres, mesmo que culturalmente determinado e não resultante de diferenças biológicas; e no segundo caso, referência à luta pelo direito à vida em igualdade de condições para os dois sexos. Aceita-se, em geral, que as mulheres obtiveram inúmeros espaços sociais antes inexistentes ou proibidos para elas, que conquistaram muitos cargos importantes, que provocaram muitas mudanças nas relações de gênero, mudanças que, por sua vez, afetaram a própria maneira de ser homem e de pensar. Contudo, poucas vezes o feminismo é invocado como sendo o produtor principal das mudanças positivas. Essas constatações têm levado a se tentar entender por que à entrada maciça das mulheres na esfera pública, sobretudo nos últimos 30 anos, à decorrente “feminização da cultura”, isto é, à incorporação crescente de valores, idéias, formas, concepções especificamente femininos pelo mundo masculino, não correspondeu uma crescente valorização do feminismo, tanto quanto uma incisiva adesão a ele, seja se for considerado um conjunto de idéias que reivindicam os direitos da mulher, seja como referência às práticas e lutas que eclodiram e têm eclodido na sociedade. Seria oportuno também refletir, mesmo que brevemente, sobre o tema da “feminização da cultura”, questionando os motivos pelos quais freqüentemente suscita uma série de objeções, pois não há consenso de que realmente existiu e existe. É de se perguntar, então, se ainda há dúvidas sobre a transformação cultural provocada pela maior inserção das mulheres no mundo contemporâneo. E se ainda há quem pense que as mulheres se tornaram “homens” ao entrar no espaço masculino, esquecendo e abandonando tudo aquilo que caracterizava sua condição de gênero. É possível não perceber a “feminização cultural” contemporânea, isto é, a maneira pela qual temas, valores, questões, atitudes, comportamentos femininos foram incorporados na modernidade? Por que, enfim, esse fenômeno não é percebido como um resultado extremamente positivo das pressões históricas do feminismo, num mundo em que todos reconhecem a falência dos modos cêntricos – faloeuro-etnocêntricos – de agir e pensar? Não se pretende responder a todas essas questões, mas é importante enunciá-las e denunciar os mecanismos sutis de desqualificação e de humilhação social que operam em nossa cultura, em relação às mulheres e à cultura feminina. Justamente por serem sofisticadas e imperceptíveis a um primeiro olhar, essas estratégias de aniquilamento ou de neutralização das conquistas sexuais e de destruição dos movimentos e das atitudes contestadoras da ordem masculina estabelecida devem ser evidenciadas e enunciadas a cada instante. 60 FEMINIZAR É PRECISO: O MEDO DO FEMININO E A REAÇÃO MISÓGINA POR UMA CULTURA FILÓGINA res e homens passavam a desfrutar de um convívio mais intenso, desde o início do século XX, inúmeras vozes levantaram-se amedrontadas, apontando para a “dissolução dos costumes” e para o que supunham ser uma forma de desagregação social. Os debates sobre a definição das esferas sexuais, a ameaça de perda de virilidade da civilização, o avanço dos valores femininos na cultura acirraram as controvérsias entre os teóricos da Modernidade, desde meados do século XIX. Na belle époque vienense, por exemplo, ao lado de Wagner e Nietszche, Johann Jakob Bachofen, teórico de grande penetração no Brasil e no mundo, autor de O matriarcado. Pesquisas acerca da ginecocracia de natureza reliogiosa e jurídica no mundo antigo, publicado em 1861, atacava radicalmente a feminização da cultura em curso e o “crepúsculo do patriarcado” (apud Le Rider, 1992). Denunciava o amolecimento da raça, a degringolação moral, a degenerescência racial, o retorno à cultura dionisíaca, visando valorizar o patriarcado como “a realização dos valores espirituais trazidos pelo cristianismo.” Segundo ele, “O progresso da sensualidade corresponde em toda parte à dissolução das organizações políticas e à decadência da vida pública. No lugar da rica diversidade, impõe-se a lei da democracia, da massa indistinta e essa liberdade, essa igualdade, que distinguem a vida de acordo com a natureza da sociedade civil organizada e que se ligam à parte corporal e material da natureza humana.” (apud Le Rider, 1992:179). Otto Weininger, por sua vez, construiu uma teoria da bissexualização da cultura, movimento que caracterizaria os novecentos como decadência estética e moral. “A extensão que de alguns anos para cá foi assumida tanto pelo dandismo quanto pelo homossexualismo não podem-se explicar senão por uma feminização geral. Não é sem motivo profundo que o gosto estético e sexual deste início de século busca seus modelos na arte dos prérafaelitas.” (apud Le Rider, 1992:176). Adolf Loos, em artigo sobre a “Moda Feminina”, publicado em 1902, procurava explicar porque a mulher tinha mais necessidade de roupas do que o homem, nos seguintes termos: “Mas, a mulher nua é desprovida de charme para o homem. (...) Este é o motivo que obriga a solicitar a sensualidade do homem através de sua vestimenta, de excitar nele uma sensualidade doentia que resulta unicamente do espírito da época. (...) A roupa da mulher se distingue exteriormente pelos ornamentos e as cores. A mulher se atrasou em relação à evolução da indumentária. No pas- Deve-se descartar a primeira resposta, já bem conhecida, “À falocracia, as mulheres propõem a vaginocracia!”, e perguntar pelo grande medo do feminino na cultura ocidental, medo este historicizado por intelectuais do porte de Jean Delumeau, Mario Praz e Mireille Dottin-Orsini (1994; 1996; 1996). A punição das feiticeiras pela Inquisição desde a Idade Média, a expropriação do saber das parteiras, desde o século XIX, pela medicina masculina, o alarde em torno da figura da “mulher fatal” destruidora da civilização no século XIX, como Salomé, ou na representação de Marlene Dietrich, no filme O anjo azul, de 1930, concomitante à valorização da “rainha do lar”, a perseguição policial das prostitutas e não dos clientes são temas já bem explorados. Falemos, então, das reações ao feminismo, por aí entendendo também o medo provocado pela idéia da liberdade feminina.4 Esse movimento, ao lado da crescente entrada das mulheres no mundo público, questionou categorias de significação e explicação sociais amplamente aceitas, mostrando sua dimensão falocêntrica, e provocou uma profunda desestabilização das referências sexuais e culturais ao longo do século XX, em várias partes do mundo. Nas quatro últimas décadas, forçou a incorporação das reivindicações colocadas na agenda pública e obrigou a sociedade a perceber e discutir a “questão feminina”. Desestabilizou as tradicionais definições das identidades de gênero – que destinavam rigidamente o espaço público para os homens e o privado para as mulheres –, revelando a hierarquização, as relações de poder e a misoginia nelas contida. Assim, se de um lado abriu novas perspectivas para um amplo setor da humanidade, de outro suscitou profundas angústias e medos em outros setores sociais. Múltiplas reações se fizeram sentir aos avanços femininos e às conquistas feministas, destacando-se a emergência dos debates sobre a divisão dos papéis sexuais, a preocupação com a definição dos códigos da feminilidade e masculinidade, os direitos e deveres das mulheres, o casamento e o adultério, o controle da prostituição, o perigo da homossexualidade e o próprio feminismo, ao longo do século passado. O clima foi descrito por Elaine Showalter (1994) como sendo de “anarquia sexual”. Ante a liberalização dos costumes, a diversificação da vida social e cultural, a emergência de novas práticas de lazer e de novos espaços de sociabilidade, como os bares, restaurantes, cafés-concertos, teatros, cinemas, onde mulhe- 61 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 sado, o homem também usava vestimentas ricamente ornadas. A evolução magnífica que nossa cultura conheceu durante este século teve o feliz efeito de ultrapassar o ornamento. Quanto mais baixo é o nível de uma cultura, mais o ornamento se manifesta nele com força.” (apud Le Rider, 1992:12). Esses autores, cujos livros se encontram com relativa facilidade nas bibliotecas públicas brasileiras, tiveram uma ressonância bastante grande entre nossos pensadores e governantes, que buscavam nas fontes européias respostas para os problemas do país. Menos conhecidos entre nós foram aqueles que apresentaram questionamentos e respostas alternativas às questões de gênero, a exemplo da feminista Rosa Mayreder, ou do filósofo Georg Simmel, traduzido para o português apenas na década de 90. Em seu ensaio de 1905, intitulado Crítica da feminilidade, Mayreder trazia uma nova interpretação sobre as razões da emergência do feminismo. Constatava uma profunda crise da identidade masculina na modernidade e o abandono por parte dos “guerreiros” dos espaços e modelos que tradicionalmente ocupavam. Isso sim estaria levando e até mesmo exigindo maior presença das mulheres na vida pública e social, considerava ela. A emergência do feminismo seria, então, explicada menos como uma luta das mulheres pela liberdade, buscando destronar os homens, do que como resultado da feminização e de um certo refinamento da cultura, que fizera com que a forma masculina de vida se aproximasse da forma de vida das mulheres. Essas, aliás, passavam a ocupar os postos outrora dominados pelos homens, por uma necessidade vital e social, uma vez que eles haviam desertado de seus postos. “Já que os homens se tornaram mulheres, as mulheres não têm outra escolha senão ocupar o terreno por eles desertado.”, afirmava ela (apud Le Rider, 1992:265). Georg Simmel, por sua vez, em um artigo de 1902, apresentava uma posição menos polarizada e indagava sobre a possível contribuição das mulheres ao participarem de um mundo construído objetiva e racionalmente, segundo a visada masculina. Com um olhar profundamente perspicaz, analisava: “...essa cultura, que é a nossa, se revela inteiramente masculina, com exceção de raros domínios. A indústria e a arte, o comércio e a ciência, a administração civil e a religião foram criação do homem, e não só apresentam um caráter objetivamente masculino, como, ademais, requerem, para a sua efetuação repetida sem cessar, forças especificamente masculinas” (Simmel, 1993:74). Participando mais intensamente do mundo masculino, as mulheres trariam uma colaboração muito enriquecedora, em função de sua formação e experiência singulares, desconhecidas dos homens, desde que aceitas e reconhecidas. Assim, poderiam oferecer o complemento necessário à cultura dominante, caracteristicamente masculina. Nesse sentido, propunha: “O verdadeiro problema cultural que colocamos assim (produzirá a liberdade que as mulheres buscam novas qualidades culturais) só encontrará resposta positiva mediante uma nova partilha das profissões ou mediante uma nova modulação destas, fazendo não que as mulheres se tornem cientistas ou técnicas, médicas ou artistas no sentido em que os homens o são, mas que realizem trabalhos que eles são incapazes de realizar. Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer uma outra divisão do trabalho, de redistribuir os trabalhos globais de uma profissão dada, de reunir depois os elementos especificamente adaptados ao modo de trabalho feminino para constituir esses ofícios parciais, singulares, diferenciados. Não se obteriam, assim, apenas um aperfeiçoamento e um enriquecimento extraordinários de todo o setor de atividade envolvido, mas também se evitaria em boa parte a concorrência dos homens.” (grifos meus) (Simmel, 1993:74). Simmel raciocinava em termos da complementaridade trazida pela experiência feminina, bastante diferenciada da masculina, tanto por questões culturais quanto naturais. O fato de desacreditarmos hoje da existência de uma suposta “natureza feminina” não invalida suas colocações, afinal as diferenças de gênero, construídas social e culturalmente, marcaram profundamente a formação de nossa identidade ao longo do tempo, assim como a definição dos espaços sociais femininos e masculinos. O filósofo defendia que a luta pela emancipação das mulheres, pela destruição dos preconceitos sexistas, pela igualdade de direitos entre os sexos traria grandes benefícios para a humanidade, pois considerava a cultura masculina como restrita, dura, objetiva e racional, ou seja, excludente de outras importantes dimensões vitais da experiência humana. A entrada das mulheres na vida pública e social poderia, afirmava ele, transformar e enriquecer consideravelmente a maneira de viver, de pensar e de solucionar os problemas individuais e coletivos, inovando em relação aos métodos utilizados e às técnicas produzidas. Num pensamento bastante avançado, pensava muito mais em termos da interação de duas culturas sexualmente determinadas, do que na substituição de uma pela outra. Assim, na medicina, dizia ele, as mulheres dariam uma enor- 62 FEMINIZAR É PRECISO: me contribuição, pois tendo um aprendizado diferente de lidar com o corpo e com as emoções, poderiam perceber melhor e mais detidamente o próprio doente. “Os métodos de exame clínico tidos como objetivos logo se esgotam, se não forem completados por um conhecimento subjetivo do estado do doente e de seus sentimentos, seja esse conhecimento imediatamente instintivo, seja mediatizado por manifestações quaisquer. (...) é por isso que estou persuadido de que, confrontada a mulheres, uma médica, além de ter o diagnóstico mais exato e o pressentimento mais fino para tratar dos casos individuais de maneira conveniente, ainda poderia, sob o ângulo puramente científico, descobrir conexões típicas, não detectáveis por um médico, e dar com isso contribuições específicas à cultura objetiva; porque as mulheres possuem, com sua constituição idêntica, uma ferramenta de conhecimento recusada aos homens.” (Simmel, 1993:76). Na mesma direção, a anarquista italiana Luce Fabbri, desde os anos 30, acreditou que as mulheres podiam dar uma contribuição especial à cultura dominante, justamente por não terem tido a experiência de guerra dos homens, por não terem participado dos governos, dos exércitos, da polícia e por terem desenvolvido uma cultura salutar, ligada aos cuidados com a vida, com a organização doméstica e com a sobrevivência das crianças e velhos. Numa entrevista realizada em 1996, afirmou: “...as mulheres têm algo de seu para dar, algo de gênero, uma experiência única de uma economia não competitiva: a economia doméstica, em que as crianças têm precedência, em que os velhos estão assistidos porque são velhos, em que cada qual dá o que pode e consome o que necessita, isto é a economia doméstica. 5 No Brasil, infelizmente, as pesquisas históricas referentes aos discursos científicos e políticos predominantes até os anos 60, masculinos, é claro, permitem perceber muito menos os ecos dessas concepções filóginas, na problematização das relações entre os gêneros, do que a acentuação dos discursos misóginos, produzidos e reproduzidos no contexto das discussões sobre os rumos de construção da nação e a formação do povo. Principalmente a partir da instalação da República, do início da industrialização, da imigração européia maciça e da modernização das cidades, desde o final do século XIX, a maioria dos médicos, juristas, políticos, escritores, jornalistas e ativistas políticos, reagiu muito mais negativamente às transformações que desestabilizavam as relações entre mulheres e homens. Para eles, a desestabilização das antigas fronteiras de gênero destruiria a anti- POR UMA CULTURA FILÓGINA ga organização familiar e as definições tanto da feminilidade quanto da masculinidade. Muitos reagiam inquietos à emergência das reivindicações feministas, à modernização dos costumes, ao surgimento de novas formas de sociabilidade, ao crescimento das práticas de lazer, dos passeios nas ruas aos novos ritmos musicais e às novidades da moda. Os médicos tiveram um papel bastante grande na redefinição dos códigos da sexualidade feminina, ao buscar na própria anatomia do corpo da mulher os limites físicos, intelectuais e morais à sua integração na esfera pública. Esforçaram-se para definir a especificidade do corpo feminino em relação ao masculino, acentuando seus principais traços: fraqueza e predestinação à maternidade. Para o importante dr. Roussel, médico iluminista francês, cujas teorias tiveram ampla repercussão no mundo ocidental, na mulher “os ossos são menores e menos duros, a caixa toráxica é mais estreita; a bacia mais larga impõe aos fêmures uma obliqüidade que atrapalha o andar, pois os joelhos se tocam, as ancas balançam para encontrar o centro de gravidade, o andar é vacilante e inseguro, a corrida rápida é impossível às mulheres”, explica Knibiehler (1983:90). Ademais, os doutores conseguiram ampla penetração social, como inúmeros estudos mostram, interferindo incisivamente na constituição do imaginário social e sexual, sobretudo por apresentarem-se como portadores do discurso científico legítimo, produtor da verdade e das soluções aos problemas da doença e da morte. 6 Nesse sentido, o saber médico informou uma série de práticas autoritárias e misóginas, que permitiram justificar objetivamente a exclusão das mulheres de inúmeras atividades políticas, econômicas e sociais, para não dizer das sexuais, estigmatizando aquelas que, como as feministas, se colocaram na contramão. Ao mesmo tempo, propôs alternativas para um reajustamento das relações de gênero, mantendo inalteradas as formas da dominação masculina. Segundo a “brasilianista” Susan Besse (1996), as relações sexuais foram modernizadas, nas décadas iniciais do século, tendo em vista atender às necessidades masculinas, mas não acabar com as desigualdades de gênero. Contudo, o medo e à aversão ao feminino, visto como o grande desconhecido, não impediu a própria transformação da vida social e das formas culturais ao longo de todo o século XX, principalmente em função da crescente entrada das mulheres no mundo público, a partir dos anos 70. 63 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 DA FEMINIZAÇÃO CULTURAL tiva ao assumir como ponto de partida de suas análises o direito dos grupos marginalizados de falar e representarse nos domínios políticos e intelectuais que normalmente os excluem, usurpam suas funções de significação e representação e falseiam suas realidades históricas” (Holanda, 1994:8). Buscando a construção de um novo conceito de cidadania, Sonia Alvarez mostrou como a atuação das mulheres e sua interferência na esfera pública burguesa, no Brasil das últimas décadas, forçou a incorporação de suas demandas, levando a que se ampliasse seu espaço de representação. As mulheres passaram a participar de todos os campos social e político: suas demandas foram levadas aos partidos políticos, às centrais de trabalhadores, aos sindicatos, aos coletivos e criaram-se instituições especificamente voltadas para a questão feminina (Alvarez, 1990; Alvarez e Escobar, 1992). Evidentemente, são muitos os problemas que emergem a partir de então, mas, sem dúvida alguma, a visibilidade que a “questão feminina” ganha não deixa de ser um ponto de partida fundamental para qualquer negociação possível. Segundo outra feminista, Eleonora Menicucci de Oliveira (1990), as mulheres politizaram praticamente o privado, desfazendo as tradicionais barreiras que opõem o público-masculino ao privado-feminino. Ao trazerem as questões privadas para o espaço público, ao assumirem a discussão pública de sua sexualidade, entre os anos 70 e 80, forçaram sua incorporação e produziram uma profunda transformação naquilo que era considerado os direitos de cidadania. Nesse sentido, a sexualidade, antes silenciada e considerada questão de pouca importância política e social, foi trazida para o cenário político, levando a uma discussão sobre os pressupostos hierárquicos que regem nossas representações sexuais e nossas definições do lícito e do ilícito para toda a sociedade. É preciso levar em conta a tradição política autoritária e clientelista de nosso país, onde nunca se formou uma clara noção de esfera pública moderna e de direitos do cidadão. Aqui, as mulheres sempre foram vistas como muito mais irracionais do que os homens pobres, porque foram consideradas como muito mais sensuais e sexualizadas do que as dos países de tradição puritana. Discutir a sexualidade no Brasil é, então, de extrema importância, pois com base no argumento da “sensualidade tropical”, característica fundamental das mulheres, das índias nuas às mulatas carnavalescas de Sargentelli, justificou-se a dominação masculina e patriarcal e sua exclusão do mundo dos negócios e da política (Parker, 1993). Lembre-se A maneira pela qual a valorização da cultura feminina tem afetado nosso mundo é perceptível em vários momentos, dos quais seria importante apenas sugerir alguns breves exemplos no âmbito da ciência, da política e da sexualidade. Em relação à produção do conhecimento, sem dúvida alguma a constituição de uma área de “estudos feministas” em quase todas as universidades do mundo ocidental permitiu inovar profundamente não apenas no reconhecimento da participação das mulheres nos processos históricos, mas na crítica à própria narrativa histórica, vista agora como produção sexuada ou “generificada” (gendered).7 Da inclusão das mulheres nos acontecimentos políticos e sociais, passou-se a perceber as dimensões femininas da vida humana, antes excluídas do discurso histórico, a exemplo da história da vida privada, da história das sensibilidades, das emoções, dos sentimentos, e de outras dimensões consideradas femininas em nossa cultura (Rago, 1996). E daí perceberam-se praticamente as limitações dos conceitos masculinos, inscritos na lógica da identidade, para representar o “irrepresentável” e, nesse caso, para dar conta das experiências e práticas femininas, ou de outros grupos sexuais. A epistemologia feminista, como mostra Sandra Harding (1996:13), apontou para a necessidade da descentralização do foco da atenção da masculinidade no interior do pensamento e nas práticas sociais: o masculino, embora instituído culturalmente, deveria deixar de ser o único padrão existente para o assim chamado ser humano, uma vez que os homens não são os únicos habitantes humanos do planeta. Centrar a atenção exclusivamente nas necessidades masculinas, nos seus interesses, desejos, concepções, garante apenas uma compreensão distorcida e parcial das práticas sociais. Na área da política, o feminismo questionou, de maneira diferenciada nos seus dois momentos expressivos – os anos 20/30 e os anos 60/80 do século passado –, os conceitos básicos que sustentam os princípios liberais, como o universalismo, a idéia de liberdade e igualdade, originados a partir do contrato social, denunciando que este sempre foi formado a partir da exclusão de muitos e que, portanto, a constituição de uma esfera pública autônoma só seria possível pela perspectiva da diferença e não da igualdade. Várias autoras observaram que “os estudos feministas, assim como os estudos étnicos ou antiimperialistas, promovem um deslocamento radical de perspec- 64 FEMINIZAR É PRECISO: que, poucas décadas atrás, “mulher pública” evocava a prostituta e não uma figura que participava do mundo da política, e que as prostitutas, no passado, também não haviam ainda criado seus movimentos de luta pela cidadania, como o que surge a partir de 1987, nem sugerido a figura da “trabalhadora do sexo” como alternativa política para sua identidade. O feminismo veio questionar essa leitura hierarquizadora e excludente da política, informada pelo discurso médico masculino, que justificava com base em argumentos científicos a incapacidade física e moral das mulheres para a condução dos negócios da cidade. Mostrou como se opera a exclusão social das mulheres do mundo público, assim como o silenciamento e a desqualificação de seus temas e questões. Lutou e luta para que as mulheres se reconheçam como sujeitos políticos, cidadãs com deveres e direitos a serem reconhecidos e criados. Tem ampliado, portanto, o conceito de cidadania, propondo uma nova concepção da prática política, que se manifesta não apenas nos espaços permitidos e institucionalizados da política, mas na própria vida cotidiana. Contudo, é importante remontar ao passado e perceber como essa tradição de pensamento se constituiu historicamente, onde e quando as primeiras feministas enunciaram seus temas, revelando a especificidade da condição feminina; onde e quando falaram publicamente sobre a questão da sexualidade, abrindo espaço para sua interferência no público; onde e quando se manifestaram em prol da emancipação feminina e foram silenciadas e excluídas. Se essa crítica foi amplamente formulada nas últimas décadas do século XX pelo movimento feminista, vale lembrar que foi colocada no próprio movimento de constituição da esfera pública, no final do século XIX, e que o silenciamento deste fato pela memória histórica masculina estabelece mais um elemento da exclusão das mulheres do direito de viver com dignidade. Finalmente, para além do questionamento da política e das restrições da cidadania, o feminismo expandiu sua crítica para as bases de constituição da racionalidade que norteia as práticas sociais e sexuais. Estendeu a crítica às próprias formas da cultura, revelando como a dominação se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias formas culturais que instituem uma leitura da política e da vida em sociedade, convergindo com outras correntes do pensamento pós-moderno, como “o pensamento da diferença”.8 Nesse sentido, longe de pretender destronar o “rei” para colocar em seu lugar uma “rainha”, o feminismo propõe a destruição da monarquia no pensamento e nas prá- POR UMA CULTURA FILÓGINA ticas sociais, inclusive dentro de si mesmo. Afinal, hoje as feministas dificilmente aceitariam falar em nome de um único feminismo, pluralizando, portanto, suas definições e campos de atuação. POR UM MUNDO FILÓGINO Retomando a pergunta inicial: como se explica, então, a atitude antifeminista socialmente difundida e incorporada, mesmo por aquelas que usufruem das conquistas feministas que levaram muitas décadas para se concretizar? Certamente, o mecanismo de naturalização e de cristalização das práticas sociais, que implica sua deshistoricização, é fundamental na configuração do imaginário misógino. De outro modo, como entender esse grande paradoxo que não permite atar nenhum fio com a tradição feminista que herdamos, fazendo supor que um dia o mundo mudou, as portas se abriram para as mulheres e ponto final? Como entender que as mulheres independentes do nosso mundo, sobretudo as jovens, as mais livres, não se identifiquem ou não se sintam em nada devedoras em relação àquelas que lutaram, ou lutam pela abertura do campo de possibilidades de que desfrutam na atualidade, senão por um mecanismo perverso que faz com que tomem como origem o que não deixa de ser efeito produzido cultural e socialmente? Uma mudança de olhar, um pensamento diferencial poderia dar conta de permitir uma maior sensibilidade em relação ao feminino e à construção de um mundo filógino. Ou será uma questão de coração, mais do que de olhar? Filoginia, do grego philos, amigo + gyne, mulher – amor às mulheres – antônino Misoginia, aversão às mulheres (Grande Dicionário Larousse, 1999:432). NOTAS 1. Sobre as escritoras brasileiras, veja-se o belo estudo de Norma Telles (1986). 2. Oswald de Andrade: “Em Londres, fui encontrar vivas nas ruas duas novidades – o assalariado e a sufragete. Esta era representada por mulheres secas e machas que se manifestavam como se manifestava o operário. Ordenadamente, às vistas da polícia, mas protestando contra um estado de coisas de que minha ignorância mal suspeitava.” (1959:69). 3. Veja-se a respeito Costa (1996). 4. Dois importantes trabalhos sobre a história do feminismo no Brasil são: Família e feminismo: reflexões sobre os papéis femininos na imprensa para mulheres (Moraes, 1981) e Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de liberação em ideologia liberalizante (Golberg, 1987). 5. Veja-se a respeito Margareth Rago (2001:315). 6. Vejam-se por ex. Meretrizes e doutores (Engel, 1989); e Os prazeres da noite. Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (Rago, 1991). 65 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 GAY, P. A experiência burguesa da Rainha Vitoria a Freud. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, v.3: O cultivo do ódio. 7. Como a bibliografia na área é vastíssima, indicam-se apenas alguns trabalhos muito conhecidos: Gender and the politics of history (Scott, 1988); Gender trouble. Feminism and the subversion of identity e Bodies that matter (Butler, 1991 e 1993); Feminismo como crítica da modernidade (Benhabib, 1991); Poética do pós-modernismo (Hutcheon, 1991); Pós-modernismo e política (Holanda, 1991); Uma questão de gênero (Bruschini e Oliveira, 1990). GRANDE DICIONÁRIO LAROUSSE CULTURAL DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo, 1999. GOLDBERG, A. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 1987. 8. Susan Bordo (2000) levanta instigantes questões a respeito dessa aproximação, perguntando-se pelos motivos que levam à grande visibilidade dos “filósofos da diferença” em contraste com a invisibilidade das teóricas feministas. HARDING, S. Whose science? Whose knowledge? Thinking from women´s lives. Nova York, Cornell University Press, 1996. HOLANDA, H.B. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991. _________ . Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1991. ALVAREZ, S. Engendering democracy in Brazil: women’s movement in transition politics. Princeton, N.J., Princeton University Press, 1990. KNIBIEHLER, Y. e FOUQUET, C. La femmes et les medecins. Paris, Hachette, 1983. ALVAREZ, S. e ESCOBAR, A. The making of social moviments in latin america: Identity, strategy and democracy. Boulder, Westview Press, 1992. LE RIDER, J. 