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GOIANA: município do Agronegócio
Vera Lúcia Costa Acioli
Valéria Santos
O nome Goiana, segundo o historiador Varnhagem,1 é de origem indígena e significa
"guaya", gente, e "na", estimada, portanto, gente estimada. Como tantos outros municípios
pernambucanos foi o município de Goiana, primitivamente habitada por índios - caetés e
potiguares - e suas terras concedidas através de sesmarias a Diogo Dias e Boa Ventura Dias.
A fundação de Goiana enquanto núcleo urbano não difere das demais vilas e cidades
do Brasil. Sua população inicialmente fixou-se ao redor da capela sob a invocação de Nossa
Senhora do Rosário de Goiana. Em 1568 foi elevada a freguesia (jurisdição eclesiástica) por
ocasião da visita a Pernambuco, do então bispo do Brasil, D. Frei Antonio Barreiros e tornou-se
distrito da capitania de Itamaracá, tendo sido, algumas vezes, cabeça da capitania.
Em 1633, três anos após a invasão dos holandeses a Pernambuco, 400 homens guiados
por Calabar, invadiram Goiana e queimaram quatro engenhos, muitos canaviais, retiraram os
índios das aldeias e fizeram prisioneiros os moradores do povoado.2 Em 1640 houve um
confronto entre a esquadra de D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, e a esquadra
holandesa, comandada por Willen Corneliszoon, em uma localidade entre Goiana e a ilha de
Itamaracá, combate imortalizado em gravuras de Frans Post. Em 24 de abril de 1646 as
mulheres de Tejucupapo, distrito de Goiana, venceram aos holandeses munidas do que tinham
a seu alcance - paus, pedras, panelas e água fervente, episódio lembrado no imaginário
popular goianense como “heroínas de Tejucupapo". Permaneceu Goiana sob o jugo holandês
até a sua expulsão definitiva em 1654.
O século XIX disseminou os ideais iluministas no Brasil, e esses, chegaram às
províncias do Norte povoando as mentes da elite intelectual pernambucana dividida há esse
tempo entre centralista e federalista. A conjuntura política pernambucana rígida e
dicotomizada fermentaram os movimentos de rebeldia ocorridos próximos à ruptura dos laços
coloniais. À Independência do Brasil, antecederam dinâmicas políticas em Pernambuco que
pressupunham um país livre, sem amarras coloniais, sem rei, mas que levou para o centro das
discussões e dos conflitos uma disputa interna. O motor revolucionário pré 1822, por meio dos
“homens bons” pernambucanos, partiu da não aceitação das determinações da Corte do Rio
de Janeiro.
Os “liberais” de Pernambuco passaram a acompanhar as idéias da Revolução do Porto
que acenavam com a possibilidade da criação de Juntas Governativas. Viam com a efetivação
desses espaços de poder um caminho à recomposição do poder local, fragmentado pelo
estabelecimento do poder no Rio de Janeiro. Das rebeliões de viés iluministas ocorridas em
Pernambuco entre 1817 e 1922 a cidade Goiana deve ser recortada como uma importante
protagonista. Foi berço de muitos vultos da revolução de 1817 e, em 1822, palco de novas
articulações de milicianos, plantadores e ex-rebeldes, presos políticos de 1817, que, à época,
anistiados, se instalaram na vila, fronteira com a Paraíba. Essa composição social diversificada
promoveu uma ruptura com o governo provincial de Luís do Rego e sua Junta Governativa
instalando a Junta Provisória de Goiana, sob o comando de Francisco de Paula Gomes dos
In GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de
Pernambuco, 3 vols., Recife: Governo de Pernambuco/CEPE, 2006, vol. I, p.281.
2 Idem.
1
2
Santos, rico plantador que perdera quase tudo na revolução de 1817 passando a ganhar a vida
como advogado3.
Conformação político, espacial e econômico de Goiana
Quando o Conselho Geral do governo da província de Pernambuco instituiu em 20 de
maio de 1833, nove comarcas para melhor administração da justiça, uma delas foi em Goiana
que no ano seguinte teve como seu primeiro Juiz de Direito o Dr. Joaquim Nunes Machado,
figura insigne da historiografia pernambucana. Em 5 de maio de 1840 Goiana foi elevada a
cidade e constituído município de 1 de março de 1893, quando, com o advento da república, a
província de Pernambuco como as outras que compunham o país, passa a Estado de
Pernambuco, dividido em municípios com autonomia legislativa - Conselho Municipal - com
prefeitos e vice-prefeitos, direito de organizar seus regimentos internos, códigos de posturas,
orçamentos de receita e despesa e criação de suas guardas municipais.
Em 1894, não tendo Pernambuco, novo Estado da Federação, uma estatística rural
pela qual se conhecesse a extensão e a qualidade das terras pernambucanas, as espécies de
cultura, máquinas, instrumentos empregados, número de trabalhadores, quantidade da
colheita e seu produto, o então governador, Alexandre José Barbosa Lima, procurou através de
ofícios circulares conseguir informações sobre a exata arrecadação das rendas públicas a fim
de planejar melhor a abertura de estradas e caminhos, segundo os interesses e necessidades
do território sob sua gestão. O Ministério Público do Estado ajudou na reconstituição desses
dados através de seus promotores, não só defensores intransigentes da lei, mas partícipes do
cotidiano das municipalidades com seus relatórios e testemunhos privilegiados. Os promotores
públicos ressaltam em cartas aos superiores hierárquicos, as dificuldades ao preencher os
questionários enviados pelo governo, sobretudo, pelo temor dos comerciantes e produtores
agrícolas e de criatórios por acharem que as investigações tinham um fim oculto, o imposto4.
