ID: 58716205
08-04-2015
Tiragem: 36211
Pág: 14
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,37 cm²
Âmbito: Informação Geral
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Tuberculose
A doença
esquecida que
ainda ameaça
Portugal
A cada minuto, morrem três pessoas com tuberculose em
todo o mundo. Por afectar maioritariamente países em
desenvolvimento, não surge como uma prioridade na agenda
de saúde global. Cada vez menos os clínicos suspeitam
da tuberculose, embora a doença ainda não esteja erradicada
em Portugal, onde está associada a um forte estigma social
Aida Silva
A
os 32 anos, Maria
Costa (nome fictício) foi diagnosticada com tuberculose. Tudo começou com uma
tosse inofensiva.
Depois de três meses, três consultas
e três diagnósticos
errados, decidiu ir às urgências do
Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Mas não podia prever que apenas
sairia dois meses depois.
Inicialmente foi diagnosticada
com pneumonia. No entanto, a situação agravou-se drasticamente
e durante três semanas lutou para conseguir respirar. Foi encaminhada para os cuidados intensivos,
mas, antes de chegar, ouviu um grito ao fundo do corredor: “Parem,
parem, a paciente não pode ir para
aí.” Apenas ficou a saber o que se
passava quando um enfermeiro se
aproximou e lhe disse, muito simplesmente, que tinha tuberculose.
Começou por receber tratamento
para a tuberculose multirresistente
(TB-MR), uma forma mais difícil de
tratar, mas, novamente, o diagnóstico
estava errado, pois tratava-se de uma
tuberculose sensível ao tratamento
habitual. “Fechada entre quatro paredes, num quarto de isolamento,
tinha a sensação de que a minha vida
tinha parado e, pela janela, via que
tudo lá fora continuava”, relata.
Maria Costa fora sempre saudável.
De repente, viu-se fragilizada a ponto
de não conseguir andar: “Correr risco de vida e sentir-me tão impotente
afectou-me profundamente, mas a
vontade de me curar deu-me força.”
A doença proporcionou-lhe muito
tempo para pensar: “Não quero nunca esquecer-me desta experiência,
ensinou-me a valorizar aquilo que
realmente importa.”
A tuberculose permanece um problema de saúde global que afecta
milhares de pessoas todos os anos e
continua a ser a segunda maior causa
de morte por doença infecciosa, a
seguir ao vírus da imunodeficiência
humana (VIH). Declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma emergência mundial, é uma
doença contagiosa causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis.
Transmite-se por via aérea, afectando sobretudo os pulmões, “mas
pode atingir qualquer parte do corpo”, esclarece Hélder Bastos, médico pneumologista no Hospital de
São João, no Porto, e investigador
no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) da
Universidade do Minho. “A bactéria
pode viver connosco e em condições
normais não nos prejudica, apenas
uma em cada dez pessoas infectadas
desenvolve a doença, caso contrário
mantém-se em estado latente”, explica Gil Castro, professor e investigador no ICVS.
Como a doença tem tratamento e a
maioria das mortes pode ser preveni-
da, a mortalidade associada à tuberculose é ainda inaceitavelmente elevada. As estimativas apontam para
1,5 milhões de mortes e nove milhões
de novos casos em 2013, maioritariamente nos continentes asiático e
africano. No entanto, estima-se que
37 milhões de vidas tenham sido salvas desde o novo milénio.
As metas definidas pela OMS propõem a erradicação da doença em
2050. “Não será fácil cumprir, e talvez não seja mesmo possível, mas devem definir-se estratégias localmente
que visem o melhor possível”, admite
Raquel Duarte, médica pneumologista e adjunta do director do Programa
Nacional para a Tuberculose e VIH da
Direcção-Geral da Saúde (DGS).
Uma nova preocupação surge com
a prevalência da referida TB-MR,
uma forma de tuberculose resistente ao tratamento com antibióticos,
cujos números triplicaram nos últimos cinco anos a nível mundial. “A
tuberculose é habitualmente curável
através de um tratamento de, pelo
menos, seis meses, mas a TB-MR é
mais difícil de tratar e, nos casos piores, incurável”, diz Raquel Duarte.
