TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA
GOIÁS
S ÉCULOS XVIII-XX
T ERRITÓRIOS DA H ISTÓRIA
G O I ÂNI A , 23
DE ABR I L DE
2014
EXPEDIENTE
TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA. GOIÁS SÉCULOS XVIII-XX
Volume 1, Número 1, 2014.
ISSN 2358-0704
EDITORES
FERNANDO LOBO LEMES - PUC-GO - BRASIL
LILA SPADONI - PUC-GO - BRASIL
COMISSÃO EDITORIAL
EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (PUC-GO/UEG)
ELIÉZER CARDOSO DE OLIVEIRA (UEG)
FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO)
JAVÃ ISVI PINHEIRO MARCONDES (UFG)
LENA CASTELO BRANCO FERREIRA DE FREITAS (UFG)
LILA SPADONI (PUC-GO/UNIEVANGÉLICA)
PAULO RODRIGUES (PUC-GO)
SANDRO DUTRA E SILVA (UNIEVANGÉLICA/UEG)
THIAGO F. SANT’ANNA (UFG)
TIZIANO CHIAROTTI (MHA)
P ONTI F Í C I A U NI VERS I DADE C ATÓ LI CA DE G OI ÁS /PUC- G OI ÁS
P ROGRA MA DE P ÓS -G RADUAÇÃO EM H I S T ÓRI A - PPGSS
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TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA
GOIÁS
S ÉCULOS XVIII-XX
T ERRITÓRIOS DA H ISTÓRIA
G O I ÂNI A , 23
DE ABR I L DE
2014
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
As Múltiplas faces da História
de Goiás
FERNANDO LOBO LEMES
História do município no Brasil:
do período colonial à Primeira
República
TIZIANO CHIAROTTI
TEXTOS COMPLETOS
Os bacharéis em direito
na Cidade de Goiás
e o "pacto com o diabo" (18981937)
THIAGO SANT‟ANNA
Anhanguera:
o mito fundador de Goiás
EDUARDO QUADROS GUSMÃO
Território fechado e as zonas
de segurança: uma análise
sobre a defesa do território
em Goiás na primeira metade
do século XVIII
JAVÃ ISVI PINHEIRO MARCONDES
War in Goiás
1722-1800
DAVID LOUIS MEAD
Na fronteira do
Império: cidade capital e
poder soberano em Goiás
(1730-1750)
FERNANDO LOBO LEMES
A religiosidade e o processo de
romanização da Igreja no Brasil:
reflexos em Goiás
PAULO RODRIGUES
Vozes do silêncio
LENA CASTELLO BRANCO DE FREITAS
A Colônia e a Barranca nos
tempos da Fronteira:
demarcações simbólicas às
margens do Rio das Almas
SANDRO DUTRA E SILVA
Memória coletiva e consciência
histórica: a percepção da
ditadura
civil-militar em Goiás
FERNANDO LOBO LEMES
LILA SPADONI
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As Múltiplas Faces da História de Goiás
Pensar Goiás em meio às condições (ou às consequencias) da modernidade que
caracterizam o século XXI, implica a retomada inexorável de um diálogo com sua própria
história. História que remete ao passado como condição indispensável para se compreender
as complexidades e exigências impostas ao homem moderno no tempo presente.
Desde o Brasil colonial é através da relação entre povos distintos (ameríndios,
africanos e europeus) que, paulatinamente, os colonos vão se identificando como brasileiros.
Num primeiro momento, como lembra Fernando Novais, este fenômeno ocorre
regionalmente, isto é, os colonos se percebem como "paulistas", "baianos",
"pernambucanos", "mineiros", "goianos", etc., até, finalmente, se identificarem como
brasileiros. Esta percepção ou tomada de consciência constitui, segundo ele, "o que há de
mais importante na história da colônia, porque situa-se no cerne da constituição de nossa
identidade", o "ponto central de nossa constituição enquanto povo e nação". Nesta
perspectiva, entreolhar este fenômeno a partir do tempo presente implica na possibilidade
de compreendermos algo a respeito do "nosso modo de ser", algo mais sobre nós mesmos1.
Por outro lado, se algumas das características mais marcantes da América
portuguesa, como consequência da presença dos europeus (que trouxeram consigo os
valores ocidentais modernos), são os sentimentos marcados pela instabilidade, a
precariedade e a provisoriedade - que se expressam, nas palavras de Novais, "por todos os
poros das relações vivenciadas no Brasil colônia" -, em Goiás não foi diferente. Aqui essas
sensações e características são, sem dúvida alguma, exacerbadas. Mais que isso,
poderíamos dizer que, no século XVIII, a sensação de instabilidade e precariedade da vida
cotidiana e o sentimento de um mundo que se instala apenas provisoriamente, são
componentes que tingem o quadro da história de Goiás com cores bastantes específicas.
São especificidades que caracterizam profundamente a experiência dos goianos no limiar ou
na gênese de sua história.
Deste modo, compreender Goiás e as especificidades de sua constituição histórica
significa contribuir para a compreensão da própria história do Brasil. Mais que isso, explorar
as possibilidades oferecidas pelas múltiplas faces da história de Goiás, através dos vários
campos e territórios de pesquisa, implica em desvendar os processos e os mecanismos
através dos quais os elementos que constituem e dão forma à sociedade europeia moderna
são transpostos e adaptados no Novo Mundo. O estudo desse processo pode contribuir para
a compreensão dos mecanismos através dos quais os valores ocidentais modernos fixam-se
no sertão2 e, mais especificamente, na região central da América. Essa interpretação nos
remete, evidentemente, ao tempo presente, pois essa história (da colonização), como ensina
Marc Augé, "está longe de ter chegado ao fim". Sobretudo se considerarmos a ideia de que
"colonizados e colonizadores viveram a mesma história e que a colonização foi apenas a
primeira etapa da mundialização" 3. De fato, no mundo globalizado do século XXI, não
podemos ir ao encontro do futuro sem nos interessarmos pela compreensão do passado.
NOVAIS, F. Condições da privacidade na colônia. In: NOVAIS, F (Coord.); SOUZA, L. de M (Org.). História da Vida
Privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 1,
1997, p. 23.
2 CHAUL, Nasr; DUARTE, Luís Sérgio. As cidades dos sonhos: desenvolvimento urbano em Goiás. Goiânia: UFG,
2004.
3 AUGÉ, M. Para onde foi o futuro? São Paulo: Papirus, p. 90.
1
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Afinal, é nos meandros da própria história que o passado se atualiza no presente e nos
permite projetar esperanças e expectativas em direção ao futuro. É no interior desta
perspectiva que apresentamos os textos completos das conferências proferidas no colóquio
Territórios da História/Goiás séculos XVIII-XX.
Não é por acaso que a conferência que inaugura as reflexões provocadas nesse
colóquio dedica-se a analisar a constituição de uma figura mitológica que compõe o
imaginário do mundo goiano: o mito do Anhanguera. Fenômeno de longa duração que
atravessa três séculos de história e fio condutor que alinhava o percurso entre o processo de
colonização, no século XVIII, e a construção da modernidade no século XXI, consolidando,
nas fronteiras geopolíticas do sertão, os elementos essenciais que constituem as
especificidades da civilização ocidental moderna. Como ocorre, indaga Eduardo Gusmão, a
elaboração do mito do Anhanguera, a partir da construção da imagem do explorador
Bartolomeu Bueno da Silva, transformado em fundador de Goiás? Porque suas ações ainda
são celebradas em Goiás, sobretudo na atual e moderna capital, Goiânia? Para o autor, a
transformação demonstrada através da historiografia na imagem do Anhanguera tem
relação com os estudos literários acerca das narrativas míticas e folclóricas. Por esta via,
esboçando a construção do mito a partir da tradição dos bandeirantes paulistas, o primeiro
capitulo do livro introduz o leitor nos primórdios da história de Goiás, delineando a longa
trajetória de edificação do mito até sua monumentalização nos espaços oferecidos pela
nova capital do Estado - expressão da modernidade urbana brasileira erigida na primeira
metade do século XX.
Na sequência, esquadrinhando os mecanismos que orientaram os interesses
portugueses em Goiás durante o século XVIII, Javã Isvi explora a problemática da defesa do
território, cuja lógica acionava as estratégias do governo colonial nas regiões mineradoras.
Sua abordagem aponta para a leitura de dois dos principais elementos que caracterizam o
processo de colonização na América portuguesa: inicialmente, investiga os primeiros
aldeamentos indígenas instalados na região para, em seguida, mirar sobre os instrumentos
de combate ao contrabando, enquanto fenômenos que nomeou de "fechamento do
território". Pontuando sua reflexão a partir das noções de zona de segurança e território
fechado, busca compreender as formas de efetivação dos mecanismos de defesa dos
territórios conquistados pela Coroa.
Mas a defesa do território não ocorre apenas por iniciativa dos colonizadores
europeus na América. O interesse na preservação e proteção da região por parte dos povos
nativos intensificou as lutas e a mobilidade dos povos na fronteira. David Mead considera as
guerras e combates das principais tribos indígenas contra os conquistadores portugueses
como componentes característicos dos fenômenos presentes na região. Indicando a
importante densidade demográfica das populações nativas e sua natureza extremamente
belicosa, caracteriza Goiás como uma "zona tribal": região de conflito nas franjas de um
Império em expansão, cujos habitantes modificam e adaptam seus modos de vida às
exigências e peculiaridades da fronteira. Sua análise inova ao deslocar o olhar das narrativas
que apresentam os índios americanos como vítimas oprimidas da expansão colonial. Neste
aspecto, através da descrição das interações violentas e complexas entre nativos e colonos,
lança luzes n´outra direção: se os índios sofriam a agressão dos colonos, estavam distantes
da imagem de vitimas infelizes dos conquistadores, já que repetidas vezes eram eles os
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agressores e suas estratégias exerceram grande influência no processo de alargamento das
fronteiras da América portuguesa.
Ampliando a escala para observar a dinâmica dos conflitos e das relações de poder
comuns no mundo colonial, Fernando Lemes propõe uma leitura possível sobre o sentido e a
dimensão da fronteira, a partir das noções de cidade capital e poder soberano nas minas e
capitania de Goiás. No coração da América portuguesa, o estabelecimento e a organização
das formas institucionais e das modalidades de relações políticas, decorrem de um processo
que se desdobra no interior de uma vasta região de conquista, como resultado da expansão
do Império português.
Assim, se a expansão do mundo urbano alcança importância significativa nos
espaços habitados da América portuguesa durante o Setecentos, é a cidade ou, mais
especificamente, o município que está no centro análise de Tiziano Chiarotti. Sua
contribuição está, exatamente, em contextualizar a instituição municipal no Brasil a partir
dos períodos colonial e imperial, adentrando, na primeira metade do século XX, a Primeira
República. A partir de um alinhamento a noções caras à história do direito, persegue a
trajetória da instituição municipal, levando em consideração os dispositivos legais que a
disciplinam, sobretudo no tocante à sua criação, atribuições e organização territorial. Neste
aspecto, suas descrições podem ser vistas como contribuições para a compreensão das
etapas do desenvolvimento municipal nos quadros da história de Goiás, contemplando,
desta forma, o tema central do colóquio.
Em seguida, a história do direito é retomada, privilegiando, desta vez, aspectos
específicos de sua trajetória em Goiás. Thiago Santana, numa brilhante exposição, trata,
como ele mesmo explica, do processo de constituição de bacharéis em Direito a partir de
dispositivos tecnológicos forjadores de regras sociais, articulado à experiência de educação
jurídica em Goiás, na primeira metade do século XX. Em três momentos, elabora um quadro
histórico que parte da gênese dos primeiros cursos de direito, percorre em seus aspectos
essenciais o "mundo dos bacharéis" - conferindo toda a sua importância na sociedade
goiana e brasileira da Primeira República - e, finalmente, consegue estabelecer uma
conexão desse mundo, no qual mergulha através da análise de discursos e rituais de colação
de grau na antiga Cidade de Goiás, com as malhas mundializadas da modernidade. Neste
movimento, constrói, por meio das fontes que manipula, pontes efetivas que lhe permitem
recorrer à ideia de “pacto com o diabo”, inspirado pelo clássico Fausto, de Wolfgang Von
Goethe.
Do mesmo modo, através de uma leitura instigante na transição do Império para a
República, Paulo Ribeiro explora o processo de romanização da Igreja no Brasil, pontuando
seus importantes reflexos em Goiás. O pressuposto utilizado é de que apesar de existirem
linhas de confronto entre o clero romanizado e as elites goianas, havia uma forte
aproximação dos princípios e valores católicos com os ideólogos republicanos,
principalmente aqueles que seguiam o pensamento positivista. De acordo com o autor,
embora houvesse uma situação litigante entre o clero e os republicanos no que diz respeito
aos preceitos liberais que fundamentavam a cidadania na forma da lei, em geral não havia
discordância, sobretudo acerca do papel da mulher e as funções sociais da maternidade.
Por sua vez, inovando na leitura a contrapelo da historiografia produzida sobre o
período - que privilegia os vencedores e a formação dos quadros políticos e administrativos
do Estado brasileiro - e, sobretudo, na utilização de fontes históricas que trazem para a cena
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pública o uso de correspondências privadas familiares, o texto apresentado pela professora
Lena Castelo Branco deposita no seio dos ambientes ocupados com a pesquisa histórica
atual uma vertente metodológica exemplar, cuja água deverá alimentar por muito tempo os
moinhos da produção historiográfica em Goiás. Ao percorrer as linhas das cartas trocadas
por membros da família Caiado durante os dois anos que se seguiram ao período de exceção
correspondente à Revolução de 1930, sua narrativa desmente informações oficiais e traz à
superfície da história as vozes dos vencidos, o cotidiano amargo dos políticos e perseguidos,
submetidos à censura até mesmo em seus espaços particulares: são vozes do silêncio que,
detidas pelos acontecimentos da história, falam do âmago da derrota e do ostracismo
através das frestas e passagens abertas pela pena da historiadora.
Logo após, a noção de fronteira é retomada, a partir de uma perspectiva inaugurada
sob os auspícios dos acontecimentos que influenciaram o século XX. No Brasil, nas décadas
de 1940 e 1950, o conceito de colonização representava um movimento orientado por
programas governamentais, cujos exemplos mais marcantes foram a criação das Colônias
Agrícolas Nacionais (1941), da Fundação Brasil Central (1943) e do plano de construção da
nova capital federal. Essa perspectiva de ocupação e colonização apresentava a fronteira
como um novo eldorado no processo de expansão e ocupação do Oeste brasileiro. É neste
contexto que Sandro Dutra estuda a instalação de duas comunidades nas margens do Rio
das Almas, na região central de Goiás: de um lado a sede da Colônia Agrícola Nacional de
Goiás, que deu origem à cidade de Ceres e, na margem oposta, a comunidade da Barranca,
composta de camponeses excluídos da Colônia, atualmente a cidade de Rialma. Os
“encontros e desencontros” observados entre as duas margens do rio, informam as
características de duas formas distintas de expansão de fronteiras: o deslocamento privado
das frentes pioneiras de expansão e a colonização planejada sobre a tutela do Estado. A
partir dos "vocabulários da estigmatização" e de uma leitura muito específica das
representações urbanas, o autor analisa as práticas sociais que diferenciam as duas
localidades estudadas.
No último capitulo, é a ditadura instalada através do golpe militar de 1964 que
ocupa o centro das reflexões de três autores. De acordo com eles, a ditadura civil-militar no
Brasil assume no horizonte da percepção das pessoas a condição de um trauma, cuja
imagem latente representa um obstáculo para a vida prática da sociedade brasileira no
período pós-ditatorial. Neste contexto, aqueles que viveram a experiência traumática têm
necessidade de lutar para superá-la. Por isso o resgate da condição de cidadania dos grupos
envolvidos passaria, antes de tudo, pela memória e, necessariamente, pela consciência
histórica, por meio de uma ação comprometida com o reconhecimento do passado de
sofrimento e dor e, como diria Walter Benjamim, por uma história dos excluídos e dos
vencidos: uma história que possa "redimir" o cidadão brasileiro, "da sua fria indiferença" e
permitir aos mecanismos institucionais da nação continuar avançando em direção ao futuro.
No Brasil, como afirmam os autores, existe um luto inacabado associado, ao mesmo
tempo, a um sentimento de injustiça e à impossibilidade de sepultar os corpos das vítimas
desaparecidas durante a ditadura para que junto deles se possa também enterrar um
passado traumático que insiste em reviver como fantasmas no presente. Fantasmas que
assombram, por sua vez, o futuro de todos os envolvidos. A partir deste fio condutor, os
autores apresentam o resultado de uma pesquisa de campo que verificou a memória social
dos alunos do curso de direito de uma faculdade privada de Goiás, a respeito da ditadura
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civil-militar. Inicialmente, os resultados indicam que embora os alunos possuam uma
“memória apropriada” e negativa da ditadura, eles podem não ter conhecimento do que ela
seja, o que gera lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional,
abrindo espaço, de acordo com hipóteses antecipadas no Plano Nacional de Direitos
Humanos, para que futuras ditaduras possam surgir no futuro.
Convém, também, observar que as conexões entre as ideias aventadas nas
diferentes conferências e debates dão forma ao objetivo maior do colóquio e alinhavam, por
seu turno, o conjunto dos temas discutidos, quais sejam, os desdobramentos anunciados
pela consciência das especificidades em relação à fronteira, os tratamentos distintos
oferecidos ao campo da história do direito, as visões complementares a respeito de uma
história dos vencidos ou excluídos, bem como as representações que entrelaçam territórios
complementares existentes entre as noções de cidade e poder. Além disso, os conteúdos
exibidos aparecem, propositadamente, dispostos em ordem cronológica no intento de
facilitar a apreensão das diferentes temporalidades nas quais os temas são apresentados.
Nas fronteiras do tempo e na geografia dos discursos, também são diversificadas as divisões
temáticas oferecidas pelo conjunto das reflexões que integram o presente colóquio. São
intuições interligadas que refletem conexões transversais, que correlacionam temas
específicos em períodos históricos distintos, revelando ao leitor alguns dos territórios da
história que permitem reconhecer, no tempo e no espaço, os traços que emprestam unidade
e coerência às narrativas sobre Goiás.
Pensados como reflexão capaz de contribuir para a compreensão da história, os
textos aqui reunidos, embora norteados por narrativas ligadas ao passado, oferecem-se
como visões retrospectivas sobre determinados acontecimentos para os leitores que
encontram-se mergulhados no tempo presente. Remetem, contudo, a uma necessidade
imperiosa de orientação para o futuro como parte dos mecanismos indispensáveis
requisitados pelos homens modernos para ajustar a dinâmica de suas próprias vidas. Desde
logo, as narrativas, leituras e interpretações apresentadas não podem ter outra função senão
aquela associada à própria essência da história: ao tornar o passado significativo, pretende
oferecer aos leitores e protagonistas que constroem e participam da história de Goiás uma
interpretação da mudança temporal que atinge em cheio as suas próprias vidas.
FERNANDO LOBO LEMES
Goiânia, abril 2014
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ANHANGUERA:
O MITO FUNDADOR DE GOIÁS
EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS
Doutor em História pela UnB
Professor na UEG e PUC/Goiás
No coração do Brasil,
domínio da primavera
se estende a terra goiana
que nos legou Anhanguera
O bandeirante atrevido
Desbravador do sertão
Em cada pedra abalada
Deixou da audácia um padrão
Hino do Estado de Goiás
INTRODUÇÃO
A imagem do bandeirante percorre os espaços goianos. Ela encontra-se incrustada
em monumentos, praças, escolas, murais, ruas, até na bandeira da moderna cidade de
Goiânia. Mas existe alguma relação histórica entre o segundo Anhanguera e a atual capital
do Estado? Como esta personagem tornou-se uma referência identitária da cultura histórica
goiana?
Descobrir esses jogos de palavras e imagens que fundam as tradições é também
tarefa do historiador. Afinal, elas conformam um passado vivido; constituem uma
atualização dos momentos antigos que costumamos investigar. Porém, esse material é
frequentemente reproduzido sem reflexão. É através da relação crítica que a pesquisa
histórica se formará.
Essa posição não significa que sejamos isentos ou que possamos assumir uma
postura de neutralidade. Nós, historiadores (as), não estamos também embebidos nessas
tradições compartilhadas? Portanto, há uma dupla operação a ser feita: a primeira no eixo
presente-memória-identidade e a segunda na vertente passado-documento-historiografia. As
duas tríades possuem interligações tanto verticais quanto paralelas. Unindo as duas
extremidades percebemos como a produção do saber histórico tem suas condições de
representacionalidade dentro do campo de forças de uma configuração social que busca
conhecer-se:
Historicidade
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Presente
Memória
Identidade
Passado
saber
histórico
Documento
Historiografia
Condições de representacionalidade
De forma geral, as relações intracolunas são referenciadas pela teoria histórica. A
memória é um elemento sempre do presente, pois só pode ser invocada somente nesta
temporalidade e é permanentemente reelaborada por ela. O condicionamento mútuo entre
memória e identidade também é bastante claro, já que lembrar e esquecer são processos
contínuos da manutenção identitária.
Do outro lado, encontramos os elementos comumente abordados nas obras
históricas. O registro documental, de qualquer natureza, possui vestígios de um passado a
ser investigado, quiçá, des-coberto. A análise e a refiguração narrativa daquele tempo
formará a escritura da obra histórica, ou seja, a historiografia que postula um sentido à
temporalidade referida.
Mas se concebermos a fonte documental enquanto um registro da memória?
Teríamos, então, a possibilidade de intercambiar as duas tríades através de seus elementos
centrais. Por um caminho tortuoso, o presente gera o desejo de conhecer o que se passou,
como e porque se passou. O modo de fazê-lo é transformando os vestígios deste outro
tempo em documentos históricos. O termo documento, é bom lembrar, vem de docere,
ensinar, pois ele habilita a transmissão de um saber4. A historiografia interage
intermitentemente com o que uma sociedade lembra e esquece; corrige e atualiza os modos
de lembrança instituídos. Por isso, está influindo nas constituições identitárias.
Simultaneamente, estas demarcam um espaço para os protocolos teórico-metodológicos
viabilizados.
Tais relações são visíveis na historiografia de Goiás. Retomando as figurações e os
usos do personagem Bartolomeu Bueno da Silva, o filho, estudaremos como ele foi
transformado em fundador do Estado e porque suas ações ainda são celebradas na atual e
moderna capital.
O SUCESSO DO SUCESSOR
Goiás nasceu “com a bandeira descobridora e colonizadora do Anhanguera II” 5.
Tomamos um exemplo da historiografia recente, mas esta ideia não é nova, podendo ser
4
5
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 1994, p. 536.
FREITAS, Lena Castello Branco F. de. Goiás: História e cultura. Goiânia: Descubra, 2004, p.39.
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encontrada em diversas obras. Como o nome do Estado e o da primeira vila se confundem,
isso facilita a identificação do famoso bandeirante como fundador de Goiás. Contudo,
reexaminando a documentação, podemos levantar a questão: teria mesmo Anhanguera
criado a Vila Boa de Goiás?
O Hino de Goiás (cf. epígrafe) fala da audácia e do atrevimento de Bartolomeu Bueno,
o filho. Essa adjetivação heroicizante encontra-se já na pena de Silva e Souza, tido como o
“pai da historiografia goiana”6. O escritor afirma em sua Memória sobre o descobrimento,
Governo, População e cousas mais notáveis da Capitania de Goiás, de 1814, que os
conterrâneos paulistas já consideravam o dito bandeirante um herói7. Prossegue
descrevendo o caráter “naturalmente afoito, astucioso e azevado” do Anhanguera. O cenário
constituído induz à ideia de que o valoroso súdito d‟el Rei teria arriscado a vida
corajosamente para beneficiar o Império Português.
Esta visão gloriosa do Movimento Bandeirante, influente na historiografia de Goiás,
tem sua contraparte na obra de autores clássicos como Capistrano de Abreu e Sérgio
Buarque de Holanda. Nos Capítulos de História Colonial, publicado em 1907, Abreu analisou
as entradas ao “sertão” pela ótica dos nativos, denunciando as inúmeras violências, crimes e
ilegalidades cometidas8. Já Holanda envereda pela história social, descrevendo em Monções,
de 1945, a situação de pobreza da Vila de Piratininga e a solução das jornadas dos
bandeirantes como uma empresa puramente comercial para fugir daquela miséria9.
Não tentaremos aqui construir uma via média, pois a busca de equilíbrio nem
sempre é a melhor posição. Anhanguera possivelmente estava endividado quando se
ofereceu ao governador Rodrigo César de Menezes para fazer uma expedição às terras do
gentio Goiás. Nas suas lembranças, ele havia andado com o pai, quando tinha cerca de doze
anos, pela região do rio Araguaia, havendo ali recolhido algum ouro. Mas qual o motivo de
procurar retornar àquele local com a idade de quase sessenta anos? Por que seu “impulso
aventureiro” teria arrefecido por praticamente meio século?
Em 1719, as abundantes minas de Cuiabá tinham sido encontradas, o que
reacendeu os sonhos de enriquecimento fácil dos paulistas. Àquela altura, o que o pai
homônimo amealhara nas Minas Gerais parece já ter sido dissipado. Com discrição, a carta
do governador informando à metrópole sobre a bandeira anhanguerina afirma que, apesar
de Anhanguera possuir “muita experiência do sertão dos Guayazes”, ele não fizera “o seu
descobrimento por falta de meios”10.
O financiador da expedição foi, então, João Leite da Silva Ortiz, que precisou vender
“ricas lavras no Rio das Velhas”11. Completaram a bandeira os homens sob a chefia de
Domingues Rodrigues do Prado. Vê-se que existe um grande descompasso entre a memória
social acerca da figura de Bartolomeu Bueno e a dos outros bandeirantes.
Na casa em que viveu, na Cidade de Goiás, o Instituto Histórico e Geográfico do Estado colocou uma placa onde
tal epíteto foi escrito. Já no Dicionário do Escritor Goiano (Goiânia: Kelps, 2000), José Mendonça Teles o chama
de “pai da história de Goiás” (p. 195).
7 In: TELES, José M. (ed.) Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998, p.73.
8 ABREU, João Capistrano. Capítulos de História Colonial. Brasília: UnB, 1982, 113 seq.
9 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.182.
10 Projeto Resgate, CD - Capitania de São Paulo, 1, doc. 250. José Martins Pereira Alencastre, escrevendo na
segunda metade do século seguinte, repete a afirmação deste documento: “Não dispondo por si só dos meios
que carecia para a realização de tão alta empresa, associou-se...”. Cf. ALENCASTRE, José M. P. de. Anais da
província de Goiás. Goiânia: SUDECO, 1979, p. 33.
11 SALLES, Gilka V. F. de. Economia e escravidão em Goiás. Goiânia: UFG, 1983, p.70.
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A partida de São Paulo, informa a documentação, ocorreu em julho de 1722. Por
quase três anos a tropa permaneceu circulando pelos sertões, perdida, procurando ouro. É
provável que tenha ido ao atual Mato Grosso sondar os rios. Há notícia de uma parada no rio
Pilões, com algum sucesso nas prospecções12. Porém, este não era o lugar onde Bartolomeu
Bueno, o pai, tinha encontrado alguns índios mansos com filetes de ouro. As revoltas, mortes
e fugas ocorridas na expedição deixavam a continuidade da exploração inviável. Há
controvérsias, contudo o mais provável é que a bandeira tenha retornado para São Paulo
sem atingir seu objetivo.
A notícia das duas expedições é clara na “Relação” escrita por José Ribeiro da
Fonseca, em 1784, e na obra de Silva e Souza 13. Numa carta ao governo do Rio de Janeiro,
datada de 15 de março de 1724, D. Rodrigo fala na pobreza de São Paulo e que fora difícil
reunir vinte e poucos casais indígenas para enviar para o empreendimento do
“descobrimento de Goiás”. No início do ano seguinte, ele enviou um novo reforço14.
A historiografia goiana foi lentamente rejeitando este malogro. Alencastre fala da
existência de duas tradições na Província de Goiás do seu tempo: a que o bandeirante
encontrou o procurado ouro na primeira viagem e a que punha seu sucesso somente na
segunda entrada. Apressa-se, então, a defender a primeira versão:
os documentos que dela rezam, os quais compulsamos com algum cuidado,
fortificam-nos na convicção de que Bueno viu nessa primeira viagem Coroados os
seus desejos, e conseguiu plenamente o almejado fim dos seus trabalhos...15
O raciocínio traz a retórica do convencimento. Sua opinião consistiria em uma
“convicção” fundada em documentos cuidadosamente analisados. Já Silva e Souza é
criticado no texto por ter escrito essa “novela mal contada” e não citar suas fontes
objetivamente. O Governador Alencastre prefere Coroar os desejos e habilidades de
Anhanguera, descobridor de Goiás. Chama-o na sequencia do texto de “novo Colombo” e
evoca, em contraposição a vertente crítica da História que parece seguir, a Divina
Providência como causa histórica:
“Quis, porém, a Divina Providência que, depois de três
anos dos maiores sofrimentos, chegasse a Bueno com sua gente ao ponto do seu almejado
destino”16.
O bandeirante, destarte, cumpriu seu destino histórico. Deus agiu através dele,
tornando-se o tempo em que andou perdido muito mais uma provação. Ele fez o
descobrimento por suas próprias forças, pois quando o governador de São Paulo estava
SOUZA, Pe. Luís A. da Silva e. Memória sobre o descobrimento, Governo, População e cousas mais notáveis da
Capitania de Goiás, op. cit. p. 75.
13 A Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva, escrita por José
ribeiro da Fonseca está inserida na Notícia Geral da Capitania de Goiás encontra-se na coletânea de documentos
reunida por Paulo Bertran intitulada Notícia Geral da Capitania de Goiás. Goiânia: SGC, 1997, p. 45-49. Esta
fonte afirma que Anhanguera se recolheu a São Paulo em 1725 e “prosseguiu a preparar-se para nova entrada, e
com efeito no ano seguinte de 1726 saiu segunda vez de São Paulo...” (idem, p. 48). O padre Luís Antônio de
Silva e Souza (op. cit., p. 77) diz que com vergonha do insucesso, Anhanguera ficou escondido em São Paulo,
surgindo talvez daí as notícias desencontradas quanto a este retorno.
14 Projeto Resgate, CD - Capitania de São Paulo, 1, docs. 374 e 485.
15 ALENCASTRE, José M. P. de. Anais da província de Goiás. Goiânia: SUDECO, 1979, p.38.
16 Ibidem.
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preparado para enviar-lhe socorros, chegou Anhanguera com as demonstrações do sucesso
de sua “empresa”17.
A versão da vitoriosa primeira viagem foi corroborada por autoridades como o
professor Americano do Brasil, já no século XX. Se a concepção providencialista desapareceu
em seus textos, o sentimento de veneração com a personagem ficara elevado. Bartolomeu
Bueno, escreve, tornou-se “digno da legenda”18. O termo legenda, como lembra Michel de
Certeau, remete à forma correta de leitura e interpretação, àquilo que deve ser apreendido
da “lei” de uma lenda19.
Professor Americano retarda, na sua narrativa épica, até o último momento a
descoberta do ouro, no ano de 1725, tratando aquele achado como um ato de fundação:
(...) quando já era insustentável a explosão da rebeldia dos comandados de
Bartolomeu, eis que a bandeira descobre o famoso lugar em que pelo mesmo tempo,
havia estado o sertanista em companhia do primeiro Anhanguera, localidade que se
supõe ser o ferreiro, segundo uns, e a Barra segundo outros e cuja fundação marca o
início do povoamento de Goiás20.
As dúvidas quanto ao local correto não abalam a certeza acerca do início, tanto da
História de Goiás como do povoamento - na verdade, a colonização despovoadora. O clima
de heroísmo é reforçado pelo caráter “audaz”, pela “tenacidade”, pela “inabalável convicção”
de encontrar o lugar certo. É claro que na pena de Americano, o movimento bandeirante é
uma “grande epopeia”. Poderia fracassar alguém com tal investidura? O “pioneiro”
Anhanguera vai a São Paulo apenas proclamar sua descoberta. Em 1726, retornou a Goiás
já com plenos poderes de descobridor21.
Com um pouco mais de dados, essa visão da Bandeira foi retomada no primeiro
manual didático de História de Goiás, publicado em 1932 pelo mesmo autor 22. Ela se
consolidou e assumiu a forma de uma tradição. No manual feito por Luís Palacin e Maria A.
de Sant‟Ana Moraes, na década de noventa, essa versão heroica foi reproduzida: “quando já
lhe restavam poucos companheiros, descobriu ouro nas cabeceiras do Rio Vermelho” 23. A
diferença é que, dessa vez, o ouro surge já na zona da atual Cidade de Goiás. Anhanguera
torna-se, portanto, o fundador da Vila Boa.
UMA INJUSTIÇA HISTÓRICA
Essa informação é a que circula na antiga capital. A cidade mantém, inclusive, a cruz
chantada na criação do vilarejo. Podíamos discutir o fato a partir da cronologia dos
“descobertos” do ouro. Na época do padre Silva e Souza, as vozes eram controversas: uns
diziam ter surgido inicialmente o Arraial do Ferreiro, outros o lugar de Ouro Fino. Povoação
mesmo, ele cita a Barra como sendo a primeira (hoje, Buenolândia). O Arraial de Sant‟Anna
ALENCASTRE, José M. P. de. Anais da província de Goiás, op.cit., p. 42.
BRASIL, Americano do. Pela História de Goiás. Goiânia: UFG, 1980, p.29.
19 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, vol. 1, 1996, p. 84.
20 BRASIL, Americano do. Pela História de Goiás, op.cit., p. 30.
21 Idem, p. 31.
22 BRASIL, Americano do. Súmula da História de Goiás. Goiânia: UFG, p. 32.
23 PALACIN, Luís e MORAES, Maria Augusta de S. História de Goiás. Goiânia: UCG, 1994, p. 11.
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vem depois, tendo Anhanguera por lá morado24. No relato de Ribeiro da Fonseca, as
informações se assemelham25. Entretanto, não cremos ser a exata ordem cronológica tão
relevante. Maior importância tem a compreensão do processo histórico de criação da Vila
Boa de Goiás. A hipótese que nos surge com o exame da documentação é que a primeira e
única vila criada na Capitania de Goiás foi fundada justamente contra a vontade de
Bartolomeu Bueno da Silva. Vejamos o por quê.
Com as riquezas encontradas no sertão de Goiás, o governador de São Paulo
concedeu ao bandeirante o cargo de capitão-mor da nova região. Em agosto de 1732, o
Conde de Sazerdas refere-se a ele como “superintendente” das minas e fala de seu zelo na
administração26. Contudo, dois meses depois reclama de seu excesso de autoridade na
condenação de alguns povoadores. Isso gerou insatisfação nos súditos d‟El Rei que
habitavam Goiás27.
Dois anos depois, o conde relata um caso de desobediência explícita de suas ordens,
levantando suspeitas de corrupção por parte de Bueno. Havia notícias da existência de
diamantes na zona do rio Claro e do rio Pilões. Na legislação, tal extração pertencia
exclusivamente à Coroa Portuguesa ou a quem ela arrendasse. Anhanguera fez uma
expedição para averiguar e acabou excedendo-se nas pesquisas, demorando bem mais que
o devido. Provocou ainda um conflito com os índios Caiapó que deixou “desertos” ambos os
rios28.
Na documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino, temos também um
retrato não muito positivo da administração do bandeirante. Uma carta do vigário do arraial
de Sant‟Ana, datada de 5 de maio de 1732, descreve os muitos “descaminhos” do ouro e
afirma que a Fazenda Real em nada tem aproveitado daquelas extrações. A citada
correspondência não nomeia diretamente Bartolomeu Bueno, mas refere-se à tentativa do
“governador”, como é chamado, de esconder o que se passava nos Goyazes29.
Já o requerimento de outro clérigo, frei Cosme de Santo André, faz varias acusações
contra o “descobridor”. Ele tinha tomado posse de diversas passagens que não tinha direito rio Grande, rio das Velhas, Parnaíba, Guacorumbá, Meia Ponte - cobrando taxas excessivas30.
Além disso, impedia que se fizessem roças ali, vendendo seus produtos por preços
exorbitantes. Anhanguera ainda estava explorando indevidamente os índios. Tinha vendido
mais de cem homens retirados de uma aldeia Caiapó. Como no caso anterior, percebe-se a
existência de conflitos entre este religioso, que acompanhara a entrada de 1722, e o
bandeirante.
O coro foi reforçado em 1735 pelo recém empossado superintendente das Minas de
Goiás, Gregório Dias da Silva. Seu antecessor, afirma, ignorava completamente as leis
régias, permitindo até a permanência de estrangeiros na região31. As ordens de São Paulo
eram regularmente descumpridas e a corrupção grassava na Intendência, ou seja, na
instituição responsável pelo controle do contrabando e pela administração dos impostos. As
SOUZA, Luís A. da Silva e. Memória sobre o descobrimento, Governo, População e cousas mais notáveis da
Capitania de Goiás, op. cit., p. 77-79.
25 A Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva, op.cit., p. 48.
26 Cartas dos governadores de Goiás (1724 -1736). Revista do Arquivo Histórico Estadual, 2, 1980, p. 39.
27 Idem, p. 40.
28 Idem, p. 43.
29 Projeto Resgate, CD da Capitania de Goiás, 1, doc. 4.
30 Idem, doc. 5.
31 Idem, doc.13.
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acusações acerca da exploração indevida do trabalho indígena, bem como dos altos preços
das passagens ali se repetem.
As insistentes denúncias levaram o Conselho Ultramarino a podar os direitos do
descobridor. Suas competências foram retalhadas através da criação de novos cargos,
processo iniciado já em 173132. Em fevereiro de 1736, a carta régia criando a Vila Boa de
Goiás foi expedida33. O governador de São Paulo deveria ir pessoalmente demarcar o lugar,
iniciando as construções necessárias aos órgãos: Casa da Câmara, Cadeia, Audiências,
Oficinas públicas, Igreja, etc. As eleições seriam imediatas.
A ordenança foi cumprida parcialmente pelo governador D. Antonio Luiz de Távora,
que faleceu na viagem. O governador seguinte veio, então, efetivar a carta régia em 1739. A
esse governador, D. Luís de Mascarenhas, é atribuída a história da doação de uma arroba de
ouro a Bartolomeu Bueno, que estaria muito pobre, devido aos inúmeros serviços prestados
à Coroa. Como depois os órgãos metropolitanos não aprovaram o procedimento, a família
teria os bens sequestrados para a restituição do valor.
Esse caso foi narrado pelo padre Silva e Souza e reproduzido por outros cronistas,
sendo de difícil comprovação. A doação dessa quantidade de ouro, de qualquer modo, nos
parece bastante estranha. É mais provável que o processo contra Anhanguera tenha ocorrido
pelas inúmeras denuncias sobre sua administração. Não encontramos tal processo, mas há
notícia de uma devassa correndo pelo ano de 1737. Ela encontra-se anexada em um pedido
de arrendamento das passagens que, a princípio, pertenceria ao descobridor34. Mesmo
havendo interesse em detratar o bandeirante, a data recuada do documento indica não ser a
suposta doação o motivo das desavenças com a metrópole.
A situação final de Bartolomeu Bueno da Silva, o filho, induziu os cronistas a
comentarem a injustiça com o nobre descobridor. Luís Antônio da Silva e Souza fala com
admiração de como “um cidadão útil”, que fez “assinalados serviços ao Estado”, nos legando
“o vantajoso descobrimento de Goyaz”, tenha caído nessa situação de “decadência” 35.
Alencastre carrega mais nas tintas, construindo uma espécie de epitáfio depois de relatar a
morte36 do famoso bandeirante:
Era Bueno distinto por seu nascimento, porque descendia desse Amador Bueno, tão
célebre nos anais da Capitania de S. Vicente, e como este também fiel, honrado e
probo: rico de bens da fortuna, empobreceu no serviço da pátria. (...) Aquele que
Cf. Projeto Resgate, CD da Capitania de São Paulo, 1, doc. 756. A narrativa de Silva e Souza segue a mesma
direção que estamos apontando. Ele diz que Bartolomeu Bueno continuou “a exercitar a sua jurisdição com toda
a plenitude de poderes, até que paulatinamente se lhe foi coarctando, primeiramente com a chegada do ouvidor
de S. Paulo, Gregório Dias da Silva, que veio com o título de superintendente...; depois com a vinda do Conde de
Sazerdas, que nomeou um comandante, que foi o capitão de dragões José de Morais Cabral...”. Cf. SOUZA, Luís A.
da Silva e. Memória sobre o descobrimento, Governo, População e cousas mais notáveis da Capitania de Goiás,
op. cit., p. 83.
33 Em nenhum momento o documento fala em elevação do Arraial de Sant‟Ana, que sequer é nomeado. O
governador escolheria o sítio onde a vila seria criada, próximo a algum arraial já existente. Silva e Souza também
utiliza o verbo “criar” para a Vila. O texto integral da Carta Régia pode ser lido em COELHO, Gustavo Neiva. Goiás:
uma reflexão sobre a formação do espaço urbano. Goiânia: UCG, 1996, p.12-14.
34 Projeto Resgate, CD da Capitania de Goiás, 1, doc. 289.
35 SOUZA, Luís A. da Silva e. Memória sobre o descobrimento, Governo, População e cousas mais notáveis da
Capitania de Goiás, op. cit., p. 82.
36 A data de falecimento seguida pelo cronista, 19 de setembro de 1740, é a mesma dada por Silva e Souza. Não
há notícias ou documentos que a confirmem. Affonso de Taunay em sua monumental História das bandeiras
paulistas (tomo II. 3a ed. São Paulo: Edições melhoramentos, 1975, p. 243) prefere o ano de 1738, o que excluiria
Bartolomeu Bueno da criação de Vila Boa.
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houvera ornado o diadema português com um brasão de inestimável preço, que
tinha dado milhões aos cofres reais; que sacrificara a sua fortuna em bem do Estado
e do serviço do rei, que por tantas tribulações e sofrimentos passara, - nos últimos
dias de sua existência, em vez de recompensa dos seus serviços, devia ser punido
com a vergonha de um sequestro por haver recebido uma esmola!37
A canonização do personagem é nítida: ele seria um herói da “pátria”. O parágrafo foi
redigido contrastando o bandeirante dedicado e honrado ao rei injusto; os milhões que
acarretou à metrópole e a sua pobreza final; a recompensa justa esperada e a punição
recebida. A adjetivação corrobora com os fatos apontados, induzindo ao espírito cívico.
Somente no nível espiritual a justiça poderá prevalecer: “Deus que é justo e previdente,
chamou a vítima à sua mansão celeste, para preservá-la da dor atroz que sentiria por tão
desapiedado e profundo golpe!”38.
Mas a lembrança dos feitos grandiosos também poderia redimir tal injustiça.
Americano do Brasil, no início do século XX, conclamava a tal ação coletiva de uma
“homenagem póstuma”:
É das figuras mais dignas de ser memoradas no dia de hoje, já por ter sido o iniciador
da edificação dessa cidade (Goiás), já pela importância de seu papel na história geral
deste Estado. Tendo por sua ousadia reunido novos padrões à férrica grandeza de
Portugal, tendo enfeixado em suas mãos as mais altas honras que poderia aspirar,
entretanto, Bartolomeu Bueno, no último estágio de sua vida, foi um desprezado,
tendo deixado de existir na maior miséria39.
A manipulação dos eventos favorece ao trato heroicizado, ou seja, a história é
colocada nestes autores a serviço da memória e do presente. A transformação direciona-se
para a formação de um mito fundador, algo que pertenceria à própria identidade goiana.
Como escreveu Doutor Americano, a “memória imperecível de Bartolomeu Bueno (...) há de
viver em coração humano enquanto existir o último goiano”40.
A HISTÓRIA NO CORAÇÃO
Nas obras citadas acima, o método crítico e erudito da historiografia clássica tornouse atenuado. É o que acarreta a introdução da história pátria no coração. A historiografia, na
verdade, não perde sua racionalidade própria, mas ganha elementos que suplementam os
da investigação.
A transformação demonstrada através da historiografia goiana na imagem do
segundo Anhanguera converge com os estudos literários acerca das narrativas míticas e
folclóricas. Uma importante abordagem dessa temática foi feita pelo russo Vladimir Propp
ALENCASTRE, José M. P. de. Anais da província de Goiás, op.cit., p. 80.
Ibidem.
39 BRASIL, Americano do. Pela História de Goiás, op.cit., p.32.
40 Ibidem.
37
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na primeira metade do século XX. O autor tentou identificar de modo morfológico as
“funções”41 básicas dos personagens neste tipo de conto.
Comparando com a caracterização da vida de Bartolomeu Bueno que tomou forma
na historiografia de Goiás, encontramos vários pontos de convergência. São exemplos o
nascimento nobre, a aventura fora do conforto do lar, a prova/desafio de encontrar o ouro, a
superação e a vitória momentânea, o segundo desafio da administração, o elemento
coadjutor (o governador) e a vitória final contra o rei mau (que ocorre simbolicamente na
memória social).
Contudo, os “contos maravilhosos” analisados por Propp não são narrativas
históricas. No fim dos contos o herói costuma terminar rico e feliz. Esse não foi o caso de
Anhanguera, que morreu injustiçado. Tal característica nos mitos históricos, apontou Freud,
é bem relevante.
O criador da psicanálise realizou em Moisés e o Monoteísmo interessantes análises
da memória coletiva judaica, que se pretende enraizada justamente na história. Alguns
elementos colocados por ele e por Propp são, inclusive, comuns 42. Mas considerando a
relação das narrativas com a historicidade de modo mais enfático, ele analisa os caminhos
tortuosos da mitificação relacionando-a com a identidade social. Isso ocorreu com
personagens como Moisés, dentro do judaísmo, e com Jesus, nos quadros do cristianismo.
Inicialmente, afirma Freud, os defeitos e traumas ocorridos seriam apagados pela
tradição emergente, do mesmo modo que ocorre nos processos neuróticos 43.
Posteriormente, as extremidades das narrativas são destacadas em detrimento do “miolo”
das séries factuais. A personagem em heroicização é, então, hipostasiada na figura de um
pai bom44. A “verdade histórica” passa, nesse nível, a funcionar como se estivesse no quadro
de um “delírio”, escreve o autor45.
Morrer como um mártir, ou como um guerreiro injustiçado, leva ao remorso coletivo
e, consequentemente, ao cultivo (talvez culto seja até uma palavra mais apropriada) através
da tradição que vai sendo reproduzida e recriada46. Basta observar o raciocínio feito por
Americano do Brasil, afirmando que Anhanguera morreu para permanecer eternamente no
coração goiano. Freud, obviamente, estava tratando em seu estudo mais dos fundadores de
religiões47, mas as intuições histórico-psicológicas que levantou, cremos, ajudam na reflexão
sobre a heroicização do bandeirante em Goiás.
O caráter intrépido, corajoso, aventureiro, sonhador, capaz de lutar pelo
enriquecimento de si e da pátria, bom destacar, confere um sentimento de autoestima aos
herdeiros do fundador. Esse poderoso e amável “pai” é um modelo de ação, alguém a ser
imitado socialmente. Por outro lado, tal ascensão mítica, lembra-nos Freud, desperta o
temor e a consequente noção de limite48. Na perspectiva psicanalítica, o temor e admiração
A definição de função neste caso indica “a ação de um personagem, definida do ponto de vista de sua
significação no desenrolar da intriga”. PROPP, Vladimir. Morphologie du conte. Paris: Seuil, 1970, p. 31.
42 Cf. FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago, 1982, p. 22-26.
43 Idem, p. 91.
44 Idem, p. 102.
45 Idem, p. 105.
46 Idem, p. 110.
47 Vladimir Propp igualmente relacionou a formação dos contos folclóricos com “as antigas representações
religiosas”. Cf. PROPP, Vladimir. Morphologie du conte, op. cit., p. 176.
48 FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo, op.cit., p. 131.
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são constituintes importantes tanto do campo da religiosidade quanto no da política. Parece
que a historiografia ficou em algum nível intermediário entre ambos.
O MOVIMENTO DO MITO
Ao observamos como a história do Anhanguera tornou-se a narrativa fundadora de
Goiás, lançamos, assim, a hipótese pela correlação entre o primeiro representante do Estado
e sua posterior recriação através de uma tradição mítica da figura bandeirante. Tanto o
Estado quanto a religião, demonstrou Gauchet, possuem essa dívida mítica enquanto
fundamento. A tradição comemorativa, que insere a lembrança no rito, tenta “pagá-la”
repetidamente, mas nunca consegue quitá-la49.
Neste sentido, pode-se agora definir melhor o que seria um mito histórico: Uma
narrativa geradora de práticas, apropriada por um grupo social, que traveste um conjunto de
valores com um conjunto de eventos. Ao chamar a tradicional história anhanguerina de mito
fundador, correlacionamos esse processo com a busca das origens, algo que nunca é
eminentemente histórico. Por que? Porque esse tempo das origens é um tempo reversível,
afirma Eliade, bem distinto do cronológico. O espaço também é relativizado, podendo a
narrativa ser reatualizada em diferentes contextos50. Tal reatualização acaba colocando o
saber histórico a serviço dos processos de manutenção identitária.
É dessa forma que a figura anhanguerina habitará Goiânia? Ora, a capital foi
planejada, como se sabe, sob a égide da modernização. Em princípio, o grupo ligado a Pedro
Ludovico desejava romper com a tradição, com o coronelismo e o atavismo da velha Goiás.
Mas se Anhanguera era considerado o fundador da antiga capital, sua memória histórica não
deveria ter permanecido por lá? Existe uma contradição?
Por outro lado, a cidade de Goiás foi conclamada como patrimônio histórico da
humanidade pela UNESCO. O motivo do título inclui o bom estado de conservação das ruas,
prédios, casas e igrejas que, a princípio, remontariam aos antigos tempos coloniais. Este
apego ao passado, entretanto, não é tão antigo assim. É o que pode-se descobrir na
pesquisa dos jornais publicados na primeira capital nos primórdios do século anterior.
O que se nota desta leitura é, inicialmente, uma ausência. Há um grande silêncio
sobre a história da cidade e suas efemérides. Quanto aos “monumentos” de Goiás –
ressalte-se que não aparecem sob este termo – estavam geralmente abandonados no início
dos tempos republicanos. Até a catedral da capital, ainda inconclusa, estava numa situação
“lastimável” tanto nos fins do século XIX quanto no começo do XX51.
Importante no processo de redescoberta do passado foi o ano de 1922. Foram
inúmeras as comemorações ligadas ao centenário da independência do Brasil. Desde o
começo daquele ano, notícias anunciavam a participação de Goiás na grande Exposição
Internacional que ocorreria na capital federal em setembro52. A participação do Estado foi
considerada um sucesso, levando madeiras, cereais, plantas medicinais da região e um
GAUCHET, Marcel. Le desèchantament du monde. Paris: Gallimard, 1985.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
51 Pode-se ler a descrição de sua situação no jornal O Comércio de 2 de agosto de 1879, p. 2. Ainda em 1926, a
igreja estava bastante deteriorada, sendo transferida a função de catedral para a Igreja do Carmo (cf. O
democrata, 9 de abril de 1926, p. 2). A Igreja da Boa Morte também funcionou, por décadas, como lugar da sede
episcopal.
52 Cf. A Imprensa de 2 de fevereiro de 1922, p. 2.
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grande número de minérios53. Só produtos naturais, portanto. Nada relacionado à história ou
as tradições populares, apesar dos claros objetivos de celebração da cultura nacional
brasileira propostos pelo evento54.
Naquele mesmo ano, foi publicado na Imprensa um interessante artigo relatando a
busca pela cova do bandeirante. Corpo do fundador, corpo da pátria. Uma pessoa que assina
como Thales viajou até a povoação de Barra (atual Buenolândia) para procurar o local onde
estariam os restos mortais de Bartolomeu Bueno da Silva. Colheu informações incertas,
inquiriu as pessoas idosas e localizou-os numa sepultura próxima a pequena igreja do
arraial. Sugere às autoridades, então, que sejam feitas averiguações acuradas para que,
posteriormente, os ossos fossem transladados solenemente para a capital de Goiás.
Esse artigo intitula-se “Pelo centenário”55. Naquele ano, estavam sendo completados
dois séculos da partida da bandeira de Anhanguera da cidade de São Paulo. O autor,
contudo, prefere correlacionar seu esforço investigador com os cem anos do “grito de
independência” feito por D. Pedro I. A nação, por conseguinte, parece ter mais peso na
memória social que a localidade.
Sobre a identificação de Bartolomeu Bueno como fundador de Goiás, o processo já
vinha ocorrendo na imprensa. Em 1918, Americano do Brasil iniciou uma série de artigos no
Correio Oficial tratando do passado goiano. Reclama da falta de conhecimento geral acerca
da história regional e até da “falta de dados precisos”. Os primeiros artigos heroicizavam
bastante os atos do bandeirante, bem como apontavam, nas suas conclusões, para o
progresso esperado no futuro56.
Ainda em 1918, quando eram comemorados os cem anos da elevação de Goiás à
categoria de cidade, a chamada “Cruz do Anhanguera” fora encontrada. Estranhamente, isso
ocorreu bem longe daquela área, nas proximidades de Catalão. Os operários que construíam
a estrada de ferro encontraram o referido objeto soterrado superficialmente. Uma hipótese
plausível, já aventada na época, era ser aquela cruz o lugar onde estaria enterrado alguém
com relativa importância57. A elite de Goiás, todavia, resolveu requisitá-la pela possibilidade
de remontar ao tempo dos bandeirantes. Conta Mendonça Teles que o governo de São Paulo
também reivindicou tal achado58.
A famosa cruz não deixa de ilustrar o desapego com o passado predominante neste
período. Um pequeno pedestal para colocá-la foi construído próximo às margens do Rio
vermelho e houve uma missa campal para inaugurá-lo. Duas décadas depois, Garibaldi de
Um bom relatório da participação goiana encontra-se no jornal O Democrata, de 26 de janeiro de 1923.
SANDES, Noé Freire. A invenção das tradições: entre a monarquia e a república. Goiânia: UFG, 2000, p. 113.
55 Publicado em A Imprensa de 2 de fevereiro de 1922, p. 2. Sobre a importância da Comemoração do
Centenário na construção da memória histórica brasileira, afirma Noé Freire Sandes que 1922 foi o ano da
“refundação da história nacional” (op. cit., p.101). Opinião semelhante defende José Murilo de Carvalho: a
república recriou a tradição nacional no intuito de formar a identidade coletiva brasileira. CARVALHO, José Murilo
de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 32.
56 No primeiro, publicado em 17 de setembro de 1918, ele encerrou conclamando a “atirarmo-nos à dignificadora
obra de engrandecimento da terra goiana, para que ela possa um dia ser não o coração mas o cérebro do Brasil”
Cf. BRASIL, Americano do. Pela História de Goiás, op. cit., p. 27).