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Apesar de evidentes modificações nas relações de gênero em alguns países do Ocidente, o que aqui se pretende analisar é a dimensão das representações sociais do feminino, constitutivas das configurações identitárias e corpóreas, já que presentes na apreensão do real. A mídia e as revistas femininas compõem um locus especial de análise da ação do discurso e das imagens modelando corpos e assujeitando-os a uma certa representação do feminino. Palavras-chave: feminismo; revistas femininas; representações sociais; corpo e identidade sexual. sões físicas, humilhações, palavras, gestos, é apenas um marco de imagens e representações que instauram um corpo genitalmente definido e reduzido a um sexo biológico. A noção de “gênero” criada pelos estudos feministas desmascara a ação do social contida nos discursos sobre a “natureza” humana e seu valor heurístico é incontornável; entretanto, a força compreendida nas análises da generização humana tende a se diluir nos aspectos demonstrativo e relacional como se o diagnóstico pudesse por si só curar o mal. As composições de gênero determinam os valores e modelos desse corpo sexuado, suas aptidões e possibilidades, e criam paradigmas físicos, morais, mentais, cujas associações tendem a homogeneizar o “ser mulher”, desenhando em múltiplos registros o perfil da “verdadeira mulher”. Se o masculino também é submetido a modelos de performance e comportamento, a hierarquia que funda sua instituição no social desnuda o solo sobre o qual se apóia a construção dos estereótipos: o exercício de um poder que se exprime em todos os níveis sociais. A análise dos mecanismos de condensação discursiva e representacional da carne em corpos sexuados permite detectar agentes estratégicos na reprodução, reatualização, ressemantização de formas, valores e normas definidoras de um certo feminino naturalizado, travestido em slogans modernos, em imagens de “liberação”, cujos sentidos, Q ue rumor é este, “trocas verbais no interior de uma sociedade”, 1 que se ouve nas esquinas, nos bares, nas salas de jantar e nas de aula, nos ônibus superlotados e nos carros de luxo? O feminismo acabou? O infinito e insidioso ruído do discurso social sussurrado, explicitado, demonstrado, sugere a desnecessária continuidade de um movimento tornado obsoleto diante das “evidentes” conquistas das mulheres: no plano político, já podem votar e ser votadas, qual a queixa? São minoria nos altos postos legislativos e judiciários? Questão de tempo. No campo profissional as portas se abrem, para algumas eleitas. Questão de competência. Salários desiguais para tarefas idênticas? Os ajustes se fazem aos poucos… Decreta-se assim no senso comum e na análise teórica o fim do feminismo: afinal, os gêneros não são igualmente construídos socialmente? Entretanto, colocando-se no mesmo assujeitamento ao social a constituição do feminino e do masculino, esquece-se facilmente o caráter hierárquico da generização do humano. De fato, o ufanismo discursivo da igualdade de oportunidades não consegue encobrir a profunda polarização da sociedade ocidental em imagens esculpidas em formatos binários – mulher e homem –, cujos contornos assimétricos delimitam, autorizam, definem os papéis, a ação, o ser no mundo. Na prática social, a violência direta e indireta que povoa o cotidiano das mulheres com agres- 67 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 constituídos em redes significativas, são expressão de um assujeitamento à norma instituída. Algumas transformações formais, de fato, realizaramse em alguns países ocidentais em níveis legais e/ou jurídicos, graças justamente aos movimentos feministas, caracterizados pela sua multiplicidade, táticas e estratégias diversificadas diante de realidades. Mas o dinamismo e o alcance das mudanças – maiores ou menores de acordo com o país – têm-se reduzido ou mesmo regredido (Faludi, 1991), na medida em que as transformações não atingem as representações de gênero que constituem os corpos humanos em modelos de ser. O que aqui se pretende argumentar é que, além do papel social definido em feminino e masculino, as representações e imagens de gênero constroem e esculpem os corpos biológicos, não só como sexo genital mas igualmente moldando-os e assujeitando-os às práticas normativas que hoje se encontram disseminadas no Ocidente. Nessa perspectiva, as representações sociais são consideradas uma forma de construção social da realidade cuja mediação atravessa e constitui as práticas pelas quais se expressam. Para Denise Jodelet (1994:46), um pressuposto fundamental do estudo das representações sociais é o da “(…) inter-relação de uma correspondência entre as formas de organização e de comunicação sociais e as modalidades de pensamento social, vistas sob o ângulo de suas categorias, de suas operações e de sua lógica”. Assim, seja no rumor das conversas que fundamentam o senso comum, na literatura, no discurso científico, ou em tudo que é impresso ou falado, podemos encontrar representações sociais que instituem o mundo em suas clivagens valorativas, nos recortes significativos que definem as categorias de percepção, análise e definição do social. A comunicação expõe assim sua própria constituição de categoria ao se expressar e as matrizes de inteligibilidade do discurso social podem ser apreendidas em sua análise; o discurso social é aqui entendido como “(…) tudo o que é dito e escrito em uma determinada sociedade; tudo que se imprime, tudo que se diz publicamente ou se representa hoje na mídia eletrônica. Tudo que se narra ou argumenta, se consideramos que narrar e argumentar são as duas maneiras principais de elaboração discursiva.” (Angenot, 1989:13). Assim, a televisão, as novelas, os romances, as revistas em quadrinhos, as revistas em geral, os jornais, a internet, etc., em seu espaço de recepção e interação, veiculam representações sobre as mulheres, os homens, a sociedade. Imagens e textos compõem um mosaico que integra a maneira de se perceber o mundo e o desenho de sua positividade. Dessa forma, se o discurso da mídia em seu dialogismo com o rumor social decreta o fim do feminismo, o campo conotativo do que é dito e do dizível indica a recuperação e/ou atualização de representações binárias, excludentes e hierarquizadas sob novas roupagens. Mulheres e homens continuam a ocupar lugares tradicionalmente traçados segundo sua “natureza” feminina ou masculina, esta mesma “natureza” desconstruída pelo feminismo contemporâneo. Longo é o caminho trilhado pelos feminismos plurais em suas estratégias e argumentações desde Simone de Beauvoir, quando a pretensa essência da mulher é desconstruída em uma simples frase que vincula o “ser mulher” ao “ser” social.2 Se a história das mulheres restitui de alguma forma a presença, a ação e a resistência das mulheres ao imaginário ocidental em narrações pontuais, o feminismo argumenta e analisa a construção, os mecanismos que produzem poder e reproduzem as desigualdades de gênero. Entretanto, se as teorias feministas não cessam de expandir seu acervo de categorias e seu horizonte de análise, os movimentos feministas em sua prática social se vêem desautorizados e desmotivados diante da afirmação generalizada de que “o feminismo acabou” e que, sobretudo, o feminismo é uma prática anacrônica uma vez que, finalmente, “a igualdade já não foi alcançada?” Jane Flax (1991) observa que a análise das relações de gênero, como são constituídas, pensadas e experimentadas, é uma meta básica do feminismo; sublinha, entretanto, a necessidade de apontarmos o domínio do pensável, ou seja: como reproduzimos estas relações em torno de valores e significados cuja aparência anódina não permite uma imediata apreensão das hierarquias implícitas? Como são representadas, em que constelações de sentido se inserem as imagens de gênero que são veiculadas no espaço midiático, locus privilegiado de um imaginário instituinte de relações sociais? Nunca é demais destacar a démarche proposta por Foucault (1991) de inversão das evidências na análise do discurso social: buscar a vontade de verdade e os recortes discursivos que, no caso, constroem a naturalização de papéis. O discurso de verdade apóia-se na tradição, na ciência, na religião para definir a essência dos seres: uma identidade baseada em critérios arbitrários que se apresenta com um caráter atemporal, negação de toda historicidade, em asserções do tipo “eterno feminino”, “prostituição, a mais antiga profissão do mundo”. Para Foucault (1991:22), 68 FEMINISMO esta “(…) vontade de verdade que se impôs a nós há tanto tempo é tal que a verdade assim proposta não pode senão escondê-la”, pois a evidência esconde em suas dobras a vontade de poder que a anima. De fato, as representações sociais, estudadas em um tempo e local determinados sobre um corpus específico, são também reatualizações de imagens que permanecem alojadas nos nichos do interdiscurso, “(…) processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (…) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento (…)” (Maingueneau, 1989:113). Assim, no Ocidente, as representações das mulheres vêm sendo diabolizadas ou santificadas, e essas expressões compõem a noção de uma natureza sexuada selvagem, rebelde, má, cuja domesticação resultaria na imagem da “boa”, da “verdadeira” mulher. Os discursos fundadores dessas “certezas” em torno do feminino vão de Aristóteles a Paulo de Tarso, passando por inumeráveis caminhos discursivos e temporalidades diversas, entre o medievo e a modernidade. (Swain, s.d.) No saber instituído pela filosofia e pela história, a palavra dos “grandes homens” esclarece sobre a “verdadeira” natureza da mulher, repondo sem cessar, nos espaços interdiscursivos, representações pejorativas sobre o feminino que delimitam seu lugar no mundo, suas possibilidades e as práticas às quais ela deve se restringir.3 Alguns exemplos: Jean de Marconville, em 1564, invoca os gregos, os romanos, os textos bíblicos, os padres da Igreja para demonstrar a maldade das mulheres. Segundo ele, Adão, “(…) o mais dotado de todas as perfeições que todos os outros homens, foi entretanto vencido no primeiro assalto que lhe fez sua mulher”. Ainda assegura que as mulheres não têm aptidões “(…) para manejar e conduzir coisas grandes e difíceis como costumes, religião, república e família, pois parecem ter sido feitas mais para a volúpia e o ócio que para tratar negócios de importância.” (Marconville, 1991:97 e 101). Montaigne (apud Groult, 1993:83): “A mais útil e honrada ciência e ocupação para uma mulher é a ciência da limpeza”; Diderot (apud Groult, 1993:89): “A mulher tem em seu interior um órgão sucetível de espasmos terríveis que dela dispõem e suscitam em sua imaginação fantasmas de toda espécie” Schopenhauer (apud Groult, 1993:93): “Não deveriam existir no mundo senão mulheres de interior, dedicadas à casa, e jovens aspirando a isto e que formaríamos não à arrogância, mas ao trabalho e à submissão.” E ainda: “A mulher (…) permanece toda sua vida uma E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... criança grande, uma espécie de intermediária entre a criança e o homem, este o verdadeiro ser humano”. Proudhon (apud Groult, 1993:96-97), o “pai do anarquismo moderno” explicita seis casos em que o marido pode matar sua mulher, entre eles “a insubmissão obstinada, o impudor e o adultério”, e acrescenta: “Uma mulher que usa sua inteligência torna-se feia, louca, (…) a mulher que se afasta de seu sexo, não somente perde as graças que a natureza lhe deu (…) mas recai no estado de fêmea, faladeira, sem pudor, preguiçosa, suja, pérfida, agente de devassidão, envenenadora pública, uma peste para sua família e para a sociedade”. Nietzsche (apud Groult, 1993:102): “O homem inteligente deve considerar a mulher como uma propriedade, um bem conservado sob chave, um ser feito para a domesticidade e que só chega à sua perfeição em situação subalterna”. E isso sem citar a autoridade dos Rousseau, Freud, Hegel, Comte, Lutero, Lombroso, dos tratados médicos e dos manuais de confissão, da literatura e do teatro, da poesia, veiculando essas imagens que desqualificam e atrelam a mulher a um destino biológico e criam “(…) um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas” (Foucault, 1987:143). Assim a sedução perversa, a inferioridade física e social, a incapacidade intelectual, a dependência de seu corpo e de seu sexo, a passividade, vêm sendo reafirmadas em imagens e palavras que povoam o imaginário ocidental. Essas imagens do feminino ancoradas na memória discursiva 4 se incorporam às representações de mulheres atuais, transformadas, mas guardando as nuanças que fazem das práticas sociais um espaço binário assimétrico, cujas polarizações reforçam e justificam a divisão generizada do mundo. Ao feminino, o mundo do sentimento, da intuição, da domesticidade, da inaptidão, do particular; ao masculino, a racionalidade, a praticidade, a gerência do universo e do universal. Apenas os discursos religiosos integristas ou de extrema direita se permitem na atualidade declarações de um tal teor pejorativo sobre as mulheres; entretanto, os ditos populares, as piadas, as letras de música e as representações sociais que encontramos em imagens e textos midiáticos reformulam o atrelamento da mulher a seu corpo e à natureza “feminina”. Os produtos culturais destinados ao público feminino desenham, em sua construção, o perfil de suas receptoras em torno de assuntos relacionados à sua esfera específica: sedução e sexo, família, casamento, maternidade e fu- 69 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 tilidades. A ausência, nas revistas femininas, de debate político, de assuntos econômico-finaceiros, das estratégias e objetivos sociais, das questões jurídicas e opinativas é extremamente expressiva quanto à participação presumida, à capacidade de discussão e criação, ao próprio nível intelectual das mulheres que as compram. O feminino aparece reduzido a sua expressão mais simples e simplória: consumidoras, fazendo funcionar poderosos setores industriais ligados às suas características “naturais”: domesticidade (eletrodomésticos, produtos de limpeza, móveis), sedução (moda, cosméticos, o mercado do sexo, do romance, do amor) e reprodução (produtos para maternidade/crianças em todos os registros, da vestimenta/ alimentação aos brinquedos). Mulheres e homens, a “evidência” da diferença biológica seria o argumento último da necessária separação de esferas sociais baseada na diferença de sexos. Acompanha-se, entretanto, Judith Butler (1990) e Nicole Claude Mathieu (1991) quando questionam essa nova naturalização: a primeira afirma que o gênero só existe quando se materializa na prática do social, heterogênea em sua historicidade: “O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; o gênero é também o significado discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou o ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como uma forma ‘prédiscursiva’ anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age” (Butler, 1990:7). Mathieu (1991:256) acrescenta que é esse gênero instituído que cria o sexo biológico, pois a heterogeneidade cultural de relações sexo/gênero “(…) nos leva a pensar não mais que a diferença dos sexos é ‘traduzida’ ou ‘expressa’ ou ‘simbolizada’ pelo gênero, mas que o gênero constrói o sexo. Entre sexo e gênero é estabelecida uma correspondência ‘socio-lógica’ e política”.5 Ou seja, a importância dada ao sexo, ao aparelho genital, na positividade e divisão da sociedade, é ela mesma uma criação histórica e social. Isso nos leva à questão dos corpos que se transformam em feminino e masculino num processo significativo que restitui, no discurso e na matéria, as representações valorativas que dão sentido às relações sociais. Assim, a sexualidade torna-se o eixo principal da identidade e do ser no mundo, fundamentando-se em valores institucionais tais como procriação, casamento, família; a hegemonia da heterossexualidade, prática sexual entre outras, como atesta a multiplicidade de culturas, torna-se naturalizada. Essa montagem complexa compreende todo um sistema de representações e auto-representações sociais codificada em normas, regras, paradigmas morais e modelos corpóreos, que delimita os campos do aceitável, do dizível, do compreensível. Teresa de Laurentis (1987:5) chama essa engrenagem de sex gender system que seria “um construto sociocultural e um aparatus semiótico, um sistema de representação que confere sentido (identidade, valor, prestígio, localização no parentesco, status na hierarquia social, etc.) aos indivíduos na sociedade”. Na perspectiva feminista de detectar os mecanismos de produção e atualização deste quadro representacional Laurentis (1987:19) aponta para “as tecnologias do gênero” que de forma discursiva ou imagética “(…) têm o poder de controlar o campo do sentido social e então produzir, promover ou implantar as representações de gênero”. Essas tecnologias no mundo contemporâneo possuem sua expressão paroxística no discurso mídiático. Como comenta Foucault (1988:180), “(…) Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder.” Apesar da proliferação dos textos e imagens no murmúrio contínuo e inesgotável do cotidiano ocidental, a apropriação social do discurso se dá em diferentes instâncias discursivas, lugares de fala, posições de autoridade que legitimam ou excluem, delimitam ou expandem as hierarquias e os valores definidores de sentido e de lugares sociais, na Ordem do Discurso, na economia de um imaginário em que se pode detectar a hegemonia das representações tradicionais e naturalizadas de gênero. Regularmente o discurso social retoma a medicalização do homossexualismo, a dependência psíquica incontornável da mulher em relação a seu corpo sexuado na incapacitação que resulta da TPM (tensão pré-menstrual) ou na universalização dos “males” da menopausa, como veremos adiante. Esses tipos de asserções reduzem a multiplicidade da experiência à imagem da mulher, essencializada, partilhando igualmente a fragilidade de uma natureza que finalmente justifica e reitera seu lugar subordinado. A questão que se impõe é: como se pode confiar no julgamento, na palavra e no raciocínio de um ser subjugado periodicamente por nervosismos ou calores? Isso não seria apenas uma reformulação da imagem da “mulher histérica”?6 O assujeitamento das mulheres e das próprias feministas a esse tipo de discurso revela a força de autoridade do discurso médico, divulgado e reafirmado pela mídia. 70 FEMINISMO Foucault (1991:110) afirma que “(…) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos (…)” e as tecnologias de produção de gênero fazem parte integrante desta démarche, conjurando e ao mesmo tempo assimilando as transformações sociais conseguidas pelos movimentos feministas. Sob novas roupagens, quais as representações do feminino veiculadas pela mídia atualmente, nas propaladas reformulações das relações de gênero? A análise de revistas “femininas” recorta, no universo discursivo, este “(…) conjunto de discursos que interagem num dado momento (…)” (Maingueneau, 1996:14) um lugar de fala que nos traz textos e imagens como objetos sociais e históricos, elaborados no social segundo códigos e significados pré-construídos; por outro lado são, também, produtores/ressematizadores das representações instituidoras da socialidade. Disputando um mercado milionário, entre publicidades, reportagens, conselhos, dicas, moda, receitas culinárias e de vida, procuram interpelar e conduzir as receptoras para um espaço de significações cuja proximidade da dóxa assegura sua possibilidade de leitura; existiria talvez um projeto pedagógico que urde a trama dos sentidos assim veiculados, numa retórica que busca “(…) convencer os outros de que, de fato, apesar de tudo, ainda se vive no melhor dos modos possíveis (…)”(Eco, 1993:174). Os sentidos do mundo, assentados em valores e normas, expectativas e barreiras, definições e identidades, são assim constituídos em opinião pública, ciência, religião, lei, nas instâncias discursivas que regem e regulam a socialidade. O mundo da comunicação contemporâneo é hoje talvez o único espaço sem fronteiras e a circulação de imagens e representações sociais é virtualmente sem limites; as matrizes de inteligibilidade partilhadas e veiculadas pela mídia atualizam, das profundezas da memória discursiva, imagens estereotipadas do feminino e do masculino, mas não apenas em um espaço cultural definido. Assim, podemos sugerir a hipótese de que se o feminismo se desdobra hoje em teorias e estratégias plurais que apontam para a multiplicidade das situações e das condições materiais das mulheres, a mídia, em tempos de globalização, pretende a homogeneização da condição feminina e a recuperação da imagem da “verdadeira mulher” feita para o amor, a maternidade, a sedução, a complementação do homem, costela de Adão reinventada. E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... Com efeito, a mídia se localiza na noção de dispositivo, aventado por Foucault (1979:244) como “(…) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Assim, as tecnologias do gênero descritas por Laurentis aprofundam essa noção verticalizando-a na constituição das representações generizadas do humano. Para transitar nesse universo globalizado da atualidade, em que a troca cultural é parte do mercado mundial, foram escolhidas para análise quatro revistas em dois países: Nova (jun, 1999) e Marie Claire (maio, 1999), revistas brasileiras, e Elle-Québec (janvier, 1999) e La Chatelaîne (décembre, 1998) da província francesa do Québec-Canadá. Línguas latinas, matrizes culturais imbricadas, numa economia de trocas representacionais da América do Norte e América do Sul. A intenção é tentar observar como as representações de gênero constroem os corpos sexuados e as práticas femininas são assim homogeneizadas. 7 O tom geral das revistas é de alegria, de confiança no futuro, certeza de poder conciliar tarefas, assumir os novos espaços abertos às mulheres sem perder um só grama de sua “feminilidade”, perspectiva que “(…) em nada se distingue daquela ética da felicidade barata pela qual se rege uma civilização do lucro e dos consumos” (Eco, 1993:174). De fato, o que se nota é uma certa condescendência em relação à mulher profissional, cuja atividade seria apenas um acréscimo às suas tarefas habituais, nunca uma modificação da divisão “natural” do trabalho. O público-alvo é a mulher de classe média, jovem, com um certo nível de instrução e renda, cujas preocupações e interesses são presumidos nos apelos publicitários e nos temas desenvolvidos. As capas das revistas brasileiras Nova e Marie Claire apresentam chamadas que indicam as matrizes de sentido sobre as quais se apóiam o corpo e seus contornos, a sexualidade heterossexual, a sedução, o casamento e a maternidade. O corpo tecnológico, refeito, remodelado para seguir o modelo de mulher cujas imagens povoam a revista aparece em ambas: plástica na barriga e transplantes em Marie Claire (MC); em Nova, aumento dos seios com silicone. Na rede discursiva texto/imagens dessas revistas, as publicidades vêm reforçar os sentidos e as representações propostas nas capas, como veremos mais adiante. Em MC, as três primeiras chamadas discutem a sexualidade e o casamento: “As fases da separação: da dor ao 71 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 alívio”; “Lua-de-mel: como era e como ficou”; “Orgasmo, a ginástica sexual que aumenta o poder feminino”. Um depoimento – lugar de fala da leitora – anuncia a maternidade: “um milagre de amor salvou meu filho”. Um belo rosto de mulher compõe a capa, moreno, olhos castanhos, cujo sorriso anuncia o bem-estar da mulher brasileira. A capa da revista Nova é mais provocante: uma exuberante loura de olhos azuis, seminua, apenas envolta em gaze azul: mulher versão Barbie, o retorno infindável? As chamadas estão todas voltadas para a sexualidade e a sedução: “14 histórias inconfessáveis de ousadias sexuais”; “O que você faz para engatar ou destruir o namoro”; “Terapia sexual é uma saída para casamentos na corda bamba?”; “50 homens charmosos e solteiríssimos que querem receber sua mensagem”. De fato, as duas revistas são construídas em função de um personagem cuja presença é incontornável e em torno do qual giram as mulheres incansavelmente: o homem. Em ambas as revistas o corpo é central, pois é a partir de sua capacidade de sedução que os demais elementos da rede discursiva se integram. O cyborg analisado por Donna Haraway, o corpo tecnológico, é evocado pelo discurso sobre o transplante, do qual se trocam as peças na luta contra a morte; a plástica na barriga e as publicidades de cosméticos e cremes rejuvenescedores apelam à eterna juventude, ao corpo produzido: o modelo corporal está finalmente ao alcance de todas, na luta contra o tempo e as imperfeições. Com a cosmetologia, nenhuma mulher precisa ser feia, uma vez que a beleza é condição sine qua non para o romance e a felicidade. As publicidades referentes ao corpo em MC apontam para a beleza possível, mostrando às mulheres como elas PODEM ser. “Livrei-me da barriga e das recordações tristes” diz uma leitora em MC: o excesso no corpo remete à tristeza e à infelicidade. O sumário de MC transita entre reportagens que articulam valores tradicionais (entrevista com Adélia Prado e comunidade tradicional no Rio Grande do Sul) e matérias sobre duas personalidades masculinas, decoração e interior (interesse principal e locus específico da mulher), problemas de relacionamento de casais e é claro, Moda, Beleza, Saúde e dicas para uma Boa vida). A única matéria de cunho político strictu sensu referese às “viúvas e órfãs de Pinochet”, na qual aparecem como guardiãs de uma memória – de um pai ou marido, cujas imagens são predominantes. “Até hoje muitas mulheres continuam procurando saber o que aconteceu com seus parentes desaparecidos”. Apesar do corpo da matéria apontar para mulheres que foram torturadas, violadas e assassinadas, a construção do texto e as imagens as tornam espectadoras e auxiliares das verdadeiras vítimas – os homens, que perderam a vida pela liberdade. A resistência das mulheres à ditadura não aparece senão como a dor da perda, mote das chamadas e das fotos: a corda sensível é a quebra familiar, o registro da emoção e do individual, único aparentemente capaz de motivar as mulheres e fazêlas respeitadas nesta “invasão” do espaço público. A sexualidade aparece explícita nas três primeiras reportagens: na matéria sobre a lua-de-mel, a superfície discursiva da chamada mostra um caminho evolutivo de mudanças no comportamento sexual. Podem-se destacar algumas palavras que sustentam o texto nas palavras da avó: ingênua, choque, dor, medo, vergonha, ansiedade. Mas “meu marido era um lorde (…) eu tinha de deixar (..) afinal o casamento tinha de ser consumado, era nossa obrigação”. Para a filha, a lembrança da noite de núpcias invocava “ansiedade, nervosismo, dor, vergonha; “a virgindade era um bem a ser preservado. Na verdade a gente falava muito, mas sabia pouco”. Prazer? “(…) senti prazer, um prazer de estarmos juntos (..) tinha de ser e ele foi supercarinhoso e paciente”. Em comum as matrizes de sentido: medo, vergonha, obrigação, falta de prazer e a idealização de um marido gentil e compreensivo. Quanto à terceira geração, na primeira relação sexual “Eu não tinha vergonha, (…) não doeu, não sangrou, mas não senti prazer”. O casamento, feito “(…) porque as famílias queriam” mostra uma opção moderna, que dispensaria o institucional; seu relato, entretanto, é o único que enfatiza os rituais realizados nos mínimos detalhes, o que é significativo sobre a importância da cerimônia para os próprios noivos. O relato é finalizado com a ênfase dada à transmissão da experiência para a filha “(…) passando para ela o máximo que puder do que é a relação com um homem, os sentimentos, a beleza, sem tabus (…) inspirar na nossa filha esse sentimento de algo muito natural e bom.” Esses depoimentos, numa linha de progresso, apóiam o caminho inexorável de um relacionamento cada vez melhor entre os gêneros, exemplificado no artigo pelo discurso da atualidade. Locus de gentileza, afeto, estabilidade, a família é exaltada na transmissão dos valores mais tradicionais e a sexualidade no casamento, vestida de modernidade, afirma a boa ordem do mundo. Essa é, portanto, a sexualidade correta, ligada ao que é “natural e bom”. Essa matéria se atrela à naturalização do institucional e ao obscurecimento de sua historicidade; como sublinha 72 FEMINISMO Adrienne Rich (1981:17), “Em nenhum dos livros que tratam da maternidade, dos papéis e relações sexuais, das normas sociais para as mulheres, leva-se em consideração a heterossexualidade obrigatória como instituição capaz de afetar profundamente todos os fatos sociais; e a idéia de ‘preferência’ ou de ‘orientação inata’ não é, da mesma forma, posta em questão”. Na mesma linha da tradição e família, encontra-se uma longa entrevista com Adélia Prado, para quem o lugar de fala e de autoridade é logo estabelecido: “a maior poeta brasileira viva”, que “(…) defende valores cada vez mais contestados e escreve textos cada vez mais admiráveis.” Com 41 anos de casada, fé no “sacramento do matrimônio”, mãe, avó, católica, dona de casa, o perfil traçado fundamenta o discurso em torno de alguns eixos: fé, estabilidade, valor espiritual do casamento. Adélia Prado afirma que “(…) as feministas me acham antiga demais da conta” e a revista apressa-se em afirmar: “Mas os críticos são quase unânimes em reconhecer o talento e a força desta teologia poético-pessoal e feminina”. A oposição feminino/feminista reforça a percepção do senso comum: o feminismo é desqualificado pela afirmação do feminino, ligado aos valores das “verdadeiras mulheres” assegurados pelos críticos, pelo mundo masculino. Adélia Prado tem sua definição de feminino: “capacidade de dizer sim, de se dobrar, de aceitar a condição de perdão radical.” Da mesma forma indica que: “Uma coisa que me aflige é o direito da mulher. Eu fico com uma vergonha na hora que dizem isso. Porque me inferioriza, sou ofendida enquanto ser humano (…) acho que já está tudo lá nos direitos humanos.” A palavra “vergonha” sugere a inadequação total de reivindicações que desestabilizariam o natural das posições definidas para mulheres e homens – humanos, cada qual em seu lugar, decisão divina. O discurso de Adélia Prado nessa revista nega a condição subordinada da mulher, nega a violência social e institucional que hierarquiza e marca os indivíduos sexualmente. Esses comentários seriam apenas desprezíveis se não estivessem inseridos em uma rede discursiva que os revestem de legitimidade para o senso comum, adensando a dóxa da inscrição corporal. Por outro lado, para ela, escrever é um ato masculino: “(…) vergonha de fazer poesia nunca tive, mas era do ofício que tinha vergonha”. Usurpação do lugar do homem, opróbio do deslocamento da ordem das coisas, da ordem do Pai: aos homens o intelecto, às mulheres o sentimento, a intuição. “Cada macaco no seu galho” diz o ditado. E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... Adélia Prado continua: “(…) qualquer ato criativo eu sinto como um ato masculino. De fato eu sou um homem neste sentido, quando estou escrevendo.” Assim, ser agente no mundo é privilégio do ser masculino; anulação total, negação do ser feminino que se procura afirmar: a criação para a mulher é apenas ligada à reprodução. “Virgindade, casamento, é necessário passá-los para os filhos”, conclui. A repórter marca o lugar da recepção esperada: “Saí de sua casa com uma inveja boa, querendo ser um pouco como ela (não fosse eu estragada de nascença) só para acreditar no que e como ela acredita.” O desalento, a descrença marcam essa fala que aponta para a retomada de valores e crenças tradicionais. Quem sabe não éramos mais felizes? A revista MC continua a discursar sobre a sexualidade e a chamada agora é: “Ginástica íntima: técnicas milenares e aparelhos que aumentam o prazer da mulher”. No corpo do texto a matéria versa sobre a “contração voluntária dos músculos circunvaginais, a fim de induzir sensações eróticas no pênis durante o ato sexual”. Prazer de quem? Uma citação de Jorge Amado completa o texto em um quadro, em destaque: “uma mulher pode ser feia de aparência, pior de formas, mas se a boca do corpo for de chupeta, trata-se de diamante puro”. A grosseria da frase teria foros libertários? O fato é que aqui a mulher é apenas uma vagina, não importa seu aspecto físico. O deslocamento entre o título e o texto marca o próprio deslizamento da sexualidade da mulher para a do homem, a que se torna central na matéria. A jornalista afirma ainda que “idolatradas pelos homens, muitas ‘pompoaristas’ não divulgam a técnica para não aumentar a concorrência”: assim, aquelas que compraram a revista esperando conselhos para um maior prazer pessoal, se vêem conduzidas a um universo de concorrência e sedução, em que seu corpo é um simples aparelho masturbatório. Por outro lado, na seção de cartas, um comentário sobre um bordel para mulheres: “Em algum lugar deste mundo as mulheres podem exercer suas vontades, fantasias e desejos sem o menor problema ou constrangimento.” A prostituição, expressão paroxística da violência social, torna-se aqui o locus naturalizado de expressão livre do desejo: a liberação sexual é equiparada à prostituição, estratégia discursiva comum tomada como justificativa da objetificação e mercantilização humanas. As publicidades compõem a rede que estabelece o lugar, a conduta adequada, o perfil psicológico da mulher: numa delas, o amor da mãe pelo filho torna-se admiração sem limites da mulher pelo homem, pois ele ensina-lhe a usar Nescafé. 