Panorama nacional
A tuberculose tem vindo a diminuir
de forma consistente em Portugal
e, segundo um comunicado do
director-geral da Saúde, Francisco
George, os dados provisórios para
2014 referem que, “pela primeira
vez desde que há registos”, Portugal
vai ficar abaixo da barreira, tida como “linha vermelha”, dos 20 novos
casos por cem mil habitantes. Portugal era, até ao momento, o único
país da Europa Ocidental com níveis
de incidência de tuberculose superiores a este valor.
Os dados provisórios notificados
à DGS indicam 1940 novos casos de
tuberculose em 2014, o que corresponde a uma redução da taxa de
incidência dos 21,1 novos casos por
cem mil habitantes registados em
2013 para os 18,7 casos. No entanto, as directivas mais recentes da
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08-04-2015
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MANUEL ROBERTO
na formação de profissionais, e temse dado mais atenção a populações
de risco”, exemplifica Raquel Duarte.
“O desafio nos próximos anos será
identificar os factores de risco associados à tuberculose nos grandes
centros urbanos e definir estratégias
para cada grupo susceptível”, acrescenta Hélder Bastos.
Falta financiamento
OMS apontam para uma redução
do limiar de baixa incidência para
metade, o que coloca Portugal novamente como um país de incidência
intermédia.
O relatório Portugal no Grupo dos
20 — Centrar a Atenção nos Grandes
Centros Urbanos, emitido por ocasião do Dia Mundial da Tuberculose
(24 de Março), revela que a doença
continua a ser difícil de abordar pela
“concentração nos grandes centros
urbanos” (sobretudo nos distritos de
Porto e Lisboa) e pela associação a
“grupos de risco”. Adicionalmente,
“a crise socioeconómica actual tem
retardado os progressos no controlo”, declara Hélder Bastos. Os dados
da DGS, que relacionam a incidência
de tuberculose com o desemprego,
mostram que, por cada mil desempregados em cada cem mil habitantes, se soma mais um caso desta doença.
A tuberculose surge associada a vários factores de risco, como é o caso
da infecção por VIH, do alcoolismo
e toxicodependência, de situações
de imunossupressão ou malnutrição e de doenças como a diabetes
e o cancro. No entanto, na maioria
dos casos, “não há nenhum factor
de risco conhecido, o que significa
que continua a ser transmitida na
comunidade”, diz Gil Castro.
Ainda assim, a tuberculose “está a
cair no esquecimento”, diz Margarida
Saraiva, investigadora no ICVS. “Os
sintomas são frequentemente desvalorizados por serem muito subtis
e surgirem lentamente, o que atrasa a
procura de cuidados, a somar a uma
cada vez menor suspeição da tuberculose por parte dos clínicos”, conta
Hélder Bastos. Para que a cadeia de
transmissão seja interrompida, Raquel Duarte defende que é importante que tanto a população como
os clínicos “continuem a suspeitar
da tuberculose”.
Certo é que, nos últimos anos, se
registaram mais avanços que recuos:
“Tem-se mantido uma sólida estrutura de controlo da doença, apostada
A tuberculose não
está a receber
atenção suficiente,
falta a percepção de
que esta não é uma
doença facilmente
controlável
Gil Castro
Investigador
É necessário um progresso e investimento substanciais na investigação de métodos de prevenção,
diagnóstico e tratamento mais rápidos e eficientes. “Não é provável
que a tuberculose seja erradicada
até 2050, a não ser que haja uma
grande mudança na abordagem ao
problema”, diz Gil Castro. Margarida
Saraiva concorda que não estão a ser
colocadas as perguntas certas: “É
necessária uma mudança de perspectiva, que aposte na investigação
fundamental, para melhor se compreender a bactéria.”
O financiamento da investigação
é um problema. “A tuberculose não
está a receber atenção suficiente,
falta a percepção de que esta não é
uma doença facilmente controlável,
é preciso investir mais”, diz Gil Castro. São necessários, anualmente, a
nível mundial, mais de 1500 milhões
de euros para investigação na área,
mas as falhas orçamentais são consideráveis.