57 PINHEIRO, Antônio César C. Os tempos míticos das cidades de Goiás: mitos de origem e invenção das
tradições. Dissertação de Mestrado. (Mestrado em História). Goiânia: UFG, 2003, p. 31.
58 A versão que este escritor conta é muito mais fantástica, partindo o juiz Luís do Couto em busca “da rota do
Anhanguera” e encontrando a referida cruz (id.: 45-46). TELES, José Mendonça. Crônicas vilaboenses. Goiânia:
Kelps, 2005, p. 46.
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Castro protestava contra a situação deplorável em que se encontrava aquela cruz e
comentava o ar demasiado singelo do monumento59.
Este protesto faz parte de um outro momento. Já estamos nos fins dos anos trinta e a
Cidade de Goiás não era mais a capital do Estado. O cultivo da história neste período já
estava inflacionado. Ou seja, foi a decadência político-social que fez os vilaboenses voltarem
os olhos para o passado “glorioso”. A modernização tão valorizada nas primeiras décadas do
século - por exemplo, a luz elétrica instalada em 1923 - não era mais vislumbrada. Restavam
os símbolos do fausto e os mortos a serem monumentalizados60.
O escritor Octo Marques redigiu dois artigos significativos deste novo período,
editados no recém fundado jornal Cidade de Goiás. No primeiro, define Goiás como uma
“cidade à moda antiga, com seus monumentos atestando um passado de lutas”. Relaciona,
então, o impulso civilizador da cultura goiana com o movimento bandeirante. Foi ele que
nos legou “a semente de um tradicionalismo puro e cordial” 61. Apesar do significado dessa
expressão não ser tão clara, interessa observar a relevância crescente que a tradição e o
passado foi adquirindo na intelectualidade local.
O segundo texto foi publicado em 2 de agosto de 1938, depois das celebrações
ocorridas em 26 de julho, data considerada da fundação do Arraial de Santa‟Ana. Talvez
esse texto, inclusive, tenha sido lido durante as comemorações, que passaram a acontecer
todos os anos. Intitulava-se “Um grande amigo de Bartolomeu Bueno”, tratando-se de uma
descrição romanceada da sua morte.
O cenário inicia tenebroso: chuva, trovões, relâmpagos. Num casebre pobre e
decadente, jaz o Anhanguera moribundo. Um diálogo ocorre, então, entre o famoso
bandeirante e seu “esquelético cão”. O ex-capitão-mor de Goiás reivindica ter fundado Vila
Boa “com a ajuda de Deus e dos índios”, mas reclama de ter sido enxotado dela. Comparase, então, com a situação miserável de seu cachorro. Até pede-lhe vingativamente que nunca
pise novamente naquela cidade. Bueno da Silva termina falecendo durante a aurora. O final
do artigo surpreende: “O cão amigo de Anhanguera, faltando ao juramento, viera ali [a
Cidade de Goiás] para reclamar daquele povo a eterna ausência de seu dono...”62.
O raciocínio invocado no texto inverte as posições lógicas. O cão possui os
sentimentos justos dos humanos; cultiva a memória de “seu dono”. Indiretamente, essa
referência do domínio remete à figura do fundador de Goiás, presente de modo velado na
“sua” cidade. O conto reclamando a lembrança ostensiva, o cultivo da memória bandeirante,
tenta “humanizar” pelo reconhecimento histórico. A argumentação visa, assim, culpabilizar
quem não assume essa postura, comparando-os aos animais. Desta forma:
Gente
vs
Cão
Lembrar
Não lembrar
Humano
Anhanguera
vs
Animal
Jornal Cidade de Goiás, 14 de agosto de 1938, p. 1.
Em sua etimologia, ressalte-se, a palavra monumento remete ao que trás à mente os mortos.
61 Jornal Cidade de Goiás, 6 de julho de 1938, p. 3.
62 Idem, 2 de agosto de 1938, p. 1 e 4.
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O fundador da cidade, no relato, morrera execrado, pobre e sem amigos. Agora, era
hora dos “herdeiros” de Goiás resgatarem sua vida do esquecimento. O número anterior do
referido jornal já havia conclamado à população: “Não pode passar desapercebida a data de
26 de julho...”63. Na edição seguinte, a mesma do texto de Octo Marques, a primeira página
estampava: “Foram empolgantes os festejos do dia 26, data da descoberta de Goiás”. A
população despertou sob o badalar dos sinos, houve foguetório, bandas de música, procissão
pela tarde, recital de poesias e baile pela noite. Mais de cinco mil pessoas, afirma a notícia,
prestigiaram as atividades, numa “empolgante manifestação da vitalidade de Goiás”64.
A antiga capital passava a viver, na verdade, cada vez mais de seu passado.
Enquanto isso, uma cidade “sem história” estava sendo criada: Goiânia.
A TRANSFERÊNCIA DA MEMÓRIA
Ao ser questionado acerca das vantagens daquela nova capital, o juiz Benjamim
Vieira respondeu que seu maior encantamento era com “a falta de história”. Com isso, ele
aludia à ausência de fortes tradições familiares na esfera política, todos se sentindo
corresponsáveis pela gestão da cidade em edificação. Desta forma, acreditava, muitos
problemas futuros seriam evitados65.
A construção de Goiânia ocorreu sob a marca do futuro e da modernidade. Ser
modernista e ser mudancista tornaram-se praticamente sinônimos nesta época, ganhando
os dois termos um sentido positivo nos novos periódicos que foram sendo criados. Os jornais
da nova capital faziam questão de correlacionar as duas ideias, demonstrando
cotidianamente o eminente progresso: ruas largas, carros circulando, arquitetura moderna, o
avião diário da VASP, etc. Claude Levi-Strauss teve essa impressão quando passou pela
cidade, em 1937. A população orgulhava-se, afirma, dos “arruamentos, caminhos de ferro,
água canalizada, esgotos e cinemas”. Eram vários!66. Ao mesmo tempo, o famoso
antropólogo fala com desdém daquela mistura de campos baldios e postes elétricos 67.
Essa imagem de modernidade foi propagada para os demais estados brasileiros. Em
1937, o jornal A Nação, publicado no Rio de Janeiro, divulgava que a nova capital de Goiás
estava sendo edificada “como uma pura obra de arte. Todas as suas linhas foram
serenamente ideadas dentro de um critério de beleza, conforto e modernidade...” 68. O
idealizador dessa grande obra, Pedro Ludovico Teixeira, em suas Memórias declara
igualmente esse ideal. Com termos bastante próximos da ideologia nacionalista do Estado
Novo, ele descreve uma “cidade moderna” como sendo:
“A data da cidade”. Cidade de Goiás, 24 de julho de 1938, p. 1.
Jornal Cidade de Goiás, 2 de agosto de 1938, p. 1
65 Jornal Goiânia, 11 de junho de 1936, p. 1. Os periódicos anteriores eram produzidos na Cidade de Goiás. Nesta
segunda parte utilizaremos, salvo notificação, edições feitas em Goiânia.
66 Lourival Batista Pereira, na entrevista que concedeu, citou somente três, mas ressalvou que não havia
“nenhum que prestasse (pois) não dispunham de poltronas estofadas e refrigeração e a aparelhagem era
péssima”. Cf. GOIÂNIA, Prefeitura Municipal de. Construção e batismo cultural (1933 a 1944). Goiânia: edição da
prefeitura, 1985, p. 257.
67 LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70, 1979, p. 119.
68Apud MONTEIRO, Ofélia Sócrates do N. Como nasceu Goiânia. São Paulo: Empresa Gráfica dos Tribunais, 1938,
p. 622.
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(...) um centro de trabalho, uma grande escola em que se podem educar, desenvolver e apurar os
principais elementos do espírito e do físico do homem e uma fonte de poderosas energias sem as
quais os povos não progridem e não prosperam. É das cidades modernas que partem os vigorosos
impulsos coletivos e é nelas que se faz a coordenação dos movimentos e das atividades de uma
nação69.
Essa energia coletiva despertada não dependeria de uma memória compartilhada?
Ou somente o futuro idealizado seria o esteio da unidade? O nome que acabou sendo
escolhido para a capital significa “novo Goiás”. A pessoa que fez sua defesa, sob o
pseudônimo de Caramuru do Brasil, propunha que tal nomenclatura indicaria um
“prolongamento da histórica Vila Boa” 70. Houve quem sugerisse o nome de Bartolomeu
Bueno, outros Anhanguera e alguns Buenópolis71. O nome mais votado no concurso feito
pelo Jornal O social fora o sugerido pelo escritor Leo Lynce: Petrônia. Pedro Ludovico talvez
se sentisse mal com a homenagem72 e, por decreto, escolheu o atual.
Um novo Goiás. Um novo fundador? A tradição sobre os bandeirantes foi lentamente
sendo inserida nos quadros da modernidade goianiense73. Inicialmente, o governador
defendeu a tese do Doutor Vieira. Numa edição especial de O Popular para o aniversário da
cidade, vem estampada uma frase sua em letras destacadas: “Goiânia não é ainda a guardiã
das tradições históricas deste povo, mas é a vanguardeira da Marcha para o Oeste”74.
Os valores da Marcha para o Oeste serviram justamente de elo com a figura do
bandeirante. Três anos depois, no encerramento do Congresso do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística ocorrido na capital goiana, Ludovico Teixeira fez uma conexão entre
as tradições históricas a serem esquecidas e a obra “predestinada” de Bartolomeu Bueno.
Goiânia concretizava a proeminência dos
(...) valores de coesão, antes as forças desagregadoras das tradições transmitidas
pelo Império; valores de autonomia, a antecipar na consciência geográfica da Pátria
ainda informe o próprio sentido de uma soberania política; e valores de unidade que
permitiram ao Brasil conservar-se fiel à sua vocação cristã, sob o signo eterno da
mesma Cruz, há quase três séculos erguida nas terras fecundas dos Goiazes pelas
mãos predestinadas de Anhanguera75.
A religião cristã trazida pelos bandeirantes ao sertão é invocada para que a mítica
cruz do Anhanguera faça deste personagem histórico o precursor do processo de
TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Memórias. Goiânia: Livraria Editora Cultura Goiana, 1973, p. 66.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates do N. Como nasceu Goiânia, op.cit., p. 262.
71 Idem, p. 263, 265 e 266, respectivamente. Nasr Chaul chama esses nomes de “aberrações”, mas não
entendemos exatamente o motivo. Cf. CHAUL, Nasr F. A construção de Goiânia e a transferência da capital.
Goiânia: UFG, 1988, p. 124.
72 O escritor, na verdade, justifica-se dizendo que se refere a S. Pedro, porém a associação com o nome do
interventor seria inevitável. Ao comentar o caso nas suas Memórias, Ludovico Teixeira não explica o motivo de ter
vetado Petrônia e escolhido Goiânia.
73 Essa tradição histórica não foi trazida pronta de Goiás, como se pode pensar. A nosso ver, o processo do
estabelecimento da memória social acerca do descobridor de Goiás foi relativamente simultâneo. Neste ponto,
discordamos de PEREIRA, Eliane M. C. Manso. Goiânia, filha mais moça e bonita do Brasil. In: Botelho, Tarcisio
Rodrigues (org.). Goiânia: Cidade pensada. Goiânia: UFG, 2002, p. 13-70.
74 O popular, 24 de outubro de 1939, p. 1.
75 TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Memórias, op.cit., p. 182.
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interiorização da civilização brasileira. Suas “mãos” representam simbolicamente esse
avanço civilizacional e o progresso já visto na cidade de Goiânia.
No evento celebrativo da inauguração da cidade, em julho de 1942, Anhanguera
surge praticamente como cofundador da nova capital do Estado. Aquela data, afinal, fora
escolhida porque
(...) foi a 2 de julho de 1720 que Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo, requereu licença a D. João V,
rei de Portugal, para „penetrar os altos sertões‟; foi a 3 de julho de 1722 que, a mando do Governador D.
Rodrigo César de Meneses, Bartolomeu Bueno da Silva partiu de São Paulo...; foi a 2 de julho de 1726
que D. Rodrigo César passou ao Capitão Bartolomeu Bueno da Silva e ao seu genro, Capitão João leite
da Silva Hortiz, a famosa carta de Sesmaria, dando-lhes os direitos das passagens dos rios das Velhas,
Paranaíba, Guacorumbá e Meia Ponte...; segundo Americano do Brasil, foi a 6 de julho de 1726 que o
Anhanguera entrou em Goiás pela segunda vez; foi em julho de 1727 que o mesmo bandeirante
paulista lançou, às margens do rio Vermelho, os alicerces do Arraial de Santana....76
Esse redemoinho de “coincidências” históricas redireciona a tradição. Através dele, o
descobridor de Goiás se fazia presente na nova fase da história goiana77. Ou seja, tanto a
ruptura com o passado quanto sua refiguração foram forjados enquanto instrumentos
políticos do presente. À medida que a transferência da capital se consolidava, como bem
percebeu Candice Souza, a interação entre o tradicional e o moderno se ampliava 78. O
principal artífice desse processo, e quem mais lucrou com ele, foi o interventor, e depois
governador, Pedro Ludovico Teixeira.
A identificação do político com o Anhanguera ocorreu diversas vezes. Já em 1937, o
Jornal A Tarde descrevia o interventor como uma pessoa de “alma atrevida”, “espírito
formado de um estoicismo que faz aberrar os tipos comuns”; “administrador cujo idealismo
parece conduzir a empreitadas audaciosas, com tendências para salto no abismo”, enfim,
um “novo Anhanguera”79.
O lado reverso da moeda era a divulgação dos feitos do histórico bandeirante. A
Revista Mensal Oeste passou a inserir em seus números diversos artigos tratando da história
de Goiás. Encontramos ainda referências aos bandeirantes em outros textos da revista que
não tratavam especificamente de história. No primeiro artigo do primeiro número, por
exemplo, ao descrever “O sentido ideológico de Goiânia”, o autor raciocina como se fosse
linear a relação entre a conquista do sertão através das Bandeiras e a inovadora empreitada
feita por Pedro Ludovico80.
Essa revista foi lançada durante a inauguração da nova capital, o chamado “Batismo
Cultural”. Um ano depois, lembrava do evento homenageando a coragem do governador,
denominado metaforicamente de “terceiro Anhanguera”. A distinção em relação às outras
capitais estaria exatamente em seu caráter bandeirante:
Porque bandeirismo é sinônimo de forças nacionais profundas se agitando em busca de altas
expressões; é movimento de energias raciais aristocráticas orientando-se no sentido de afirmações
Idem, p. 203-204.
Quando comenta a assinatura do decreto de transferência da capital, em 1935, Ofélia Monteiro afirma que
não se pretendia detratar a memória do Anhanguera, mas lançar “o glorioso marco inicial das páginas da
segunda fase da História de Goiás” (op.cit., p. 314).
78 SOUZA, Candice Vidal e. Batismo cultural de Goiânia: um ritual de nacionalidade em tempos de Marcha para o
Oeste. In: Botelho, Tarcisio Rodrigues (org.). Goiânia: Cidade pensada. Goiânia: UFG, 2002, p. 71-100.
79 MONTEIRO, Ofélia Sócrates do N. Como nasceu Goiânia, op. cit., p. 544.
80 Revista Mensal Oeste (Edição Fac-símilar). Goiânia: Caixa Econômica Federal, 1983, p. 35.
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edificantes; é a nação mesma em seus instintos de vida mais naturais marchando no caminho da
glória; é ânsia de liberdade, é manifestação de força, é desejo de conquista, é vontade de domínio, é
estruturação de valores, é ordenação democrática. Bandeirismo é movimento tipicamente nacional, é
revelação original da capacidade dos trópicos...81
A correlação Bandeirante, Goiânia e Estado Novo está feita. O nacionalismo sem
fronteiras do regime varguista fluidifica as tradições locais para remodelá-las segundo a
nova conjuntura. Anhanguera pôde, então, se instalar confortavelmente nas ruas da
modernidade goianiense.
A MONUMENTALIZAÇÃO
Uma homenagem ao bandeirante já era pensada desde os primeiros anos da cidade.
A avenida que fechava o triângulo eqüilátero do centro de Goiânia recebeu seu nome. A que
formava a linha mediatriz teria inicialmente o nome do novo fundador, Pedro Ludovico, mas
depois ele preferiu trocá-lo, denominando-a Avenida Goiás. No ponto de encontro entre as
avenidas Tocantins, Araguaia e Goiás, haveria um “monumento comemorativo das
bandeiras, descobertas e das riquezas do Estado, figurando como homenagem principal a
figura do Anhanguera”82. Deveria, portanto, ficar nas proximidades de onde foi erigido o
atual coreto, mas tal obra não foi iniciada.
A construção da nova capital teve diversos problemas financeiros e nem tudo que
fora planejado pôde ser efetivado. Ofélia Monteiro, testemunha do projeto inicial, fala
também de uma possível transladação dos restos mortais de Bartolomeu Bueno que não foi
feita83.
Nas formas geométricas da cidade, podemos imaginar o Palácio das Esmeraldas,
sede do governo, no vértice do triângulo e um pouco abaixo dele o referido monumento ao
Anhanguera, postos, desta forma, em relação direta.
Em 1941, estudantes de direito da Universidade de São Paulo vieram visitar a cidade.
O Jornal Folha de Goiás, agora publicado em Goiânia, registra a visita chamando-os de
“universitários bandeirantes”84. Notando a ausência de uma homenagem ao ilustre paulista,
eles resolvem doar, para o ano da inauguração, o monumento a Anhanguera. Sua nova
posição será na base do triângulo, no ponto de intersecção com a Avenida Goiás, que se
dirige ao Palácio onde fica o governador.
Da Praça Cívica, sede dos poderes, seria possível avistá-lo. Anhanguera, entretanto,
não olha para o governo. Fora colocado mirando a Cidade de Goiás. Estabelece, destarte, a
correlação simbólica - e o símbolo é uma presença que substitui uma ausência - da antiga
com a nova capital.
O mosquete posto ao chão indica que ele está parado. O olhar é firme, demonstrando
sua certeza de encontrar riquezas. Estas são representadas pela bateia ao lado, numa
posição inverossímil para quem estivesse marchando. O monumento, como outros,
condensa momentos históricos distintos. Mas algo parece transpassar as épocas: o caráter
impetuoso dos bandeirantes transmitido ao povo goiano. Isso é demonstrado pela inclinação
Idem, p. 219.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates do N. Como nasceu Goiânia, op. cit., p. 142.
83 Idem, p. 328.
84 Folha de Goiás, 6 de abril de 1941, p. 4.
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do corpo para frente, colocando o peito aberto diante dos perigos. O ar de virilidade dado por
essa inclinação coaduna-se com sua função de patriarca da civilização goiana.
A imagem tornou-se um ponto importante da cidade. Quando o primeiro semáforo de
Goiânia foi instalado, em 1955, era ali defronte o monumento. As pessoas, então, olhavam
para a imponente figura85. Os lugares de memória e da referência identidária estavam
imbricados.
Uma comprovação dessa transmigração da memória histórica se deu na época da
criação da bandeira de Goiânia. A bandeira inicial de Goiás possuía já uma referência a
Anhanguera, tendo em seu centro a bateia flamejando86. A atual, com as estrelas e listras,
data da República Velha, e depois da refederalização com a queda do Estado Novo, voltou a
ser hasteada. A bandeira de Goiânia, pensamos inicialmente, devia datar dessa época,
contudo nada encontramos.
No Arquivo da Câmara Municipal da cidade foi que identificamos a lei que
sancionava o novo símbolo. Ela data de 7 de outubro de 1966, assinada pelo prefeito Íris
Resende. Aprova o brasão, a figura do bandeirante e o “caboclo”, conforme fora desenhado
pelo heraldista de São Paulo, Antônio Peixoto de Faria 87. Quando ela aparece hasteada,
portanto, presta-se uma homenagem perpétua ao fundador do antigo e do novo tempo em
Goiás.
CALEGE, Eloí (org.). Goiânia/60 anos: um passeio pela história. Goiânia: Casa de idéias, 1993.
Uma referência ao suposto truque utilizado pelo bandeirante com álcool para amedrontar os índios.
Encontramos uma descrição rápida desta antiga bandeira (Revista Oeste, op. cit., p. 166), mas nenhuma
reprodução.
87 Publicada no Diário Oficial do Município em 10 de novembro de 1966, p. 3.
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TERRITÓRIO FECHADO E AS ZONAS DE SEGURANÇA:
UMA ANÁLISE SOBRE A DEFESA DO TERRITÓRIO EM
GOIÁS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
JAVÃ ISVI PINHEIRO MARCONDES
Mestre em História pela UFG
Professor da rede municipal de educação de Goiânia
Professor da EaD/FAV/UFG
INTRODUÇÃO
Ao interessado em se aproximar dos estudos sobre Goiás do século XVIII, os números da
extração de ouro apresentam uma imagem inevitável. Em seguida, o grande declínio das atividades
mineradoras, iniciado já nos primeiros anos da década de 50. E o jogo entre o tempo áureo e o
declínio como que define o século XVIII de Goiás. Mesmo quando se tratou de estudar outras
questões como as relações de trabalho, a navegação ou as transações comerciais, era ainda a figura
do ouro que aparecia em sombra, definindo em termos econômicos os problemas analisados.
Evidentemente, não se pode negar a centralidade e a importância do ouro de Goiás para os projetos
metropolitanos. Num momento em que o Brasil era a maior fonte de riqueza de Portugal, Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, pela imensa quantidade de ouro com que alimentavam a metrópole,
garantiam já sua importância e seu lugar no projeto imperial português.
Mas havia mais do que isso no governo dos territórios de minas. No século XVIII, é a
defesa do território que concentra as preocupações da arte de governar. Se se quiser perceber como
funcionava, nos primeiros anos de mineração, a defesa dos interesses reais em terras de Goiás,
certamente será necessário que se pergunte pela concepção de governo que definia os mecanismos
acionados naquele momento. O ouro, não há dúvida, era razão e justificativa da presença
portuguesa naqueles sertões. Mas o governo das regiões mineradoras de Goiás acionava
intervenções e exibia uma rede de mecanismos diretamente ligada à defesa do território. Nesse
sentido, o presente trabalho apresenta uma perspectiva de análise que supõe o protagonismo dos
instrumentos de defesa do território no governo das regiões mineradoras de Goiás, ao longo do
século XVIII. Para tanto, num primeiro momento serão estudados os primeiros aldeamentos
indígenas instalados em Goiás, em seguida, a abordagem incidirá sobre os instrumentos de combate
ao contrabando, um fenômeno aqui chamado de fechamento do território.
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A política de aldeamentos indígenas que se desenvolveu em Goiás não pode ser nomeada no
singular88. A ideia de subsumir a redução dos indígenas a um denominador comum é tão pouco
proveitosa quanto o desejo de separá-la em etapas, como se em cada período bastasse distinguir
estratégias e interesses diferentes. A tentativa de homogeneizar o fenômeno obscurece o
dinamismo do devir histórico e deixa passar um sem-número de relações diferenciais, e o etapismo,
por sua vez, cristaliza diferenças, estanca-as em fronteiras inertes e cede diante da necessidade de
descrever os movimentos que levaram à constituição das singularidades identificadas.
A prática de aldear indígenas assumiu feições particulares em terras de Goiás, e por isso
mesmo deve ser analisada a partir de seu próprio funcionamento, deve ser inquirida pelos próprios
recursos utilizados para sua efetivação e, o mais importante, deve ser questionada a partir dos
liames que estabelecia com o restante da administração colonial. Estudar os aldeamentos indígenas
talvez seja uma boa oportunidade de se entender os princípios que orientavam a prática de governo
adotada nos primeiros anos de exploração das riquezas de Goiás, uma maneira de destacar a forma
específica como se efetivava, naquele período, os mecanismos de defesa do território.
OS PRIMEIROS ALDEAMENTOS E OS CLARÕES NO TERRITÓRIO
A notícia da descoberta de ouro nos sertões ao norte das Minas Gerais fez soar ao longe 89
relatos de abundância, que rapidamente se espalhavam por diversas localidades da Colônia e
chegavam à Metrópole, levando um grande contingente de pessoas a enfrentar os perigos de uma
campanha arriscada para tentar o enriquecimento com o ouro das terras dos Goyazes. Com as
descobertas, Goiás, extensão ao norte da Capitania de São Paulo, passava a fazer parte do mapa
administrativo da Coroa portuguesa e dos sonhos de milhares de pessoas da Colônia e metrópole 90.
Estima-se que na primeira década de atividade mineradora, vinte mil pessoas, incluindo aí os
escravos, tenham se estabelecido em Goiás91. Um crescimento meteórico, se consideradas as
dificuldades de locomoção e a distância entre aquelas minas e o litoral. No ano de 1727, em função
do garimpo que se desenvolvia às margens do rio Vermelho, erguia-se o arraial de N. S. de
Sant‟Ana, sob a direção de Bartolomeu Bueno da Silva, descobridor das riquezas minerais da
região, e que um ano mais tarde seria nomeado superintendente das novas minas 92. Sob seu
comando, o avanço para o interior do território obedecia a um regime particular: expedições saídas
de São Paulo procuravam por novas áreas de mineração e, quando traziam notícias de terrenos ricos
em ouro93, eram sucedidas por um grande afluxo de pessoas que se estabeleciam em terrenos
próximos aos veios encontrados. Muitos outros arraiais floresceram ao redor de Sant‟Ana,
margeando os cursos d‟água, onde se encontrava o ouro de aluvião. D. Luis de Mascarenhas,
governador de São Paulo (1739-1748), em carta ao rei D. João V, fez um relato esclarecedor acerca
da dinâmica de penetração do território e fundação dos povoados.
A utilização dos aldeamentos indígenas em Goiás teve início na década de 1740. Em 1872 foi fundado o
último aldeamento indígena de Goiás, Xambioá.
89 A expressão é de Silva e Sousa: “Soou ao longe a notícia desta grandeza (...) correram das outras capitanias os
homens e em menos de dois anos era imenso o povo que tinha ajuntado (...)”. Cf. SILVA E SOUSA, Luiz Antônio da.
Memória sobre o descobrimento, governo, população e coisas notáveis da capitania de Goyaz. Goiânia: Oriente,
1978, p. 78-79.
90 Veremos, depois, mais detalhes da importância de Goiás nos planos da Coroa portuguesa.
91 PALACÍN, Luís; MORAES, Maria Augusta de Sant‟Ana. História de Goiás. Goiânia: UCG, 1994, p. 28-29.
92 BRASIL, Americano do. Súmula de história de Goiás. Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1961, p. 53.
93 O ouro de Goiás era encontrado em veios de água, nos taboleiros - bancos de areia que se formavam no tempo
da seca -, e nas grupiaras – jazidas encontradas nas encostas dos morros, antigos leitos e margens dos rios.
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O dito descoberto das Arraias principiou por uns córregos de pouca duração e um ribeirão, que poderia ser
para pouco mais de um ano e hoje se acha alargado, tendo-se naquela parte descoberto mais córregos,
ribeirão e chapada, todo com ouro de conta regularmente para jornais de meia oitava de ouro por dia e para
muitos anos, conforme o que atestam os mineiros [...] e vão concorrendo os mais distantes, e também do
distrito das Minas Gerais tem vindo e vai chegando gente, para o tempo da seca se espera uma boa parte da
que nas ditas Minas Gerais não tem total estabelecimento e cômodo 94.
Organizadas pela iniciativa de particulares, as expedições partiam para o interior do
território e eram sucedidas por grande número de pessoas. A ação dos mineiros fez sentir seus
resultados com muita rapidez, pois já no ano de 1750, Goiás contava com o expressivo número de
cinqüenta arraiais e uma vila95. Observe-se, porém, que a fundação desses arraiais, em pouco
tempo, fez surgir atritos entre mineradores e indígenas, considerados, àquela altura, o grande
agente impeditivo aos intentos dos exploradores. Os enfrentamentos geravam grande insegurança
aos moradores dos arraiais e tornavam muito perigosos os caminhos que se percorria com
mercadorias e ouro. A situação logo levou à constatação da necessidade de se formular uma
política de atuação junto aos indígenas da região. A situação era particularmente problemática no
sul de Goiás, região que recebeu o maior contingente de mineradores por concentrar a maior parte
das áreas de exploração, e que se distinguia também por ser região habitada pela tribo Caiapó, sem
dúvida a mais numerosa e resistente à presença dos exploradores 96. Os Caiapós eram
essencialmente guerreiros, não costumavam recuar no território, como faziam outras tribos, e
provocavam a morte de muitos mineiros nos inúmeros ataques à estrada real, único caminho
autorizado na ligação entre São Paulo e Goiás.
Em função das oscilações metropolitanas no tocante ao contato com os indígenas, a
ocorrência de confrontos dificilmente poderia ser evitada. Apesar das recomendações de contato
pacífico, presentes já no regimento da bandeira do Anhanguera 97, em muitas ocasiões a guerra
aberta era ordem expressa da Coroa portuguesa. Ainda no ano de 1721, a Coroa enviou resposta ao
pedido de licença feito pelos bandeirantes Bartolomeu Bueno da Silva e João Leite da Silva Ortiz.
O documento não apenas deixava de condenar a violência, mas fazia do enfrentamento ao indígena
CARTA do governador de São Paulo, D. Luis de Mascarenhas ao Rei D. João V. 28.02.1741 apud PALACÍN, Luís;
MORAES, Maria Augusta. História de Goiás, op. cit., p. 37-38.
95 O grande número de arraiais fundados nos primeiros anos foi comentado por Gustavo Neiva Coelho: “Temos,
pois, que nos primeiros anos de ocupação do território goiano, representados pelos últimos da década de 1720,
foram fundados, além de Sant‟Anna, os arraiais de Barra, Ferreiro, Ouro Fino, Santa Rita, Anta e Santa Cruz. Mais
de quinze núcleos surgem na década seguinte, tendo início aí o processo de diminuição dos descobertos, com dez
núcleos implantados na década de 1740, quatro na de 1750 e apenas um na de 1760. A década de 1770
encerra o ciclo com cinco novos descobertos”. Cf. COELHO, Gustavo Neiva. O espaço urbano em Vila Boa: entre o
erudito e o vernacular. Goiânia: UCG, 2001, p. 154.
96 Segundo Odair Giraldin, os Caiapó ocupavam o sul e o sudoeste de Goiás (atual triângulo mineiro) e partes das
capitanias de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso o Sul. Cf. GIRARDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e
sobrevivência de um Povo Jê no Brasil Central. Campinas: Unicamp, 1997, p. 57.
97 A coroa portuguesa adotou uma política bastante ambígua em relação aos indígenas. As recomendações de
contato pacífico abriam brechas para o extermínio e aprisionamento, inclusive com ordens de retirada do quinto
na venda dos escravizados, o que certamente estimulava violências. Vejamos os termos do regimento da
bandeira do Anhanguera: “Todas as nações de índios que o dito Bartolomeu Bueno da Silva achar por aqueles
sertões deve praticar pelas línguas que leva para que se metam de paz e abracem a nossa Santa Fé (...)” Mais
adiante: “(...) em tal caso lhe fará guerra, matando-os e cativando-os, e dos que ficarem cativos deve tirar os
quintos para a Sua Majestade, mandando-os para esta cidade para serem vendidos pela Fazenda Real.”
REGIMENTO, da bandeira do Anhanguera. In: Documentos interessantes para a história de São Paulo, vol. 12, São
Paulo: UNESP, 1990, p. 55-60.
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ato digno de consideração, a ponto de justificar mercês concedidas àqueles “corajosos súditos” 98.
Outro exemplo de incentivo ao enfrentamento ofensivo pôde ser visto uma década mais tarde. Em
decorrência dos muitos casos de assaltos e mortes, a cinco de março de 1732, o Conde de Sarzedas,
então governador de São Paulo e administrador das minas de Goiás, recebia comunicado real com
ordens de “que se fizesse guerra de extermínio” 99. A instabilidade e a insegurança da estrada real
passou a incomodar e ameaçar as atividades em Goiás, de modo que, alguns anos mais tarde, D.
Luiz Mascarenhas, governador de São Paulo, a quem estava subordinada a administração das terras
de Goiás, cuidou de contratar, pelo preço de uma arroba de ouro, Antônio Pires dos Campos,
sertanista famoso pela violência que utilizava nos conflitos com os indígenas, para que pudesse
abater os Caiapós e “desassombrar”100 a região. Antônio Pires, que se fazia acompanhar de um
grupo de quinhentos indígenas da tribo bororó, vigiaria as estradas e caminhos que levavam aos
principais núcleos de exploração do sul de Goiás.
Oito anos depois, os serviços prestados por Antonio Pires eram de tal forma importantes à
atividade mineradora que D. Francisco de Noronha, o primeiro governador da recém-criada
Capitania de Goiás, em carta enviada à Coroa, solicitava concessão de benefícios e isenções ao
homem responsável por “desinfestar”101 a estrada oficial e tranqüilizar as regiões de exploração
aurífera102. Para que a vida nos povoados fosse atrativa aos homens de outras partes da colônia,
para que as lavras continuassem a produzir quantidade crescente de ouro, era necessário, portanto,
garantir a segurança dos aglomerados habitacionais por meio da ação de unidades especiais de
segurança103. A utilização estratégica desses destacamentos aponta para a constituição de um
mecanismo de ocupação e de povoação viabilizado, sobretudo, pela iniciativa de guerra aos
indígenas. E a iniciativa obtivera algum sucesso. Americano do Brasil informa que as ações do
coronel Campos e seu sucessor, o cabo João de Godói Pinto da Silveira, afastaram os indígenas a
150 léguas de Vila Boa, deixando uma grande área suficientemente segura para encorajar novos
empreendimentos de procura por novas áreas de mineração104.
Resposta do Rei D. João V ao pedido de licença dos bandeirantes, 1721. In: PALACÍN, Luís; GARCIA, Ledonias
Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em Documentos I. Goiânia: UFG, p. 22.
99 ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de Goyaz. Brasília: Ipiranga, SUDECO/Governo de Goiás, 1979, p.
59.
100 A expressão de de Alencastre: “Comprometeu-se Antonio Pires a, em dois anos, desassombrar todo território
da comarca infestado pelos caiapós, e de levar suas hostes de bororós às tribos mais remotas daqueles
selvagens, dos quais eram estes irreconciliáveis inimigos”. ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de Goyaz,
op. cit. p. 74.
101 A expressão é do próprio D. Francisco de Noronha.
102 No ano de 1742 estabelecia-se o contrato com Antonio Pires de Campos, obrigando o “povo desta Villa a
concorrer com hua aroba de ouro para a despeza da exploraçam das Campanhas dos Subsídios desta dita villa,
em ordem a evitar os repetidos insultos, e mortes que o gentio cayapó tem feito, e tambem remeto a vm.ces o
termo q. fez o coronel Antônio Pires de Campos pello qual se obriga por sua pessoa, e bens a fazer a dita
deligencia pello referido estipêndio da aroba de ouro”. Cf. Documentos Interessantes para a História e Costumes
de São Paulo, 1942, vol. 66, p.67.
103 CARTA de D. Francisco de Noronha ao Rei, escrita em 1749, citada em PALACÍN, Luís; GARCIA, Ledonias
Franco; AMADO; Janaína. História de Goiás em documentos. I Colônia, op., cit., p. 81.
104 “Foi no governo de D. Luiz que os Caiapós continuaram suas tropelias no sul, atacando as monções e
impedindo o trabalho das minas. D. Luiz mandou contra eles Antônio Pires de Campos e mais tarde o capitão da
conquista João de Godoy Pinto da Silveira, tendo ambos batido os selvagens até as suas últimas habitações,
afastando-os cento e cinqüenta léguas de Vila Boa. Para prevenir novos ataques, mandou guardar o caminho das
circunvizinhanças da vila por duas companhias de bastardos e carijós”. BRASIL, Americano do. Annaes da
Província de Goyaz, op. cit., p. 59. Antonio Pires de Campos foi substituído pelo cabo João de Godói Pinto da
Silveira, que continuou a obra de abertura de zonas de segurança. Alencastre assim se refere à ação dos
sertanistas: “As barbaridades praticadas por estes dois cabos chegaram ao último excesso. Aldeias inteiras foram
devastadas e reduzidas a cinza: só a vida dos adultos foi respeitada, porque estes com facilidade se podiam
transportar com as bandeiras aos pontos mais remotos; porém os que, por qualquer circunstância, não podiam
98
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É importante observar que o êxito na luta contra os indígenas estava diretamente ligado à
instalação de um instrumento bastante particular: os aldeamentos. Evidentemente, a construção de
aldeamentos indígenas era um expediente bastante utilizando desde os primeiros anos da presença
portuguesa na América. Mas, no que diz respeito às primeiras décadas de exploração aurífera em
Goiás, as experiências com aldeamentos tinham sua funcionalidade voltada à constituição de um
mecanismo de segurança e defesa.
No ano de 1741, fundava-se o aldeamento de Rio das Pedras, o primeiro em terras de
Goiás, cuja finalidade não deixa de informar sobre a forma de penetração do território adotada nos
primeiros anos de exploração. O objetivo era aquartelar os cerca de quinhentos Bororos pacificados
por Antônio Pires de Campos, trazidos do Mato Grosso para auxiliar nas guerras contra os
“naturais da terra”. Os aldeamentos de Lanhoso e Piçarrão, construídos cerca de sete anos depois,
ficavam bastante próximos ao primeiro e tinham a mesma finalidade: abrigar indígenas pacificados
e utilizados nas investidas de proteção das áreas de mineração e povoados. Concentrados na parte
meridional do território, numa região próxima ao arraial de Sant‟Ana, e que reunia a maioria das
jazidas de exploração, os primeiros aldeamentos indígenas de Goiás guardavam pouca semelhança
com as iniciativas de aldeamento do século XIX. A política de aldeamentos adotada em Goiás
obedecia, àquela altura, a princípios bastante particulares. Tratava-se, muito especificamente, de
viabilizar um sistema de defesa do território que, por meio da guerra ou do enfrentamento
episódico, pretendia abrir zonas de segurança num território repleto de ameaças à atividade de
extração do ouro.
Daí que se possa dizer que o primeiro aldeamento oficial de Goiás tenha sido, na verdade,
um “quartel-aldeamento”105. Não se pode negar uma relativa eficácia desse importante instrumento
de auxílio ao avanço da prática mineradora sobre o território de Goiás. Ainda que o enfrentamento
tenha produzido grande violência e o temor de represálias tenha se apoderado dos habitantes de
povoados e arraiais, a fundação de novos arraiais e a abertura de novos campos de exploração
dependiam fundamentalmente da existência desse mecanismo de proteção.
Àquela altura, os aldeamentos indígenas instalados funcionavam como quartéis avançados,
situados em pontos estratégicos, de onde se podia chegar rapidamente a qualquer povoado ou
estrada. A sua função era essencialmente de proteção, de defesa, numa lógica de atuação que
operava, acima de tudo, com o objetivo maior de promover a abertura de clarões de segurança no
território. Basta dizer que D. Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, ao assumir o governo da
recém-criada Capitania de Goiás, no ano de 1749, dá registro de muitas peças de artilharia e um
grupo de 60 negros armados, trazidos especialmente para o combate aos Caiapó. Não será uma
ocorrência menor desse período o fato de um Governador nomeado, preparando-se para assumir as
responsabilidades que lhe atribuem o posto mais alto na administração de uma Capitania
especialmente importante para a Coroa portuguesa, ter se preocupado em trazer consigo
armamentos em quantidade e homens para combate, fazendo criar “em Goiás, nova força militar: a
companhia de ordenanças de negros, chamados de Henriques” 106.
Quando o norte de Goiás também passou a ser mais intensamente visitado por expedições
exploratórias, houve a necessidade de também tornar possível a atividade mineradora por meio da
viajar, ou eram abandonados ou passados a fio de espada.” Cf. ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de
Goyaz, op. cit., p. 75.
105 RAVAGNANI, Oswaldo Martins. A agropecuária e os aldeamentos indígenas goianos. In: Perspectivas. Revista
de Ciências Sociais. São Paulo: UNESP, vol. 9/10 (1986/1987), p. 120-121.
106 COELHO, Gustavo Neiva. O espaço urbano em Vila Boa: entre o erudito e o vernacular, op. cit., p. 16.
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constituição de zonas de segurança. Os arraiais mais importantes da região na década de 40,
Natividade, Arraias, Ribeira do Paraná e Terras Novas, eram constantemente assolados pelas
investidas dos Acroá. Mais uma vez, tratou-se de contratar o famoso sertanista Antonio Pires de
Campos, que já trabalhara na eliminação dos Caiapós que atacavam a Estrada Real. Os termos do
acordo previam a construção de um aldeamento próximo aos mais importantes arraiais do norte.
Tratava-se de ali estabelecer uma “defesa perpétua e daí sair bandeiras para outras partes do que
forem necessárias ou pelo modo que a alta compreensão de Vossa Majestade achar mais própria e
conveniente aos vassalos, cuja lealdade e risco em que vivem são merecedores da real atenção de
Vossa Mercê”107.
Como se sabe, os bororos de Antônio Pires recusaram seguir viagem rumo ao norte,
provocando anulação do acordo estabelecido. Mas isso não impediu que quartéis-aldeamentos
fossem estabelecidos mais ao norte do território. De qualquer modo, é importante observar o
projeto de construção de um aldeamento e a clara explanação da razão maior que guiava o
empreendimento: a instituição de uma base militar para que dali pudessem sair unidades militares
de ataque aos indígenas. O florescimento de novos arraiais dependia da ação guerreira de unidades
especiais de proteção. Dito de outro modo, o crescimento da atividade mineradora, que em Goiás
mostrava-se, àquela altura, bastante promissora, dependia da abertura de novas zonas de segurança.
Diferentes documentos do período informam sobre a natureza eminentemente militar dos
primeiros aldeamentos indígenas de Goiás. Como não se tratava de evitar a entrada de um inimigo
externo, não era um sistema de fortificações que solucionaria o problema. Marlon Salomon
mostrou como, em meados do século XVIII, se deu a constituição de uma rede de fortificações na
Capitania de Santa Catarina 108. Ali, apoiado pelo saber da engenharia militar, tratou-se de evitar a
surpresa de um ataque externo. No entanto, em Goiás, nas primeiras décadas do século XVIII, para
garantir o trabalho nas minas, haveria de se conquistar zonas de segurança, regiões de relativa
tranqüilidade ao desenvolvimento da atividade mineradora, e a constituição desse sistema de defesa
dependia da eliminação e afastamento do indígena.
É nesse sentido que se pode dizer que a prática de aldeamento indígena na primeira metade
do século XVIII estava vinculada à instauração de um dispositivo militar, integrada a uma máquina
administrativa especialmente preocupada com a conquista de zonas de segurança no interior do
território que àquela altura principiava a explorar. Se entre 1741 e 1782 podemos identificar a
construção de um total de vinte aldeamentos indígenas, seria um grande engano procurar ajuntá-los
sob o signo de um mesmo projeto de relacionamento com os indígenas. Os aldeamentos da
primeira metade do século XVIII guardam pouca semelhança com as iniciativas posteriores a 1770.
O FECHAMENTO DO TERRITÓRIO
Os primeiros anos de governo das minas de Goiás testemunham não apenas uma
preocupação com os indígenas - uma exterioridade inegavelmente incômoda à plena execução dos
objetivos reais e terras de Goiás - mas também uma intensa mobilização de instrumentos
governamentais de controle e ordenação dos movimentos realizados pelos súditos do Rei que aqui
se estabeleciam, um problema de natureza endógena, cujo tratamento demandou recurso de um
AHU, Goiás, Doc 252, 1744. Provisão de D. João V. Goiânia: IPEHBC.
SALOMON, Marlon Jeison. O saber do espaço. Ensaio sobre a geografização do espaço em Santa Catarina no
século XIX. Tese de doutoramento (Doutorado em História). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2002.
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grande número de intervenções, que nesses primeiros anos, assim como a política de aldeamentos
acima estudada, davam feições específicas à administração metropolitana. O fechamento do
território, como iremos chamar, é um fenômeno de curta duração, mas que se deixa observar com
bastante nitidez quando se pergunta pelos instrumentos criados na defesa dos interesses reais nas
minas de Goiás.
Excetuando-se a exploração das minas de diamante, que receberam tratamento especial da Coroa
portuguesa, o sistema de demarcação dos terrenos e distribuição das datas109 obedecia, em Goiás,
aos mesmos princípios vigentes em Minas Gerais, estabelecidos pelo Regimento dos
superintendentes, guardas-mores e oficiais deputados para as minas de ouro, datado de 1702110. A
Fazenda Real instituía a livre exploração, o que na prática franqueava a atividade mineradora a
qualquer pessoa que comprovasse ter condições de cumprir as exigências da tarefa a que se
propunha. Após a demarcação dos terrenos auríferos, geralmente feita pelos guardas-mores, a
distribuição das datas (assim eram chamadas as propriedade mineradoras) se fazia por sorteio,
respeitando-se um critério que priorizava aquele que tivesse maior número de escravos. À Coroa
portuguesa, por meio da instauração de uma Intendência, caberiam os cuidados com a tributação de
toda riqueza extraída do solo de Goiás. Ainda que a Fazenda Real cultivasse o costume de reservar
para si o direito de explorar uma das datas demarcadas, não há registro de ação dessa natureza em
Goiás. Acontecia sempre de a Coroa vender suas datas a particulares, definindo, desse modo, um
modelo de administração das minas orientado para o exercício da tributação e fiscalização.
Esse esforço de fiscalização não podia evitar a saída descontrolada de uma grande
quantidade de ouro, de modo que a questão de saber o quanto do extraído foi contrabandeado não
pode ter resposta. O certo é que desde muito cedo as preocupações com o desvio dos direitos reais
estiveram no centro das preocupações expressas nas comunicações entre autoridades
metropolitanas e governantes locais, transformando-se no alvo de várias medidas anunciadas, o que
denuncia que tal prática grassava entre os mineiros. Ronaldo Vainfas mostrou que nas regiões de
minas o contrabando não era praticado por grupos facilmente identificáveis, como se a política de
contenção pudesse isolar parte da população e controlar sua prática 111. Ocorria que escravos,
alforriados, padres, agentes estatais, estrangeiros e vários outros grupos se envolviam ativamente
no desvio do ouro. Em Goiás, a prática do contrabando também não poderia ser combatida com
procedimentos direcionados a determinados grupos. As medidas anunciadas diziam respeito à
totalidade das pessoas que aqui estavam. Em pouco tempo, tais medidas ganhavam centralidade no
conjunto das preocupações administrativas da Coroa.
Os aspectos que caracterizam a montagem dessa maquinaria fiscal nas minas de Goiás
também devem ser analisados. Se em pouco tempo os arraiais se multiplicavam e a quantidade de
mineiros tornava-se cada vez maior, havia o imediato cuidado de implantar um rigoroso sistema de
fiscalização e tributação, é verdade, mas é importante perceber que a gestão do problema do
contrabando se expressa em linguagem, também ela, notadamente territorial. Não há dúvida quanto
aos incômodos gerados pela chegada de uma multidão de interessados em explorar as minas de
Goiás. Naquele cenário, garantir que os direitos reais não fossem desrespeitados significava poder
Assim eram chamados os terrenos auríferos.
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 57.
111 VANIFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p.
186-7.
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minimizar a grande ameaça representada pelos súditos que aos milhares em Goiás se estabeleciam.
E a montagem desses instrumentos de controle das atividades passava pela efetivação de um modo
específico de pensar o território. Em pouco tempo se perceberá que a ação do Estado deveria se
concentrar na natureza das atividades desenvolvidas no território de Goiás, de modo que os
instrumentos governamentais utilizados para se conseguir o controle desejado obedeciam a uma
lógica eminentemente territorial.
Como tentativa de dar ordem à administração das minas, a Coroa portuguesa, no ano de
1735, ordenava ao governador de São Paulo a convocação de uma Junta extraordinária, para que ali
fossem resolvidos alguns pontos importantes. Presidida pelo governador Antônio Luís de Távora, o
Conde de Sarzedas, aquela junta manifestava imenso desagrado diante da
cobiça e a ambição dos homens cegos dos seus interesses, sem o temor das gravíssimas penas que lhes estão
impostas, em repetidas leis de S. M. e bando deste governo, [que] tem rompido e escalado todo o sertão das
partes dos currais, Minas Gerais, Piauí e Maranhão, e pelas picadas de todo ele estão atualmente introduzindo
subrepticiamente vários gênios de negócio, sem pagarem direito ao mesmo senhor, servindo-lhe aquele de
pretexto para extração de gravíssimas partidas de ouro, que passam pelo sertão sem pagarem os reais quintos, o
que tudo se verificava da falta que se experimenta daquele metal na real casa da fundição desta cidade,
porquanto havia mais de dois anos não tinha entrado nela a quarta parte do ouro que produzem aquelas minas,
sem embargo da novíssima lei de S. M., e de mui repetidos bandos que ali se tinham publicado [...] 112.
Percebe-se, pelo parecer da Junta, que era a ausência de controle sobre o uso que se fazia
do território o motivo do desconforto das autoridades locais. As saídas e entradas de Goiás: eis a
questão que concentrará atenções. D. João V, rei de Portugal, de posse da correspondência de
Rodrigo Cezar de Menezes, com informações que lhe noticiavam a riqueza dos veios auríferos ali
encontrados, emitia a carta régia de 10 de Janeiro de 1730, determinando que houvesse um só
caminho que levasse a Goiás: aquele aberto pelos primeiros bandeirantes paulistas 113, que em
pouco tempo passou a ser conhecido como “a estrada de Goiás” ou “a estrada do Anhanguera”, ou
ainda a “Estrada Real”, por onde deveriam, obrigatoriamente, circular pessoas e mercadorias.
A ideia era fazer com que todas as vias de acesso ao interior tivessem o registro de Jaquary,
próximo a atual cidade de Campinas, como ponto de intersecção. Nessa mesma estrada, o Conde de
Sarzedas mandou construir um Registro, posto de fiscalização e controle, que além de fazer
assentamento sobre o transporte do ouro e a cobrança do quinto, cuidava também da cobrança do
imposto das entradas, que incidia sobre as pessoas, mercadorias e animais que entravam numa
Capitania114. Proibir comunicação com outras partes da Colônia que não fosse pela Estrada Real era
a maneira encontrada para que se pudesse exercer maior controle sobre comerciantes e mineiros.
Tal medida, mesmo que caracterizando crime contra o Rei toda desobediência propositada,
não impedia que contrabandistas abrissem numerosas picadas que levavam mercadorias a Goiás e
serviam de escoadouro de ouro pelo Maranhão, Piauí, Bahia e por Minas Gerais. Os
contrabandistas faziam entrar e sair produtos do território, sem que qualquer tributação sobre eles
ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de Goyaz, op. cit. p. 55.
Idem, p. 49.
114 O controle sobre a entrada e saída de produtos era demasiadamente centralizado na estrada real que a 15 de
Março de 1734 o governador de São Paulo, o Conde de Sarzedas escreve à Coroa explicando a necessidade de se
transferir o Registro das entradas para as margens do Rio Corumbá, em Goiás. O pedido se justificava pela
grande distância entre o Rio Jaguary e Goiás, mas não foi aceito. À metrópole interessava a centralização das
ações de controle. Muito embora, poucos anos mais tarde, tenha sido autorizada a construção de registros em
vários pontos do território de Goiás. Ver SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão da Capitania de Goiás.
Coleção Documentos Goianos. Goiânia: CEGRAF, UFG, 1992, p. 157-8.
112
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incidisse. Foi por este motivo que se fez publicar um bando a cinco de outubro de 1733, ordenando
o confisco dos bens daqueles que comprassem os gêneros cuja entrada não estivesse contabilizada
no registro de Jaguary. Ainda que fosse impossível colocar postos de controle nas fronteiras de
Goiás, essa medida dificultava a circulação dos produtos contrabandeados no interior do território.
Se em algum local a presença real se fazia perceber com notoriedade, este certamente era a Estrada
Real. A construção do registro só se concretizou em 1733, três anos após a ordem real, mas ela
marca o início de uma presença mais efetiva sobre este grande caminho. Em pouco tempo ele
tornou-se o grande eixo de controle da Coroa, sobre o qual se intensificava cada vez mais as
medidas de fiscalização. Ainda no ano de 1733, em Carta Régia enviada ao governador de São
Paulo, o rei determinava a criação de outros três registros ao longo da Estrada Real, confirmando-a
como lugar privilegiado de controle da Coroa portuguesa115.
A construção de uma rede de Registros ao longo do caminho era uma intervenção que
materializava uma forma de pensar o território, a qual procurava garantir os direitos da Coroa pelo
fechamento de toda a extensão da Estrada Real. Aquele que quisesse sair de Goiás sem afrontar os
direitos reais, era obrigado a passar pelo caminho que levava ao Registro de Jaguary. Ao abrir
picadas no interior do território, chegar aos grandes centros urbanos do litoral e negociar o ouro
que carregavam, sem pagar ao rei aquilo que lhe era devido, os contrabandistas na verdade não
apenas incorriam no erro de desviar riquezas do erário real, mas cometiam o grave delito de fazer
mau uso do território. Todo aparato fiscal instalado sobre a Estrada Real tinha por objetivo
controlar os movimentos dos súditos desleais, é verdade, mas os instrumentos constituídos para se
conseguir tal feito obedeciam a uma lógica eminentemente territorial, a lógica do fechamento do
território.
O fechamento do território é um fenômeno que não se encerra em algumas poucas ordens.
Trata-se, na verdade de um mecanismo específico de constituição das noções fundamentais a partir
das quais se pensava o espaço colonial, isto é, o modo como se produzia o território. E seu ponto
mais elevado não foi a surpreendente Ordem de 1730. Pouco depois, numa resolução que também
não surtiu o efeito esperado, mas que dá a perceber a intensificação do fenômeno, determinava-se
que ninguém poderia entrar na região das novas minas de Goiás sem autorização prévia do
governador de São Paulo116. Não se tratava mais de determinar a rota que deveria ser utilizada por
quem quisesse sair ou entrar em Goiás, pois a ordem anunciada em 25 de julho de 1732 chegava ao
ponto de só franquear a circulação de pessoas e mercadorias após a anuência da maior autoridade
investida sobre aquelas terras. Em termos práticos, não havia condições técnicas e materiais para
que tal ordem pudesse efetivamente ser cumprida. As dificuldades de transporte impediam que as
comunicações oficiais pudessem ser trocadas com a velocidade que a referida ordem exigia, e
certamente havia consciência de sua inexequibilidade. O interesse, ao que parece, era o de
Ao que parece tais registros não foram criados até 1735, pois naquele ano “Gualter Ferreira, a mando das
autoridades de Minas Gerais, tentou assentar um Registro próximo às minas de Meia Ponte, com base naquela
Carta Régia, tendo em vista ressentir-se a área de um controle fiscal sobre as jazidas (...)”. SALLES, Gilka V.
Ferreira. Economia e escravidão da Capitania de Goiás, op. cit. p. 158.