Levando-se em conta o arrojo de tal empreendimento, mesmo com a falta de várias
informações, alguns dados da economia do Estado de Pernambuco podem ser salientados: a
cana e o algodão são os gêneros mais cultivados, com exceção dos de subsistência (mandioca,
feijão, milho); na zona do sertão as fazendas criavam na sua maioria, bezerros, bodes e
carneiros; as exportações dos excedentes iam para o Recife e as importações dos gêneros de
que necessitavam vinham desta mesma cidade ou transitavam nos municípios a caminho de
outros centros consumidores.
Goiana, município de nossa escrita, possuía nos fins do século XIX, 73 engenhos, dos
quais 9 eram movidos a água, 3 por animais e 61 a vapor; exportava 10 milhões de quilos de
açúcar e produzia rapadura. As vias de comunicação, principalmente as pontes e as estradas
férreas, apesar de “sofríveis”, foram construídas pelas usinas para atendê-las no transporte do
açúcar, a exemplo da Usina Santa Tereza que tinha via férrea particular e pátio ferroviário
implantado em suas terras (linhas, desvios, estações e armazéns).
Os principais transportes em Goiana eram a via férrea, as barcaças e o lombo dos
animais; o município importava produtos de consumo vindos de municípios vizinhos, Nazaré,
Timbaúba, Itambé e da Paraíba; produzia para consumo interno: milho, feijão, mandioca,
cacau, arroz, fumo, coco, batata e cal; só exportava açúcar; e as madeiras eram abundantes no
município: Jacarandá, Amarelo, Cedro, Pitiá-marfim, Peroba, Pau-santo, Louro, Sapucaia,
Angico, Angelim e Jucá5.
3
CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco,
1817-1824. Revista Brasileira de História. vol. 18 n. 36 São Paulo 1998. On-line version ISSN 1806-9347.
4
APEJE, Coleção Promotores de Justiça, PJ 25, fl. 140/141v.
5
APEJE, Coleção Promotores de Justiça, PJ 25, fl. 335/337.
3
As primeira décadas do século XX encontra Goiana com uma lavoura dirigida,
sobretudo, ao comércio interno. Segundo informações de Sebastião Galvão6. A cidade possuía
um maior número de engenhos do que na informação anterior dos promotores (91 por ele
enumerados), uma usina e duas destilarias e restilarias7 a vapor. Sua principal indústria era o
fabrico do açúcar, o comércio de exportação era o de açúcar bruto, algodão em rama,
aguardente, melaço, couros salgados, sementes de carrapato, cereais e abacaxis; o comércio
de importação em gêneros de consumo, nacionais e estrangeiros, era exercido por
estabelecimentos de retalho bem sortidos. Nas safras regulares o açúcar atingia a cifra de 30
milhões de quilos, e levando-se em conta os dados anteriores (século XIX) dos promotores nos
relatórios supracitados e os oferecidos por Galvão, cerca de 50 anos entre eles, a produção do
açúcar tinha triplicado em Goiana.
Goiana no século XX de casos contados, do caso eu conto como caso foi,
memórias de um defensor público8
Apanhar os contextos sociopolíticos e o econômico do estado de Pernambuco, seja ele
moldurado pelo período colonial, republicano, ou contemporâneo, é vê-lo através dos
objetivos do agronegócio. Goiana não foge a essa generalização. Como um espaço territorial
de concessão colonial seguiu o planejamento do sistema mercantilista português que se
rebuscou no exclusivismo comercial e na monocultura exportadora. Goiana constitui-se
historicamente na Capitania de Itamaracá, tornou-se cidade, entre rupturas e muitas
permanências, que acompanhando o modelo original de administração portuguesa,
materializou pelo uso da força, a partir do poder da terra concedida.
Assim, a cidade adentrou o cenário brasileiro do século XX ainda inserida em um
contexto de ruralidade, não se furtando, entretanto, de urbanidade principalmente a partir de
seu centro de administração pública, comércio varejista e a área absorvida pela FITEG9 e sua
vila operária. As problematizações levantadas a partir de análises das décadas de 1960 a 1970
nessa pesquisa mostram, contudo, que Goiana foi alicerçada principalmente com as vigas da
produção dos derivados da cana de açúcar. Mas, como já citado, também foi permeada, em
menor intensidade, no que tange as dimensões laborais pelo espaço têxtil e na
contemporaneidade pela produção do papel10.
Entretanto, os meios de produção que dominaram o espaço goianense no século XX,
urbano ou rural, estiveram longe de delegar ao município o mesmo destino oriundos das ideias
revolucionárias, libertadoras vividas no século XIX, tempo de resignificação de direitos. A
cidade que carregou o título de a mais próspera cidade da Província11, devido à produção
açucareira e ao seu comércio à moda portuguesa, entrou no século XX predestinada à inércia
frente às práticas arcaicas de suas elites, seja patronal, seja política, ou ainda pela
incapacidade de se impor de limites entre o público e o privado. Goiana inicia o século vinte
6
GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, citado, p.
288/289.
7
Restilado, destilado pela 2ª vez.
8 CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto, como o caso foi: da Coluna Prestes à queda de Arraes:
memórias. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
9 FITEG: Fábrica de Tecidos de Goiana fundada...
10 Klabim – Ponza: No ano de 1969 chega a Goiana uma indústria ligada à produção de papel –
a Florestal, Papéis, Embalagens de Papelão Ondulado e Sacos Industriais do Grupo Klabin. A
Klabin, que é ainda o maior produtor de papel do Brasil, inaugurou em 1973 sua décima sétima
unidade e passou a produzir celulose a partir do bagaço da cana, transformado em papelão. A
fábrica na década de 1960 ficou conhecida no município como a fábrica de Papelão Ondulado
do Nordeste S.A.- PONSA.
11 Idem. CAVALCANTI.
4
com a gestão de mais um Albuquerque mesclado à genealogia Maranhão, também
representante dos latifundiários, o Methódio Romano de Albuquerque Maranhão que assume
a prefeitura da cidade em 190712.