73 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 Os anúncios de carro revelam a relação das mulheres com a máquina: aparência e segurança são os motes. Numa delas a família feliz, duas crianças, o pai dirige, a mãe olha-o com adoração e põe a mão em sua perna. O carro para as mulheres é uma extensão de sua casa, extensão de seu papel e de suas obrigações. Além da moda e da cosmetologia, cujas publicidades compõem cerca de um terço da revista, anúncios de sabão em pó: “todo o mundo tem de escolher entre o que precisa fazer e o que gostaria de fazer (…) enquanto Ariel trabalha, você tem todo o tempo livre para dedicar a sua família, a sua casa, a você mesma”. “Dia das mães. Se depender da gente pode-se chamar Dia da Independência – assinado: produtos Maggi.” A divisão de trabalho é aqui naturalizada ao máximo: entre precisar/querer, a opção é obrigatória, e facilitar o trabalho de casa permite uma dedicação ainda maior à … casa. Por último, eventualmente, a si mesma. De toda forma, a mulher foi destinada à resignação e ao sacrifício, como diria Adélia Prado. A independência, para as mulheres, se resume a fazer comida com maior facilidade. Em SEU lugar: a cozinha. A revista Nova já em sua denominação apela para a idéia de transformação, de modernidade: a “nova mulher” deve aí encontrar a sua imagem. As chamadas da capa referem-se a práticas sexuais, possíveis transgressões, casamento, namoro, remodelagem do corpo: “14 histórias inconfessáveis de ousadias sexuais, a gente nem imagina do que as mulheres são capazes!” (O lugar de fala aqui é externo e na perspectiva binária da revista, só pode ser masculino – seria um convite a seus olhares?) “Negra e vitoriosa: volta por cima do preconceito” “50 homens charmosos e solteiríssimos querem sua mensagem”; “Terapia sexual para casamentos”; “Engatar ou destruir um namoro – os homens revelam”; “Idéias espertas para trabalho extra”; “Aumento do seio com silicone”. Dessas chamadas, quatro são relativas ao relacionamento com um homem e uma refere-se à busca da perfeição corpórea, marco de sedução. Nos artigos e reportagens, uma personalidade em destaque, pondo em relevo sua carreira, expectativas de trabalho: um homem. Duas mulheres aparecem também como tema de reportagem: uma é a mulher mais elegante do Brasil e outra é Betty Faria, atriz, mas a ênfase aqui é dada à sua vida particular e sobretudo amorosa. Os domínios de atuação são assim claramente demarcados. Outras duas matérias se debruçam sobre as fantasias sexuais e problemas amorosos, uma sobre o casamento e dentre as “21 coisas a fazer antes do ano 2000”, a primeira é “fazer as pazes com o corpo” e a segunda, “honrar a palavra” da qual o exemplo dado é “fazer dieta”. A reportagem especial é sobre “paquera”. Seguem-se moda e beleza (ao alcance de todas), cartas, horóscopo, dicas, novidades, nudez, mulher liberada. As categorias axiais permanecem as mesmas: corpo, sedução, amor. As publicidades de moda, culinária, perfumaria e beleza, com ênfase para o rejuvenescimento, compõem quase metade da revista. “Quero ser seu par”: 14 páginas sob este título mostram em grande formato casais em posições claramente sexuais ou de apropriação. Os seios voltam à baila, explicitando que a perfeição está ali, próxima: “Aumenta o volume! Se você não nasceu com seios perfeitos pode optar pelas moderníssimas próteses de silicone. Levantamos tudo sobre o assunto!”, em seis páginas. O corpo da mulher desenha-se assim sob o olhar do outro, aquele a ser seduzido, aquele que faz de mim um sujeito dotado de significação social. Que corpo é este, construído em todas suas linhas e desenhos; que corpo é este contra o qual devem se erigir o mundo feminino e a indústria de cosméticos/perfumaria/ginástica/produtos dietéticos/medicina/pesquisa? Para melhor domesticá-lo, para controlá-lo e mostrar que, neste caso, a natureza pode e deve ser contornada, pois todas as mulheres têm ao seu alcance a BELEZA, caminho para o amor, o casamento, o jogo da sedução e da felicidade. Tomadas ao acaso, as superfícies discursivas de produtos de beleza: “… o mais revolucionário tratamento de beleza contra o processo de envelhecimento e combate aos radicais livres”; “…aparelho especialmente desenvolvido para modelar o seu corpo, quando você não tem tempo para fazer exercícios” (ao lado de uma dançarina do ventre com o rosto velado e seminua). “Segredos da natureza para renovar sua pele, cabelos e sentidos”; “Novo Chic… não pense no custo. Pense no benefício. (mulher de calcinha e sutiã sobre um fundo azul de um rosto em close de um homem); “Agarre seu homem pelos cabelos”. De fato, as mulheres se vêem pelo olhar “panóptico” masculino, que as constrói em seu reflexo no espelho e em sua representação mental. Num metadiscurso, a revista faz um anúncio dela mesma – Nova Beleza – com a chamada principal: “Todas as respostas para você ter um bumbum perfeito: exercícios, óleos, dietas…” e outras compondo a próxima capa: “a primeira noite com ele: como deixar seu corpo macio, cheiroso, gostoso de pegar”; “cabelos ondulados, cacheados, crespíssimos”; “os 22 melhores cremes… para você 74 FEMINISMO começar já!”; “Decidi mudar radicalmente meu visual. E consegui!”; “Seios que parecem maiores, barriga quase invisível. As lingeries que modelam seu corpo”. Mulhercorpo? Para Susan Bordo (1997:19-20), o corpo funciona como uma metáfora da cultura e esta densa rede discursiva tece as malhas simbólicas e normativas da definição do feminino. Afirma a autora que “Por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras de dieta, maquiagem, e vestuário – princípios organizadores centrais do tempo e do espaço nos dias de muitas mulheres – somos convertidas em pessoas menos orientadas para o social e mais centradas na automodificação”. E esse combate cotidiano é incitado, conduzido e levado aos extremos pelo dispositivo da sexualidade definido por Foucault (1976), no qual as tecnologias de gênero afunilam a performance na construção de corpos sexuados, no esquema binário e valorativo que funciona e oscila nos registros da sedução, posse, romantismo, apropriação. Ainda no “ramo publicitário” os anúncios de carro expressam em suas superfícies discursivas uma certa representação da mulher: “conforto e segurança” (antes de tudo, pensar no transporte das crianças); “novo design, novo conjunto ótico: faróis e pisca numa única peça de policarbonato transparente” (alta tecnologia para o mundo feminino); “pára-choques envolventes na cor do veículo que suporta pequenos choques” (mulher dirige mal e só conhece do carro a cor), novo revestimento com toque suave”, (próprio das damas); “novo quadro de instrumentos com conta-giros de série e iluminação por leds azuis de alta intensidade e filetes em vermelho” (cores e luzes, atrativos maiores) “computador de bordo … nova regulagem no comando de válvulas e injeção, deixando o carro ainda mais gostoso de dirigir” (detalhe apenas: computador, injeção eletrônica – não se assustem, é agradável para dirigir). Poderia ser a descrição de um carrinho de brinquedo mas “combina com seu estilo de ser” e como é um anúncio para a “Nova Mulher” conclui: “irreverência nas ruas.” O capítulo “sexualidade” nessa revista tem três partes: terapia, fantasias e entrevistas com homens sobre como vêem as mulheres, nas quais a questão é vê-las moldes “para casar” ou “para outras coisas”. As respostas se dividem em partes iguais: a primeira metade acha um absurdo essa divisão, mas suas afirmações ainda constroem um mundo separado para homens e mulheres. Assim, a afirmação “o que faço com outras mulheres posso muito bem fazer com minha namorada” supõe a multiplicidade de parceiras. Estaria sua namorada no mesmo registro, seria E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... isto aceitável? Ou apenas uma reafirmação da dupla moral, a sexualidade múltipla para os homens e a monogamia para as mulheres? “Adora badalação … e nem por isso é uma vagabunda”. O que é ser uma vagabunda? Quais os limites, quais as margens? “Cheguei à conclusão que somos iguais”, pensamento profundo, solitário, inovador e moderno, nada a ver com as transformações conseguidas a duras penas pelos movimentos feministas. A outra metade dos entrevistados afirma claramente suas expectativas: “… por mais que um homem seja moderno ele não consegue pensar em casamento quando se relaciona com uma mulher que faz questão de sua própria liberdade… mesmo que isto não a comprometa em nada”; “prefiro uma mais quietinha, que confie em mim e não me dê dor-de-cabeça com mania de independência”; “para casamento com certeza prefiro uma garota serena, caseira e natural”. As palavras destacadas acima compõem por si só um texto de advertência às mulheres: o espaço de domesticidade, a reserva própria ao feminino, a volta à “natureza” são condições sine qua non para o casamento. Nos anos 70, Germaine Greer (1971:295) apontava essa dupla face do casamento: “Cada esposa deve se contentar de seu lar e de sua vida familiar enquanto que para o homem trata-se apenas de um lugar de refúgio para onde se retira como um guerreiro cansado (…).” Esses homens, que assim se expressam, são jovens entre 25 e 35 anos, nos anos 90, nascidos já em meio ao debate engendrado pelo feminismo; suas representações sociais, entretanto, continuam presas aos esquemas binários do mundo, de dupla moral e do binarismo implícito nas práticas sociais, sejam elas econômicas, morais, relacionais, sexuais, instituidoras de um mundo cindido “naturalmente”, em masculino e feminino. A revista constrói sutilmente sua rede de representações em outras reportagens: uma leitora queixa-se que seu noivo a subestima, suas opiniões, ações, “não me considera capaz. Perguntei se acha que sou burra, ele apenas sorriu, como se estivesse dizendo mais uma bobagem.” Essa superior condescendência é atenuada pela revista que afirma: “Ele é uma vítima do mecanismo que o obriga a ser assim (…) mas para dominar, precisa de uma cúmplice, dê-se ao respeito.” Esse ato retórico de inversão constrói um campo de significação e persuasão em que a vítima é transformada em ré ou cúmplice: de um lado explica socialmente a atitude do homem e de outro acusa a mulher. Nos casos de estupro, agressão, assédio, violência conjugal, de quem é 75 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 afinal a culpa? Já diz o ditado: “se você não sabe porque está batendo, ela sabe porque está apanhando”. Logo em seguida, uma entrevista com um músico muito liberal, que adora as mulheres com uma “saudável rebeldia”. Entretanto afirma que “garotas doces, meigas e certinhas, tímidas e passivas exercem um grande fascínio sobre os homens”. Não chega nem a ser uma retórica paradoxal: de um lado, uma certa rebeldia, moderna, mas dentro de limites precisos, pois no jogo da sedução é o papel tradicional, “natural” da mulher que vai atrair e “fisgar” os homens. Outra reportagem refere-se às “dez fantasias sexuais mais quentes”: nas dos homens encontram-se o voyerismo e o homossexualismo. Mas a revista previne, para deixar claras as fronteiras sexuais: “não, ele não é gay, é só uma curiosidade positiva”. Sadomasoquismo é outra fantasia masculina mas a relação natural entre os gêneros aí fica explícita: dominador/dominada”. Ser amarrada é uma das fantasias femininas favoritas; amarrar, um sonho tipicamente masculino. “Tem a ver com a obtenção do poder ou a renúncia a ele”. Ou seja, mesmo no nível da fantasia não há disputa de lugares: as mulheres renunciam ao poder (passividade, submissão, aceitação) e os homens exercem-no. A simulação do estupro é outra fantasia masculina e diz a revista: “(…) forçar uma mulher não está relacionado à violência mas com a vontade que o sujeito tem de submeter a parceira por meio de uma técnica fantástica. Ela começa dizendo não depois muda de idéia, porque é incapaz de resistir ao gostosão. Para ele é uma viagem do ego. Ninguém se machuca e a vítima também se diverte.” Essa “fantasia” nega a violência do corpo usado, da humilhação, do desprezo e da negação da individualidade; diminuída, banalizada, apresentada como um jogo, lúdico e prazeroso – uma técnica fantástica. “Viagem do ego, incapaz de resistir ao gostosão.” Como negar a força das palavras, a força dessas imagens que saltam do texto e interpelam as emoções? Como negar que essa retórica persuade e estimula a agressão, reafirmando antigas fórmulas como: “ela começa dizendo não”? Assim, vemos a mídia atuando na tessitura da rede representacional reafirmando e fazendo funcionar o poder generizado em “(…) nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc.” como explicita Foucault (1979:182). O homossexualismo está entre as fantasias e ousadias sexuais das mulheres mas a revista desculpabiliza “(…) só porque tem a idéia não quer dizer que vai ser obrigada a cortar o cabelo e pôr um terno”. O estereótipo indica que uma passagem rápida pelo desejo sáfico não pode desviar do caminho correto, o que reforça no campo das representações sociais “(…) a convicção das mulheres de que o casamento e a orientação sexual para os homens são componentes inevitáveis de sua existência”, como afirma Adrienne Rich (1981:23). Por outro lado, sexo oral, sexo romântico, ser considerada irresistível aparecem como fantasias sexuais ousadas. Que tipo de relação sexual têm as mulheres “modernas” que lêem Nova? Que tipo de relação podem considerar satisfatória se nessas fantasias “ousadas” a sedução é mais importante que o sexo? Nas fantasias aparece, é claro, como contraponto, o “sexo contra sua vontade” e a revista explicita: “elementos de conquista à força, não de dor e violência”. Agir como prostituta é também uma fantasia das mulheres “sexualmente inibidas”, pois informa a revista Nova, “o pagamento é confirmação do poder de atração, você tem uma coisa tão almejada que ele está disposto a desembolsar dinheiro por ela.” A mulher reaparece aqui como a representação de seu corpo ou uma parte dele e a prostituição, exacerbação da violência social, é tratada como um estágio superior da sedução. Essas são estratégias discursivas de construção de gênero e seu efeito de poder é a construção de um corpo biológico generizado que traz, como sublinha Foucault (1979:22) “(…) em sua vida e sua morte, em sua força e sua fraqueza, a sanção de todo erro e de toda verdade (…)”. Verdades construídas, datadas, que circulam no social com a força da evidência, com o selo do natural e do inquestionável quando se trata de corpos sexuados feitos mulheres. Outra cultura, outro espaço, outra materialidade: a província canadense de Québec, de língua francesa. O momento: Natal. A revista, La Chatelaîne, que logo marca seu lugar de fala: “a revista mais lida do Québec”. As chamadas da capa enquadram um belo e jovem rosto de mulher, sorridente: “Viagra: a vingança dos homens”; “Educação, quando os pais não sabem dizer não”; “Michel Rivard: a felicidade reencontrada”; “Natal: seja bela para as festas”; “Não procure mais: 15 páginas de presentes fabulosos”. A trama discursiva se organiza em torno do consumo, da beleza, da família, da sexualidade e dos homens. A capa sinaliza assim o conteúdo significativo da revista. Abrindo a revista, em duas páginas uma publicidade de perfume na qual um homem beija uma mulher. Consu- 76 FEMINISMO mo, sedução, amor, o tríptico das revistas femininas. A publicidade tem um papel notável nessa revista, na recuperação e reafirmação de estereótipos: numa delas (que se repete na revista Elle) uma mulher executiva, sobrancelha levantada, lábios estreitos, braços cruzados, tailleur estrito, cabelo preso, sentada em uma cadeira de espaldar alto e reto, atrás de uma mesa sobre a qual repousam caneta, óculos, agenda. Na placa em que deveria estar seu nome, que em francês se escreve NOM, está escrito, porém, NON, ou seja, a negação: não. Essa imagem negativa, de dureza e severidade para uma executiva, imagem rígida de uma mulher no exercício de uma profissão de comando, é colocada em um campo significativo e polissêmico com a simples palavra instalada em sua frente: Não. Não à profissional? Não à mulher severa? À mulher em posição de poder? À mulher que não se adapta ao modelo? À mulher sem os atributos “naturais” da feminilidade? “No Natal, ofereça algo doce a quem mais precisa” diz o texto. E sublinha: “para as que precisam se dar prazer”. Imagem e texto, ato retórico desconstrutivo da representação da mulher que trabalha, que decide, que manda, pois perde sua doçura, sua suavidade, e sobretudo, seu prazer – de ser mulher. As publicidades nessa revista concentram-se em produtos de beleza (35 páginas) que asseguram a juventude, a perfeição em detalhes do corpo: maquiagem, cabelos, unhas, pele, lábios, cílios, apontando para as possibilidades infinitas de correção de imperfeições e da passagem do tempo. A “arte” da maquiagem é a arte do disfarce, mas isto supõe que o rosto da mulher sem pintura seja defeituoso. “(…) As tecnologias da feminilidade são praticadas pelas mulheres contra este pano de fundo da percepção de um corpo deficiente; isto explica seu caráter muitas vezes compulsivo e ritualístico”, sublinha Sandra Bartky (1988). Por outro lado, 32 páginas e publicidades sobre cozinha e comida trazem conotações sexuais, familiares, sedutoras. A mulher é a provedora ou a que “pega o homem pelo estômago”. Uma delas é uma receita para a sedução, a respeito de trufas com chocolate branco: “depois de uma, seu homem lhe dá a lua; depois de três, renega a cozinha da mãe; depois de cinco, começa a compreender o que significa “preliminares.” O grande número de apelos à degustação de receitas ou as fotos de doces suculentos é uma contradição constante com as imagens oferecidas como modelos de beleza, diáfanas, magras, magras, magras. Essa contradição impregna a vida das mulheres ocidentais pois, como E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... explicita Susan Bordo (1997:25), “As regras dessa construção de feminilidade (…) exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si próprias, e que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo de auto-alimentação e cuidado consigo mesmas. Assim, exige-se das mulheres que desenvolvam uma economia emocional totalmente voltada para os outros.” Outras fontes de representações sobre as mulheres são as publicidades de carros: nestas, os textos são longos e retomam o senso comum. Na descrição do automóvel enfatiza-se o espaço e as “portas com duplas fechaduras”, ideal para transportar as crianças; por outro lado, “os instrumentos fáceis de ler”, ajudam a pobre mulher a compreender uma máquina misteriosa para sua mente limitada. Ou então, o que importa são as linhas e a aparência: “top model: elegância, raça, grife, conforto,”; “todas as suas esperanças alcançadas: espaço, conforto, rádio, regulador de velocidade e ah! 150 cavalos!” De fato, a performance do motor é secundária, todos sabem que as mulheres só conhecem dos carros as cores. Facilidade, conforto, segurança, espaço; adjetivos: elegância, beleza, grife. A venda de carros retoma como eixos a aparência, a utilidade familiar, a futilidade, o acessório em lugar do essencial, e sobretudo a relação “natural” da mulher com a máquina: a incapacidade de compreendê-la, de avaliá-la. A diferença entre homens e mulheres é tomada como tema de uma das reportagens da revista e o subtítulo sugere uma modificação representacional: “os geneticistas exageram!” Da Université Laval, única universidade no Québec que tem um programa de “Estudos Feministas” com diplomação específica, vem o interlocutor que responde às questões da revista: é um homem, antropólogobiologista. Nessa escolha, a revista reforça a idéia da autoridade masculina, voz que pode esclarecer as dúvidas de todas as leitoras “modernas”, ávidas de aprendizado. Segundo ele, os antropólogos contestam que as diferenças sejam naturais mas em nenhum momento fala do papel do feminismo nessa contestação do papel “natural” atribuído ao feminino e ao masculino. Afirma que “na maior parte das sociedades de caçadores-colhedores que existiam antes da agricultura, as mulheres se dedicavam à colheita e os homens à caça”. Essa universalização é totalmente desprovida de fundamento, na medida em que os dados a respeito dessas sociedades – indícios – estão sujeitos à interpretação dos analistas impregnados de suas representações sociais. Nada pode provar essa divisão de trabalho, a não ser as pressuposições contidas em suas próprias concepções de papéis de gênero. As generaliza- 77 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 ções históricas a respeito das relações mulheres/homens são fruto de um positivismo anacrônico que se fundamenta apenas na afirmação de suas premissas: é natural porque é, e sendo assim sempre foi. E ele continua: “Seria porque as mulheres são menos hábeis na caça? Isso está longe de ser provado!” Mas sua afirmação anterior solidificou a universalização das relações sociais generizadas desde o início dos tempos, artifício discursivo em que a força da representação tradicional apaga a afirmação contrária. E apesar de afirmar que o cultural tem mais força que o biológico, continua dizendo que “naturalmente creio que existe uma parte de explicação biológica (…) em milhares de sociedades estudadas pelos antropólogos não encontramos nenhum exemplo em que as mulheres exercessem o poder como os homens o fazem em nossas sociedades antes do feminismo”. Seu discurso recortado pode significar totalmente o contrário do que anuncia o título da matéria e se apóia na rede de sentidos estabelecida pela revista. A última pergunta: “Para resumir, podemos dizer que a diferenciação dos papéis de homem e mulher é o resultado de um caminho cultural e de uma predisposição biológica?” Resposta: “Indubitavelmente. E esse caminhar cultural não acabou. Nada nos permite afirmar que em alguns séculos as mulheres não ocuparão mais espaço do que os homens na cena pública.”. Ficamos todas felizes com essa perspectiva secular, tempo necessário para transformar a biologia rebelde das mulheres em seres aptos ao poder público. Em outra matéria, chamada da capa “Viagra: vingança dos machos contra as feministas”, o feminismo é colocado CONTRA os homens, reafirmação do senso comum: feministas = mal-amadas, viragos, lésbicas. O depoimento do editor de Penthouse atualiza o discurso do século XV sobre as feiticeiras que castravam os homens: “O feminismo emasculou o macho americano e esta emasculação engendrou problemas orgânicos”. O Malleus Maleficarum, manual dos confessores de 1486 se inquieta sobre essa questão: “(…) pergunta-se se as feiticeiras, pelo poder do demônio, podem verdadeiramente e realmente cortar o membro ou somente dar a impressão ilusória disto? (…) Ninguém duvida que certas feiticeiras façam coisas espantosas em torno dos órgãos viris; muitos o viram, muitos ouviram falar.” (Institoris e Sprenzer, 1990). O sentimento de castração adviria da perda ou do questionamento do poder sobre as mulheres, com seu discurso de igualdade? A retomada do vigor sexual – sinôni- mo e símbolo do poder – seria a recuperação do poder sexual/social? Mas a riqueza significativa dessa reportagem não se exaure facilmente: “para as mulheres de uma certa idade, sobretudo se estão na menopausa e não seguem a hormonoterapia (que luta contra a secura vaginal), não têm necessariamente vontade de ser solicitadas novamente”. O papel passivo da mulher na prática sexual é aqui reafirmado; a sexualidade destina-se apenas àquelas leitoras da revista, jovens e em idade de reprodução, que cuidam de sua beleza e seu corpo, são sedutoras dentro dos padrões estabelecidos e consomem os produtos adequados. O fantasma da velhice aparece como uma advertência para as mulheres que não seguem os recursos médico-cosmetologistas. Pode-se ver, assim, nessas superfícies discursivas, a medicalização dos corpos, a criação de um novo invólucro, de uma nova categoria: as mulheres na menopausa. Vaginas desérticas, ossos quebradiços, desejo esquecido, o discurso médico generaliza e cria a menopausa como um castigo, num corpo envelhecido, caminho de todas, se… não seguirem a hormonoterapia, os cuidados com a pele e os cabelos, a ginástica, a dieta. O corpo tecnológico é o corpo moderno da mulher e o envelhecimento pode ser driblado em novos estágios de sedução, renovação do dispositivo da sexualidade em novas práticas, em desdobramentos da indústria da beleza e da juventude eterna: médica, cirúrgica, farmacêutica, cosmética. Essa construção discursiva dos corpos, fraturados em hierarquias de idade, volume, altura e classificados pelo olhar paradigmático que define as possibilidades de sedução, performance, realização pessoal, cristaliza-se em práticas delimitadoras de um sexo biológico atreladas às representações do gênero feminino. Assim o sexo é desenhado não como uma superfície neutra de inscrição de práticas generizadas mas é igualmente un constructo que se erige em dado natural. Para Donna Haraway (1991:35758), “(…) não se nasce organismo. (…) os corpos como objeto de conhecimento são nódulos generativos materiais e semióticos. Seus limites se materializam na interação social. (…) Os vários corpos em questão emergem da interação da investigação científica, da escrita e da publicação, do exercício da medicina e de outros negócios, das produções culturais de todas as classes, incluídas as metáforas e as narrativas disponíveis (…)”. Outro artigo fala das mulheres que exercem profissões masculinas, “não-tradicionais”, vencedoras de um concur- 78 FEMINISMO so promovido pelo Estado para estimular as mulheres a abrirem o leque de suas atividades. No Québec os movimentos feministas, tanto acadêmicos quanto sociopolíticos, abriram um espaço excepcional para a atuação das mulheres. As discriminações são atenuadas mas existem em termos de representatividade política e de desigualdade de salários, nas manifestações da violência social contra as mulheres em todas suas dimensões, da conjugal à prostituição. Assim, em níveis representacionais, igualmente as mulheres encontram-se em patamares assimétricos. De quatro entrevistadas, três têm nível médio e todas desviaram-se para uma carreira masculina, após um início em cozinha, contabilidade e moda. Se o texto demonstra a competência das mulheres, na pesca, na topografia e em tecnologias de elaboração de papel, são apresentadas, no entanto, como minoria, como casos excepcionais e uma delas se destaca como “diferente”: aparência esportiva, medalha de bronze no campeonato canadense de futebol. Mulheres, mas nem tanto. A única entrevistada de nível superior, vice-presidente de um banco, teve um início profissional clássico para as mulheres, transitando indecisa, entre o teatro, assistência social, literatura, história, etc. Mesmo tendo chegado a esse posto, continua em dúvida se não irá se dedicar ao serviço de desenvolvimento na África. A dúvida, a dedicação aos outros… traços marcantes do feminino. Com 36 anos para um homem esse posto seria o resultado de uma bela e rápida carreira; ela, entretanto, sublinha que “não digo que minha vida profissional teve precedência sobre minha vida pessoal, mas eu gostaria que as duas tivessem tido o mesmo sucesso.” A imagem publicitária da executiva dura e sem prazer forma rede com esta representação da mulher de sucesso, porém triste. A escolha é óbvia: ou a profissão e a carreira ou a felicidade. Mesmo com o espaço institucional aberto, o campo representacional restringe a atuação das mulheres, sancionando-as em sua vida pessoal. A revista Elle-Québec, que completa o corpus desta análise, traz em sua capa chamadas em torno do “Sexo, rendez-vous para o amor!”; “Moda, a magia da meia-noite”; Metamorfose, três mulheres se