116 “O primeiro ponto, que se tratou nesta junta, foi sobre o fundamento, por que S. M., que Deus guarde, se
dignou mandar estabelecer as minas dos Goiás, da jurisdição deste governo com o uso de um só caminho para
elas, e que não devia ser outro senão o que se conservava desta cidade, feito pelos descobridores daquela
conquista, e que no dito caminho houvesse registro geral, em que desse-se entrada das cargas que entrassem
para ela, e se registrasse todo ouro que saísse para fora, para pagar o real quinto na casa de fundição”. Termo
da Junta extraordinária que se reuniu em 25 de Abril de 1735 para discutir a forma de melhor implementar as
medidas ordenas pelo Rei de Portugal, citado por ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de Goyaz, op. cit., p.
52.
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reafirmar a tentativa de controle sobre o livre transporte de ouro e mercadorias no interior do
território.
É importante precisar este ponto. Se havia preocupação com as atividades executadas em
Goiás, isso não quer dizer que havia se instalado mecanismos de controle sobre as condutas
daqueles que circulavam em seu território. Não há dúvidas de que se tratava de forjar os
instrumentos necessários para se lidar com a circulação de pessoas, cada vez mais entendida como
um grande problema de governo e uma ameaça à prosperidade da Fazenda Real. Àquela altura, as
trajetórias e os movimentos dos súditos eram alvos de interesse ali onde pudessem, de algum modo,
colocar em risco o controle sobre o território. Mas o controle sobre esses movimentos dava-se
fundamentalmente por meio de mecanismos de fechamento do território. Percebe-se que não se
tratava de uma tecnologia de intervenção sobre o comportamento ou a conduta dos súditos do rei,
mas da elaboração de um plano de ação sobre o território. No século XVIII, a defesa das riquezas
reais se confunde com a defesa do território.
O argumento que sustenta essa pequena ressalva não deve passar despercebido, nem
tampouco ser menosprezado em sua importância. Não se pode ignorar que a gestão do território,
como se pode ver, acionava conceitos próprios e funcionava segundo uma lógica bastante
particular. Veja-se, por exemplo, que quando Gilka Salles analisa a vigência das ordens de
obrigatoriedade de trânsito pela Estrada Real, vê ali o contrassenso de uma exigência
absolutamente contrária aos princípios da boa gestão das riquezas reais.
Vigoraria, portanto, nessa área mineradora, o anacrônico Bando de 10 de janeiro de 1730, confinando os
caminhos à via das bandeiras paulistas. O alheamento da Corte, nesse mister, contrariando as idéias de
Gusmão, é confirmado, ainda, pela carta Régia escrita por Marco Antônio de Azevedo Coutinho a Gomes
Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1749, ordenando impedir a
comunicação das Minas com o Estado do Maranhão, a fim de „embaraçar o contrabando117.
A autora fundamenta sua análise pela constatação de uma espécie de “atraso histórico” no
pensamento que presidia o governo das minas de Goiás. Em sua argumentação, está a ideia de que
“muitos políticos e administradores apenas inconscientemente se apercebem das coordenadas
históricas de sua época”118. A concentração do transporte de mercadorias sobre a Estrada Real lhe
parecia fruto de uma cegueira, de uma falta de argúcia que impedia às autoridades portuguesas
atinar para o absurdo daquela ordem. As “coordenadas históricas de sua época,” que supostamente
se deixam hoje melhor observar, não teriam sido percebidas pelos autores da ordem de 1730. Mas,
o que exatamente está a se chamar de “histórico” no século XVIII? Aquilo que passou
despercebido no século XVIII, na verdade, só pode ser observado quando se procura reduzir as
diferentes ocorrências à constituição de uma estratégia econômica. Quando se adota essa
perspectiva de análise, aí então se pode afirmar que os “outros assessores da Coroa, apesar da
advertência de Gusmão, não tiveram consciência de que dada estratégia econômica seria mais
rendosa que o rigor do estreito fiscalismo da tradição administrativa”119.
Mas não há anacronismo no bando de 1730. E não há anacronismo exatamente porque o
fechamento do território é um recurso que está em harmonia com os princípios que, àquela altura,
organizavam o governo das minas de Goiás. Não há anacronismo porque a lógica que regula seu
funcionamento está ligada ao problema da gestão do território. Trata-se de um mecanismo
SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão da Capitania de Goiás, op. cit, p. 44.
Ibidem.
119 Idem, p. 45.
117
118
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orientado por um pensamento de natureza espacial. As práticas lesivas ao erário real, que muitos
súditos insistiam em cultivar, só poderiam ser controladas pelo fechamento do território.
Não se pode dizer que não houvesse surgido em lugar algum a preocupação em ligar, por
meio de estradas, os povoados de Goiás. De fato, a distância entre eles e a dificuldade de
comunicação eram reclamações freqüentes entre os mineiros. Por força da necessidade de amenizar
a penosa experiência, os homens que cobriam as grandes distâncias que a legislação lhes impunha
pediam a construção de novas estradas e a permissão de entrada e saída por outros pontos do
território. Os caminhos alternativos não respondiam apenas pelo contrabando, uma vez que era
prática comum em Goiás que particulares desobedecessem a ordem de exclusividade das estradas
reais, por uma questão de comodidade, por se ver assim facilitado o trabalho de transpor longas
distâncias. Mas a negação dos pedidos não levava em consideração aqueles argumentos, posto que
lhe sustentava a posição da proibição a ideia do fechamento do território – daí que se possa
compreender o grande número de picadas ilegais abertas ao longo dos anos, uma afronta direta às
ordens reais.
Pouco importava, naquele momento, se o único caminho autorizado para cobrir a distância
de Vila Boa até São Paulo obrigasse ao viajante percorrer uma distância maior e mais penosa que
as picadas abertas ilegalmente120. O fechamento do território era o meio mais seguro de se obter
controle sobre os movimentos realizados nas minas de Goiás.
Por isso não era admissível, naquele momento, dar prioridade à abertura de estradas entre
os diferentes arraiais de Goiás. Dito de outro modo, era a própria ideia de ligação entre os
diferentes pontos do território que não figurava entre as prioridades do governo da Capitania
naquele momento. Não havia uma razão que justificasse a criação de vias de facilitação das
comunicações. A localização de Goiás, suas vizinhanças e os muitos caminhos que por ali
poderiam passar eram reconhecidos como uma ameaça aos interesses da Coroa. Os muitos
caminhos, as facilidades de abertura de picadas, a abertura de possibilidades variadas de
locomoção, eram fontes de grandes receios.
Já na década de 1730, as minas de Goiás ganharam tamanha importância para a Coroa
portuguesa que se exigia do governador de São Paulo envolvimento cada vez maior com as
diligências necessárias ao governo daquele sertão. No ano de 1733, o Conde de Sarzedas nomeou
Gregório Dias da Silva Superintendente Geral das minas de Goiás, numa tentativa de dar maior
presteza à administração daquelas minas. No entanto, pela Carta Régia de fevereiro de 1736 o Rei
ordenava que o próprio Sarzedas fosse até Goiás, a fim de tomar providências para evitar o
contrabando, regular a cobrança do quinto, criar novos registros e estabelecer ali uma Vila 121.
Sarzedas chegou a Goiás em 1737 e além de padronizar a cobrança do quinto, organizou a forma de
pagamento e o percentual de impostos a ser pago pelo comércio de gêneros praticado na região 122.
Mas o governador de São Paulo não pode executar aquela que era sua principal tarefa a cumprir, a
fundação de uma vila em terras de Goiás, pois veio a falecer no arraial de Traíras em agosto de
1737.
Um fato ocorrido quando o governador ainda estava em São Paulo chama bastante atenção.
Assim que foram descobertas as minas de São Felix, na cabeceira do rio Tocantins, o rei, pela carta
O percurso de São Paulo a Goiás pela estrada Real sujeitava o viajante a uma volta de 150 léguas. Cf. BRASIL,
Americano do. Súmula de história de Goiás, op. cit. p. 56.
121 A fundação de Vila Boa é um acontecimento que será analisado mais adiante.
122 Não deixa de ser interessante notar que os valores cobrados pela atividade comercial em Goiás eram
superiores àqueles praticados nos arraiais de Minas Gerais. Cf. ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de
Goyaz, op. cit., p. 60.
120
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régia de 30 de Maio de 1737, fez saber ao governador Conde de Sarzedas da sua decisão de proibir
a navegação dos rios de Goiás e de punir exemplarmente aqueles que insistissem em utilizar as
águas como meio de locomoção123. Aquela era mais uma das medidas que tornavam ainda mais
forte o mecanismo do fechamento do território. Era mais uma extensão das intervenções que
visavam, acima de tudo, garantir controle cada vez maior sobre os deslocamentos no interior de
seus termos. A lógica instaurada na defesa dos interesses reais acionava mecanismos de proteção
de tal maneira singulares que aos rios era reservado o status de obstáculos a serem superados. Os
rios não eram pensados como canais de comunicação entre localidades, como facilitadores de
transporte de mercadorias e, principalmente, como elementos dinamizadores da economia local.
A interdição da navegação dos rios demonstra bem a natureza das intervenções do governo
colonial nos primeiros anos de exploração das minas de Goiás. Tratava-se de impedir que se fizesse
um mau uso do potencial de deslocamento das águas dos rios Tocantins e Araguaia. É preciso
entender qual problema orientava a escolha pela interdição de suas águas. O livro As comunicações
fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século XIX, é, até hoje, o mais importante estudo sobre a
navegação dos rios Araguaia e Tocantins. A autora, Dalísia Elizabeth Martins Doles, dedica um de
seus capítulos ao estudo da navegação no século XVIII. Comentando os fatores que teriam
impedido o fortalecimento da navegação, ela argumenta acerca das razões que teriam feito
malograr a navegação dos grandes rios de Goiás no século XVIII. Em seu entender, seriam o longo
período de colonialismo e os limitados resultados alcançados com a política de povoamento os
grandes empecilhos que
condicionaram o subdesenvolvimento e a fragilidade das comunicações e do comércio fluviais até o final do
período colonial, impedindo a abertura do centro-oeste ao mundo exterior e que o Tocantins e o Araguaia
cumprissem o seu destino histórico na tarefa de integração inter-regional e de reerguimento econômico da
tão decadente província de Goiás124.
Percebe-se como a análise de Doles liga diretamente a importância das comunicações
fluviais ao “desenvolvimento econômico” de Goiás. O cumprimento de seu “destino histórico”, isto
é, o exercício de seu papel dinamizador da economia da região, diz a autora, havia se atrasado em
função de escolhas políticas equivocadas, uma falha de governo. No desdobramento da análise,
Doles afirma que se Goiás
vivesse uma orientação política mais liberal, muito poderia ter-se beneficiado do surto comercial vivido sob
a ação da Companhia Geral do grão Pará e Maranhão (1755-1778), se levarmos em conta o volume de sua
exportação nos vinte anos que vigorou, em conseqüência da política de isolacionismo se atrofiou e
estagnou125.
É importante que se analise a proibição da navegação a partir do problema de governo que
justifica e fundamenta sua efetividade. Assim se pode perceber que a ideia de ligar diferentes
pontos do território e, assim, dinamizar os fluxos comerciais entre diferentes regiões, sequer podia
ser considerada àquela altura. Nas minas de Goiás, o calculo político que procurava pela garantia
dos direitos reais, passava pela proibição da navegação. As questões que orientavam o governo das
Idem, p. 70. O interdito foi revogado apenas no ano de 1782.
DOLES, Dalísia Elizabeth Martins. As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século XIX. Goiânia:
Oriente, 1973, p. 50.
125 Idem, p. 50.
123
124
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Capitanias do Grão Pará e Maranhão não eram os mesmos da região das minas de Goiás. Quando
se considera os diferentes instrumentos e mecanismos instalados a partir da lógica interna ao seu
funcionamento, percebe-se a operacionalidade dos conceitos que organizavam a administração em
termos de defesa do território.
Evidentemente, as primeiras décadas do século XVIII em Goiás não se resumem à
constituição dos mecanismos de fechamento do território. Sabe-se que toda e qualquer atividade
que colocasse em risco a captação de recursos para o erário real, seria passível de punição, de modo
que, no território de Goiás, o exercício de atividades econômicas só poderia ser franqueado
mediante o estabelecimento de termos e condições bastante específicos. O esforço de resolver os
muitos incômodos verificados em terras de Goiás levou a intendência das minas a decidir pela
punição daqueles que optassem pelo plantio de alguns gêneros, notadamente aqueles que à época
tinham maior valor comercial. Tomando providências exigidas pelo governo paulista, Bartolomeu
Bueno faz circular ordens de proibição do plantio de cana de açúcar e de fabricações próprias de
engenho em qualquer parte do território de Goiás.
pelo que mando que nenhuma pessoa, de qualquer grau ou condição que seja, não tenha em suas roças e
fazendas a referida planta de cana, e os que tiverem, a destruirão e queimarão logo, para o que lhes concede o
tempo de sessenta dias, com a comunicação de que não o fazendo, e denunciando-se quem a tem, e provendose, pagará a pessoa que for compreendida cem oitavas de ouro, que se aplicarão para as obras da matriz destas
minas, e mais cinqüenta oitavas para as despesas da justiça, e outrossim será preso na cadeia, onde estará 30
dias. 13 de junho de 1732 – B. Bueno da Silva126.
Controlar a atividade dos homens era, àquela altura, muito especificamente, lançar mão de
instrumentos que limitassem seu potencial lesivo aos planos reais. Nas primeiras décadas de
administração dos recursos das minas de Goiás, o conjunto das atividades desenvolvidas em todo
território interessava ao governo, ali mesmo onde elas interpunham obstáculos entre as benesses do
território e o monarca, aquele que as tinha de direito.
A partir do reinado de D. José (1750 – 1777) haverá uma grande mobilização visando a
reorganização dos projetos metropolitanos, com sérias implicações sobre a política indigenista.
Mas, se as tentativas de mudança na forma de lidar com os indígenas estão diretamente ligadas ao
fracasso verificado nos primeiros anos, não se pode simplesmente concluir que a emergência de um
projeto de tamanha envergadura decorra de ensinamentos conquistados com as experiências
malogradas. Não se tratava de aperfeiçoar o funcionamento daquilo que já existia, mas de
promover a alteração dos princípios fundamentais que organizavam a política de aldeamentos e o
modo de relacionamento com os nativos. Para que um novo modelo de atuação pudesse ser
concebido, havia de ser transformada a própria ideia que se fazia dos indígenas, de seu lugar no
projeto colonizador, e tal alteração não se dá como uma escolha entre metodologias de abordagem.
No longo episódio de reorganização dos aldeamentos e seus objetivos, não se tratava
apenas de se perguntar pelas formas mais interessantes e mais viáveis de tratamento com os
naturais da terra. A pergunta que se fazia procurava pelo status dos próprios indígenas no interior
da administração portuguesa em Goiás, demandava o trabalho de redefinir o papel dos indígenas no
projeto colonial lusitano e integrava um programa de lançamento de outro conjunto de objetivos e
critérios de administração em relação ao território de Goiás. Aos poucos os aldeamentos passavam
126
ALENCASTRE, J. M. P. Annaes da Província de Goyaz, op. cit., p. 53.
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a ser pensados como futuros núcleos de povoamento, um gesto que anunciava outra forma de
conceber a forma mais eficaz e apropriada de defender o território.
A questão do fechamento do território também sofrerá alterações significativas na segunda
metade do século XVIII. Um ano após o ato oficial que a separava de São Paulo, a recém-criada
Capitania de Goiás recebia D. Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, como seu primeiro
governador, homem de grande prestígio e de linhagem respeitada na corte, cuja chegada dava a
dimensão da importância de Goiás dos projetos metropolitanos para a região. Uma espécie de
reorganização administrativa motivava a criação da nova Capitania127. Ainda os números da
mineração se faziam bastantes favoráveis, mantendo-se em crescimento até o ano de 1751, mas a
preocupação com a defesa do território crescera de tal modo que, por ordem de dois de agosto de
1748, emitida quando o novo governador ainda não havia chegado a Vila Boa, D. João, rei de
Portugal, mandava tomar todas as diligências para que os limites da capitania fossem estabelecidos
com maior precisão do que antes fora feito. Mas era desejo real que o próprio D. Marcos de
Noronha visitasse os povoados da capitania, de modo a recolher informações sobre os problemas
que ali imperavam.
O relatório de viagem do governador é rico em informações sobre a situação dos arraiais de
Goiás naquele período. Importa notar que ele apresentava uma questão categoricamente ignorada,
mas que de forma sinuosa e insistente passou a constituir o quadro das preocupações mais urgentes
na administração das minas de Goiás. Trata-se da advertência quanto ao isolamento a que estavam
submetidos os arraiais da Capitania.
Compõe-se este governo de vários arraiais, a maior parte deles em grande distância uns dos outros. Geralmente
em todos os arraiais e seus subúrbios se trabalha no exercício de minerar, e ainda que presentemente os
mineiros vivem algum tanto descontentes pelos pequenos jornais que vencem os seus escravos, por falta de
descobertos, o que muito desgosta estes moradores, porque havendo-os, poderiam melhorar de fortuna. Não
intentam pela grande falta de meios, com que quase todos eles se acham, e também porque receiam que a
incerteza do lucro lhes não equivalha à grande despeza que hão de necessariamente fazer nesta diligência;
muito útil lhes seria o intentarem novos serviços, mas também os embaraça a falta de cabedais necessários para
esta obra128.
O relatório de viagem de D. Marcos de Noronha resulta numa constatação bastante singular
e preocupante: os povoados de Goiás padeciam por necessidade de rápida comunicação entre eles,
o que facilitaria até mesmo a organização de defesas contra ataques externos. Segundo
argumentação exposta no relatório, o desestímulo à tentativa de se lançar noutra empresa que não a
mineração advinha exatamente dos riscos que corriam os produtores e criadores de tão longínquas
terras. Aquilo que até então não fora objeto de interesse, começava a aparecer nos relatórios de
governo, de forma ainda marginal, mas cada vez mais freqüente. É fato que as reclamações quanto
às distâncias a que se obrigava percorrer era uma das muitas reclamações dos comerciantes e
mineiros ocupados com o transporte de ouro. Mas isso não quer dizer que um novo tipo de
problema de governo pudesse emergir desse modo. Para que a ligação entre os povoados e o fim do
isolamento passasse a compor o quadro de problemas de governo e se transformasse em alvo de
intervenções, foi necessária a constituição de um novo olhar, foi preciso que se definisse de outro
modo o governo do território, outro modo de pensá-lo.
Mais adiante estudaremos as questões que envolveram a criação da Capitania de Goiás.
Carta de D. Marcos de Noronha dando conta de sua viagem e do estado da capitania. Cf. ALENCASTRE, J. M. P.
Annaes da Província de Goyaz, op. cit., p. 92.
127
128
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E essa mudança é de natureza conceitual, não se dá num lance inaugural. Ela demanda um
esforço de construção e elaboração de outra racionalidade que fundamente as intervenções do
governante. Sendo assim, parece importante dizer que o relatório de D. Marcos de Noronha não
marca um ponto de viragem ou um marco fundamental a ser destacado, nada que se pareça com a
origem ou ponto inicial de uma nova etapa. Um estudo sobre a natureza das práticas de governo
adotadas em Goiás na segunda metade do século XVIII, além da documentação emitidos pelas
autoridades locais, deve, ao menos, considerar as preocupações diplomáticas da Coroa portuguesa
após o Tratado de Madri (1750) e, sobretudo, o alcance das alterações provocadas pelo comando do
Marquês de Pombal à frente do Estado português.
No entanto, não se pode deixar de perceber que o relatório de D. Marcos torna manifesta a
emergência de uma nova preocupação. Se se quiser, em algum momento, relatar a ocorrência dessa
grande transformação conceitual que fará das ligações entre povoados e a navegação dos rios de
Goiás uma preocupação administrativa, não será pelo recurso da busca pela origem de uma
novidade. Muito pelo contrário, assim como foi feito na análise dos primeiros aldeamentos
indígenas e do fechamento do território, fenômenos aqui abordados, será preciso procurar perceber
como algumas medidas e procedimentos geram efeitos tais que estabelecem uma relação de
ressonância com outros gestos e provocam a rearticulação de um conjunto 129.
Como se pode concluir, na primeira metade do século XVIII, a constituição de aldeamentos
de natureza militar, a preocupação com o fechamento de pequenas estradas (picadas) e a
centralização dos trajetos permitidos são as ferramentas utilizadas para promover a garantia da
defesa do território e seu bom uso. A partir da década de 1750, outro conjunto de problemas será
apresentado ao governo colonial. Em poucos anos, os aldeamentos terão como funcionalidade
maior a promoção do povoamento do território, e as estradas, assim como os rios, passarão a ser
entendidas como ligação entre diferentes povoados, a fim de evitar o isolamento das unidades
localizadas nos diferentes pontos da Capitania.
O estudo das práticas de governo em Goiás estará significativamente enriquecido se ele
puder se definir como a busca pela reconstrução desses pequenos episódios, a procura por um
silencioso movimento de reorganização e redefinição de fundamentos que organizavam aquilo
mesmo que, em determinado período, se entendia por governo.
Cf. FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal,
2008, p. 244.
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WARS IN GOIÁS
1722-1800
DAVID LOUIS MEAD
Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Flórida
INTRODUCTION130
In August of 1750, the governor of Goiás, Dom Marcos de Noronha, commissioned an
investigation of the then recently created captaincy, including its indigenous inhabitants 131.
Of the Indians he wished to know where they lived, how numerous they were, if they were
cannibals, the weapons they used, how they fought, and the wars they waged amongst
themselves. Such information was vital, the governor knew, to combating the Indian threat
in a captaincy where Indians routinely assaulted remote mining camps and even dared to
attack the suburbs of the major settlements, including the capital at Vila Boa. In the north,
the powerful Acroá and Chacriabá raided with near impunity; while the Caiapó had even
managed to sever briefly contact between the mines and the coast in the south132. Warriors
routinely evaded or even defeated soldiers armed with muskets, launched onslaughts that
besieged garrisons, and caused such fear that settlers abandoned their herds, fields,
settlements, and even the ever coveted mines. The conquest of such formidable foes, the
governor must have known, had until then proved to be exceedingly difficult and violent.
The Indian wars in Goiás were perhaps the fiercest of those the Portuguese fought in
the early and mid-eighteenth century133. Yet, when the early historians of Goiás, writing long
after the worse of the fighting had passed, codified the captaincy‟s history, they portrayed the
The following abbreviations are used: Projecto Resgate (digital collection, accessed July 13, 2005): Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU), Administração Central (ACL), Conselho Ultramarino (CU), Brasil-Goiás (008), Caixa
(Cx), Documento (D); Pacote (Pct); Arquivo Histórico Estadual de Goiás, Goiânia (AHEGO); Biblioteca Nacional, Rio
de Janeiro (BNRJ), Seção de Manuscritos (SM); Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro (IHGB);
Museu das Bandeiras, Cidade de Goiás (MB); Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo
(DI); Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB).
131 BNRJ-SM II-31, 30, n° 6. Also, see CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos Indígenas. Goiás 1749–1811. São
Paulo: Nobel, 1983, p. 39-42.
132 In recognition of the profound differences in socio-political complexity, population size, and historical
experiences between modern peoples and their historic ancestors, archaic spellings are used in this essay to
distinguish the two. Thus, Xavante refers to the eighteenth century people, and Xavante refers to the modern
people, etc.
133 Portuguese and settlers are used interchangeably in this essay to describe the European colonizers of Goiás.
Although loosing some precision, e.g., the role of slaves, this avoids awkward (and often imprecise or
anachronistic) neologisms, e.g., colonizers of neo-Brazilians.
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Indians as inexorably driven back by the force of European arms 134. The truth, however, was
that the Indians routinely frustrated the settlers attempts at subjugating them, defeating,
dispersing, and destroying heavily-armed bandeiras. More recent narratives have been
attempts to rectify the narrative and emphasize the back-and-forth nature of the fighting, but
still the tribes remain overwhelmed victims of colonial expansion 135. Tribes unduly suffered
from Portuguese aggression - of this there is no doubt - but they were far from hapless
victims: often they were the aggressors, and often they profoundly affected the development
of the frontier136.
This essay examines the eighteenth-century Indian wars in Goiás137. The narrative is
well known. Broadly construed, the early years of the fighting saw several bandeiras
defeated, either by the Indians or the rugged landscape or some combination of the two,
forcing settlers to seek the assistance. There were numerous requests for “sertanistas” from
the neighboring captaincies to come and fight with native allies in Goiás, and the settlers
made various attempts to ally with the local tribes and have them fight138. The latter
attempts almost always failed and produced few allies; however, sertanistas and native allies
from abroad did come and fight in Goiás, most famously Antônio Pires de Campos and the
Bororo from Cuiabá. At the height of the fighting, in the 1740s and 1750s, the Indians
suffered severe defeats - entire villages were massacred; thousands thrust into captivity - but
the settlers were never able to subjugate completely the hostile tribes; there was always
fighting somewhere. Hostilities declined toward the end of the century, admittedly, but this
was due more to native population collapse than any military superiority on the part of the
settlers, who remained terrified of their indigenous neighbors well until the end of the next
century.
This article does not attempt to offer a new narrative of the fighting. Instead, it
examines information of the sort Governor Noronha requested. It begins with the major tribes
the settlers contacted and fought, arguing that these tribes were populous but became
increasingly mobile and warlike as the fighting progressed. It examines such changes by
characterizing Goiás as a “tribal zone,” a region of conflict on the edge of an expanding state
wherein natives modify and adapt their societies to the frontier, and describes some of the
inter-tribal conflicts that occurred before and shortly after the discovery of the mines. These
E.g., SOUZA, Luís Antonio Silva e. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais
notaveis da capitania de Goyaz”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 13, Rio de Janeiro,
1872, p. 429-511; ALENCASTRE, José Martins Pereira de. “Annaes da Província de Goyaz” Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 27-28, Rio de Janeiro, 1864-1865, p. 5–217, 229-349 e p. 5–167.
135 See, e.g., HEMMING, John. Red Gold: The Conquest of the Brazilian Indians, 1500-1760. Cambridge: Harvard
University Press,1978, p. 405-408; ______. Amazon Frontier: The Defeat of the Brazilian Indians. Cambridge:
Harvard University Press, 1987, chapter 4.
136 Tribe and people are used interchangeably in this essay; both terms should be understood in the sense of
complex socio-political entities formed on the edge of an expanding state, see FERGUSON, Brian. R; WHITEHEAD,
Neil L. “The Violent Edge of Empire”. In: War in the Tribal Zone: Expanding States and Indigenous Warfare. Santa
Fé: School of American Research Press, 1992, p. 1-30. Also, see WHITEHEAD, Neil L. “Tribes Make States and
States Make Tribes: Warfare and the Creation of Colonial Tribes and States in Northeastern South America”. In:
War in the Tribal Zone: Expanding States and Indigenous Warfare, op. cit., p. 127-150.
137 On Goiás generally, including the wars, see PALACIN, Luiz. Goiás, 1722-1822: Estrutura e conjuntura numa
capitania de minas. Goiânia: UFG, 1972; SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. Economia e escravidão na
capitania de Goiás. Goiânia: UFG, 1992. On the conflicts, see KARASCH, Mary. “Interethnic Conflict and
Resistance on the Brazilian Frontier of Goiás, 1750–1890”. In: Contested Ground: Comparative Frontiers on the
Northern and Southern Edges of the Spanish Empire. Tucson: Dona J. Guy and Thomas E. Sheridan Editors, 1998,
p. 115-134; ______. “Rethinking the Conquest of Goias, 1775–1819”, The Americas, nº 61, 2005, p. 463–492.
138 Correspondence refers to these fighting-men as “sertanistas”, but they often hailed from São Paulo and, today,
commonly would be called bandeirantes, a term that was not widely used in Goiás at least until the 1760s.
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conflicts, though poorly understood, set the stage for the better known fighting between the
settlers and tribes. Next, the fighting is analyzed with an emphasis on the native tactics that
so frightened the settlers; an attempt is made to find meaning in some of the reported
atrocities, and thereby shift the analysis away from savagery itself and toward an
understanding of atrocities that takes into account native perspectives and beliefs. Finally, it
closes with a brief examination of the interethnic violence and alliances between the settlers,
slaves, and Indians. It draws heavily on the example of the Caiapó, the most feared and thus
best documented of the settlers‟ native adversaries, but looks to other peoples as well. It
seeks to provide an analysis of the violent and complex interactions between the natives and
settlers that traditional narratives of the fighting have largely ignored.
MAJOR PEOPLES
When Governor Noronha commissioned his study, the settlers of Goiás recognized
more than a dozen tribes living in the captaincy. There were, of course, many more peoples
living in Goiás than those the settlers recognized, but contact with them was limited and little
more than a name and a location were recorded of these less well-known peoples139. Here,
we discuss the major peoples with whom the settlers of Goiás had contact and conflict
around 1750, beginning in the north and moving south. Then, we briefly discuss their
societies and subsistence and make a few broad generalizations relevant to the conflicts
fought in Goiás.
In the north, near the confluence of the Tocantins and Araguaia Rivers and along the
west bank of the latter lived the Pinaré or Guapindayé, the ancestors of the Apinajé 140.
Between the Tocantins and Araguaia Rivers lived the Chavante, the ancestors of the Xavante
and Xerente141. East of the Chavante and from the Tocantins to the São Francisco River,
roamed the related Acroá (divided into the Acroá-Açu and Acroá-Mirim, the “Big” and “Little”
Acroá; both now extinct) and Chacriabá (the ancestors of the Xacriabá in Minas Gerais) 142. All
of these tribes spoke variants of what are now called Gê languages. Where the Araguaia
River split to form the Bananal Island lived a large number of large tribes. The Crayá (various
spellings) lived on the banks of the Araguaia and Bananal: they were divided into the CrayáAçu (the “Big Crayá”) and Crayá, culturally and linguistically related, and the ancestors of the
Karajá and Javaé143. The Curumaré (various spellings) occupied the north and interior of the
Bananal as well as the banks of the Araguaia below the Bananal. They were “do mesmo
On the indigenous peoples of Goiás, see the essays collected in MOURA, Marlene Castro Ossami de. Índios de
Goiás: Uma Perspectiva Histórico-cultural. Goiânia: UCG, 2006. Also, see ARTIAGA, Zoroastro. Dos Índios do Brasil
Central. Departamento Estadual de Cultura, 1947; KARASCH, Mary. “Catequese e cativeiro: Política indigenista
em Goiás, 1780-1889”. In: CUNHA, Manuela Carneiro. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp, 2002, p.
397-412.
140 See the testimony of João de Godói Pinto da Silveira annexed in “Carta do [governador e capitão-general de
Goiás] João Manuel de Melo, ao rei [D. José]”, 1760, Dezembro, 23, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023. They
were occasionally called the “Cores,” see “Carta,” BNRJ-SM I,04,001, fls. 4-5. See also, NIMUENDAJÚ, Curt. The
Apinayé. Washington: Anthropological Publications, 1939, p. 8 and 21. Archaic spellings distinguish historic
tribes and their modern descendents in this article. For example, “Chavante” refers to the eighteenth-century
tribe, while Xavante refers to the modern people.
141 On the Chavante, see MAYBURY-LEWIS, David. Akwe-Shavante Society. University of Texas: Oxford University
Press, 1974. See also, NIMUENDAJÚ, Curt. The Serente. Lightning Source Incorporated, 2006
142 On the Acroá and Chacriabá, APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras
do sertão. Palmas: Fundação Cultural do Estado do Tocantins: 2006.
143 “Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
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idioma e custumes dos Carayás,” and almost certainly the ancestors of the modern Xambioá
(Karajá do Norte)144. All three of these peoples spoke dialects of Karajá, a Macro-Gê
language. A number of related Tupi speakers lived inland from the west bank of the
Araguaia, including the Tapirapé and Cururú145. The Tupi-speaking “Chavante de Canoa” or
Canoeiro (modern, Avá-Canoeiro) lived along the Tocantins River and its tributaries146. The
Caiapó (modern, Panará) dominated Southern Goiás 147. These Gê-speakers occupied a vast
territory that stretched east of the Araguaia River from the Serra Dourada south to the
Paraná and Paranaíba Rivers and extended into Camapuã in the west. Along the eastern and
northern fringes of Caiapó territory were smaller (and now extinct) tribes: the Gê-speaking
Goiá and Crixá lived to their north, and the Tupi-speaking Araxá lived to the east beyond the
Velhas River148. To the west, along the upper reaches of the Araguaia River and the Rio das
Mortes lived various peoples now known collectively as the Bororo, speakers of a Macro-Gê
language149.
Many of these tribes were extremely large. Crown officials routinely reported the
existence of immense populations, speaking not of hundreds but thousands of Indians. In
1745, for example, a sertanista from Piauí, Antônio Gomes Leyte, claimed to have “reduced”
to peace the Acroá-Açu, “cuja nação constava de duas numerosas aldeias de mais de oito
mil almas”150. This number does not seem exaggerated. A map showing the Acroá and
Chacriabá settled at the aldeamentos of São Francisco Xavier do Duro and São José do Duro,
which dates to the mid 1750s, shows two villages: one with 286 houses, and a second with
396 houses151. The number of houses portrayed in the map, according to a recent study on
the Xavante, suggests a population of perhaps as many as 3.000 - 4.000 inhabitants in each
village152. In 1756, Governor João Manoel de Melo, speaking of the Acroá and Chacriabá who
had then recently revolted and fled their aldeias, warned of “doze mil Índios no exercicio do
arco” living nearby, and beyond them, he added, existed the even more numerous (and
frightening) Chavante, whom he thought exceeded “quarenta mil armas”153. The latter
estimate was clearly an exaggeration, one that represented the impression the settlers had
Ibidem.
On the Tapirapé, see WAGLEY, Charles. Welcome of Tears: The Tapirapé Indians of Central Brazil. Waveland
Press, 1983. The Cururû were probably a sub-group of the Tapirapé and extinct by the end of the century. The
name Mangariruba also appears in connection with these peoples, but practically nothing was recorded about
them.
146 PEDROSO, Dulce. Avá-Canoeiro: a história do povo invisível, séculos XVIII e XIX. MA Thesis, ICHL, Universidade
Federal de Goiás, 1992.
147 Today, they are known as the Southern Caiapó. They should not be confused with the Northern Kaiapó, a
related but distinct people. On the Caiapó, see GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um
povo jê no Brasil central. Campinas: Unicamp, 1997; ATAÍDES, Jézus Marco de. Sob o Signo da Violência:
Colonizadores e Kayapó do Sul no Brasil Central. Goiânia: UCG, 1998.
148 Little is known about either the Goiá or Crixá. Both were described as tapuia, i.e., non-Tupi speakers. There is
no reason to believe the Crixá spoke anything other than Gê, and the Goiá were used to communicate with the
Caiapó, telling us they spoke Gê, see “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
149 On the Bororo in Goiás, see RAVAGNANI, Oswaldo Martins. “Os primeiros aldeamentos na província de Goiás:
Bororo e Kaiapó na estrada do Anhangüera”. Revista de Antropologia, nº 39, 1996, p. 222-244. For a more
general history, see VIERTLER, Renate Brigette. A Dura Penas: Um Histórico das Relações entre Índios Bororo e
“Civilizados” no Mato Grosso. São Paulo: USP, 1990.
150 “Carta do ouvidor-geral das Minas de Goiás, Manuel Antunes da Fonseca, ao rei [D. João V],” 1745, Setembro,
13, Vila Boa AHU_ACL_CU_008, Cx. 3, D. 281.
151 A published version of the map is found in CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos Indígenas. Goiás 1749–
1811, op. cit., p. 109-110.
152 COIMBRA JR. Carlos E. A; FLOWERS, Nancy; SALZANO, Francisco M; SANTOS, Ricardo V. The Xavante in
Transition: Health, Ecology, and Bioanthropology in Central Brazil. University of Michigan Press, 2002, p. 56.
153 RIHGB, nº 84,1918, p. 46-47.
144
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of the populous and numerous Xavante, not their true numbers; the governor‟s estimate of
the number of the neighboring Acroá and Chacriabá, however, was probably not far from the
truth. Antônio Pires de Campos, in his first campaign against the Caiapó in 1742, reported
capturing “mais de quinhentas almas” along the routes from Cuiabá to Vila Boa, and he later
captured at least 1.000 Caiapós in three months of campaigning154. His final campaign in
Goiás, around 1748-1749, at the head of almost 500 Bororo, saw Pires de Campos fleeing
from Camapuã because the Caiapó there were so numerous155. While admittedly imprecise
for judging a regional population, all of this, nevertheless, indicates a dense population - and
the moreover considering the scope and duration of the settlers‟ wars against the Caiapó.
Reports of large populations continued until late in the century. In 1775, the Carajá
and Javaé of the Bananal Island reportedly numbered 7.000 - 8.000156. By late January of
1784, the Caiapó settled at the aldeamento at Maria I exceeded 3.000157. In 1788, it was
reported that 2.200 Chavante settled on the aldeamento at Carretão, and this was a single
village158. Officials believed they were dealing with all of the Caiapó and Chavante - these
were pacified peoples in their minds - when, in fact, many more Caiapó and Chavante
remained in the sertões. The aldeia inhabitants represented only a portion of these tribes‟
total population, and probably small at that. Indians densely inhabited the sertões until very
late in the eighteenth century.
While none of the estimated eighteenth-century Indian populations are entirely
accurate, one does find a rough consistency in officials‟ reports of thousands of Indians for
each of the major tribes; these estimates should be taken seriously, and strongly suggest
sertões densely inhabited by populous native societies numbering in the many thousands.
But contact and conflict took its inevitable toll on native populations, and tribes that had
once numbered several thousand were reduced to mere hundreds. Of the many thousand
Chacriabá of the 1740s and 1750s, for example, a mere 200 remained in 1775 159. Similar
depopulation occurred for almost every tribe, and it often was less a product of the
successful wars waged by the Crown, which admittedly took a heavy toll, than the sweeping
epidemics that went largely unobserved and undocumented.
Eighteenth-century descriptions of the Indians stressed a perceived lack villages,
nomadic lifestyle, and violent disposition. In a letter to the Crown about the Caiapó, for
example, the town council of Vila Boa claimed, “Estes barbaros como não tem outra
ocupação mais do que andarem a corço [...] nem de mais trêm algum q‟ o seu arco e flecha
e hum pau de desmarcada grandeza em as maos para matarem q‟ hé todo o seu ponto e
toda a sua inclinacam e negocio”160. Such descriptions of wandering and violent “corso”
(“pillaging”) tribes should be approached critically, as they inevitably served the interest of
settlers who wished to drive off the Indians or conquer them for their labor. However, these
For the 500 captives, see “Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José, sobre a carta do governador e
capitão-general de Goiás, [conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha” 1750, Novembro, 14, Lisboa,
AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 456. On the 1,000 captives, see ALENCASTRE, José Martins Pereira de. “Annaes da
Província de Goyaz”, op. cit., p. 78.
155 SOUZA, Luís Antonio Silva e. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notaveis da
capitania de Goyaz”, op. cit., p. 447. Also, see AHEGO, Livro 3, 1735-1751, fol. 87v.
156 RIHGB, nº 84,1918, p. 126. Crayá-Açu and Crayá was in the process of being replaced by this time.
157 GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central, op. cit., p. 95.
158 CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos Indígenas. Goiás 1749–1811, op. cit., p.126.
159 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras do sertão, op. cit., p. 211.
160 “Carta dos oficiais da Câmara de Vila Boa, ao rei [D. José],” 1757, Junho, 11, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx.
14, D. 856.
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descriptions also aptly described war parties. Those producing the documents - miners,
adventurers, governors, and assorted Crown bureaucrats – were most familiar with Indian
raids, and war parties were indeed wide-ranging and aggressive. The descriptions of warriors,
armed with clubs and arrows, and traveling great distances – hundred of miles in some cases
– to attack settlements were accurate in this regard. Many settlers erroneously assumed
raids were representative of day-to-day life of the Indians, and they neither knew nor cared
that they described only part of their culture.
The bias found in the existing descriptions of the tribes can be offset by ethnographic
and ethnohistoric research, which permit some cautious generalizations 161. Villages,
especially those of the Gê, could grow large, and a thousand or more people might reside in a
village for part of the year. These large villages dispersed on “treks” to hunt and gather wild
foods for periods of time. Social structure reflected this peripatetic lifestyle and was flexible,
allowing family groups to disperse and remain socially viable, and then reunite into the larger
villages162. These large villages often fractured during periods of stress, often associated with
contact with settlers, which produced smaller groups that were more mobile 163. For example,
the Acroá-Açu living on the Preto River told of being “espalhada por fora das suas terras”
because of fighting with the settlers and “outras nascoens”164. Another soldier recounted how
the Acroá north of Natividade had no gardens and “só duas vezes no anno, hião as suas
aldeas”165. The ability to splintered into smaller groups when attacked and wandering widely
to hunt and gather made these tribes difficult to track and defeat in battle. Villages, though
loosely linked by networks of cooperation and exchange, were highly independent, and no
supra-regional political authority existed; the defeat of a single village did not lead to the
defeat of the other villages, which meant conflicts endured, much to the settlers‟ frustration,
even in the wake of bandeira victories.
All the tribes lived by some combination of hunting, gathering, fishing and horticulture.
Diverse subsistence strategies permitted them to be semi-sedentary, and the Gê especially
have acquired a reputation as trekking wanderers in the anthropological literature. But many
of the tribes, including the Gê, appear to have been more sedentary and reliant on
horticulture than their modern descendants. Bandeiras entering the sertões frequently
encountered large villages surrounded by well-worn trails leading to sprawling gardens filled
with numerous and abundant crops. Anhanguera, for example, on his first march for the
mines, found trails that he followed (for nine days) to fields of milho and eventually to a
village of Crixá, which he attacked and captured, and where his bandeira lived for three
months plundering food stores and gardens166. The Caiapó – whom the town council of Vila
Boa portrayed as wanderers – lived in villages surrounded by gardens, “Este gentio é de
aldêas […]”, said the elder Antônio Pires de Campos, “vivem de suas lavouras, e no que mais
se fundam são batatas, milho, e outros legumes”167. The Caiapó, another bandeirante
See, e.g., the essays collected in MAYBURY-LEWIS, David. Dialectical Societies: The Gê and Bororo of Central
Brazil. Cambridge: Harvard University Press, 1979.
162 For Gê social structure, see Terence S. Turner. “The Gê and Bororo Societies as Dialectical Systems: A General
Model”. In: Dialectical Societies: The Gê and Bororo of Central Brazil, op. cit., p. 147-178.
163 VERSWIJVER, Gustaaf. The Club-Fighters of the Amazon: Warfare among the Kaiapó Indians of Central Brazil.
Université de Gand: Faculté de philosophie et lettres, 1992.
164 “Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 3, D. 281.
165 Ibidem.
166 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Sertanistas. Belo Horizonte: UFMG, 1981, p. 129-131.
167 CAMPOS, Antônio Pires de. “Breve Noticia que Dá o Capitão António Pires de Campos do Gentio Barbaro”.
RIHGB, nº 4, 1862, p. 437.
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observed, “usão de culturas com abundancia e aseyo,” and their crops included varieties of
corn, yams, manioc, peanuts, gourds, and squashes168. In 1781-1784, the Caiapó brought
their familiar crops with them to the Maria I aldeamento, where they quickly established
gardens so abundant, one chronicler tells us, that they fed themselves, the inhabitants of the
nearby aldeamento at São José de Mossâmedes, and lowered prices in Vila Boa 169. The
Caiapó, clearly, like their Panará descendants, were skilled horticulturalists and relatively
sedentary, not the forever-wandering “corso” tribe the town council portrayed170. Governor
João Manoel de Mello, writing in 1760, said of Acroá and Chacriabá that “sabem muito bem
como se fazem as roças, que d‟ellas se sustentão nas aldeias”171. And the Chavante, whose
ancestors were so famously peripatetic in the early twentieth century, were said to be “gentio
de muito planta”. When Tristão da Cunha Menezes attempted to “pacify” the Chavante in
1784-1785, he ordered gardens planted for them with “milho, muita mandioca, muita
batata, muita cará, muita abobera, e todas as mais plantas de que elles uzão nas suas
terras”172. All of these were tribes whom the settlers variously described as lacking villages,
possessing no gardens, and ceaselessly wandering the sertões173. In fact, quite to the
contrary, they practiced some form of horticulture, often well developed, lived in large
villages, and probably practiced trekking less often than their descendants because of their
horticulture.
Horticulture had advantages and disadvantages that were important for the conflicts
that evolved in Goiás174. Reliance of gardens meant villages could more easily accommodate
refugees fleeing bandeira attacks. Gardens were also difficult to destroy, especially crops like
manioc, which were stored in the ground until harvest, and though bandeiras often destroyed
(or ate) captured stores of food, they rarely lingered long enough to destroy the actual
gardens. This meant the inhabitants of an attacked village were able to return and harvest
the remaining crops, even if their village was burned; indeed, the Indians occasionally
torched their own villages, depriving bandeiras of their stocks of food and, thereby, making
their pursuit more difficult. Old gardens existed throughout the sertões, and warriors knew
their locations and used them while raiding175. This meant they had to carry few provisions on
round-trip voyages – the town council of Vila Boa was accurate in this regard; the Caiapó
warriors did not have to carry many provisions – but bandeiras dispatched after raiders,
unable to carry sufficient provisions or exploit the available resources, starved and soon
returned home. But gardens required clearing and burning the forests, and the rising smoke
betrayed the locations of villages, and bandeiras used gardens and the trails leading to them
to locate and attack villages (precisely how Anhanguera survived his first march to find the
mines). So no matter how developed their horticultural practices, the various tribes in Goiás
“Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
“Redução dos Índios da Capitania de Goiás (Arquivo do Dr. Ernesto Ferreira França Filho),” IHGB, Lata 397,
pasta 2.
170 The Panará have been called “very keen gardeners,” see EWART, Elizabeth. “Living with Each Other: Selves and
Alters amongst the Panará of Central Brazil”. Dissertation Ph.D., University of London, 2000, p. 316.
171 RIHGB, nº 84,1918, p. 74.
172 “Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], Tristão da Cunha Meneses, ao [secretário de estado da
Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,” 1786, Janeiro, 23, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 36, D. 2199.
173 There were many examples of this, see, e.g., “Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 14, D. 856.
174 For essays relevant to this discussion, see POSEY, Darrell A. Kayapó Ethnoecology and Culture. London:
Routledge, 2002).
175 This was occasionally described, see TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Monçoeiros. Belo Horizonte:
UFMG, 1981, p. 158-159.
168
169
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came to rely less on their gardens as conflicts drove them into becoming increasingly mobile
and, thus, less easily attacked.
The miners and settlers of Goiás confronted numerous native peoples in eighteenthcentury Goiás. The tribes were large and their villages could be inhabited by several thousand
of people; however, these large villages broke up for periods of time in which they wandered
widely and lived off the land. Despite their semi-nomadic life, the Indians planted and harvest
gardens that produced abundant crops, and which surrounded their villages. Social structure
and subsistence made the tribes formidable adversaries, as the settlers discovered, because
attacking a village scattered its inhabitants, who fled and wandered for a period of time.
Reliance on horticulture, however, gradually decreased as the tribes adapted to life on a
violent mining frontier. Tribes were more sedentary in the beginning of the eighteenth
century than at its close, and their populations were smaller, having suffered the better part
of a century of warfare, disease, and social disruption.
CONFLICT AND MILITARIZATION IN A “TRIBAL ZONE”
Long before the younger Anhanguera came searching for gold, the region that
became Goiás saw numerous native wars. The lands east of the Araguaia were a refuge for
tribes migrating west away from the coast. The earliest migrations were likely provoked by
the pre-colonial Tupi conquest of the littoral. In the sixteenth and seventeenth centuries,
European conquest of the coast, the expansion of cattle into western Bahia and Piauí,
missionary activity along the Tocantins River, and the slaving of the Paulistas to the south
propelled new migrations. Native peoples pushing into the region were impeded by the
Tocantins and Araguaia Rivers, and became increasingly compressed into a circumscribed
area where they fought wars for territory and resources.
The stakes in these wars were high. In the late seventeenth century, for example, the
elder Anhanguera passed through the sertões east of the Araguaia River and attacked the
Goiá. They must have been populous, perhaps even aggressive, people because the slaver
did not pause long among them, even after glimpsing gold on the Goiá women. But when the
younger Anhanguera returned to the Goiá, “não achou mais que hum pequeno troço de cento
e tantas almas alojadas no Ribeirão chamado Bugres”176. In the years since the younger
Anhanguera had visited the Goiá, Caiapó attacks had reduced their once “vastissmos
alojamentos” to a single fortified village.
At least that was what João de Godói Pinto da Silveira, a formidable bandeirante and
mid-eighteenth century commander of the Bororo in Goiás, believed happened to the Goiá.
There was probably some truth to his claim - though one suspects unrecorded slaving and
disease played a role in the decline of the Goiá - but there is no doubt that, pushed from the
southern fringe of their territory by the Paulistas in the seventeenth century, and blocked to
the west by the powerful Bororo, the Caiapó expanded north at the expense of weaker
neighbors, like the Goiá. And much of this fighting occurred in the years before the
establishment of permanent settlements in Goiás.
Such interethnic conflicts accelerated with the gold strikes of the late seventeenth
and early eighteenth centuries. The first gold rushes occurred to the east in Minas Gerais in
the late seventeenth century, which pushed native peoples west into the lands between the
176
“Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
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Tocantins and Araguaia Rivers. In the early eighteenth century, the bandeirantes discovered
the mines of Cuiabá (c. 1717-1719) to the west of Goiás, and soon miners poured into the
sertões of what was to become Mato Grosso. These gold discoveries pressed native peoples,
notably the Bororo, into the sertões of the Araguaia River basin. In 1722-1724, the younger
Anhanguera began his quest for the gold-wearing Goiá Indians, which resulted in the
discovery of the mines of Goiás. Portuguese settlements, thus, existed to the east (Minas
Gerais), to the west (Cuiabá), to the south (São Paulo), and throughout the sertões of the
Araguaia – Tocantins basin.
Immense distances separated the settlements of Goiás, and Crown officials possessed
little administrative control over the intervening sertões. Indigenous peoples were driven into
these areas, as one governor described it, “procurando os sitios mais comodo para o seu
modo de vida”177. The Acroá-Mirim, for example, in 1747, migrated to the Araguaia from
western Piauí to avoid settlers178. But areas free from Portuguese domination were not free
from the deleterious effects of their presence: prospectors scoured rivers and streams for
strikes; bandeiras roamed the backlands attacking Indian villages and slaving; cattlemen
and farmers moved into and cleared land; and epidemics spread widely.
Natives displaced by the settlers battled for access to land and resources, producing
conflicts. In his search for the mines, the younger Anhanguera famously attacked the Crixá
Indians. They were a populous people – the attacked village had a population of “pouco mais
de 600 almas” – but, soon after the discovery of the mines, “huma grande bandeira de varios
Paulistas […]” traveled to the Crixá “na diligencia de recolherem o ditto gentio de paz, e não
acharão senão hum troço pequeno nas cabeceyras do Rio Crixá-Açu”179. The formerly
populous Crixá, the Paulistas learned, had perished in battles with the Caiapó (our source
again is Pinto da Silveira). The remnants of both the Goiá and Crixá fled from the mining
camps and slaving expeditions and, according to one governor, entered “a parte occidental
d‟esta capitania, em cujos certões se encontrarão com os Cayapós”180. There, the governor
explained, terrible conflicts erupted, and both the Goiá and Crixá disappeared. Similar
fighting occurred in the north as well. Added to the interethnic strife were the settlers‟
predation of tribes and competition and fighting with quilombos that spread from the mining
regions into the sertões.
Eighteenth-century Goiás was what has been termed a “tribal zone,” an “area
continuously affected by the proximity of a state, but not under state administration”181.
Within a tribal zone, native peoples adopt new strategies to deal with the encroaching state
society. In Goiás, they experimented with different tactics, relying on ambushes to fight the
settlers, for example, so that that they were not easily killed by musket fire, or adopted new
weapons, including firearms. They pillaged animals and crops from settlers and adopted
them. The Acroá adopted the horse, and their mounted warriors terrified settlers and stole
cattle182. One of the most important effects of living in a tribal zone for the tribes of Goiás
RIHGB, nº 84,1918, p. 61.
“Carta do [governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. José],”
1751, Fevereiro, 10, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 466.
179 On the Crixa village, see TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Sertanistas, op. cit., p. 131. On their
destruction, see “Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
180 RIHGB, nº 84,1918, p. 61.
181 FERGUSON, Brian. R; WHITEHEAD, Neil L. “The Violent Edge of Empire”, op. cit., p. 3.
182 “Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 466.
177
178
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was their militarization – and the tribes of Goiás were militarized, and long accustomed to
fighting when the first settlers arrived.
None of this is to say that the settlers introduced war to Goiás. War was a part of native
societies, an important one too, and the militarization of the tribes the settlers encountered
in Goiás began long before permanent settlement arrived 183. The Goiá were victims of this
fighting. But the fighting and militarization of the native peoples quickened with the discovery
of gold. Both the Goiá and Crixá soon were crushed between their more numerous native
neighbors and the settlers, and they disappeared. The conflicts that preceded and followed
the discovery of the mines resulted in native peoples who were very bellicose and skilled at
war.
AMBUSHES, ONSLAUGHTS, WEAPONS, AND TACTICS
Because contact between the various tribes and Portuguese stretched back decades
before the discovery of the mines of Goiás, and knowledge of European weapons, especially
their firearms, was generalized among the tribes at a very early date. During Anhanguera‟s
assault on the Crixá village, for example, a daring warrior attacked a mounted bandeirante
and pulled from his belt a large knife (“traçado”) and grabbed from his hand a musket, with
which he dealt the Paulista a “famoso golpe”184. This was no accidental theft on the part of a
particularly intrepid warrior: capturing a musket and a belted blade tells us the Crixá knew
well the purpose and utility of these items, and desired them enough to attack a mounted
opponent. It was most unlikely, thus, that this was the first contact the Crixá had with
bandeiras. It was the same for other tribes. The Paulistas had traded with and fought the
Caiapó as far back as the first decade of the seventeenth century185. Many of the Acroá and
Chacriabá in the Araguaia basin had fled from the cattlemen of Piauí. All these peoples had
heard the thunder of muskets and felt the bite of steel – and long before Anhanguera
returned in search of the Goiá. So when we hear of so-called native “treachery” – and such
accusations were many; for this was how the settlers perceived native tactics emphasizing
ambush and ruse – we are hearing how the Indians in a tribal zone had learned to fight
settlers armed with muskets and steel.