Portugal faz parte do Programa de
Parceria entre a Europa e os Países
em Desenvolvimento para a Realização de Ensaios Clínicos (EDCTP), que
financia a investigação em tuberculose, sida, malária e doenças tropicais
negligenciadas. Após um investimento global de cerca de mil milhões de
euros desde 2003, o programa, agora
na segunda edição (EDCTP-2), conta
com um orçamento de dois mil milhões de euros até 2024.
A nível nacional, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia
(FCT), Portugal investiu um milhão
de euros em 2013, apesar de 2014 ter
registado um decréscimo para cerca
de 836 mil euros. Actualmente, contam-se 28 projectos de investigação
e 13 bolsas de doutoramento e pósdoutoramento sobre tuberculose,
em todos os domínios científicos,
que são financiadas pela FCT.
“Medo da rejeição social”
Apenas um dos quartos de isolamento do serviço de Pneumologia
do Hospital de São João está ocupado. Através da janela na porta, vê-se
a paciente Ana Silva (nome fictício),
de 76 anos, deitada numa das camas.
Antes de se entrar, é necessário colocar uma máscara facial e, ao abrir a
porta, sente-se uma corrente de ar a
entrar no quarto, aqui a pressão tem
de ser negativa.
Ana Silva está internada há vários
meses, mas esta é uma situação excepcional. A maioria dos casos de
tuberculose é tratada em regime
ambulatório. “O doente dirige-se
diariamente a um Centro de Diagnóstico Pneumológico para receber
tratamento, por toma observada
directamente”, esclarece Hélder
Bastos.
“O internamento apenas se aplica quando a gravidade do estado
de saúde o justifique e em caso de
TB-MR em fase contagiosa”, explica Raquel Duarte. Também pode
aconselhar-se o internamento em
situações sociais complicadas,
quando há possibilidade de o paciente não aderir ao tratamento.
“Esta é uma situação rara e não
existem mecanismos legais que
obriguem o doente a fazer o tratamento”, conta Hélder Bastos.
“O assunto é complexo, pois diz
respeito aos deveres e liberdades
individuais de cada um”, vinca Raquel Duarte. A discussão continua
a suscitar muita controvérsia na comunidade médica, tendo sido feitas
petições para que a Constituição
da República Portuguesa autorize
o internamento compulsivo de doentes que representem perigo de
saúde pública.
No caso de Ana Silva, de saúde
débil e a viver sozinha, o internamento foi a opção mais indicada.
Há três meses, uma tosse persistente levou-a a consultar um médico:
“Pensei que era uma constipação,
nunca me passou pela cabeça que
fosse tuberculose.” Diz que não
sentiu medo, mas admite que ficou
abalada: “O que mais me afectou
foi pensar que podia ter contagiado
alguém.”
“Ruim.” É a palavra que utiliza
para descrever a sensação de estar
isolada. “Muitas vezes não sei em
que dia estou.”
Apesar de notáveis avanços, “é
comum que o doente seja alvo de
discriminação e rejeição sociais”,
nota Hélder Bastos. “As pessoas
têm medo de mim”, reconhece
Ana Silva. A tuberculose continua
a ser temida pelo risco de contágio
e estigmatizada pela sua associação
a factores sociais como a pobreza
e malnutrição. “Em pleno século
XXI, a doença surge carregada de
simbolismo e associada a vários
mitos e estigmas enraizados na
sociedade”, relata Cátia Martins,
autora de um estudo sobre a perspectiva do doente de tuberculose
em Portugal.
Na sua tese de mestrado em Antropologia Médica, defende que
as ideias criadas pela sociedade ao
longo dos anos representam uma
dificuldade na luta antituberculose:
“O medo da rejeição social leva o
doente a adiar procurar assistência
médica e a esconder a doença.” As
mentalidades deveriam evoluir face
ao extenso conhecimento que se
tem acerca da patologia, mas, “na
consciência pública, a tuberculose
continua a ser vista como um mal
social, mesmo pelos próprios doentes”, conclui Cátia Martins. Editado
por Andreia Sanches
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A cada minuto, morrem três pessoas com tuberculose em todo o