prestam a este jogo”; “As mulheres do ano: heroínas, militantes, estrelas…” e finalmente “Todo o seu ano em nosso especial Astro”. A moda nessa publicação ocupa 40 páginas e produtos de beleza, apenas 34; na La Chatelaîne seu espaço é menor, 9 páginas, e nas revistas brasileiras, 28 em Marie Claire e 48 em Nova. Uma vez construído o corpo é preciso vesti-lo e a indústria da moda, assim como a E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... cosmetologia e os perfumes, é o pilar das revistas femininas. Barthes (1981:262-63) comenta: “Assim é a Mulher ordinariamente significada pela retórica da Moda: feminina imperativamente, jovem absolutamente, dotada de uma identidade forte e entretanto de uma personalidade contraditória (…) seu trabalho não a impede de estar presente em todas as festas do ano e do dia; ela sai todo fim de semana e viaja todo o tempo (…) a mulher da Moda é ao mesmo tempo o que a leitora é e o que sonha ser”. Analisa ainda que a Moda seleciona os corpos aos quais se aplica, excluindo outros, ou então cria os corpos “na moda”, de acordo com o modelo ideal: “(…) alonga, incha, reduz, aumenta, diminui, afina e por estes artifícios a Moda afirma que pode submeter não importa que acontecimento (não importa o corpo real) à estrutura que ela postula”. A tirania da moda não é uma palavra vã: os corpos se espremem e se contorcem para se ajustar aos contornos da moda. Se nos ativermos às reportagens anunciadas pela capa, as mulheres do ano, que marcaram o Québec em 1998, são cineastas, artistas, modelos, escritoras, designers, comunicadoras, pequenas empresárias, mas ao lado das profissões o destaque para certas mulheres é também dado por suas qualidades “naturais”: altruísmo (freira) e maternidade (25 filhos). Profissões tradicionais ou ligadas ao representacional feminino; por outro lado, a astronauta que aparece no fim da reportagem “é do calibre das estrelas”; a diretora-geral da Banque Royale no Québec “está engajada em muitas causas humanitárias e é a mãe de Anne-Sophie”. Na reportagem seguinte, “o encontro com o amor” é um homem que detém o poder da palavra: na introdução ele afirma que a liberação de uma moral repressiva em relação à sexualidade trouxe “solidão e sofrimento”. Salienta que as conquistas modernas foram: a desculpabilização do prazer, a emancipação das mulheres e o fim do ostracismo dos homossexuais, o que localiza seu discurso na atualidade. Mas indica tabus fundadores: incesto, pedofilia e violência conjugal colocando na mesma categorização práticas sociais correntes que longe de representarem um tabu são elementos de disseminação do poder generizado. Continua incentivando a reapropriação da “verdadeira dimensão da sexualidade” – que naturalmente ele sabe qual é – e recusa “a acomodação com um mundo sem valores nem finalidade”. Mas o melhor de seu discurso é sobre o feminismo, marcando bem sua distinção em relação ao feminino, pois mostra à “nova” mulher moderna, a mu- 79 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 lher que lê a revista, sua verdadeira dimensão: “A emancipação das mulheres já estando adquirida (ou quase) vemos aparecer intelectuais que chamarei de pós-feministas. Elas aceitam a herança da emancipação, mas rompem com o feminismo de ontem – o de Simone de Beauvoir – que designava à mulher um projeto de masculinização (tornar-se igual ao homem). Essas novas mulheres se querem liberadas mas mulheres no pleno sentido do termo, capazes de pôr em relevo sua especificidade feminina, entre elas a maternidade, que Beauvoir recusava.” Esse é um típico discurso didático: “liberadas, mas…” a verdadeira mulher sabe seu lugar, que não é igual ao do homem. Quem é ela? A de Rousseau? A de Proudhon? Assim, tudo o que era possível já foi conseguido e o feminismo acabou?, interrogação com a qual se deu início a esta análise. Sua esperança é a família “célula necessária a toda sociedade”, cuja fundamentação está em sua afirmação apoiada na teia representacional sobre a qual se constitui. Esses são axiomas explicativos baseados nos contratos veridictórios entre o emissor e o receptor, em que a autoridade de quem fala se encontra com a crença de quem ouve. Como sublinha Angenot (1989:33), “(…) lugares comuns do jornalismo (…) que repelem os enunciados incompatíveis e se constroem uns em relação aos outros como co-inteligíveis (…) permitindo dissertar sobre todas as coisas e dominando em ‘baixo contínuo’ o rumor social”. Tereza de Laurentis (1987:3) afirma que “a representação do gênero é sua construção”, mas podemos igualmente refletir o corpo como uma construção representacional em modelos de gênero, pois passa-se da idéia de diferença sexual à observação dos mecanismos, do processo de construção cultural dos corpos sexuados, definidos em práticas normativas de sexualidade (Mathieu, 1991:133). As tecnologias da mídia e especialmente as revistas femininas elaboram, em torno do aparelho genital, os contornos e limites de um corpo sexuado impregnado de valores, crenças, atualizando e reafirmando representações que passam a existir nas práticas que as elaboram. Assim, o corpo construído em feminino exprime as modalidades culturais que o confinam a um gênero que se torna inteligível “(…) na medida em que mantém relações de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler, 1990:17). As matrizes de inteligibilidade que constróem esse corpo naturalizado em sexo feminino podem ser identificadas em torno da família heterossexual e de atributos essencializados na “verdadeira mulher”: sedução, maternidade, submissão, altruísmo, abnegação. Para Foucault (1987:126), o corpo está sempre inserido em uma teia de poderes que lhe ditam proibições e obrigações, coerções que determinam seus gestos e atitudes e que delimitam e investem seu exercício e suas práticas, mecanismos de se construir o corpo inteligível num campo político de utilidade-docilidade. Essa é a “disciplina”, um sistema de sujeição que cria um ‘saber’ sobre o corpo “(…) que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que não é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e este controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo” (Foucault, 1987:26). No discurso da mídia vimos em funcionamento uma das tecnologias de produção do corpo sexuado, o aparato da produção do corpo feminino útil e dócil dentro das normas heterossexuais, que instituem o binário inquestionável do sexo biológico no social fazendo funcionar, no jogo da linguagem e da imagem, os mecanismos de assujeitamento à norma. Feminismo? Mais do que nunca necessário, pois lendo-se as revistas “femininas” percebe-se que as representações instrumentadoras das práticas sociais hierarquizadoras apenas modificaram os trajes que revestem os mesmos corpos definidos em sexo. NOTAS E-mail da autora: [email protected] Publicado em francês, no Cahiers d’Etudes Féministes. Montreal, Université de Québec à Montréal – UQAM, n.6, 2000. 1. As citações de obras em língua estrangeira são traduzidas livremente pela autora. (Maingueneau, 1993). 2. “On ne naît pas femme, on le devient”, frase que se tornou clássica na literatura feminista. 3. Ver por exemplo a satanização da mulher no Ocidente em Delumeau, (1978). Ver igualmente o livro de Groult (1993), que compila citações masculinas dotadas de autoridade sobre a mulher na história. 4. “(…) De forma geral, a toda formação discursiva é associada uma memória discursiva constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras formulações.” (Foucault, 1987:115). 5. Nesta mesma obra a autora faz uma tipologia das relações sexo/gênero levando em conta sua pluralidade. 6. A palavra histérica vem do grego Husteriko, de Hustera (útero), definida como “atitude de doentes, considerada antigamente como um acesso de erotismo mórbido feminino” (Rey e Rey, 1995). 7. A escolha dos números das revistas foi totalmente arbitrária e a baliza temporal vai de dezembro de 1998 a maio de 1999. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANGENOT, M. 1889, un état du discours social. Montréal, Le Préambule,1989. BARTHES, R. Système de la mode. Paris, Seuil, 1981. BARTKY, S.L. “Foucault, feminity and patriarchal power”. In: DIAMOND, I. e QUIMBY, L. Feminism and Foucault. Boston, Northeastern University Press, 1988. 80 FEMINISMO E RECORTES DO TEMPO PRESENTE: MULHERES EM ... BORDO, S. “O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminina de Foucault ”. In: JAGGAR, A. e BORDO, S. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997. INSTITORIS, H. e SPRENGER, J. Le marteau des sorcières, Malleus Maleficarum – 1486. Grenoble, Ed. 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Desta forma são apresentadas e discutidas três categorias analíticas: o ritual disjuntivo, o “pertencimento” clubístico e a noção de jogo absorvente. Palavras-chave: cultura; futebol; estética. gosto pelo futebol resistiu à crítica de esquerda, acadêmica ou não, à apropriação pela direita, especialmente pelas ditaduras, e até se constituiu, de 1970 para cá, em uma ocupação profissional e em um segmento em expansão da economia de mercado. Na América Latina, onde o futebol foi usado pela propaganda dos regimes antidemocráticos, justificando, em grande parte, o “denuncismo” esquerdista, o interesse por ele não diminuiu com o descrédito dos ditadores. Segue sendo a “religião leiga da classe operária”, como afirmou Hobsbawm há tempos. Isso vale inclusive para a Europa, “berço da civilização esportiva”, de onde surgiram também os hooligans, em meados dos anos 70. Na África e na Ásia, os esportes modernos 1 eram pouco difundidos até meados do século XX. Houve, de lá para cá, um despertar generalizado, mais intenso, em que os conflitos étnicos são menores ou há mais abertura para o ocidente, respectivamente.2 Diante desse cenário era preciso que as ciências humanas repensassem suas convicções, uma vez que, até bem pouco tempo, desdenhara o esporte, considerando-o um “tema menor” (Guedes, 2000; Leite Lopes, 1995). Nas duas últimas décadas – e, na América Latina, nos anos 90 – as ciências humanas foram superando os preconceitos e tratando o esporte, o lazer e o tempo livre com a mesma seriedade com que trata os temas clássicos (Alabarces, 2000). Atualmente, o esforço de quem pesquisa e escreve sobre os esportes está dirigido para a compreensão e superação de certas perspectivas analíticas já esboçadas sobre o tema. Por isso mesmo, o que foi dito contra o esporte pelos intelectuais de esquerda, fundamentados nas várias correntes marxistas – que o esporte era uma ferramenta ideológica da propaganda anti-democrática, que promovia a coesão interclasses e amenizava o enfrentamento entre patrões e empregados, que tinha paralelos com o nacionalismo, etc. 3 –, não pode ser tomado como algo apenas despropositado. O que se tenta fazer na atualidade é compreender a crítica ao esporte, por vezes transformada em militância anti-esportiva, como uma leitura possível da realidade, diversa, por exemplo, daquela feita por grande parte dos próprios operários. 4 Observa-se, então, que as conjecturas anti-esportivas dos intelectuais de esquerda eram uma reprodução muita próxima dos discursos dos sindicalistas da primeira metade do século XX. O componente político sobrepunha-se, em ambos os casos, ao componente heurístico. Na verdade, não se pretendia compreender o esporte e nem mesmo as razões pelas quais as classes trabalhadoras lhe tinham tanto apreço, mas denunciar o seu uso pelo Estado e pela burguesia (Oliven e Damo, 2001). A perspectiva funcionalista também tem recebido críticas. Circunscrevendo o futebol ao esporte e o esporte ao campo do lazer e do entretenimento, os funcionalistas ten- O 82 FUTEBOL E ESTÉTICA dem a destacar o caráter compensatório das práticas em questão. Diferentemente da rotina previsível e racionalizada do mundo do trabalho ou da vida doméstica, os esportes constituiriam um espaço-tempo no qual seria possível vivenciar sentimentos agradáveis, de grande excitação, necessários à renovação das tensões essenciais à saúde mental. “O caráter essencial do seu efeito catártico é a restauração do tônus mental normal através de uma perturbação temporária e passageira da excitação agradável” (Elias e Dunning, 1992:137-38). O problema das incursões funcionalistas é o seu caráter universalisante, 5 a partir do qual o significado de uma prática social é substantivado, como equivalente para todos os indivíduos ou grupos que dela se apropriam. Se, por um lado, evidencia-se a totalidade do fenômeno, por outro, perde-se de vista as particularidades locais e as variações diacrônicas. Ainda que o esporte possa ter um componente catártico – desde Aristóteles esta explicação é evocada – e restaurador, a maneira como foi apropriado, por diferentes grupos em contextos históricos e sociais igualmente distintos, demonstra que as suas “funções” pouco têm de essenciais, tendo seu significado variado consideravelmente. Também existem as investidas metafóricas a partir das quais os esportes tendem a ser relacionados com outras instituições, sendo seu significado imposto de fora para dentro. Ou, como diria Gumbrecht (2001), os esportes passam a ser interpretados como qualquer coisa diferente do que realmente são. O problema aqui não é propriamente a recorrência a metáforas, mas certos vínculos forçados, até mesmo grosseiros, desconsiderando as especificidades de um e outro campo. No caso do Brasil, por exemplo, dizse que a popularidade do futebol deve-se, em grande medida, ao fato de, por ser praticado com os pés e, portanto, ser menos preciso do que aqueles praticados com as mãos – sobre as quais recai um extenso aprendizado e, por extensão, um domínio cultural – seu êxito e fracasso estarem sujeitos a explicações de ordem mágica – porque os pés são pouco treinados, estando sob o domínio da natureza –, dos componentes contingenciais tais como sorte, azar e assim por diante. Ao contrário, nos esportes praticados com as mãos raramente se pensa em infortúnios, mas em ineficácia. Em outras palavras, os esportes praticados com as mãos seriam aceitos mais facilmente em contextos nos quais prevalece uma base racionalista – mas democracias consolidadas –, ao passo que o futebol combinaria melhor com sociedades em que o pensamento mágico ainda possua um apelo significativo. Sendo o Brasil pen- sado a meio caminho entre o tradicional (mágico) e o moderno (racional), o futebol teria entre nós grande aceitação, de modo que a mesma base epistemológica serviria para explicar o êxito e o fracasso da nação e da seleção. O problema é como explicar, a partir dessa homologia, a popularidade do futebol na Europa. Finalmente, há o pop-psicologismo de senso comum afirmando que os perdedores na vida se identificam com os vencedores no esporte. A questão aqui é saber se os vencedores na vida se identificam com os perdedores no esporte ou se a explicação só vale para o primeiro caso. De qualquer modo, seria difícil sustentar tal conjectura sabendo que no esporte também se perde – nada garante de antemão que o perdedor na vida vença no jogo – e, principalmente, de que nos esportes, e particularmente no futebol, existem regras de “pertencimento”, pois perder e ganhar fazem parte da experiência de atletas e torcedores. Descartadas as possibilidades criticadas acima, como e de que modo compreender o esporte e, particularmente, o futebol? Uma delas, sem dúvida, passa pelo reconhecimento da especificidade do campo esportivo, no interior do qual o futebol está situado. Essa proposta explicitaria a maneira como as preferências esportivas estão distribuídas em diferentes contextos. Também informaria os princípios que norteiam tais escolhas e a relação delas com outros valores e atitudes – políticos, religiosos, econômicos, etc. Teríamos então um amplo espectro sociológico das afinidades esportivas, mas nos faltaria, ainda, entender o esporte em sua especificidade. Isso não significa que ele tenha uma essência, igual em toda parte, mas que existe, em toda parte, algo que não pode ser reduzido a outra coisa; que lhe é próprio. Pensar sobre esta questão, “por que gostamos de esportes”, requer, como sugere Gumbrecht, em recente publicação do Caderno Mais!, uma “rematada estética”. “Levar esportes a sério como um fenômeno estético pode tornar conscientes a nós (...) os locais sociais da beleza. (...) É lícito dizer que não há outro fenômeno na cultura contemporânea que leve o prazer da beleza a mais gente do que os esportes. Se deixarmos de reconhecer esse fato é porque temos enormes dificuldades para separar a fruição da beleza dos rituais da ‘cultura elevada’ (2001:6)”. Mas talvez não seja uma estética formalista kantiana, nos moldes sugeridos por Gumbrecht, que possibilitará o avanço desejável. Para ele o ponto de partida para uma abordagem estética dos esportes “reside na incontroversa competência dos verdadeiros fãs de dizer se um jogo foi bonito ou feio – independente do placar final. Tal juízo 83 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 será sempre ponto pacífico para quem aprecie o jogo, embora normalmente não sejam capazes de dizer com base em quais conceitos e critérios acham-no belo” (Gumbrecht, 2001:6). A contrariedade em relação à perspectiva de Gumbrecht é, em grande medida, produto de um olhar diferenciado, desde um ponto de vista antropológico. Como não se trata de substituir um olhar por outro – o da filosofia e da crítica literária pelo antropológico – e sim de complementálo, não se pode destacar a análise de Gumbrecht em sua totalidade. Mas oferecer às definições precedentes pontos de vistas divergentes. A primeira questão diz respeito à presumível independência entre o juízo estético e o resultado do jogo. A segunda sugere a existência de “verdadeiros fãs” e de que estes não são capazes de expressar os critérios e conceitos que fundamentam seus juízos. Concordando que o ponto de vista estético é essencial para se entender a razão pela qual os esportes em geral e o futebol em especial são apreciados intensamente pelo público, será apresentado, daqui por diante, um contraponto à visão de Gumbrecht. Parte-se, portanto, da hipósete que: - o resultado do jogo é um componente importante não apenas para entender o juízo dos torcedores, senão para entender a própria lógica dos esportes, especialmente do futebol; como: ritual disjuntivo, “pertencimento” clubístico e jogo absorvente. O RITUAL DISJUNTIVO Existe nos meios esportivos e até fora deles uma desaprovação ao suposto aumento da competitividade e da violência. É difícil responder se essa constatação é procedente pela ausência de critérios objetivos. 6 A tendência quase unânime, dos torcedores aos críticos, é concordar com a afirmação de que o futebol já não é mais o que fora, especialmente no caso brasileiro, em que, segundo dizem, era voltado para o espetáculo: dribles, fintas, toques de efeito e malabarismos diversos; e o gol sendo o produto, o acabamento natural, jamais o objetivo principal do embate, como teria se tornado na atualidade. Essa visão romântica que evoca a “beleza do morto” é decorrente, em grande medida, do fato da mídia reproduzir um dado recorte do passado futebolístico, geralmente os gols e as jogadas de exceção. Assim, a memória das gerações mais jovens inclina-se a ser tendenciosa, uma vez que é influenciada pelo recorte operado pelos meios de comunicação. Os lances menos cotados, encontrões, pontapés e jogadas violentas são preteridos, o que pode produzir no público a impressão de que o futebol de outrora era o que as imagens mostram em vez de entender as imagens mostradas atualmente como uma seleção e, portanto, parte do que fora o futebol. Os contra-exemplos à tese do futebol romântico são tantos que não vale a pena listá-los aqui. De qualquer modo deve-se afirmar, uma vez mais, não existirem dados objetivos capazes de apontar para um aumento da competitividade e nem mesmo da violência. Mais vulneráveis ainda são os encadeamentos (i)lógicos e as justificativas usadas para explicar a mudança de cenário. O que se diz, em geral, é que o aumento da competitividade gerou o aumento da violência – dentro e fora de campo – e isso tudo devido ao incremento do capital econômico no esporte, cujos resultados passaram a interessar aos investidores em marketing e publicidade, sendo, então, sinônimos de lucro ou prejuízo. 7 Os esportes, especialmente o futebol, seriam na atualidade a negação dos seus próprios ideais, dos seus valores originais, tornando-se uma atividade permeada por interesses difusos, enquanto outrora se caracterizaram pelo amadorismo e, portanto, pela disputa em outros parâmetros, normalmente vistos como acima dos interesses econômicos: no caso, pelo amor à agremiação e coisas do gênero. - em vez de verdadeiros – e falsos – torcedores, existem diferentes modalidades de vínculos entre torcedores e clubes e dos próprios torcedores entre si, às quais correspondem formas diferenciadas de expressar o sentimento de “pertencimento”; e, finalmente, que existem alguns critérios, bastante gerais, a partir dos quais se pode afirmar, segundo o comportamento dos torcedores, se um jogo é bom ou ruim – e nem tanto se é bonito ou feio; - tratando-se do comportamento dos torcedores, na sua interação com a dinâmica do jogo, importa não apenas os juízos expressos verbalmente mas um conjunto de signos comportamentais que, observados por ocasião dos jogos, indicam se esse é ou não um jogo absorvente. Compreender as categorias que tornam um embate denso e envolvente é a chave compreensiva do fenômeno esportivo. O objetivo deste ensaio é dar continuidade a um debate que está apenas sendo iniciado e que pode, dada a possibilidade abrangente que a interpretação estética proporciona, juntar muitas das contribuições recentes no campo dos estudos sobre os esportes. Para tanto, pretende-se destacar a importância de certas categorias analíticas tais 84 FUTEBOL E ESTÉTICA O aporte financeiro cresceu continuamente nas três últimas décadas trazendo mudanças significativas. Contudo, não alterou substancialmente a sua dinâmica estrutural. Se tomarmos Elias e Dunning (1992) como referência, veremos que os esportes evoluíram no sentido do controle e da restrição à violência física (e não em sentido contrário), mantendo, ainda, um grau variado de violência potencial, presente na própria estrutura do jogo. Em resumo, diria que a violência (física ou simbólica), os lucros (pecuniários ou não) e a competitividade estão prescritos pela estrutura do jogo e, fundamentalmente, o jogo não perde sua dimensão estética por apresentar tais componentes, como supõe a visão romântica. Para entender melhor essa formulação é preciso retomar a comparação paradigmática entre ritual e jogo feita por Lévi-Strauss (1989). Os gahuku-gama, da Nova Guiné, jogam tantas partidas de futebol quantas forem necessárias até que o escore final de partidas ganhas e perdidas seja equivalente. Já os índios fox simulam um jogo entre mortos e vivos deixando os mortos vencerem para que seus espíritos, prestigiados com a vitória, permaneçam onde estão, sem admoestar os vivos. A maneira como nós, os ocidentais, encaramos os jogos é simetricamente oposta à maneira dos povos ditos primitivos. No jogo dos ocidentais, parte-se de uma situação de presumida equivalência entre as partes, reforçada pela existência de regras que devem ser respeitadas pelos contendores, para, ao final, produzir-se a assimetria, uma disjunção entre vencedores e vencidos. No jogo dos primitivos, as partes estão inicialmente em desequilíbrio, entre iniciados e não-iniciados, por exemplo, e ao fim são integradas sob uma mesma categoria. Enquanto no primeiro caso a simetria é estruturalmente pré-ordenada, a assimetria é engendrada pelos acontecimentos do jogo, por fatores tais como competência, preparo, sorte, etc. Daí porque o jogo é chamado de ritual disjuntivo. No correspondente inverso, o ritual conjuntivo, a performance consiste em fazer passar todos os participantes para o lado do ganhador, sendo o processo orientado para esta finalidade. O jogo, ou se se preferir, o ritual disjuntivo, produz acontecimentos, uma realidade inicialmente aberta embora limitada estruturalmente – ganhar, perder e, em alguns poucos esportes, empatar –, mas de todo modo desconhecida até o final do evento. Dessa comparação é importante reter duas premissas: o jogo possui uma estrutura, dita disjuntiva, que produz realidade, eventos/acontecimentos. Uma abordagem estética deve ter em conta essas premissas porque elas determinam uma certa perspectiva de encarar os jogos, uma sensibilidade que norteia a ação de atletas e torcedores, diferentemente do modo como atores e espectadores vivenciam o teatro, o cinema e o circo. Boa parte do interesse pelo espetáculo esportivo é dado pela expectativa em relação ao seu desfecho, à disjunção. Ainda que essa expectativa esteja presente em certos gêneros teatrais ou cinematográficos – no suspense, especialmente –, no caso dos esportes não existe um roteiro pré-definido, mas uma indeterminação completa, especialmente no caso dos contendores serem equiparados, o que é considerado como ideal. 8 A imprevisibilidade é um dos componentes centrais do espetáculo esportivo. Ela é responsável pela manutenção da tensão entre os atletas e, por extensão, entre os torcedores. Embora a indeterminação seja essencial ao bom espetáculo esportivo, este não se reduz a ela. Por isso a compreensão da estrutura é importante, porém insuficiente para se entender, por exemplo, porque alguns jogos são mais espetaculares do que outros tendo todos eles a mesma base estrutural. O placar final não traduz, em hipótese alguma, os desdobramentos da partida. A excitação proporcionada pelos esportes decorre, fundamentalmente, da experimentação das ambigüidades proporcionadas pelo desenrolar dos eventos próprios à sua dinâmica, cujos códigos são de domínio. Um jogo raramente possui um desenvolvimento linear, tendendo a oscilações significativas que são o produto do enfrentamento e da disputa entre os contendores, razão pela qual cada gesto ou seqüência de movimentos tende a ser acompanhada com expectativa. É perceptível, no comportamento das torcidas, quando um jogo está empolgando ou não. Certamente não será quando os atletas trocam passes laterais, quando um atacante desperdiça todas as oportunidades de gol ou, ainda, quando uma das equipes tem sucesso em todas as investidas. Ao contrário do teatro, em que os atores ensaiam exaustivamente o roteiro para apresentá-lo o mais fiel possível, 9 no esporte os atletas treinam para, a partir do domínio de certas técnicas elementares – chamadas de fundamentos –, improvisar durante o espetáculo, daí porque cada jogo é um jogo, dizem os torcedores. Enquanto Hamlet já foi não apenas reconstituído, mas adaptado segundo diferentes versões dos diretores, ainda não surgiu nenhuma adaptação da final da Copa de 50, exceto para o cinema, obviamente. 