And learned to fight effectively they had. The Caiapó were illustrative of this
adaptation. Their attacks were carefully planned to maximize the victims and reduced
casualties among the attackers. One soldier told how they waited “observando nos montes e
arvores grandes” and attacked when the victims were isolated and preoccupied in some
task186. Detecting these raiders was not easy, “Custuma este gentio esconder-se em
qualquer moita de mato untados todos de terra e em forma que estando olhando para eles
não distinguireis facilmente se é gente ou terra”187. There were reports that the Caiapó had
“cobertas as cabeças de capim pellos campos para não serem vistas,” and so camouflaged
On the importance of warfare in native Amazonian societies, see FAUSTO, Carlos. “Of Enemies and Pets:
Warfare and Shamanism in Amazonia”, American Ethnologist, nº 26, 2000, p. 933–956. More broadly, see
KEELEY, Lawrence H. War before Civilization. New York: Oxford University Press, 1996.
184 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Sertanistas, op. cit., p. 129.
185 NEME, Mário. “Dados para a história dos Índios Caiapó”. Anais do Museu Paulista, nº 23, 1969, p. 102–147.
186 “Ofício do [ex-governador e capitão-general de Goiás], barão de Mossâmedes, José de Almeida de Vasconcelos
[Soveral e Carvalho], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,” 1780, Julho, 8,
Lisboa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 32, D. 2005
187 Affonso de Escragnolle Taunay, Relatos Monçoeiros (Belo Horizante, 1981), p. 186.
183
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killed around a dozen prospectors on the Rio Caiapó.188 Caiapó attacks happened quickly,
“de repente darem sobre os que vão passando, atirando-lhes primeiro com flechas, e depois
quebrando-lhes as cabeças de perto com porretes”189. They were greatly feared for this
reason, and it was said, with a hint of exaggeration, that “basta só um Caiapó para destruir
toda uma tropa: porque posto escondido no caminho faz tiro ao ultimo da retaguarda, e
partindo logo correndo com mais ligeireza que um cavalo volta a esconder-se e a dizimar a
tropa”190. Extra vigilance had to be taken against such canny opponents, and similar tactics
were found among all the tribes, not just the Caiapó.
Such tactics defeated the advantages of range and lethality the settlers possessed in
black-powder weapons, which the Indians greatly feared. It was for this reason that the
Caiapó preferred to ambush the rearguard and disappeared before a shot could be fired. The
tribes of Goiás so excelled at these tactics that it seemed to be the only way they fought.
Indeed, an investigation into the Caiapó attacks of the 1730s and 1740s found that the
majority were hit-and-run raids of small groups of warriors who attacked quickly and fled
quickly191. As Governor Noronha derogatively observed, “o gentio, ao primeiro estrondo das
armas, se poem em fuga porque nunca quer contender corpo a corpo senão de silada”192.
But Indians, despite the governor‟s contention, were capable of fighting larger battles.
They feared firearms, not the settlers‟ soldiers, and aboriginal patterns of warfare involving
large formations of warriors existed 193. José Pinto da Fonseca wittnessed mock combat
between the Caraja and Javae on the Bananal Island in 1775:
[…] avistamos grande quantidade de canôas, em que vinha a dita naçam [Javaé], que todos enfeitados
com os seus penachos na cabeça e lanças nas mãos fazião hua bella vista, tocando humas
desagradaveis buzinas acompanhadas de muitos gritos. Os Carajá lhe correspondião da mesma sorte,
mandando huma canôa reconhecellos com arco e flecha: neste tempo se meterão todos os Carajás em
batalha, e o mayoral na frente desembarcando: Os Javaés se metião tambem em batalha na frente dos
outros, todos com armas nas mãos; depois os dois batalhoens, avançarão hum contra o outro com
grandes gritos, fechando todo o corpo em grande circulo: para o meyo deste, sahia hum soldado de
cada naçam, a jogar a luta, e ao cair algum, se dava insoportaveis gritos. Os dois que lutavão sahião
para fora, e hião formar huma linha para lá correrem parelha, correspondendo a tudo com gritos e
toques de buzina194.
Such formations of warriors, their war chiefs at the fore frightening adversaries with
bellowing challenges for individual combat, were largely avoided with the musket-toting
settlers. It was these kinds of tactics, not the ambushes, that reduced the Goiá and Crixá.
Such formations of warriors, however, occassionally appeared and attacked the
settlers. In September of 1744, for example, settlers denounced a series of large Caiapó
attacks195. The attacks began between the Rio das Velhas and Rio Uberaba, where large
numbers of Caiapó raided farms, plundered storehouses, and attacked slaves. There was a
“Carta,” AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Monçoeiros, op. cit., p. 209.
190 Idem, p. 186.
191 GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central, op. cit., p. 70.
192 AHEGO, Livro 1, 1724-1726, fol. 46.
193 A similar point has been made for the natives of Minas Gerais, see LANGFUR, Hal. “Moved by Terror: Frontier
Violence as Cultural Exchange in Late-Colonial Brazil”. Ethnohistory, nº 52, 2005, p. 271-273.
194 “Ofício do José de Almeida Vasconcelos ao Martinho de Melo e Castro,” 1775, Agosto, 25, AHU_ACL_CU_008,
Cx. 28, D. 1824.
195 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. História geral das bandeiras Paulistas. 11 Vols. São Paulo: Melhoramentos,
1975, p. 246-247; HEMMING, John. Red Gold: The Conquest of the Brazilian Indians, 1500-1760, op. cit, p. 407.
188
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panic. Settlers and slaves fled, abandoning their possessions to the Caiapó. A “fazendeiro”,
Manoel Ferreira, tried to fight back, but the Caiapó surrounded his farm and torched his
buildings; he barely escaped with his life. The fleeing settlers arrived at the Grande River,
where there were some troops, whose commander, Manoel Raso, marched his musket-toting
men to battle the Caiapó. They fought at the Lanhoso, “onde teve um grande combate em
que lhe mataram tres escravos, e passaram com uma flechada a um camarada matando-lhe
mais seis cavallos”. That night, while the victorious Caiapó pillaged the horses, the defeated
Raso and his men slipped away to the Rio das Pedras. More troops, a few days later,
marched from the Rio Grande to the Lanhoso, but they too found no success against the
Caiapó, an ignominious retreat followed. There was great fear, and traffic along the route to
Goiás briefly ceased. Much heavy fighting followed this raid. Antônio Pires de Campos, with
the assistance of the Bororo, defeated the Caiapó. They returned a few years later. One
chronicler said of these attacks that they “em grandes trossos vinhão socorrendo huns aos
outros para repetirem suas ostilidades”196. Warriors besieged a garrison on the Velhas River
for several days; the troops cowered, terrified of the club-wielding warriors who fired flaming
arrows into the fortification, until Pires de Campos and the Bororo broke the siege and
pursued the raiders. For the settlers these Caiapo offensives were frightening events, even
Pires de Campos claimed the Caiapo had appeared “com força e barbaridade nunca visto
nos moradores [do] ditto caminho, destruindo todas as rossas, matando, e arrazando tudo o
q achava, sendo poucos os q‟ escaparão com vida de tal sorte q‟ ficou o ditto caminho
despovoado”197.
Similar onsloughts occurred, if but occassionally, in the north as well. In 1762, for
example, a large Chavante war party appeared near the mining camp at Crixás198.
Forewarned of the raiders‟ approach, a group of miners armed 300 slaves and put the
Indians to flight. The Chavante regrouped and returned in a few days – and many of them
now carried muskets. Facing these well-armed Chavante, and not wanting to lose their slaves
in combat, the settlers retreated to a defensive position, where they were besieged for three
days before the Indians withdrew. The sheer size and ferocity of the Chavante attack shocked
the settlers. The Chavante “nunca invadio as roças dos arrayes […] que ficão nas suas
vizinhanças”, the governor claimed, and a huge bandeira, which the governor supposed
numbered around 500, was hastily organized to castigate them. Clearly, the Indians‟ fear of
muskets was not all encompasing, and they did not, as Governor Noronha thought, fight by
ambush alone.
These offensives also indicate native war chiefs were capable of mobilizing large
numbers of warriors. Such large attacks, especially those of the Caiapo, appear to have been
the product of several villages cooperating in war, indicating loose networks of comunication
and cooperation existed between villages and even between regions. War chiefs used these
to coordinated attacks that involved large numbers of warriors from different villages199. It is
hard to say what provoked the Chavante attack – the governor blamed the machinations of
Spanish Jesuits – a most unlikely cause – but in the case of the Caiapó, it was Pires de
Campos and the Bororo aldeamentos he established along the route to São Paulo that
“Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
“Consulta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 456.
198 RIHGB, nº 84,1918, p. 83-84.
199 For an example of Caiapó villages participating jointly in a raid, see TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos
Monçoeiros, op. cit., p. 226.
196
197
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brought on the heavy fighting of the mid-1740s. The Caiapo sought revenge in these attacks,
and, at the same time, attempted to drive off the settlers and their Bororo allies.
Much of the fighting was defensive, and much more clearly so than the fighting in
southern Goiás. Indians did try to drive settlers from their territory or ambush bandeiras so
that they could avoid contact and flee into the sertões. In early 1750, for example, Antônio
Pires de Campos arrived at the Araguaia, seeking allies to fight the Caiapó from among the
Tupi-speaking tribes. He approached a village of Cururú, whose inhabitants had been slaved
the previous year, and whose chief told him “que os brancos tinhão já tratado a elles como
se fosem viados, ou outros animais silvestres e que tudo o que lhe tinhão feyto não permitia
que fizessem outra vez delles,” before ambushing Pires de Campos and fleeing with his
people200. Similarly, after a bandeira attacked their village, Chavante warriors pretended to
parley with a lingua and “mestiço,” whom the bandeira had sent to negotiate with them. “O
cacique respondeu que queria ouvir o recado de mais perto para dar resposta”, but when the
messangers approached, warriors “[…] dispararão os arcos de cujos tiros morreu o Indio, e
ficou ferido o mestiço com duas flexas”201. The Cururú and Chavante, here, clearly fought
defensively. Settlers‟ attacks, similarly, precipitated many of the Acroá and Chacriabá raids
that occurred in the mid-1740s202.
Not all of the fighting was defensive, and there were many instances where the Indians
attacked the settlers offensively. The settlers recognized that they faced aggressive enemies
in some of the tribes, especially those whose raiders traveled hundreds of miles to launch
attacks. Caiapó from the Pilões and Bonito Rivers repeatedly raided Vila Boa, and Governor
João Manoel de Mello believed defense of territory was not behind these attacks, since the
Caiapó were not “o primeiro ocupante d‟este territorio, pois este só pertence ao Gentio Goyaz
e Crixás”203. The Caiapó had warred against and destroyed the Goiá and Crixá, the governor
knew and admitted, and which he believed was indicative of an innate savagery that
explained the fighting.
The Caiapó, indeed, attacked the settlers as they had attacked the Goiá and Crixá
before them, but innate savagery had little to do with their attacks. There were many reasons
for Indian attacks – e.g., revenge and the acquisition of prestige by warriors – but plunder
was the one most frequently and clearly identified in the sources. The Caiapó, for example, in
the mid-1730s, killed 15 horses, scattered their cargo, and “roubou toda a ferramenta,” and,
twenty years later, their warriors killed “hum mulato e sua mulher, roubandolhe toda a
ferramenta que tinhão em caza”204. In the intervening years, there were many denunciations
of the Caiapo pillaging muletrains and settlements. Bandeiras often recaptured goods that
raiding parties plundered. In early 1764, a bandeira captured from a Caiapó raiding party “os
despojos que levava,” and in 1766, Bororo troops destroyed a Caiapó village and recaptured
“os furto que os Caya-pós tinhão levado das roças”205. Pillaging was typical of all the tribes.
An attack that produced large hauls of plunder could stimulate further attacks. In
1755, there was a massive Caiapó attack at a mine that left 44 people, mostly slaves, dead
“Carta do [governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. José]”,
1751, Janeiro, 24, Vila Boa AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 465.
201 RIHGB, nº 84,1918, p. 89.
202 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 3, D. 281.
203 RIHGB, nº 84,1918, p. 61.
204 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
205 RIHGB, nº 84,1918, p. 87, 91.
200
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near the Arrayal das Antas (modern Anápolis)206. The killing of so many slaves must have
produced a huge haul of plunder (and any slaves who survived the attack would have
abandoned their possessions to the Caiapó). The following year, the Caiapó returned to the
Arrayal das Antas and killed 19 slaves207. The number of deaths, again, suggests a large
amount of plunder. In 1757, the Caiapó again reappeared and killed two slaves, but the
settlers now expected attacks and killed one of the raiders; nevertheless, Caiapó returned in
1758 and killed five slaves208. The capture of plunder explains this fighting209. The huge haul
of plunder the raiders pillaged in 1755 drew the Caiapó back to the Arraial das Antas over
the next several years; some of these attacks probably hailed from different villages, whose
warriors were attracted by the potential for easy spoils. The subsequent attacks were less
effective – the returning raiders, after all, had lost the element of surprise – captured less
plunder, and even saw a warrior killed. Eventually, the Caiapó quit returning. This pattern fits
the fighting around Vila Boa in the 1730s and early 1740s: Caiapó warriors appeared
repeatedly to pillage what must have seemed an endless supply of exotic, interesting, and
useful goods; it was not until Pires de Campos and the Bororo appeared and destroyed their
villages in 1742 that the Caiapó ceased attacking the settlement for several years. It was not
surprising, then, that settlers subjected to the yearly return of plundering raiders felt
besieged, and thought of the attacks as “invasions.”
There was often a sense of frustration in the settlers‟ correspondence dealing with the
Indians, which frequently stressed that Indians fought treacherous, employing ambushes and
ruse, struck quickly, faded quickly into the sertões where dense undergrowth, humidity, and
frequent river-crossings made firearms a hindrance210. Such tactics were largely adopted as a
response to Portuguese arms, with which the Indians were familiar long before the mines
were discovered, and which the natives greatly feared – a wound from a blast of heavy lead
shot, after all, was almost always lethal, unlike an arrow wound. But the Indians were not
unwilling to fight open battles, and occassionally they appeared in great numbers to attack
the settlers in offensives. The Indians also fought defensively, valiantly defending their homes
and families, but there was an offensive quality to many of the attacks, and the capture of
plunder was clearly an important motivation to their raids.
VIOLENCE, ATROCITIES, AND TRANSFORMING “EUROPEAN” WARFARE
By the mid-century, despite dispatching bandeiras to the sertões to attack villages –
bandeiras that increasingly found success – the settlers saw raiders return year after year in
conflicts that grew increasingly vicious. There were massacres, mutilations, and cruel
tortures. The settlers believed Indians intentionally mutilated victims by smashing them open
with clubs and piercing them with numerous arrows. The killing of an enemy was a collective
“Requerimento de Rita Rodrigues Neves e os órfãos seus filhos, viúva que ficou de Manuel da Costa Portela,
ao rei [D. José]”, anterior 1762, Janeiro, 23, Goiás, AHU_ACL_CU_008, Cx. 18, D. 1072.
207 “Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei [D. José], sobre a carta do [governador e capitão-general de Goiás],
conde de São Miguel, [D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora]”, 1758, Setembro, 23, Lisboa, AHU_ACL_CU_008,
Cx. 15, D. 907.
208 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
209 For an alternative interpretation of the fighting around the Arraial das Antas that stressed the role of
vengeance, see GIRALDIN, Odair. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central, op. cit, p.
81.
210 See, e.g., “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D.466; “Subsídios", RIHGB, nº 84,1918, p. 89.
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act for many of the tribes, especially the Gê, one in which several raiders participated by
attacking a fallen victim, striking him or her with their clubs and firing arrows into the body;
the warriors who struck the body of a fallen enemy acquired prestige for the kill 211. In
Anhanguera‟s attack on the Crixá, we find a dramatic example of this kind of fighting. A
warrior hiding in a doorway loosed an arrow into Francisco Carvalho de Lordelo, “e acudindo
outro lhe deu na cabeça com um porrete de que caiu logo, caindo-lhe deu outra porretada
outra Tapuia, que apareceu de novo, deixando-o já por morto”212. The Paulistas fended off
the Crixá warriors and recovered their fallen comrade (who survived his wounds); but there
were many victims who fell in attacks with no one nearby to chase off the oncoming warriors
and their clubs. The arrow-riddle and smashed-open bodies that resulted from this kind of
fighting were startling, even to soldiers accustomed to the horrors of war, but they were
largely a by product of native tactics and concepts, not intentional mutilation.
Obvious torture did occur. After one Caiapó attack that killed 14 slaves, a woman was
discovered with “hum groço espeto de pau entroduzido pelo utero asima até pelo boca” and
another slave “com hua grande espiga do milho calcada pella garganta abayxo”213. Caiapó
raiders often tossed bodies on fires or torched buildings to kill the inhabitants, and Pires de
Campos once returned to the gravesite of soldiers killed in a Caiapó ambush where he
“achou aberta a sepultura, e algum resto dos cadaveres assados sobre grilhados, como se
fazem as cassas do mato”214. Such acts terrified the settlers, which no doubt was the
intention, but ethnography also offers provocative hints that this was more than sheer
brutality. Among the Panará, the descendants of the Caiapó, the burning of corpses was
reserved for witches, a category asocial non-humanity215. In burning bodies and opening
graves to roast the remains, the Caiapó were not eating the dead, as the settlers believed,
but treating their enemies as witches, and in so doing, they reserved humanity for
themselves and denied the settlers this status.
The constant specter of ambush, torture, and the desecration of their mortal remains
created palpable paranoia in isolated settlements, where settlers and their slaves “estavão
continuamente com as armas nas mãos para defender as suas casas”216. The resulting fear
was unleashed in the backlands, where Governors sanctioned the massacre of hostile
Indians. In 1741, the governor of São Paulo, of which Goiás was still a part, licensed a
bandeira exploring the northern sertões to attack hostile natives, “aos taes gentios se não
dará quartel, salvo se elles pedirem a paz […],” and, though permitting the murder of men, he
commanded “que as Mulheres e Mininos de dez annos abaixo se não dará morte, nem
offenderá de modo algum, porque como estas nos não tem offendido, e não accenta bem na
VERSWIJVER, Gustaaf. The Club-Fighters of the Amazon: Warfare among the Kaiapó Indians of Central Brazil,
op. cit., p. 178–179.
212 TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Relatos Sertanistas, op. cit., p. 129.
213 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
214 Ibidem. In the late 1960s, pacification teams sent to contact the Panará, then known as the Kreen-Akrore,
discovered burnt bones in their villages. It was later learned that these were the remains of individuals killed for
practicing witchcraft; such witches were (and are) called hipe (“enemies”). This word is also used to describe
outsiders. See COWELL, Adrian. The Tribe that Hides from Man. New York: Stein and Day, 1974, p. 176. EWART,
Elizabeth. Living with Each Other: Selves and Alters amongst the Panará of Central Brazil, chapter 3.
215 SCHWARTZMAN, Stephen. “The Panará of the Xingú National Park: The Transformation of a Society”. Ph.D.
Dissertation. Chicago University, 1988, p. 270.
216 “Ofício do João Manuel de Melo ao secretário de estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, 7 Junho
1764, AHU_ACL_CU_008, Cx. 20, D. 1220.
211
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piedade christã derramar sangue innocente”217. But such “piedade” was easily brushed
aside. In 1766, a pedestre named Victo Antônio plunged into the sertões to attack the
Caiapó, his Bororo clashed with “hum grande numero dos dittos gentios que vinhão derigidos
a nova invasão,” killing 14 “na primeira descarga” 218. Flushed with victory, they rushed into
the nearby village and slaughtered the inhabitants “sem perdoar aos mesmos que se
rendiam e lhe pediam a vida,” sparing only 18 small boys, and “sem resultar d‟esta
empresa,” observed the chronicler Padre Silva e Sousa, “outro fructo mais que alguns
prisoneiros, que se venderam em proveito dos mesmos empregados na expedição”219.
The human cargo Victo Antônio hauled from the sertões was far from unusual.
Elderly men and women, pregnant women, and small children fell into the clutches of
bandeiras because they could not flee. In 1756, a bandeira attacked the Caiapó and
captured six women and 25 children220. A bandeira that attacked the Chavante killed the
men “que acudirão com arcos, e o mais fugirão, ficando só os de pouca idade”221. Disease
killed many captives – three of the aforementioned Caiapó women died from fevers – and
the survivors, especially the children, were usually distributed to locals for labor 222. It was a
sad fate for people accustomed to the close-knit familiarity of indigenous societies.
The killing of men and capturing of women and children, of course, was not particular
to European warfare. The Indians in their own wars spared few men, preferring to kill them,
and abducted women and children, whom they too incorporated into their societies (often
more successfully than the settlers)223. And with time a clear line between European and
native fighting techniques became increasingly difficult to draw. Heavy reliance on
indigenous auxiliaries, most prominently the Bororo, meant bandeiras became more like
native raiding parties than European fighting formations. Numerous native auxiliaries and an
“officer,” frequently of low rank and of indigenous descent, manned bandeiras from the midcentury on. They traveled light, carried little equipment beyond their weapons, and they lived
off the land as much as possible. They fought by tracking raiders, searching for trails and
gardens, spying the smoke of villages, and launching ambushes and devastating assaults at
dawn or dusk; all tactics the natives used224.
More than just the adoption of native tactics was involved in the transformation of
bandeiras into fighting formations capable of combating the hostile tribes of Goiás. For in the
atrocities bandeiras committed tantalizing evidence exists of indigenous practices, albeit
subsumed within the context of the settlers‟ so-called “civilized” warfare. Bandeiras were
ordered to fight “sem usar das crueldades que alguns sertanistas usaram,” which included
“Regimento de que ha de uzar a bandeira que vay explorar a Campanha do Rio do Sono”, 1751, Maio, 25, DI,
nº 22, 1896, p. 159-160. Similar orders were issued for the other tribes, see “Regimento de que hão de uzar os
capitaens de cavallos da conquista do Cayapó no districto e circunvizinhanças de Vila Boa”, DI, 22, 1896, p. 168.
218 “Ofício do João Manuel de Melo, ao Secretário de estado, Francisco Xavier de Mendonça”, 1767, Junho, 22,
AHU_ACL_CU_008, Cx. 23, D. 1440.
219 SOUZA, Luís Antonio Silva e. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notaveis da
capitania de Goyaz”, op. cit., p. 452.
220 “Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José, sobre a carta do [governador e capitão-general de Goiás],
conde de São Miguel, [D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora]”, 1757, Fevereiro, 5, Lisboa, AHU_ACL_CU_008,
Cx. 14, D. 829.
221 “Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 89.
222 AHEGO, Livro 7, 1754-1771, fls. 139-139v.
223 For examples, see CAMPOS, Antônio Pires de. “Breve Noticia que dá o Capitão António Pires de Campos do
Gentio Barbaro, op. cit., p. 437; “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 465.
224 For a description of this, see, “Ofício”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 23, D. 1440.
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“cortando membros” and “outras barbaridades”225. Such injunctions were made because
troops tortured captives, raped women, murdered the young and old (Pires de Campos
reportedly killed small children because they slowed him down), and mutilated the dead;
terrible acts that were part of the increasing cycle of violence unleashed in the sertões; and
much of which was intended to frighten and terrify and enemies who, in turn, were
considered frightening and terrifying. But it was also true that the Bororo, the settlers‟
favored native allies in Goiás, took body parts from the dead. A Caiapó captive told how his
people had trekked into Bororo territory to gather “cocos,” but they “forão precentidos e
seguidos pelo ditto [Bororo] que matara dous dos seus parentes carregandolhe alguns
quartos para mostrar aos mais e não para comer porque não custumão”226. Ethnography
confirms this Bororo practice – though the taking of jawbones, not “quartos” – and which
related to their concepts of vengeance and warfare227. So the occasional hacking apart of
bodies, if performed by Bororo troops, was more than savagery unleashed; rather, it was the
continuation of native beliefs and practices within the context of bandeira warfare.
Bandeira commanders who were incapable of adapting to native practices were
rejected by their troops. This was what happened to Captain Antônio de Lemos e Faria, to
whom command of the Bororo passed after Pires de Campos‟s death in 1751 228. Two years
later, he was replaced because the Bororo had grown tired of him and deserted their aldeias
to travel to Vila Boa, where they complained the captain treated them harshly and slowed
them with too much equipage229. João de Godói Pinto da Silveira, the man the Bororo
requested, replaced the captain, and he proved to be, in the words of a later chronicler, “um
dos grandes aventureiros” of the captaincy – a reputation he acquired in epic marches that
crossed hundreds of miles and in which he traveled and fought in the manner of his Bororo
troops230. Later Bororo commanders, such as the aforementioned vicious Victo Antônio or
José Luís Pereira, who commanded the expedition to “pacify” the Caiapó in 1780, were
masters of native tactics231. Victo Antônio, for example, it was said, had much “experiencia”
in the sertões and, indeed, he led the Bororo in “varios giros” that crossed “muitos rios
caudilozos” and navegated “pantanos impracticaveis” in his search for the Caiapó – all of
which soldiers less skilled in the backlands, like Captain Lemos e Faria, frequently found
difficult, if not impossible232.
The violence that swept through Goiás grew increasingly vicious. In the mutilated and
tortured victims, we find evidence of native concepts of warfare, for example, killing as a
collective act or the treatment of enemies as asocial “witches.” But to the settlers,
unsurprisingly, the murders, arsons, and thefts indicated the savagery and barbarity of the
Although these particular instructions come from Cuiabá, the acts they describe apply equally to Goiás, see
“Instrução que há de seguir e observar inviolavelmente o Cabo da Bandeira Antonio Soares de Godói”, Revista do
Arquivo Público de Mato Grosso, nº 2, 1983, p. 83.
226 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023. Settlers reported the Bororo doing this outside of Cuiabá toward
the end of the century, see FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil, 1875-1878. Rio de Janeiro:
Typ. de Pinheiro, 1881, p. 76-77.
227 CROCKER, Christopher J. Vital Souls: Bororo Cosmology, Natural Symbolism, and Shamanism. Tucson: The
University of Arizona Press, 1985, p. 285-286.
228 AHEGO, Livro 6, 1751, fl. 230.
229 BNRJ-SM, 01, 04, 001, n° 19, fls. 35-36v.
230 MATTOS, Raymundo José da Cunha. “Chorographia historica da provincia de Goyas”. RIHGB, vol. 37, nº 18,
1874, p. 262.
231 On José Luís Pereira, see “Carta do [governador e capitão-general de Goiás], Luís da Cunha Meneses, à rainha
[D. Maria I]”, 1783, Janeiro,10, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 34, D. 2079.
232 “Ofício”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 23, D. 1440.
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Indians. The Caiapó, in the words of Governor João Manoel de Mello, were “huns piratas,
vagamundos, inimigos comuns, e insaciaveis monstros de sangue humano”233. And the
settlers treated them accordingly, ordering the murder of all men capable of bearing arms;
and though rarely did the officials sanction the murder of women and children, such
injunction held but loosely in battle. Women and children often fell afoul of bandeiras, and
they were the most frequent victims of the settlers‟ “victories.”
Always the violence was terrible and frightening, but there was familiarity to be found
in the fighting. Reliant on native auxiliaries for success in the sertões, bandeiras increasingly
resembled raiding parties. The stealthy tracking, clever ruses, ambushes, and early morning
assaults were traditional aspects of native warfare. Bandeiras, like native raiders, attacked
quickly, killed men, kidnapped women and children, and pillaged. The settlers hoped to
make “vassals” out of the kidnapped women and children, much as the Indians abducted
settlers and slaves to replace family members lost to disease and war. And, if but
occasionally, bandeiras returned from the sertões bearing mementos of their victories,
hacked from the bodies of the victims for native rituals performed in the course of waging
the settlers‟ wars. Commanders incapable of fighting like their troops or turning a blind-eye
to the continuation of native practices found the fighting difficult. They might face open
rebellion from troops who knew better the sertões and wished to survive and succeed there.
The most successful commanders were those who mastered and relied on native tactics and
practices, combined them with the settlers‟ firearms and steel and logistics, and transformed
the native warriors into fulltime specialists skilled in the hybrid European-native warfare that
bandeiras waged.
INTERETHNIC VIOLENCE: SLAVES AND NATIVE WARS AND ALLIANCES
The most common victims of Indian attacks were slaves234. In the early years of the
mines, the killing of slaves undoubtedly was the product of the Indians‟ fighting preference:
ambushing un-armed slaves was less risky than attacking their musket-toting owners or
soldiers; and slaves were often isolated and occupied with manual labor, making them
vulnerable and inattentive. The great slaughters in Goiás involved many slaves, attesting to
their vulnerability. There was also an economic component to attacking slaves, since their
labor required tools and other goods – e.g., saws, hoes, machetes, shovels, picks, and wash
pans - that the raiders sought to plunder235.
On the precarious Goiás frontier, where settlers relied on slave labor and invested
significant capital in human chattel, an Indian attack could spell economic disaster. In the
case of Rita Rodrigues Neves, for example, the Caiapó killed her husband, Manoel da Costa
Portela, and more than 40 slaves mining outside of the Arrayal das Antas in July of 1755 236.
In January of 1762, the widower petitioned the crown for a forbearance on her husband‟s
debts. The source of her financial ruin, she claimed, was the calamitous and irreplaceable
“Subsídios”, RIHGB, nº 84, 1918, p. 62.
On slave-Indian interaction, see SCHWARTZ, Stuart B; LANGFUR, Hal. “Tapanhuns, Negros da Terra, and
Curibocas: Common Cause and Confrontation between Blacks and Natives in Colonial Brazil”. In: MATTHEW,
Restall (Ed.). Beyond Black and Red: African-Native Relations in Colonial Latin America. Albuquerque (NM):
University of New Mexico Press, 2005, p. 84-96.
235 See, e.g., “Ofício do João Manuel de Melo ao secretário de estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado”,
1764, Junho, 7, AHU_ACL_CU_008, Cx. 20, D. 1220.
236 “Consulta do Conselho Ultramarino ao rei”, 1757, February, 5, AHU_ACL_CU_008, Cx. 14, D. 829.
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loss of so many slaves, which left her unable to mine and profit from her holdings237. The
petition struck a sympathetic chord with the Crown, and the widower received her
forbearance, and though Rita Rodrigues Neves was an extreme case – raiders rarely
slaughtered so many slaves in a single attack – the loss of a slave was a severe economic
setback, especially for those who owned but a few slaves. The mere rumor of an attack was
enough propel jittery owners, who did not wish to lose their human chattel, much less their
own lives, into fleeing for the safety of the larger mining camps238.
Evidence indicates Indians were not un-aware of the differences in status accorded to
people of different skin color on the frontier. In 1784, the Caiapó at Maria I refused to work in
communal fields, and soldiers stationed at the aldeia reported, “Trabalhar não querem e
dizem que trabalham os negros”239. The Caiapó recognized the lack of freedom and onerous
labors of slaves. They were not slaves and did not want to be considered slaves, and so they
refused to perform tasks that frontier society deemed appropriate for slaves. While many of
these Caiapó had lived on the aldeia for years, their understanding of colonial racial
inequalities certainly had been acquired earlier. The Chavante recognized differences
between settlers and slaves, and many years before they settled on an aldeamento240.
Admittedly, it is hard to judge when Indians began to recognized the differences attributed to
skin color, but there were plenty of opportunities to learn: Indians witnessed slaves laboring
in the mines and fields under the watchful eyes of overseers, and must have noticed darkskinned slaves possessed little freedom of movement and performed tasks the lighter
skinned shunned; Indians who were captured and managed to flee carried information about
slaves; tribes learned about slaves from women and children kidnapped from settlements;
and Indians killed slaves in their attacks. Such knowledge could only have increased where
Indians and slaves intermingled on the aldeamentos.
The Indians could not have missed the wider ramifications of killing slaves after
witnessing the abandonment of mines, farms, and herds. They probably hoped that the
killing of slaves would lead to settler retreats, and this must have played some role in more
than a few attacks241. There was a clear attempt to exploit the racial fault lines of frontier
society in the mid century. In 1765, Governor João Manoel de Melo reported that the
Chavante had captured a group of slaves and “levando-os às suas aldeas lhes fizerão muito
afagos, e os cazarão com as gentias, asseverando-lhes que todo o preto que quizesse passar
para elles acharão nas suas aldeias o mesmo bom tratamento”242. This was a potentially
explosive situation. The governor feared that “tendo passo franco para as aldeias dos
gentios, onde estavão seguros de perigos, senhores da sua liberdade, e com mulheres
“Requerimento de Rita Rodrigues Neves e os órfãos seus filhos”, (anterior to) 23 January 1762,
AHU_ACL_CU_008, Cx. 18, D. 1072.
238 There are many examples of this, see, e.g., “Ofício do [governador e capitão-general de Goiás, barão de
Mossâmedes], José de Almeida Vasconcelos [de Soveral e Carvalho], ao [secretário de estado da Marinha e
Ultramar], Martinho de Melo e Castro”,1774, Junho, 20, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 27, D. 1776; “Carta do
ouvidor de Goiás, Manuel Antunes da Fonseca, ao rei [D. João V], sobre a necessidade de se fazer guerra aos
índios”, 1743, Agosto, 25, São Félix, AHU_ACL_CU_008, Cx. 3, D. 227.
239 “Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], Tristão da Cunha Meneses, ao [secretário de estado da
Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,” 1784, Janeiro, 16, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 35, D. 2131.
240 “Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 89-90.
241 Hal Langfur has made this point for the Indians of the Eastern Sertão of Minas Gerais, see LANGFUR, Hal.
“Moved by Terror: Frontier Violence as Cultural Exchange in Late-Colonial Brazil”, op. cit., p. 266.
242 “Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 89. Also, see “Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], João
Manuel de Melo, ao secretário de estado [da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, 1765,
Março, 30, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 21, D. 1274.
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proprias,” would spur slaves to flee, undermining the very existence of the mines. A bandeira
was hastily dispatched to the sertões, where it attacked “muito populoza” Chavante aldeia
and killed “bastantes barbaros.” The Chavante gambit to exploit the discontent and social
tensions between master and slave had failed. What it makes clear is that Indians had
recognized, and attempted to exploit, the racial differences of colonial society on the frontier.
The slaveholding regime reacted aggressively to the Chavante assault on the racial
hierarchy of the mines, and with good reason. Slaves and Indians greatly outnumbered the
“white” settlers of Goiás, and a military alliance between them would be militarily powerful.
But there was little sympathy between Indians and slaves. The two groups were separated by
vast differences in culture and language, and they shared a substantial history of violence.
Promoting this animosity was critical to the settlers‟ hegemony. Indians killed slaves in the
fields and mines – even the Chavante more often murdered slaves than attempted to entice
them into their villages - and slave owners armed their slaves, who did not hesitate to
slaughter Indians in the sertões. Tribes competed with and fought quilombos, and when they
entered into alliances with the settlers they gave away the location of these quilombos and
tracked down fugitive slaves. The Caiapó at Maria I, who looked down on slaves for their lack
of freedom and their onerous toils – a view the administrator, unsurprisingly, did not attempt
to dispel – wandered “aquelles immensas campanhas cintas de legoas apanharam muitos
pretos fugidos que os conduziam aos arrayoes da capitania”243. They revealed the location of
“hua grande cidade de negros fugidos” situated on an island on the Grande River in southern
Goiás. That the quilombo was situated on an island tells us that its inhabitants‟ interactions
with the neighboring Caiapó were unfriendly, and the latter took advantage of their alliance
with the settlers to settle a score with an enemy.
It was not solely to settle grievances with quilombos that tribes allied with the
settlers. Various tribes, at various times, sought alliances to settle vendettas with their
indigenous neighbors. The most famous example of this in Goiás was the Bororo, who came
to fight the Caiapó because of an ongoing rivalry between the two peoples244. But they were
not alone in allying with the settlers because of a native rivalry. In almost every example that
we find natives entering into an alliance with the settlers, we find evidence that the tribes
involved attempted, or expected, the settlers to aid them in their own wars. The Tapirapé and
Cururú tribes, in 1755-1756, were fighting and losing wars against the Crayá and
Guapindayé, so they agreed to an alliance with the settlers 245. After the Acroá massacred a
village of Chacriabá in 1762, the surviving men “capazes de tomarem armas se offerecerão
para acompanhar a bandeira que vai contra os Acroaz dizendo: que querem vingar as mortes
dos seus parentes”246. The Karajá and Javaé looked to the settlers for aid in their wars in
1774247. And “um antigo e irreconciliável ódio” of the Chavante propelled the Caiapó of
Maria I to participate in a bandeira in 1784248.
These alliances could arise quickly, and were heavily reliant on events in the sertões
over which the settlers had little or no control; and alliances could end quickly, often with
“Redução”, IHGB, Lata 397, pasta 2.
“Ofício”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 32, D. 2005.
245 “Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei [D. José], sobre a carta do [governador e capitão-general de Goiás],
conde de São Miguel [D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora]”, 1758, Setembro, 23, Lisboa, AHU_ACL_CU_008,
Cx. 15, D. 907; “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
246 “Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 83.
247 Idem, p. 119.
248 FREIRE, José Rodrigues. Relação da Conquista do Gentio Xavante. São Paulo: FFLCH/USP, 1951, p. 14.
243
244
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disastrous consequences. The aforementioned Chacriabá, for example, had fled from a
bandeira to the Acroá only to be perfidiously slaughtered; the massacre forced the survivors
to seek safety with the very bandeira that had chased them into the Acroá village, and
vengeance pushed them into an alliance with the governor. Although the Cururú had rejected
the settlers‟ attempts to ally with them in 1749-1750 because they had been slaved, wars
with their neighbors drove them to accept an alliance with the settlers in 1755-1756. But an
epidemic killed most of the Tapirapé and Cururú who traveled to Vila Boa, and the settlers
acquired few allies for their efforts. The Chacriabá saw their women and children distributed
to the settlers. Not only Indians suffered from these alliances. The Acroá and Chacriabá who
settled at the Duro and Formiga aldeamentos in the 1750s abandoned their alliance and fled
to the sertões, where they turned their newly acquired skills in musketry against their former
allies. In the fighting that followed more than 200 people had died “entre brancos e pretos, e
alem dos muito feridos”249. Governor João Manoel de Mello criticized Wenceslau Gomes da
Silva, who had administered these aldeamentos, for training the native inhabitants in the use
of firearms250. And for this reason he looked on his Chacriabá allies with great suspicion in
1762. Only “o miseravel estado em que se achão,” – a mere 40 survived the Acroá attack –
convinced him to trust them because, as he saw the situation, “já não tem forças para
executarem outra sublevação”251.
These alliances, often shifting and of short duration, were not without limitation. The
Bororo arriving with the Pires de Campos, who brought 120 warriors to Goiás in late 1742,
were, in effect, a native raiding party. They planned on fighting their traditional enemies, the
Caiapó, and returning to their villages; so when the fighting lingered, and when Pires de
Campos attempted to bring them north to fight the Acroá and Chacriabá, the Bororo baulked,
refused the fight, and returned home252. The Bororo came to fight the Caiapó, not every
enemy the settlers named, and Pires de Campos was forced to relocate entire villages to
Goiás in order to maintain his troops253. The Tapirapé and Cururú thought the settlers would
aid them in their wars with the Guapindayé and Carajá, and “todo o seu desejo hera de se
conservar nas suas terras com a nossa aliança em opozição aos seus inimigos”254. But the
settlers wanted them to fight the Caiapó, and they agreed to leave their lands only reluctantly
and after much cajoling. The Chacriabá allied with the settlers to take revenge on a particular
village of Acroá, but Governor João Manoel de Mello envisioned them fighting all of the Acroá
living in the vicinity of Natividade255. The settlers, like the governor, neither understood nor
cared that tribes sought military aid against their own enemies, not necessarily those whom
the settlers expected them to fight. And, as the Bororo and Tapirapé-Cururú examples show,
this could frustrate the settlers‟ plans to fight with allied tribes, especially when these tribes
had no reasons to fight the settlers‟ enemies.
Indians, slaves, and settlers had violent interactions. Slaves were the most frequent
victims of Indian attacks, and their loss was a heavy burden on settlers who invested in them
“Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 67.
Idem, p. 46-47.
251 Idem, p. 83.
252 ALENCASTRE, José Martins Pereira de. “Annaes da Província de Goyaz”, op. cit., p. 90-91.
253 “Carta do governador e capitão-general de Goiás, [conde dos Arcos], D. Marcos de Noronha, ao rei [D. João V],”
1749, Dezembro, 10, Vila Boa, AHU_ACL_CU_008, Cx. 5, D. 417. See also, “Regimento que ha de observar o
Coronel Antônio Pires de Campos no estabelecimento dos Bororós [...]”, DI, nº 22, 1896, p. 210-213.
254 “Carta”, AHU_ACL_CU_008, Cx. 17, D. 1023.
255 “Subsídios”, RIHGB, nº 84,1918, p. 84.
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and relied heavily on their labor. The killing of slaves, or the fear of it, contributed to the
violence unleashed in the sertões, where settlers slaughtered Indians out of revenge and
slaves armed by their masters attacked Indians. But violence was not the only form of Indianslave interaction. Indians kidnapped slaves and incorporated them into their societies; and
they recognized the differences between the masters and the slaves and attempted to exploit
the racial tensions found the frontier. Natives killed slaves in the hope settlers would retreat
from their lands, and, most dramatically, the Chavante kidnapped slave men, marrying them
to Chavante women, and invited other slaves to flee to their villages. For their efforts the
Chavante saw their villages destroyed - the settlers, with good reason, feared an alliance
between the natives and slaves.
Maintaining the interethnic violence was critical to the hegemony of the settlers, whom
the Indians and slaves greatly outnumbered. Settlers armed their slaves, contributing to the
hostilities between the two groups, and whenever possible the settlers sought to ally with the
tribes, promising them military aid against their neighbors, further exacerbating native
rivalries. Many tribes agreed to alliances for this reason and sought to turn the settlers‟
muskets to their own advantage. The settlers‟ attempts to expand native wars, however, were
often frustrated by allies who did not wish to fight the settlers‟ enemies. Even the Bororo, the
most famous and persistent of the settlers‟ native allies, refused to fight the Acroá and
Chacriabá. The alliances were contingent on events in the sertões; often of short duration;
and they frequently ended poorly for the participants, with the Indians usually suffering most.
CONCLUSION
Governor Noronha‟s investigation into the tribes of Goiás revealed there were
numerous tribes; they were extremely populous; they were rarely cannibalistic (and, thus, the
governor lost a ready excuse for their conquest); and they fought with differing weapons and
tactics, but almost always with great effect. There would be no easy conquest for the
governor and his successors in Goiás, the Indians always proved to be resourceful opponents.
This was unsurprising, really. For the peoples of Goiás were numerous, populous, and
possessed cultures with flexible social structures and subsistence strategies; they were well
adapted to their territories, and long accustomed to conflicts. The native peoples in Goiás
had contact and conflict with the forces of colonialism pushing into their lands since the
sixteenth century; and before that, they had fought numerous, and now long forgotten,
indigenous wars. Goiás was a “tribal zone,” an area on the frontier of an expanding state
where natives used their ingenuity to experiment with and modified their own and European
cultures, responding to the demands of a frontier inimical to their existence. There were
many implications of the Indians‟ experimentations, but two of the most important and
visible were their increasing mobility and decreased reliance on horticulture – tribes, like the
Chavante, once known to practice substantial horticulture would be famous later for their
nomadic life – and their militarization. Increasingly nomadic and warlike, the natives of Goiás
were difficult to defeat.
The more so too were the natives difficult to fight because they adopted tactics that
confounded the settlers. Native warriors preferred to fight by ambush, killing quickly,
grabbing plunder, and vanishing into the sertões: tactics that countered the lethality of the
settlers‟ slow and unwieldy black-powder weapons. It was not an infelicitous choice of words,
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then, that Padre Silva e Souza described Anhanguera dragging canons to Goiás “para
horrorizar o Cayapó”256. No Indians in Goiás, least of all the Caiapó, whose conflicts with the
Paulistas stretched back to the early seventeenth century, would have stood around long
enough to be blasted to pieces by such a slow and awkward weapon. Horrifying, indeed, was
the blast of a canon, but these were ineffective weapons in the wars the settlers had to fight.
The Indians‟ fears of black-powder weapons, however, did not prevent them from
turning traditional tactics used against other tribes against the musket-toting settlers. When
huge numbers of warriors appeared – as in the Caiapó attacks of the mid-1740s and the
Chavante assault in the 1760s - they terrified settlers, and even defeated soldiers confident
in the superiority of their arms. There was defensive and offensive fighting, as the Indians
sought to defend their homes and families, drive off bandeiras, and flee into the immense
sertões; and the Indians fought offensively, attacking the settlers for various reasons,
including the capture of plunder that one motivation that appears repeatedly in the available
sources. A raiding party that captured a huge haul of plunder could, and often did, lead to
repeated assaults on a settlerment as warriors returned year after year in search of easy
spoils. This happened at Vila Boa in the 1730s and the Arraial das Antas in the mid-1750s,
and the settlers, unable to fend off the returning war parties, felt themselves besieged.
Settlers in isolated and remote areas, the miner, small farmer, or herder felt exposed,
and they abandoned their holdings to flee to the safety of the larger mining settlements.
Word of an attack provoked panics, and settlements were innundated with refugees hoping
to save their lives and those of their slaves. But even in the larger mining settlements,
refugees found little safety. Seeing their large settlements attacked, suffering the yearly
return of Indian raiders, wittnessing the bandeira defeats and deaths of family, friends, and
slaves at the hands of people they considered “gentios,” was deeply frustrating to the
settlers.
The fighting grew vicious. Settlers waged ferocious campaigns, sanctioning the
murder of men capable of bearing arms and the kidnapping of women and children; but with
little effect - the Indians, even after defeats, almost always reappeared. There were atrocities,
terrible slaughters and mutilations. Settlers, though sanctioning and waging near genicidal
campaigns against the Indians, were horrified when Indians tortured captives and mutilated
the dead, and believed these acts were emblematic of native savagery. But we can look
beyond the savegery and explain these in terms of native concepts of fighting or alterity.
Indeed, in some of the atrocities committed by bandeiras, we find evidence of the
continuation of native practices: the contingents of native troops who manned bandeira
brought their beliefs as well as tactics with them. And bandeira commanders incapable of, or
unwilling to, adapt to the tactics and practices of their native troops were rejected and could
be replaced by more flexible, and effective, commanders.
Slaves were most often the victims of Indian attacks. Frequently unarmed and
occupied in time-consuming tasks, they were easier targets for warriors than musket-carrying
owners or soldiers. Natives recognized the differences between masters, slaves, and
themselves. The Caiapó living at Maria I looked down on the slaves and refused to perform
tasks frontier society assigned to them. Indians attempted to exploit the differences between
slaves and settlers. The killing slaves provoked panics and settler retreats, which the Indians
SOUZA, Luís Antonio Silva e. “Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notaveis da
capitania de Goyaz”, op. cit., p. 442-443.
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could not have missed noticing in the aftermath of an attack, and which must have
motivated some of their attacks; the Chavante invited slaves to flee to their villages. The
exploiting of racial tensions, however, was not always to the detriment of the settlers. The
“pacified” Caiapó hunted fugitive slaves and located quilombos for the settlers, at once
aiding the settlers‟ maintenance of the racial hierarchy and eliminating rivals with whom they
competed in the sertões. Slaves and Indians had complicated interactions on the frontier.
So too did the Indians and the settlers. Violence predominated, of course, but it waxed
and waned through time, and there were alliances and periods of cooperation and
accommodation between the settlers and the natives, even at the height of the hostilities in
the 1740s and 1750s. The settlers hoped to exploit native rivalries, offering military
assistance to lure tribes into alliances. And we often find evidence of the natives attempting
to exploit the settlers and draw them into their own conflicts; this often had the effect of
limiting the usefulness of the alliances for settlers who wished to have their allies fight their
enemies. The Bororo, for example, the most famous and favored of the settlers native allies,
refused to fight the Acroá and Chacriabá: they had come to Goiás with Antônio Pires de
Campos to fight their enemies, the Caiapó, not all of the settlers. Alliances could rise quickly,
and they could fall quickly, often with tragic consequences for the parties involved. The
Tapirapé and Cururú who traveled to Vila Boa were struck by an epidemic that devastated
them. Despite the dangers involved in allying with the settlers, almost all of the major
peoples of Goiás eventually entered into some form of alliance.
And they did so in rapid succession. The Acroá and Chacriabá were the first to accept
peace in 1774. The following year, 1775, the Carajá and Javaé agreed to settle on an
aldeamento on the Bananal Island that the settlers named Nova Beira. The Caiapó agreed to
peace in 1780-1781. The Chavante followed, settling at Carretão in 1788. Not all of the
tribes, though, sought peace and an aldeamento. The Tapirapé remained reclusive, avoiding
the settlers, and the Canoeiro emerged toward the close of the century as the settlers‟ most
feared enemy. Settler interaction with the Guapindayé oscillated between peace and
hostilities into the first decades of the nineteenth century. Even of those peoples that
accepted peace, there were many villages that remained in the sertões and avoided contact.
And, though conflicts erupted and fighting occurred, even among the so-called “pacified”
peoples, there was, nonetheless, a decline in hostilities, however difficult to quantify, toward
the end of the eighteenth century.
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NA FRONTEIRA DO IMPÉRIO: CIDADE CAPITAL E PODER
SOBERANO EM GOIÁS (1730-1750)
FERNANDO LOBO LEMES
Doutor em História pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3
Professor convidado da Pontifícia Universidade Católica – PUC Goiás
INTRODUÇÃO
Este capítulo pretende promover uma reflexão sobre as dinâmicas da fronteira em
Goiás durante o período colonial, através da relação entre cidade e poder. Apontando para a
necessidade de associar a gênese histórica de Vila Boa, enquanto cidade-capital, com os
laços indissociáveis que conserva com o poder do monarca português, propõe-se uma leitura
possível sobre o sentido e a dimensão da fronteira, a partir das noções de cidade capital e
poder soberano nas minas e capitania de Goiás.
É por esta via que, na geografia do polígono do ouro257, a posição das minas e
capitania de Goiás nos leva a observar a construção dos edifícios sociais nesta região de
fronteira. No coração da América portuguesa, a invenção, o estabelecimento e a organização
de um espaço econômico, das relações sociais, das formas institucionais e das modalidades
de relações políticas, decorrem de um processo que se desdobra no interior de uma vasta
região de conquista, como resultado da expansão geográfica e política do Império.
Acreditamos que o estudo deste processo pode contribuir para a compreensão dos
mecanismos através dos quais os valores modernos fixam-se no sertão258. São projetos de
Associadas à multiplicação de lugares de prospecção de ouro no coração da América portuguesa, a
descoberta e posterior ocupação da região das minas de Goiás, acabou por contribuir para formatar “um vasto
polígono minerador, cujo centro se situa em Minas Gerais e os ângulos em Mato Grosso, Goiás e Bahia”. A
dimensão e os efeitos das transformações ligadas ao surgimento e à consolidação do polígono do ouro são tão
importantes no interior do espaço oceânico da monarquia portuguesa que provocam um ponto de inflexão
fundamental e uma nova etapa na história do Atlântico Sul. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Le versant brésilien
de l‟Atlantique sud: 1550-1850. Annales: Histoire, Sciences Sociales. Paris: Éditions de l´École des Hautes Études
en Sciences Sociales, n. 2, 2006, p. 355. A propósito da importância do oceano Atlântico como categoria de
análise histórica ver GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. (Org.). Atlantic History: a critical appraisal. Oxford:
Oxford University Press, 2009.
258 Sertão. Espaço, a um só tempo, desconhecido, atraente e misterioso, despertava o ímpeto do desbravamento
e, no caso de Goiás, o sonho do enriquecimento rápido e fácil. Por outro lado, invocava o risco das forças
destrutivas da natureza. Cf. VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 528-529. De acordo com Jaime Cortesão, provavelmente desde o século XII, e com certeza
desde o século XIV, os portugueses fazem uso da palavra “sertão” ou “certão”, referindo-se a regiões situadas
dentro de Portugal, mas distantes de Lisboa. Cf. CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa:
Arcádia, vol. 1, 1958, p. 28. Em texto dedicado ao assunto, Janaina Amado, demonstra que se a categoria
“sertão” fazia parte do vocabulário luso desde o século XII, foi elaborada durante a colonização portuguesa na
América, sendo largamente utilizada pela Coroa e autoridades lusas nas colônias. A partir do século XV, usaramna também para nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-conquistadas ou
contíguas a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam. Segundo a mesma autora, “sertão” ou “certão” seria
corruptela de “desertão”, proviria do latim clássico serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado),
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integração, mobilidade, migração e subjetivação259. Desde logo, as relações simbólicas que
se estabelecem nesta região do Império português são expressas por meio de categorias e
conceitos que possibilitam o conhecimento histórico. Sobretudo, no âmbito dos objetivos
propostos neste estudo, através da noção de fronteira.
REFLEXÕES SOBRE O SENTIDO DA FRONTEIRA
A problemática da fronteira na América do Sul esteve desde muito cedo associada
aos limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas260. Pensado a partir de um meridiano
imaginário de difícil localização, a partilha do mundo motivada pelos interesses das Coroas
portuguesa e espanhola, projetou sobre a superfície dos territórios em disputa um campo
imaginado de limites possíveis. Interessa-nos especialmente as questões ligadas aos
avanços portugueses sobre os domínios teoricamente pertencentes à Espanha.
Do ponto de vista prático, se o aparecimento de uma linha de fronteira, associada ao
Tratado de Tordesilhas, acompanha e influencia os avanços do pensamento moderno sobre
a utilização do espaço, participando do aperfeiçoamento da cartografia e das estratégias
militares, a noção de fronteira vai encontrar um ponto de inflexão em meio às negociações
envolvendo o Tratado de Madri, em 1750261. Ao substituir os acordos realizados em
Tordesilhas, os métodos adotados vão privilegiar o princípio do direito privado romano do uti
possidetis (quem possui de fato, deve possuir de direito), inaugurando a utilização de
referenciais geográficos naturais para a demarcação da propriedade territorial.
desertum (desertor, aquele que sai da fileira e da ordem) e desertanum (lugar desconhecido para onde foi o
desertor). Desde o século XVI, as duas grafias foram empregadas por numerosos viajantes e cronistas do
nascente império português na África, Ásia e América, com o mesmo sentido e significado. A descoberta e
povoamento do polígono do ouro na América portuguesa e suas conseqüências correlatas, como a explosão
demográfica, acumulação de fortunas, fundação de núcleos urbanos e implantação da burocracia lusa não
modificaram substancialmente os significados da palavra “sertão”. Situando a noção enquanto categoria espacial
e, ao mesmo tempo, compreendendo-a como categoria do pensamento social e cultural, Janaína Amado associa
os termos “sertão” e “litoral” enquanto categorias ao mesmo tempo opostas e complementares, afirmando que
“desde o litoral, 'sertão' foi construído”. Cf. AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: FGV, vol.8, n.15, 1995, p. 145-151. Para uma análise semelhante, ver DEAN, Warren. The Frontier in
Brazil. In: AMADO, Janaína; NUGENT, Walter T. K; DEAN, Warren. Frontiers in comparative perspectives.
Washington D.C.: The Woodrow Wilson Center, Working Papers, n. 188, 1990.