Goiana ao longo dos anos foi dominada por poucos donos com muitas terras. As
famílias latifundiárias quando não se alternou na gestão política municipal a controlou de
perto, apesar do caráter absenteísta de sua permanência na cidade, local onde retornavam
apenas para olhar os negócios. Como um modelo de município nordestino, essa cidade
atravessou os anos retardando a consolidação legalista trabalhista com formação de mão-deobra assalariada, mas permaneceu com práticas análogas à escravidão perpetuando a
desigualdade social como forma de controle social.
Com práticas de gestão política, social e econômica destituídas de visão
empreendedora, vendo-as fora de uma conjuntura de modernização imposta nacionalmente a
partir de 1930, o negócio da cana de açúcar levou a cidade à estagnação de suas atividades
produtivas expondo-a inerte ao deslocamento para o sudeste do centro hegemônico13 do
poder alicerçados nas dinâmicas modernizantes de produção daquela região e com ele os
investimentos do Estado brasileiro.
Paulo Cavalcanti relembra sua experiência - como promotor público de Goiana,
afastado por desagradar os “homens bons” – e diz que a cidade era um espaço de luta
desigual, lugar onde cotidianamente travou embates - face a face com os latifundiários - os
donos da terra, da lei e do povo, em nome de uma população carente. As práticas de
desmando chegavam, não raro, a violência e muitas vezes a morte, onde os algozes se
utilizavam de sua teia protetora, seja um magistrado corrupto e omisso, um pantagruel
religioso ávido pelo ofertório e protetor das causas das boas famílias goianense, um delegado
bem pago e de vista grossa, capangas e vigias tidos como “trabalhadores rurais”, homens de
confiança das elites patronais, mas que carregavam a função de assassinos, tal qual o vigia da
Usina Santa Tereza, Lindolfo Aleixo de Barros14.
Toda essa burocracia informal e institucionalizada agia como máquina de correção
social, com poderes para legitimar as arbitrariedades dos latifundiários, ora atestando mortes
violentas como naturais – os cadáveres vinham dos engenhos ou das usinas com um bilhete
pregado ao corpo: morreu de baço ou morreu de fígado, ora promovendo o casório de papeis
passados das moças que tiveram a infelicidade de cair nas graças dos filhos do poder. As
vicissitudes da história de Goiana, como município de Pernambuco frente às práticas de poder,
mandos e desmandos dos donos da terra, tão contraditória daqueles tempos de ideais liberais
do Período Imperial brasileiro, é descortinada nas memórias de Paulo Cavalcanti:
A monocultura da cana de açúcar, porém, reduzirá a cidade a um espectro
do passado, mantendo antiquados seus padrões de desenvolvimento.
Goiana agora vivia a sombra da Usina Santa Tereza e da Usina Maravilhas,
além da fábrica de tecidos expandindo-se por suas ruas. Ao contrário dos
senhores de engenhos que moravam na cidade (...) os usineiros residindo na
capital, não mantinham o menor vínculo de relacionamento com o povo.
15
(...). De um deles, Dinis Perilo , costumava-se dizer que, ao passar pelas
ruas da cidade rumo à casa grande de sua usina, tapava as narinas com um
lenço e levantava os vidros de seu carro, tal ojeriza que tinha pelo povo de
Goiana.
12
Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/32397693/5/SECULO-XX. Acesso em 28/07/2012.
Frações de Capital em Pernambuco: do isolamento relativo ao limiar da integração produtiva. (UNICAMP).
Disponível em: http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/eventos/forumbnb2011/docs/2011_fracoes.pdf. Acesso em:
28/07/2012.
14
CAVALCANTI. Op. Citada.
15
Dinis Peryllo de Albuquerque Melo.
13
5
No final do século XIX, os Albuquerques, na pessoa de Dinis Peryllo de Albuquerque
Melo, o senhor de engenho citado por Cavalcanti, fundou a Usina Maravilhas. Em 1929 vendia
a propriedade para Arthur de Medeiros Carneiro que também dono da Companhia Açucareira
Goiana e do Textifício Santa Maria Ltda - Fábrica do Zumbi, localizada no Recife, na Avenida
Caxangá. A família Carneiro construiu um império agrário em Goiana e o fez transcender ao
município. Sua fábrica de sacos alicerçava a produção de açúcar à medida que atendia as
demandas produzindo sacos para o transporte do produto final para toda a rede agroaçucareira.
O complexo agro-fabril era atendido por uma ferrovia dentro das terras da Usina com
60 km de extensão, também de propriedade da família. A concentração de terras, capital e dos
meios produtivos durou setenta anos, não terminando ai, apenas sendo realocado a outro par
na década de 1980 – os Lundgrens, e destes a Andrade Queiroz, em 1990.
Fonte:
http://www.estacoesferroviarias.com.br/ferroviaspart_norte/efnsmaravilhas.htm.
Acesso em 27.07.2012.
Dos casos memorialísticos de Paulo Cavalcanti salientamos outro espaço de produção
de derivados da cana de açúcar, outro latifúndio monocultor existente nas terras goianenses
no período analisado, a Usina Santa Tereza que a partir de 1937 foi para as mãos do Grupo
João Santos. Em 1910 o coronel Francisco Vellozo de Albuquerque Melo, João Joaquim de
Mello Filho e José Henrique Cézar de Albuquerque - firma Mello, Vellozo & Cézar estabeleceram a usina que também possuía uma linha férrea para escoar a produção16.
Transformada em Companhia Agro Industrial de Goiana, a Usina Santa Tereza passou a ser
controlada por João Santos e sócios17.
Assim, passou a usina Santa Tereza a fazer parte da Companhia Agro- Industrial de
Goiana, criada a partir de permanências históricas na qual os Albuquerques são seus donos
fundadores. Essa condução história pressupõe um entendimento de que as práticas de
produção de trabalho e capital, nesse município, ficaram praticamente controladas pelo braço
do agronegócio, dividindo-se apenas com a FITEG, empresa comandada por um coronel, José
Albino Pimentel, apontado como sendo o maior corruptor das autoridades de Goiana18.