10 A “tragédia do Maracanã” – derrota do selecionado brasileiro para o uruguaio por 2 a 1 – recebeu este epíteto por ser irreparável. O desfecho, naquele episódio, foi completamente diverso do esperado, foi um final surpreenden- 85 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 te. As discussões enunciadas no condicional – “se Bigode tivesse barrado Ghiggia” ou “se Barbosa estivesse atento” e assim por diante – dão a clara idéia de que existe algo irredutível, próprio de um acontecimento, intangível a reprodução (Perdigão, 1986). Em nossa cultura o espetáculo esportivo está assentado sobre uma dinâmica de forças oponentes, na qual o êxito de uma das partes implica o fracasso da outra. Não há síntese possível entre o bandido e o mocinho e, portanto, o confronto entre eles não gera um evento único, um filme tal ou qual. Para os torcedores é a vitória/derrota do seu time que lhes importa sobremaneira e boa parte dos juízos estéticos – que definirão se um jogo foi bom ou ruim, mais do que se foi bonito ou feio – repousa sobre esta variante. Isso não significa que eles se importem apenas com isso, mas o resultado do jogo influencia de tal modo a sensibilidade que acaba se tornando determinante. De um atleta ou da equipe pela qual se torce não se esperam apenas gestos tecnicamente bem executados, cuja beleza possa ser contemplada em si mesma, mas uma certa eficácia. Cada movimento necessita produzir uma vantagem técnica sobre os adversários e isto configura uma relação de poder. O drible de Garrincha era repetitivo, esperado – desequilibrando o adversário com um jogo de negadas e saindo sempre para o lado direito. Seu êxito representava a humilhação do adversário incapaz de contêlo, numa inequívoca demonstração de poder, de violência simbólica; um raro espetáculo de supremacia para o deleite de botafoguenses e brasileiros. Apenas uns poucos torcedores e, particularmente, os críticos do esporte, possuem ou imaginam possuir a distância necessária para assistir um jogo sem se prender aos ímpetos de euforia e ira provocados por lances como o drible de Garrincha. Os torcedores, ou a maior parte deles ao menos, não assistem aos jogos para formular juízos imparciais – o que requer certo distanciamento –, mas antes para vivenciá-los. Além do espetáculo decorrente do êxito de determinado gesto ou de uma seqüência deles, também há um prazer estético invisível, fruto da tensão originada pelo desenlace imprevisível que cada jogada proporciona. O gol – goal no original, significando meta, objetivo – é um desfecho possível e pode proporcionar aos espectadores o prazer estético pela forma, quer dizer, pela execução primorosa, mas pode, simplesmente, proporcionar o mesmo êxtase em razão da importância que ele possui para o resultado final do enfrentamento ou pela expectativa criada em relação a ele. Isso tudo, é claro, depende ainda de quem seja observador. Para uns, o gol é o coroamento bem-su- cedido de uma longa espera, para outros ele representa um triste episódio que significa a morte. “Nenhum torcedor diria que se ‘entretém’ com seu time, que vai ver um jogo como vai a um concerto. Vai para dilacerar ou ser dilacerado, vai para a guerra, mesmo que seja quase sempre uma guerra metafórica. Assim, para ser atraente, o esporte não pode ter nenhum dos atrativos do espetáculo, nenhuma sugestão de montagem ou faz-deconta. Tem de ser uma séria e quase trágica competição por um cetro (...), a busca do coração do inimigo e da glória eterna – mesmo que no ano seguinte todos voltem a ter zero ponto” (Veríssimo, 1996). Parte da estética esportiva não está ao alcance de quem observa apenas a forma. Desse ponto de vista o futebol mais parece uma seqüência de lances inócuos, repetitivos e sem sentido; com a bola sendo conduzida de uma intermediária a outra. Trata-se do ponto de vista daqueles que não têm familiaridade com as regras, com o significado do embate, enfim, com o próprio futebol. O prazer estético depende do entendimento da dinâmica do jogo, o que pressupõe aprendizado e, de outra parte, concordância em relação a alguns significados. Um desses significados partilhados pelos futebolistas é que o jogo é uma guerra mimética. Talvez este seja um dos paradoxos do esporte; ele é uma guerra, mas apenas simulada, é um faz-de-conta, e nisto se parece com o teatro. De outra parte, ele não pode parecer uma montagem premeditada, o suspense deve produzir-se ao longo do próprio espetáculo, sendo, portanto, um acontecimento. A compreensão do esporte na sua especificidade passa pelo reconhecimento desse paradoxo. Raros são os torcedores que vão ao estádio – nenhum, como sugere Veríssimo, é hiperbólico – para assistir ao seu time e muito menos para assistir a jogos em que seu time do coração não esteja envolvido. Vai-se aos jogos para torcer, empurrar o time ou, em certas circunstâncias, para protestar, por meio das vaias – a forma de participação política mais contundente no futebol. Os torcedores, de modo geral, têm uma atitude ativa, participando intensamente do espetáculo. Como diria Armando Nogueira, “(...) quando moço, do alto da arquibancada, nunca errei um passe e muito menos um chute. Cheguei a perder a conta dos gols que fiz com os pés que não foram meus” (Nogueira apud Toledo, 1994:25).11 Findo o ritual disjuntivo, os torcedores seguem o curso normal da vida. Visto sob esta perspectiva, o jogo mais parece uma fissura no tempo e, no caso dos que vão ao estádio, no espaço. Sendo assim, qual é o tipo de realidade produzida pelos esportes? É da ordem do simbólico, atua- 86 FUTEBOL E ESTÉTICA lizando um intrincado jogo de símbolos associados aos chamados clubes do coração e ao gênero masculino.12 Além do prazer mimético, do faz-de-conta, próprio da brincadeira e da ludicidade, os jogos produzem acontecimentos que reverberam no interior do próprio campo esportivo. Apenas em circunstâncias especiais, como ocorre por ocasião de eventos como a Olimpíada, a Copa do Mundo ou uma final de certame nacional, os fatos esportivos avançam sobre a vida real. São raros os episódios em que o futebol, popularíssimo entre nós desde o início do século XX, produziu perturbações duradouras na política ou na economia nacional, vindo alterar o curso geral da Nação. ponderam” foi zero, superando, inclusive, os itens: refrigerante, 4,7%; chocolate, 7,3%; e programa de TV, 8,7%. Como a escolha do clube do coração não é feita ao sabor das contingências, uma vez realizada não pode ser alterada facilmente, cabendo ao torcedor arcar com o ônus da sua opção. Trocar de clube, “virar a casaca”, é uma falta gravíssima, podendo gerar suspeitas sobre a hombridade do sujeito. Como diz o hino do Flamengo, e isto vale para os demais clubes, “uma vez Flamengo, sempre Flamengo... Flamengo até morrer”. Omitir ou mesmo encobrir a opção clubística é uma falta gravíssima e pode suscitar ameaças. Recentemente, a Mancha Verde, do Palmeiras, distribuiu 50 mil cópias de um manifesto contra o narrador Galvão Bueno e a Rede Globo. Diferentemente da postura imparcial e isenta, pretendida e afirmada pelo narrador e pela emissora, o panfleto endereçado “à grande nação palmeirense” denunciava a suposta imparcialidade classificando a transmissão como “tendenciosa e desrespeitosa”. Embora os cronistas esportivos procurem, via de regra, omitir sua predileção clubística para se manter eqüidistantes da ira torcedora, estes últimos tendem a enquadrá-los de acordo com critérios muitas vezes duvidosos. Segundo Dentinho, presidente da Gaviões da Fiel, “a gente prefere aqueles já declarados, que não escondem para que time torcem” (Folha de S.Paulo, 6/8/2000:12, TV Folha). Em que pese o pertencimento ser vivenciado no domínio público, ele é indissociável das redes de sociabilidade próximas ao indivíduo, tais como família, vizinhos e amigos. 15 Não por acaso se diz que os clubes são do coração, o topos corporal no qual se representam as emoções, e os distintivos dos clubes estão fixados do lado esquerdo do peito. A rede de sociabilidade responsável pela socialização primária e, portanto, pela inculcação de certas sensibilidades emocionais, permanece na lembrança dos torcedores. Exceto aqueles cuja escolha ocorreu muito cedo – isto é muito freqüente entre famílias de torcedores fanáticos, cujo “pertencimento” a mesma agremiação remonta três e até quatro gerações, assemelhando-se a uma casta – ou outros, cuja importância dada ao futebol é mínima, os demais geralmente lembram com detalhes o momento em que se tornaram palmeirenses, atleticanos ou vascaínos. Como não se trata de uma escolha de natureza ideológica, embora política, os processos de convencimento são travados na esfera das emoções e o “sim” normalmente é ritualizado: por ocasião de um presente, de um autógrafo e da ida ao estádio. O PERTENCIMENTO CLUBÍSTICO O amor aos clubes é a mola propulsora dos esportes coletivos, especialmente do futebol.13 Ainda que tenhamos torcedores não-praticantes, é raro encontrar praticantes que não tenham seu clube do coração. Torcer por um clube de futebol é a chave para a entrada num universo dominado pelo movimento e pela prática corporal, requisito indispensável a qualquer esporte, mas que, ironicamente, discutir é mais importante do que praticar – mesmo que, em discussões mais acirradas, o praticante possa evocar sua experiência como dispositivo de autoridade. O domínio dos códigos futebolísticos garante o acesso a certas discussões que ocorrem em momentos de sociabilidade intensa. Essas discussões, normalmente circulares – pois não são jamais conclusivas – e de natureza hipotética – pois os jogos são recriados, cada qual escalando seu time e fazendo-o atuar –, exigem dos envolvidos uma clara definição acerca da posição em que se encontram. Opina-se a partir de um referencial, como torcedor de uma dada agremiação, embora seja possível, evidentemente, discutir-se futebol em termos abstratos. A escolha do clube do coração é realizada desde muito cedo, ocasião a partir da qual o indivíduo torna-se pessoa, passando a fazer parte de um mundo mais amplo que a casa e a família, o que lhe permite se definir e exercitar como parte de uma totalidade, vivida na rua, em pleno domínio público (Da Matta, 1994). A importância de se ter um clube para torcer pode ser dimensionada pela precocidade da escolha e pela sua extensão. Uma pesquisa sobre as marcas mais lembradas entre as crianças, a Top Kids,14 realizada no Rio Grande do Sul em 1997, revelou um dado impressionante: nenhum(a) dos(as) entrevistados(as) se furtou à resposta quando perguntado(a) sobre qual o “time de futebol” que lembrava. O índice dos que “não sabiam” ou “não res- 87 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 O “pertencimento” também é único, embora seja comum certos torcedores realizarem escolhas em segundo grau de importância.16 A fidelidade ao clube contraria frontalmente a tese do pop-psicologismo, segundo a qual os perdedores na vida se identificam com os vencedores no esporte. De mais a mais, a escolha depende muito indiretamente da performance da equipe. Claro que é difícil convencer uma criança ou um adolescente a tornar-se botafoguense, fluminense ou colorado nos dias atuais, quando estes clubes repetem desempenhos medíocres. Todavia não basta que um clube esteja exposto na mídia, que vença vários campeonatos, para angariar adesões. Elas devem ser compassadas pela rede de sociabilidade, uma espécie de militância especialmente desperta quando o clube está em evidência. Torcer por um clube de futebol é uma atitude política, como escreveu o poeta Drummond: “A estética do torcedor é inconsciente: ele ama o belo através de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários” (Revista do Grêmio, s.d.:44). O "pertencimento" clubístico é uma máscara social, uma das tantas existentes nas sociedades complexas. A partir dela se tem acesso a um universo no qual a brincadeira e a jocosidade são essenciais, pois é por intermédio delas que se expressam sentimentos e pontos de vista, não raro preconceituosos, que dificilmente seriam ditos de outro modo e em outro lugar. A máscara clubística, quando vivenciada coletivamente, em espaços públicos, estabelece o anonimato individual (Toledo, 1996). Assim, podese xingar a polícia, os torcedores adversários e os atletas e dirigentes do próprio clube. Torcer é uma forma de participação política bastante peculiar. Abordar o “pertencimento” e as atitudes decorrentes deste vínculo desde o ponto de vista estético implica reconhecer nas manifestações dos torcedores – das falas, gestos, vestuário, etc. – certas mensagens cuja decifração, em termos de forma e conteúdo, permite-nos acessar alguns conflitos subjacentes à dinâmica social. Ou seria mero casuísmo o fato de os clubes de futebol no Brasil estarem, via de regra, identificados em pares de contrários do tipo elite/popular, branco/negro, centro/periferia, grande/pequeno, entre outros? Por tudo isso, a estética futebolística brasileira, um caso particular da estética esportiva, é algo que a perspectiva formalista não pode captar. Há um sentido profundo nos embates, um pano de fundo cultural no qual os sentimentos de pertença e o próprio gosto pelo futebol estão alicerçados. O caráter democrático – em contrapartida ao autoritarismo e ao conservadorismo dos cartolas que manipulam as regras – torna cada torcedor um comentador, um crítico autorizado para falar em estilos de jogo e associá-los a certas categorias sociais. O futebol-arte revelaria o caráter do carioca, o futebol-força, a maneira como são os gaúchos e assim por diante (Damo, 1999). Se existe um campo no qual a autoridade dos críticos tem de ser permanentemente afirmada, e a duras penas, este campo é o do futebol. UM JOGO ABSORVENTE O futebol é um ritual performático que, assim como os demais esportes, põe em ação diferentes atores sociais e pode ser interpretado desde o ponto de vista da atuação de atletas, torcedores, mídias, cartolas, etc. Sendo uma prática corporal, revela, pela arte de jogar – do uso de técnicas específicas e do treinamento para produzir a eficácia – diferentes estilos que variam no tempo e no espaço. Como é um fato social de grande apelo popular, informa os gostos e os interesses do seu público, os parâmetros éticos e estéticos que orientam o comportamento individual e coletivo dos aficcionados. Todavia, nem todos os espetáculos futebolísticos despertam o interesse e boa parte deles tem-se realizado sem a presença de público nas arquibancadas. A pergunta é um tanto óbvia, mas não pode ser desdenhada: afinal, o que vem a ser um bom jogo de futebol, aquele que desperta o interesse do público? A idéia de jogo absorvente é retirada de um texto clássico em Antropologia, sobre a Briga de galos em Bali (Geertz, 1989), mas não se pretende aqui estabelecer analogias entre os fatos sociais. Entretanto, seguindo a chave hermenêutica geertziana, pode-se dizer que compreenderemos algo sobre a cultura brasileira – dos homens, especialmente – observando o comportamento em torno do campo, da mesma forma que se observa a rinha de galos em Bali. Para tanto é necessário aprender certos códigos do embate, como é o caso das regras e das apostas, e saber diferenciar um galo bom da sua imitação, coisa que apenas os iniciados estão aptos. Finalmente, é preciso saber que os homens não fazem suas apostas pensando apenas no lucro pecuniário que poderão obter, mas respeitando certos códigos sociais. O jogo absorvente é aquele que põe frente a frente galos (atletas) de boa linhagem e seus donos de status elevado (clubes 88 FUTEBOL E ESTÉTICA tradicionais). O risco e a excitação decorrem dessa combinação. No futebol brasileiro as rivalidades entre as torcidas são causadas pelas rivalidades existentes entre os clubes. Em linhas gerais, as torcidas atualizam certas querelas que fazem parte da história das agremiações, boa parte delas circunscrita à própria origem dos clubes. Por isso os enfrentamentos mais densos são aqueles envolvendo clubes da mesma cidade, cujas rivalidades foram forjadas ainda nos tempos do amadorismo – antes dos anos 30. As identidades clubísticas são contrastivas, de modo que o “pertencimento” não se esgota no amor ao clube do coração, mas na aversão por outro, o seu contrário. As rivalidades estão associadas a categorias mais amplas da sociedade e giram em torno de sentimentos vinculados a “grupos primordiais, aqueles em que nascemos, quer se concentrem na língua, costume, religião, raça, tribo, etnia ou lugar” (Lever, 1983:26). Cria-se, então, em torno dos clubes de futebol, extensas comunidades imaginárias de sentimentos (Souza, 1996:45). Já os torcedores de um mesmo clube pensam-se a partir de uma lógica segmentar. As torcidas organizadas, por exemplo, estão permanentemente lutando por espaço e visibilidade diante dos demais torcedores, dos quais se diferenciam pela forma e intensidade de pertença. Os membros dessas torcidas acreditam demonstrar seu amor ao clube com um tipo de envolvimento militante, como se fossem um exército incumbido de defender verbal e fisicamente, se preciso for, a honra da nação-clube de futebol, podendo se envolver em atos violentos, tidos como heróicos. As hostilidades não se limitam aos torcedores dos “outros” clubes. Há divergências fortíssimas mesmo entre as torcidas organizadas de um mesmo clube. Na medida em que certas marcas diacríticas vão perdendo sua capacidade de distinção, outras tantas tendem a ser inventadas. Essas segmentações de natureza estrutural podem ser ilimitadas, mobilizando códigos e "pertencimentos" até certo ponto aleatórios – de bairro, colégio, gosto musical, e outras tantas afinidades exógenas ao clube do coração e ao futebol.17 A cada jogo e mesmo no espaço do cotidiano essas pertenças segmentadas são afirmadas e reafirmadas das mais variadas formas, dependendo, é claro, da posição e da intensidade com que cada torcedor vivencia o futebol. Os jogos que se sucedem uns aos outros, ano após ano, numa temporalidade cíclica, vão atualizando e reordenando as relações de pertença. Assim, “cada jogo é um jogo”, e a cada evento são “jogados” – do ponto de vista dos tor- cedores – códigos, valores e atitudes de acordo com a peculiaridade dos clubes envolvidos no confronto. A trajetória pregressa de cada um deles, do confronto entre eles e as implicações mais imediatas que o resultado do embate pode acarretar, constituem os elementos mais significativos de um jogo. De um lado há os 90 minutos de jogo, do ritual disjuntivo propriamente dito. Nele destaca-se a tensão decorrente do risco que o embate enseja, tanto maior quanto mais densa a rivalidade entre os clubes e os desdobramentos que o resultado pode acarretar. O gol é um evento raro, inserido noutro, que é o jogo, e como tal estabelece uma ruptura decorrente da densidade do seu significado. “Esse é o ritmo próprio do futebol: muitas ameaças, poucos gols. (...) Há poucos prazeres comparáveis ao de pular e gritar com a multidão, comemorando um gol que passa a ser de todos, por direito de contigüidade emocional” (Prado, 1997:213). O tempo do gol é um tempo espesso, vertical, marcado mais pela sua riqueza e densidade e menos pela duração. Daí existe uma dimensão estética que só pode ser apreendida se contextualizada, o que implica observar a sua forma – a seqüência de lances propriamente dita, à qual correspondem certos comportamentos dos torcedores – e também o seu significado. De outro lado existem a história, a tradição e a memória. São o resultado de sobreposições e arranjos múltiplos produzidos pelos vários segmentos que constituem o universo futebolístico, num tempo e espaço que não é o do jogo propriamente dito. É o tempo do cotidiano, ligado ao espaço da casa e da rua, do trabalho e do lazer, em que se “discute futebol”. Nesse espaço-tempo é que circulam as anedotas, as informações, as lembranças, os mitos, enfim, no qual se aproximam futebol e sociedade, dando a este esporte um encadeamento com outras esferas do social e aos agentes sociais – por intermédio daqueles que se dizem torcedores – uma sociabilidade vivida de modo particularíssimo, como um “faz-de-conta”. Uma partida de futebol pode ser apreciada simplesmente pelo espetáculo que os jogadores proporcionam. Mas será mais espetacular ainda se puder identificar a trajetória dos atletas, a importância do jogo e a história dos clubes. Todavia, será plenamente espetacular para aqueles cujos jogadores e clubes pertencem. Um jogo poderá ser excitante mesmo que tecnicamente fraco, basta que a tradição lhe assegure uma posição de destaque, denominando-o “clássico”. E o inverso também é verdadeiro. Mas quando um jogo é denso de ambos os pontos de vista, do 89 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 1. Aos leitores menos familiarizados com a literatura esportiva, convém esclarecer que o termo “esportes modernos” abarca um conjunto extenso de práticas corporais competitivas, regradas, individuais ou coletivas, praticadas por amadores ou profissionais, inventadas a partir da segunda metade do século passado nos internatos para jovens da elite européia, notadamente entre as public schools inglesas. Os esportes modernos diferenciam-se dos jogos tradicionais praticados na Renascença e na Idade Média pelo incremento das regras, visando, em última instância, reduzir a violência física e manter a violência simbólica (Bourdieu, 1983; Elias e Dunning, 1992; Leite Lopes, 1995). Nessa perspectiva o futebol deve ser compreendido como um esporte moderno, em que pese ele tenha assumido tamanha importância entre nós, que transcende o campo esportivo ou das práticas corporais. ritual disjuntivo e da tradição, é que ele pode ser dito absorvente; “inesquecível”, como dizem os torcedores. ARREMATE O significado do futebol não poder ser condensado em um conceito fechado, definitivo, substantivado. O ritual disjuntivo, o “pertencimento” clubístico e o jogo absorvente são categorias que nos permitem chegar ao gosto dos torcedores, incursionando sobre os valores éticos e estéticos que orientam esta modalidade de participação na vida pública das sociedades contemporâneas. O futebol e os demais esportes não devem ser entendidos como meros negócios manipulados pelas grandes corporações multinacionais, mas também não se pode ignorar a influência delas. Sendo um fato social relativamente recente, exige, para a sua compreensão, um longo trabalho de pesquisa empírica aliado à ousadia teórica. A hipótese de que os eventos esportivos produzem acontecimentos está indissociada da idéia de que boa parte deles são consumidos no próprio meio. E, fundamentalmente, à idéia de que consumir implica “destruir, gastar, desperdiçar, esgotar” (Featherstone, 1995:41). Uma estética do esporte, do futebol especialmente, deve incorporar as noções de excesso, de desperdício e de desordem: do excesso de significado de certos eventos (como o gol, por exemplo), do desperdício de dinheiro (empenhado para freqüentar os espetáculos e adquirir objetos ligados ao clube do coração), da ordem alterada nas cidades por ocasião dos jogos e das comemorações tresloucadas (festas, bebedeiras, violência, etc). Mas o futebol também tem ordem, expressa pela estrutura ritual, pela lógica do “pertencimento” e pela densidade dos embates. Há ainda a hierarquização dos espaços nos estádios, segmentadores do público, e a diferenciação do consumo de imagens e produtos de acordo com as possibilidades socioeconômicas. A carnavalização dos espetáculos contrapõe-se ao padrão que está sendo implementado nos estádios modernos: cada torcedor ocupando seu lugar, de preferência numerado, preservando sua individualidade. As sensibilidades, o modo de torcer, de protestar, de comemorar o gol, são atitudes que estão em permanente processo de mudança e é preciso captá-las. 2. Na ocidentalização do Oriente e orientalização do Ocidente os esportes ocupam um lugar de destaque. Uma prova disso é a grande quantidade de eventos esportivos internacionais realizados em países asiáticos com sucesso de público, uma das razões pelas quais a Copa de 2002 será sediada por Japão e Coréia do Sul. De outra parte, práticas marciais como o judô, o caratê, o kung-fu e outras, acabaram se esportivizando – transformando-se em competição – e se popularizando no Ocidente. Em relação à África é crescente a participação bem-sucedida de seus atletas no atletismo – especialmente em provas de resistência – e também no futebol, tendo-se tornado nas duas últimas décadas o grande celeiro do futebol europeu, juntamente com a América Latina. 3. A bibliografia que empregou as noções marxistas e frankfurtianas – tais como alienação, massificação, etc. – para explicar o fenômeno esportivo é bastante extensa. Como exemplo, Brohm (1972), Sebreli (1981) e Ramos (1984). 4. Sobre a tentativa de apropriação do futebol por parte dos sindicalistas e da resistência a ela por parte dos operários ver Antunes (1994). 5. Esta é uma crítica ao funcionalismo em geral, não apenas a sua explicação do esporte, e a todas as suas matizes, não apenas à Escola Britânica, de Malinowski a Radcliff-Browm. Em relação a Norbert Elias é oportuno explicitar que o viés funcionalista de alguns dos seus postulados não compromete a totalidade de sua obra, especialmente de A busca de excitação, escrita em parceria com Eric Dunning, e cujo aporte ao “tema menor do esporte” está acima de qualquer contestação. De qualquer modo, o seu processo civilizador de longa duração é mais apropriado para o entendimento da emergência dos esportes modernos – e apenas em parte para compreensão de sua diáspora –, ao passo que as suas investidas funcionalistas para explicar o gosto contemporâneo sugerem um reducionismo empobrecedor. Para mais apreciações críticas a Elias, ver Souza (1996). 6. Embora o aumento da competitividade e, por extensão, da violência, seja tido como obviedade, faltam argumentos consistentes capazes de demonstrar a assertiva. Para um exemplo da fragilidade dos argumentos mais recorrentes, sugere-se a leitura da resenha crítica de Lovisolo (1998) à tese de Mauro Betti – Violência em campo, dinheiro, mídia e transgressão às regras no futebol espetáculo –, cujas pretensões eram, justamente, dar a esta impressão leiga contornos científicos e, a partir deles, contrapor-se à maneira como o futebol vem sendo apropriado pela economia de mercado. (Como pesquisador, o autor deste artigo, Damo, tem a pretensão de suspender temporariamente seus juízos – francamente contrários aos supostos benefícios, anunciados pela mídia, acerca da mercantilização do futebol brasileiro – para apreciar as mudanças em curso na atual conjuntura do futebol. Creio ser necessária certa cautela para não contaminar as observações de campo, o entendimento que diferentes segmentos têm sobre a questão, com prejulgamentos. 7. Ora, o Ba-Gua, disputado pelo Grêmio Bagé e pelo Guarani da mesma cidade, na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, nunca serviu à publicidade e por certo não é pelo valor econômico do enfrentamento que se explicam as peleias decorrentes do confronto entre os co-irmãos. De mais a mais, os pesquisadores na área do esporte têm a obrigação de estar atentos e saber distinguir o contexto e o significado da manipulação de valores e símbolos no campo esportivo. Se é fato que os torcedores se queixam de que os atletas são mercenários e não têm “amor à camisa”, não é menos verdade que seguem devotos do clube semiprivatizado, como é o caso de quase todos os grandes clubes do futebol brasileiro. O aumento do aporte de recursos financeiros no esporte requer uma análise mais sutil do que aquela freqüentemente empreendida. 8. Esta é uma das razões pelas quais existem divisões hierárquicas em todos os esportes. No futebol, por exemplo, existe uma primeira divisão que separa amadores de profissionais e, entre estes, duas, três e até quatro segmentações que estabelecem, entre aqueles que pertencem a um mesmo estrato, uma certa eqüidade. NOTAS 9. O suspense, o teatro de improviso ou realista, a performance circense, entre outros, se aproximam do jogo, mas são gêneros específicos dentro do cinema, do teatro e do circo. Para uma análise comparativa do simbolismo entre futebol e teatro cf. Soares (1979). Agradeço a presteza de Patrice Schuch pelas valiosas críticas e sugestões às versões preliminares. 90 FUTEBOL E ESTÉTICA 10. Barbosa, curta-metragem de Jorge Furtado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 11. Veja-se o caso das torcidas organizadas. Elas têm um comportamento espetacular, atuando como conjuntos cênicos. São parte do espetáculo, com suas coreografias, gritos de guerra e xingamentos, despertando o interesse – admiração e medo – dos outros torcedores, até mesmo o do próprio clube e também da mídia. Especialmente aquelas tuteladas pelos clubes, como no caso do Rio Grande do Sul, seu comportamento é preestabelecido: ocupam sempre o mesmo espaço no estádio; têm certos cânticos para as diferentes circunstâncias do jogo e para os diferentes adversários; coreografias ensaiadas; enfim, delas se espera apoio ao time em qualquer circunstância, sendo-lhes vedada a vaia e o protesto. Não é esse o caso das torcidas organizadas independentemente do clube. 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Trata-se de um campo do qual os meninos, que da prática se aproximam, e as meninas, que dela se afastam (atualmente com menos ímpeto, na medida em que as fronteiras de gênero tornaram-se mais porosas), percebem como sendo bom para se exercitar performances masculinas, tais como: confrontos físicos às vezes violentos, uso da força e dos pés, agressividade verbal por xingamentos, etc. DA MATTA, R. “Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro”. In: ________ .(org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982, p.19-42. _________ . “Antropologia do óbvio”. Dossiê Futebol/Revista USP. São Paulo, n.22, 1994, p.10-7. DAMO, A. “Ah! Eu sou gaúcho! O nacional e o regional no futebol brasileiro.” Estudos Históricos. Rio de Janeiro, FGV, v.13, n.23, 1999, p.87-117. ELIAS, N. e DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992. FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio Nobel, 1995. 13. Até as empresas de marketing já se deram conta disso, como é caso da Hicks, Muse, Tate & Furst, empresa norte-americana que investe em clubes, estádios, direitos de transmissão, redes de TV a cabo, entre outros. Segundo Charles Tate, representante da empresa no Brasil, “as pessoas estão interessadas no que acontece com o seu clube. O torcedor acompanha o time quando este participa de uma competição regional, o que vale também para um torneio internacional. Os torcedores querem ver seus times, mais do que suas seleções na Copa” (Revista Exame, 9/2/2000). GEERTZ, C. “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”. In: ________ . A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989, p.278-321. GUEDES, S. “Malandros, caxias e estrangeiros no futebol: de heróis e anti-heróis. In: GOMES, L.; BARBOSA, L. e DRUMMOND, J. (orgs.). O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000, p.125-42. GUMBRECHT, H.U. “A forma da violência: em louvor da beleza atlética”. Folha de S.Paulo, 11/03/2001, Caderno Mais, p.6-9. 14. A pesquisa Top Kid é uma versão para crianças e adolescentes da Top of Mind. Elas captam a lembrança imediata dos entrevistados sobre marcas de produtos e serviços. Nesse tipo de pesquisa, o entrevistado é convidado a citar, a cada estímulo do entrevistador, o primeiro nome que lhe vem à cabeça. “Quando eu falo em (time/clube de futebol), que marca lhe vem à cabeça?” (Revista Amanhã, 1997). LEITE LOPES, J.S. “Esporte, emoção e conflito social”. In: Mana – Estudos de Antropologia Social. Rio de Janeiro, Museu Nacional-Relumé/Dumarú, v.1, n.1, 1995, p.141-63. LEVER, J. A loucura do futebol. Rio de Janeiro, Record, 1983. 15. A Pesquisa de Marketing Aplicado, desenvolvida pelos alunos da disciplina “Pesquisa de Marketing” da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – realizada no segundo semestre de 1997 – revelou que a escolha do clube do coração ocorre até os 15 anos de idade em mais de 80% dos casos, sendo que quase a metade dos torcedores faz sua opção antes mesmo dos cinco anos de idade. A pesquisa também demonstra a importância da rede de sociabilidade mais intensa na definição do pertencimento. Em mais de 70% dos casos a escolha foi influenciada por alguém da família ou amigos próximos a ela. LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989. 16. É comum, por exemplo, o sujeito dizer-se corinthiano, mas no Rio Grande do Sul ser colorado, no Rio de Janeiro ser flamenguista e em Minas, atleticano e assim por diante. Um clube em cada região ou Estado e, o que é muito freqüente entre os políticos, um em cada cidade, preferencialmente o mais popular. No caso do torcedor hipotético (exemplificado acima), a lógica da escolha, a partir do Corinthians, tido como um clube popular, segue o mesmo padrão. Ou seja, torcese por todos os clubes tidos como populares. Existem, contudo, outros padrões de escolha como é o caso das cores dos uniformes – são-paulino, fluminense, gremista, bahiano, todos tricolores – mas os mais freqüentes no Brasil são os recortes de raça, classe social e região. REVISTA AMANHÃ. “As marcas do Rio Grande”. Porto Alegre, ano XI, n.118, abr.1997. LOVISOLO, H. “Futebol, mercantilização e violência”. Motus Corporis. Rio de Janeiro, Gama Filho, v.5, n.2, nov. 1998, p.174-83. OLIVEN, R. e DAMO, A. Fútbol y cultura. Buenos Aires, Norma, 2001. PERDIGÃO, P. Anatomia de uma derrota. Porto Alegre, L&PM, 1986. PRADO, D. de A. Seres, coisas, lugares: do teatro ao futebol. São Paulo, Cia. das Letras, 1997. REVISTA DO GRÊMIO. Porto Alegre, ano 2, n.11, s.d. RAMOS, R. Futebol. Ideologia do poder. Rio de Janeiro, Vozes, 1984. SEBRELI, J. Fútbol y masas. Buenos Aires, Galerna, 1981. SOARES, L.E. “Futebol e teatro, notas para uma análise de estratégias simbólicas”. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, n.33, jun. 1979, p.1-23. SOUZA, M. A ‘Nação em chuteiras’: raça e masculinidade no futebol brasileiro. Dissertação de Mestrado. Brasília, UnB, 1996. 17. A segmentação “Nós, os gremistas” por oposição aos “outros”, sejam eles pertencentes a outras “nações” ou simplesmente alheios às predileções clubísticas, perde sua eficácia distintiva no âmbito dos torcedores do Grêmio. Nem mesmo as diferenças entre “nós, das organizadas” e os “outros, que não são” são suficientes para demarcar a identidade desses grupos de torcedores. “Nós, da Raça”, ao contrário “deles, da Jovem”, é apenas mais uma segmentação, a rigor, seguida por “nós, da Raça que viajamos com o Grêmio” e os “outros, da Raça, que não viajam”. TATE, C. Entrevista. Revista Exame, 9/2/2000. TOLEDO, L.H. Torcidas organizadas de futebol. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 1994. _________ . de Torcidas organizadas de futebol. São Paulo, Autores Associados/Anpocs, 1996. VERÍSSIMO, L.F. “Um dilema”. Jornal do Brasil, 30/11/1996. 91 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 TRÂNSITO RELIGIOSO NO BRASIL RONALDO DE ALMEIDA Professor da Escola de Sociologia e Política, Pesquisador do Cebrap PAULA MONTERO Diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Pesquisadora do Cebrap Resumo: O campo religioso sofreu transformações nas últimas décadas que levaram à fragmentação institucional e à intensa circulação de pessoas pelas novas alternativas religiosas. Este artigo pretende caracterizar a configuração atual do campo religioso brasileiro a partir de dados sociodemográficos de uma pesquisa nacional realizada para o Ministério da Saúde e, num segundo momento, formular um fluxograma exploratório do padrão de migração de pessoas e crenças entre as religiões. Palavras-chave: religião; mobilidade; Igreja Universal; Renovação Carismática. e modo geral, a literatura científica sobre o campo religioso brasileiro tem sido desafiada por um curioso paradoxo: o acúmulo de conhecimento sobre as diferentes cosmovisões parecia ter tornado evidente que, do ponto de vista dos ritos, das crenças e da lógica interna de cada universo, os cultos podem ser considerados bastante diferentes entre si, mas, quando se observa o comportamento daqueles que freqüentam esses cultos, as fronteiras parecem pouco precisas devido à intensa circulação de pessoas pelas diversas alternativas, além da acentuada interpenetração entre as crenças. A pesquisa Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/Aids, realizada em todo o Brasil, em 1998, revelou que 26% da população mudou de religião. 1 Concomitante à circulação de pessoas, ocorreu também a multiplicação das alternativas religiosas, encontrando sua expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação institucional é estrutural ao seu próprio movimento de expansão. Nesse processo sempre renovado de divisão por “cissiparidade”, as denominações continuamente dão origem a novos grupos. 2 Essa aparente contradição entre o modo como especialistas e adeptos percebem o campo religioso representa um desafio para a interpretação científica que, muitas vezes, tem se contentado em adjetivá-lo de fluido, híbrido, sincrético ou contínuo. O conceito weberiano de “conversão”, que até muito recentemente explicava o complexo processo subjetivo de adesão a um novo credo, não parece mais capaz de elucidar essas rápidas idas e vindas entre religiões aparentemente tão díspares entre si: um processo interior em que a consciência religiosa não acusa, pelo menos à primeira vista, incongruências cognitivas. Uma das tentativas para compreender esse fenômeno reduziu a diversidade religiosa à metáfora do mercado. Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo a idéia de que a racionalização do sagrado no mundo moderno realizar-se-ia pela transformação das crenças em mercadorias a serem consumidas pelos adeptos que, volúveis, escolheriam os produtos segundo suas necessidades imediatas. A redução do fenômeno do trânsito religioso ao processo de mercantilização dos bens de salvação acabou por deixar na sombra os mecanismos particulares de ressignificação das crenças religiosas. Em ensaio de 1994, sugeriu-se que as diferentes tradições religiosas estão em permanente processo de reinvenção e rearticulação muitas vezes responsável pelo obscurecimento da nitidez das fronteiras. Desse ponto de vista, a circulação entre os diferentes códigos seria estimulado pela existência de um substrato cognitivo e/ou cultural comum às religiões populares brasileiras, fundado seja em uma idéia abstrata de deus que incorpora todas as variantes, seja em uma representação ambígua e não dicotômica da idéia de mal (Montero, 1994). Um exemplo disto é a Igreja Universal do Reino de Deus, que pode ser entendida como resultan- D 92 TRÂNSITO RELIGIOSO te da interação entre uma tradição evangélica-pentecostal e um catolicismo afro-kardecista, articulada em torno da figura do diabo (Almeida, 1996). Outros estudos apontam na mesma direção ao demonstrarem que, entre a “malineza” dos encantados da cultura amazônica, dos demônios do catolicismo popular e dos evangélicos e os “exus” das religiões afro-brasileiras, haveria a permanência de uma concepção ética particular às camadas populares (Birman, Novaes e Crespo, 1997). Esse macroprocesso de contínua síntese e diferenciação é o fenômeno que aqui interessa ser descrito. A literatura especializada convencionou denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo menos, para um duplo movimento: em primeiro lugar, para a circulação de pessoas pelas diversas instituições religiosas, descrita pelas análises sociológicas e demográficas; e, em segundo, para a metamorfose das práticas e crenças reelaboradas nesse processo de justaposições, no tempo e no espaço, de diversas pertenças religiosas, objeto preferencial dos estudos antropológicos. O problema se coloca, portanto, em dois níveis de análise: um propriamente institucional, que descreve a mudança das filiações; e outro mais cognitivo, que mostra as semelhanças e as diferenças entre as representações dos universos religiosos. A partir desses níveis, este artigo objetiva, em primeiro lugar, desenhar a configuração atual das principais tradições religiosas e suas características sociodemográficas e, em segundo, compreender alguns fluxos preferenciais nesse trânsito generalizado de fiéis e idéias religiosas. Preferenciais porque a intensidade da NO BRASIL circulação varia de acordo com as instituições envolvidas, como se houvesse fluxos mais intensos entre algumas do que entre outras. Trabalha-se com a hipótese de que as pessoas não mudam de religião de maneira aleatória. A movimentação ocorre em direções precisas, dependendo das instituições envolvidas. Algumas são preferencialmente “doadoras”, enquanto outras são mais “receptoras”; algumas trocam adeptos entre si, enquanto em outras são as crenças que circulam mais. Nossa proposta é formular um fluxograma exploratório do trânsito religioso ocorrido no Brasil nestas últimas décadas. CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DOS RELIGIOSOS Os católicos foram os que mais perderam fiéis em números absolutos nas últimas décadas. Contudo, apesar da volumosa perda, o catolicismo mantém-se como o maior grupo religioso no Brasil, com 67,4% da população, dividido equilibradamente entre os sexos, com maior concentração nas regiões Norte/Nordeste e sendo mais confesso por pessoas com idade superior a 41 anos e jovens com menos de 25 anos. Em parte, este último dado se explica pelo fato de as pessoas herdarem a religião dos pais e iniciarem preferencialmente – se for o caso – um processo de mudança religiosa quando mais velhas. O quadro geral, portanto, é de perda de católicos, tendo como base os dados censitários de 1980 e 1991. Mantida esta tendência, muito provavelmente essa geração que se encontra entre 26 e 40 anos produzirá, em alguns anos, uma popu- TABELA 1 Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 anos, por Sexo, Estratos Amostrais e Faixas Etárias, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Sexo Religião Atual Total Homens Estratos Amostrais Mulheres CentroX Católica 67,4 66,3 68,3 67,9 Pentecostal 11,8 9,0 14,4 5,2 6,2 4,3 Protestantismo Histórico NorNor Faixa Etária SulX 16 a 25 26 a 40 41 a 55 56 a 65 Anos Anos Anos Anos 72,8 74,2 64,3 68,3 64,7 68,5 12,2 7,8 13,5 12,0 11,6 13,8 7,3 7,0 6,3 4,3 4,7 3,9 6,4 9,4 Espírita Kardecista 2,9 2,7 3,1 3,4 2,0 3,2 1,2 4,1 3,8 1,3 Afro-brasileira 0,5 0,5 0,5 0,6 0,7 0,3 0,4 0,2 0,9 1,0 5,7 Outra 2,2 1,1 3,3 1,0 1,6 2,8 1,6 2,6 1,0 Sem Religião 9,7 13,9 5,9 7,9 6,8 11,5 11,4 12,6 5,3 2,6 Não Respondeu 0,2 0,3 0,2 0,0 0,5 0,2 0,4 0,2 0,2 0,0 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. 93 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 TABELA 2 Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Grau de Instrução, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Religião Atual Total Católica Protestantismo Histórico Pentecostal Espírita Kardecista Afro-brasileira Sem Religião Outra Analfabeto 6,3 6,9 9,1 5,0 0,0 0,0 4,5 4,2 Fundamental Incompleto Fundamental Completo 46,0 44,4 41,8 65,2 12,9 41,6 46,6 44,4 Médio Completo Superior Total 16,7 17,0 20,8 9,1 42,7 4,3 14,3 16,3 9,4 10,0 4,2 2,8 18,9 33,0 13,1 4,3 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 21,7 21,7 24,1 18,0 25,4 21,1 21,4 30,8 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. TABELA 3 Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Estratos Socioeconômicas, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Estratos Socioeconômicos Religião Atual Total Católica Protestantismo Histórico Pentecostal Espírita Kardecista Afro-brasileira Sem Religião Outra A B C D E 4,2 4,6 3,0 1,5 3,6 0,0 7,1 1,1 21,3 22,3 17,9 8,9 58,4 36,9 17,0 31,4 35,9 33,0 36,3 47,3 29,9 22,2 44,4 35,6 30,3 29,9 39,1 38,5 7,0 40,9 25,7 27,7 8,3 10,3 3,7 3,8 1,1 0,0 5,7 4,2 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. lação ainda menos católica, devido ao crescimento vegetativo de outras religiões, além da sua capacidade de atração de novos adeptos. Em contrapartida a esta projeção, a consolidação do movimento carismático pode inverter esse comportamento ao promover a “readesão” ao catolicismo. Em relação à distribuição espacial, no Centro X, a participação dos católicos está próxima à média nacional, enquanto no NorNor encontra-se acima da média e, no SulX, abaixo. Esta divisão do país em três grandes regiões – que obedece aos objetivos da pesquisa citados anteriomente – requer maior precisão. 3 De acordo com outras pesquisas, o Centro-Oeste é considerado uma região que recebeu um forte fluxo migratório poucas décadas atrás. Entre os migrantes, encontra-se um número expressivo de evangélicos vindos do Sul do país. Minas Gerais, ao contrário, é um Estado que, pelo Censo Demográfico de 1991, mostrava-se extremamente católico, acompanhando o comportamento do Nordeste: uma forte presença do catolicis- mo tradicional e popular das festas, procissões e romarias. Como Minas Gerais encontra-se no CentroX, a resultante da presença católica nesta região foi próxima à média nacional. O mesmo pode ser pensado para o NorNor, pois o Nordeste é muito católico e pouco evangélico, enquanto em Estados do Norte, como Rondônia, Pará e Amapá, houve migração recente com significativa presença evangélica proveniente do Sul do país. Contudo, como os Estados do Nordeste são mais populosos, a média de católicos no NorNor é significativamente superior à média do Brasil. Por fim, o dado encontrado para a área SulX é o mais próximo da realidade para todos os Estados: menor presença de católicos do que a média nacional. Destacam-se, nessa região, pentecostais, umbandistas, kardecistas e sem religião. Em relação à escolaridade e à renda, os católicos, pelo fato de serem a maioria, obedecem ao padrão nacional, tendo em vista o “critério Brasil”. 4 Baseando-se em dados qualitativos, observa-se que muitas pessoas têm ou- 94 TRÂNSITO RELIGIOSO tras práticas religiosas, mas identificam-se como “católico apostólico romano” quando perguntadas “qual é a sua religião?”, principalmente entre os estratos mais pobres e menos escolarizados. Na verdade, trata-se de uma identidade religiosa pública, muito embora as crenças e práticas católicas ocupem um plano mais secundário na vida do fiel em relação ao condomblé, umbanda, espiritismo, entre outros. A esse tipo de católico que mantém simultaneamente religiosidades diferentes – cada uma localizada num plano da vida do fiel – acrescentam-se ainda os chamados “não-praticantes”, categoria sociologicamente pouco precisa, mas com uma auto-identificação significativa que compõe uma parcela importante do segmento. São os católicos dos batismos, casamentos e enterros, para os quais os sacramentos atuam como ritos de passagem tradicionais na sociedade brasileira. Trata-se daqueles indivíduos que acreditam na Igreja, batizarão seus filhos nela, aceitam-na como identidade religiosa, mas não a praticam, como ir periodicamente aos templos ou manter alguma devoção a um santo, por exemplo. A auto-identificação de “não-praticante” deve-se à pouca freqüência aos serviços religiosos e à ausência de relações mais comunitárias. Por meio de entrevistas qualitativas, é possível inferir que um número considerável de pessoas pode muito bem se identificar como católico “não-praticante”, ou simplesmente sem religião, dependendo do dia em que for entrevistada. Não por acaso, curiosamente, entre aqueles que se encontram na categoria sem religião, 30,7% freqüentam algum serviço religioso anualmente e 20,3% mais de uma vez ao mês (Tabela 4). Em relação aos afro-brasileiros, verifica-se que, para a alternativa “nunca freqüenta serviços religiosos”, o valor NO BRASIL corresponde a zero (Tabela 4). Para o candomblé e a umbanda, a religiosidade está diretamente ligada às práticas rituais. Suas exigências não são do tipo comportamental, como entre os evangélicos, mas sim de cumprimento ritual de “dar comida para o santo”. Além disso, o calendário ritual afro-brasileiro tem uma periodicidade mais espaçada do que o cristão: católicos e evangélicos (protestantes históricos e pentecostais). Porém, para os primeiros, a freqüência semanal à Igreja é pouco superior a 50%, enquanto entre os pentecostais este índice chega a quase 90%, número semelhante ao dos protestantes históricos e um pouco superior ao dos kardecistas. De acordo com a Tabela 1, os pentecostais constituem o segundo maior segmento, com 11,8% da população, e apresentam a maior taxa de crescimento conforme os dois últimos Censos Demográficos. O grande contingente é feminino: 63,7% dos pentecostais, são mulheres – enquanto que a proporção feminina na população do Brasil é de 52,3% –, só perdendo para a categoria outras religiões,” com 77,0% (sobre as quais nada se pode afirmar devido à variedade compreendida pela categoria). Contudo, algumas denominações pentecostais conseguem ter um índice ainda maior do que este. Quase 80% dos que freqüentam a Igreja Universal, por exemplo, são compostos por mulheres. Em relação à escolaridade, a maioria dos pentecostais (65,2%) é formada por pessoas com o fundamental incompleto (para a população brasileira, a média é de 46%). A presença diminui relativamente nos extremos da escolaridade: poucos pentecostais entre os analfabetos e aqueles com ensino médio completo e menos ainda com nível superior (Tabela 2). Verifica-se comportamento semelhante na estratificação socioeconômica. Os pentecostais pre- TABELA 4 Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Freqüência aos Serviços Religiosos, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Freqüência aos Serviços Religiosos Religião Atual Nunca Total Católica Protestantismo Histórico Pentecostal Espírita Kardecista Afro-brasileira Sem Religião Outra 6,7 3,2 0,3 0,7 7,2 0,0 43,0 1,5 Anualmente Mais de Uma Vez ao Mês Semanalmente Várias Vezes por Semana Total 19,9 22,6 7,3 7,9 6,3 6,5 30,7 6,3 18,6 22,6 4,2 4,8 4,7 47,3 20,3 9,6 41,0 46,1 43,7 34,4 68,9 30,1 5,6 39,1 13,7 5,5 44,5 52,2 12,9 16,1 0,4 43,5 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. 95 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 dominam mais nos estratos C e D e menos em A, B e E. Em suma, baixa e média escolaridade e renda caracterizam esses religiosos. O segmento pentecostal é significativamente composto por jovens e adultos, sendo pequena a presença de pessoas com mais de 55 anos. Ao se distribuir a população total pelas faixas etárias, constata-se uma maior participação de pessoas mais velhas no catolicismo, no protestantismo histórico, e outras, enquanto os mais jovens optam, curiosamente, pela filiação aos segmentos católico e pentecostal, ou pela não filiação religiosa. Quanto aos católicos, vale a explicação anterior sobre a herança religiosa. Os outros (pentecostais e sem-religião) predominam nas faixas etárias de 16 a 25 anos e de 26 a 40 anos, ocupando cada um em torno de 12% da população em cada faixa. Esses dados apontam dois movimentos concomitantes, a princípio contraditórios. Um em direção a uma religiosidade exclusivista e espiritualizada, que insere o fiel em outra rede de sociabilidade, desencadeando nele mudança de comportamento. Neste pode-se incluir também a Renovação Carismática que, embora ocorra no interior do catolicismo, caracteriza-se pela incorporação de uma religiosidade tipicamente evangélica: pouca liturgia e muita música e gestos que dinamizam a celebração; ênfase na conversão e nos dons espirituais como o poder de cura, além de utilizar, assim como os evangélicos, os meios de comunicação como importante veículo de propagação da “fé católica renovada”. O outro movimento está direcionado à desfiliação ou à não-identificação com nenhuma instituição, que muitas vezes é acompanhada de desqualificação da vida religiosa. Assim, não só proliferam as religiões como também os sem-religião, que formam o terceiro maior grupo. Esta polaridade do campo religioso contribui para a discussão que ainda domina parte da sociologia da religião, qual seja, se esta mudança de configuração aponta para um “reencantamento do mundo” ou trata-se apenas de um ajuste da religião no macroprocesso de secularização, no qual se encontra a sociedade brasileira pelo menos desde a separação da Igreja do Estado (Montero e Almeida, 2000). Os sem-religião apresentam um nível de escolaridade alta e, em relação à renda dos brasileiros, estão bastante presentes nos estratos A e C. Pelos dados não é possível estabelecer uma relação direta entre maior filiação religiosa e estrato socioeconômico baixo. Os sem-religião encontram-se mais entre jovens e adultos até 40 anos e, principalmente, entre os homens. Em relação ao sexo dos religiosos, a pesquisa mostra que há predominância mas- culina somente nas alternativas sem religião – numa relação de quase dois homens para uma mulher – e protestantismo histórico. Em geral, a religiosidade é mais confessa pelas mulheres. Logo, em alguma medida, a distinção de gênero afeta o processo de secularização. O protestantismo histórico forma o quarto maior grupo, com 5,2% da população, e comporta uma maioria masculina. Estes religiosos encontram-se mais entre as pessoas que possuem ensino fundamental (incompleto e completo) e médio completo, bem como nos estratos B, C e, principalmente, D (Tabela 2). Assim, como os católicos, os protestantes históricos encontram-se mais presentes entre as pessoas acima de 41 anos e mais ainda entre aqueles com idade superior a 56 anos. Os protestantes estão pouco presentes entre os mais jovens, sendo que o aumento vegetativo deste segmento é inferior ao católico e a taxa de crescimento é pequena. Contudo, assim como ocorreu com o catolicismo, eles foram atingidos também pelo movimento carismático que tem atraído muitos fiéis e criou um segmento religioso com características intermediárias entre protestantes históricos e pentecostais: são os protestantes carismáticos ou renovados. Os kardecistas, com 2,9% dos brasileiros, são os religiosos com maior nível de escolaridade e renda. Nenhum caso de analfabetismo foi registrado entre os entrevistados, poucos possuíam ensino fundamental incompleto e completo e muitos tinham médio completo e superior. Quanto à renda, este segmento está mais concentrado nos estratos D e B. 5 Curiosamente, as religiões afro-brasileiras possuem maior participação entre as classes altas e com maior escolaridade, muito embora a experiência mostre que muitos pobres são adeptos dessas religiões. Recorrese novamente ao argumento anterior, para o qual boa parte dos brasileiros mantém uma religiosidade privada e outra (a católica) como identidade pública, principalmente se a resposta for dada no contexto de um survey, o que limita a caracterização de certas religiões. MOBILIDADE DOS RELIGIOSOS Como dito inicialmente, o quadro descrito é resultado de uma intensa circulação de pessoas entre as religiões, ocorrida nas últimas três décadas. De acordo com as características sociodemográficas, o universo feminino tem um nível de filiação maior do que o dos homens, mas isto não significa que as mulheres mantenham a religião herdada; ao contrário, são elas as que mais mudam e, na maior parte das vezes, sempre direcionadas para outras religiões. 96 TRÂNSITO RELIGIOSO O SulX, por sua vez, foi a única região onde as pessoas mudaram de filiação acima da média nacional, criando o cenário mais plural do Brasil. Os muito pobres com pouquíssima escolaridade e os muito ricos e de alta escolaridade mudaram muito menos de religião. Em resumo, a mudança ocorreu de forma mais concentrada no SulX, nas classes C e D, com escolaridade baixa e média e entre as mulheres, segmentos em que os pentecostais mais se proliferaram. Em números absolutos, os católicos foram os que mais perderam. Em seguida vêm os sem-religião, os protestantes históricos, os pentecostais e pouquíssimos kardecistas e afro-brasileiros. Por outro lado, os segmentos que mais receberam pessoas, em ordem crescente, foram: os pentecostais (quatro vezes mais do que perdeu); sem-religião (cerca de metade a mais); protestantes históricos (quase igual ao que perderam); católicos; kardecistas; e afro-brasileiros. Porém, ao reduzir o universo unicamente aos NO BRASIL 26,5% que mudaram de religião, quais são as principais conexões entre as alternativas religiosas? Isto é, quem recebeu de quem e quem doou para quem? É como se quiséssemos saber, por exemplo, de onde vieram os fiéis do kardecismo e para onde vão os kardecistas quando mudarem de religião. Para construir esse movimento, a pesquisa perguntou a religião atual do entrevistado e em qual ele foi criado. Desta maneira, cada religião pôde ser analisada em dois momentos: como pontos de recepção e de emissão de fiéis. Considerando-se o estoque de pessoas de cada uma dessas categorias e a alta circulação interna, o campo religioso brasileiro pode ser articulado em torno de três principais vértices. O primeiro vértice é formado pelos católicos, que funcionam como uma espécie de “doador universal”, de onde todos os segmentos arregimentam boa parte dos seus fiéis. O grupo preferencial para onde migram os católicos é o pentecostalismo, seguido por aquele sem religião. Do TABELA 5 Distribuição dos Indivíduos que Mudaram de Religião, por Religião em que foi Criado, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Religião em que foi Criado Religião Atual Católica Total Católica Protestantismo Histórico Pentecostal Espírita Kardecista Afro-brasileira Sem Religião Outra 100,0 14,9 36,5 13,5 2,3 23,6 9,2 Protestantismo Histórico 100,0 12,2 3,0 0,3 0,1 79,5 4,9 Pentecostal 100,0 36,7 0,6 Espírita Kardecista 100,0 63,6 0,0 5,6 2,5 0,0 58,8 1,4 Afro-brasileira Nenhuma Outra Total 100,0 24,1 9,3 11,1 0,0 100,0 20,3 31,1 46,3 0,0 0,0 100,0 23,9 1,9 39,7 2,8 0,0 31,7 100,0 9,0 12,8 31,1 9,0 1,5 29,9 6,7 0,0 29,6 1,2 55,6 0,0 2,2 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. TABELA 6 Distribuição dos Indivíduos que Mudaram de Religião, por Religião em que foi Criado, segundo Religião Atual Brasil – 1998 Em porcentagem Religião em que foi Criado Religião Atual Católica Total Católica Protestantismo Histórico Pentecostal Espírita Kardecista Afro-brasileira Sem Religião Outra 63,6 74,0 74,8 95,4 99,6 50,1 87,8 Protestantismo Histórico 9,4 12,7 0,9 0,4 0,4 25,0 6,9 Pentecostal 7,6 31,0 0,3 Espírita Kardecista Afro-brasileira 2,0 14,4 0,0 0,4 2,1 0,0 14,9 1,6 0,0 2,0 0,4 Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids. 97 0,3 0,9 0,2 0,1 0,0 0,6 0,0 Nenhuma Outra Total 10,0 22,6 24,4 14,9 0,0 0,0 6,9 18,4 1,0 8,9 2,2 0,0 7,3 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 3,3 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 ponto de vista da recepção, quase metade das pessoas entrevistadas que aderiram ao catolicismo afirmou não ter pertencido anteriormente a nenhuma religião ou que eram pentecostais. Porém, como dito anteriormente, em parte o primeiro dado se explica pela fronteira pouco precisa entre os que se dizem católicos “não-praticantes” e os semreligião. Trata-se de um catolicismo dado pela tradição, em que as pessoas receberam a religião dos pais e a ativam no uso dos sacramentos e nos momentos de dificuldades pessoais (familiar, financeira, saúde, etc.), ou, mais recentemente, por meio da “readesão carismática”. Os kardecistas, por sua vez, orbitam em torno do catolicismo, formando um fluxo preferencial. A quase totalidade (95,4%) afirmou ter sido católica e, quando as pessoas saem do kardecismo, vão (ou voltam) para o catolicismo, ou têm, como segunda opção, não ter religião. O fluxo de pessoas do (ou para o) catolicismo é explicado, em parte, pelo comportamento da maioria dos kardecistas, que, assim como os afro-brasileiros, não deixam de se identificar como cristãos e católicos: um “católico espírita”, cujos práticas não são excludentes, mas que, dependendo da situação, o indivíduo pode utilizar uma ou outra identidade. Os afro-brasileiros, em parte, orbitam em torno do catolicismo como os kardecistas, mas, diferentes destes, a maioria das pessoas, quando sai das religiões afro-brasileiras, declara-se sem religião. No segundo vértice encontram-se os sem-religião, categoria equivalente a um “receptor universal”, que, numa sociedade em processo de secularização, recebe pessoas de todas as confissões. Acrescente-se, contudo, que a literatura antropológica demonstrou exaustivamente como muitas pessoas compõem um repertório particular de crenças e práticas variadas, mas não se identificam com nenhuma religião específica. Não se trata, portanto, somente de um movimento em direção ao ateísmo, mas sim a composição de um repertório simbólico particular, afinal, a não-filiação não significa necessariamente ausência de religiosidade. Um dos exemplos contemporâneos mais significativo de composição desses arranjos particulares é formado pelo circuito neo-esotérico, cuja religiosidade não se expressa prioritariamente pela filiação a uma instituição, mas é definida por um certo estilo de vida, fenômeno bastante presente nas classes média e alta dos grandes centros urbanos (Magnani, 1999). Um fluxo significativo envolve ainda os sem-religião e protestantes históricos. Os históricos são semelhantes aos católicos, aumentando praticamente de forma vegetativa e perdendo fiéis quase na mesma proporção; contudo, diferentes dos católicos que aderem a todas as alternativas, a maior parte dos ex-protestantes (79,5%) simplesmente fica sem religião. Neste caso, o comportamento é semelhante ao kardecismo, que se explica a partir dos conteúdos específicos dessas religiões que tendem à secularização, como uma religiosidade que pretende um caráter científico. Finalmente, o terceiro vértice é formado pelos pentecostais, cujo aumento é semelhante ao daqueles sem-religião, mas, diferente destes, buscam seus fiéis entre alguns es- FIGURA 1 Padrões de Migração entre Religiões Fonte: Elaboração dos autores. 98 TRÂNSITO RELIGIOSO tratos sociais e segmentos religiosos – basicamente entre católicos, afro-brasileiros e sem-religião, que compõem um repertório simbólico “católico-afro-kardecista” que manipula simultaneamente elementos de confissões diferentes: lógica mágica, reencarnação e destino, devoção a santos e crença na comunicação com os mortos. Os pentecostais pouco atraem os kardecistas – o que se explica pelas diferenças sociais que caracterizam estes segmentos –, mas confrontam-se com algumas de suas idéias como espíritos de mortos e reencarnação. Os afro-brasileiros, por sua vez, estão na esfera de ação dos pentecostais por serem alvos privilegiados da evangelização e modelo simbólico religioso a ser combatido. Porém, o grande celeiro dos pentecostais é formado pelo catolicismo. Neste sentido, a Renovação Carismática não deve ser entendida apenas como um movimento de readesão, mas também de reação ao avanço evangélico. No cenário atual, pode-se entender a neopentecostal Igreja Universal, fundada em 1977, como resultante da interação, tanto simbólica quanto numericamente, dos universos evangélico e umbandista. A Igreja Universal construiu uma religiosidade que condenou – e ao mesmo tempo validou – os conteúdos de outras religiões, contudo, paradoxalmente, incorporou as formas de apresentação e certos mecanismos de funcionamento de um prática encontrada particularmente na umbanda. Ela ficou mais parecida com a religiosidade inimiga ao elaborar um sincretismo às avessas, que associou as entidades da umbanda e orixás do candomblé ao pólo negativo do cristianismo: o diabo. Se originalmente os universos foram formados em contextos diferentes, a interação (produto do trânsito de pessoas e idéias) gerou uma religiosidade que mistura exus com glossolalia, exorcismo com transe; de tal maneira que se estabeleceu uma continuidade pela qual as entidades conseguiram transitar e esses universos puderam, pelo transe, se comunicar. Os pares negação/ inversão e assimilação/continuidade são os mecanismos fundamentais pelos quais se processaram essa antropofagia religiosa. Graças a esses binômios, a Universal pôde manter o proselitismo de fiéis e, ao mesmo tempo, ser sincrética com outras crenças, que, juntamente com os infortúnios vividos pela população brasileira, formam o alimento constitutivo do seu simbolismo religioso (Almeida, 1996). Outro fluxo significativo gerador de um novo padrão de religiosidade foi formado pela interação entre catolicismo, pentecostalismo e protestantismo histórico, resultando na Renovação Carismática. A penetração de alguns NO BRASIL elementos evangélicos no catolicismo ocorreu em duas dimensões: do pentecostalismo, a Renovação adotou os dons espirituais ou carismas, como a glossolalia e a cura; e do protestantismo histórico, a idéia de conversão pessoal que, em termos práticos, manifesta-se como experiência emocional com implicações direta no comportamento do fiel em esferas da vida social, como a família e o trabalho, e ainda no seu estado psíquico-emocional (depressão, vício, solidão, etc.). A conversão ocorre como internalização da religião acompanhada de mudança de comportamento social e reorganização da vida em torno de uma “comunidade de irmãos”. Contudo, a conversão evangélica tem implícita a necessidade de dissidência institucional e uma nova filiação. Porém, como aderir ao catolicismo se já nasci católico? A contribuição da Renovação é conseguir operar uma mudança, “ser um novo homem”, sem romper com a Igreja. Na verdade, ela promove a “re-adesão” a um novo corpo de fiéis atingido pela religiosidade evangélica dentro da própria Igreja. Um fluxo em torno de si mesmo. O resultado é um fiel que junta glossolalia com o culto mariano, o que garante catolicidade ao movimento. 