259 CHAUL, Nasr ; DUARTE, Luís Sérgio. As cidades dos sonhos: desenvolvimento urbano em Goiás. Goiânia: UFG,
2004.
260 O Tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de junho de 1494, dividiu o mundo em dois hemisférios, através de
um meridiano distante 370 léguas das ilhas de Cabo Verde, deixando à Espanha tudo que ficasse no Ocidente e a
Portugal o que se contivesse no Oriente. O acordo estabelecia o prazo de dez meses para que fosse demarcada a
linha divisória entre as possessões dos dois reinos. Contudo, a linha nunca chegaria a ser efetivamente fixada.
Sua localização nos mapas era um exercício de projeção conceitual que não levava em conta nem os aspectos
físicos e geográficos, nem a ocupação do território. Sobre o assunto ver KANTOR, Íris. Diplomatic uses of Brazil's
island myth cartographic and historiographic polemics. Varia história. Belo Horizonte: UFMG, vol. 23, n. 37, 2007,
p. 70-80. Ver, também, FONSECA, Luis Adão da. O tratado de Tordesilhas e a diplomacia luso-castelhana no
século XVI. Lisboa: Edições Enapa, 1991.
261 O Tratado de Madri foi firmado na capital espanhola entre João V de Portugal e Fernando VI de Espanha, a 13
de Janeiro de 1750, com o objetivo de definir os limites entre as respectivas colônias sul-americanas, pondo fim
assim às constantes disputas. O objetivo do Tratado de Madri era substituir o de Tordesilhas, o qual já não era
mais respeitado na prática. As negociações basearam-se no chamado Mapa das Cortes, privilegiando a utilização
de rios e montanhas para demarcação dos limites geográficos. O diploma consagrou o princípio do direito privado
romano do uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito), delineando os contornos
aproximados do Brasil de hoje. Sobre este assunto e seus desdobramentos ver, especialmente, CORTESÃO,
Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Lisboa: Livros Horizonte, 1984.
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Na historiografia brasileira, a partir desta acepção espacial, a fronteira foi vista,
inicialmente, enquanto alargamento dos domínios territoriais por meio das conquistas. Para
Capistrano de Abreu, por exemplo, afirmando que o litoral brasileiro era área de disputa no
século XVI, a fronteira foi, sobretudo, conquista e luta para garantir a posse de determinados
territórios, antes de ser limite acordado diplomaticamente262.
Por sua vez, avançando a reflexão sobre o tema na história colonial, Sérgio Buarque
de Holanda sugere o próprio Brasil como região de fronteira – fronteira cultural onde as
tradições, as instituições e os valores lusitanos se fundem com tradições nativas e
africanas263. A partir desta acepção, neste território de conquista, todo o repertório
institucional, cultural, jurídico, religioso, social, transferido de Portugal para a América, é
revestido de um novo sentido, assumindo novos significados. Nada diferente daquilo que
propõe Jacques Poloni-Simard, a respeito da construção das sociedades americanas, cujas
palavras parecem guardar perfeita sintonia com a noção de fronteira empregada por Sérgio
Buarque de Holanda:
Excentricidade das Américas em relação ao modelo europeu […]: tão distantes e tão próximos, tão
semelhantes e, no entanto, tão diferentes […]. A matriz européia que serviu para estabelecer as novas
sociedades provenientes da conquista foi redefinida, recomposta, em função do contexto e do quadro
americanos. Pois a América é filha de seu tempo, não de um ou de passados dos quais ela seria o
prolongamento e o conservatório264.
Assim, devido à complexidade das relações que envolvem a construção da sociedade
na América e, mais especificamente, aquela que teve lugar nas minas de Goiás, plantada,
exatamente, sobre o meridiano divisor dos territórios pertencentes às monarquias
portuguesa e espanhola, é através dos fenômenos associados às peculiaridades desta região
de fronteira que podemos acessar os intrincados acontecimentos que marcaram a sua
história.
Se o meridiano de Tordesilhas, de 1494, entrecortava a zona morta de um território
desconhecido e vazio para os europeus, a fronteira estabelecida pelas referencias naturais
do acordo de Madrid, um século e meio depois, encontra uma zona viva onde se exerce não
apenas o poder soberano do monarca português, mas por onde passam as linhas marginais
da fronteira que movimenta uma vasta rede de interesses e intrincadas relações de força.
Este processo de revitalização multiforme das fronteiras da monarquia lusa na
América ultrapassa em muito os marcos físicos ou naturais que o definem e envolvem.
Discutindo o tema, Sandra Jatahy Pesavento, afirma que
Há, sem dúvida, uma tendência para pensar as fronteiras a partir de uma concepção que se ancora na
territorialidade e se desdobra no político. Neste sentido, a fronteira é, sobretudo, enceramento de
espaço, delimitação de um território, fixação de uma superfície. Em suma, a fronteira é um marco que
limita e separa e que aponta sentidos socializados de reconhecimento265.
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), op. cit., p. 254-255. Ver, também, ABREU,
Capistrano de. Capítulos de história colonial (1907). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
263 Sua obra tem inspirado, atualmente, inúmeras pesquisas e estudos renovados sobre o Brasil Colonial. Ver,
sobretudo, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
264 POLONI-SIMARD, Jacques. Amériques coloniales – La construction de la société. Annales Histoire, Sciences
Sociales. Paris: Editions de l´École des Hautes Études en Sciences Sociales, nº 3, 2007, p. 502.
265 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Além das fronteiras. In: MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras culturais: Brasil
– Uruguai – Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 36.
262
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Assim, ancorada na dimensão de uma abordagem territorial e geopolítica, a noção
de fronteira avança, a partir de critérios espaciais, para o plano dos significados partilhados,
para os domínios de uma construção simbólica de pertencimento social, apontando para a
percepção de “sentidos socializados de reconhecimento”.
Primeiro a formular a tese da fronteira, o historiador norte americano Frederick
Jackson Turner, em 1893, já havia ultrapassado uma acepção ou sentido meramente
territorial. Em que pesem as inúmeras objeções feitas atualmente ao seu trabalho e os
limites reais de suas reflexões, o pensamento de Turner contribuiu consideravelmente para o
avanço da historiografia, propondo, a partir de uma análise centrada em aspectos
sociológicos, a compreensão da noção de fronteira266. Fazendo referência ao movimento da
linha de fronteira na América do Norte, do litoral Leste em direção ao oceano Pacífico,
afirma que “O oeste é mais uma forma de sociedade que uma região geográfica”. Segundo
ele,
O termo se aplica a uma região cujas condições sociais resultam da transformação de instituições e
de idéias antigas sob a influência de terras livres. Esta transformação produz um novo ambiente,
oferece oportunidades iguais para todos, quebra as tradições, suscita novas atividades, novos
desenvolvimentos, novas instituições, novos ideais267.
Neste sentido, e, desde logo, ultrapassando os limites da reflexão proposta por
Turner, adentrando uma interpretação conceitual que permite perceber a região de Goiás
enquanto espaço fronteiriço, as fronteiras não devem ser percebidas apenas como marcos
ou linhas que representam limites e divisões, sendo instigante pensá-las numa outra
dimensão. “Elas também induzem a pensar na passagem, na comunicação, no diálogo e no
intercâmbio. Figurando um trânsito não apenas de lugar [...], esta dimensão aponta para
uma nova reflexão: a de que, pelo contato e permeabilidade, a fronteira é, sobretudo, híbrida
e mestiça”268. Exatamente como sugere Buarque de Holanda, a exemplo do contato e do
diálogo entre as instituições e os valores lusitanos com as tradições nativas e africanas.
Noutras palavras, tomando de empréstimo alguns elementos do processo de
colonização em terras de além-mar, as interações inevitáveis envolvendo o vasto repertório
cultural, político e institucional, trazido pelos portugueses, são incorporados e recompostos
no quadro da construção dos edifícios sociais na América. Assim, se a fronteira é
movimento, trânsito e passagem, proporciona, ao mesmo tempo, o aparecimento de algo
novo e diferente, possibilitado pela situação exemplar do contato, da mistura, da troca, do
hibridismo, da mestiçagem étnica e cultural269.
Apesar de suas importantes contribuições, algumas afirmações são muito contestadas. Uma delas nos
interessa particularmente: como a fronteira e o Oeste são analisados num quadro predestinado à democracia,
Turner enxerga a existência de uma igualdade de oportunidades que não corresponde à realidade. Ora, tanto na
América do Norte, estudada por Jackson Turner, quanto na América portuguesa, objeto deste capítulo, os estudos
disponíveis levam a conclusões opostas. As regiões do oeste norte americano e do oeste da América portuguesa
conhecem, ambas, muito cedo, para não dizer em sua gênese, fortes diferenciações e oposições sociais. Para
uma análise e comentários pertinentes à obra de Jackson Turner, ver especialmente, DERMIGNY, Louis. Amérique
et démocratie. Annales ESC. Paris: Editions de l´Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, ano 21, n. 3,
1966, p. 573-607.
267 TURNER, Frederick Jackson. La Frontière dans l´histoire des États-Unis. Tradução de Annie Rambert. Prefácio
de René Rémond. Paris: Presses Universitaires de France, 1963, p. 178.
268 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Além das fronteiras, op. cit, p. 36.
269 Idem, p. 37.
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É este o sentido que as fronteiras das minas e mais tarde Capitania de Goiás
emprestam à paisagem central da América do Sul. Um mundo novo de oportunidades
oferecidas pelo ouro, encravado na terra e inscrito nos mapas que alinhavam projetos
inéditos, que permitem e estimulam novos recomeços, multiplicando as possibilidades.
Neste território, “nas fronteiras do mundo conhecido, a América” – e, por que não dizer,
Goiás – “seria, diante dos olhares dos seus descobridores, exploradores e colonizadores,
aquele espaço onde poderia ser possível recomeçar, conferindo ao homem o poder divino da
criação”270.
DINÂMICAS NO ESPAÇO INTERMEDIÁRIO DA FRONTEIRA
Em Goiás, apesar dos limites impostos pelas descontinuidades e obstáculos próprios
aos espaços definidos enquanto margem ou borda, a dinâmica da situação de fronteira
ultrapassa e transborda os próprios limites que fixa. De fato, esta última fronteira colonial,
na franja oeste da América portuguesa, é lugar de integração populacional, de movimento
institucional, de redistribuição territorial. Espaço de projeção e deslocamento dos projetos de
Lisboa.
Para além dos dualismos, Goiás é lugar de reconstrução dos transbordamentos,
simultaneidades e interações: são fluxos e contra-fluxos que se desdobram na fronteira, no
espaço-tempo da sociedade mineradora271. Se a noção de limites, empregada aqui, tem a
ver com certas descontinuidades e obstáculos, a idéia de fluxo sugere uma espécie de
continuidade e passagem que interligam territórios e histórias, construindo a unidade da
monarquia na fronteira oeste do Império. Na prática, detendo a condição de participante
ativa e dinâmica nos domínios coloniais, às minas de Goiás está reservado o papel de base
de apoio e sustentação de parte significativa do território fronteiriço entre Portugal e
Espanha272.
Contudo, em que pese sua importância no contexto econômico do Império 273, as minas e
capitania de Goiás são quase sempre descritas na historiografia colonial como periferia
dentre os espaços imperiais ou mesmo como um lugar periférico em relação aos centros
urbanos do litoral da América portuguesa. Convém, entretanto, guardar certa reserva e não
contrapor radicalmente as margens, as franjas, as “periferias” (esta noção discutível) do
Idem, p. 38.
Sobre a noção de fluxo utilizada por nós, ver HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da
antropologia transnacional. Mana. Rio de Janeiro: UFRJ, vol. 3, n. 1, 1997, p. 7-39.
272 LEMES, Fernando Lobo. Pouvoir politique et réseau urbain dans l´Amérique coloniale : mines e capitainerie du
Goiás au XVIIIe et XIXe siècles. Tese de doutorado, história, IHEAL, Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle, 2011.
273 Em meados do século XVIII, a primeira grande corrida do ouro da história moderna estava a todo vapor e os
resultados práticos dos procedimentos adotados por Lisboa nas minas de Goiás eram notáveis: entre 1750 e
1754 a produção mineradora em Goiás batia todos os recordes, atingindo 5,9 toneladas de ouro. No mesmo
período, a produção de Minas Gerais que, entre 1735 e 1739, havia atingido 10,6 toneladas, é reduzida a 8,7
toneladas de ouro. Com relação à produção total do Brasil, que se eleva a 15,7 toneladas entre 1750 et 1754, as
minas de Goiás representaram mais de 1/3 do ouro produzido. Se considerarmos o intervalo entre 1752 e 1778,
o Quinto recolhido e registrado em Goiás e transferido para Lisboa atingiu a soma de 2.700.536 de oitavas de
ouro, o equivalente a 10 toneladas. Este número supõe uma produção bruta de 50 toneladas em 26 anos. Isso,
se não considerarmos o ouro não declarado, cuja avaliação, se bem que arriscada, pode chegar a 50 % do ouro
declarado. Conferir especialmente os estudos feitos por SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O Império Luso-Brasileiro
(1750-1822). Lisboa: Estampa, 1986 e PALACIN, Luis. O século do ouro em Goiás 1722-1822: Estrutura e
conjuntura numa Capitania de minas. Goiânia: PUC/Goiás, 2001.
270
271
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Império ao seu coração mantido hipoteticamente intacto274, como tem feito uma vasta
bibliografia que percebe a história da expansão portuguesa sempre a partir da noção centroperiferia, tendendo a ver em Lisboa ou cidades litorâneas a fonte única de irradiação dos
fluxos que emprestam coerência ao funcionamento do Império.
Sabemos, atualmente, a respeito da importância das relações de colaboração e da
existência de verdadeiras redes de negociações, indispensáveis na promoção do avanço das
intenções e do projeto de Lisboa nas regiões de conquista. Neste contexto, as minas e
capitania de Goiás tomam os contornos de um lugar de encontro e de interação, onde as
dificuldades, os desafios da conquista e a realização prática dos projetos coloniais 275, são
partilhados entre o rei de Portugal e as elites locais. No ambiente da conquista se
desdobram atividades conjuntas visando a distribuição das tarefas e desafios quotidianos.
De fato, ante uma capacidade de ação sempre limitada e às fragilidades inerentes às partes
engajadas, seja a Coroa ou as populações locais, uma estratégia se impõe: a colaboração
mútua276.
Mas não nos enganemos: o exercício do poder do monarca é concreto. Neste amplo
espaço que se abre às atividades colaborativas e às transações negociadas, ao contrário do
que pode parecer, a necessidade imperativa de acordos aparece como mecanismo que, ao
invés de fragilizar o poder do rei, reforça-o enormemente, instrumentalizando a influência
paulatina do monarca nas minas e capitania de Goiás. Sobretudo, o que garante a coerência
e a unidade da monarquia, considerando a grande incerteza que pesa sobre a produção do
ouro e os desafios da conquista, é a importância dedicada ao papel fundamental do rei e a
confiança dos súditos de pertencerem a um campo político unificado pela imagem simbólica
que ele representa, enquanto cabeça de um corpo que tem nome: a monarquia portuguesa.
Por outro lado, se cabe ao reino de Portugal e à sede e capital política do Império
(Lisboa) uma posição preponderante quanto à produção de fluxos, de movimentos e
iniciativas determinantes para a condução dos projetos coloniais, se seus reflexos se
expandem por toda parte, atingindo em cheio as franjas e as margens do Império, a
uniformidade ou mesmo a unidade monárquica parece ser sua consequência final.
Laurent Vidal demonstra com pertinência, ao citar a reflexão proposta por John
Merriman a respeito das cidades francesas do século XIX, que, embora seja conveniente
negar a existência de periferias, é preferível considerá-las como fronteiras, como espaços em
mutação habitados por “mundos flutuantes”277. No mesmo sentido, Serge Gruzinski propõe
uma releitura instigante das observações de Michael Adas em torno da idéia de middle-
GRUZINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la monarchie catholique et autres connected histories. Annales,
Histoire, Sciences Sociales. Paris: Éditions de l´École des Hautes Études en Sciences Sociales, vol. 1, 2001, p.
114.
275 Sobre a noção de projetos coloniais, ver especialmente CURDO, Diogo Ramada. Cultura imperial e projetos
coloniais (séculos XV a XVIII). São Paulo: Unicamp, 2009.
276 Na mesma direção, fazendo referência à história política da Inglaterra, Xavier Gil Pujol sublinha que jamais
houve uma separação entre o Estado e as localidades, mas uma relação de interação e complementaridade,
apoiada na noção de colaboração mútua. Cf. PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as relações
políticas e culturais entre capital e território nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope. Lisboa:
ISC, Universidade de Lisboa, nº 6, 1991, p. 120-121.
277 VIDAL, Laurent. Os trilhos da história do Brasil urbano. Ler História. Lisboa: ISCTE, 2005, n. 48, p. 76. O texto
citado está em MERRIMAN, John. Aux marges de la ville. Faubourgs et banlieues en France, 1815-1870. Paris:
Seuil, 1994, p. 32.
274
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ground278, espaço intermediário, como alternativa ao pensamento esquemático, quando não
reducionista, das noções centro e periferia.
Na senda destes autores, e abandonando, ainda que momentaneamente, as
oposições conceituais que se apóiam exclusiva ou preferencialmente em fenômenos de
dominação e antagonismos, preferimos enxergar este espaço de fronteira como um mundo
intermediário, um entre-lugar, uma zona de interpenetrações múltiplas. Neste sentido, a
fronteira não pertence a nenhum dos pólos estabelecidos no quadro de uma reflexão de
natureza binária. Em suma, a situação de fronteira é definida, sobretudo, pela condição de
estar na borda, na margem, na franja: não estar no centro é, ao mesmo tempo, estar à
distância e experimentar a condição de ser diferente. Trata-se, então, de vivenciar a
disposição de ser estranho 279. Este estranhamento explica a sensação comum dos
representantes da Coroa em relação às minas de Goiás: a fronteira é considerada como
fonte de perigo e ameaça280, porque ela pode, a qualquer momento, desencadear interesses
distintos daqueles de Lisboa. Esta situação, nesta zona de múltiplos encontros, estimula o
agenciamento por parte da Coroa visando a implantação de mecanismos de controle cada
vez mais efetivos, através da instalação de estruturas institucionais, sociopolíticas e
culturais.
Neste caso, o modelo centro-periferia281, tributário dos estudos empreendidos por
geógrafos e economistas, ilustra comumente a idéia de interação hierárquica entre os
espaços, onde o centro detém capacidades de produção, de inovação e de atração,
enquanto, de seu lado, a periferia vai se postar, de forma mais freqüente, negativamente
com relação ao centro e vai se definir como uma área marginal, separada, sub-equipada e
dominada. Do nosso ponto de vista, trata-se de uma visão ou de uma opção que, apesar das
facilidades metodológicas que oferece, parece-nos insuficiente ou mesmo esquemática e
redutora, para o estudo e compreensão desta região de fronteira, caracterizada por
situações bastante específicas.
Por isso, sem ignorar a “robusta capacidade heurística”, do modelo centro-periferia,
como ensina Christian Grataloup282, preferimos, neste caso particular, adotar uma
abordagem que permita por em evidência com mais propriedade as interações
estabelecidas neste lugar de fronteira enquanto processos que integram o projeto de
expansão colonial, mas composto igualmente pela existência de espaços de transição e de
GRUZINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la monarchie catholique et autres connected histories, op. cit., p.
114. Ver também ADAS, Michael. Bringing Ideas and Agency Back In: Representation and the Comparative
Approach to Word History. In: POMPER, P.; ELPHICK, R. H.; VANN, R. T. (Orgs.). Word History. Ideologies, Structures
and Identities. Oxford: Blackwell, 1998, p. 99.
279 KAHMANN, Andrea Cristiane; MASINA, Léa Silvia dos Santos. Fronteiras, tradição e identidade: um debate à
partir da obra Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto. Universidade de Santa Cruz do Sul. Disponível em:
www.unisc.br/portal/images/stories/.../fronteira_tradicao_identidade.pdf. Acesso em 8 de junho de 2010.
280 MACHADO, Lia Osório. Limites, fronteiras, redes. In: STROHAECKER Tânia M; DAMIANI, A; SCHAFFER, N. O., et.
al. (Org.). Fronteiras e espaço global. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 1998, p. 41.
281 De acordo com o geógrafo Christian Grataloup, “A metáfora geométrica do centro e da periferia é usada com
freqüência para descrever a oposição entre os dois tipos fundamentais de lugares no interior de um sistema
espacial: aquele que o comanda e dele se beneficia, o centro, e aqueles que a ele são submetidos, em posição
periférica. Esta dupla conceitual que remonta ao menos a Werner Sombart, se não a Marx (as relações
campo/cidade), foi utilizada pelos teóricos do imperialismo (Rosa Luxemburgo, Boukharine), mas são os
economistas das desigualdades do desenvolvimento que lhe deram sua forma contemporânea (Samir Amin).
Alain Reynaud desenvolveu a noção no campo da geografia. Cf. GRATALOUP, Christian. Centre/Périphérie.
Hipergeo-Théories [on line]. Disponível em http://www.hypergeo.eu/IMG/_article_PDF/article_10.pdf. Acesso em
15 de junho de 2010.
282 Ibidem.
278
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interpenetração que não são particularmente inferiores a outros espaços de referência no
interior do Império.
A noção de espaço intermediário, middle-ground, para usar a expressão de Michael
Adas, parece encontrar mais afinidade com estes mundos de interações flutuantes na
fronteira oeste da América portuguesa, nas quais o contato e as trocas proporcionam o
aparecimento de algo novo, que não está localizado nem à direita, nem à esquerda, nem
acima, nem abaixo, nem no centro, nem, tampouco, na periferia do Império. São espaços de
tensão e, ao mesmo tempo, de criação, engendrados pelo movimento de alargamento e
expansão das fronteiras da monarquia, que conduzem a situações bastante originais, a
exemplo das minas de Goiás: mundo baseado na escravidão, constituído por uma população
mestiça de caráter heterogêneo, marcado pelo imprevisto e o diferente, cujas distinções e
diversidades dificultam a imposição da autoridade e do poder fundamento nos moldes
europeus. Mundo de fronteira, onde o resultado das ações e interações, no conjunto das
práticas sociais e políticas produzidas sobre um novo território, se diferenciam do formato
tradicional de origem reinol, originando uma verdadeira terra de misturas, confrontos e
cruzamentos.
Neste contexto, Goiás constitui-se num espaço intermediário que testemunha os
desdobramentos de um processo de invenção de uma nova sociedade, que implica na
recomposição e, ao mesmo tempo, na multiplicação de formas criativas, enquanto
alternativas possíveis oferecidas pelos repertórios tradicionais europeus. Neste sentido, é
importante sublinhar que não se trata de observar a transplantação, pura e simples, de
modelos institucionais. Compreender a história colonial de Goiás implica em mettre l´accent
sobre a dinâmica dos elementos que participam da construção da sociedade a partir das
necessárias adaptações e improvisações que, por sua vez, constrangem os atores e
protagonistas. Por outro lado, a presença dos índios americanos e a escravidão negra, com
a transferência maciça de indivíduos africanos, são componentes culturais e sociais novos
que emprestam certa originalidade a Goiás. Assim, os processos de interação e
recomposição sociais que tomam forma, amalgamam uma sociedade profundamente
diferente do mundo europeu.
Neste aspecto, até mesmo a noção de Antigo Regime deve ser nuançada. Não se
deve deixar a impressão de uma transplantação mecânica das instituições reinóis para as
minas de Goiás. Ao contrário, trata-se de identificar as continuidades e os elementos comuns
que persistem em meio aos ajustamentos e os novos sentidos que assumem o repertório
institucional europeu em Goiás. Não é sem razão que o recorte cronológico da história
colonial de Goiás se confunde com o ciclo do ouro inscrito, por sua vez, na longa duração de
um ciclo multissecular estrutural do Brasil moderno, constituído em torno do tráfico de
negros africanos283.
Embora num sentido mais amplo, Laura de Mello e Souza define muito bem esta
preocupação:
A especificidade da América portuguesa, diz ela, não residiu na assimilação pura e simples do mundo
do Antigo Regime, mas na sua recriação perversa, alimentada pelo tráfico, pelo trabalho escravo de
283
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Le versant brésilien de l‟Atlantique sud : 1550-1850, op. cit., p. 365.
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negros africanos, pela introdução na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural e não
institucional: o escravismo284.
Neste aspecto, ainda que as relações locais sofram o impacto de uma recriação
perversa daquilo que se nomeou Antigo Regime nos trópicos, seus desdobramentos, no
tempo e no espaço, acabam por combinar elementos fornecidos pelos modelos formais com
modelos não formais, originando um lugar distinto, um entre-deux, lugar de convergência
original entre o instituído e o não instituído, entre o formal e o não-formal, entre a
continuidade e a descontinuidade impostas pelos fluxos, contra-fluxos e limites próprios às
bordas, às franjas, aos lugares fronteiriços. Sobretudo, um espaço intermediário que, por
suas próprias especificidades, se define pelo meio, por estar “entre dois”, e não pelas
extremidades.
Esta condição provoca um movimento essencialmente original traduzido por uma
alternância ou intermitência entre os polos engajados na construção deste ambiente de
relações novas. Assim, aquilo que inicialmente toma a forma de relações aparentemente
contraditórias entre a proximidade e a distância, entre o oficial e o não oficial, entre a
liberdade e a escravidão, entre brancos e negros, se transforma progressivamente em
fenômenos que assumem formas inesperadas, introduzindo um espaço de recomposição e
re-fundação de práticas e experiências, estratégias de apropriação e re-apropriação, num
contexto flutuante, indefinido, marcado, sobretudo, pela incerteza.
No mundo real onde os atores coloniais se encontram, na precariedade do tempo
presente, onde se desenrola a vida, as escolhas e as disputas entre os protagonistas da
empresa colonial, nos interstícios entre as ambições do rei de Portugal e as condições locais
e concretas da conquista, nesta temporalidade distinta e específica da fronteira, emerge
uma sociedade híbrida e mestiça que caracteriza os elementos que constituem este
conjunto composto pelas minas e capitania de Goiás.
VILA BOA DE GOIÁS: UMA CAPITAL NA FRONTEIRA?
É neste cenário de fronteira, que o projeto colonial de Lisboa na região das minas de
ouro de Goiás, assume contornos mais definitivos. A partir de 1749, com a criação da
capitania e da prelazia de Goiás285, Vila Boa, enquanto principal núcleo urbano regional e
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e sombra – Política e administração na América portuguesa do século XVIII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 68.
285 Considerando a vastidão do território que se encontrava sob a jurisdição da diocese do Rio de Janeiro – que
incluía toda a capitania de São Paulo, inclusive as regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, além de todo o
restante sul da América portuguesa – as correspondências trocadas entre os conselheiros do rei de Portugal
revelam a consciência da Coroa a respeito das limitações daquele bispado. Esta situação nutria o interesse do
monarca em promover seu desmembramento, o que foi efetivamente proposto a partir de 1745, através da
intervenção pessoal do rei João V junto à Sé Apostólica, solicitando a criação dos bispados de São Paulo e
Ribeirão do Carmo, bem como das prelazias de Goiás e Cuiabá. Criados os bispados de São Paulo e Mariana em
1745, as prelazias de Goiás e Mato Grosso apenas foram efetivamente instaladas em 1749, no mesmo ano do
desmembramento da capitania de São Paulo, em função da criação das capitanias de Goiás e Cuiabá. Cf. Anexo
ao ofício do ouvidor-geral de Goiás, Francisco de Atouguia Betencourt e Lira, ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, remetendo os autos de informação sobre os fatos denunciados
contra o ex-governador e capitão-general de Goiás, conde de São Miguel, Álvaro José Xavier Botelho de Távora, e
o ex-ouvidor-geral de Goiás, Antônio da Cunha Sotomaior (Vila Boa, 29 de maio de 1760), AHU_ACL_CU_008, Cx.
17, D. 988. Ver, também, MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Deus e o Diabo no sertão dos Guayazes: abusos e
desmandos do vigário da Vara de Vila Boa. Sociedade e Cultura. Goiânia: UFG, vol. 9, n. 1, 2006, p. 93. Sobre a
criação dos bispados de São Paulo e Mariana e das prelazias de Goiás e Mato Grosso, ver Consulta do Conselho
284
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única vila da capitania durante todo o século XVIII, transforma-se em residência das
autoridades e representantes da Coroa, sede dos órgãos de governo e da administração
colonial, além de referência fundamental na atuação e disciplina da Igreja, ligada
diretamente ao bispado de Mariana. Sobre os marcos divisórios com os domínios espanhóis,
constitui-se em ponto de intercessão político e financeiro, ligada aos interesses imediatos
tanto das elites locais, quanto de Lisboa.
Nesta cidade de fronteira, as apreensões com a
geografia política da região, ampliam sua importância nas estratégias elaboradas pela
Coroa.
A natureza destes acontecimentos vai produzir um arranjo espacial, político e social
que altera o quadro até então inexistente nas minas de Goiás, permitindo que os
protagonistas em Vila Boa se apropriem de um novo estatuto, o de cidade Capital, “cabeça
de comarca”, para lembrar uma expressão muito frequente nas correspondências da época.
Assim, a ideia de uma cidade Capital, enquanto sede de governo, foi muito cedo
empregada pelas autoridades coloniais, logo após a criação da capitania de Goiás, para
expressar a nova condição de capitalidade assumida por Vila Boa. Esta concepção está
expressa, por exemplo, no vocabulário utilizado pelo primeiro governador da capitania. Em
1750, logo após sua posse no governo, ao informar ao monarca sobre os limites geográficos
de Goiás, as palavras de Marcos de Noronha confirmam este novo estatuto da cidade: “Entre
Vila Boa de Santa Anna”, diz ele, “Capital desta nova Capitania de Goiaz, e a Vila [Real do
Senhor] de Bom Jesus [de Cuiabá] que [...] era Capital da comarca do Cuyabá, haverá com
pouca differença cinco graus de distancia medidos pelo rumo do Noroeste [...]”286.
Na mesma direção, em estudo sobre a cidade do Rio de Janeiro, no qual propõe a
utilização do conceito de capitalidade para vilas e cidades coloniais, Maria Fernanda Batista
Bicalho concorda com a posição de Vila Boa enquanto capital regional, assentada, do ponto
de vista econômico, sobre a atividade mineradora. Segundo ela, esta cidade estaria entre
aquelas que, já no século XVIII, foram pensadas – e algumas criadas pelo risco de engenheiros militares – como capitais administrativas regionais, com o
claro intuito de adentrar o sertão, estender a fronteira e estruturar o território à sua volta. É o caso de Vila Boa de Goiás, Vila Bela de Santíssima Trindade,
em Mato Grosso, e de Rio Grande de São Pedro, no sul. Tanto as cidades litorâneas, quanto as vilas tardiamente fundadas nos territórios fronteiriços,
foram profundamente marcadas por uma lógica de percepção geoestratégica do espaço287.
Esta concepção de cidade Capital, empregada por Batista Bicalho, pode ser
associada às ponderações de Catarina Madeira dos Santos, num livro sobre a cidade de Goa,
no contexto específico do Estado da Índia. Na conjuntura histórica da expansão portuguesa,
Madeira dos Santos propõe uma reflexão sobre a concepção de Capital ou capitalidade,
largamente empregado pelos historiadores e reproduzido freqüentemente de forma
mecânica e naturalizada na historiografia do Império português. Ao mesmo tempo, Batista
Ultramarino, ao rei João V, sobre a criação dos bispados de São Paulo e Ribeirão do Carmo, no distrito do Bispado
do Rio de Janeiro, como também as prelazias de Goiás e Cuiabá no mesmo distrito (Lisboa, 10 de abril de 1745),
AHU_ACL_CU_008, Cx. 3, D. 264.
Carta do governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos, Marcos de Noronha, ao rei João V, em
resposta à provisão sobre como se deve proceder quanto aos limites geográficos da capitania de Goiás (Vila Boa,
12 de janeiro de 1750, AHU_ACL_CU_008, Cx. 6, D. 429).
287 BICALHO, Maria Fernanda Batista. O Rio de Janeiro no século XVIII: A transferência da capital e a construção
do território centro-sul da América portuguesa. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. Disponível em
http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1.pdf. Acesso em 15 de junho de 2009.
286
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Bicalho também dialoga com a historiadora Renata Malcher de Araújo e suas considerações
sobre o conceito de cidade apresentadas em texto que trata da reforma urbana na Amazônia
no período pombalino.
Em primeiro lugar, queremos ressaltar a definição das especificidades da cidade
colonial, apresentadas por Renata Malcher de Araújo, por considerá-las adequadas para
descrever as características de Vila Boa de Goiás. De acordo com ela,
a cidade é o lugar da ordem social e política, é o espaço da convivência social por excelência e é o
lugar da representação e do exercício do poder. Por outro lado, a cidade é também o pólo hierárquico
de organização do território, é o centro a partir de onde se estabelece o controle das áreas
circundantes. Mais que isso, é o centro a partir de onde se identificam as relações com estas mesmas
áreas288.
Por outro lado, quando Catarina Madeira dos Santos busca compreender como a
cidade de Goa se transformou em Capital e qual era o sentido efetivo deste processo de
capitalização na arquitetura administrativa do Império português na Índia, sua reflexão
também apresenta pontos de aproximação com a situação de Vila Boa de Goiás. Em sua
opinião,
só podemos falar de Capitalidade na condição de este centro chegar a repercutir a sua influência num
determinado espaço [...] independentemente da configuração que este assuma. Há, portanto, a
considerar uma vertente dinâmica, expressa na capacidade que o centro tem de estruturar e
estabelecer hierarquias no interior de um território e com ele sustentar ligações289.
Em resumo, as referencias à Vila Boa de Goiás nos conduzem em direção às mesmas
trilhas propostas pelas autoras citadas, confirmando sua posição de vila Capital: núcleo
urbano que faz repercutir sua influência sobre uma área geográfica considerável, espaço de
atuação econômica e convivência social por excelência e lugar de representação e exercício
do poder, além de cidade-referência para a organização do território. Assim, na lógica da
percepção geoestratégica do espaço e no interior dos limites definidos pela capitania de
Goiás, Vila Boa é capital-fronteira administrativa regional.
Contudo, o que perseguimos aqui é a possibilidade de avançar a noção de fronteira
como forma de compreensão da cidade colonial, indo além da dimensão territorial e
geopolítica. Na verdade, a criação de Vila Boa e, mais tarde, a instalação da capitania de
Goiás, ocorreram através de um processo onde os acontecimentos encontram-se, com muita
freqüência, entrecortados por situações plenas de incertezas e indefinições 290. Da mesma
ARAÚJO, Renata Malcher de. A Razão na selva: Pombal e a reforma urbana da Amazônia. Camões. Revista de
Letras e Culturas Lusófonas, Lisboa: Instituto Camões, n. 15-16, 2003, p. 151.
289 SANTOS, Catarina Madeira. Goa é a Chave de toda a Índia. Perfil político da capital do Estado da Índia (15051570). Lisboa: CNCDP, 1999, p. 23. Citado em BICALHO, Maria Fernanda Batista. O Rio de Janeiro no século XVIII:
A transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa, op. cit., p. 3.
290 Em 1736 o rei de Portugal deu ordem para a escolha do lugar e a instalação de Vila Boa. Contudo,
provavelmente devido ao estado de saúde do governador da capitania de São Paulo, Antônio Luís de Távora,
Conde de Sarzedas, chegou às minas de Goiás apenas no final de 1736, ocupando-se prioritariamente da solução
de problemas envolvendo o recolhimento do Quinto e à definição dos limites geográficos e das fronteiras com as
capitanias vizinhas. Antes, porém, de definir o lugar adequado e criar a vila, a morte o surpreendeu em 20 de
agosto de 1737. Em vista dos acontecimentos, o ato de fundação de Vila Boa teve que esperar até 1739, com a
ida a Goiás do novo governador Luís de Mascarenhas. Da mesma forma, a idéia do desmembramento da
capitania de São Paulo, seguido da instalação da capitania de Goiás, foi aventada repetidas vezes ao longo da
década de 1730, mas apenas em 1748 a Coroa anuncia sua criação de fato. O primeiro governador, Marcos de
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forma, convém notar, a qualidade de Capital regional e a condição específica de capitalidade
– esta identidade que a faz reconhecida enquanto cidade e Capital – no universo urbano do
polígono do ouro, é fruto e conseqüência de uma construção histórica, é o resultado
inequívoco de um processo ativo, concretizado tanto por agentes, atores e protagonistas,
quanto pelas condições e fatalidades inscritas no tempo e no espaço das minas e capitania
de Goiás.
Por isso mesmo, a identificação desta condição de capitalidade, nos induz a pensar e
observar o espaço urbano das minas de Goiás a partir da noção de fronteira, que tem o
mérito de indicar que o sentido e a distribuição social dos espaços não são dados de uma
vez por todas, pois também eles são frutos de um processo. “Trata-se”, diz Laurent Vidal, “de
substituir a observação estática (e muitas vezes estatística) das situações pelo estudo
dinâmico das identidades sociais e espaciais em constituição”291.
NAS FRONTEIRAS DA HISTÓRIA: CIDADE-CAPITAL E PODER SOBERANO
Mas, o que é, afinal, uma cidade Capital? A Capital não é sempre uma cidade?292
Não seria mais adequado, antes, colocar uma outra questão: o que é uma cidade?
Aparentemente banal, sabemos que não é simples uma resposta a estas questões. Variável
segundo as épocas e os lugares, uma resposta satisfatória mobilizaria critérios diferentes e a
ajuda de várias disciplinas que pode ir desde a demografia à geografia histórica, da
antropologia à economia293.
No campo da história, uma vasta bibliografia tem desvendado este objeto através de
um repertório e tendências diversificados, na senda das múltiplas questões que contemplam
uma rica historiografia das cidades. No Brasil, uma síntese empreendida recentemente por
Laurent Vidal, coloca em evidência o imponente inventário da história das cidades brasileiras
e as grandes linhas que orientam sua produção294.
Mas, retomemos a primeira questão: o que é uma cidade Capital? Na linguagem
corrente de nossa sociedade contemporânea há uma tendência de utilização, de certa forma
abusiva, do conceito de “Capital”. Os próprios historiadores têm sido instigados por esta
tendência de extensão da noção de cidade Capital, indicando a existência de capitais
políticas, econômicas, financeiras, religiosas, intelectuais e culturais. Ora, esta extensão
lexical acaba por obrigar os historiadores a reelaborar conceitualmente esta noção que
parece lhes escapar295.
De fato, como afirma Laurent Vidal em estudo sobre o assunto, “na história, como
nas ciências sociais, nenhum campo de estudo é consagrado à análise específica das
Noronha, Conde dos Arcos, transferido do governo da capitania de Pernambuco, foi empossado no cargo pelo
Senado da Câmara de Vila Boa de Goiás apenas do dia 8 de novembro de 1749. Cf. LEMES, Fernando Lobo.
Pouvoir politique et réseau urbain dans l´Amérique coloniale, op. cit., p. 100,104,165-167.
291 VIDAL, Laurent. Nos trilhos do Brasil urbano, op. cit., p. 79.
292 LE JAN, Regine. Les villes capitales au moyen âge. Avant-propos. Istambul: XXXVI Congresso da SHMES, 1-6
junho, 2005. Paris: Editora da Sorbonne, 2006, p. 7.
293 CROUZET-PAVAN, Elisabeth. Venize: une invention de la ville (XIIIe-XVe Siècle). Seyssel: Collection Époques,
Editions Champs Vallon, 1997, p. 7.
294 VIDAL, Laurent. Las recientes orientaciones de la investigación sobre la historia del Brasil urbano. Elementos
para un balance (1990-2003). Anuário Americanista Europeu. Paris: Rede Europeia Rede Europeia de
Documentação e Informação Sobre a América Latina (REDIAL), n. 1, 2003, p. 13-40.
295 BOUCHERON, Patric; MENJOT, Denis; MONNET, Pierre. Formes d´émergence, d´affirmation et de déclin de
capitales: rapport introductif. In: Les villes capitales au moyen âge. Istambul: XXXVI Congresso da SHMES, op.cit.,
13.
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capitais”296. Segundo este autor, apesar da existência de uma literatura de alta qualidade
em diferentes disciplinas297, um balanço historiográfico revela a ausência de um campo de
estudo legitimado e reconhecido pela comunidade de pesquisadores e estudiosos.
Assim, se observamos a geografia, por exemplo, veremos que os trabalhos recentes
dedicam-se muito menos à noção de Capital que àquelas de metrópoles e de megalópoles,
concentrando seus estudos nos mecanismos através dos quais uma cidade se transforma e
atinge certas dimensões e estágios de desenvolvimento298. Neste aspecto, embora a ênfase
nos estudos realizados seja dada sobre elementos estritamente vinculados à geografia,
como o tamanho e a hierarquia urbana das cidades, tomam a noção de Capital como um
fato histórico reenviando-a ao repertório do historiador299.
Por outro lado, fundamentando-se nas reflexões dos economistas alemães JohannHeinrich von Thunen (1842-1850), August Losh (1940) e Walter Christaller (1933) a respeito
dos lugares centrais, os geógrafos se dedicaram ao estudo sobre a distribuição e
organização urbana no espaço, produzindo instrumentos para analisar o fenômeno da
centralidade das cidades. Da mesma forma, os sociólogos, em grande medida, consideram o
fenômeno urbano associado, necessariamente, à figura da centralidade300. De acordo com
Patric Boucheron, Denis Menjot et Pierre Monnet, seus repertórios são os mesmos utilizados
pelos historiadores, apropriando-se deles e adaptando-os para o estudo das redes urbanas
existentes no passado301. Assim, de acordo com estes mesmos autores,
Os geógrafos – que passaram do estudo das “redes urbanas” àquele das “redes de cidades” – tal
como os sociólogos consideram então que a relação entre a Capital e seu território, assim como a
questão de sua fundação, de seu desenvolvimento ou de sua migração, obedece a uma lógica
puramente política, ligada aos historiadores, e muito mais aos historiadores do Estado que aos
historiadores da cidade302.
Seguindo ainda numa direção complementar, o sentido geral que nos oferecem os
dicionários quanto à noção de Capital ou cidade Capital, nos conduzem efetivamente ao
campo do político. De acordo com o dicionário Aurélio, capital é a “Cidade principal, onde se
encontra a sede dos poderes públicos”303. O Trésor de la Langue Française define a palavra
VIDAL, Laurent. Capitais sonhadas, capitais abandonadas. Considerações sobre a mobilidade das capitais nas
Américas (séculos XVIII - XX). História. São Paulo: USP, vol. 30, n. 1, 2011, p. 4.
297 Tanto historiadores, como geógrafos, arquitetos, urbanistas e antropólogos estão inclinados sobre questões
como a posição das capitais no interior dos territórios, sobre os desafios econômicos e demográficos, sobre os
modelos de urbanismo adotados e sobre a encenação e a representação do poder nas capitais. Além disso,
recentemente alguns urbanistas e geógrafos norte americanos têm provocado uma reflexão coletiva e
interdisciplinar sobre a especificidade das cidades capitais. Cf. VIDAL, Laurent. Capitais sonhadas, capitais
abandonadas: considerações sobre a mobilidade das capitais nas Américas (séculos XVIII - XX), op. cit., p. 4.
298 Ver, por exemplo, as contribuições do dossier Revolution urbaine e mondialisation, Vingtième Siècle, n. 81,
2004, p. 37-117.
299 BOUCHERON, Patric; MENJOT, Denis; MONNET, Pierre. Formes d´émergence, d´affirmation et de déclin de
capitales: rapport introductif. In: Les villes capitales au moyen âge. Istambul: XXXVI Congresso da SHMES, op.cit.,
p. 14.
300 Ver GRAFMEYER, Y. Sociologie urbaine. Paris : Nathan, 1994. BASSAND, Michel; KAUFMANN, Vincent; JOYE,
Dominique (Org.). Enjeux de la sociologie urbaine. Laussane: Presses Polytechniques et Universitaires Romandes,
2001.
301 BOUCHERON, Patric; MENJOT, Denis; MONNET, Pierre. Formes d´émergence, d´affirmation et de déclin de
capitales: rapport introductif. In: Les villes capitales au moyen âge. Istambul: XXXVI Congresso da SHMES, op.cit.,
p. 15.
302 Idem, p. 16.
303 Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Básico). Nova Fronteira, 1988.
296
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Capital como “Cidade principal de um Estado, de uma província que é a sede do governo
e/ou da administração central” ou, ainda, “Cidade principal de um estado notável ou
importante em todos os pontos; cidade que precede as outras em certos domínios, que é o
principal centro de uma atividade”304. O Le Robert, por sua vez, indica a capital como “cidade
que ocupa a primeira posição na hierarquia de um estado, uma província” 305. E o Le
Larousse como “lugar onde estão assentados de maneira fixa o Estado e o governo” 306.
Todas as definições, ao conduzirem a noção para o campo do político, guardam o mesmo
sentido daquele emprestado pelo governador Marcos de Noronha, revelando o estatuto
primeiro de Vila Boa enquanto “cabeça de comarca” e “Capital da nova Capitania de Goiás”.
Neste contexto, é conveniente ressaltar, antes de tudo, que se trata de uma noção
cuja pertinência reenvia ao campo da história enquanto disciplina. E, neste caso, para uma
compreensão mais apurada da especificidade das cidades capitais, é fundamental retornar
à origem política de sua história.
Neste sentido, e ao mesmo tempo, não podemos deixar de lado, ante a observação
dos fenômenos que fazem da cidade uma cidade Capital, o desenvolvimento da sociedade
que a constitui e a existência dos homens que a constroem. Assim, a fundação de
Sant´Anna, primeiro arraial nas minas de Goiás, bem como a escolha do lugar e a instalação
de Vila Boa, os conflitos pela preeminência dos interesses e da autoridade dos grupos
políticos locais, a criação e instalação dos repertórios institucionais civis e religiosos por
iniciativa da Coroa, a relevância da região para as estratégias geopolíticas do Império, enfim,
cada um destes elementos constituem-se como partes conectadas de um mesmo processo,
de uma construção histórica no tempo e no espaço, que contribuem para identificar Vila Boa
como Capital da capitania de Goiás. Espaço onde se projeta uma sociedade particular, com
suas características e sociabilidade específicas, uma identidade própria que a distingue e
diferencia, enquanto Capital, dos demais arraiais no universo urbano das minas de Goiás.
Em resumo, dois aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar, é preciso
restabelecer a importância de sua historicidade, ou seja, as condições históricas que a
fundam enquanto Capital regional, já que o estatuto de Vila Boa Capital não é dado de uma
vez por todas, como se apenas a chegada de um governador nomeado pelo rei de Portugal e
a construção de alguns edifícios públicos emprestassem as condições necessárias para o
surgimento de uma Capital. Em segundo lugar, como Vila Boa assume o papel de Capital
política, como sede dos poderes e do governo coloniais, lugar de decisão, representação e
núcleo administrativo do território pertencente à capitania, é essencial perceber que sua
condição e seu estatuto de Capital nos conduzem efetivamente ao campo do político.
Noutras palavras, é conveniente, antes de tudo, emprestar à noção de “Vila Boa
Capital” o sentido histórico que lhe é pertinente e, da mesma forma, retornar às origens
políticas de sua história. Este caminho conduzirá a um encontro inevitável que reenvia à
definição da cidade colonial, apontada anteriormente, enquanto lugar de conexão, de
cruzamentos, de representação, de disputa, mas, ao mesmo tempo, de colaboração mútua.
Isto porque, no segundo caso, refazer o caminho da gênese política de sua história,
significa, sobretudo, reconhecer a importância do poder soberano do monarca que institui,
em primeiro lugar, a vila. Em seguida, o peso considerável que adquire, paulatinamente, a
Le Trésor de la Langue Française Informatisé. Disponible sur : http://atilf.atilf.fr/tlf.htm.
Le Petit Robert. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1997.
306 Le Petit Larousse. Paris: Larousse, 1998.
304
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região da fronteira nos desdobramentos dos projetos coloniais e o acentuado
desenvolvimento urbano de Vila Boa, emprestam credibilidade e justificam o ato de
fundação e as escolhas feitas pela Coroa portuguesa. Mais tarde, uma vez mais, é o gesto do
monarca soberano que, ao promover o desmembramento da capitania de São Paulo,
criando a capitania de Goiás, transforma Vila Boa em Capital. Neste sentido, podemos dizer
que o que faz da cidade Capital é o gesto do rei de Portugal que a funda e que, portanto, não
haveria Vila Boa Capital sem a manifestação do desejo e do poder soberano. Desta forma,
podemos dizer que “A Capital é um lugar decidido”, fruto imediato das resoluções do
monarca, “na medida em que ela nasce de uma decisão política, como ato de soberania”307.
Efetivamente, ao restabelecer a historicidade da condição de Capital, percebemos
que o gesto fundador do soberano se desdobra num processo que envolve a participação de
um variado espectro de atores e protagonistas, moradores dos arraiais que compõem a rede
urbana das minas de Goiás308. Se é a decisão política do rei que funda Vila Boa como
Capital, são as relações de poder no campo político de Goiás, associadas à prosperidade da
cidade e a existência dos homens que a constroem, que dão vida, consistência e
continuidade ao gesto inicial do monarca. Noutras palavras, é na bifurcação entre os
interesses dos súditos e do soberano, neste esforço coletivo, que se desvelam os
mecanismos que orientam as relações fundamentadas a partir de atos de colaboração entre
a Coroa e as elites locais. Ao mesmo tempo, é este encontro que engendra e estabelece a
construção de Vila Boa como espaço de representação e palco das relações políticas
estratégicas para o avanço dos projetos coloniais.
Desde logo, à luz de um processo construído historicamente, compreendemos que
Vila Boa de Goiás deve seu estatuto de Capital não apenas ao poder econômico que faz dela
uma vila referência no interior do Império. Nem tão somente à sua preeminência
demográfica em relação aos demais arraiais da região mineira, nem, tão pouco, à instalação
dos órgãos do governo colonial instituídos por Lisboa, que fazem dela, sem dúvida, uma
referência administrativa regional para as decisões do monarca. Deve também sua condição
de Capital, à instauração de uma nova ordem política, por decisão do soberano português,
que evoca a presença de um tempo novo nas minas de Goiás, cujo marco essencial é o novo
estatuto de “cabeça de comarca” incorporado a Vila Boa. Tempo associado às aspirações e
às ambições do rei de Portugal, à implantação de mecanismos de controle e disciplina
coloniais que reorientam e reorganizam o sentido das relações na cidade em torno de outro
princípio de legitimação política estabelecido pelo projeto colonial.
Em suma, para que Vila Boa se constitua enquanto Capital regional, um longo
caminho foi percorrido. Trata-se, em fim, de uma construção que toma forma e corpo no
tempo e no espaço, mediada, ao mesmo tempo, pela escolha soberana do rei e pelos
decorrentes desdobramentos no tecido social e político das minas e capitania de Goiás.
CONCLUSÃO
BOUCHERON, Patric; MENJOT, Denis; MONNET, Pierre. Formes d´émergence, d´affirmation et de déclin de
capitales: rapport introductif. In: Les villes capitales au moyen âge. Istambul: XXXVI Congresso da SHMES, op.cit.,
16.
308 Sobre a rede urbana e as relações de poder nas minas e capitania de Goiás, ver LEMES, Fernando Lobo.
Pouvoir colonial et réseau urbain: Vila Boa de Goiás au XVIIIe siècle. In: ACERRA, Martine; MARTINIÈRE, Guy;
SAUPIN, Guy; VIDAL, Laurent (Dir.). Les Villes e le monde. Du Moyen Âge au XXe siècle. Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2011, p. 107-127.
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Assim, o elo estrutural que garante a Vila Boa sua legitimidade enquanto cidade
Capital é o gesto fundador do soberano. A construção e a justificativa histórica desta
legitimidade vão ser perseguidas e reafirmadas durante toda a segunda metade do século
XVIII, através dos discursos e dos métodos elaborados pelas elites políticas locais. Na
verdade, o mesmo poder soberano que confere legitimidade à Capital, reveste os grupos
políticos locais de autoridade e autonomia a fim de garantir e alargar o domínio de Vila Boa
de Goiás sobre a região.
Este poder que empresta legitimidade à Vila Boa, fazendo dela uma Capital, este
poder legitimante, projeta sua influência sobre uma área geográfica considerável,
convertendo Vila Boa num espaço de intensas transações econômicas, lugar de
representação e exercício do poder, além de cidade referência para a organização do
território da capitania.
Evidentemente, a instalação de órgãos governamentais é parte indissociável dos
procedimentos que fazem de toda cidade uma Capital, reorganizando-a em torno de um
forte princípio de legitimação política e social. Contudo, para que Vila Boa se torne Capital,
não basta a presença de instituições administrativas que fazem dela a sede dos poderes da
monarquia. É preciso mais. É necessário se impor enquanto núcleo urbano capaz de dominar
o território que a cerca, reordenando as relações de força e poder, polarizando, como núcleo
urbano dominante, o controle da rede de arraiais que compõe a vida urbana de Goiás.
Esta condição particular de Vila Boa, localizada entre a legitimidade do poder do rei
de Portugal e o espaço sobre o qual deve exercer seu poder, tem implicações mais amplas.
Se a função de Capital deve ser imposta sobre todo o território administrado, ela deve,
evidentemente, exercer sua autoridade, domínio e controle, influenciando as relações de
poder locais. Esta circunstância põe em evidência o problema essencial da articulação entre
o comando da cidade e os interesses dos grupos políticos dos outros arraiais que compõem
o horizonte territorial mais amplo da malha urbana de Goiás.
Neste contexto, esta posição estratégica é também resultado do arranjo e da
definição da Capital como um tipo de cidade diferenciada em relação aos demais núcleos
urbanos da capitania. Assim, o poder legítimo, do ponto de vista de uma dominação
funcional e espacial, convive com a existência permanente de certa fragilidade ou
precariedade na afirmação de Vila Boa enquanto Capital. Esta situação de fragilidade vai
desencadear, em função dos interesses em jogo entre os grupos locais, um efeito de
competição com os demais centros urbanos existentes.
Finalmente, a diferença conferida pelo estatuto de Capital, que acaba por dotar Vila
Boa de uma situação privilegiada, desenha uma configuração bipolar onde, por um lado,
prevalece a dispersão da atividade mineradora em diferentes lugares da capitania,
contraposta, por outro lado, pela concentração do poder político e das funções
administrativas em uma única vila Capital. Numa formação desta natureza, o estatuto e a
função de Capital são contestados. Como as interferências e incursões sobre a economia e
os poderes locais passam a ser vistas pelos atores como embates e relações de força,
assumem uma conotação de disputa entre os envolvidos.
Esta situação de instabilidade, exemplo de fragilidade que nutre a imagem de uma
Capital contestada, vai estar na gênese dos inúmeros conflitos e lutas políticas peculiares
aos processos dinâmicos que ocorrem nos espaços intermediários de fronteira. Assim, a
associação entre a gênese histórica da cidade e os laços indissociáveis que esta última
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guarda com o poder do monarca, ou seja, a relação existente entre cidade e poder, autoriza
uma leitura possível sobre o sentido e a dimensão da vida e do mundo colonial na fronteira
oeste da América portuguesa.