Usina Santa Tereza – Goiana - PE: Possuía na década de 1929 uma ferrovia com 60
quilômetros, cinco locomotivas e 200 carros, que transportava a cana e o álcool até o porto.
Disponível
em:
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=
154&Itemid=1. Acesso em 28/07/2012.
17 Ibidem.
18 CAVALCANTI. Op. Cit, p. 210.
16
6
Os processos trabalhistas como fontes da história de Goiana
Do estudo do município de Goiana, tendo como fonte os processos trabalhistas da
extintas Juntas de Conciliação e Julgamento da 6ª Região19 é possível observar a não
observância de práticas laborais diversas. As demandas à Justiça trabalhista emergem em
Goiana por desrespeitos às leis trabalhistas vigentes resultando em contendas conflituosas nas
quais se fez e se refaz a precarização das relações de trabalho. Através dos processos
trabalhistas da JCJ - GO é possível entender o fosso social criado e mantido pela teia patronal,
em sua insistente e irracional forma de produção de capital.
Goiana, como outros municípios do Nordeste brasileiro, ou ainda, como Norte agrário,
esteve envolta e carregou pelos tempos as máculas da resistência de suas elites produtoras, e
mesmo tendo vivenciando uma transição “modernizante” em suas unidades produtoras de
açúcar, saindo dos engenhos às usinas não se fez acompanhar das mudanças necessárias nas
práticas de gestão capitalistas contemporâneas. Ficou o município arraigado as suas dinâmicas
de produção arcaica e colonial, fechou-se em cerco regional não pressupondo transformações
efetivas e definitivas frente às demandas de modernização impostas.
Fábio Lucas Pimentel, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de Campinas
(UNICAMP), problematiza por meio de análises ligadas ao desenvolvimento e a integração
econômica do Nordeste, a trajetória da elite pernambucana agrária e sua incapacidade de
adaptação e transformações em seus meios de produção resultando na perda de poder
hegemônico econômico e político.
O caso nordestino, especialmente o pernambucano, é emblemático para
ilustrar as possibilidades de diversificação. A dinâmica do açúcar e a
predominância do capital mercantil propiciaram o desenvolvimento da
atividade têxtil na região, exatamente nas últimas décadas do século XIX.
Usineiros e comerciantes eram, ao mesmo tempo, proprietários de
importantes estabelecimentos têxteis, o mesmo sendo válido para
industriais têxteis que passaram à condição de usineiros e comerciantes. A
despeito de promover alguma diferenciação na divisão social do trabalho –
leia-se, de ter tido acesso a uma base de acumulação originária capaz de
sustentar alguma diversificação – não se logrou romper no Nordeste a
autarquia do processo típico de produção regional, que repousava na
20
utilização de mão-de-obra [análoga a escravidão] escrava.
A face da violência no município de Goiana, exercida desde a sua origem até a
contemporaneidade por uma conjuntura de extrema desigualdade social, quase sempre
emergiu de movimentos sociais que buscavam direitos e cidadania. No dia 04 de novembro de
1998 canavieiros do município participaram de uma greve, junto ao seu sindicato, pleiteando
por condições digna de trabalho e melhoria salarial. A reação dos empregadores fez-se no
Desde 1932 as Juntas de Conciliação e Julgamento existiam atuando como órgãos
administrativos da Justiça do Trabalho. Em 1946, o Presidente da República Eurico Gaspar
Dutra usando as suas atribuições impõe o Decreto-Lei nº 9.7971 que dispõe a justiça
trabalhista como órgão do Poder Judiciário, compondo-se pela 1ª; 2ª e 3ª instâncias
respectivamente: as Juntas de Conciliação e Julgamento, o Tribunal Regional do Trabalho e
Tribunal Superior do Trabalho. Inicialmente faziam parte do TRT 6ª Região cinco Juntas
Conciliação e Julgamento de Pernambuco ( JCJ 6ª Região – PE) sendo acrescidas outras na
medida em que as demandas trabalhistas aumentavam.
20
Grifo nosso.
19
7
modelo colonial e resignificou mais uma vez a barbárie patronal. Adentrando os canavieiros
(em número de 80) e o órgão de classe nas terras da Usina Santa Tereza, encontraram um
bloqueio à frente e logo se fez uma emboscada, às costas, ocasionando ferimentos em 13
trabalhadores e a morte do trabalhador rural da Usina e do canavieiro Luís Carlos da Silva, de
27 anos, casado, pai de dois filhos e empregado da Usina Santa Tereza. A juíza Mariza Silva
Borges denunciou a participação de policiais militares e de vigias da empresa21.
Assim, a documentação da Justiça do Trabalho de Pernambuco – TRT-6a Região,
tutelada à Universidade Federal de Pernambuco, compõe-se como mais um caminho à análise
desse espaço rural dialético no qual patrão e empregado, expõem em suas práticas laborais,
através das narrativas processuais das reclamações trabalhistas, que posta à intervenção
histórica podem recompor a História de Goiana, dos seus sujeitos e do seu espaço. A extinta
Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana22 atendia jurisdicionalmente até o município de
També, num primeiro momento, estendendo sua ação aos municípios de Camutanga e
Ferreiros, no ano de 1989.
O laboratório do Projeto Memória e História TRT-6ª Região/UFPE23
Na atualidade três questões, quando respondidas, justificam a conservação
documental frente a sua problematização na produção de conhecimento. Interroga-se sobre o
que preservar, o porquê preservar e a função social da informação preservada. A guarda
consciente na contemporaneidade lastreia-se na Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe
sobre a guarda racional dos arquivos públicos e privados. Em seus três primeiros artigos se
expõe o escopo das diretrizes legislativas impostas aos lugares de gestão de documento e no
capítulo II, recorta-se especificamente essa dinâmica no âmbito da esfera pública. Neste
capítulo incorpora-se o atual Laboratório do Projeto Memória e História da TRT-6/UFPE,
espaço que abriga a massa documental das extintas Juntas de Conciliação e Julgamento de
Goiana e também de outros municípios pernambucanos.