6 CONCLUSÃO Neste artigo, não se tentou assentar a discussão nas lógicas internas dos diferentes credos, mas sim compreender como estas rebatem umas nas outras, e em planos distintos. Seria interessante, portanto, retomar de maneira mais sistemática, noções que perpassam as diversas religiões, tais como a dicotomia bem/mal, justiça, pecado, pobreza, sofrimento, salvação, etc., com a finalidade de acompanhar com maior precisão as migrações religiosas. Promover um espelhamento entre as religiões, para apreender zonas de tensão e regiões de fusão, definido pela simultaneidade de interações que são desiguais entre si. Citam-se a Universal e a Renovação por considerá-las os produtos mais recentes das transformações do campo religioso brasileiro. É como se, a partir delas, fosse possível recuperar parte do processo de interação das tradições católica, evangélica e afro-kardecista. Esses exemplos mostraram o espraiamento do pentecostalismo pelo catolicismo e pelo protestantismo histórico (dando origem aos carismáticos e renovados) e, simultaneamente, a absorção de práticas e crenças da umbanda, que, por sua vez, é resultado da articulação entre os universos kardecista e afrobrasileiro com a mediação do catolicismo, este sim, o grande doador não só de pessoas, mas também de um campo 99 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 semântico comum às religiões no Brasil. Diante deste cenário, “o campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”, para refazer a pergunta-título de um artigo de Pierre Sanchis (1995). Mencionando novamente a pesquisa sobre “Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/Aids”, as perguntas sobre a mobilidade religiosa eram: “qual a sua religião atual” e “em qual você foi criado”. Essas perguntas têm dois limites metodológicos: o cruzamento só mede uma mudança de religião e pressupõe que, no momento da entrevista, o indivíduo só tenha uma filiação. Pela característica do campo brasileiro, não é nenhum absurdo supor uma trajetória que apresentasse mobilidade institucional (num processo de sucessivas “conversões”) ou a simultaneidade de vários credos (como se fosse um sincretismo privado). Isto posto, ao invés de citar um dado etnográfico específico, suponhamos um movimento ideal no campo. Comecemos por um religioso de referência, tão comum no Brasil: o católico “não-praticante”. Um indivíduo que passou pela Igreja em momentos como batizado, talvez uma comunhão e uma crisma, o casamento e, no futuro, receberá dela a extrema-unção – alguém que pode muito bem se declarar sem religião, dependendo do dia em que for entrevistado, mas, ao descobrir ser portador de uma grave doença, recorrerá à fé católica, aos santos milagreiros e a alguma devoção a Maria. Não conseguindo o seu objetivo, recorre à umbanda, que lhe promete a cura mediante oferenda de sacrifício para alguma entidade afro-brasileira. A cura, no entanto, não vem. Ele, então, assiste na televisão os testemunhos de milagres que ocorrem a quem for à Universal; e lá se fixa o fiel-doente. A partir de pesquisa na Igreja Universal, pode-se afirmar que até aqui essa trajetória é significativamente observável. Envolvido com o meio evangélico, esse sujeito pode seguir ainda dois caminhos. Primeiro, passar para outras igrejas históricas. A pesquisa Novo Nascimento pode levar a esta conclusão, uma vez que 25% dos evangélicos pertenceram a mais de uma denominação (Fernandes et alii, 1998). O único problema é que o fluxo ocorre preferencialmente das históricas para as pentecostais, e muito pouco no sentido inverso. Um outro caminho possível, mas que precisa de constatação empírica, é o fiel-doente aprender a doutrina da conversão e do Espírito Santo na Renovação Carismática e voltar à religião da sua tradição: o catolicismo. Evidente que esse conjunto de passagens representa uma trajetória ideal, porém, como dito, plausível de acordo com a bibliografia sociológica e antropológica. Não se entende que exista uma relação de determinação entre as duas circulações, na qual a mobilidade de fiéis seria o suporte pelo qual o conteúdo religioso fluiria. Ou o inverso disso: que a invenção religiosa torna mais plausível para uns do que para outros a mudança de filiação. As circulações devem ser entendidas em planos distintos, porém correlatas, como se houvesse uma retroalimentação que acelerasse tanto a mobilidade de fiéis quanto o trânsito de práticas e crenças, resultando na invenção religiosa e em novos agrupamentos de pessoas. Acredita-se, contudo, que essa correlação e interpenetração devem ser indicadas, em primeiro lugar, na trajetória do indivíduo (daí a necessidade de melhorar as perguntas sobre pertença religiosa, associando-as a dados qualitativos) e não propriamente na instituição. Os circuitos se concretizam e se tornam mais claros na trajetória do indivíduo, sendo que o acúmulo de experiências proporcionadas pelo trânsito torna o seu repertório religioso mais amplo do que o pregado pela instituição à qual se filiou em determinada etapa da vida. NOTAS E-mail dos autores: [email protected] e [email protected] Agradecemos a preciosa ajuda de Marta Rovery de Souza e Eduardo Marquês, na análise dos dados quantitativos, de Maria Dirce G. Pinho e Maria Paula Ferreira, pela preparação do banco de dados e tabulações. 1. Esta pesquisa, cuja representatividade da amostra (3.600 indivíduos, entre 16 e 65 anos, moradores das áreas urbanas de 169 microrregiões do Brasil) tem a capacidade de inferência da ordem de 77,7% do universo (constituído, em 1996, por 77.018.818 pessoas), foi realizada pela área de População e Sociedade do Cebrap para o Ministério da Saúde, sob a coordenação da Dra. Elza Berquó. Seu objetivo principal foi “identificar representações, comportamento, atitudes e práticas sexuais da população brasileira e conhecimento sobre HIV/Aids, com vistas a estabelecer estratégias de intervenções preventivas das DSTs e HIV” (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2000:11). No questionário foram incluídas sete perguntas (num total de 204) para compreender como as diferentes religiões influenciam o comportamento sexual. Este artigo vale-se das perguntas sobre religião e as referentes às características socioeconômicas da população para discutir um outro problema: a intensa mobilidade das pessoas pelas religiões, que também foi constatada por outras pesquisas, mas em universos menores, como o município de São Paulo (Prandi, 1996) e a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Fernandes et alii, 1998). 2. O dicionário de dados do Censo Demográfico, que serve de orientação para o entrevistador do IBGE, apresentava, em 1980, nove alternativas para a questão sobre filiação religiosa, passando para 51, em 1991. Estas 51 alternativas também foram utilizadas para classificar as respostas dos entrevistados da pesquisa Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/Aids e, posteriormente, agregadas em sete grandes categorias que expressam as principais tradições religiosas no Brasil: católicos, protestantes históricos, pentecostais, afro-brasileiros, kardecistas, outras e sem religião. 3. A pesquisa dividiu o território nacional em três grandes regiões: CentroX (que compreende o Centro-Oeste mais os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo), NorNor (Norte e Nordeste) e SulX (Sul e Sudeste, menos Minas Gerais e Espírito Santo). 4. “Nele são associados valores ao número de bens de consumo existentes no domicílio e ao nível de instrução do chefe da família e/ou pessoa de referência. Também são considerados, para essa classificação, o acesso ao número de automóveis e a existência de empregadas mensalistas. Este novo critério de pontua- 100 TRÂNSITO RELIGIOSO ção permite uma maior aproximação da realidade socioeconômica dos entrevistados, além de poder ser utilizado como proxy da renda familiar” (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2000:32). NO BRASIL COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST/AIDS. Série Avaliação. Brasília, Ministério da Saúde, n.4, out. 2000. FERNANDES, R. et alii. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja . Rio de Janeiro, Mauad, 1998. 5. Outras pesquisas confirmam este alto perfil socioeconômico dos kardecistas (Almeida e Chaves, 1998). MAGNANI, J.G. Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neoesotérico na metrópole. São Paulo, Studio Nobel, 1999. 6. Destaca-se este aspecto por considerá-lo um dos mais significativos desse hibridismo religioso, porque Maria, para os evangélicos, não pode ser considerada a mãe de deus e tampouco objeto de culto, assim como nenhum santo. MONTERO, P. “Magia, racionalidade e sujeitos políticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, ano 9, n.26, out. 1994. MONTERO, P. e ALMEIDA, R. “O campo religioso brasileiro no limiar do século: problemas e perspectivas” In: RATTNER, H. (org.). Brasil no limiar do século XXI. São Paulo, Edusp, 2000. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PIERUCCI, F. e PRANDI, R. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1996. ALMEIDA, R. A universalização do Reino de Deus. Dissertação de Mestrado. Campinas, IFCH/Unicamp, 1996. PRANDI, R. “Religião paga, conversão e serviço”. Novos Estudos. São Paulo, Cebrap, n.45, jun. 1996. ALMEIDA, R. e CHAVES, M.F. “Juventude e filiação religiosa”. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília, Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, 1998. SANCHIS, P. “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?” In: HOORNAERT, E. (org.). História da igreja na América Latina e no Caribe (1945-1995). Petrópolis, Vozes/Cehila, 1995. BIRMAN, P.; NOVAES, R. e CRESPO, S. (orgs.). O mal à brasileira. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. 101 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 A CULTURA NA ESTEIRA DO TEMPO MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unesp/Araraquara e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Unesp/Botucatu, Pesquisadora do CNPq Resumo: Objetiva-se neste texto analisar os traços culturais de um mundo anterior à emigração dos trabalhadores rurais para as cidades, como um dos ingredientes da memória social e individual, tendo em vista o processo de desenraizamento decorrente da modernização da agricultura, implantada no final da década de 60. A cultura material e simbólica do mundo rural de antes caracteriza-se como lugar, em razão do seu nãolugar no conjunto da sociedade atual. Palavras-chave: cultura e memória; cultura e trabalhadores rurais; cultura e reterritorialização. se diante da implantação das grandes usinas e complexos agroindustriais. Pretende-se, portanto, tecer algumas reflexões sobre os traços culturais dos trabalhadores rurais que passaram a residir nas periferias das cidades. Várias pesquisas desenvolvidas ao longo das duas últimas décadas1 comprovam que a cultura do mundo rural de antes se desagregou em virtude da homogeneização imposta pela cultura de massa, sobretudo aquela veiculada pela televisão. O que existe são os fragmentos daquela cultura na memória e na lembrança de alguns. A fim de dar conta deste objetivo, a cultura de antes será tratada como lugar, presente na memória individual e na conservação de algumas tradições. As tradições do mundo de antes, inseridas na sociabilidade ancorada nas relações familiares, de compadrio e de vizinhança, se desmoronam com a vinda para as cidades. Esse fato está relacionado ao modo de expulsão desses trabalhadores do campo. Em outro trabalho (Silva, 1999), analisaram-se as conseqüências imediatas provocadas pelo Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), promulgado em 1963, em todo o país. Para a região de Ribeirão Preto, espaço empírico sobre o qual se fundam as presentes reflexões, vieram milhares de migrantes rurais, provenientes não apenas do próprio Estado de São Paulo, como de várias outras áreas do país, dentre elas do Nordeste. Nesse sentido, as periferias das cidades médias e das cidades-dormitório foram constituídas pelo ajuntamento de milhares de pessoas, de várias procedên- ada vez mais afirma-se, na época contemporânea, a sociedade do esquecimento, marcada pelo domínio homogeneizador da informação midiática. Recuperar o passado individual e coletivo, por meio da memória como metodologia de análise, configura-se como um dos caminhos possíveis para a redescoberta dos processos de desenraizamento social e cultural, e, por conseguinte, para a redefinição dos projetos que articulam passado, presente e futuro. “E o que é a lembrança para a senhora? A senhora acha que lembrar faz bem? Ah, faz! Não faz mal não. É (ri). É... nunca que a gente esquece... Tanta coisa boa, tanta modinha bonita que eu... (Pausa) da moreninha... tu és bela... é muito, é bastantinho de verso. A moça andando no fio de arame para lá, para cá, ia lá longe e vinha cá no fio de arame, dançando... E cantando... E cantando essa moreninha... Moreninha, tu és bela, és mimosa igual à flor/ Eu te adoro e te namoro, moreninha, meu amor...” (Fragmento da entrevista de dona Onícia em 1997, aos 83 anos. Faleceu dez meses depois). No que se refere ao Brasil, especificamente ao Estado de São Paulo, a partir da década de 60, em virtude dos projetos de modernização agrícola, houve um processo continuado de emigração forçada para as cidades. As formas de produção caracterizadas pela parceria, arrendamento, colonato, posse e agricultura familiar desagregaram- C 102 A CULTURA NA ESTEIRA cias e, conseqüentemente, portadoras de múltiplas culturas e modos de vida diferenciados (Silva, 1993). Espaços reduzidos, sociabilidade, marcada, muitas vezes, por conflitos, violência, preconceitos, e, sobretudo, por sinais de estranhamento mútuo. A sociabilidade ancorada nas relações primárias, caracterizadas pelo reconhecimento interpessoal e auto-reconhecimento, cede lugar à sociabilidade individualizada e estranhada. Com o passar dos anos, a vida social foi sendo reconstruída nesses novos espaços. No entanto, as tradições, a cultura do mundo de antes, não couberam nos limites desses espaços. Foi necessária a construção dos lugares para protegê-las, para impedir sua morte. DO TEMPO ele vinha valsando também assim, e valsava um pouco, depois vinha e nós rodávamos. Era a dança, uma valsa. Então, era tão bonito, que só a senhora vendo! E... e... e nessa dança poderia cantar verso assim, para um outro... A gente cantava aqueles versos agradando os moços, eles cantavam agradando as moças. Então, dos versos que eu tirei da cadernetinha do meu pai, de quando ele era solteiro, é um verso assim... ‘Teus olhos quantas cores/ De uma Ave-Maria/ Que um rosário de amargura/ eu rezo todo dia’. A Seriema é uma valsa... E tinha outro assim: ‘Fiz as minhas queixas no meio das pedrarias/ (Não... como é que é, gente?) Fui fazer as minhas queixas no meio das pedrarias/ Minhas pedras pesam mais que quando... (Não. Meu... Ah, esse eu errei!) Fui fazer a minha queixa no meio das pedrarias... Minhas pedra(s) pesa(m) mais... do que quantas pedras havia. Joguei meu lenço n’água/ e ligeiro ele foi ao chão/ Eu amo todo... eu... amo... (Tá... estou muito esquecida hoje, ontem estava mais lembrada). Joguei o lenço n’água/ e ligeiro ele foi ao chão... ao fundo/ Eu amo só você, e você ama todo mundo.’ É... é muito verso, mas a gente esquece, porque faz muito tempo que eu deixei, num cantei mais ... ‘Se você diz que eu sou sua/ se eu sou sua, eu não sei/ eu amo... eu amo só você e você ama todo mundo. É. Eu tenho quatro amores/ dois de manhã, dois de tarde/ com todo sorriso e brinco/ Sou homem, falo a verdade’... Uma reza que eu vou falar para a senhora, que... quando rezava terço, nós cantávamos, e agora eu... eu deixei de rezar por causa da seita de agora... (Dona Onícia aderira à seita dos pentecostais). É. Nós... quando nós rezávamos, nós cantávamos para beijar o santo. ‘Bendito, louvado seja, bendito, louvado seja/ Olha o santíssimo... o santíssimo sacramento/ todos os anjos, os anjos, todos os anjos/ ... Os anjos benditos... (Fala muito baixo, para si mesma, tentando se lembrar) Olha o santíssimo sacramento.../ Olha o santíssimo sacramento/ Bendito, louvado seja, bendito, louvado seja/ Olha o santíssimo sacramento/ olha o santíssimo sacramento... Abre essa porta, deixa o vento entrar/ para ver os anjos no seu passear... Abre essa porta, deixa o vento entrar/ para ver os anjos no seu passear...’ Só. É, tem... tem mais coisa, modinha, mais eu esqueci as modinhas bonitas mesmo, eu esqueci. A MEMÓRIA COMO LOCUS DA CULTURA “A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular de nossa história. Momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (Nora, 1993:7). Essas reflexões de Nora são extremamente eficazes para a análise da memória individual e também coletiva. A idéia de encarnação da memória, após seu esfacelamento, pode ser vista a partir de alguns fragmentos das lembranças de dona Onícia, 83 anos, mineira, que viveu grande parte de sua vida no campo e, quando interrogada sobre seu tempo de juventude, fez um enorme esforço, tanto físico como espiritual e mental, para se lembrar das músicas dançadas e cantadas nos bailes. À medida que tentava se lembrar, seu semblante se transfigurava e, por diversas vezes, se levantou da cadeira, deixando de lado a bengala que lhe servia de apoio, imitando com os braços, porque as demais partes do corpo já não lhe permitiam, a dança da Seriema. “É, lembrei de uma porção... de uma porção de versos, que nós cantávamos assim no baile. Estava com aquela moça... aquelas moças, os moços ali todos se divertindo, alegres.... tinha uma dança chamada Seriema, a gente ia... assim falar com ela, ou eu, ou a senhora, saía assim valsando assim, rodando lá na sala do baile e... e valsando e cantando, e os que estavam tocando o instrumento, é... também tocando, e a gente ia valsando. Quando chegava lá perto daquele moço que a gente abanava o lenço para ele, 103 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 (Na procissão), tinha as meninas vestidas de anjo, com aquelas asonas brancas bonitas... As meninas com aquele vestuário mais lindo! E, dia de festa de mês de maio... O povo saía da casa do padre, era como daqui, longe da casa do padre, lá naquela casa que tem na frente lá. Então, subia cantando... cantando, e a banda... a banda tocando, entrava dentro da igreja. Então, tinha novena à noite, tinha novena e tinha aquelas... aquelas meninas, quatro... tinha aquelas coroas, aquelas grinaldas que iluminavam aquelas flores... Então, duas meninas iam coroar. Cada uma com pratinho de rosa ali. Então, elas cantavam assim... elas cantavam... eram duas de cada lado. Faziam a coroação de Nossa Senhora ali. Então... (Dona Onícia encena) uma de cá e a outra de lá que iam coroar. Então, elas cantavam: ‘Ó minha mãe o bem querida, de possuir esse... de possuir... de possuir... (Pequena pausa) ó minha mãe o bem quiser/ó minha mãe o bem... (cantando baixo, tentando se lembrar) ...possuir este tesouro, para dar neste dia uma rica coroa de ouro/ Para dar-vos neste dia uma rica coroa de ouro.’ Jogava flor, rosa e... o sino batia e as meninas desciam do altar, trepavam lá em cima. É. Mais não ficou bonito isso não. Porque eu não cantei bem bonito... Parecia que eu estava vendo a coroação. É umas modinhas bonitas, que era um encanto que eu cantava. Houve um mutirão de panha (colheita) de café. E nós fomos apanhar café, de dia apanhando café. Depois teve a janta, teve muita coisa boa de comer. Teve macarronada, frango, carne de porco, carne de vaca, muita comida boa lá. Quando foi à noite, foi o baile. Então, eu fui. Eu era solteira, e eu cantava modinha... E o meu tio me dizia: ‘Nícia, você tem que cantar’. E ali perto tinha um ponteador de violão para gente cantar, ele ponteava. Às vezes, meu namorado ponteava, no violão, e o velho Jorge, nesse tempo... Eu cantava modinha, cantava verso... ‘Num tenho medo do homem, nem do ronco que ele tem/ O besouro também ronca, mas se ver, não é ninguém/ O besouro também ronca, mais se ver, não é ninguém.’ Ah, o moço respondia assim para ela. (Pequena pausa. Dona Onícia esforça-se para lembrar) ‘Não... só vocês vendo uma coisa... muito verso... Mais eu vou ver se eu lembro ao menos um. (Pausa) ‘Não tenho medo da mulher e nem quando elas estão dormindo/ Os olhos estão fechados e as sobrancelhas bolindo/ Os olhos estão fechados e as sobrancelhas bolindo’. Era como se fosse um desafio... Era... um cantava uma coisa e o outro respondia. É, é um desafio. Só vocês vendo que boniteza! Até isso eu cantava, eles ponteavam, era aquela boniteza! Cantava quase a noite inteira, eu dançava bastante. Depois aí, meu tio mandava eu cantar um pouco. Os outros, às vezes, estavam dançando para lá, dançando catira, é... Que eu namorei um mocinho dessa casa, mais ele... eu gostava mais dele do que ele de mim. É, então, ele cantava moda de viola, sapateava, dançava catira. Era José..., meu cunhado, e o João. É, é... nessa casa. Eu... preciso lembrar... Tomé, eles eram os Tomé: José Tomé, Jonas Tomé, que é meu cunhado, esse José Tomé, casado com a minha amiga e... e o... e o João Tomé. Esse João Tomé era o mais novo e eu... eu namorava ele, mais é que... eu gostava mais dele do que ele de mim. Outro cântico era asssim: ‘Eva querida, quero ser o seu Adão/ Eva querida, quero ser o seu Adão/ Dar-te-ei a minha vida em troca... em troca de seu coração/ Eva querida, dava minha vida... dou a minha vida... em troca de seu coração/ Eva querida...’ Se eu lembrasse de mais... eu precisava ter uma pessoa que visse eu cantar, para eu lembrar... É, e nós numa bancada assistindo (no teatro). Que o papai levava nós e o povo gostava mesmo das modinhas. O povo cantava, batia palma, gritava, só vendo. É... era muito bonita. E cada verso bonito mesmo... e nós cantávamos, nós cantávamos um verso, às vezes assim ali junto do pessoal, todas moças, os moços, os chefes da casa, tudo ali, era aquela boniteza, que era um respeito, que só a senhora vendo. Num saía nada... nada ruim, era lugar de dançar. É o finado Zé Quim que, na mocidade dele, em São Thomás de Aquino, ele morava na roça; hoje, ele ficou pobre de fazer festa para amigos. Que os bailinhos que ele fazia aí... lá ele fazia aqueles bailes... Ele andava muito bem vestido e nesses bailes só ia quem estava na casimira, quem entrava nesses bailes lá em São Thomás de Aquino. Só quem tivesse na casimira! Quem não estivesse assim na casimira, não entrava. E... ou senão, um terno... tinha uns ternos que existiam para ir naqueles bailes. Isso é no tempo da mocidade do meu pai, do meu cunhado, da minha cunhada. Como é que chamava? Esqueço... Um tal de..., ele era músico em São Thomás de Aquino, era maestro de música. Quan- 104 A CULTURA NA ESTEIRA do tinha aquelas festas de igreja, os músicos cantavam, subiam as ruas cantando... faziam procissão...” Os fragmentos dessas lembranças fornecem a matériaprima para o trabalho da memória. Ao mesmo tempo em que os fios da memória vão sendo puxados, vêm os personagens, as cenas e o cenário, jorrados na sucessão-sobreposição de tempos e espaços. À medida que as lembranças vão brotando dos subterrâneos da memória e se dirigindo à superfície, aquilo que era, até então, nebuloso vai aos poucos assumindo formas nítidas com conteúdos multicoloridos. As rosas lançadas pelas duas meninas durante a coroação de Nossa Senhora, a casimira dos homens durante os bailes como exigência dos bons costumes, a bailarina que se equilibrava no fio de arame enquanto cantava a música da moreninha, assistida por muitas pessoas, o baile da seriema, a dança catira após o mutirão, as músicas ponteadas pelos violeiros, a insistência do tio para que ela cantasse, o namorado que gostava pouco dela, a família dos Tomé, manifestam a sociabilidade das pessoas daquele tempo, as quais, por meio de suas lembranças, encarnam-se no tempo/ espaço presente. O passado assume diante do ouvinte uma realidade tal que, no final de cada narrativa, ela se levantava, acenava, cantava, num esforço supremo, em razão de seus problemas de saúde, e completava dizendo: “só a senhora vendo que boniteza que era ...”. O mundo rural de dantes, as festas, a fartura, a sociabilidade entre parentes e vizinhos são reconstruídos pela memória individual da lembradora. Não obstante, apesar de seu esforço, não consegue lembrar de tudo. Em determinados momentos, chega a dizer que, se houvesse alguém para ajudá-la a lembrar, ela teria condições de cantar todas as músicas. Ou ainda, se lamenta pelo fato de ter perdido os almanaques, nos quais estavam escritas as letras das músicas. Também se entristece pelo fato de não possuir fotos das pessoas dessa época. Um ponto forte de seu depoimento refere-se à comida, particularmente às quitandas. Observa-se que o ato de preparar a comida era social: “Então, uma vizinha, chamada Afonsina, forneava e ela mandava me chamar, para ajudar a enrolar aqueles biscoitos... Bem do jeito que ela enrolava, eu enrolava. Porque na minha casa, a minha mãe era quitandeira, nós ajudávamos a mamãe, ela fazia doce de quinze em quinze dias... A mamãe forneava tudo quanto era qualidade de quitandas. Interessante que de sal só fazia... só fazia... biscoito. Mais tudo era de doce! Meu pai gostava muito de tudo que é doce. Fazia rosca, só rosca, aquelas roscas que a senhora ia comer rasgava assim feito um embrulho, DO TEMPO de... de macia. Rosca de dois fermentos... Então, fazia bolo de farinha de trigo, fazia bolacha, que eu adoro uma bolacha bem-feita em casa. Que ela fazia aquelas bolachas tão gostosas, que só a senhora vendo, mamãe...! Fazia umas... Nossa vizinha, que era mulher do delegado, fazia umas broinhas de fubá feitas assim: quebra os ovos ali, bate bem, põe gordura ali, põe canela ali, uma meia dúzia de ovos e bate bem.... bate batido com a mão mesmo, ali. Depois ainda engrossava aquelas broinhas com o fubá de milho, vai ficar aquelas broinhas desse tamanho (demonstrando), bem assadinhas, ficavam macias, gostosas. Comia com bicarbonato..., a mamãe aprendeu fazer com essa mulher. Ela fazia e mandava para mamãe uma biscoiteira cheinha daquelas broinhas. Tinha uma tal de broinha que faz com manteiga de leite... gordura, era manteiga de leite, muito gostosa. Fazia aquela porção de quitanda, que ela forneava de quinze em quinze dias. Lá era casa de fazenda, tinha um forno muito bem-feito, muito grande... Ela... é... até hoje, é nisso que eu estava vendo a casa e tudo que tinha lá: aquele forno bem-arrumado... Tinha moinho de moer milho para ter fubá... Nós íamos trocar fubá lá, eu ia com a otra irmã mais nova que eu. Aos domingos, às vezes, nós íamos passear lá, a mulher era italiana, muito boa, ela cozinhava só com cebola de cabeça. Ela fritava a cebola na gordura para refogar a comida, a senhora acredita que era uma comida tão boa que ela fazia, que eu nunca vi mais o gosto daquela comida feita só com cebola, gostosa demais. Nós jantávamos lá, nós íamos passear e jantar. Não deixava nós sairmos sem janta: a mamãe, eu e minhas irmãs.. Então, ela também sempre ia passear lá na nossa casa, era... numa fazendinha, era a casa que o patrão mandou papai fazer e morar, criar os filhos. Lá nós moramos 11 anos naquela casa. Se plantou de tudo quanto foi arvoredo. Primeiro o povo morava nas fazenda num... tempo mesmo! Dava tempo de plantar... plantava laranja, plantava abacaxi e banana, mangueira, e... e enchia aqueles pomares de mandioca, só vendo, aquela fartura! E agora, acabou tudo isso, não é mesmo?” Como bem afirma Halbwachs (1990:54), a memória é individual e social. Quem lembra é o indivíduo. No entanto, a memória individual não está inteiramente fechada e isolada. “Um homem, para evocar seu próprio passado, tem 105 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade.” As palavras dessa mulher evocam um mundo rural, cuja cultura se assentava nas relações primárias, pessoais, de conhecimento mútuo. As festas, os bailes, o preparo da comida, com a conseqüente distribuição entre os conhecidos, faziam parte de relações de compromisso, lealdade, existindo como dádiva, na expressão de M. Mauss. Antes da implantação das usinas canavieiras, quando grande parte da população habitava essa região do Estado de São Paulo, um dos traços culturais dos sitiantes era a troca de produtos – como pedaços de carne de animais abatidos nos sítios, quitandas, doces, polvilho e pamonhas – entre os vizinhos. Todos esses produtos eram considerados iguarias, especialidades que, doadas aos vizinhos, seriam retribuídas, assim que eles as produzissem. Os costumes, assentados nas tradições, solidificavam as relações sociais imprimindo a essas populações um modo de vida com características bem-definidas. A sociabilidade, assentada basicamente na solidariedade, era o substrato para as manifestações simbólicas de todo o grupo social. O cumprimento das promessas pode ser um dos exemplos dessas manifestações. No dia 13 de dezembro era comemorado o dia de Santa Luzia, protetora dos olhos. A festa dessa Santa era feita com base na coleta de donativos dos vizinhos. O beneficiado da graça recebida percorria todos os sítios, levando consigo o quadro com a imagem da Santa, ornado com flores de papel. Ao receber o pagador da promessa, o morador o fazia entrar na casa, levando a imagem a todos os cômodos, à medida que ia pedindo a sua proteção. Em seguida, oferecia-lhe algo para beber ou comer e lhe entregava o donativo, que podia ser em produtos ou dinheiro. No dia da festa, rezava-se o terço com a presença de todos diante da imagem da Santa. Após a celebração, distribuía-se a comida angariada com os donativos. As crenças, as manifestações simbólicas individuais somente tinham sentido porque eram compartilhadas por todo o grupo, e, mais importante, dele dependendo a sanção, para serem validadas individual e socialmente. Pode-se perceber, portanto, a importância do grupo para a vida material e simbólica do indivíduo. Nesse sentido, as lembranças de dona Onícia são definidas pelo meio em que viveu, e, pour cause, ela tanto queria que alguém viesse em seu auxílio para ajudá-la a lembrar, apesar de ter enxergado (sic) “a casa, com o forno bem-arrumado!”