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HISTÓRIA DO MUNICÍPIO NO BRASIL:
DO PERÍODO COLONIAL À PRIMEIRA REPÚBLICA
TIZIANO MAMEDE CHIAROTTI
Bacharel em Direito pela FIBRA
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal de Goiás
Mestre em Gestão do Patrimônio Cultural pela PUC-GO
Diretor do Museu Histórico de Anápolis
INTRODUÇÃO
O artigo apresenta uma análise sobre a instituição municipal no Brasil nos períodos
colonial, imperial e durante a Primeira República. A ideia básica é traçar uma trajetória da
instituição municipal, levando-se em consideração os dispositivos legais que a disciplinam,
principalmente no tocante à sua criação, atribuições e organização territorial.
Para percorrer o caminho enunciado no parágrafo anterior, divide-se o texto da
seguinte forma: das origens do município no Brasil, da instituição municipal na Constituição
de 1824 e, finalmente, Constituição de 1891. Na primeira parte, analisam-se as origens da
instituição municipal no Brasil, no chamado período histórico colonial, quando essa
organização era regulamentada pelas Ordenações Reais. Num segundo momento, mostra-se
como era o município no período imperial, quando esta instituição é inserida, de forma
expressa, no ordenamento jurídico como parte da organização administrativa da nação. Por
fim, num último momento, analisa-se o tratamento dispensado ao município no período da
Primeira República, na denominada Constituição Republicana de 1891.
AS ORIGENS DA INSTITUIÇÃO MUNICIPAL NO BRASIL
Sabe-se que a instituição municipal na região que viria a ser o Brasil foi criada em
1532, quando a mesma estrutura administrativa do reino de Portugal se instalou na colônia
por época da fundação da Vila de São Vicente, pois segundo o Instituto Brasileiro de
Administração Municipal – IBAM (2012), as Ordenações Reais, regendo Portugal, também
regeram o Brasil desde seu descobrimento até a Independência, em 07 de setembro de
1822.
De acordo com J. H. Saraiva 309, as legislações que compunham as Ordenações Reais
eram formadas pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas que adquiriram estes
nomes por terem sido promulgadas, no caso das Ordenações Afonsinas, da junção de
diplomas de leis avulsos da época da Dinastia Afonsina (1143-1383), mas só recebendo
este nome com a primeira compilação sistemática da legislação portuguesa feita na época
do monarca D. Afonso V (1438-1481); no caso das Ordenações Manuelinas por época da
309
SARAIVA, J. H. Pequena história das grandes nações – Portugal. São Paulo: Círculo do Livro, 1979.
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Dinastia de Avis (1385-1580), quando o monarca D. Manuel I (1495-1521) mandou compilar
nova legislação a partir das anteriores e, finalmente, no caso das Ordenações Filipinas, com
uma nova compilação de leis promulgadas a partir do período de sessenta anos, chamado
domínio filipino, durante o qual os reis Filipe II, Filipe III e Filipe IV de Espanha cingiram a
Coroa portuguesa em regime de monarquia dual que, a rigor, durou até 1668.
No caso específico do município, são as Ordenações Reais que o regulamentam,
mas, antes de qualquer coisa, deve-se ressaltar que, para evitar anacronismos, a
administração colonial era muito diferente da que se tem atualmente e, para
esclarecimento, recorre-se a análise de alguns historiadores que se debruçaram sobre o
assunto310.
De acordo com o historiador Caio Prado Júnior, em sua obra “Formação do Brasil
Contemporâneo”, editado pela primeira vez em 1942, as funções ou poderes do Estado na
época do Brasil Colônia não estavam separados e substancialmente distintos em Legislativo,
Executivo e Judiciário, tampouco as esferas paralelas e diferentes das atividades estatais
como as de caráter geral, regional ou local. Para o autor, isso se deve, fundamentalmente,
pelas seguintes razões abaixo citadas.
O Estado aparece como unidade inteiriça que funciona num todo único, e abrange o indivíduo,
conjuntamente, em todos seus aspectos e manifestações. Há, está claro, uma divisão de trabalho, pois
os mesmos órgãos e pessoas representantes do Estado não poderiam desenvolver sua atividade,
simultaneamente, em todos os terrenos; e nem convinha aumentar excessivamente o poder de cada
qual. Expressão integral deste poder, e síntese completa do Estado, só o rei; das delegações que
necessariamente faz do seu poder, nasce a divisão das funções. Mas uma tal divisão é mais formal que
funcional; corresponde antes a uma necessidade prática que a uma distinção que estivesse na essência
das coisas, na natureza específica das funções estatais. A própria divisão marcada, nítida e absoluta,
entre um direito público, que diz respeito às relações coletivas, e privado, às individuais, distinção
fundamental em que assenta toda estrutura do nosso direito moderno, deve ser entendida então, e
entre nós, de uma forma bem diversa da dos nossos dias311.
O que se deduz é que, conforme a citação, não se deve entender a estrutura
administrativa do Brasil Colônia com a visão da atualidade administrativa do país ou com as
divisões dos poderes estatais atuais, pois isto significa realizar o maior “pecado” do
historiador: fazer uma análise anacrônica.
As distinções existentes na estrutura estatal que compreende os órgãos e pessoas
representantes do Estado desse período, portanto, são mais formais que funcionais, dado as
características da monarquia absolutista portuguesa, cujo monarca era o representante de
Deus na Terra.
A título exemplificativo e com base nas informações fornecidas por R. Aguiar, a
organização do Poder Judiciário no Brasil Colônia era assim estabelecida, conforme o quadro
exposto abaixo.
É somente com o constitucionalismo que ocorre a modernização da administração pública e, ainda, a
separação dos poderes estatais, pois este movimento nasceu com o Estado Moderno, estruturando-se com as
revoluções burguesas – Independência Americana, em 1776, e Revolução Francesa, em 1789 – e identificandose com a ideologia liberal, em oposição ao absolutismo. Cf. NOGUEIRA, C. V. Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 1.
310
311
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 299.
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Quadro 1. Organização judiciária do Brasil Colônia
Era formada por juízes singulares que eram
distribuídos nas categorias de ouvidores, juízes
ordinários e juízes especiais que, por sua vez,
1ª INSTÂNCIA
se desdobravam em juízes de vintena, juízes de
fora, juízes de órfãos, juízes de sesmarias,
dentre outros, com sede nas Vilas ou Cidades.
Composta de juízes colegiados que atuavam
nos chamados Tribunais de Relação,
apreciando os recursos e embargos. O primeiro
2ª INSTÂNCIA
foi criado na Bahia, em 1587, depois foram
criados no Rio de Janeiro, em 1751, no
Maranhão, em 1812 e Pernambuco, em 1821.
Era a terceira e última instância, com sede em
TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUPERIOR
Lisboa e se chamava “Casa da Suplicação”,
sendo uma espécie de tribunal de apelação.
Fonte: AGUIAR, R. História do Direito. São Paulo: Saraiva, 2008, p.124.
Esse quadro mostra no caso do Judiciário, a sua organização mais funcional que
formal, pois se misturavam com outras “esferas” da administração. Assim, de forma bem
geral, conforme estabelece C. Froés, a história da administração pública no período colonial
brasileiro, pode ser entendida da seguinte forma: Capitanias Hereditárias (1534-1759),
Governo Geral (1548-1759), Vice-reinado (até 1808) e Brasil-Reino (1808-1821)312.
Todas aquelas etapas possuem suas características específicas que, muitas vezes,
existiram concomitantemente com outras, como é o caso da instituição municipal. Porém,
para os objetivos aqui propostos, não se vai discutir os pormenores dessa estrutura como um
todo, apenas se mostra algumas figuras para conhecer a organização territorial desse
período.
Conforme aponta Caio Prado Júnior, a administração geral do Brasil Colônia dividiase em uma estrutura que começava de um “órgão” superior para outro inferior, com o
Conselho Ultramarino, depois com as Capitanias que, administrativamente, eram divididas
em Comarcas que, por sua vez, dividiam-se em Termos, com sede em Vilas ou em Cidades.
De acordo com R. Aguiar, do ponto de vista legal, toda essa estrutura era regulada pelas
Ordenações Reais que possuíam a seguinte divisão:
O sistema jurídico que vigorava durante todo o período do Brasil Colônia era o mesmo que existia em
Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações
Manuelinas (1521) e Ordenações Filipinas (1603), estas, fruto da união das Ordenações Manuelinas
com as leis extravagantes em vigência. (...) Dividiam-se em cinco livros, com cada um deles contendo
títulos e parágrafos: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direito dos
Cf. FROÉS, C. Administração Pública. Rio de Janeiro: UCB/EB, 2006. Essa estrutura é detalhada por A. E.
Guerra em pesquisa do IBGE denominada “Evolução da divisão territorial do Brasil 1872-2010”. No entanto,
existem outras obras que indicam outras nomenclaturas para a divisão territorial. Assim, utiliza-se esta divisão
por ser mais didática. Ver, também, GUERRA, A. E. Breve histórico da configuração político-administrativa
brasileira.
In:
Instituto
Brasileiro
de
Geografia
e
Estatística
–
IBGE.
http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm. Acesso em: 20 de julho, 2012.
312
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Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; Livro III – Processo Civil; Livro IV – Direito Civil e
Direito Comercial; Livro V – Direito Penal e Processo Penal313.
Esse sistema jurídico regulamentava o Reino de Portugal e suas colônias e se
estruturavam em cinco Livros e variados Títulos e Parágrafos com as respectivas funções
estabelecidas na citação. A análise feita em tais diplomas legais, cuja consulta foi
proporcionada nos textos em fac-simile elaborados pelo Instituto de História e Teoria das
Ideias, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mostra que nas Ordenações
Afonsinas, o Título XXVII ao XXXIV do Livro I tratam da instituição municipal e que na letra
dessa lei a sede recebe o nome de Vila ou Cidade. Já nas Ordenações Manuelinas, o
tratamento da instituição municipal é dado no Título XLV ao LVIII do Livro I e, por fim, nas
Ordenações Filipinas, o tratamento é dado no Título LXV ao LXXXIX do seu Livro I.
O que se pode perceber é que a instituição municipal vai sendo regulamentada aos
poucos, de uma forma crescente, à medida que o Reino de Portugal vai aumentando suas
possessões ultramarinas. Isso fica claro com o aumento dos Títulos que são utilizados para
regulamentar a instituição municipal, pois nas Ordenações Afonsinas, os títulos são em
número de apenas 08 (oito), já nas Ordenações Manuelinas esses números aumentam para
14 (quatorze) títulos, enquanto que nas Ordenações Filipinas, o número sobe para 25 (vinte
e cinco) títulos, o que denota uma maior especialização. Embora não se deve esquecer que a
instituição municipal, nesse período, era mais uma extensão do rei do que um órgão estatal
propriamente dito, constituindo-se mais em uma espécie de “ponta-de-lança” da estrutura
administrativa colonial, vez que era comum certa mistura entre aspectos religiosos, civis ou
administrativos numa mesma instituição.
Nesse ínterim, para se perceber mais didaticamente a estrutura municipal do Brasil
Colônia atente-se ao que é estabelecido em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE no ano de 2010:
Quando os colonos chegaram para efetivamente ocupar a América portuguesa, eles se organizaram em
torno de núcleos de povoamento, denominados de arraiais. À medida que se desenvolviam
economicamente, esses núcleos ganhavam aportes populacionais e conseguiam se emancipar de
outros núcleos mais antigos e desenvolvidos, assumindo gerência própria em assuntos de ordem civil,
militar e religiosa. Passavam, então, à categoria de freguesias (paróquias). Com a elevação à categoria
de freguesia, o povoado passava a ter um território delimitado, um cartório eclesiástico e um padre que
passava a residir permanentemente na igreja (padre colado). A organização administrativa do povoado
se completava ao ser elevado à categoria de vila, quando era criada e instalada a câmara municipal. Já
quando a vila era elevada à categoria de cidade havia pouca ou nenhuma mudança em sua organização
administrativa. A vila ou a cidade podiam ainda, dependendo de seu tamanho populacional, abarcar
uma comarca, que é a divisão territorial que distribui a justiça na região. Os limites da comarca podiam
coincidir com os limites de uma vila ou englobar várias vilas pequenas314.
Ao que tudo indica, a instituição municipal passava por várias fases até chegar à sua
consolidação, quando da criação e instalação da Câmara Municipal315, que podia ocorrer
313
Cf. AGUIAR, R. História do Direito. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 122-124.
GUERRA, A. E. Breve histórico da configuração político-administrativa brasileira, op. cit., p. 18.
Conforme aponta Pontes e Faria, a Câmara Municipal era o órgão que administrava o município durante o
período colonial e imperial brasileiro, apresentando funções executivas, legislativas e até judiciárias no caso do
primeiro período, com algumas exceções a essa regra, como a instituição, pela primeira vez no Brasil, do cargo de
Prefeito pela Província de São Paulo, em 11 de abril de 1835, mas como delegado do Executivo e de nomeação
314
315
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numa povoação com categoria de Vila ou de Cidade. Mas o que se nota é que as funções
desta organização são diversas da atual, pois durante sua trajetória rumo à efetivação,
aquelas mesmas funções são de ordem civil, militar e religiosa até sua completa
independência administrativa em relação a outro povoamento. No que tange a questão da
categoria de Vila ou a de Cidade ser a sede municipal no período do Brasil Colônia, pesquisa
realizada pelos autores Lima e Silva esclarece de forma cabal esse ponto:
Nessa época, o aglomerado que sediava o município abrigando a câmara podia ser uma cidade ou uma
vila. A diferença entre essas categorias não estava no tamanho ou importância do aglomerado, mas sim
na sua origem: a fundação de uma cidade era um direito exclusivo da Coroa, enquanto as vilas podiam
se originar de ações dos donatários, capitães ou governadores. Apenas em 1938 essa situação foi
modificada pelo Decreto-Lei nº 311 que determinou que as sedes de município teriam categoria de
cidade316.
Como se pode perceber, a organização territorial do município no período colonial era
dividida, num primeiro momento, em Arraiais que compreendiam incipientes núcleos de
povoamento, depois, quando havia o seu desenvolvimento, passavam à condição de
Freguesia, que era um povoamento mais consistente, com delimitação territorial e, também,
com um cartório eclesiástico que tinha a função primordial de registro civil (expedir certidões
de nascimento, casamento e óbito) e, finalmente, o coroamento da organização municipal
era efetivado com a criação da Câmara Municipal, em povoado com categoria de Vila ou
Cidade, em cuja sede ainda se instalava, no caso de haver um considerável tamanho
populacional, uma Comarca, à qual cabia a distribuição da justiça.
De acordo ainda com a historiografia sobre o tema, por todo o período colonial, a
Coroa portuguesa sempre se preocupou com uma maior interferência nos assuntos da
colônia brasileira, principalmente com a questão da arrecadação de riquezas e, também,
com a autonomia dos povoados, em face das grandes distâncias entre a Metrópole e a
Colônia, que eram restringidas, ora de forma tênue, ora de forma mais incisiva, pela ideia
centralizadora das Capitanias, nos termos do que bem relata H. L. Meirelles:
No período colonial, a expansão municipalista foi restringida pela idéia centralizadora das Capitanias,
afogando as aspirações autonômicas dos povoados que se fundavam e se desenvolviam mais pelo
amparo da Igreja que pelo apoio dos donatários. Mesmo assim, as Municipalidades de então tiveram
inegável influência na organização política que se ensaiava no Brasil, arrogando-se, por iniciativa
própria, relevantes atribuições de governo, de administração e de justiça. Realizavam obras públicas,
estabeleciam posturas, fixavam taxas, nomeavam juízes-almotacéis, recebedores de tributos,
depositários públicos, avaliadores de bens penhorados, alcaides-quadrilheiros, capitães-mores de
ordenanças, sargentos-mores, capitães-mores de estradas, juízes de vintena e tesoureiros-menores.
Julgavam injúrias verbais e, não raras vezes, num incontido extravasamento de poder, chegaram essas
Câmaras a decretar a criação de arraiais, a convocar “juntas do povo” para discutir e deliberar sobre
interesses da Capitania, a exigir que governadores comparecessem aos seus povoados para tratar de
negócios públicos de âmbito estritamente local, a suspender governadores de suas funções e, até
do Presidente da Província. A denominação de Prefeito como chefe do executivo municipal só será consagrado
com a Constituição de 1934, no seu art. 13, inciso I. Cf. PONTES, D. R. e FARIA, J. R. V. Direito Municipal e
Urbanístico. Curitiba: IEDE Brasil, 2009.
LIMA, M. H. P. e SILVA, J. K. T. Evolução do marco legal da criação de municípios no Brasil. In: Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm. Acesso em:
20 de julho 2012, p. 22.
316
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mesmo depô-los, como fez a Câmara do Rio de Janeiro com Salvador Correia de Sá Benevides,
substituído por Agostinho Barbalho Bezerra317.
A organização do município realizado pelas Câmaras Municipais, como é observado
na citação, apresentava inúmeras atribuições decorridas, em sua maior parte, pela ausência
da Coroa portuguesa, o que resultava numa maior autonomia municipal. Entretanto, quando
ocorria maior interferência da Coroa, o conflito com outras “esferas” da administração
colonial era inevitável. Outro dado que comprova as variadas atribuições do município
colonial são as diversas funções atribuídas aos “munícipes”, como a nomeação de juízesalmotacéis - recebedores de tributos - dentre muitos outros.
Sobre a centralização administrativa promovida pela Coroa portuguesa, é oportuno
ainda mencionar que
Nessa fase colonial não havia incentivo à centralização administrativa nas cidades, mas sim nas
capitanias; mesmo assim, os centros mais urbanizados, as vilas e cidades possuíam Câmaras
Municipais (...) : “As Câmaras possuíam finanças e patrimônio próprios. Arrecadavam tributos,
nomeavam juízes, decidiam certas questões, julgavam crimes como pequenos furtos e injúrias verbais,
cuidavam das vias públicas, das pontes e chafarizes incluídos no seu patrimônio”. Essas Câmaras eram
controladas, de acordo com o autor referido, “sobretudo até meados do século XVII, pela classe
dominante dos proprietários rurais e expressavam seus interesses”. Foi, ainda, a Câmara de Vereadores
o órgão que sobreviveu e que ganhou novos contornos e atribuições no período pós-Independência e que
se manteve até o momento atual318.
As categorias do município (divisão territorial), sua criação, assim como suas
atribuições, são muito diferentes da atualidade, sendo que a Câmara Municipal reunia as
atribuições legislativas, executivas e judiciárias, pois em sua estrutura organizacional no
conjunto do Brasil Colônia havia o Presidente, três Vereadores (que juntos eram
encarregados das atribuições legislativas), um Procurador, dois Almotacéis e um Escrivão
(encarregados das atribuições executivas), um Juiz de Fora vitalício (encarregado,
especificamente, da justiça, da arrecadação e fiscalização dos tributos para a Coroa) e dois
Juízes Comuns (encarregados das atribuições judiciárias), estes eleitos com os Vereadores.
Assim sendo, para se visualizar de melhor maneira as informações sobre a instituição
municipal nesse período, no quadro abaixo são definidas suas características:
Quadro 2. A instituição municipal no período colonial
CARACTERÍSTICAS GERAIS
Categoria
Arraial
Freguesia
317
318
Criação
Iniciativa particular (colonos)
para colonizar a América
portuguesa
Iniciativa da Igreja Católica,
em função do maior
desenvolvimento econômico e
populacional
Atribuição
Mero núcleo de povoamento
Delimitação territorial e cartório
eclesiástico, que realizava o
registro civil
Cf. MEIRELLES, H. L. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 28-29.
Cf. PONTES, D. R. e FARIA, J. R. V. Direito Municipal e Urbanístico, op. cit., p. 10.
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Iniciativa particular (colonos),
Política, administrativa,
319
no caso de Vila e pela Coroa
financeira e judiciária, com a
Vila ou Cidade
portuguesa, no caso de Cidade instalação da Câmara Municipal
Fonte: Dados coligidos pelo autor e Guerra, A. E. Breve histórico da configuração políticoadministrativa brasileira. In: IBGE: São Paulo, 2012.
Com o processo de independência política da Colônia, que se torna o Império do
Brasil, a instituição municipal se estrutura a partir de novos parâmetros.
A INSTITUIÇÃO MUNICIPAL NA CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824
Como é sabido, o evento que desencadeou o processo de emancipação política da
antiga colônia portuguesa, originando um país, foi o fato ocorrido em 07 de setembro de
1822, dia consagrado pela historiografia nacional para marcar a Independência do Brasil.
Nos anos que se seguiram àquela data, ocorreram mudanças significativas do ponto de vista
administrativo e político, porque houve a necessidade de sua organização como nação
soberana.
Conforme A. E. Guerra, as antigas Capitanias se transformaram em Províncias, cuja
divisão ficou assim estabelecida:
Com a declaração da Independência do Brasil, em 1822, as antigas capitanias reais foram
transformadas em províncias do Império do Brasil, assumindo basicamente os mesmos contornos
daquelas. Algumas das capitanias reais haviam se fundido para formar uma capitania maior, como foi o
caso da Capitania da Bahia. Essa surgiu a partir da junção de cinco capitanias: Porto Seguro, Ilhéus,
Baía de Todos os Santos, Itaparica e Recôncavo da Baía. Outras surgiram a partir da elevação de
comarcas em novas capitanias. À época do seu nascimento, o Império do Brasil contava com 18
províncias: Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará,
Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, São Pedro do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Durante todo o período Imperial, a divisão administrativa do Brasil
mudou apenas com a criação da Província do Amazonas, em 1850, desmembrada da Província do Pará
e também com a elevação da Comarca de Curitiba à Província Independente, em 1853, com o nome de
Província do Paraná320.
Essa divisão foi realizada aproveitando-se a delimitação territorial já esboçada no
período colonial, através das Capitanias, mas, como observado, com a nomenclatura de
Províncias. Este modelo permaneceu por quase todo o período do Brasil Imperial, surgindo
mais tarde outras divisões.
No que diz respeito ao ordenamento jurídico e seguindo a tendência política dos
países europeus e da América do Norte, houve a necessidade de adequar à estrutura
herdada do período colonial uma nova condição do Brasil Império, pois:
Com a solidificação da Independência, havia necessidade de formar o novo arcabouço jurídico do jovem
país. Para isso, duas principais medidas foram tomadas: a criação de cursos jurídicos nacionais e a
De acordo com Fernando Lemes, a iniciativa para criação de vilas durante o século XVIII, na região da
capitania de Goiás, por exemplo, só será da Coroa, por causa da necessidade de um maior controle da colônia
por parte da administração do império, em função da mineração do ouro. LEMES, F. L. Pouvoir colonial et réseau
urbain: Vila Boa de Goiás au XVIIIe siècle. In: ACERRA, M.; MARTINIÈRE, G.; SAUPIN, G. et VIDAL, L. Les Villes et le
monde: Du Moyen Age au XXº siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011, p. 126.
320 Guerra, A. E. Breve histórico da configuração político-administrativa brasileira, op. cit., p. 19.
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substituição das Ordenações Filipinas por nova legislação. Inicia-se então a grande tarefa dos
legisladores, que precisavam reformar praticamente todas as instituições remanescentes do Antigo
Regime, como a justiça, o governo e a fazenda321.
As instituições coloniais são reformadas, tanto as de justiça, quanto as de governo ou
as relativas à fazenda. Foi preciso uma nova legislação para substituir a anterior que
determinou a passagem da monarquia absolutista para a parlamentarista, principalmente
no que dizia respeito às questões inerentes à forma de governo, divisão de poderes, aos
direitos e garantias individuais, entre outros, tal qual pregava o liberalismo 322, que defendia
a ideia de se possuir uma Constituição para reger as relações do Estado consigo mesmo,
com outros Estados soberanos e com sua população.
No que se refere à divisão dos poderes, isso foi estabelecido no Art. 9º da
Constituição Imperial, que prevê como poderes do Império os seguintes: Poder Legislativo,
Poder Moderador, Poder Executivo e Poder Judiciário. No caso desse último Poder, em 29 de
novembro de 1832 foi aprovado o Código de Processo Criminal que alterou
substancialmente o direito brasileiro, definindo sua estrutura que também serviu para a
justiça civil e teve como principal característica o juizado de instrução, de perfil contraditório,
dirigido pelo juiz de paz, leigo e eleito conforme segue:
Quadro 3. Organização do judiciário no Brasil Império
Era formada por juízes de direito, juízes
1ª INSTÂNCIA
municipais, juízes de paz, promotores de justiça
e jurados, com sede em Vilas ou em Cidades.
Apreciava os recursos e se compunha das
2ª INSTÂNCIA
“Juntas de Paz” ou das “Juntas de Relações,
com sedes no Rio de Janeiro, Salvador, São
Luís e Recife.
Era a última instância, com sede no Rio de
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Janeiro e havia a apreciação apenas do recurso
de revista.
Fonte: AGUIAR, R. História do Direito. São Paulo: Saraiva, 2008.
Neste o caso específico, e sem se ater às explicações mais gerais sobre o tema
constitucional ou os poderes estatais, a instituição municipal passa a ser tratada no texto da
Constituição Imperial, em seu Título VII, particularmente no Capítulo II, da seguinte maneira:
Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se crearem haverá
Camaras, ás quaes compete o Governo economico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. Art. 168.
As Camaras serão electivas, e compostas do numero de Vereadores, que a Lei designar, e o que obtiver
maior numero de votos, será Presidente. Art. 169. O exercicio de suas funcções municipaes, formação
AGUIAR, R. História do Direito, op. cit., p. 135.
Esse movimento ganhou ímpeto a partir do século XVIII e defendia a liberdade pessoal, o individualismo, a
representação política, divisão dos poderes, descentralização administrativa, entre outros. No aspecto jurídico, de
acordo com o autor, o liberalismo foi o fio condutor no discurso dos brasileiros, que defendiam a luta contra o
sistema colonial, os monopólios e estancos, o fisco, a antiga administração da justiça, a administração
portuguesa, etc. Cf. AGUIAR, R. História do Direito, op. cit., p. 1.
321
322
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das suas Posturas policiaes, applicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis
attribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar323.
Nos dispositivos constitucionais citados, fica clara a liberdade concedida ao
município, no sentido do exercício de suas funções municipais. Ocorre que tais liberdades
são mais caracterizadas no sentido do ordenamento do município, no que se refere às suas
atribuições meramente administrativas determinadas pela Lei Regulamentar de 1º de
outubro de 1828, que regulamentou aqueles dispositivos constitucionais, do que transformar
a criação, as categorias ou as atribuições existentes no município.
Sobre a questão apontada no parágrafo anterior, que apresenta a regulação do
município no conjunto do ordenamento jurídico imperial, Pontes e Faria escrevem o
seguinte:
Em 1828, uma lei ordinária, que vigorou até a Proclamação da República, definiria os contornos da nova
etapa de autonomia local dos municípios, instituindo a estrutura organizacional das administrações
municipais. Tal lei tratava basicamente das seguintes questões: (i) a formação e organização políticas
das Câmaras; (ii) as posturas municipais e o “poder de polícia” nos municípios; (iii) a aplicação das
rendas e; (iv) a estrutura funcional de seus servidores. Seguiu-se a esta lei o Ato Adicional, de feição
federalista (Lei nº. 16, de 12 de agosto de 1834, que alterava a Constituição de 1824 em alguns
pontos), que também apresentava como objetivo a descentralização das decisões administrativas, mas
subordinando os municípios às assembleias legislativas provinciais324.
O município desse período passa a ter autonomia administrativa, que se define, na
percepção de Petrônio Braz, explicando isso no momento presente, como o “poder de se
organizar juridicamente através de lei orgânica própria, sem a tutela do Estado-membro, e
de dispor sobre sua própria administração em tudo que respeita aos interesses locais” 325. A
autonomia administrativa, para o autor, abarca as capacidades de auto-administração e
normativa própria, significando, para a primeira, como a propriedade de se organizar da
melhor maneira para o atendimento das suas demandas e, para a segunda, implica a
participação do Poder Legislativo, ou seja, de elaborar leis.
Nesse aspecto, trazendo a colocação citada alhures ao contexto em análise, o
município no Império do Brasil deixa de ter atribuições políticas, financeiras e jurídicas como
de fato possuía no período colonial e passa a ser subordinado às Assembleias Provinciais,
nos termos do Ato Adicional326 nº 16, de 12 de agosto de 1834, mais tarde complementada
pela Lei nº 105, conhecida como a Lei de Interpretação do Ato Adicional, votada e
promulgada em 12 de maio de 1840.
A Constituição Imperial, no seu Capítulo II do Título VII, ao ser outorgada em 25 de
março de 1824 estatuía amplas liberdades às municipalidades, numa espécie de
continuação às atribuições municipais do período colonial. Porém, ao ser regulamentado
este dispositivo pela Lei Regulamentar de 1828, tais liberdades foram limitadas, sendo
confirmada pelo Ato Adicional de 1834 e, posteriormente, com a Lei nº 105, procurou-se dar
BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil de 25 de março de 1824. Disponível em
www.planalto.gov.br. Acesso em: 15 de agosto, 2012.
324 PONTES, D. R. e FARIA, J. R. V. Direito Municipal e Urbanístico, op. cit., p. 11.
325 BRAZ, P. Manual do Assessor Jurídico do Município. Teoria e Prática. Campinas: Servanda, 2008, p. 79.
326 Essa espécie legislativa correspondia a Emenda Constitucional e que era um mecanismo legal para alterar
dispositivo constitucional. Cf. NOGUEIRA, O. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal/MCT, 2001,
p. 79.
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interpretação mais ampla a dispositivos do Ato Adicional, de modo a restituir algumas
franquias ao município, mas esta indefinição apenas refletia os antagonismos que ocorria
em nível nacional entre liberais e conservadores que, invariavelmente, reivindicavam ora
uma maior centralização, ora uma maior descentralização do poder central327.
Apesar da conjuntura política apontada anteriormente, a atribuição municipal sem a
tutela da Província seria somente a de realizar obras ou dispor sobre serviços no seu
território, pois as questões financeiras, por exemplo, seriam dadas pela Coletoria Provincial
que, por sua vez, estavam subordinadas ao poder central. Já as questões inerentes à
atribuição política, estas seriam apenas relativas à eleição de Vereadores ou Conselheiros
para legislar sobre assuntos estritamente locais e, por seu turno, as atribuições judiciais
seriam mais inerentes ao Poder Judiciário local através dos Termos e das Comarcas e não
mais aos municípios enquanto órgão administrativo.
Para elucidar um pouco mais as atribuições do município no período imperial, H. L.
Meirelles enfaticamente salienta que
Na vigência da Lei regulamentar de 1828, que perdurou até a República, as Municipalidades não
passaram de uma divisão territorial, sem influência política e sem autonomia na gestão de seus
interesses, ante a expressa declaração daquele diploma legal de que as Câmaras eram corporações
meramente administrativas (art. 24). (...) Nem assim ficaram as Municipalidades aptas a uma boa
administração, porque a Lei regulamentar de 1828, que uniformizara toda a organização dos
Municípios, não lhes dava órgãos adequados às suas funções. Não havia um agente executivo próprio do
Município; exercia parcialmente essas atribuições o procurador, cuja atribuição principal era a de
arrecadar e aplicar as rendas do Conselho e postular em nome da Câmara perante os juízes de paz (art.
81)328.
Numa outra colocação, Petrônio Braz elucida de forma mais detalhada essa questão,
ao relatar que no Império “transferiu-se para as Províncias a titularidade do direito de definir
as rendas municipais. Às Câmaras Municipais, que detinham as responsabilidades
administrativas, cabia, em regra, tão somente o direito de solicitar recursos ao Conselho
Geral da Província”, mostrando sua completa subordinação nas questões relativas às
finanças329.
Quanto ao aspecto de criação de município, isto ficou a cargo, subsidiariamente, da
iniciativa popular com o aval fundamental da Província que, em última análise, conferia os
seus atos constitutivos. Na luta entre centralização e descentralização do poder central no
Império, ao município não houve maior discussão sobre sua importância no conjunto do país
como um ente estatal, por exemplo, pois esta relevância ficou entre governo imperial e
provincial:
A constatação nesse cenário, que sintetiza a leitura dos municípios no Império, é a de que se verifica
que nesse período não houve governo municipal autônomo, tendo em vista que a construção federalista
que se iniciara atribuíra poderes basicamente às províncias, mas que é a partir da Independência que os
municípios passam a apresentar visibilidade e que é dado a estes um tratamento constitucional330.
Cf. MEIRELLES, H. L. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993.
Idem, p. 30.
329 Cf. BRAZ, P. Tratado de Direito Municipal. 3 vols. Leme: Mundo Jurídico, 2009, p. 74.
330 PONTES, D. R. e FARIA, J. R. V. Direito Municipal e Urbanístico, op. cit., p. 12.
327
328
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Como se vê, não é dado ao município o mesmo tratamento que era dado no período
colonial, mas ao menos sua importância é reconhecida, porque tal organização aparece no
texto constitucional. As categorias ou divisão territorial do município continuam do mesmo
modo, com algumas pequenas modificações. Quando se trata do início do povoamento,
recebe o nome de Arraial ou Curado e, com seu desenvolvimento, passa a ser considerado
Freguesia com sede de cartório eclesiástico e delimitação territorial, chegando, finalmente, à
categoria de Vila ou Cidade, que é a culminância da organização municipal, quando este
adquire emancipação política.
No quadro a seguir, ficam explicitadas as informações sobre o município dessa
época.
Quadro 4. A instituição municipal no período imperial
CARACTERÍSTICAS GERAIS
Categoria
Arraial ou Curado
Criação
Atribuição
Iniciativa de particulares
Mero núcleo de povoamento
(povo) ou da Igreja Católica
para povoamento
Iniciativa
de particulares
Delimitação territorial e cartório
Freguesia
(povo) e da Igreja Católica, em
eclesiástico, que realizava o
função do maior
registro civil
desenvolvimento econômico e
populacional
Iniciativa de particulares
Administrativa e legislativa, no
Vila ou Cidade
(povo) e da Província (Estado),
que se refere ao peculiar
no caso de Vila havia 7 (sete)
interesse, com a instalação da
Conselheiros e, no caso de
Câmara ou Conselho Municipal
Cidade, 9 (nove) Conselheiros
Fonte: Dados coligidos pelo autor e Guerra, A. E. Breve histórico da configuração políticoadministrativa brasileira. São Paulo: IBGE, 2010.
Tais características são parecidas com as do período colonial, sendo necessário
somente definir mais claramente as categorias existentes na divisão territorial do município.
Daí que, explicando essa questão, João Dornas Filho mostra que em função do Regime do
Padroado e que perdurou durante o período imperial, a Igreja Católica é que fazia às vezes
do Estado, pois era a religião oficial do Império do Brasil e este tinha o dever de pagar
salários para padres e bispos, ficando como competência dessa congregação religiosa
realizar o registro civil331.
Assim, o início do povoamento correspondia ao Arraial ou Curado, que pressupunha a
existência de uma capelinha, que fornecia a sua legalidade, mas sem a presença
Cf. DORNAS FILHO, J. Padroado e a Igreja brasileira. São Paulo: Nacional, 1938. De acordo com M. Faggion, o
Decreto nº 5.604/1874 regulamentou o registro civil no Império do Brasil, mas somente alguns municípios
maiores é que deram início à criação destes ofícios, os chamados “Cartórios de Registro Civil”. Cf. FAGGION, M. C.
B. O Registro Civil. Belo Horizonte: Água Branca, 2000. Por sua vez, conforme T. Bastos, apenas a partir de 1888,
por força do Decreto nº 9.886 é que se universaliza esse registro pelos cartórios civis, deixando de ser uma
prerrogativa da Igreja Católica. BASTOS, J. T. Registro civil na República: nascimentos, casamentos e óbitos. Rio
de Janeiro: H. Garnier, 1909.
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permanente de um padre Já na categoria de Freguesia havia o chamado “padre colado” e,
finalmente, quando havia a emancipação política em relação a outro município, a sede
municipal podia ser numa povoação com categoria de Vila ou de Cidade, sendo a única
diferença a quantidade de Conselheiros ou Vereadores. Com o fim do Império, por seu turno,
o município passa a ter tratamento diverso no ordenamento, aparecendo o termo “peculiar
interesse”.
Desse modo, explicar o significado do município na Primeira República, dos
dispositivos constitucionais que o regulam, bem como do termo “peculiar interesse” é nosso
objetivo na próxima parte do capítulo.
A INSTITUIÇÃO MUNICIPAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1891
Com a mudança do regime político proporcionado pela Proclamação da República,
em 15 de novembro de 1889, o país adota a forma republicana, tal qual o modelo norteamericano, com sistema de governo presidencialista e forma estatal composta332. As
instituições administrativas, políticas e jurídicas, por assim dizer, sofrem reformulações para
se adequar a esta forma de Estado, exigindo uma nova dinâmica de funcionamento. Por sua
vez, o município sofre outra grande reformulação, estruturando-se como uma nova
organização para se adequar à República brasileira, v. g., as províncias passam a ser os
estados-membros, de acordo com o que é relatado a seguir por A. E. Guerra.
Em 1889, com a Proclamação da República, as antigas províncias brasileiras passaram à categoria de
estados, mantendo as mesmas fronteiras. O Império do Brasil passou a denominar-se Estados Unidos do
Brasil, seguindo o modelo americano de governo. (...) A federação brasileira nasceu, então, com 20
estados mais o Distrito Federal. Desde o ano de 1834, através do Ato Adicional nº 12, a cidade do Rio
de Janeiro havia sido desligada da província de mesmo nome e passado a abrigar a Corte, sob a forma
de município neutro. A administração da província passou a ser sediada na cidade de Niterói. Com a
Proclamação da República, o município neutro foi transformado na pessoa jurídica do Distrito Federal,
capital do Brasil333.
Com o exposto, fica evidente que a conformação dos Estados Unidos do Brasil
possuía o mesmo formato do Império, mas a dinâmica de funcionamento ou os mecanismos
legais que disciplinam o país são reformulados. A capital da República continua sendo o Rio
de Janeiro, transformando-se em Distrito Federal que passa a ser a tradição adotada, no
caso do município, para se denominar núcleos de povoamento mais urbanizados de sua
organização territorial – o chamado Distrito.
Quanto à divisão dos poderes, estes passam a ser o Executivo, o Legislativo e o
Judiciário. No que tange ao Poder Judiciário, este é disciplinado nos artigos 55 a 62 da
Constituição de 24 de fevereiro de 1891334.
Para Dallari Júnior, a forma de governo representa a organização dada ao Estado no desenvolvimento de suas
atividades, sendo a forma republicana norteada pela vontade popular, condutora da gestão da coisa pública e o
presidencialismo caracteriza-se por ter a função executiva exercida de modo unipessoal, ou seja, a chefia de
Estado e a chefia de governo são exercidas pela mesma pessoa: o presidente. A forma composta, por seu turno, é
identificada a partir da existência de mais de uma esfera de poder político. Cf. DALLARI JÚNIOR, H. A. Teoria Geral
do Estado Contemporâneo. São Paulo: Rideel, 2008.
333 Guerra, A. E. Breve histórico da configuração político-administrativa brasileira, op. cit., p. 19-20.
334 Para um maior detalhamento de tal poder, sugere-se conferir a importante obra de Carlos Fernando Mathias
“Notas para uma história do judiciário no Brasil”, que mostra detalhadamente a organização judiciária no país,
332
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Em prosseguimento, no contexto temporal ora em análise e de acordo com o autor
citado no parágrafo anterior, a mais alta corte brasileira era o Supremo Tribunal Federal,
cuja criação foi dada pelo Decreto nº 858, de 11 de outubro de 1890 e que também
organizou a justiça federal, com tribunais federais e juízes federais, mas que não seguiu
rigorosamente o modelo norte-americano. Assim, por este instrumento legal, a última
instância passa a ser o Supremo Tribunal Federal, seguida pela segunda instância federal
com sede nas capitais dos estados-membros e Distrito Federal, tendo como segunda
instância estadual o Superior Tribunal de Justiça, Tribunal de Justiça, Tribunal de Relação,
Superior Tribunal ou Tribunal Superior de Justiça, de acordo com a nomenclatura de cada
estado-membro e com sede nas respectivas capitais. A primeira instância era localizada nas
Comarcas, cuja sede ficava nas cidades e, subsidiariamente, nos Termos, cuja sede
localizava-se nas Vilas e que eram, substancialmente, separadas como órgão público com
função de prestação jurisdicional.
Como se pode perceber há uma nítida divisão dos poderes, e isso fica mais
explicitado com a criação da justiça federal, que passa a dirimir questões ligadas ao ente
estatal União e também com sua separação em relação à segunda instância estadual. As
divisões administrativas, por sua vez, são mais bem definidas, pois deixam de ser mais
formais e passam a ser mais funcionais, diferentemente do período colonial ou do imperial,
já que a diferença mais clara é a extinção do poder moderador, o que pressupõe uma maior
profissionalização da administração pública.
Com base nesse autor a composição do judiciário se dava da seguinte forma:
Quadro 5. Organização judiciária da Primeira República
Era formada por juízes de direito, municipais,
1ª INSTÂNCIA
de comarca ou distritais, juízes de paz e
tribunais do júri, com sede em Vilas ou em
Cidades.
Justiça Federal – era formada por seção
judiciária composta de 21 juízes com sede na
capital de cada Estado-Membro; Justiça
Estadual – era formada de acordo com cada
2ª INSTÂNCIA
Estado-Membro, pois a Constituição facultava a
sua organização judiciária, com sede na
respectiva capital e desde que respeitasse os
princípios constitucionais da União.
Era a última instância, com sede no Rio de
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Janeiro, composta de 15 juízes, nomeados pelo
Presidente da República e com aprovação do
Senado.
Fonte: Dados coligidos pelo autor e Mathias, C. F. Notas para uma história do judiciário no Brasil.
Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
No que se refere à organização político-administrativa do município, do ponto de vista
legal, a Constituição Federal de 1891 apenas realiza o seu tratamento num único dispositivo
desde o período colonial aos dias atuais, mostrando as três instâncias existentes na época. Cf. MATHIAS, C. F.
Notas para uma história do judiciário no Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
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constitucional, o artigo de número 68. Esse artigo prescreve que o estado-membro deve se
organizar de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios em tudo o que diz
respeito ao seu “peculiar interesse”, termo que foi reutilizado nas Constituições posteriores,
exceto a de 1988.
Sobre o assunto, realizando uma espécie de parênteses e conforme aponta Petrônio
Braz, citado anteriormente, o conceito “peculiar interesse” se confunde com predominante
interesse, que possui caráter restritivo e limitado, contrariamente ao interesse local. O termo
foi utilizado na Constituição de 1988, por ser abrangente e não limitado, cujo significado é a
capacidade de decretação e arrecadação dos tributos de sua competência, aplicação de
suas rendas e organização dos serviços públicos locais, o que permite inferir sobre a pouca
autonomia dada aos municípios no período da Primeira República até a Emenda
Constitucional de 1969.
Com efeito, muitos autores que escreveram sobre a questão da autonomia municipal
na Primeira República são concordes em explicitar que isto não existiu nesse período da
história brasileira, a ponto de H. L. Meirelles ser mais enfático quando escreve que
Durante os 40 anos em que vigorou a Constituição de 1891 não houve autonomia municipal no Brasil. O
hábito do centralismo, a opressão do coronelismo e a incultura do povo transformaram os Municípios
em feudos de políticos truculentos, que mandavam e desmandavam nos seus distritos de influência,
como se o Município fosse propriedade particular e o eleitorado um rebanho dócil ao seu poder335.
Sem adentrar no mérito acerca da conjuntura estadual ou nacional (coronelismo ou
dos mecanismos políticos da Primeira República), o certo é que o município sofre com as
interferências políticas do estado-membro, ficando comprometida a sua autonomia. As
atribuições do município passam a ser ou as políticas ou as administrativas ou ambas, de
acordo com as constituições estaduais que o disciplinam336. A diversidade de atribuições que
é dada ao município é explicada pela grande autonomia que os estados-membros possuem
nesse período da história brasileira e isso é confirmado por H. L. Meirelles ao mostrar que
“nos regimes das Constituições Federais anteriores a de 1988, a quase totalidade dos
Municípios brasileiros, à exceção do Estado do Rio Grande do Sul, adotava o sistema de leis
orgânicas estaduais para reger a organização e administração de todos os seus
Municípios”337.
Com a grande liberdade legislativa que o estado-membro possuía no período da
Primeira República, a criação, organização territorial e atribuições municipais são
regulamentadas por leis estaduais que, via de regra, em função do contexto político da
época, sofre uma série de limitações pelo governo estadual. Um exemplo disso é aquele que
permite ao estado-membro contrair empréstimos no exterior sem autorização federal, o que
explica o grande desenvolvimento do Estado de São Paulo, que no período contraiu
empréstimos de monta no exterior para subsidiar seu desenvolvimento econômico e que não
foi seguido pelos outros Estados da Federação.
MEIRELLES, H. L. Direito Municipal Brasileiro, op. cit., p. 31-32.
Ibidem. A atribuição política no período da “República Velha”, ocorreu apenas em oito Estados, cujo chefe do
Executivo poderia ter as seguintes denominações: Prefeito, Intendente (o mais usual) ou Presidente Municipal e
passou-se, ainda, a dividir os órgãos municipais em Legislativo, com sede na Câmara Municipal e em Executivo,
cuja sede mais usual era a Intendência Municipal. Nos outros Estados, o chefe do executivo era nomeado.
337 Idem, p. 75.
335
336
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Ademais disso, a criação da instituição municipal era prerrogativa do estado-membro
que, para dar um caráter mais democrático ao acontecimento, permitia a iniciativa popular
apenas para confirmar os atos constitutivos do município. A regra era se utilizar do município
para fins eleitoreiros, principalmente porque os chefes dos executivos municipais estavam
virtualmente nas “mãos” das oligarquias estaduais.
Os prefeitos eram eleitos ou nomeados ao sabor do governo estadual, representado pelo “chefe” todopoderoso da “zona”. As eleições eram de antemão preparadas, arranjadas, falseadas ao desejo do
“coronel”. As oposições que se esboçavam no interior viam-se aniquiladas pela violência e pela
perseguição política do situacionismo local e estadual. Não havia qualquer garantia democrática. E,
nessa atmosfera de opressão, ignorância e mandonismo, o Município viveu quatro décadas, sem
recurso, sem liberdade, sem progresso, sem autonomia338.
Essa situação marcou a Primeira República na chamada “política dos governadores”,
segundo o qual o jogo político era sustentado pela alternância do poder federal entre
políticos paulistas ou mineiros representantes das oligarquias dos respectivos Estados. A
regra para a criação de município, então, era dada pelo governo estadual339, que cabia a
concretização dos atos constitutivos do município.
Quanto ao aspecto ligado à divisão territorial do município, os mesmos critérios eram
estabelecidos, pois a regra era o estado-membro determinar a sua organização, tal qual a
criação de município, porque é sabido que
(...) as constituições anteriores a de 1967 não impunham regras ao estado-membro para a criação de
municípios. Coerente com a ortodoxia do federalismo clássico, entendeu-se que o critério de divisão
territorial e administrativa de cada estado era matéria incluída no seu poder de auto-organização: exigiuse apenas dos estados que, uma vez criados, aos municípios se assegurasse a autonomia, que não se
definiu no texto de 91, mas passa a ter o seu conteúdo mínimo demarcado na Constituição, a partir de
1934340.
O federalismo brasileiro instituído pela Constituição de 1891 só previa como entes
estatais a União e o Estado-Membro, seguindo o modelo de federação adotado pelos Estados
Unidos da América, não cabendo ao município, na prática, nenhuma autonomia, apesar de
que o texto constitucional previa que o estado-membro a garantisse.
De qualquer modo, para maior esclarecimento do tema, a divisão territorial seguia as
seguintes etapas: Povoado, Distrito e Cidade ou Vila. A primeira etapa correspondia ao inicio
do aglomerado populacional, sem qualquer importância ou autonomia em relação a outro
município, pois pertencia ao mesmo. A segunda etapa, por sua vez, representava a
existência de um aglomerado urbano mais consistente, com a presença de maior
urbanização, delimitação territorial e a presença de juizado de paz341 que, diferentemente do
Idem, p. 32.
Conforme se pode atestar na Constituição do Estado de Goiás de 1891, em seu Título II, em seu Art. 19, que
dispõe o seguinte: “O poder municipal terá sua séde nas cidades e villas ora existentes e nas que de futuro se
crearem”.
340 BRAZ, P. Tratado de Direito Municipal, op. cit., p. 467.
341 Conforme aponta Petrônio Braz, o Distrito é sede de juizado de paz, que a lei estadual regulamenta. O juiz de
paz, cargo eletivo e remunerado, tem além da competência para celebrar casamentos, o exercício de atribuições
conciliatórias, sem caráter jurisdicional. Cf. BRAZ, P. Manual do Assessor Jurídico do Município Teoria e Prática,
op. cit., p. 86. No período imperial o juiz de paz também era cargo eletivo, cuja eleição se dava na Freguesia ou
em capela curada e, além das atribuições conciliares, suas competências estendiam-se às áreas de natureza
338
339
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período imperial, possuía outras atribuições. Por fim, a última etapa, assim como nos
períodos anteriores já analisados, correspondia à culminância da organização municipal,
com a elevação à categoria de Vila, nomenclatura ainda adotada por alguns estadosmembros ou de Cidade, obtendo sua autonomia política.
A título de explicação, o fato de ainda a categoria de Vila ou a de Cidade ser a sede
de município no período analisado é que esse fenômeno ocorria por causa da grande
liberdade legislativa do estado-membro que, na maior parte da federação brasileira, ainda se
adotava a nomenclatura de Vila para a sede municipal. Essa diversidade de formatos para a
sede de município só será definida com o Decreto-Lei nº 311, de 2 de março de 1938,
dispositivo legal instituído na época da ditadura de Getúlio Vargas durante o “Estado Novo”,
principalmente em seu artigo 3º que estabelece como sede de município a categoria de
Cidade. Assim, a partir desta data e em momento futuro, todos os municípios brasileiros
teriam como sede apenas a categoria de Cidade, com o funcionamento do Legislativo na
Câmara Municipal e do Executivo na Prefeitura Municipal, sendo o aniversário de
emancipação política a data que ocorre a transformação da Vila em Cidade. Mas os
municípios anteriores ao decreto, quando já havia sido criada a Vila, continuam celebrando
seu aniversário de emancipação política a partir desta criação.
No quadro abaixo é explicitado, didaticamente, as informações sobre as
características mais gerais da instituição municipal no período da Primeira República.
Quadro 6 – A instituição municipal no período da Primeira República
CARACTERÍSTICAS GERAIS
Categoria
Criação
Atribuição
Povoado
Iniciativa de particulares
(povo)
Iniciativa do Estado-Membro
Mero núcleo de povoamento
Distrito
Delimitação territorial e sede de
juizado de paz
Vila ou Cidade
Iniciativa do Estado-Membro
Administrativa e política em
teoria
Fonte: Dados coligidos pelo autor e BRAZ, P. Manual do Assessor Jurídico do Município. Campinas:
Servanda, 2008.
A interferência do estado-membro no município será uma constante na evolução
histórica da organização político-administrativa do Brasil, mas aos poucos isso vai sendo
modificado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todos os argumentos levantados, no período colonial, percebe-se que o município
era mais uma extensão da monarquia que um órgão estatal propriamente dito. A
administrativa e policial. Com a proclamação da república e o fim do regime do padroado, ao juizado de paz
coube a celebração de casamentos. Cf. MATHIAS, C. F. Notas para uma história do judiciário no Brasil, op. cit., p.
159.
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administração colonial resumia-se mais em aspectos formais que funcionais, porque a
divisão dos poderes seguia a lógica da representação real em lugares que esta não podia
estar ao mesmo tempo, isto é, de acordo com o entendimento de Caio Prado Júnio, essa
administração era mais de ordem prática que uma divisão que estivesse na essência das
coisas, com uma estrutura formal de ordem local, regional ou geral, cada qual tendo suas
respectivas atribuições e que, muitas vezes, se misturavam.
Os poderes públicos, por exemplo, não eram divididos conforme a atualidade em
Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo que no caso deste último poder, foi verificado que
sua organização seguia aquela mesma lógica, pois a maior parte de sua composição estava
misturada com os outros poderes, inclusive até na dimensão espacial, visto que em nível
municipal, as atribuições executivas, legislativas, financeiras e judiciárias ficavam num
mesmo espaço físico – a Câmara Municipal.
No que se refere à organização municipal, particularmente na criação, divisão
territorial e atribuições, isso também seguia o contexto analisado, vale dizer, que o município
surgia em função de iniciativas da Coroa e, à revelia desta, ainda pela iniciativa dos colonos.
Até a divisão territorial do município correspondia a essa dinâmica, pois a ordem
classificatória era a seguinte: Arraial, Freguesia, Vila e Cidade, sendo que as duas primeiras
categorias eram de iniciativa dos colonos e da Igreja. Já as duas últimas representavam a
sua efetivação com a emancipação política através da instalação da Câmara Municipal.
Assim, a Vila era da iniciativa dos colonos até o século XVIII, depois só podiam ser criadas
pela Coroa portuguesa, da mesma forma que a Cidade. As atribuições municipais, por
conseguinte, eram bastante amplas, passando pela administrativa, política, financeira e
judiciária, que demonstram a grande autonomia do município no período colonial.
Diferentemente, talvez para obtenção de maior controle por parte do Estado recémcriado, percebe-se no Brasil Império que o município terá sua autonomia modificada
enormemente. O objetivo maior era conformar o novo país ao ideal constitucionalista e, por
consequência, a monarquia instalada tinha que, necessariamente, seguir um viés com
participação política mais intensa. A organização dos poderes do Estado imperial fica mais
definida. Por exemplo, o caso da organização do Poder Judiciário é emblemático para se
perceber uma nítida separação dos poderes, com o estabelecimento de uma justiça mais
funcional, apesar da existência anacrônica do Poder Moderador, e o mesmo ocorre com o
aparelho administrativo público, que fica mais profissional.
Com a outorga da Constituição Imperial de 25 de março de 1824, o município é
colocado expressamente no texto constitucional, passando a ser tratado como parte da
estrutura do país. As leis que regulamentam os artigos dessa Constituição destituem o
“status” antes privilegiado do município no período colonial, tornando-o um órgão
meramente administrativo e subordinado às Províncias, principalmente no que tange às
finanças. Da Lei Regulamentar de 1828, passando pelo Ato Adicional nº 16 de 1834, à Lei nº
105, conhecida como a Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1840, todos estes
dispositivos legais deixam clara a pouca autonomia municipal no período analisado.