O Projeto Memória e História se corporificou no lastro dessa proposta normatizada de
âmbito nacional de rememoração. Os primeiros passos desse laboratório de pesquisa só foram
possíveis devido a um criterioso trabalho de produção técnica-acadêmica que envolveu
competências interdisciplinares, com trânsito nas áreas de Arquivística, História e Direito.
Disponível em: http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/mobile/noticia/84854.php. Acesso
em 04.01.2012.
22 A Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana ( JCJ-GO) foi criada em 12 de julho, 1962, a
partir da Lei 4.088 juntamente mais sete Juntas de Conciliação e Julgamento: a 4ª e 5ª do
Recife, Jaboatão, Nazaré da Mata, Caruaru, Escada e Palmares.
23 A HISTÓRIA POR TRÁS DA HISTÓRIA. Em meados de 2004, um grupo de pesquisadores do
Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco tomou conhecimento de
uma grande quantidade de processos trabalhistas que iria ser doada, para reciclagem, ao
Hospital do Câncer. O consciente perigo do descarte de uma fonte de memória de inestimável
importância à nossa história social, política, cultural e econômica imediatamente gerou uma
mobilização e uma resistência contra tal doação. Iniciou-se, destarte, uma negociação entre a
Comissão de Documentação do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região e os professores da
UFPE, no intuito de preservar integralmente tão precioso acervo documental. Foi, em
decorrência, firmado um convênio entre o TRT e a UFPE em 2004, e, em 2006, coleções de
processos trabalhistas passaram a ser destinadas a esta instituição de ensino. Designou-se
como gestora da documentação a Pós-Graduação do Departamento de História, e o projeto tem
por atuais coordenadores o Professor Antônio Torres Montenegro e a Professora Vera Lúcia
Costa Acioli, além de uma equipe interdisciplinar de bolsistas, amparada pela FACEPE, NEAD e
ICCA.
21
8
Como resultado tem-se hoje mais um local especializado da memória justrabalhista do Estado
de Pernambuco das décadas de 50 a 8024.
Os processos trabalhistas do município de Goiana, analisados historicamente, ao findar
a parceria de cooperação técnico-científica com o NEAD e IICA, estarão em plena dinâmica de
gestão documental, higienizados, digitalizados, catalogados e postos à socialização. O acervo
também se comporá de produções escritas como catálogos descritivos25, dispositivos
informacionais existentes em banco de dados e em coleção com fotos em formato JPG dos
processos digitalizados. As informações poderão ser acessadas virtualmente no endereço
eletrônico – www.memóriaehistoria.trt6.gov.br.
Da intervenção histórica realizada tem sido possível descortinar relações trabalhistas
precarizadas que nos tem conduzido ao entendimento do sentido que o trabalhador dá ao seu
trabalho26, sentido da sua própria existência. Nessa linha analítica tentamos compreender as
dinâmicas de sobrevivência como práticas de resistência como classe e como cidadão, ou
melhor, como o último cidadão27.
Observar-se nos recorrentes conflitos entre o trabalhador rural da zona da mata
canavieira e os donos desse agronegócio, sempre as voltas com o costumeiro jargão de
mandá-los “ir embora para procurar seus direitos”28, transformações sociais que se
desdobraram em uma trajetória de cultura e de direito29. Do que pensávamos ser
desconhecimento ou desinformação dos direitos trabalhistas pelos próprios trabalhadores,
muitas vezes não assistidos pelos seus órgãos de classe, tem-se visualizado, no acesso à Justiça
trabalhista e nas narrativas testemunhais, a concretização de efetivos pleitos, não raro
motivados pela despedida indireta ou falta grave do empregador - artigo 483 da Consolidação
das Leis do Trabalho. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida
indenização quando:
a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons
costumes, ou alheios ao contrato;
b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;
c) correr perigo manifesto de mal considerável;
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;
e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo
da honra e boa fama;
f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima
defesa, própria ou de outrem;
g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar
sensivelmente a importância dos salários.
Entre as distintas modalidades que culminam com o término do pacto trabalhista, é de
considerável importância e freqüência a prática da despedida arbitrária e sem justa causa, que
consiste na quebra do contrato de trabalho pelo empregador, como uma ação unilateral,
independente da vontade do empregado.
MONTENEGRO, Antonio Torres e Acioli. Acervos Documentais do Departamento de História
da UFPE: da colônia a atualidade. In: Estudos Universitários, revista de cultura/[ Pró-Reitoria de
Extensão da UFPE]. – Vol. 1, n.1, (1962). Recife: Ed. Universitária da UFPE.
25 Catálogos descritivos e planilhas com informações levantadas no acervo do Projeto Memória/
História TRT6/UFPE, por meio de processos trabalhistas do município do Goiana de 1963 a
1973, entregues ao NEAD/IICA como produtos do convênio de 2009.
26 ANTUNES, Ricardo L. C. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.
27 HOUTZAGER, Peter P. Os últimos Cidadãos: conflito e modernização no Brasil rural (1964 1995). São Paulo: Globo, 2004.
28 Laboratório do Arquivo do Projeto Memória e História – convênio TRT 6ª Região – UFPE. JCJ Goiana - Proc. nº 0229/66.
29 GOMES, Angela de Castro. Direito e cidadania: memória, política e cultura. Angela de Castro
Gomes (coord.). R J: Editora FGV, 2007. p. 9.
24
9
Um entendimento que vem se construindo das leituras processuais do município de
Goiana é o do pedido de reintegração com vantagens30 pelo trabalhador demitido. Das
análises feitas chega-se a uma maior compreensão da amplitude que esse pedido, de retorno a
lida, representa para o trabalhador rural, apesar da vivência cotidiana em espaço31 laboral
permeado de práticas desumanas.
