O Litígio Conjugal: manifestações do inconsciente nas Varas de Família Psicanálise e Saúde Mental 1 Pelos Corredores das Varas de Família • O trabalho nas Varas de Família evidencia que o romance familiar perdura, em outras vestes, para além das enamoradas juras de amor. De um jeito às avessas, “adorando pelo avesso”. • Encenando o romance familiar após a separação dos corpos, apresentando que o laço conjugal é de outra ordem, que pode continuar ainda que de uma forma não declarada e, por vezes, agressiva. • Perduram as juras... agora, tecidas em letras de ódio, palavras de desamor em corpos litigantes. 2 • Nas Varas de Família um terceiro acolhe os casais em litígio, e nesta outra casa, choram uma aposta que não deu certo. Sentem-se traídos e enganados, não suportam perder a fantasia de casal, que de dois seria possível o Um. • Nos corredores do Tribunal, o par, não mais enamorado, continua se encontrando. Vêm falar nos autos a verdade sobre a conjugalidade, sobre a família, sobre a injustiça de não ter sido para sempre, uma história sem par. • E cabe a autoridade Judicial, diante de toda complexidade que se apresenta, bater o martelo e marcar o fim objetivo do enlace conjugal. 3 • A dificuldade de cumprir a separação, pode estar na importância da família como representante de um lugar simbólico, estruturante e organizador. A separação, de certa forma, constitui uma imagem fracassada desta estrutura. • A aposta de ser feliz para sempre, constituir uma família, dar um fim a solidão, ser eterno ao cuidar da prole, promessas e sonhos falidos pelo processo de separação. • É o encontro com o desencontro, com o vazio da promessa, com a inconsistência dos sonhos. Um abismo que separa os corpos que dantes caminhavam tão colados. 4 • Um tempo se faz necessário para a elaboração das perdas. O encontro fundamental com a separação desvela uma verdade singular: a de estar só. • Foram felizes para sempre é uma imagem que acompanha os finais das belas histórias de amor, apontando uma continuidade de felicidade eterna. Mas, o para sempre, é sempre por um triz. • Desde os primórdios a função da conjugalidade nasce da necessidade imaginária de crer na complementaridade entre o homens e mulheres, afastando a solidão. O casal se constitui neste registro como uma possibilidade de solução ao desamparo 5 humano. • O Homem, sentindo-se só, pediu a Deus uma companheira. Então Ele retirou de sua costela, o seu complemento... a mulher. A Bíblia nos apresenta um casal em harmonia com a natureza. • Mas já no mito Bíblico localizamos o fracasso da harmonia conjugal ao apresentar neste relato a história da maçã. O mal estar atravessa o cotidiano conjugal e o casal é expulso do paraíso. • Desde a mais tenra idade, acreditou-se que encontraríamos uma parceria que seria nosso complemento e que de Dois faríamos UM. 6 • Durante o tempo do enamoramento, os sujeitos, apostam que podem conhecer todo o parceiro, desenham no corpo desse outro encantado Príncipes e Cinderelas. • Durante o tempo do desencontro amoroso, apresentam a indignação diante deste desconhecido, outrora tão conhecido, que surpreende por seus atos. • Ao retirar os óculos com o qual a paixão decora a realidade, revela-se a distância entre o objeto desejado e a realidade. Restando dessa revelação as diferenças e o desencontro. 7 • Desta forma vêm provar na justiça que o outro é o culpado, com um certo tom de ter sido enganado. O que foi o mais puro objeto de amor é agora degradado. • No trabalho da psicologia jurídica ouvimos falar das cobranças, dos desejos insatisfeitos, da decepção com o objeto amoroso e nos casos mais litigiosos uma impressão que o outro cônjuge é capaz de fazer muito mal, é perigoso. • Relatos que revelam a posição do sujeito diante desse outro, capenga, imperfeito e em desencontro com aquele que a paixão criou. 8 • Eu dei tudo por ele e fiquei sem nada, ela me enganou todos esses anos, meu casamento foi uma farsa, uma mentira, eu sempre achei que as coisas fossem mudar. Frases repetidas e inseridas num discurso que não suportou a diferença, o desencontro entre a fantasia e a realidade, entre o cotidiano e o conto de fadas. • Para quem um dia fez juras de para sempre, não ser para sempre é sempre uma traição grave. • Essas lamentações revelam o mal-entendido fundamental das relações, onde cada um fala de um lugar que é inacessível ao outro, lugar inventado pelo inconsciente. 9 • O litígio conjugal se transporta para as Varas de família como um litígio processual, uma materialização dessa realidade subjetiva. • Mas a família resiste. Pode-se dizer que a reincidência do fracasso desse ideal de conjugalidade levou a humanidade criar novas formas de família e de arranjos conjugais. • A família não é apenas um conjunto de pessoas, mas qualquer expressão grupal articulada por uma relação de descendência, inclusive a adotiva.É uma estrutura psíquica, um lugar atravessado pela cultura, onde valores e ideais são transmitidos pelo discurso. 