A partir disso, então, define-se quem tem competência para criar a instituição
municipal, que passa a ser atribuição das Províncias e a divisão territorial do município
segue quase os mesmos padrões do período colonial, contendo as categorias discriminadas
a seguir: Arraial ou Curado, Freguesia, Vila e Cidade. A categoria de Arraial significa o início
de algum povoamento e, ao mesmo tempo, é denominado de Curado em função da Igreja
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Católica, que tem a incumbência de dar legalidade ao povoado, pois é no âmbito de uma
capela que se realiza o registro civil. Com a instalação da Freguesia, ocorre uma maior
urbanização e também delimitação territorial, sendo, inclusive, instalado o juizado de paz. Já
as categorias de Vila e de Cidade, assim como no período colonial, significam a maioridade
do município, com a instalação da Câmara Municipal. Basicamente, a diferença de uma
categoria para a outra se deve ao fato de que na primeira existiam sete vereadores e na
segunda nove.
Na Primeira República, é demonstrando que a conformação do município segue as
reformulações ocorridas no aparelho estatal para a adaptação ao ideal republicano. De
modo que, em nível mais geral, o Estado Imperial passa a se denominar Estados Unidos do
Brasil, as antigas províncias passam a se denominar estados-membros e é criada a figura do
Distrito Federal, cuja sede será a capital do país e que será, ainda, a tradição adotada para
se referir a divisão territorial do município. Assim, a antiga divisão administrativa do Império
será preservada, ao menos nos primeiros tempos da República, havendo poucas alterações,
apesar da divisão administrativa geral passar a ser mais específica, contemplando os níveis
nacional, estadual e municipal.
No que diz respeito aos poderes públicos, estes são mais bem modificados para se
adequar à forma estatal republicana, dividindo-se nos três que atualmente existem no país:
o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. A mudança mais substancial
ocorre com o Poder Judiciário, quando da criação da justiça federal, que passa a ter como
incumbência a prestação jurisdicional no qual uma das partes seja a União.
Quanto à criação, divisão territorial e atribuições do município, como se viu, passam
a ser competência do estado-membro, pois a Constituição Republicana de 1891 apenas
prescreve um artigo para referenciá-lo, cujo teor é deixar como competência estadual
realizar a sua regulação, porque o entendimento majoritário será aquele que vê que a
temática da organização do município é um assunto da organização territorial do estadomembro e não de qualquer outro ente estatal. Portanto, a criação, divisão territorial e
atribuições municipais serão dadas pelo estado-membro em regra, e a divisão territorial
seguirá essa lógica da seguinte maneira: Povoado (que significa o início do povoamento),
Distrito (que terá uma divisão territorial e um juizado de paz, mas com responsabilidades
diversas em relação ao período anterior) e Vila ou Cidade (que corresponde ao início da
maioridade política do município, deixando de fazer parte de um outro). No quesito
atribuições, pelo menos teoricamente, os municípios terão prerrogativas políticas e
administrativas, embora na prática isso não vá ocorrer em função do contexto histórico do
período.
Assim sendo, por causa da grande liberdade legislativa do estado-membro, haverá
grande diversidade de nomenclatura para a sede de município, podendo ter a categoria de
Vila ou de Cidade. No entanto, isso só será definido a partir dos finais da década de 30 do
século XX, com o Decreto-Lei nº 311, de 2 de março de 1938. Tal dispositivo legal põe um
fim nessa imprecisão de nomenclatura para a sede municipal, estabelecendo que seja sede
a categoria de Cidade e a categoria de Vila passa a ser a sede do Distrito.
Finalmente, a análise do município na sua dimensão histórica proporcionada pela
História do Direito, ajuda a entender a importância deste órgão considerado nos dias de hoje
como um ente estatal de terceira categoria, que nos seus primórdios era completamente
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diferente. Enfim, é na discussão da historicidade do município que se pode compreender a
sua grande relevância nos dias atuais.
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OS BACHARÉIS EM DIREITO NA CIDADE DE GOIÁS
E O "PACTO COM O DIABO" (1898-1937)
THIAGO F. SANT‟ANNA
Pós-Doutor em Arte e Cultura Visual pela UFG
Doutor em História pela UnB
Professor da Universidade Federal de Goiás
Obrigo-me, eu te sirvo, eu te secundo,
Aqui, em tudo, sem descanso ou paz;
No encontro nosso, no outro mundo,
O mesmo para mim farás.
Mefistófeles firma o pacto com Fausto342
INTRODUÇÃO343
A história analisada no presente capítulo trata do seguinte objeto: a constituição de
sujeitos bacharéis em Direito a partir de um dispositivo tecnológico forjador de regras
sociais, articulada à experiência de educação jurídica em Goiás no início do século XX.
Dividimos o texto em três partes: primeiramente, destacamos o quadro histórico construído
pela historiografia da educação jurídica em Goiás, marcada pelos textos de Castro e de
Bretas; em segundo, percorremos o mundo dos bacharéis através de suas expressões
quantitativas e dos significados atribuídos aos rituais de colação de grau; por último,
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia. (Tradução do original alemão de Jenny Klabin Segall). 4
ed. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 167.
343 Este capítulo é uma produção resultante das atividades dos seguintes projetos de pesquisa: “História da
Faculdade de Direito na Cidade de Goiás (1898-1937)”, registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
da Universidade Federal de Goiás, e executado no Campus Cidade de Goiás; e “Os Arquivos Vilaboenses e a
História da Faculdade de Direito na cidade de Goiás: História, Memória e Documentação (1898-1937)”, projeto
aprovado e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), por meio do Edital
Universal n. 05/2012. As atividades desenvolvidas no projeto contaram com o trabalho da Professora Margareth
Arbués, professora do curso de Direito do Campus Cidade de Goiás/UFG. A investigação nos arquivos contou com
o trabalho de pesquisa de Diego Franco Nunes, acadêmico do curso de graduação em Direito, participante do
Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica – Ações Afirmativas (PIVIC-AF); de Quéren dos Passos
Freire, acadêmica do curso de graduação em Direito, participante do Programa Institucional Voluntário de
Iniciação Científica; de Vinícius Vieira, acadêmico do curso de graduação em Direito, todos do Campus Cidade de
Goiás/UFG de Kamilly Cordeiro, acadêmica do curso de graduação em Direito do Centro Universitário UniAnhanguera; e da Profa. Dnda. Rafaela Sudário, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura
Visual da Faculdade de Artes Visuais/UFG.
342
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analisamos dois discursos proferidos pelo Professor Sebastião Fleury Curado na colação de
grau dos bacharéis em Direito em 1906 e em 1925, a fim de descrever relações e regras
sociais emanadas de um “pacto” entre os bacharéis e alguns segmentos da sociedade
goiana. A operação metodológica singular, aqui, é construída, estrategicamente, ao longo do
trabalho com as fontes passíveis de nos fazerem recorrer ao conceito de “pacto com o
diabo”, do clássico Fausto, de Goethe.
UMA HISTÓRIA DA “ADVOCACIA DA ROÇA”
Estado longínquo, sem meios de fácil comunicação, desde os primórdios da República, após a
organização de sua magistratura, com o aproveitamento dos membros respectivos, então existentes,
Goiaz vinha lutando sempre com a falta de bacharéis para o provimento regular dos cargos judiciários.
Afastados, assim, pela distância, dos centros de maior cultura do País, os goianos sentiam-se sempre
em dificuldades para continuar, fóra do Estado, os estudos aqui encetados, tornando-se o diploma
científico um privilégio dos favorecidos da fortuna, dos bafejados da sorte. Por outro lado, o próprio
Estado sofria as consequências decorrentes da impossibilidade de ver seus filhos aptos ao exercício
das profissões liberais ou técnicas, em tôda a longa faixa do seu território. O pequeníssimo número de
moços que daqui se abalavam na conquista dos cursos superiores, deixavam, ao término de seus
estudos, seduzir-se pelo encanto e confôrto dos centros maiores e por lá ficavam. Os que voltavam à
terra natal vinham acalentando mais altas aspirações e não se sentiam atraídos pela simples
advocacia da roça, promotoria e mesmo pela judicatura. Ingressavam na política ou na alta
administração. O resultado é que muitas comarcas ficavam desprovidas de juízes, e todos os cargos
judiciários e do ministério público eram exercidos por leigos, com grave prejuízo para a administração
da justiça344.
As palavras do conhecido Dr. José Xavier de Almeida, então à frente da pasta do
Interior e Justiça na administração do Vice-Presidente da Província de Goiás Bernardo
Antônio de Faria Albernaz, e desejoso de ver o desenvolvimento das “letras jurídicas”, o
“provimento regular dos cargos judiciários” e a prática da “simples advocacia da roça” no
Estado de Goiás, foram parte de um conjunto de esforços – compreensíveis diante da fuga
das jovens inteligências – voltados para construir condições que resultariam na criação do
primeiro estabelecimento de ensino superior de Goiás. Doravante, os esforços de Xavier de
Almeida para concretizar a primeira instituição de ensino superior em Goiás desdobraram-se
em 5 etapas, tratadas pela historiografia goiana que abarcava o ensino jurídico: a Academia
de Direito de Goiaz (1903-1909), a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais (19161920), a Faculdade de Direito de Goiaz (1921-1925), que inaugurava a 1ª fase, a Escola de
Direito de Goiaz (1921-1937) e a Faculdade de Direito de Goiaz (1931-1946), que
inaugurava a 2ª fase.
Vale ressaltar que, longe de ser uma mera cronologia institucional, a historiografia do
ensino jurídico em Goiás 345 ancorou-se no estudo das correlações de forças políticas. Os
debates e encaminhamentos em torno do funcionamento da experiência de educação
Palavras de José Xavier de Almeida apud CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz.
Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1946, p. 17-18.
345 Discorreremos a partir de duas obras representativas dessa historiografia. A obra de Genesco Bretas
representa um compêndio de história da educação por meio da qual o autor descreve o funcionamento da
educação superior em conjunto com todo o sistema de educação em geral de Goiás. A obra de Abel de Castro
descreve a história dos institutos jurídicos de Goiás associado a uma história biográfica. Cf.: BRETAS, Genesco.
História da Instrução Pública em Goiás. Goiânia: Coleção Documentos Goianos, nº 21, Cegraf/UFG, 1991.
CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz. Goiânia: Departamento Estadual de Cultura,
1946.
344
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jurídica na Cidade de Goiás foram presididos por conflitos políticos: alguns estabelecidos
entre personalidades representantes de duas famílias que exerciam o poder local como a
dos Bulhões e a dos Xavier de Almeida, no caso da Academia de Direito; outros conflitos se
deram pela indisposição entre direção e colegiado de professores, no caso da Faculdade
Livre de Ciências Jurídicas e Sociais.
Instalada em 1903, a Academia de Direito já provocava expectativas nos discursos
das autoridades, desde quando a lei nº 186, de 13 de agosto de 1898, sancionou, em tese, a
instituição do curso jurídico em Goiás. “Daqui a alguns anos o Govêrno encontrará na fina
flor da mocidade goiana os bacharéis necessários para o preenchimento dos cargos de
judicatura e do ministério público”346. Estas palavras, que Xavier de Almeida registrou em
seu discurso de instalação da Academia, em 1903, quando já era Presidente do Estado,
celebravam um ritual de cumprimento de expectativas daquela juventude pertencente a
grupos privilegiados que aspiravam galgar espaços de trabalho no Estado, sem deixar de
atender a interesses externos, isto é, para além das fronteiras do Brasil, já que, segundo o
próprio presidente,
nenhum govêrno, especialmente da América do Sul, deve perder de vista a necessidade de constituir o
poder judiciário em condições de inspirar a mais absoluta confiança ao capital estrangeiro, porque
êste há de ser sem dúvida o grande propulsor do progresso econômico nos países novos, ainda sem
organização industrial347.
Alinhavado aos interesses imperialistas herdeiros do movimento internacional que
na Europa, a Inglaterra e a França promoviam – seguidas pela Alemanha e pela Itália –, o
imaginário dos que aqui, em Goiás, conduziam as políticas de criação de curso jurídico,
associavam progresso e educação jurídica. A submissão ao capital internacional que
estabelecia uma correlação de forças na experiência de educação jurídica em Goiás – esta
educação compreendida como um mecanismo socialmente diferenciador eficaz – dava o
tom e o ritmo da melodia. No entanto, o descompasso destoava quando a cultura de
educação jurídica, aqui em gestação, não tinha ainda sido capaz de arrebanhar quadros
discentes quantitativos ao lado das dificuldades financeiras pelas quais o Estado alegava
passar. Ao lado da precariedade das finanças e do baixo número de alunos frequentes na
Academia, o Presidente Gouvea expediu o Decreto nº 2.581, de 18 de dezembro de 1909
que fechou provisoriamente a Academia pelas seguintes causas: havia grandes despesas
com a Academia, a situação do Estado era precária e não havia um só aluno novo
matriculado. Nenhum destes argumentos, todavia, convenceu os descontentes que
acreditavam na possibilidade de manter a Academia funcionando com o corte de algumas
pequenas despesas e com a falta de alunos. E nada impediu que, em seguida, o Presidente
expedisse a Lei nº 362, de 30 de junho de 1910 que revogava os artigos que se referiam à
criação e à organização da Academia. Com isso, o fechamento deixava de ser provisório para
se tornar definitivo.
O fechamento da Academia de Direito em 1909 não foi, porém, recebido com
tranquilidade pelos políticos pertencentes à família dos Xavier de Almeida, pois estes, “não
Palavras de José Xavier de Almeida apud CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz,
op. cit., p. 21.
347 Idem, p. 25-26.
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perdoando ao governo da época o ato de seu fechamento”348, não perdiam a oportunidade
de reivindicar do Governo o restabelecimento da instituição de ensino jurídico de Goiás ou a
criação de outro congênere, ação para cujo sustento o governo alegava estar desprovido
financeiramente.
Tanto Bretas quanto Castro, enquanto historiadores representativos dessa
historiografia da educação goiana, localizaram sinais desta correlação de forças políticas
que presidiram a história da educação jurídica em Goiás, para além do cenário político
partidário-familiocrata. Sob um tom descritivo-positivista, os dois historiadores deram
visibilidade para os movimentos emanados da imprensa, da Igreja, e grupos sociais
diretamente vinculados ao mundo judiciário. Este movimento liderado por Luís do Couto, exjuiz de Direito de Catalão, e composto por Clóvis Esselin, Jovelino de Campos, Claro de
Godoy, Moacyr de Morais, João Coutinho e Celenêo de Araújo, com o apoio da imprensa, da
Igreja e de parte considerável da comunidade vilaboense, lançou, em 1916, a defesa da
retomada dos planos da Academia349. O movimento, criado em torno da retomada da
experiência de educação jurídica em Goiás naqueles anos, agradaria a mocidade da época,
“inteligentes e cultos, cheios de vida e esperança, ocupando cargos inferiores da
administração pública, sem poderem seguir, em outros centros, um curso superior, por falta
de meios pecuniários”350. A ocupação de cargos públicos era vista como uma possibilidade
de ascensão social para alguns segmentos sociais, tanto com a inserção na administração
pública quanto na construção de uma carreira política.
Daí, os encaminhamentos foram levados ao Secretário da Instrução, Terras e Obras
Públicas, Agenor Alves de Castro, que se comprometeu em apoiar a causa. E o pacto foi
firmado pela oferta da direção da futura faculdade a este que aceitou e assumiu a liderança
do movimento. Seu irmão, João Alves de Castro, estava prestes a assumir o governo 351.
Ancorado em uma perspectiva de história dos “grandes personagens”, Bretas descreve o
corpo administrativo e docente da faculdade, e assinala a presença de certa familiocracia no
enredo dessa história, constituído pelos seguintes nomes: Diretor – Agenor Alves de Castro;
Docentes – Luís do Couto, Augusto Jungmann, Emílio Póvoa, Benjamin Vieira, Sebastião
Fleury Curado, Mário Caiado, Maurílio Fleury, Antônio Pereira de Abreu e Alípio Silva.
Lançadas as bases para a fundação, agora da Faculdade, o desafio seguinte seria o
de associar sua história à história original da Academia de Direito. Em 1916, a Faculdade foi
instalada e seus estatutos aprovados. Bretas destacou, em seu estudo, o formato idêntico da
Faculdade Livre de Direito em relação à antiga Academia de Direito de 1903, com um curso
de apenas três anos352. No mesmo mês de instalação, a Faculdade alçou reconhecimento
pelo Governo através da Lei nº 531, de 18 de Julho de 1916, equiparando, dessa forma, o
seu curso ao da antiga Academia de Direito. Todavia, essa invenção de tradição, que
construía um presente e forjava “uma continuidade em relação ao passado” 353, vinha a
beneficiar um quantitativo inexpressivo de alunos, haja vista que sua primeira turma era
formada por sete alunos e as turmas seguintes por dois ou três alunos. Em um momento
em que as primeiras experiências de escolarização de massa ocorriam no plano primário e
BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 521.
Idem, p. 521-522.
350 CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz, op. cit., p. 68.
351 BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 522.
352 Ibidem.
353 HOBSBAWM, Eric. Introdução. A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (Orgs.). A
Invenção das Tradições. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 09.
348
349
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secundário do ensino elementar354. Essa rarefação, no entanto, não excluiu a Faculdade de
receber subvenção do Estado. Em 1918, o Governo concedeu uma subvenção anual de seis
contos de réis a serem pagos até que a primeira turma completasse o curso, com pompas e
reconhecimento social.
A primeira turma da faculdade recebeu grau em dezembro de 1920, em solenidade condigna, a que
compareceram todas as autoridades maiores da Capital e grande número de pessoas pertencentes às
principais famílias da sociedade. Nesse dia receberam diploma de bacharel em direito os seguintes:
José Honorato da Silva e Souza, Jovelino de Campos, Claro Augusto de Godoy, Heitor de Morais Fleury,
Moacyr José de Morais, Clóvis Esselin e Lupicínio de Araújo355.
Ao lado das autoridades políticas e dos representantes do poder local familiocrata,
outros personagens – também “grandes homens” – encenavam seus papéis na história
positivista de Bretas, quando sinalizou para a crise enfrentada pela Faculdade, nos anos
1920, devido aos conflitos existentes entre o Diretor e a Congregação que geraram o
abandono da Faculdade pelos docentes. Os dissidentes, com suas fileiras engrossadas pelo
grande número de docentes, objetivavam restabelecer a antiga Academia, mantida pelo
Estado. Os conflitos ganharam contornos políticos amplos quando João Alves de Castro
deixou o governo e foi sucedido por Eugênio Jardim, que passou a apoiar o movimento em
favor de uma faculdade oficial, formada como corpo docente, cujos membros também eram
do Tribunal de Justiça. Nesse momento, Jardim sancionou a lei nº 696:
a) O Governo é autorizado a subvencionar uma Faculdade Livre de Direito; b) São válidos os diplomas
de bacharel expedidos pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais; c) Podem matricular-se
nos respectivos anos os acadêmicos que queiram transferir-se daquela para a nova Faculdade Livre de
Direito; d) O governo manterá na nova faculdade um fiscal de sua livre nomeação; e) O Diretor será
nomeado pela respectiva Congregação; f) A subvenção a que se refere o artigo 1º. poderá ser de até
12:000$000 anuais356.
As relações entre a Faculdade Livre de Direito e a Escola de Direito foram marcadas
por contradições. Em 10 anos, provavelmente entre 1921 e 1931, instalou-se uma espécie
de concorrência entre ambas. De um lado, a Escola foi reconhecida, após a inspeção do
Conselho Nacional de Ensino e regularização da instituição, e equiparada às outras
faculdades existentes no país. A Faculdade, naquele momento, porém, teve o seu pedido de
equiparação indeferido. Em seguida, contraditoriamente, abriu-se caminho para uma
discussão acerca da possível fusão das duas instituições de ensino, já que, aos olhos do
Conselho, “não haveria campo para a existência de duas faculdades reconhecidas”357. Ao
lado dessa constatação, outro empecilho se fazia presente para a fusão, proposta pela
Escola à Faculdade:
A Congregação [da Faculdade], julgando-se ofendida, responde então, em termos veementes, que
eram inaceitáveis as propostas do diretor da Escola e do Inspetor, pois, aceitá-las, seria humilhante
SANT‟ANNA, Thiago Fernando. Gênero, história e educação: a experiência de escolarização de meninas e
meninos na Província de Goiás (1827-1889). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em
História. Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2010.
355 BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 523.
356 Ibidem.
357 Idem, p. 525.
354
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para a Faculdade oficial do Estado, herdeira natural das tradições da extinta Academia de Direito. A
reunião se desfaz em cima hostil, ficando o dito pelo não dito358.
Os significados atribuídos à “fusão” revelam-nos a tentativa discursiva de se inventar
um passado, forjando sua conexão com o presente para, a partir daí, estabelecer práticas,
símbolos, valores, normas de comportamento norteadoras das relações ali tecidas359. O
passado seria a história da Academia de Direito e o presente, a experiência de educação
jurídica da Faculdade de Direito. A Escola de Direito seria uma descontinuidade!
Somente quatro anos depois, em 1934, quando promulgada a nova constituição
brasileira e empossado o governo constitucional, a Faculdade voltou a pleitear a equiparação
tendo, aí, logrado sucesso. As festividades na cidade ficaram “por conta do Centro
Acadêmico da Faculdade”360. Foi então que a data da equiparação da Faculdade Livre de
Direito pelo Decreto nº 809, de 11 de maio de 1936, assinado por Getúlio Vargas e Gustavo
Capanema, tornou-se a data magna do “Centro Acadêmico 11 de Maio”, intitulado ao longo
dos anos como CAXIM. Mas essa história, a partir das perspectivas dos estudantes, a
historiografia positivista não soube contar. Ousamos, por ora, apenas adentrar nos dados
empíricos fornecidos por essa historiografia a fim de problematizar as relações dos
bacharéis com os institutos jurídicos de Goiás.
CARTOGRAFIA DA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO JURÍDICA EM GOIÁS
Ao nascer do sol, sob o regime político republicano, a trajetória cronológica e
histórica da experiência de educação jurídica na Cidade de Goiás acontecia em meio à
inauguração de uma fase de novas demandas para a sociedade goiana, como a do
transporte, a da economia e a do ensino. Esperava-se a criação da estrada de ferro que
partisse do sul e chegasse à capital, assim como também havia expectativas quanto ao
desenvolvimento da economia através da exportação dos produtos da lavoura e da pecuária,
como o arroz, o feijão, o algodão, o açúcar, o café, o fumo, o toucinho e a carne. Eram
esforços que poderiam vir a reduzir a disparidade entre Goiás e os “centros” do Brasil, no que
se refere a um tipo de desenvolvimento compreendido como progresso social e econômico.
Em suma, aspirava-se que a advocacia ali praticada não fosse mais uma “advocacia da
roça”!
Em Goiás, o ensino, mola propulsora do progresso, dividia-se em cinco categorias:
primário, normal, secundário, profissional ou técnico e superior. Enquanto ao longo do século
XIX, houve uma expansão nítida do ensino primário e secundário na antiga Província de
Goiás, ao longo do século XX, somaram-se à experiência de atendimento escolar as
iniciativas em relação ao ensino superior. Que expectativas geraram o curso de Direito em
Goiás?
Não há como negar que a formação em Direito no Estado de Goiás coadunava com
as expectativas das outras instituições de ensino jurídico no Brasil que, segundo Machado,
“privilegiou a formação política, em lugar de uma formação exclusivamente jurídica” 361. Em
São Paulo,
Ibidem.
HOBSBAWM, Eric. Introdução. A invenção das tradições, op. cit., p. 09.
360 BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 525.
361 MACHADO, A. A. Ensino jurídico e mudança social. Franca: Unesp, 2005, p. 96.
358
359
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os bacharéis foram recrutados para os mais importantes cargos do Estado, e suas carreiras
profissionais se expandiram pelas diversas instâncias do legislativo e do executivo – como senadores,
deputados, presidentes de conselho e presidentes de província, diplomatas etc – e, em menor escala,
pela magistratura e pelo magistério362.
No entanto, já era de praxe que os jovens goianos que demonstrassem interesse e
recursos para cursar o ensino superior tivessem que se dirigir a outros Estados como São
Paulo e Rio de Janeiro, já providos de suas faculdades. Segundo Machado, no Brasil, os
cursos jurídicos foram criados como “uma importante medida política”, através da Carta de
Lei promulgada por D. Pedro II, em 11 de Agosto de 1827 “(meses antes da lei de outubro
de 1827 que estabelecia um sistema nacional de ensino primário)” e efetivamente
instalados em 1828; “um no Convento de São Francisco em São Paulo, o outro, no Mosteiro
de São Bento em Olinda”363. Segundo o autor,
A instalação de cursos jurídicos no Brasil, em 1827, logo após a Proclamação da Independência,
dentro do processo de emancipação política do País, deu-se como parte das exigências culturais e
ideológicas de um Estado Nacional em formação. [...] As escolas de Direito, lembra Sérgio Adorno,
foram realmente criadas para atender às necessidades da burocracia de um Estado nacional em
emergência364.
Nesse período, a formação superior esteve assentada na política de privilégios que
alguns grupos detinham em relação ao restante da sociedade, pois somente os jovens
pertencentes às famílias bem abastadas podiam realmente cursar uma faculdade distante
de sua terra natal. Daí, a criação da Academia de Direito ter-se revelado, pelo menos para
alguns, uma possibilidade de encurtamento da distância entre os jovens e a formação no
ensino superior. Representantes de famílias que exerciam o poder político local, como os
Bulhões, os Caiado, os Xavier de Almeida, os Natal e Silva, os Alves de Castro, os Jardim, os
Fleury Curado, os Albernaz, os Gouveia, os Rocha Lima, enxergaram na experiência de
educação jurídica proporcionada pela Academia de Direito um passo para a formação dos
seus quadros político-administrativos ou, na pior das hipóteses, podiam ser nomeados
professores do Liceu.
Ao lado do quantitativo inexpressivo nos primeiros anos, tão logo se pensou na
criação da Academia de Direito, surgiu outro impasse: a localização. Como não havia na
capital do Estado prédios suficientes para a instalação das dependências da faculdade, essa
lacuna atiçou as relações de poder, emanadas dos grupos políticos que ali existiam. De um
lado, havia os Bulhões que sustentavam a ideia de que a Escola Normal e a Academia de
Direito deveriam possuir prédios próprios para o seu funcionamento e não juntar-se ao do
Liceu, experiência frustrante em 1884, quando foi aglutinada a Escola Normal ao Liceu, nas
dependências deste. Por outro lado, Xavier de Almeida era a favor de aglutinar os três
estabelecimentos em um só. A proposta de Xavier de Almeida, que desejava ver criada a
Academia de Direito no dia 24 de fevereiro do ano de 1899, assim se resumia:
ADORNO apud MACHADO, A. A. Ensino jurídico e mudança social, op. cit., p. 96.
MACHADO, A. A. Ensino jurídico e mudança social, op. cit., p. 95.
364 Idem, p. 95-96.
362
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O prédio onde sempre funcionou o Lyceu e para onde eu penso que elle deve voltar comportará, com
pequenas despesas de adaptação, alem do Lyceu, a Escola Normal e a Academia de Direito. A
direcção e o expediente da Escola Normal e da Academia de Direito poderão ficar a cargo dos
mesmos funcionários que actualmente se incumbem desses serviços, em relação ao Lyceu. As aulas
de língua portuguesa, franceza, mathematicas elementares, historia e geografia e cosmografia do
Lyceu serão communs ao curso da Escola Normal, sem acréscimo algum de despesa. Em relação ao
corpo docente da Academia existe na Capital um grande número de bacharéis, uns magistrados,
outros advogados, que se consagram ao estudo das sciencias jurídicas e que poderão occupar com
muita proficiência o brilho e as cadeiras da Academia de Direito, mediante a remuneração annual de
2:000$000 pra cada um dos lentes365.
O delineamento das duas propostas sinalizava-nos para diferenças de perspectivas:
por um lado, a dos Bulhões, pautada pela experiência de governo da Província de Goiás no
passado, e para os quais a descentralização seria um caminho saudável no que tangia a
seus interesses políticos voltados para fomentar oposições políticas ao governo; do outro
lado, a perspectiva dos Xavier de Almeida, que se encontravam à frente do governo do
Estado e estavam preocupados com a centralização, sugestiva de uma política de
enxugamento dos gastos públicos, já que desejavam angariar realizações significativas
concluídas, porém, sem maior comprometimento do erário público, na educação superior.
Promover o progresso social, sem maiores sacrifícios humanos, não era prática que estava
fora de alcance para os Xavier de Almeida, nos oitocentos, com a consolidação de uma
sociedade capitalista, sem contar que também não havia se desvencilhado dos jogos de
poder que presidiam práticas e representações ali acionadas, sobretudo se começarmos a
observar, com lupa, a soma de, provavelmente 244 bacharéis formados pela experiência de
educação jurídica nas terras goianas, de 1905 a 1946, conforme tabela abaixo.
Os números apresentados eram aparentemente mínimos se comparados a uma
sociedade cujo quantitativo populacional de todo o Estado somava em torno de 255.284
habitantes em 1900, passando por 511.919 habitantes em 1920366 e chegando a
1.662.000 habitantes em 1958, dentro de um contingente de 62.725.000 almas no
Brasil367.
BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 462.
PALACIN, Luís; MORAES, Maria Augusta de Sant‟Anna. História de Goiás. Goiânia: UCG, 2001, p. 93.
367 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estimativas da população – 1851-1960 [on line].
Disponível em: <www.ibge.gov.br/seculoxx/arquivos.../populacao_estimada.shtm>. Acesso em: 16 nov. 2012.
365
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Tabela 1. Quantitativo de bacharéis que concluíram o curso de direito em Goiás (1905/1946)
INSTITUTO
ANO
Academia de Direito de Goiaz
Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais
Escola de Direito de Goiaz
Primeira Fase
Faculdade de Direito de Goiaz
Segunda Fase
BACHARÉIS
1905
16
1906
5
1908
2
1909
3
TOTAL
26
1920
7
TOTAL
7
1924
6
1925
3
1927
6
1928
4
1929
4
1930
2
1932
5
1936
4
TOTAL
34
1921
3
1924
2
1925
10
Sub-Total
15
1931
6
1932
13
1933
6
1936
10
1937
15
1938
10
1939
2
1940
14
1941
11
1942
8
1943
6
1944
22
1945
12
1946
27
Sub-Total
162
TOTAL
177
244
TOTAL GERAL
Fonte: CASTRO, A. S. Origem dos Institutos Jurídicos de Goiaz. Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1946.
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No entanto, isso não nos impede de reconhecer os significativos esforços
empreendidos aos olhos de uma sociedade que ainda não havia vivenciado a formação, em
massa, no ensino superior. E talvez não pudéssemos deixar de reconhecer o mérito naquele
quantitativo de discentes que se tornaram bacharéis em Direito nas terras goianas, que
raramente superavam 10 pessoas ao ano, isto é, menos de 1% da população do Estado.
O registro das festividades da primeira formatura, no entanto, sugere o tom de
festividade que abarcava o acontecimento da colação de grau. A historiografia aqui a ser
interpelada desenhava imagens sugestivas de uma leitura harmoniosa. Castro assim
descreve a colação de grau da primeira turma de Direito, em 1905:
Os moços da Academia, cheios de justificado júbilo, ingressam no ano de sua formatura. As famílias
dos bacharelandos aguardam com indiscritivel entusiasmo o grande dia da colação de grau aos seus
entes queridos – os primeiros laureados em Direito pelo único estabelecimento de ensino superior do
Brasil Central! Redobram-se os preparativos, afim de que a solenidade se revista do máximo
brilhantismo. E o Govêrno do Estado prestigia o movimento, ainda cedo expedindo providências no
sentido de que sejam os futuros bacharéis encaminhados ao preenchimento dos inúmeros claros
então existentes no setor da advocacia, bem como na judicatura e no ministério público. [...] A 16 de
Dezembro de 1905, ainda no salão de honra do Liceu de Goiaz, às treze horas, colavam grau os
primeiros dezesseis bacharéis goianos. Pela manhã, foi celebrada solene missa na então Catedral da
Bôa-Morte, em ação de graças pelo término do curso, a que assistiu tôda a turma, sendo oficiante o
saudoso Padre Joaquim Confúcio de Amorim, Vigário da Capital.
O edifício do Liceu apresentava aspecto verdadeiramente festivo. No salão nobre, ricamente
ornamentado, destacava-se o quadro de formatura dos bacharelando, à direita do qual se encontrava
um com a fotografia do Diretor da Academia, Dr. João Alves de Castro, e à esquerda outro com a
fotografia do fundador, Dr. José Xavier de Almeida. [...] A solenidade foi extraordinariamente
concorrida, notando-se grande número de famílias das mais distintas, representantes do Superior
Tribunal de Justiça, do Senado, da Câmara dos Deputados e demais autoridades com exercício na
Capital do Estado. [...] À noite, houve um suntuoso baile no edifício da Academia, ao qual esteve
presente o que havia de mais expressivo na sociedade goiana368.
Tudo indicava uma perfeita harmonia de relações entre bacharéis, famílias e
representantes do governo. Bretas não desfaz, anos depois, essa tessitura quando pinta o
quadro da primeira turma que “colou grau com solenidade festiva e elegante, com quadro de
formatura, paraninfo, discursos, presença da congregação inteira e de todas as autoridades
da Capital, banda de música e alegria geral na cidade”369, ao passo que a segunda turma,
em 1906, apesar da solenidade, “não teve o brilho da primeira”, mantendo, contudo, “a
seriedade do ato”370. A natureza exuberante das festividades, no entanto, não consegue
desviar os nossos olhares para os registros quantitativos descritos na Tabela 1. Até porque
nem sempre havia “glórias”, já que a 3ª turma, por ser pequena, “dispensou-se a solenidade
de formatura”, enquanto a 4ª turma, os concluintes, “receberam grau também em ato
simples”. A última solenidade de colação de grau da turma antes do fechamento da
Academia “não teve a aura de solenidade”, com 3 concluintes apenas, em “um ato simples e
triste, com cheiro de velório, e sem oradores”371.
Mas, em que pese o caráter socialmente reconhecido que abarcava o acontecimento
da colação de grau, alguns dados são interessantes quando observamos que havia 16
CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz, op. cit., p. 35-38.
BRETAS, Genesco. História da Instrução Pública em Goiás, op. cit., p. 467.
370 Ibidem.
371 Idem, p. 466.
368
369
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bacharéis da Academia de Direito, em 1906, número que chegou a 15 bacharéis em 1937,
passando para 14 em 1940, 22 em 1944 e 27 em 1946. A demanda reprimida expressa no
quantitativo alto com a primeira colação de grau somente teria sido superada quando
acontecimentos como a transferência da capital e a 2ª Grande Guerra estimularam a busca
pela formação universitária, talvez pela necessidade de preparar melhor os jovens para a
conquista de algum espaço de trabalho interessante na nova capital, ou de protegê-los
diante da possibilidade de serem alistados e enviados aos campos de batalha na Europa,
haja vista a idade escolar variada dos alunos, que tinham entre 20 e 38 anos. Teriam sido
mobilizados interesses sociais no incentivo à formação bacharelesca de forma a exercer
algum trabalho prestimoso na nova capital ou evitar o caminho para a Guerra? Que sentidos
puderam ser mobilizados, nessa direção, no ritual de colação de grau dos bacharéis?
Perguntas sugestivas em pesquisas futuras!
Interessante registrar o movimento, o discurso harmonizador e dentro da ordem, que
marcavam o tom da colação de grau sob um histórico de lutas e correlações de forças que
ameaçava a continuidade dos institutos jurídicos em Goiás. Que estratégias poderiam ter
sido construídas para fazer do ritual de colação de grau um belo desenho renascentista,
dotado de harmonia nas formas, no mundo moderno?
O RITUAL DA COLAÇÃO DE GRAU E O PACTO MEFISTOFÉLICO
Depois de percorrer os discursos historiográfico e quantitativo de bacharéis, vamos,
em outro sentido, deslocar nossos olhares para detalhes, para as glórias recebidas pelos
discentes que não tiveram muitos colegas presentes na colação de formatura como os cinco
bacharéis de 2ª turma em 1906 e os dez bacharéis da turma de 1925. Em comum entre
eles: o paraninfo, o professor Sebastião Fleury Curado.
Envaidecido à ocasião por pronunciar, como paraninfo, um discurso aos
bacharelandos da 2ª turma do curso jurídico da Academia de Direito de Goiás em 16 de
dezembro de 1906, Sebastião Fleury Curado (1864-1944) manifestou sua alegria diante do
reconhecimento e gratidão e confiança nele depositados por seus alunos. Bacharelou-se em
Direito aos 22 anos, em 1886, tendo sido um dos deputados mais jovens da antiga capital,
nomeado Procurador da República em 1899 (cargo exercido por ele por mais de 20 anos),
além de colaborador de texto em jornais, Curado foi lente da Academia de Direito em 1906
e, depois, foi um dos fundadores da Faculdade Livre de Ciências Sociais e Jurídicas 372. Seu
busto, nos dias de hoje, ladeia o de Cora Coralina, na ponte que leva à casa da poetisa, na
Cidade de Goiás.
As luzes que clareavam aquela noite de 1906, quando colava grau a 2ª turma de
bacharéis em Direito na Cidade de Goiás, também adentravam recintos fechados que
iluminavam os acontecimentos sociais extraordinários, como a colação de grau dos futuros
juristas. O tom revelador adotado no texto foi de exaltação da ciência do Direito, do
comprometimento com a justiça e do papel dos futuros juristas diante do cenário nada
promissor do seu Estado, já que “a responsabilidade que vos pesa sobre os ombros não é
pequena”373. A narrativa não deixou de ser, vale destacar, recheada de citações de filósofos
CASTRO, Abel Soares de. Origem dos Institutos Jurídicos de Goyaz, op. cit., p. 60-62
CURADO, Fleury. Discurso pronunciado na Academia de Direito de Goiás, como paraninfo (2ª Turma de
bacharelandos), em 16 de dezembro de 1906. In: CURADO, Fleury. Memórias Históricas. Goiânia, 1956, p. 323.
372
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do Direito, de ícones da literatura universal, além de relatos da história ocidental. Em suma,
delineavam-se as dêixis discursivas, de que fala Mangueneau 374: um lugar reservado a
alguns grupos sociais (espaço); a noite caindo (tempo); um locutor intelectual, dotado de
considerável erudição apreendida em uma tradição iluminista/universal (quem fala?); um
receptor anônimo que, ora ganhava contornos de bacharel em Direito, ora tomava a forma
incapturável da sociedade em geral (para quem fala?). Imaginemos um triângulo escaleno,
onde as distâncias entre um ponto a outro não se equilibravam, mas que faziam a prática de
discursar na colação de grau, acionada por Fleury Curado, pender entre os acadêmicos e a
sociedade goiana.
No entanto nada confortante teria sido lidar com essa estratégia escalena de
administrar distâncias e gerar proximidades aos olhos do espírito “iluminado” e sensibilizado
de Fleury Curado, diante das palavras por ele utilizadas para emitir imagens menos
promissoras do lugar social desses bacharelandos, o Estado de Goiás. Tão próximo destes,
Goiás era também um Estado discursivamente construído no texto, distante de um futuro
promissor. Qual papel seria atribuído aos futuros juristas na administração dessas
distâncias? O Estado de Goiás era representado discursivamente como “o único estado da
união, que não têm, „trafegado pelo vapor‟, um só palmo de terra ou uma só milha d´água”.
Um Estado que teria regredido “quase cem anos” como “carro que, ao vingar ladeira
íngreme, topa obstáculo inesperado e recua no dôbro do espaço percorrido” 375. Tais imagens
persistiam, doravante, no seu texto, para quem, “lançando a vista pela carta geográfica do
Brasil parece que os outros Estados nos dão as costas”376, pois
nossa vida industrial é nenhuma; o nosso comércio reduzido; as nossas riquezas naturais
desaproveitadas; nossas florestas desapercebidas de trabalho erguem para o céu suas frondes,
esperando a mão do cultivador; os nossos campos oferecem proporções gigantescas para a indústria
pastoril; o nosso subsolo, prenhe de riquezas, dorme o sono secular da natureza, faiscado apenas na
epiderme pela mão colonial377.
Tais argumentos sinalizavam para como o Estado de Goiás estava distante e
desproporcional de alguns centros do Brasil. Curado construía em seu discurso tanto a
pergunta quanto a resposta: “que falta à nossa terra e ao nosso povo? Muito: quase tudo” 378.
Suas palavras, por fim, condenavam: “o GOIANO tem, pois, de ser vinte vêzes goiano, para
ser uma vez BRASILEIRO e colocar-se ao nível do desenvolvimento material do Brasil” 379. De
certa forma, compreendia-se o tom da fala já dita anteriormente, direcionada aos bacharéis:
“a responsabilidade que vos pesa sôbre os ombros não é pequena”380.
As imagens tecidas no discurso do Professor Curado, assim com as anteriormente
anunciadas pelo Dr. Xavier de Almeida, sinalizam para um Goiás distante do que era
significado como modernidade na Europa desde o século XVIII até o início do século XX,
apreendido por Berman como um “turbilhão” alimentado por inúmeras fontes:
MANGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3 ed. Campinas: Unicamp, 1997, p. 41.
CURADO, Fleury. Discurso pronunciado na Academia de Direito de Goiás, como paraninfo (2ª Turma de
bacharelandos), em 16 de dezembro de 1906, op.cit., p. 330.
376 Idem, p. 331.
377 Ibidem.
378 Idem, p. 330.
379 Idem, p. 331.
380 Idem, p. 332.
374
375
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grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar
que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em
tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera
novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que
penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do
mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de
comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo
pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,
burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder;
movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos,
lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e
instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No
século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vira-ser, vêm a chamar-se “modernização”381.
Desejar o desenvolvimento, sobretudo, tanto das condições materiais quanto das
intelectuais, não era um sonho anacrônico para aquele grupo social. A distância oceânica
que separava a ideia de modernização pensada na Europa entre os séculos XVIII e XX – no
Brasil no século XX – revelava-nos o solo imaginário por meio do qual se assentavam
aquelas imagens, já emanadas do discurso dos viajantes do século XIX382, que tomavam
Goiás como sinônimo de distante, atrasado. O imaginário pode ser tomado aqui no sentido
atribuído por Castoriadis, como a “capacidade elementar e irredutível de evocar uma
imagem”383, segundo a qual se revelava como o elemento que “dá à funcionalidade de cada
sistema institucional sua orientação específica”, que
sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua
singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele,
esse estruturante originário, esse significado-significante central, fonte do que se dá cada vez como
sentido indiscutível e indiscutido, suporte das articulações e das distinções do que importa e do que
não importa, origem do aumento da existência dos objetos de investimento prático, afetivo e
intelectual, individual ou coletivos384.
Mesmo distante dos precursores da modernidade na Europa, grupos sociais no Brasil
já aspiravam um viés de modernização que, segundo Muniz, foi pensado e praticado no final
do século XIX e início do século XX, como
projeto das elites dirigentes cujo propósito maior consistia em impulsionar o Brasil em direção ao
“novo”, à “civilização” ou, como assinala Chalhoub, “no sentido da constituição de uma ordem social
burguesa”. Uma ordem cuja construção processou-se no contexto social da consolidação do
capitalismo, no incremento da vida urbana, que oferecia novas alternativas de convivência social, na
reorganização das vivências familiares e doméstica, do tempo e das atividades femininas. Enfim, um
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 16.
382 RIBEIRO, Paulo Rodrigues. Sombras no silêncio da noite: imagens da mulher goiana no século XIX. In:
RIBEIRO, Paulo Rodrigues; FAYAD, N. Chaul (Orgs.). Goiás. Identidade, paisagem e tradição. Goiânia: UCG, 2001.
383 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução de Guy Renaud.Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p. 154.
384 Idem, p. 175.
381
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conjunto de transformações significativas que responderiam pela instauração de um novo estilo de
vida, o estilo burguês385.
Entre proximidade e distâncias, os 19 anos que separavam o discurso de 1906 do de
1925, proferidos por Fleury Curado aos formandos em Direito na Cidade de Goiás não teria
abandonado imagens pertencentes ao imaginário da modernidade. Mesmo distantes
cronologicamente quase dois decênios, os acontecimentos, resultantes da primeira
experiência, são um registro de suas “memórias históricas” de 1925, munidos de
“inolvidável honra de haver paraninfado a turma de bacharelandos em 1906”386. O
intelectual erudito, diria também, “moderno” – pois acreditava na transformação das
estruturas da vida social a partir da reunião de recursos diversos (materiais, técnicos e
espirituais) – ainda estava convicto das ideias que eram solo para suas ações, pois
reconhecia que
o velho mestre que nos fala é o mesmo idealista de 1906, o mesmo sonhador impenitente a que os
desenganos da vida não desiludiram; o mesmo crente do Direito, na Justiça, quando a iniquidade
Pompéia por toda a parte, a fôrça material substitui o Direito, a obra da violência alastra-se entre as
nações como nas sociedades, entre os indivíduos387.
Sonhador, Curado se auto-representava como alguém constituído para além das
fragilidades humanas, capaz de atravessar os tempos sob a preservação de uma essência –
a de “mesmo idealista” – e resistir às vicissitudes do tempo. O movimento não foi, porém, na
tessitura das suas palavras, desprovido de cuidados pelo orador, já que suas incursões pela
história reconheciam as transformações pelas quais o mundo teria passado como a grande
guerra, a circulação de novas ideias e novos pensamentos, o crescimento material que ao
lado de um “amanhã desconhecido, que misteriosamente se forja nas dobras do futuro, não
poderá importar [n]a destruição dos valores morais da nossa civilização cristã, [n]o
aniquilamento das virtudes da nossa raça, [n]o apagamento das nossas tradições”388.
O cenário construído discursivamente pelo orador aponta para uma “marcha da
sociedade” com “longas paradas e até violentos retrocessos” que “vem provar quão
complicada e vasta é a obra da evolução humana”389. As representações acionadas por ele
acerca do mundo à sua volta, apontam-nos para um imaginário social que problematiza o
conceito de evolução circulado no discurso do ensino jurídico 20 anos antes e que, conforme
Curado, “ainda pontificavam na sociologia – Spencer, Darwin e Haeckel, com as leis gerais
da evolução e da seleção da espécie”390. Ao projetar imagens do pensamento social em voga
à época, onde “a concepção unilinear da evolução foi substituída pela evolução particular
que preside a cada grupo humano” e o “velho conceito de evolução unilinear está
contraposto o da pluralidade da evolução”391, o orador sinalizava estar ancorado em
perspectivas científicas que já anunciavam a crise do progresso e da evolução, adotando
MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. "O Império, o piano e o ensino da “miserável música” em Minas Gerais do
século XIX". In: COSTA, Cléria Botêlho; MACHADO, Maria Salete Kern (Orgs.). Imaginário e história. Brasília:
Paralelo, 1999, p. 129-130.
386 CURADO, Fleury. Oração proferida na colação de grau da Faculdade de Direito do Estado de Goiás, aos 25 de
dezembro de 1925. In: CURADO, Fleury. Memórias Históricas. Goiânia, 1956, p. 361.
387 Idem, p. 367.
388 Idem, p. 364.
389 Ibidem.
390 Idem, p. 370.
391 Ibidem.
385
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uma perspectiva relativista sobre o mundo, mesmo que isso significasse adotar, sob
suspeita, a categoria “evolução”.
Ao dividir a arena com essas noções que acenavam para uma imagem condenatória
do Estado de Goiás, inserida em um contexto de inúmeras transformações pelas quais
teriam passado o mundo e, diante dos prenúncios de uma crise de paradigmas no
pensamento social que torpedeava o conceito de evolução, Curado sinalizava para luzes
possíveis no fim de um túnel. À noite, as luzes revelavam-se um mecanismo indispensável
para os acontecimentos sociais na Cidade de Goiás, pois possibilitavam encontros, acordos,
festas, ao lado dos que usavam as sombras para se deslocar. À noite, a Cidade de Goiás
apresentava-se tão clara! À noite, talvez algumas distâncias pudessem ser reduzidas ou
outras estendidas; talvez o caráter escaleno do triângulo que situava o locutor-mediador em
um ponto e os bacharéis e a sociedade em outro pudesse ganhar formas mais equiláteras.
Construir políticas de equilíbrios na sociedade enquanto estratégia de redução das
tensões, dos conflitos, enquanto estratégia de superação de entraves e norteamentos de
rumos com futuros mais garantidos demandava acordos, mesmo que tácitos. Acordos
sugerem pactos, cujas palavras, ao se tornarem públicas, libertam-se das prisões da
individualidade e ganham as formas de grades que enlaçam as práticas e tornam possíveis
algumas relações, algumas subjetividades.
As luzes que desenhavam a cena discursiva entre quem fala, para quem fala e de
quem falam, possivelmente, não seriam tão esmaecidas já que clareavam as noites
goianas, apesar de também revelarem lucidez na formação de pactos sociais, de acordos
tácitos entre diversos segmentos sociais, nas ocasiões festivas. As noites eram momentos
propícios para a engenharia dos pactos, em meio a uma comunidade festiva, capaz de
marcar a publicidade dos conteúdos a serem acordados. As falas eram longe de serem falas
ingênuas, imersas na colação de grau que, enquanto uma tecnologia política que constituía
o funcionamento das experiências no social, acenava para a arquitetura de um pacto entre a
parte da sociedade que se incomodava com a posição tangente de Goiás diante do resto do
Brasil, do mundo e dos bacharelandos, sob os quais uma grande “responsabilidade” pesava
“sôbre os ombros”392. Curado acena para os significados desse dispositivo do pacto e dá um
tom substancial a essa responsabilidade, a ponto de reconhecermos seu caráter nobre que,
segundo ele,
Em um país novo, em formação, como o nosso, já revolvido de correntes várias e com ânsia de
progredir, a que não correspondem as peculiaridades da nossa raça nem os nossos antecedentes
históricos, é mister que vos apresteis cuidadosamente para as pugnas da vida prática, armados como
os cavaleiros da idade medieval, quando compareciam à liça, batalhando por sua Dama e seu Rei393.
O deslocamento da noção de evolução, presente no texto de Curado, dotada de tons
mais relativizadores, não significava abandonar o conceito de progresso (parte do acervo do
imaginário da modernização), cuja “ânsia” revelava ainda a busca por alcançar patamares
superiores na cadeia evolutiva das sociedades. Este trajeto em direção ao topo da evolução
social não seria concedido por causa de um movimento natural da sociedade, mas teria que
ser fruto de uma conquista no mercado de trabalho, significado como uma gesta que
CURADO, Fleury. Discurso pronunciado na Academia de Direito de Goiás, como paraninfo (2ª. Turma de
bacharelandos), em 16 de dezembro de 1906, op. cit., p. 323.
393 Ibidem.
392
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constituía os bacharelandos como “cavaleiros da idade medieval”. O texto acena-nos para
uma intertextualidade acerca dos pactos existentes entre o suserano e os nobres cavaleiros
marcados pelo contrato de vassalagem. No caso da história dos bacharelandos, o pacto seria
firmado pelo vínculo entre os vértices do triângulo: entre Curado, os bacharéis e aquele
grupo social que preenchia o salão constituído, provavelmente, de autoridades políticas e
familiares. Assim, o pacto era celebrado pela sua publicização na colação de grau diante
daquele público, à espera da tarefa insana dos bacharéis de retirar Goiás da condição
marginal diante dos grandes centros. Para Curado, os “cavaleiros do Direito” poderiam
empunhar seus “escudos” como “divisas significativas que simbolizam a vossa conduta”394.
Tais representações, assentadas no conhecimento histórico sobre os tempos medievais,
Coroam os bacharelandos ao sinalizar para o que significava esse pacto:
O graduado em Direito tem, hoje, uma alta missão social e uma grave responsabilidade moral e
intelectual. Deve ser versado nos estudos sociológicos, deve lhes conhecer os variados aspectos e
dispor de um cabedal de noções que o habilitem a fixar no Cosmos Geral a situação que ocupa o
Direito; pois tudo se parece ligar por um laço etiológico no mundo, desde o pensamento que surge
neste momento de meus lábios até a luz radiante que se desprende dos olhos das belas damas aqui
presentes395.
A “missão social” atribuída aos bacharelandos publiciza na colação de grau a
existência do dispositivo do pacto social marcador da reiterada “responsabilidade moral e
intelectual” dos bacharelandos, diante da plateia iluminada pelos “olhos das belas damas”
da sociedade goiana, selando, assim, um laço para o enfrentamento dos desafios da vida.
Não se trata, podemos notar, de desafios fáceis, de acordo com a citação que Curado faz de
Goethe, para quem “todo aquêle que não está preparado para o desespêro não está
preparado para a vida”396. Cumprir a missão e entregar-se às lutas da vida, seja por um
espaço no mercado de trabalho (que não parece ser matriz de sentido hegemônica àquela
época), seja pela transformação do Estado de Goiás, revelava-nos uma exigência na
disposição para entregar a vida ao bem da nação. Se não iam à guerra, ficavam na cidade!
Sugestiva a citação do grande autor de literatura universal conhecido pela narrativa
da história do Dr. Fausto que, após fazer um pacto (em suas instâncias privadas – em um
quarto – diga-se de passagem) com Mefistófeles, o diabo, pôde usufruir de inúmeros
poderes durante sua vida na sociedade, sem deixar de revelar-nos também uma tragédia
diante do alto preço a pagar pelo crescimento humano resultante dos poderes emanados do
pacto. O assunto fáustico é aqui intertextualizado, em referência a uma aliança que o
“famigerado doutor”, “frustrado com os resultados dos esforços humanos e cada vez mais
obcecado pelo desejo de conhecimento e de novas descobertas, teria firmado com o diabo
mediante assinatura com o próprio sangue”397. “Podemos, pois, firmar convosco algum
contrato, sem medo de anular-se o pacto?”398, perguntava Fausto a Mefistófeles, “durante a
sua existência terrena (tradicionalmente ao longo de 24 anos), riquezas, prazeres sensuais,
Idem, p. 324.
Ibidem.
396 Idem, p. 335.
397 MAZZARI, Marcus Vinicius. Goethe e a história do Doutor Fausto: do teatro de marionetes à literatura
universal. In: GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia. (Tradução do original alemão de Jenny Klabin
Segall). São Paulo: Editora 34, 2010, p. 08-09.
398 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia, op. cit., p. 145.
394
395
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artes mágicas e também respostas a todas as suas indagações”399. Em contrapartida, “o
diabo se apoderará da alma de Fausto no outro mundo”400.
A alusão metafórica ao conceito de pacto com o diabo, uma pacto fáustico aqui
pensado como um dispositivo401, revela-nos uma categoria de análise forjada no decorrer de
minha leitura das fontes, pois quando estimulados, tacitamente, à formação sócio-discursiva
de um pacto social, os bacharelandos em Direito misturavam seu sangue às palavras do
orador e se comprometiam a ser responsáveis pela missão de reverter o país e,
particularmente, o Estado de Goiás, de qualquer direção que não fosse a do progresso social.