As reclamatórias carregam em seu bojo relatos de trabalho e vida que expõem
trajetórias de resistência e de sobrevivência. Em áreas cujo domínio agrário é concentrado a
poucas famílias ou grupos, o pleito reintegratório é uma constante, mesmo após a
incompatibilidade de convivência laboral. Os processos em que se expõe o pedido de
reintegração, não raro, estão carregados de informações subliminares, que desvirtuam o
vínculo laboral e agudizam a precariedade das relações do trabalho no campo.
Em janeiro de 1966, no município de Goiana, um trabalhador rural, analfabeto
apresenta uma reclamatória contra a Companhia Agro Industrial de Goiana, proprietária da
Usina Santa Tereza, na qual diz ter sido demitido injustamente. Relata que deseja ser
reintegrado ao serviço que vinha ocupando há mais de duas décadas, sem interrupção, nos
mais diversos engenhos e usinas da Companhia, só se ausentando dele quando esteve muito
doente. Afirma ter piorado da saúde após ter lhe sido imposto um significativo aumento na
tarefa, que passou de 10X10 cubos para 10x13 cubos por dia – “tarefa essa impossível de ser
executada em apenas um dia” -, para justificar o aumento do salário mínimo regional dado por
lei. Adoeceu, comunicou o fato à reclamada, não recebendo dela nenhuma ajuda ou benefício,
e ao retornar ao serviço não mais foi aceito na lida. Dessa ocorrência houve um “acordo” no
qual o trabalhador apenas recebeu Cr$ 30.000,00 A Junta decidiu pela procedência da ação,
proferiu que para dispensar um trabalhador estável a empregadora precisaria interpor um
inquérito judicial apurando as causas, que deveriam ser graves e fundamentadas no artigo 482
da CLT32.
A Companhia Agro-Industrial de Goiana registra o maior número de casos de
trabalhadores demitidos sem justa causa neste município. Antônio João da Costa, brasileiro,
analfabeto, vigia, assistido pelo Dr. Ozael Rodrigues Veloso, reclama contra a Companhia para
quem tinha prestado serviços por 54 anos. Em contestação a reclamada defendeu-se
afirmando que o reclamante espontaneamente fizera um acordo dando total quitação de seus
direitos. O reclamante explicou em audiência que
realmente tinha feito um acordo de Cr$ 70.000,00, mas coagido pela
reclamada, isto é, com medo que acontecesse com ele o mesmo que
aconteceu com outro [trabalhador] de nome Manuel Costa, pois o referido
Manuel Costa tinha sido procurado pela Usina, para fazer um acordo para a
compra de sua lavoura e tendo se recusado, foi assassinado por três vigias
da reclamada.
Como não foi apresentado nenhum documento relativo ao mencionado acordo, o
processo foi convertido em diligência. Concluiu a Junta de Conciliação que "trata-se de
trabalhador com mais de 23 anos de serviço e a rescisão deveria ser feita na presença da
autoridade competente, não tendo sido observadas tais formalidades nenhuma validade tem a
Reintegração com Vantagens:......
A noção de espaço visualizada vai ao encontro da interpretação dada pela Professora Bartira
Ferraz como: “algo dinâmico e unitário, onde há a reunião de materialidade e de ações
humanas”. In. Modernização Conservadora e Desenvolvimento na Zona da Mata de
Pernambuco. Patrimônio e Cultura na Zona da Mata. MATOS e Coautores. Ed. Universitária
da UFPE, 2012, p. 224.
32 O capítulo V da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) vai dispor acerca da rescisão. No
artigo 482 sistematiza, em 12 itens os motivos para a imposição patronal de uma justa causa:
Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador. JCJ – GO Processo Trabalhista nº 0558/66.
30
31
10
transação". Considerando ainda que a reclamada não provou que pagou as férias do
reclamante, julgou a Junta procedente a reclamação condenando a reclamada a reintegrá-lo e
a pagar Cr$153.247,40 referentes as férias, ao 13° salário e aos salários que reclamante não
recebeu por ser impedido de trabalhar pela reclamada, sendo descontados os Cr$ 70.000,00
que já recebidos pelo reclamante33.
Brasiliano Faustino Moreira é outro trabalhador rural, residente no Engenho Bujari,
que começou a trabalhar aos 12 anos para a Companhia Agro-Industrial de Goiana, tendo 56
anos de serviços prestados e disse nunca ter recebido férias nem a diferença salarial. Em
contrapartida, tentou a reclamada provar a ilegitimidade da reclamação responsabilizando
seus fornecedores de lenha, para os quais o reclamante também trabalhou. A Junta
considerando a reclamação procedente em parte, condenou a reclamada a readmiti-lo e a
pagar-lhe a quantia de NCr$ 189,90. Inconformado, recorreu Brasiliano ao TRT, onde foi dado
provimento parcial ao seu recurso, condenando a reclamada ao pagamento de todas as férias,
13º salário de 1962 e complemento de 1963. Em termo de pagamento e quitação, a reclamada
pagou ao reclamante a quantia de NCr$ 342,5534.
Entre as conciliações registre-se o caso de Severino Narciso, brasileiro, analfabeto,
trabalhador braçal, residente no Engenho Megaó que reclama contra Ricardo Sechinger,
alegando em petição inicial que trabalha há trinta anos para o reclamado e que há oito anos
sofreu um acidente de trabalho perdendo quatro dedos da mão direita ao carregar cal para um
caminhão e que não foi indenizado pelo acidente. Em contestação o reclamado ressaltou que a
legislação trabalhista não regia nem protegia o trabalhador rural. Assim, estando o reclamante
desamparado legalmente e por ele prestar serviço de caráter eventual, ele reclamado
solicitava a improcedência da reclamação. Afirmou ainda que o acidente ocorrera quando o
reclamante carregava o caminhão de propriedade do Sr. Joaquim de Paula apesar de em terras
de seu engenho. A ação foi conciliada em Cr$ 2.000,00 com a condição do reclamado construir
uma casa para o reclamante em Tejucupapo e permitir que ele pescasse no rio que corta a sua
propriedade, como também continuasse a retirar os produtos de sua lavoura localizada no
terreno de propriedade do reclamado35. Para a Junta a conciliação oportunizando ao
reclamante moradia e subsistência era a forma mais correta de reparar a invalidez para o
trabalho.