10 • Para além da tradicional família, outros arranjos familiares são compostos na contemporaneidade, e que estes novos arranjos cumprem a função que a sociedade destina à família, ou seja, transmissão da cultura e formação dos sujeitos. • A família é um lugar subjetivo, um lugar ao qual recorremos sempre que precisamos de referências simbólicas para tratar as questões que a vida nos apresenta. • E para isto, não é preciso que exista uma família real, organizada e estruturada, pois precisa-se apenas de ter esta construção estruturada subjetivamente, ter 11 este texto escrito nas memórias. • Da família real, levamos apenas o romance familiar, por isto sobrevivemos aos lutos familiares, separações, orfandade, pois de acordo com a realidade que vivemos, retiramos daí, elementos que estruturam o nosso romance familiar, a imagem de pai, mãe e irmãos. • A família é uma estrutura inabalável, seja articulada como for na realidade: pais separados, homossexuais, filhos adotivos, bastardos, família sem pai, sem mãe, sem filhos, dentre outras. • A estrutura familiar persiste, mas as separações nos deixam a pergunta: Com quem ficarão os filhos? 12 • Por muito tempo, ouvimos um discurso de que as separações desestruturavam a família e filho de pais separados sempre era criança-problema. • Hoje, visitando as escolas ou escutando crianças em diversos lugares temos a surpresa de encontrar sujeitos aparentemente saudáveis, em desenvolvimento e filhos de pais separados. • Crianças que transitam entre as casas dos pais, que sabem distinguir o lugar do pai e o lugar do namorado da mãe, ou qual a diferença entre a namorada do pai e o lugar materno. 13 • Não há regras e modelos ideais. Cada caso é um caso, e a forma de convivência familiar mais adequada é aquela em que aquela família particular conseguiu construir de acordo com as suas necessidades pessoais. • Não existe lei que dê conta de garantir um modelo ideal, mas a lei pode e deve garantir a possibilidade da construção do modelo que satisfaz a cada família, em seu caso singular. • A estrutura ternária transmiti os valores necessários para a sua formação. Este é o sentido legítimo de uma filiação. 14 • Autoridade e amor são necessários à constituição do sujeito. Há de haver uma visitação entre os dois termos. A carência de um deles provoca sintomas no campo social. • Se privilegiar a autoridade, extremando o poder, estamos no terreno da tirania e da repressão social. Mas se privilegiam o amor incondicional e a compreensão ilimitada entramos no campo da perversidade e do caos social. • É preciso conjugar os termos. É necessário que ocorra uma triangulação onde a paternidade (autoridade) e a maternidade (amor). 15 • As funções paternas e maternas não coincidem com os genitores biológicos, é a dimensão simbólica destas operações que propiciam a constituição infantil. Mas é necessário, em algum tempo, de um pouco de carne que sustente o esse discurso. • A lei aposta no amor como fundamento da tutela, mas não tem como garanti-lo. E é por questões como esta que o Técnico Judicial é chamado a dar um parecer, conhecido como laudo pericial. • Mas encontramos algumas dificuldades, que estão relacionadas com uma metodologia clínica inserida num discurso institucional. Às vezes, aquilo que a instituição demanda é incompatível com a ética da clínica. 16 • A Instituição Judiciária demanda uma verdade sobre as pessoas, qual a sentença justa. O que a instituição pede é um saber sobre o litígio estrutural. Saber técnico. • Por mais que exista um corpo de depoimentos, uma construção acerca de cada posição do sujeito no processo, chegar a um resultado que oferece garantias é impossível. • Sujeitos que perderam num só golpe a verdade sobre si e a condução da sua história de vida, alienados a um laudo que os revela uma intimidade desconhecida. 17 • Não temos nada a dizer sobre quem é culpado, quem é inocente, quem é o melhor, quem é bom, mal ou pior. Não há como ter acesso a esta verdade ou garantias a oferecer. • Se o amor já não faz laço uma separação se faz necessária. O trabalho deve caminhar no sentido de escutar desta ficção singular a verdade do sujeito. Formular saídas para o impasse da conjugalidade. • Uma saída sem par, pois perdas são inevitáveis. Para que uma separação opere é preciso perder. A perda é a medida. 18 • A demanda endereçada ao campo jurídico, muitas vezes é a demanda de retificação de algo perdido, de impossível apreensão, demandas inconciliáveis. • Um pedido que o outro seja perfeito como nos sonhos, que ele se encontre sempre no lugar esperado, que seja justo a verdade subjetiva. • O trabalho, onde as partes concordem sobre as diferenças, consigam fazer a conta matemática 1+1 = 2, e não insistir no engodo idealizado de que 1+1 pode ser UM, é bem provável, que este casal possa concluir pela separação. 19 • O Litígio Conjugal é estrutural. Dessa forma o processo de separação é uma escansão do malentendido fundamental que atravessa as relações conjugal. • Deve-se considerar a ficção que o sujeito constrói, de forma singular, a fantasia de casal. • O casal em litígio, muitas vezes, não relata o factual, mas sim, o ficcional. • O amor é a possibilidade o Dois como Um e Um, enlaçados na disjunção, suporte da falta e da diferença. Entre dois corpos deve sempre passar 20 um sopro de ar.