. Um outro ponto que merece ser destacado é a lembrança do espaço. Os locais dos bailes, do teatro onde a bailarina se equilibrava sobre o fio de arame, da procissão, da casa que alojava o forno bem-arrumado, eram retratados com muita nitidez não somente pela fala, como também pelos gestos que apontam para a localização. Assim, vale a pena inserir o depoimento de uma outra trabalhadora rural, também falecida, dona Durvalina (70 anos). “Quando eu era católica, eu tinha muita fé, fé nos Santos, em Jesus. Eu freqüentava muito as procissões. Na Semana Santa, havia a procissão dos homens que ia lá pelo estradão e procissão das mulheres que passava pela colônia aqui. Lá longe, as duas se encontravam, lá na encruzilhada. Havia a separação por causa do encontro de Nossa Senhora com Jesus na encruzilhada... Mas, agora, já acabou tudo, há seis anos mais ou menos que não tem mais... também acabou a Folia de Reis. Antes passava a Folia nas casas, agora, não passa mais, eu não sei por que, mas acabou tudo...” O estradão, a colônia, a encruzilhada, da mesma forma que os lugares de dona Onícia, são imagens espaciais que se definem como as marcas do grupo. Na verdade, há uma simbiose entre espaços e grupos, construída pelas marcas produzidas tanto por uns quanto por outros. “Assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, umas às outras, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que, em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças”. (Halbwachs, 1990:143, grifos nossos). As reflexões desse autor são de extrema importância para a compreensão da realidade dos trabalhadores rurais, expulsos do campo e transformados em moradores das periferias das cidades. Como foi dito anteriormente, houve um processo de desenraizamento cultural, em virtude da perda dos substratos materiais para o alojamento das manifestações culturais. Nas cidades, ao terem os espaços reduzidos aos limites da casa, esses trabalhadores perde- 106 A CULTURA NA ESTEIRA ram as condições para as manifestações culturais de dantes. Dessa sorte, essas manifestações culturais, alojadas nos subterrâneos da memória de cada um, são revivificadas a partir da reconstrução desses espaços no nível do imaginário. “A imaginação não é apenas uma construção da mente, é também o meio pelo qual os homens agem sobre eles mesmos, uma ação autoplástica que adquire tanto mais importância quando a ação aloplástica (transformadora da realidade externa) se revela impossível. Com efeito, quando os homens não conseguem mudar o mundo... é toda uma configuração imaginária que se transforma e tenta se adequar às aspirações inconscientes” (Bertrand, 1989:29). O processo de reconstrução do passado, ao levar em conta esses elementos materiais e simbólicos da cultura, atinge um conteúdo político, capaz de ser um importante elo no conjunto de um projeto de transformação social. A fim de acrescentar outros dados a essas reflexões, passa-se à análise das formas de recriação cultural de uma das tradições mais importantes desses trabalhadores, a Festa de Reis. De antemão, cabe lembrar que, em várias cidades dessa região, todos os anos, as prefeituras locais patrocinam as Festas de Reis, que ocorrem no mês de janeiro, as quais contam com a presença de várias Companhias de Reisados não somente do Estado de São Paulo como também de outros Estados.2 Essas festas nas cidades se enquadram naquilo que Nora afirmou antes a respeito da problemática dos lugares. É necessário construir um lugar para elas, pois já não mais existe o lugar das festas. Além dos patrocínios financeiros, contam com a presença da mídia televisiva e, algumas delas, já incorporaram elementos dos sons modernos para atender aos gostos da cultura de massa urbana. Nos limites deste texto não será feita a análise desses lugares, pois se optou por tecer algumas reflexões sobre as Festas de Reis, que, embora sejam em número bastante reduzido, são ainda realizadas pelos trabalhadores rurais nas cidades, cujas tradições são conservadas pela recriação. DO TEMPO canteiros de obras onde os andaimes nunca são desmontados porque a reconstrução cultural nunca termina”. Durante a realização da pesquisa, Mulheres da cana: memórias, 3 tomou-se conhecimento de duas Companhias de Reis, existentes em Leme e Barrinha. No caso de Leme, a maioria dos integrantes da Folia era proveniente da Fazenda Amália, localizada em Santa Rosa de Viterbo, pertencente ao Conde Matarazzo, que, no final da década de 60, foi expulsa juntamente com milhares de outros trabalhadores colonos, em razão de uma greve que, segundo os resultados desta pesquisa, fora uma armadilha arquitetada pelo proprietário dessa fazenda, com o apoio do regime militar, então vigente (Silva, 1998). Com a expulsão, houve uma verdadeira diáspora para os municípios vizinhos, onde os antigos colonos foram transformados em bóiasfrias e obrigados a viver nas cidades. Com o passar dos anos, muitos dos antigos membros faleceram, enquanto outros foram sendo incorporados. É preciso lembrar que essa tradição é transmitida de pai para filho. Portanto, seu desaparecimento foi ocorrendo em razão dos jovens, cada vez mais, aderirem à cultura de massas. As entrevistas com os antigos foliões revelam que os mais jovens não se interessam e, em virtude da bebida, muitos abandonaram a Folia de Reis. Essa mesma situação foi encontrada em Barrinha. Apesar de as letras das músicas diferirem, o sentido da Festa de Reis é o mesmo: ela existe em função das promessas feitas aos Santos para a obtenção de uma graça. Esse fato está manifesto na bandeira da Folia, que se apresenta repleta de roupas de crianças, chupetas, laços de fitas, fios de cabelos, fotografias de pessoas cujas graças foram alcançadas. Esse simbolismo é representativo da recriação contínua dessa tradição, apesar das mudanças havidas. Um outro ponto em comum refere-se ao fato de os donativos para a festa serem provenientes tanto da área urbana quanto da área rural. Isso significa que os integrantes da Folia percorrem os dois espaços. A fim de aprofundar as reflexões sobre a recriação dessa tradição, serão apresentadas, em seguida, a bricolagem feita pelas duas companhias, de Leme e Barrinha.4 A RECONSTRUÇÃO DAS TRADIÇÕES Em Leme (músicas gravadas durante o ensaio da Folia) Em recente artigo, Burke (2001:11), ao comentar sobre o livro A invenção das tradições (Hobsbawn e Ranger, 1984), afirma que, na realidade, não há propriamente uma invenção das tradições e sim uma recriação ou mesmo uma reconstrução, já que o que ocorre não é tanto a criação a partir do nada, mas uma tentativa de bricolagem, de dar novos usos a materiais antigos. Para esse historiador, a cultura é continuadamente recriada, “como uma espécie de Música 1: Deus lhe salve a casa santa/Onde Deus fez a morada/Onde mora o cálice bento /Com a hóstia consagrada/Os três Reis quando souberam/Viajaram sem parar/Cada um trouxe um presente/Pro menino Deus salvar. 107 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 Vou pedir a Nossa Senhora/Para ela abençoar Música 2: Nasceu o menino Deus/para ser nosso salvador/A estrela do Oriente/Onde estão os três Reis Santos/ Vieram os três Reis Magos lá do Oriente/Seguiram viagem pra encontrar o menino Deus/Cada um trouxe um presente/Em viagem ele seguia/Cada um levou um presente Música 3: Nessa hora verdadeira/Os três seguiram viagem/Na chegada nessa casa/Lá no céu deu um clarão/Quando ele adormeceu/Lá no céu deu um clarão/Os anjos de lá desceu/Vou fazer a louvação/Pra fazer a louvação/Vou pedir pro meu patrão/Pra fazer a louvação. Reis chegou aqui com muita paz e alegria/Pra senhora peço licença/Pra entrar a Companhia/Reis seguiu viagem com muita paz e união/Também peço licença /Pra entrar os bastião/Deus te salve, casa santa/Onde Deus fez a morada/Aqui mora cálice bento/E a hóstia consagrada/Lá no céu tem três estrelas/Tem santo prestando atenção no tempo/Que o menino Jesus nasceu/Do sagrado nascimento/Sagrado Nascimento/Onde devemos de adorar/Quando era onze horas da noite/Que os anjos veio rezar/ Espero o sino bater/E havia de se levantar/Nossa Senhora sofredora/Sem ter parteira nem parto/Foi virgem antes de Jesus nascer/E virgem depois do parto/Os três Reis quando souberam/Que ia nascer o menino Jesus/Arriaram seus camelos/E seguiram sua profecia/E antes de sete anos/Fizeram em sete dias/Deus menino podia ter nascido/Num lençol de ouro fino/Para dar exemplo ao mundo/Ele nasceu tão pobrezinho/Nasceu numa manjedoura/Onde boi bento comia/Vinha vaca vaquejar/Vinha mula descobria/Maldição pegou na mula/Que nunca mais deu cria/Os três Reis desceu do céu/Com o livro de São João/Louvando Nossa Senhora/E a Virgem da Conceição/Quem é nascido em Belém/E batizado em Jordão, cantador? (todos) O filho de Maria e afilhado de João/Pois Ave-Maria foi feito em Jerusalém/ Lá no céu cantava os Reis/E aqui nós canta também/De vinte e quatro pra vinte e cinco/Galo serra anunciou/Que ia nascer Deus menino/pra ser nosso Salvador/Os três Reis quando souberam/De viagem lhe seguiam/prepararam os instrumentos/Pra fazer saudação /Na hora do nascimento/Os três Reis foram guiados/Com a estrela que aparecia/Até che- gar em Belém/Ela foi fazendo guia/Deus menino podia ter nascido/Num lençol de ouro fino/Para dar exemplo ao mundo/Ele nasceu tão pobrezinho/Nasceu numa manjedoura/Onde boi bento comia/Vinha vaca vaquejar/Vinha mula descobria/Maldição pegou na mula/Que nunca ela deu cria/Ave-Maria foi feito em Jerusalém/Lá no céu cantaram os Reis/ E aqui nós cantamos também. Pra senhora peço licença/Já fizemos louvação/Os três Reis que lhes abençoam/A senhora e a família. Os ritos são de louvação, saudação, esmola, agradecimento e de encontro das duas bandeiras. O depoimento do embaixador revela traços muito importantes sobre as dificuldades encontradas, dentre elas, o fato de as pessoas não os conhecerem, o que revela a mudança de sociabilidade, fato que, muitas vezes, lhes impede de entrar nas casas. Além disso, as dificuldades de improvisação, em razão do alcoolismo de alguns participantes. Ao mencionar essas dificuldades, lembra de como tudo “era muito mais bonito antes”, ao se referir à fé nos Santos Reis, em razão da cura de pessoas doentes. Reporta-se também ao fato de que, antes, o número de pessoas que participavam era bem maior do que nos dias de hoje. “Na Usina Amália era aquela carreira de casa, que a turma entrava de tarde. A coisa mais bonita é que quando batia numa colônia, outra companhia chegava e pegava de lá pra cá. Era o encontro de bandeira! Nossa Senhora, era gente igual formiga! Chegava o encontro de bandeira. Coisa linda era o encontro de bandeira!! Um embaixador canta de lá, e o outro embaixador canta daqui. Vão cantando, vão cantando, aí vai até trocar esmola. Aí, cruza as espadas, cruza as bandeiras, trocam as esmolas... E aquela segue o destino dela e a outra segue no destino dela novamente. E hoje tá difícil, tá difícil! Cita vários casos de doentes que, pela fé, conseguiram a cura. Para provar que a fé é muito recorrente, afirma que, no final do mês de dezembro, é necessário trocar a bandeira porque ela fica muito pesada em função do número de objetos presos pelos fiéis, porém nunca jogar fora os objetos. Eles são remetidos à sala dos milagres da Basílica de Nossa Senhora Aparecida da cidade de Aparecida. Vale a pena citar um dos casos de cura relatados: “Igual tem uma igrejinha que chama Bonsucesso, na Amália, nós cantamos lá todo ano. Aí, chegamos lá, fomos chegando perto da casa, mas um molequinho desse tamanhozinho assim, saiu correndo fardado... Era um bastiãozinho de Reis: capacete, 108 A CULTURA NA ESTEIRA a máscara dele pequena e coisa e tal... a roupa pintada, (...) na mão. E aquele molequinho juntou com nós. Aquele palhacinho juntou com nós. Chegamos na casa do homem, vamos cantar. E cantando ali, cantando... Aí, paramos de cantar e perguntamos pro homem o que significava aquilo. ‘Olha, isso aí, eu fiz uma promessa pra esse molequinho que ele tinha paralisia infantil... só que eu fiz uma promessa pros três Reis Santos: ou vinha na minha casa, ou não vinha, sete anos ele tinha de vestir isso. E cada ano é um vestuário. Cada ano é uma máscara, cada ano é um capacete, cada ano é um pano de roupa. Então, vocês estão vindo aqui, ele está indo encontrar com vocês.’ Pra nós aquilo foi uma alegria! Uma alegria! Quer dizer que ele fez um pedido pros três Reis Santos e o molequinho sarou”. DO TEMPO ia capturando a palavra desgarrada, criando novos significados, transformando realidade em sonho, sonho em realidade; música que ia acompanhando a bandeira para outro pedaço de rua onde haveria o encontro com uma outra bandeira. Esse é o momento de recriação, de bricolagem de tradições. Duas bandeiras. A dos Santos Reis, aquela que saiu pelo mundo, aquela que ensinou o povo a sair pelo mundo. A de Nossa Senhora Aparecida, aquela que não pode sair pelo mundo. Aquela que não tem foliões. Aquela que tem anjinhos, cumpridores de promessas e portadores de fé. A bandeira de Nossa Senhora Aparecida é uma espécie de convidada para a festa. O encontro das bandeiras simboliza um momento bíblico posterior, momento do encontro de Maria e Jesus durante a Via Crucis. Nesse momento, houve uma superposição de tempos. Nossa Senhora Aparecida, negra, padroeira do Brasil, toma o lugar de Nossa Senhora, mãe de Jesus de Nazaré. Há uma certa antecipação, de antevisão. Uma bandeira que representa o nascimento do Menino Jesus e outra que representa o encontro de mãe e filho no Calvário. Espécie de destino antecipado. Antevisão de um trajeto. Dramatização da vida e da morte, do começo e do fim, permeado pela fé: “Na demora dos três Reis/ Herodes se indignou/chamou seus secretários e seu decreto, decretou/ Que seguisse pra Belém/e que lá fosse matando/e que matasse menino homem/ até a idade de dois anos”. Mais uma recriação. Em geral, as mulheres não são admitidas na Folia. Em se tratando de promessas, elas são admitidas como acompanhantes, sem direito a tocar instrumentos e nem cantar. O pretexto dessas proibições é proteger as mulheres dos comentários sobre sua reputação. Os mestres justificam a restrição afirmando que os Reis Magos não trouxeram as mulheres consigo. Outros afirmam que nenhuma mulher visitou o presépio de Jesus. A presença de mulheres desviaria o sentido da dramatização. (Porto, 1982). Durante a apresentação, compareceram duas mulheres, uma com o pandeiro e outra que participava do coro, cujas presenças transgrediam as normas masculinas. Por outro lado, a bandeira da Santa, junto da bandeira dos Santos Reis, era mais um sinal da recriação dessa tradição por esses trabalhadores. Depois do encontro das duas bandeiras, os participantes se dirigiram ao local da festa, uma barraca montada no meio da rua, onde havia sido erguido um altar para acomodá-las. À medida que os cânticos prosseguiam, os presentes beijavam as bandeiras e, muitos deles, pregavam chupetas, foto- Em Barrinha Tal como em Leme, a Companhia de Reis de Barrinha tem também sua origem rural. O embaixador atual já o era antes de vir para a cidade. Ao descrever a sua participação na Folia, ele lembra que seu pai e seus irmãos passaram a fazer parte dela em razão da doença de sua mãe, paralítica em função do reumatismo. Num determinado dia, quando uma Folia foi até sua casa, seu pai pedira aos Reis que a curassem e, se isto ocorresse, ele e os filhos fundariam uma companhia. Segundo ele, no dia seguinte, após ter beijado a bandeira, a mãe deixou a cama e começou a caminhar. Desde então, ele cumpre a promessa. Durante a pesquisa de campo, foi possível acompanhar a preparação da Festa de Reis, realizada na cidade, na rua onde reside o mestre. Em sua casa, foi servido o almoço, realizado com as contribuições conseguidas durante a peregrinação da companhia na área rural e também na urbana. Depois do almoço, os foliões dirigiram-se à casa da festeira, onde estava guardada a bandeira. A dramatização se iniciava. Os foliões vestiram as fardas, afinaram os instrumentos e cantaram os ritos de louvação. A música mais parecia um lamento. Lamento que ia unindo espaço e tempo, mundo de antes e de agora, corpo e alma, sentimento e dor. Música cheia de palavras reveladas, que parecia semear em cada coração uma mensagem para não sucumbir ao pranto. No momento em que a bandeira, segurada pela festeira, deixava a casa, ela, muito emocionada, chorava enquanto olhava fixamente para as imagens dos Santos. Aos poucos, a música parecia invadir a alma, provocando a calma, a concentração; música que 109 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 grafias, flores, fitas nas bandeiras. Esse ritual continuou até o cair da tarde, quando foi servido o jantar, e, em seguida, houve o baile. Em todos os momentos dos ritos, a música mais parecia um lamento. Um lamento que, simultaneamente, sintetizava um tempo perdido no passado e um vir-a-ser fixado na imagem refletida na bandeira da Folia. Imagem que transcende o mundo destradicionalizado. Imagem fixada na busca da recriação de uma tradição. Um possível real e transcendental.5 A passagem de um modo de vida a outro, como foi visto com esses exemplos concretos, não se faz com a destruição de todos os traços culturais. Na verdade, há um processo de destruição-recriação continuado. Recentemente, na cidade de Altinópolis/SP, durante a Festa de Reis, patrocinada pela prefeitura local, os foliões percorriam as casas, cantavam os ritos de louvação e da esmola, a fim de angariar donativos para o próximo ano. Num desses momentos, quando solicitavam a entrada numa certa casa, o morador lhes informou que a dona da casa havia falecido há alguns meses. Em vista disso, os palhaços retiraram as máscaras, ajoelharam-se diante de uma vela acesa, enquanto o coro pedia a salvação da alma daquela senhora, havendo, portanto, a improvisação dos ritos de louvação. Todas as pessoas presentes da casa, ajoelhadas, seguraram a bandeira participando da celebração. Pôde-se observar que, naquele instante, recriou-se uma sociabilidade, baseada na religiosidade e nos autos de fé entre os foliões e as pessoas da casa. Os demais ritos se referiam ao ano anterior, momento em que, naquele mesmo espaço, a senhora havia recebido a bandeira. Parentes e foliões celebraram a ausência daquela mulher, o tempo passado, por meio da comunhão de valores, que ainda persistiam, baseados na memória de cada um. A presença da Folia naquele espaço representou para a família o detonador das lembranças, até então adormecidas, da participação nas Festas de Reis em outros tempos. perceber que a cultura rural não apenas não desapareceu, como assumiu novos significados, num processo continuado de bricolagem. Ademais da cultura massificadora veiculada sobretudo pela mídia, os rodeios praticamente em todas as cidades do interior paulista caracterizam-se, agora, como as festas dominantes, que atraem pessoas de todas as camadas sociais, inclusive trabalhadores rurais. Os rodeios representam a descaracterização da cultura de antes. O modelo, copiado dos Estados Unidos, possui estilo próprio daquele país: roupas, música country, comidas e assim por diante. Contudo, trata-se de uma festa transformada em mercadoria, da qual participam somente aqueles que podem pagar o alto preço dos ingressos. Não é mais a festa definida como valor de uso, decorrente da sociabilidade primária, da fé nos santos e das promessas realizadas. Os rodeios caracterizam-se pelas relações de estranhamento, pois reúnem pessoas de vários locais, e pela mercantilização da festa. Nesses locais, pode-se presenciar aquilo que W. Benjamin definiu como pobreza de experiência, uma nova espécie de barbárie, de uma nova miséria, referente à interioridade (1987:115 e ss.). Quanto à festa de Reis, os depoimentos e o conteúdo das músicas revelam, ao contrário, uma forma de ação que, no fundo, é um valor, um conjunto de princípios. A mudança da dramatização dos palhaços, diante da notícia da morte da mulher, expressa a concepção da morte como algo valorizado e não banalizado como atualmente. Toda a encenação, ao girar em torno da morte, revivificou a presença, a vida por meio da memória, havendo o entrelaçamento entre vivos e mortos, por meio do simbolismo da bandeira. E. Bosi (1987), ao analisar a memória de velhos, conclui que a memória se constitui numa espécie de ação, de algo vivo, transformador. As andanças dos foliões, o encontro de situações inusitadas, como a do menino portando a farda da Folia em cumprimento à promessa de seu pai, a ressignificação dos cânticos, como a presença da mula, que, em razão de sua atitude, ao descobrir o menino Jesus, selou seu destino de eterna esterilidade, a presença de mulheres na Folia, o encontro da bandeira de Santos Reis com a de Nossa Senhora Aparecida, composta por crianças, vestidas de anjos, em vez de duas bandeiras de Reis, a realização da festa na rua, representam a recriação continuada dessa tradição. E mais ainda. Não se trata apenas da matéria bruta dessa tradição, porém da recriação do fato, modificado, mediatizado, passando pelo processo da mimese, isto é, algo que passa pela ligação entre rememorar e reinventar, entre memória e imaginação e imaginação e desejo (Meneses, sd.). CONCLUSÃO Ao longo deste texto, procurou-se, a partir de evidências empíricas, mostrar a recriação da cultura dos trabalhadores rurais, cognominados bóias-frias, nas cidades, levando-se em conta a recriação da cultura em dois momentos, ou seja, como lugar sediado na memória individual e social e como tradição. Apesar das profundas transformações sociais, políticas, econômicas e espaciais, ocorridas nestas últimas décadas, que afetaram profundamente o modo de vida do mundo de antes, sem contar o domínio hegemônico da cultura de massas, foi possível 110 A CULTURA NA ESTEIRA No que se refere à memória como depositária da cultura, pode-se pensar que se trata de uma memória utópica, de um tempo sem dificuldades, sem conflitos, já que um mundo de fartura é longamente lembrado, sem contar a boa convivência entre seus membros. Seria apenas o saudosismo de um tempo que não volta mais ou uma nostalgia romântica, ou ainda a idealização do passado? Muitos autores já demonstraram que a memória é seletiva e que o silêncio é uma forma de resistência e não de esquecimento (Pollak, 1989). Durante a entrevista, por muitas vezes, d. Onícia, ao se referir rapidamente ao tempo presente, afirmou que as dificuldades da vida “levam a gente a esquecer”. Em relação ao tempo passado, sua biografia revela que há momentos cuja intensidade da lembrança é muito forte, ao passo que outros, simplesmente, não são tocados. Embora não tenha sido objetivo deste texto analisar a história de vida dessa trabalhadora rural, os fragmentos de seu relato, no início apresentados, são muito fecundos para a compreensão de um espaço-tempo que já não mais existe. Os ingredientes utópicos da narrativa – manifestos numa “boniteza, que só a senhora vendo”– representam uma mistura de imaginação, ficção, desejo, enfim, um irreal que constitui o elemento fundante da realidade vivenciada num tempo passado, porém presentificado. Ao trazer para o presente aquelas imagens adormecidas da cultura, a narradora revive-a com adornos, flores multicoloridas, casemiras, vestidos feitos por uma costureira muito famosa em Santo Thomás de Aquino, bolos, broas, formando um caleidoscópio de imagens, músicas e danças, cujos personagens, embora mortos, foram renascidos pela trama da narrativa. Assim sendo, a memória, guardiã da cultura, revelou, a partir da seleção feita pela narradora, sua forma superior, a estética, num verdadeiro ritual de transfiguração, que não se comprimiu nos limites das lembranças individuais, mas retraduziu um contexto sociocultural (que não mais existe?) até então adormecido, tal qual a poesia de d. Iracema: “A Vida de Uma Bóia-fria Iracema: Nasci em 31-7-45, eu sou a quarta da família, sou filha de um sertanejo, nasci no sertão, até os 13 anos era uma vida muito linda, não enxergava perigos, não tinha medo, não tinha ilusões, nós éramos muito felizes, nós planejávamos passeios, para a mata levávamos um facão para marcar caminhos, um saco para trazer frutas silvestres, nós conhecíamos todas as frutas e nós comíamos raízes, ou chupávamos o caldo e conhecia pela folha, bebia água de urtiga ou de taguara, sabia orações para não encontrar com cobras, procurava mel de várias espé- DO TEMPO cies bem como mirim, tichiguana (sic), irapuã, jataí, e outras que davam debaixo da terra, conhecia o nome das madeiras de lei, também as que eram boas para queimar e para fazer casa e que não apodrecia fácil. As frutas eram demais, umas mais gostosas que as outras, uvaia, pitanga, cereja, amora, a branca era melhor ainda. O broto era remédio, vacum, arretia (sic), sete-capote, gavejú, pinhão, banana-debugre, batata, pepino-de-veado, bago-de-raposa, jaracatiá, sem contar os cocos e palmitos. As abelhas Europa eram nossas amigas. Eu subia nas árvores mais altas para disputar quem conseguia subir mais alto ou pegar uma fruta, que estivesse na ponta da árvore...” Poder-se-ia perguntar: Onde está o presente (n) A vida de uma bóia-fria? NOTAS E-mail do autora: [email protected] 1. As pesquisas realizadas durante este tempo analisaram, num primeiro momento, o processo de constituição do proletariado agrícola da região de Ribeirão Preto, levando-se em conta a articulação entre categorias, classe, gênero, raça/etnia e migrantes temporários. Em virtude do avanço tecnológico atual, definido pelo descarte de milhares de trabalhadores, a investigação tem se voltado para os estudos de memória e a precariedade dessa força de trabalho. 2. No mês de janeiro de 2001, a prefeitura de Ribeirão Preto/SP, por meio da Secretaria da Cultura, destinou uma verba para a apresentação de 50 Companhias de Reis, provenientes de cinco Estados: Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Minas Gerais, além do Estado de São Paulo. Cinco das Folias eram da própria cidade. Segundo alguns entrevistados, essa tradição está desaparecendo em razão do desaparecimento dos foliões que se entregaram ao alcoolismo. Na cidade de Altinópolis/SP, todos os anos acontece o encontro das Companhias de Reis, principalmente daquelas provenientes de Minas Gerais, que dura dois dias e tem o apoio da prefeitura local. (Folha de S.Paulo, 28/01/2001). 3. Esta pesquisa contou com o auxílio financeiro da Fapesp e a concessão de bolsas pelo CNPq. Abrangeu o estudo de memórias com trabalhadores e trabalhadoras rurais da região de Ribeirão Preto/SP. Foi possível recuperar, por meio da memória como metodologia, a história do mundo do trabalho rural de mais de meio século dessa região (Revista Fapesp, fev. 2001). 4. Por definição, a Folia de Reis é uma festa cristã que lembra a visita dos três reis magos – Gaspar, Melchior e Baltazar – a Jesus, em Belém, quando levaram presentes como ouro, incenso e mirra. No Brasil, a festa foi trazida pelos portugueses na época colonial. Um grupo de pessoas, com homens representando os três magos, vai de porta em porta nas casas, cantando e acompanhado de viola, cavaquinho, pandeiro, caixa, representando pequenas peças teatrais em troca de refeições e esmolas, que são utilizadas na Festa de Reis no dia 6 de janeiro. Geralmente, o grupo anda à noite e canta nas portas das casas, acordando seus moradores. A Folia de Reis é composta de três grupos: o bandeireiro, os palhaços e o coro. Todos são dirigidos pelo mestre, que é a pessoa mais importante da Folia, sendo também conhecido como embaixador. É o mestre quem improvisa os versos a serem cantados. O contramestre é o respondedor. Sua função é comandar o coro. Há também o ajudante de respondedor, que equivale ao tenor, o requinta, que é a voz mais característica de uma Folia. Entra em resposta ao último verso de uma Folia. O bandeireiro tem a função de carregar respeitosamente a bandeira, o maior símbolo da Folia. Apresenta-a ao chefe da casa que a leva a todos os cômodos, enquanto a Folia agradece e recebe os donativos. A bandeira é a representação dos três reis. Ela vai sempre à frente, seguida pelos representantes dos pastores que seguiam os Reis Magos. Os palhaços, com suas danças, representam o momento de distrair as tropas de Herodes, enviadas para matar o menino Jesus. O coro é constituído por tocadores de instrumentos e pelos cantores. As 111 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 roupas dos foliões são chamadas fardas. O trajeto de uma Folia é definido pelo mestre. A dança é o cateretê e o balanceado. BURKE, P. “Bricolagem de tradições”. Folha de S.Paulo, Cad. Mais, 18/03/2001. 5. Tratando-se de um bairro de trabalhadores rurais, muitas pessoas apenas se mantiveram às portas de suas casas, enquanto os foliões passavam. Durante a celebração no altar improvisado, também não era grande o número de participantes. Inquirido sobre as razões da não-participação dessas pessoas, o mestre disse que muitas delas, ao aderir às seitas dos pentecostais, eram proibidas de participar dos rituais católicos. Quanto aos jovens, muitos deles consideravam essas festas estranhas aos sons e ritmos veiculados pela cultura de massa, principalmente a televisiva, e, por isso, não consideravam que a festa era deles, embora a observassem a distância. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. FOLHA DE S.PAULO. C-5, 28/01/2001. HOBSBAWN, E. “A invenção das tradições”. In: HOBSBAWN, E. e RANGER, E. (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. 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