A fala dos trabalhadores, levadas a termo nas peças reclamatórias elaboradas por
agentes do judiciário, por advogados, ou mesmo pelos sindicatos; a narrativa contida nas atas
de audiência; as decisões de 1ª Instância (as Juntas); os votos ementados pelos juízes do
Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região de Pernambuco e os acórdãos proferidos pelos
Ministros do Tribunal Superior do Trabalho vêem se expondo como um terreno fértil frente à
problematizações contemporâneas do país. Esses testemunhos fazem parte de uma memória
coletiva dos trabalhadores, de um lugar social, Zona da Mata de Pernambuco, e também, são
signos de um lócus institucional, o da Justiça do Trabalho da 6ª Região, que vem subsidiando
questões no âmbito mundial, nacional e a estadual. São relatos que possibilitam o não
desaparecimento da história do “andar de baixo”36, bem como a recomposição da história
33
JCJ – GO – Processo nº 0174/63.
JCJ – GO – Processo nº 0444/66.
35 JCJ – GO – Processo nº 0108/63.
36 Elio Gaspari em matéria jornalística no Jornal Correio do Povo em 11 de setembro de 2011
conceitua a história do andar de baixo como sendo a história dos trabalhadores contida nos
processos jurídicos. A matéria aborda a recomendação nº 34 que normatiza o descarte, ou
melhor, a preservação - a partir de “amostras estatísticas” - de milhares de processos
trabalhistas. Para Gaspari essa medida recomendada pelo ministro Cezar Peluso fez “reaparecer
o perigo do apagão da memória do judiciário”. Ele exemplifica essa possibilidade de perda da
memória a partir de um processo hoje inexistente que relatava o acidente de trabalho de um
jovem
metalúrgico,
o
ex-presidente
Luiz
Inácio
Lula
da
Silva.
Disponível
34
11
tradicional, resignificando-as, para não desapareçam, na medida em que eles passam a fazer
parte da historiografia brasileira.
Memórias de um líder político na cena pernambucana da Ditadura
Militar:
Adauto Freire da Cruz - um certo “Adauto de tal”37
No dia 10 de janeiro de 1966, na cidade de Goiana, município localizado na Mata Norte
de Pernambuco, mais um trabalhador procurou a Justiça do Trabalho para dirimir um conflito
trabalhista. Sebastião Vieira da Silva, trabalhador rural, que disse saber assinar o nome,
casado, residente no sítio Tira Couro, onde também exercia suas atividades laborais, foi à
Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana38 para reclamar contra D. Jovina Cesar Tavares39.
Seu testemunho levado a termo transformou-se em petição inicial, na qual foram
relatados os motivos que o levou a Justiça do Trabalho. Começa suas explicações,
descrevendo o seu vínculo com a terra, o sítio Tira Couro, e com o seu trabalho, diz que
nasceu nesse sítio iniciando suas atividades no semeio com a idade de 10 anos. Aos 15 anos já
dava conta dos vários serviços da lavoura, há esse tempo sobre as ordens do coronel Mário
Tavares, à época da reclamação, já falecido, esposo de D. Jovina, que com os anos de vivência
laboral no mesmo lugar chegou a ocupar as funções de cabo e de feitor. Enfim expõe que a
querela trabalhista foi iniciada devido às mudanças impostas no seu trabalho, causando-lhe
prejuízo. Informa o reclamante que D. Jovina Cesar Tavares arrendou as terras e o colocou em
outra propriedade - sítio Santa Rita - para “trabalhar por empréstimo”, que a permuta do local
de trabalho ocasionou alterações no exercício de suas funções diminuindo sua remuneração.
Assim, sendo assistido pelo órgão justrabalhista do seu município o trabalhador rural
pedia para voltar a sua antiga condição como empregado da reclamada e com a mesma
remuneração. Histórias como a de Sebastião perpassam, guardando as singularidades de cada
uma, a maior parte dos processos trabalhista do município de Goiana. Histórias de homens, de
mulheres e de crianças, que se sentindo prejudicados no exercício profissional, vão à Justiça
expor os fatos e pedir providências. Em fato, essa busca por reparação é um direito deles, às
vezes não entendido como tal, mas já pressupondo um entendimento, tornando-se uma
prática, um costume e fomentando uma cultura de direito40.
Sete meses depois do início do processo, não havendo concordância entre as partes, o
presidente Delecarlindo Nilo Albuquerque Rios e os vogais decidem pela procedência (em
parte); a decisão não contemplou o pagamento das férias, tendo a Junta se apoiado no relato
da reclamada que disse, “nunca pagou férias ao reclamante por falta de condições
financeiras”.
As razões finais proferidas pelo advogado do reclamante - Dr. Djalma G. Raposo41 - vão
dar uma dimensão histórica a narrativa. A escrita expõe-se carregada de signos e símbolos de
em:http://www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=116&Numero=346&Caderno=0&Editoria
=110&Noticia=336816. Acesso em 01 de junho de 2012.
37 JCJ Goiana - Proc. nº 0021/66:
38 Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana foi criada juntamente com duas do Recife a 4ª
e 5ª e as Nazaré da Mata, Jaboatão, Caruaru, Escada e Palmares por meio da Lei Ordinária nº
4.088 do dia 12 julho de 1962.
39 JCJ Goiana - Proc. nº 0021/66. Acervo do Arquivo do Projeto Memória e História – convênio
TRT 6ª Região – UFPE.
40 GOMES, Angela de Castro. Direito e cidadania: memória, política e cultura. Angela de Castro
Gomes (coord.). R J: Editora FGV, 2007. p. 9.
41
Djalma G. Raposo. OAB – PE 431. Atuou como advogado na defesa de muitos trabalhadores
rurais de Goiana. Foi assassinado na frente de sua casa no bairro dos Aflitos, Recife,
Pernambuco, por pistoleiro a mando dos donos da Usina Santa Tereza. In CARNEIRO, Ana &
Cioccari, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962 – 1985,
12
um tempo histórico que pressupõe um período de lutas dos trabalhadores rurais, que
assistidos pelos sindicatos, ou não, lutavam por direitos trabalhistas e cidadania. Deixam
também descortinar o caráter incertezas que povoou a mentalidade de uma coletividade de
que as ações coletivas (mobilização social, paralisação e greve), sejam concretizadas via órgão
de classe ou individual, pelos líderes sindicais, eram sinônimo de confusão, anarquia,
desrespeito, subversão da paz e da ordem estabelecida. Ao expor sua narrativa em defesa do
trabalhador, seu advogado deixa enunciado o mal estar que boa parte da população
demonstrava ter, frente às mobilizações sociais de resistência e de luta no campo nas décadas
de 1960 a 1970.
O reclamante exercia “cargo de confiança” porque era obrigada, naquele
tempo, a reclamada, se valer do que pudesse dispor temendo as invasões e
greves comandadas pelos diretores do Sindicato chefiado por um “Adauto
de tal”.
O Dr. Djalma G. Raposo homem letrado, advogado que foi um representante contumaz
do trabalhador nos litígios demandados contra a elite patronal de Goiana, contudo, imbuia em
suas defesas a construção ideológica vigente que associava as lutas no campo ao terror e ao
medo. Mesmo para ele, um homem cujo cotidiano foi envolto por causas e conflitos sociais,
se pode pressupor, há esse tempo, uma cegueira política, ou discursiva, que turvando a vista,
podia conduzir militantes sociais a uma miopia da conjuntura histórica.
Talvez essa visão distorcida dos movimentos sociais e sindicais tenha sido cristalizada
pelo advogado como a de um “tenebroso período adaulesco” – tempo de perigo - que não lhe
foi apreendido como um processo de (re) significação social dinâmico de resistência aos
desmandos dos donos do agronegócio, tais quais suas lutas nos tribunais em defesa dos
trabalhadores rurais.
Em seu livro Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962 – 1985, as
pesquisadoras Ana Carneiro e Marta Cioccari, em 2012, propuseram uma recomposição
historiográfica sobre a memória dos trabalhadores rurais em seus embates frente às
preeminentes cenas de desrespeito e violação de seus direitos sociais. Singularmente, dizem:
o que apresentamos aqui é um mapeamento, certamente inacabado, da
violência política ocorrida no campo no período de 1962 a 1985. Nem por
isso menos impactante. O que pode lhe faltar em amplitude é revelado
pelas intensidades das narrativas.
Com o subtítulo: Nordeste, uma região “perigosa”, as autoras recortam a militância
desses atores nos estados nordestinos de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão, Bahia e Rio
Grande do Norte, alguns deles, além de anônimos trabalhadores, eram líderes classistas que
exerceram suas práticas sociais e políticas de resistências no período supracitado frente a um
cotidiano de repressão. Nesse contexto temporal a tônica foi à violência. Veladas ou não, as
práticas arbitrárias imporiam quase sempre a tortura física e/ou psicológica, condenando
muitos desses trabalhadores a viverem na clandestinidade, às vezes, sob a legenda de
desaparecidos, ou ainda silenciados pelo medo e, não raro, os fizeram sucumbir à morte.
A história de Adauto Freire da Cruz, ou, por vezes, Celestino Alves da Silva (nome
utilizado na clandestinidade), pode ser recomposta tendo como fonte o processo trabalhista
em ponte elucidativa com o que foi revelado na escrita das autoras por meio da chamada:
“Adauto Freire da Cruz: ex-militante das Ligas viveu quase toda a sua vida com nome falso para
fugir da repressão”.
O “Adauto de tal” foi um paraibano nascido na cidade de Bananeiras que atuou nas
Ligas Camponesas, contemporaneamente a Francisco Julião, fez parte do grupo de líderes
camponeses, viajou para Cuba, em 1961, a convite de Fidel Castro e teve uma militância ativa
nas Ligas Camponesas de Pernambuco, atuando no município de Goiana. Morreu no Estado do
Rio de Janeiro em 13 de maio de 1979. Foi espancado por policiais dentro de um ônibus que
seguia do Rio de Janeiro para Teresópolis, quando, em companhia da sua companheira
13
Deuzuite da Costa Silva, acabara de distribuir panfletos em defesa da anistia. A violência
ocasionou uma fratura na perna e um enfarto que o levou a óbito.
A análise justifica o trabalho que o Laboratório do Projeto Memória e História
TRT6/UFPE vem fazendo ao longo de quase cinco anos, frente a uma demanda de resposta
social de uma produção acadêmica. Ratificam-se pensamentos já explicitados; entende-se que
além da análise de um dossiê, as práticas laborais, o conflito trabalhista e os testemunhos
processuais dessa documentação desnudam episódios históricos que possibilitam uma revisão
na historiografia.
Assim se expõe a intervenção histórica em um processo trabalhista da Junta de
Conciliação de Goiana do ano de 1966, no qual, além das análises balizadas na História
cotidiana das relações do trabalho, do trabalhador, do patronato rural e do acesso desses à
Justiça do Trabalho para dirimir conflitos e reparar perdas e danos, encontramos fragmentos
de testemunho do período de exceção de direitos pelo qual o Brasil passou no período da
Ditadura Civil-Militar. Essas narrativas judiciais trabalhistas podem ajudar como referências
cruzadas, às ações de recomposição da memória nacional, que em resposta às demandas
sociais tardias estão buscando por verdade e justiça.
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GOIANA: município do Agronegócio