Já que o sangue é, segundo a fala do personagem Mefistófeles, “um muito especial
extrato”402, a palavra pública não o era menos. Curado, portanto, não as economizava ao
instigar os bacharéis a enfrentarem os desafios insanos à frente: “Crede no futuro do Brasil,
meus jovens colegas. Êle não fugirá à trajetória brilhante que se estende nos Céus
puríssimos da História, assinalando-lhe uma pátria grande, unida e progressiva”403.
Das palavras de Curado emergem representações sobre os bacharelandos, que são
posicionados/constituídos como sujeitos providos de condições exequíveis para a realização
da tarefa esperada, atribuídas à noção de juventude pelo orador, embora essa seja uma
característica que não os exime do pacto de responsabilidades que os tornavam quase
“cavaleiros medievais”:
Ser jovem é viver num turbilhão incessante de aparências falazes, cercado de formas fantásticas que
doiram o ambiente; ser jovem é supor que no oceano das ilusões há de deslizar, eternamente, o
bergantim de nossas esperanças, mareado pela realização de todos nossos desejos404.
Seriam ou não capazes de promover o progresso do Estado? Mesmo sem respostas,
as expectativas eram mantidas diante do reconhecimento das capacidades dos jovens
bacharelandos que, por serem “jovens”, poderiam enfrentar o “desespêro” na preparação
para a vida e “viver num turbilhão incessante de aparências falazes, cercado de formas
fantásticas que doiram o ambiente”405. Para Curado, a imagem de que “ser jovem é supor
que no oceano das ilusões há de deslizar, eternamente, o bergantim de nossas esperanças,
mareado pela realização de todos nossos desejos”406, desvela-nos a invenção do bacharel
em direito. A argumentação de Curado resgata informações históricas substanciais como:
César, vêde bem, tinha 21 anos quando pronunciou a célebre oração contra Dolabella; Plínio, o moço,
discutiu a sua primeira causa aos 18 anos; Vico, na Itália, defendeu o pai aos 15 anos, maravilhando a
todos com a cópia de conhecimentos legais que possuia, Grócio, aos 16 anos, tomava a seu cargo, o
patrocínio de uma causa perante o Tribunal de Teft, e Odilon Barrot, em França, começa a advogar aos
19 anos407.
MAZZARI, Marcus Vinicius. Comentário. In: GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia, op. cit., p.
145.
400 Ibidem.
401 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
402 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia, op. cit., p. 173.
403 CURADO, Fleury. Discurso pronunciado na Academia de Direito de Goiás, como paraninfo (2ª Turma de
bacharelandos), em 16 de dezembro de 1906, op. cit., p. 338.
404 Idem, p. 340.
405 Ibidem.
406 Ibidem.
407 Ibidem.
399
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Munido de uma concepção moderna da juventude, segundo a qual “ser moderno é
encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor”408, o orador confirma sua posição
“idealista” diante da crença no futuro dos jovens acadêmicos e fabrica expectativas e
autoconfiança, a partir da imagem de desenvoltura atribuída aos jovens bacharelandos, por
meio da qual “faz supor que honrarão o diploma que hoje recebem, dignificando a nossa
terra”409. A honra desses dignos “cavaleiros” poderá ser cumprida uma vez que possam,
modernamente, se autotransformar e transformar o mundo ao seu redor, fazendo alcançar a
justiça nas terras goianas:
A vós, servidores do Direito, administradores, políticos, magistrados ou advogados, cabe a grande obra
de aplicar e distribuir a justiça, de defender o Direito; e, com o progredir das instituições, com a
complexidade das relações que o progresso cria por toda a parte, cresce de importância e alarga-se a
responsabilidade da vossa tarefa410.
O discurso de Fleury Curado não deixa dúvidas sobre as bases para a formação
engenhosa de um pacto social entre os bacharelandos e a sociedade goiana, pois atribui a
formação deles à possibilidade de reverter o futuro daquela região, mesmo que a trajetória
histórica da experiência de educação jurídica tivesse sido marcada por inúmeros
contratempos que definiram abertura e fechamento dos institutos jurídicos de Goiás, mesmo
que o orçamento do Estado fosse restrito e a quantidade de bacharéis não fosse ampla.
Devo dizer, entretanto, que não reputo um mal o excesso de bacharéis em Direito. [...] O mal está no
bacharel mal preparado [...]. Êsse carregará uma cruz pesada quando, na vida prática, tiver de
enfrentar as dificuldades da profissão que houver adotado: pois o bacharel em Direito constitui, na
nossa existência social e política, a reserva intelectual, a que mais frequentemente recorrem a
Imprensa e a Política, além da Magistratura, da Advocacia, do Funcionalismo, da Diplomacia411.
A imagem da cruz, a ser carregada – recurso retórico ancorado na formação cristã –
penitencia os maus bacharéis comprometidos a se tornarem “reversa intelectual”, podendo
ser recrutados na imprensa, na política, na magistratura, na advocacia, no funcionalismo e
na diplomacia. A tarefa hercúlea talvez não os intimidasse diante dos superpoderes
(“poderes ocultos” segundo Berman)412 que, imaginariamente, o orador atribuía a eles. Ao
contrário, poderia seduzi-los diante do reconhecimento social que passariam a ter
posteriormente à outorga do grau de bacharéis em Direito. Fleury Curado personificava a
fantasia de um Mefistófeles, um sujeito constituído capaz de esconder sua condição
predadora, devoradora de espíritos e se transfigurar em uma posição aparentemente neutra
e imparcial – já que afirmava estar afastado da política “por longo ostracismo”413 – e
oferecer aos jovens, intelectuais modernos, possibilidades amplas de atuação social
mediante um pacto social. Poder-se-ia dizer que houve a construção de um dispositivo de um
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar, op. cit., p. 15.
CURADO, Fleury. Discurso pronunciado na Academia de Direito de Goiás, como paraninfo (2ª Turma de
bacharelandos), em 16 de dezembro de 1906, op. cit., p. 341.
410 CURADO, Fleury. Oração proferida na colação de grau da Faculdade de Direito do Estado de Goiás, aos 25 de
dezembro de 1925, op. cit. p. 365.
411 Idem, p. 372.
412 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar, op. cit., p. 42.
413 CURADO, Fleury. Oração proferida na colação de grau da Faculdade de Direito do Estado de Goiás, aos 25 de
dezembro de 1925, op. cit. p. 373.
408
409
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pacto “demoníaco”, aqui, em relevo, entre Curado e os bacharéis, sob os olhos de um grupo
social, capaz de ser cumprido e funcionar como regras das relações experienciadas na
educação jurídica ali praticada. Um pacto que nos revelava a relação entre a vida e as
normas sociais, na qual não eram as normas, exteriores, que criavam e submetiam a vida,
mas nos inspirando em Canguilhem, “são as normas que, de modo totalmente imanente,
são produzidas pelo movimento mesmo da vida”, o que acaba por desnudar “uma
normatividade essencial do vivo, criador de normas que são a expressão de sua polaridade
constitutiva”414. O dispositivo do pacto forjado entre os bacharéis, Curado e o grupo social ali
presente (autoridades políticas e familiares, sobretudo), revela-nos que “as normas não têm
realidade fora da ação concreta através da qual elas se efetuam afirmando, contra os
obstáculos que se contrapõem a esta ação, seus valores normativos” 415. Os bacharéis
apreendiam qual era sua “verdadeira” função na sociedade, provavelmente imersa em
privilégios, constituída nas redes de poder, pois ser bacharel em direito seria como ter olhos
na terra de cego.
Já é possível afirmar que, entre a regra e a experiência da regra não existem
fronteiras bem definidas a ponto de sugerirmos que “as condições de possibilidade das
regras se misturam com as condições de possibilidade da experiência das regras”416. Longe
de estar assentado em condições triangulares harmoniosas, o ritual tecnológico da colação
de grau era uma fonte de empoderamento, de forjadores de relações de poderes na qual as
redes de poder e sua experiência de exercício eram pontos do mesmo vértice. O ritual da
colação de grau, enquanto uma experiência de vivência e, ao mesmo tempo, de produção e
regulação das regras sociais, funcionava como uma tecnologia política417 que produzia
efeitos simbólicos, processos de subjetivação e, não podemos negar, relações de poder,
engrenava do funcionamento do poder, que produzia efeitos nos corpos, comportamentos e
relações sociais.
A arquitetura dispositível do “pacto com o diabo” sugere, deste modo, uma
construção sócio-histórica, presidida por um imaginário social e imersa em determinações
micro-políticas, a partir das quais foram confeccionadas regras emanadas da experiência
vivida na correlação de forças, e não em uma totalidade social anônima. A engenharia do
“pacto com o diabo” incorpora alguns aspectos a serem destacados: um acordo tácito, no
qual as relações são instituídas em uma disposição estratégica capaz de constituir e
posicionar, hierárquica e sócio-discursivamente, sujeitos; na relação, um dos pontos
estratégicos é o empoderamento relativo de uma pessoa e de um grupo social, inscrito em
uma política de domínio que garante um controle parcial de um sobre os outros; por último,
o acontecimento simbólico, a palavra pública e o ritual de colação de grau, que institui os
posicionamentos empoderados, cada um a sua maneira e em seu desenho específico.
Como um mecanismo e parte de um dispositivo a ser acionado, o pacto tácito
propiciava a criação de regras sociais que, por sua vez, acionariam e inventariam, em
condições singulares, uma espécie de superpoderes atribuídos aos bacharéis no sentido de
proporcionar a desobstrução de um caminho na direção do progresso. Se “com sangue
MACHEREY, Pierre. De Canguilhem a Canguilhem passando por Foucault. In: MACHEREY, Pierre. Georges
Canguilhem, um estilo de pensamento. Goiânia: Almeida & Clément Edições, 2010, p. 74.
415 MACHEREY, Pierre. Normas Vitais e Normas Sociais no Ensaio acerca de alguns problemas concernentes ao
normal e ao patológico. In: MACHEREY, Pierre. Georges Canguilhem, um estilo de pensamento, op. cit., p. 69.
416 MACHEREY, Pierre. Normas Vitais e Normas Sociais no Ensaio acerca de alguns problemas concernentes ao
normal e ao patológico, op. cit., p. 69.
417 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 26-27.
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assinas, uma gota”418, conforme Mefistófeles esclarecia a Fausto, era com a palavra, em
latim, que se marcava o pacto, segundo o Regimento Interno da Escola de Direito de Goyaz,
de 1935:
Capitulo XIX – Das formulas de Promessa e de Collação de Grau
Art. 181º. A formula da promessa a ser proferida pelo candidato ao grau será a seguinte:
“Ego............. promito me, semper principiis honestatis inherentem, mei gradus muneribus
perfuncturum atque operam meam in jure patrocinando, justitia exequenda et bonis moribus
praecipiendis, nunquam causae humanitatis defuturam.”
A formula para a collação do grau a ser proferida pelo Director ou pelo professor, conforme o caso,
será a seguinte:
“Em igitur, munera tui gradus exercere liceat. Sittibi voluntas infensa malo errori. Sustine justitia
certamina. Custodi legem atque in ea exequenda, sempre rationem et publicum bonum perspecte
habeas”419.
A leitura do texto em latim era sugestiva, pois elucidava o caráter dogmático
atribuído à tarefa dispensada aos bacharéis no ato principal da colação de grau, o que não
quer dizer que não compreendiam o que liam. No mesmo regimento em questão, previa-se,
quando do exame de vestibular, o conhecimento do latim 420. Lia-se apenas o texto que
confirmava o sangue doado para transformar a vida de homens, adequados às novas
realidades. No entanto, o moderno se dirigiu à nova capital, com a mudança em 1937,
quando as principais instituições da antiga capital – Goiás – foram transferidas para
Goiânia, dentre elas, a Faculdade de Direito. Os bacharéis não cumpriram o pacto, o
“progresso” não chegou àquelas terras e a cidade de Goiás “Velho” ardeu no tempo. A
faculdade de Direito na Cidade de Goiás recomeçaria sua história apenas no final do século
XX, com a criação da turma de Direito ligada ao curso de Goiânia, sob os auspícios de
“resgate” de uma “dívida”421. Cheias de começos e recomeços, sua trajetória nos permite
fazer alusão ao próprio trabalho de Goethe sobre o tema do Fausto o qual, segundo Berman,
começou em torno de 1700 e alcançou uma condição de obra ainda não terminada, no ano
de 1831, quando o autor tinha 83 anos, um ano antes de vir a falecer422. Mas, inspirandonos na mesma leitura da Berman sobre a obra de Goethe, podemos perguntar: teriam os
bacharéis perdido o controle de suas “energias mentais”423, passíveis de adquirir vida
própria, assim como os poderes que Mefisto concedeu ao Dr. Fausto? Sinais de uma
tragédia? Só outras histórias podem nos contar...
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia, op. cit., p. 173.
ARQUIVO DA FUNDAÇÃO FREI SIMÃO DORVI. Cidade de Goiás. Estatutos e Regimento Interno da Escola de
Direito de Goyaz. 1935, p. 63-64.
420 Idem, p. 38.
421 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. Faculdade de Direito. Relatório das Atividades Desenvolvidas no Período
Dez/86 a Dez/90. Gestão Prof. Carlos Leopoldo Dayrell.
422 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar, op. cit., p. 40.
423 Idem, p. 39.
418
419
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A RELIGIOSIDADE E O PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO
DA IGREJA NO BRASIL: REFLEXOS EM GOIÁS
PAULO RODRIGUES RIBEIRO
Mestre em História pela UFG
Professor Adjunto na PUC/GO
O presente trabalho é uma reflexão acerca da influência da romanização da Igreja
Católica em Goiás, nas primeiras décadas do século XX. A passagem da Monarquia para a
República fez emergir no cenário político nacional uma elite progressista que, influenciada
pelo positivismo, liberalismo e cientificismo, criticava alguns fundamentos dogmáticos da
religião e, em especial, os vínculos institucionais entre Igreja e Estado que haviam
predominado no período imperial.
Os republicanos adotaram um discurso liberal embasado em pressupostos legais que
tinham por objetivo legitimar o novo regime a partir do ideal de progresso, que implicava,
entre outras coisas, na modernização das instituições. Em certa medida, este legalismo
chocou-se com as práticas do clero romanizado, fundamentalmente no que diz respeito aos
registros civis de nascimento e casamento, pois aos olhos da Igreja o valor sacramental do
batismo e do matrimônio se sobrepunha aos dispositivos legais.
Em Goiás, o processo de romanização estimulado a partir do bispado de Dom Cláudio
Ponce de Leão, atingiu com Dom Eduardo Duarte Silva o seu momento de maior vigor. Em
suas visitas pastorais Dom Eduardo Silva entrou em conflito com os políticos locais em Barro
Preto e Muquém, ao colocar sobo controle eclesiástico as festas em homenagem ao Divino
Pai Eterno e Nossa Senhora D‟Abadia, instituindo um regulamento para as festas religiosas
em Goiás. Seu caráter antiliberal o colocou em confronto com o poder oligárquico dos
Bulhões, resultando daí a transferência da diocese da Cidade de Goiás para Uberaba, em
Minas Gerais, no ano de 1896.
Entretanto, o pressuposto utilizado neste trabalho é de que apesar de existirem
linhas de confronto entre o clero romanizado e as elites goianas,no que diz respeito aos
valores morais, principalmente aqueles que enquadram a mulher e o seu papel social como
a mãe e educadora, havia uma forte aproximação dos princípios e valores católicos com os
ideólogos republicanos, principalmente aqueles que seguiam o pensamento positivista. Vale
dizer, portanto, que, embora houvesse uma situação litigante entre o clero e os republicanos
no que diz respeito aos preceitos liberais que fundamentavam a cidadania na forma da lei,
em geral não havia discordância acerca do papel da mulher e as funções sociais da
maternidade.
Para fundamentar a discussão, foi essencial, além da bibliografia que aborda o
assunto, a pesquisa documental, principalmente na busca de fontes que informam a
preocupação com a formação intelectual da mulher. A questão moral, que fora amplamente
discutida nos periódicos da época, foi buscada na leitura dos jornais Goyaz, A República e o
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tablóide feminino O Lar, cujos debates acerca da condição da mulher constituíram-se em
importantes fontes de informação.
A religiosidade no Brasil, desde o período colonial, foi bastante rica em
manifestações culturais de diversas procedências: cristãos (católicos e protestantes), judeus,
índios e negros, ofereceram contribuições para a formação religiosa e cultural brasileira.
Embora o projeto colonial português fosse o de transmigrar o mundo ibérico para os trópicos,
reforçado pela presença dos jesuítas na colônia424, no que diz respeito à religiosidade,
diversos tipos de cultos – desde os de origem nativa até os católicos, afros e judaicos –
conviveram e se hibridizaram nos três primeiros séculos de ocidentalização portuguesa no
Novo Mundo.
Desde a implantação de um projetoagro-mercantil, no século XVI, até a abolição da
escravidão, em 1888, as relações sociais no Brasil foram construídas sobre o conflito
representadopela escravidão, o patriarcalismo e o patrimonialismo. A confusão entre os
interesses do Estado, da Igreja e dos setores sociais dominantes foi constante em todo o
período colonial, pois os limites entre as instituições públicas (o Estado e a Igreja) e as
privadas (grandes proprietários) eram imperceptíveis. A justiça, a educação, o poder de
polícia, as instituições públicas e religiosas eram regradas pelos senhores e seus
dependentes.
Na sociedade colonial estruturou-se uma forma de poder na qual havia o predomínio
das vontades particulares que encontravam seu ambiente próprio em círculos fechados e
pouco acessíveis a uma ordenação impessoal, podendo-se dizer que, do ponto de vista
institucional, tanto político, quanto religioso425, não havia um sistema administrativo e um
corpo de funcionários exclusivamente dedicados aos interesses públicos.A Igreja e a família
exerceram uma supremacia incontestável como núcleos centrais da sociedade brasileira. A
família patriarcal compunha a esfera dos chamados contatos primários e dos laços de
sangue. As relações que se criavam no campo doméstico forneceram o modelo de
composição social, enquanto a Igreja tornou-se o espaço da sociabilidade dos indivíduos e
das classes, modelando o imaginário, as sensibilidades e o comportamento doscolonos.
Embora a sociedade, de maneira geral, tenha se fundamentado nos princípios católicos, as
diferenças sociais produziram um panorama religioso marcado por uma multiplicidade de
Os primeiros jesuítas desembarcaram na América em março de 1549, juntamente com o primeiro
governador-geral, Tomé de Souza. A missão foi chefiada pelo padre Manuel da Nóbrega, e edificaram a primeira
escola elementar brasileira. Desde o início, a obra jesuítica esteve associada à educação dos filhos dos colonos e
à catequese dos índios.
425 A atuação da Igreja no início da colonização não foi estimulada por Roma, mas pelos reis que, através do
Padroado, exerciam absoluto controle sobre a Igreja em Portugal e na Espanha, o que deu à colonização um
sentido missionário de expansão da fé católica, reforçando a tradição visigótica do exercício do poder real em
nome de Deus. Ao mesmo tempo, a presença da Igreja no Novo Mundo reforçava os princípios estabelecidos no
Concílio de Trento (1545), quais sejam: nova disciplina com respeito à hierarquia eclesiástica; homogeneização
da pastoral e da prática sacramental junto à massa dos fiéis; reforço da autoridade episcopal; depuração da fé
em relação às superstições heréticas ou demoníacas, extirpando a propensão ao pecado; defesa dos
sacramentos e do direito canônico em face dos ataques protestantes; modificação da disciplina e da qualidade
do corpo eclesiástico, a fim de capacitá-lo para a nova pastoral. Neste sentido as ações reformistas da Igreja se
orientaram pela reordenação dos bispados; por estimular a devoção entre os clérigos, preparando-os para a
pastoral; pelo aumento da disciplinar nas ordens regulares; pela criação de condições para uma ampliação mais
ampla e profícua entre a Igreja e os leigos; e pelo reforço aos sacramentos, em especial o casamento e a
confissão.
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credos e crenças que a Igreja procurou combater e controlar,a exemplo das santidades
indígenas e do calundu africano.
A transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento europeu produziu
resultados díspares. À primeira vista, a cultura e a religião parecem repetir o modelo
europeu, mas, em face da realidade colonial, os padrões são reinventados. A Igreja, como
principal instituição cultural, em razão de sua missão catequética e educacional426, precisou
adaptar-se, não em sua mensagem, mas em suas práticas. Para alcançar índios e colonos,
viu-se constrangida a mudar seus códigos de linguagem. O novo público e, mais do que o
público, o novo e singular ambiente colonial, obrigou a instituição a conviver com
manifestações culturais e religiosas que não eram em absoluto aquela do colonizador.
Em função deste panorama culturalLuiz Mott agrupa os colonos, conforme sua
devoção e fé, em quatro categorias: católicos praticantes autênticos, aqueles que aceitavam
convictamente os dogmas e ensinamentos impostos pela hierarquia eclesiástica; os
católicos praticantes superficiais, os que cumpriam apenas os rituais e os deveres religiosos
obrigatórios; os católicos displicentes, indivíduos que evitavam os sacramentos e demais
cerimônias sacras, não por convicção ideológica, mas por indiferença e descaso espiritual,
incluindo no seu cotidiano vários sincretismos heterodoxos; e os pseudocatólicos, aqueles
que mantinham secretamente crenças heterodoxas ou sincréticas427.
O aspecto devocional que a religiosidade assumiu na cultura brasileira fez com que a
casa se tornasse o espaço primordial para as práticas religiosas. É no ambiente doméstico
que se desenvolvem as devoções, sejam aquelas mais autênticas ou as mais heterodoxas. A
vivência religiosa manifesta-se em altares, oratórios e mesmo em capelas de engenho,
fortalecendo os vínculos entre os membros da família e os santos de devoção da casa, em
especial Nossa Senhora e Santo Antônio428. Novenas, ladainhas, muitas vezes misturadas às
festas, juntamente com os mastros erguidos em frente às residências, completam o quadro
das devoções familiares.
Foi apenas a partir de 1707 que a Igreja passou a possuir suas próprias
constituições. No entanto, pode-se dizer que, até o final do século XIX, o clero ainda era
subserviente ao privatismo dos senhores e a religiosidade estava circunscrita à esfera das
famílias poderosas. A Igreja era descentralizada, sendo que a estrutura eclesiástica colonial
dificultava o êxito das reformas tridentinas no Brasil429. O projeto de ordenação da sociedade
à luz dos valores cristãos, implicando em profundo controle dos costumes e das moralidades
vigentes, esbarrou em uma mentalidade rural, popular, relativamente ligada às sacralidades
pagãs e, principalmente, na instituição da escravidão.
Em sua missão de catequese a Igreja promoveu a criação de missões, onde as populações indígenas eram
organizadas em torno de um regime que combinava trabalho e religiosidade. Os jesuítas foram responsáveis pela
fundação das primeiras instituições de ensino do Brasil Colonial, sendo que nos principais centros de exploração
colonial encontravam-se os colégios administrados pela ordem religiosa dentro da colônia. Dessa forma, todo
acesso ao conhecimento letrado da época era controlado pela Igreja. A ação da Igreja na educação foi de grande
importância para a predominância da fé católica no Brasil.
427MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: História da vida privada no Brasil.
SOUZA, Laura de Melo (Org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, v. I. 1997.
428 A intimidade e a aproximação de Nossa Senhora com os colonos começam mesmo no batismo, pois muitos a
tinham como Madrinha e era comum a inclusão de seus títulos no nome ou sobrenome. Santo Antônio é o
campeão da devoção popular e foi o principal colaborador dos senhores na captura de negros fujões. Idem.
429 Idem.
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A Igreja foi, então, a instituição responsável por estabelecer a importância do
matrimônio na sociedade. Foi ela que, incumbida pelo Estado, devido à instituição do
padroado, impôs as normas de conduta que fixavam a divisão de incumbências no
casamento, reforçando o sistema patriarcal como elemento estruturante da sociedade
brasileira, definindo, portanto, os papeis no casamento de homens e mulheres na família
patriarcal.
Assim, o papel da mulher, suas sensibilidades e vivências, vincula-seao aspecto
familiar e doméstico, pois suas funções nas redes familiares e conjugais ligam-se
estreitamente à maternidade e as formas que esta assume em função das desigualdades
sociais e raciais: a lícita, fruto da união matrimonial sacramentada, e a ilícita, com um
grande número de bastardos gerados nas relações de concubinato ou mesmo de estupros.
Em uma sociedade escravista, cuja diferenciação social entre senhores e escravos
está fundamentada no fenótipo, pode-se dizer que a condição racial está diretamente ligada
à instituição do matrimônio, pois nenhum homem de condição social e racial superior se
dignaria dar o seu nome a uma mulher em posição inferior, o que torna predominante as
relações conjugais consideradas ilícitas pela Igreja e pelo Estado. Estas relações
distanciavam as práticas sociais das perolações da Igreja, que as considerava frutos da
lascívia das negras, índias e, principalmente, das mestiças.
Por outro lado, vale dizer que o modelo patriarcal de família não se aplica
inteiramente às camadas populares, pois em certas condições sociais a família se estruturou
a partir da figura feminina e não da masculina, seja pela instabilidade das relações
conjugais ou pela ausência temporária ou permanente da figura paterna.
Para a Igreja esse quadro, caracterizado pela diversidade social, era agravado por
uma religiosidade devocional, que era mais evidente quando colocadas em telaas formações
sociais do interiordo Brasil, aquelas mais distantes do litoral, onde se localizavam os
principais núcleos urbanos de colonização, como é o caso da sociedade goiana.
Assim, o enquadramento das tradições religiosas em Goiás, como de resto no Brasil,
tornou-se o objetivo central de todo esforço de romanização empreendido pela Igreja
Católica nas últimas décadas do século XIX, com o propósito de alimentar as devoções 430
com o material ideológico fornecido pela instituição. A Santa Sé pretende, com o processo
de romanização, salvaguardar a identidade católica, fortalecendo a sua interpretação
simbólica do mundo pela infalibilidade papal e pelo reforço aos sacramentos, tal como havia
sido determinado pelo Concílio de Trento. Com base nestas determinações, a instituição
De acordo com Euzébio de Carvalho, “devoção, em seu sentido litúrgico, significa um „sentimento religioso,
[uma] dedicação especial ao culto de Deus, de Nossa Senhora, dos anjos, santos e almas do Purgatório‟. Assim, a
devoção no catolicismo não se restringe unicamente a Deus – mesmo se compreendido à luz do mistério da
Santíssima Trindade (Deus, Filho e Espírito Santo). Ela é facultada também aos santos de Deus, ou seja, aquelas
pessoas que pelo seu testemunho de vida, conquistaram a santidade. Se da perspectiva litúrgica, o mistério da
Santíssima Trindade não fragiliza a caracterização do catolicismo como religião monoteísta, da perspectiva
popular essa caracterização é menos sólida. No universo da devoção popular católica, frequentemente ocorre
uma horizontalidade entre a divindade principal e seus santos, o que se diferencia sobremaneira da perspectiva
institucional: a verticalidade hierárquica, ocupando Deus o cume do universo religioso”. CARVALHO, Euzébio de.
Experiências e práticas religiosas a partir do sujeito: os relatos de Anna Joaquina da Silva Marques – Cidade de
Goiás, final do século XIX. In: QUADROS, Eduardo Gusmão de; SILVA, Maria da Conceição; MAGALHÃES, Sônia
Maria de (Orgs). Cristianismos no Brasil Central – história e historiografia. Goiânia: Editora da UCG, 2008, p. 110111.
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buscou definir as fronteiras entre o sagrado e o profano, assumindo o controle sobre as
manifestações exteriores da fé, em especial as festas religiosas e procissões.
A ROMANIZAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA E AS TRADIÇÕES RELIGIOSAS GOIANAS
A romanização é parte de uma restauração religiosa geral e nasce do esforço da
Igreja no sentido de impor uma maior disciplina, respeito à hierarquia eclesiástica, controle e
rigor sobre as manifestações de fé e devoção espiritual431. Em meados do século XIX, no
pontificado de Pio IX432, a Igreja buscou expandir sua influência global e, ao mesmo tempo,
reforçar as suas bases dogmáticas estabelecidas no Concílio de Trento, realizado no século
XVI.
A reforma na Igreja Católica teve como base a EncíclicaQuanta Cura, de 1864, em
especial seu anexo Syllabus, que preparou caminho para a realização do Concílio Vaticano I,
realizado entre os anos 1869 e 1870. A Encíclica Quanta Cura, promulgada em 8 de
dezembro de 1864, em nome da saúde das almas dos fiéis, combate os males da
humanidade, em especial o liberalismo, o cientificismo, o protestantismo, o socialismo e o
comunismo, que, fundamentados no naturalismo e no materialismo, rejeitam a religião e a
revelação como princípio de conhecimento ou da constituição dos governos e das relações
sociais. Tais doutrinas são condenadas pela Igreja como os principais erros da modernidade.
O Syllabus, anexo à Encíclica, reforçou os direitos da Igreja Católica, apontando os
erros que eram condenados pelo Papa Pio IX. Segundo a concepção pontifícia, tais erros e
heresias feriam o respeito aos dogmas e sacramentos da Igreja Católica. Enfatizou,
especialmente, a infalibilidade papal e o casamento como sacramento, rejeitando o
casamento civil. Ao enfatizar a hierarquia clerical, o Papa passou a condenar, considerando
como desvirtuamento, o regime de padroado real e a interferência do governo civil e de
leigos na estrutura eclesiástica e na jurisdição de assuntos religiosos. Ao mesmo tempo,
demonstra uma preocupação com a ação pastoral da Igreja, solidificando a formação moral
e religiosa do clero.
O Concílio Vaticano I, aberto em 8 de Dezembro de 1869, embora suspenso devido
ao início da Guerra Franco-Prussiana, promulgou duas constituições importantes: a Dei Filius
e a Pastor Aeternus. A primeira, atribui o poder da Igreja à revelação divina, declarando que
o verdadeiro sentido da fé cristã é aquele atribuído pela Igreja na interpretação das
Sagradas Escrituras, sujeitando a razão à fé, atribuindo aos milagres uma intenção divina. A
Constituição Pastor Aeternusenfatizou o primado e a infalibilidade do Papa quando se
pronuncia “ex-catedra”, em assuntos de fé e de Moral.
No Brasil, a romanização inicia-se em um momento de transformações na estrutura
da sociedade, com o início do processo de abolição da escravidão, e de transição política,
com a crise da Monarquia e consequente passagem para a República.Na segunda metade
do século XIX, era visível o enfraquecimento do corpo eclesiástico católico. O predomínio do
431SERBIN,
Keith. Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
432 Pio IX foi Papa de 16 de junho de 1846 a 7 de fevereiro de 1878, data de sua morte. Período em que a Igreja
via seus dogmas abalados pelo cientificismo e pelo liberalismo e, ao mesmo tempo, sua postura socialmente
conservadora era criticada pelo avanço do comunismo e do anarquismo junto às classes operárias na Europa.
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Padroado, herança do colonialismo português mantido pela constituição imperial433,
favorecia o desenvolvimento do catolicismo popular, com aspectos muito mais devocionais
que dogmáticos. O processo de romanização da Igreja implicava em transformar práticas
religiosas arraigadas na sociedade brasileira, tornando-as compatíveis com a doutrinação da
religião católica 434.Combater o fanatismo religioso e a ignorância das massas populares
tornou-se o ponto focal do processo de romanização no Brasil. Segundo Keith Serbin, este
momento representou a segunda onda de evangelização católica em território brasileiro,
marcada pela forte presença de um clero de origem europeia. A Europeização do corpo
eclesiástico brasileiro resultou em uma modernização conservadora da religião católica no
país.
A presença de um clero mais intelectualizado e sua ação pastoral produziu
resultados ambíguos no contexto das mudanças econômicas, sociais e políticas que
ocorriam no Brasil, sobretudo após a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando se
aceleraram os fatores desagregadores da ordem imperial: o movimento abolicionista e o
movimento republicano. As transformações das relações de trabalho, com a crise da
escravidão, sujeitavam os trabalhadores livres a novos mecanismos, distintos dos
tradicionais. Ao mesmo tempo, a dogmatização do campo religioso, devido à ação de um
clero mais intelectualizado, distante das massas populares e mais próximo das elites,
consolidou uma hegemonia das classes mais integradas ao processo de expansão
capitalista na economia brasileira. No entanto, nas regiões mais periféricas ao progresso
modernizador trazido pela cafeicultura, como é o caso de Goiás, embora as elites vissem
com bons olhos o dogmatismo religioso, a romanização chocou-se com as formas de
dominação tradicional.
Segundo Max Weber, a dominação, seja ela carismática, legal ou tradicional, é
resultado de relações desiguais de poder entre os grupos sociais 435. A dominação tradicional
relaciona-se à tradição e aos níveis de hierarquias, onde o exercício da autoridade se dá
através da ação direta e vertical de quem está no comando, estando sujeita, portanto, a
fatores como: afetividade, respeito, admiração e crença. Assim, tem uma função
legitimadora, definindo a hierarquia social como inflexível às mudanças. Essa dominação se
estabelece quando a obediência à hierarquia social relaciona-se à dependência e sujeição
dos indivíduos aos setores sociais dominantes e o poder é estabelecido devido aos privilégios
de uns sobre outros. Estasituação caracteriza as relações sociais em Goiás na segunda
metade do século XIX.
Por sua vez, Pedro Oliveiraafirma que a romanização foi o processo pelo qual o
aparelho eclesiástico, isto é, o corpo de agentes religiosos, institucionalmente qualificado
para a direção dos fiéis católicos, assumiu o controle efetivo do aparelho religioso, o que
implicou no controle das manifestações religiosas do catolicismo. Neste sentido, em Goiás
ela chocou-se com o que Max Weber chamou de fidelidade tradicional, pela qual o respeito e
a admiração, em virtude da tradição, levam à obediência. Isso possibilita afirmar que pela
O Artigo 5º da Constituição do Império estabelecia que: A Religião Católica Apostólica Romana continuará a
ser a religião do Império. § Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo.
434OLIVEIRA, Pedro A. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.
433
435WEBER,
Max. Economia e sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999.
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tradição as relações de poder entre os indivíduos, isto é, as formas de dominação, estão
relacionadas diretamente aos costumes, ações cotidianas e valores pessoais.
Com isso, a dominação tradicional produz uma relação estável no corpo da
sociedade, gerando uma solidez no meio social e produzindo uma ligação direta com a
consciência coletiva. Portanto, como essa estrutura de poder encontra-se enraizada na
sociedade ela pode ser reproduzida por muito mais tempo. Para a elite goiana, em certa
medida, a romanização pareceu romper com a estabilidade de sua dominação tradicional.
Ainda de acordo com Pedro Oliveira, o desenvolvimento do aparelho religioso foi
amplamente apoiado pela Santa Sé. Segundo esse autor, Dom Macedo Costa, Arcebispo
Primaz do Brasil, apresentou em documento redigido em 1890, intitulado “Pontos de
Reforma na Igreja do Brasil”, as grandes linhas propostas ao episcopado brasileiro visando à
reforma da Igreja. O documento está dividido em nove partes que demonstram os objetivos
da reforma: realização de conferências episcopais visando uniformizar a ação dos bispos e
restaurar a disciplina do clero; o episcopado deveria assumir maior controle sobre o clero,
usando para isso as visitas pastorais; aprimorar os mecanismos para evitar abusos do clero,
a indisciplina, a negligência no culto; a instalação de seminários, possibilitando uma
formação ortodoxa para o clero; estimular as missões como mecanismos de acender a fé e
aumentar a prática das virtudes; zelar pela preservação da fé entre os colonos imigrantes,
com a colaboração de congregações religiosas europeias; trazer da Europa membros de
ordens religiosas para direção dos conventos, bem como fundar e dirigir escolas católicas;
maior controle clerical sobre as confrarias e, sobretudo, expurgar de seu interior elementos
maçônicos; aumentar o número de dioceses em todo o país436.
Em Goiás a romanização teve início na segunda metade do século XIX, quando
recebeu a incumbência de organizar a diocese de Goiás, que estava sem bispo há seis anos,
Dom Domingos Quirino de Souza. O processo teve continuidade nos episcopados de seus
sucessores, Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo (1865-1876) e Dom Cláudio José
Gonçalves Ponce de Leão (1881-1890). Mas, foi durante o período no qual esteve à frente da
diocese Dom Eduardo Duarte Silva (1890-1907), que o processo de romanização e
estruturação da Igreja em Goiás obteve um maior rigor437.
Até aquele momento, prevalecia em Goiás um sentimento religioso fortemente
devocional e muito pouco dogmático. Desde o início da ocupação de seu território, à época
da economia mineradora, a região goiana carecia de uma ação sistemática no sentido de
evangelização de sua população. Os principais problemas, que ainda persistiam no século
XIX, diziam respeito ao pequeno número de sacerdotes na região e a sua má formação, bem
como as práticas de concubinato e mancebia.
As dificuldades de comunicação, a dispersão demográfica e um território extenso,
aliadas à falta de seminários e o isolamento, são fatores que dificultavam a ação pastoral e
a imposição de uma ortodoxia católica. Os viajantes europeus que percorreram o território
goiano na primeira metade do século XIX, em especial Saint‟Hilaire, Pohl, D‟Alincourt e
OLIVEIRA, Pedro A. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.
437 SILVA, Mônica Martins da. O catolicismo popular em Goiás e o regulamento para festividades e funções
religiosas. In: QUADROS, Eduardo Gusmão de, SILVA, Maria da Conceição, MAGALHÃES, Sônia Maria de (orgs).
Cristianismos no Brasil Central – história e historiografia. Goiânia: Editora da UCG, 2008, p. 137-160.
436
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Gardner438, não só apontaram a carência de clérigos na região, mas também o seu
desregramento. Os amancebamentos eram comuns não só entre os fiéis, como também não
causava nenhuma estranheza a relação marital, camuflada ou não, entre os padres e
alguma ovelha de seu rebanho, confrontando a instituição do celibato clerical 439.
Segundo estes viajantes, as principais formas de manifestações religiosas em Goiás
eram as festas de louvor aos Santos, Nossa Senhora e ao Divino Pai Eterno. Destacam que
nestas festas não havia uma nítida distinção entre o sagrado e o profano e, aos seus olhos, a
louvação cedia lugar aos negócios, comilanças e bebedeiras. Tais características religiosas
eram relacionadas ao isolamento e ao atraso cultural em que se encontrava a província de
Goiás após a decadência do ouro. Até mesmo para a celebração das missas faltavam os
paramentos litúrgicos, o que é narrado por Emmanuel Pohl, ou ainda vestes, como relata
Auguste Saint-Hilaire, quando conta que as mulheres de uma mesma família, em Santa
Luzia, se apresentaram ao padre para a confissão pascal com o mesmo vestido440.
O relato de viagem está ligado a uma concepção empírica de conhecimento, isto é, o
propósito do viajante é relatar a realidade tal como ela pode ser observada, muito embora a
sua escrita esteja carregada de valor e marcada por uma concepção civilizacional europeia
muito distante da realidade goiana. Entretanto, as suas informações oferecem pistas
importantes sobre a situação social e econômica da região e, sobretudo, a respeito do
comportamento moral e religioso que o clero romanizado encontrará entre a população
goiana, na segunda metade do século XIX. Na maioria das vezes, a romanização será
proposta por um clero com uma formação intelectual europeia, compartilhando com os
viajantes uma percepção de atraso, material e espiritual, do povo goiano.
Pode-se dizer que o predomínio das relações matrimoniais ilícitas é o aspecto mais
recorrente na literatura dos viajantes que demonstra as dificuldades de evangelização em
Goiás. De certo modo associam a inconsistência das relações matrimoniais ao espírito
aventureiro do homem goiano. A aventura é vista de tal forma que impede o indivíduo de
fincar raízes duradouras. Associada à pobreza, faz com que a permanência do homem seja
transitória, deslocando-se incessantemente. Nestas passagens dos escritos dos viajantes, tal
perspectiva fica claramente delineada: "Foi o povo de Goiás formado de indivíduos, que ali
recorriam de diferentes pontos, para tentarem fortuna, e não sendo os sentimentos do
coração bons, como poderiam ser as obras?", diz D´Alincourt 441. Para Saint-Hilaire, "uma das
principais causas do empobrecimento da província é o desprezo com que são encarados os
laços de família. Os casamentos são raros e sempre ridicularizados, sem dúvida conceito
que se originou da imoralidade dos primitivos colonos"442. Nas palavras de Pohl, "Essa gente
reúne seus haveres em uma trouxa, salta sobre um bom cavalo, ganha campo e foge para
outra capitania. Essas fugas dão-se às vezes por desinteligências conjugais. O homem foge
Cf. SAINT- HILAIRE, Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia, 1975; POHL, J. Emmanuel. Viagem ao
interior do Brasil. São Paulo: Edusp, 1975. D´ALINCOURT, Luís. Memória sobre a viagem do Porto de Santos à
cidade de Cuiabá. São Paulo: Edusp, 1975 e GARDNER. George.Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: Edusp,
1975.
439 RIBEIRO, Paulo Rodrigues. Sombras no silêncio da noite: imagens da mulher goiana no século XIX. In: CHAUL,
NasrFayad; RIBEIRO, Paulo Rodrigues (Orgs). Goiás: identidade, paisagem e tradição. Goiânia: Editora da UCG,
2001, p. 25-56.
440 POHL, E. Viagem ao interior do Brasil; SAINT- HILAIRE, A. Viagem à Província de Goiás Apud RIBEIRO, Paulo
Rodrigues. Sombras no silêncio da noite: imagens da mulher goiana no século XIX, op. cit., p. 25-56.
441D´ALINCOURT, Luís. Memória sobre a viagem do Porto de Santos à cidade de Cuiabá, op. cit., p. 110.
442SAINT- HILAIRE, Viagem à Província de Goiás, op. cit., p. 125.
438
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sem ser perseguido e, como ninguém mais se ocupa dele, casa-se em outra capitania"443.
Outro viajante, George Gardner, afirma:
Mas quando estávamos concluindo o ajuste, chegou sua esposa e insultou-me violentamente por aliciar
o marido para deixá-la. Ela era uma mulata grande, velha e feia e, o que mais me surpreendeu, escrava,
ao passo que ele, mulato também era livre e muito mais moço. Pouco haviam feito nos seis anos de
casados e o marido parecia decidido a livrar-se dela, dizendo-lhe que, embora ela o tivesse governado
por muito tempo, não o faria mais. Não conseguimos, porém, afastá-la, senão depois que o homem lhe
prometeu que não ficaria comigo por mais de um mês. Quando expirou esse prazo, não se sentiu
inclinado a voltar444.
Aos olhos dos viajantes contrasta com esse caráter aventureiro do homem a reclusão
feminina. A Igreja é o locus principal de sua sociabilidade, sobretudo, daquelas que
pertencem às famílias mais importantes da região. Raymundo José da Cunha Mattos, autor
da Chorografia Histórica da Província de Goiás, obra publicada pela primeira vez em 1837,
observando este traço do comportamento social,diz: “As senhoras raras vezes aparecem a
pessoas desconhecidas; vão quase todas à missa muito de madrugada; fazem as suas
visitas de noite, mas na Semana Santa e no dia de Passos, apresentam-se com a mais
pomposa decência que se pode considerar”445.
As relações instáveis de matrimônio, frutos de amancebamentos e concubinato,
como é atestado pelos viajantes, assim como as festas, rezas e benzeduras, revelam um
caráter sincrético e devocional da religiosidade em Goiás. As práticas do catolicismo popular
assumem um caráter pragmático no qual o devoto, mediante sacrifícios e promessas,
procura alcançar uma graça, o que faz com que as romarias e as procissões sejam
momentos fundamentais de demonstração de fé. As dificuldades geradas pelo isolamento,
pobreza e carência social reforçavam este sentimento devocional, fazendo com que as
festas ganhassem amplo espaço como demonstração de fé446.
Estas manifestações religiosas possuem uma plasticidade e uma teatralidade que
caracterizam o seu aspecto exterior. As luminárias, cânticos e máscaras são elementos que
se associam às demonstrações de fé como beijar os pés de Nosso Senhor dos Passos ou do
Divino. Em muitos casos, demonstrava-se uma incompreensão da Santíssima Trindade, pois
o Divino Pai Eterno é distinto de Deus Pai na consciência do devoto. Também, muitas vezes,
Nossa Senhora da Abadia não é vista como a mãe de Cristo e sim como uma santa
concessora a quem se suplica alguma graça, pois na devoção popular o Santo é muito mais
concessor do que intercessor447.
443POHL,
J. Emmanuel. Viagem ao interior do Brasil, op. cit., p. 129.
George.Viagem ao interior do Brasil, op. cit., p. 175.
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Chorografia Histórica da Província de Goiás. Goiânia: SUDECO, 1979, p.
444GARDNER.
445
95.
446As festas religiosas em homenagem aos santos padroeiros, em especial as dedicadas a São Sebastião, são
comuns em todas as localidades goianas. Quermesses, barraquinhas, leilões, danças, comidas e bebidas, estão
presentes em praticamente todas elas como parte das tradições e manifestações religiosas. No entanto, as mais
importantes delas eram as romarias do Divino Pai Eterno, realizada em Barro Preto, atual Trindade, e a realizada
em homenagem a Nossa Senhora da Abadia, no santuário erguido por um lavrador em São José do Tocantins,
atual Niquelândia. Nas festas do Divino ainda se destacam as cavalhadas, em especial a de Pirenópolis. As festas
em comemoração à Semana Santa se tornaram atrativas na Cidade de Goiás, onde o martírio de Cristo é
anualmente revivido nas Procissões de Nosso Senhor dos Passos e na Procissão do Fogaréu.
447CARVALHO, Euzébio de. Experiências e práticas religiosas a partir do sujeito: os relatos de Anna Joaquina da
Silva Marques – Cidade de Goiás, final do século XIX, op. cit, p. 101-136.
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Tais manifestações de fé, carregadas de misticismo, foram consideradas excessos
pelo clero romanizado448. Assim, um dos principais objetivos da reforma religiosa em Goiás
foi o controle sobre as festas religiosas, buscando fazer prevalecer o seu aspecto litúrgico
sobre o devocional, referenciado como superstição. Esta foi uma das principais
preocupações expressas por Dom Eduardo Silva em suas visitas pastorais a Barro Preto e
Muquém. Em sua autobiografia449 o bispo relata sua passagem por estas localidades com o
objetivo de atribuir às festas um maior controle diocesano. Sobre a romaria realizada em
Barro Preto, assim se expressa:
Barro Preto, insignificante arraial, só era conhecido pelos milagres que a simplicidade do povo atribuía,
não a Deus, e sim puramente àquele grupo de pequenas imagens, e até que eu lá instalasse os padres
redentoristas, não passava de um lugar para onde por doze dias acudiam negociantes de todo o Estado
de Goyaz, boiadeiros, mascates, mulheres de má vida, circos de cavalinhos e milhares de superstições,
devotos que lá iam pagar as suas promessas, não poucas vezes feitas para obterem de Deus coisas
contra a moral cristã: vinganças, separações de casais, adultérios, etc450.
Homem educado na Europa, com valores morais e culturais distantes da realidade
goiana, via as manifestações de fé do povo como sinônimo da ignorância, assim se
expressando: “Quanta indecência! Quanta ignorância! Quanta ofensa à higiene!”451.
Observando que o povo não compreendia o sentido e o significado litúrgico das
manifestações utilizadas como símbolo de adoração ao Senhor Jesus, algumas
incompreensões são mesmo tidas como abusivas, como demonstra a seguinte passagem de
suas memórias:
Que direi das rezas e das ladainhas, que cada família promete [fl.49] lá ir cantar? Quantos arranhões no
latim! Começando pelo in adjutorium [meun intende], cantam: Deus no oratório não me em[tende] e
respondem: É o dom da Joana e da Fostina. {Domine ad adjuvandum me festina}452.
Em sua crítica continua:
Certas formas manifestas de catolicismo popular, considerados em suas formas devocionais como ingênuos,
também causavam na elite goiana desaprovação, como foi o caso do movimento de “Santa” Dica, na cidade de
Pirenópolis, nas primeiras décadas do século XX. Um artigo publicado no jornal O Lar de 30 de janeiro de 1927
teceu duras críticas ao movimento, assim dizendo: “BenedictaCypriana Gomes, a conhecida embusteira que vivia,
até há pouco, no logar denominado Lagóa, no município de Pyrenopolis, onde conseguiu reunir grande número de
ingênuos, que para alli afluíam de longas terras, está novamente reclusa na cadeia desta capital. É interessante o
caso d‟essa mulher. Quando faz mais ou menos um anno o governo d‟este estado, sopesando os malles, que
poderiam advir para a nossa terra do hecterogeneo ajuntamento de crentes em torno de BenedictaCypriana, agiu
no sentido de dispersal-o, não pôde fazel-o sem o auxílio das bayonetas. Houve mortes. Houve prisões. Ela
mesma, a “iluminada do Rio Jordão”, esteve na prisão. Absolvida ella, ao contrário de ir viver em paz com sua
família prosseguiu nos seus embustes. Foi ao Rio de Janeiro. Lá se expôs à admiração dos ingênuos. Agora de
retorno, trazendo em sua companhia, adensando lhe o número de admiradores, alguns jornalistas, Santa Dica
peregrinava de fazenda em fazenda, com enorme séquito de crentes. O Governo do Estado, precavendo-se contra
as más consequências da ação de BenedictaCypriana, prendeu-a novamente, bem como alguns indivíduos que a
estavam explorando. Andou muito bem”. Cf. Jornal O Lar. Pirenópolis. Edição de 30 de janeiro de 1927.
449 Publicada em 2007, como parte das celebrações do 48º aniversário da Universidade Católica de Goiás em
parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC). Cf. SILVA, Eduardo Duarte.
Autobiografia. Goiânia: UCG/IPEH-BC, 2007.
450 Idem, p. 165.
451 Idem, p. 166.
452 Ibid.
448
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Master Christi é: Matem a Cristo.
Virgo Praedicanda = Virgem pé de cana.
Virgo pontens = Vira o pote.
SpeculumJustitiae = Esperem a justiça.
JanuaCoeli = Já não há céu.
Stella matutina = Estrela da matinha.
Agnus Dei quitollispeccatamundi = Já que não deu o que toca para cada mundo etc.
Quanta sandice!453
O controle eclesiástico sobre a romaria implicava em submeter à Igreja as rendas
geradas pela festa, geralmente as maiores fontes de renda para o município, cabendo aos
clérigos a decisão de como, quando e onde aplicá-las. O poder das irmandades, até então
responsáveis por esta administração, foi diminuído e findado a sua autonomia frente à
autoridade eclesiástica. Este fato resultou em conflitos entre o bispo e as lideranças políticas
locais, que geralmente estavam à frente destas irmandades, até mesmo como símbolo de
seu prestígio.
Explicando o conflito religioso que enfrentou em Barro Preto, Dom Eduardo Silva
demonstra sua disposição em assumir o controle sobre as rendas da romaria, o que seria
feito com a nomeação dos padres redentoristas como responsáveis por sua realização. O
confronto com as estruturas do coronelismo local foi demonstrado pelo bispo ao narrar sua
visita a Barro Preto:
Encheu-se imediatamente o Santuário de gente, e estando eu no presbitério apresenta-se o “bispo
palhaço de circo”, que eu não conhecia, para tomar-me satisfação, julgar o meu decreto mudando o dia
da festa, e declarar-me que o negro sacristão por ele nomeado não havia de ser destituído. Quem era o
tal sacristão? Um verdadeiro rato de igreja.
“Quem é o senhor que me fala com tanta autoridade?”, Perguntei.
“Sou Coronel Anacleto, católico apostólico, mas não romano”.
“E o senhor?”, perguntei ao outro indivíduo que o acompanhava.
“Sou o coronel Gonçalves, também católico apostólico, mas não romano”.
“Pois então o que pretendem se não são católicos romanos, quando eu o sou, os padres o são, o povo o
é, e este santuário é de católicos romanos?”.
“Qual nada”, contestou o Anacleto, “estamos em República e quem governa é o povo, e o povo há de
fazer como e quando quiser; eu é que hei de administrar as rendas da romaria, e não estes frades
estrangeiros”.
Fiz quanto pude para convencer o homem de que estava laborando em erro, mas foi debalde454.
Confronto dessa mesma natureza, o bispo encontrou em Muquém, onde o
representante do pensamento católico se confrontou com a prática de leigos a controlarem
a principal manifestação religiosa da região: a Romaria de Nossa Senhora da Abadia. Em
sua autobiografia assim descreve o conflito:
Sabendo o coronel e chefe político José Joaquim de Sousa, conhecido por terror do Norte de Goiás, o
qual havia já cinquenta anos que governava despoticamente o santuário de Muquém, cujas esmolas dos
fiéis subiam anualmente a dezenas de contos de réis, que eu havia tomado conta do Santuário de Barro
453ibid.
454
Idem, p. 162.
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Preto, fez-me saber por terceira pessoa que, se eu quisesse experimentar o gosto do cacete, que lá
fosse455.
Tal como em Barro Preto, o seu objetivo era estabelecer o controle eclesiástico sobre
o santuário, que até então se encontrava sob a tutela de irmandades dirigidas pelos coronéis
locais. Para tal, como fora feito anteriormente, ameaçou suspender a realização da festa, o
que, para os políticos locais, implicaria na ruína de São José. No entanto, usou de
estratagema diferente daquele utilizado em Barro Preto, onde passou a administração do
santuário e da festa para a congregação dos redentoristas, pois desta feita manteve a
romaria sob controle da irmandade, embora reexaminando o seu compromisso e sua
aprovação canônica, afastando de sua direção o coronel: “Sem pau nem pedra, acabousenaquele dia a ditadura do coronel José Joaquim, daquele que era apelidado o terror do
Norte, e sem eu experimentar o gosto do pau, como estava ameaçado”456.
Em suas passagens o bispo demonstra que em Goiás o processo de romanização da
Igreja Católica enfrentou, por vezes, a oposição dos políticos locais. Entretanto, de todos eles,
o conflito que assumiu maior proporção foi o confronto com a oligarquia dos Bulhões, na
Cidade de Goiás. Leopoldo de Bulhões, chefe político no Estado, foi um dos líderes do
movimento republicano na região chefiando o Partido Democrático. Era um homem culto,
próximo à maçonaria e, mesmo sem professar, ao protestantismo. Suas afinidades
socioculturais e ideológicas o colocavam na linha de frente na defesa da separação entre a
Igreja e o Estado. Seu posicionamento político era abertamente desaprovado e criticado por
Dom Eduardo Silva, o que estimulava as críticas feitas pelos opositores dos Bulhões,
especialmente manifestas no jornal Gazeta Goiana. Desta feita, o político também iniciou
uma campanha contra o bispo que, se sentindo destratado, mudou a diocese para a Cidade
de Uberaba, no ano de 1896.
Dom Eduardo Duarte Silva demonstrou igualmente uma preocupação com os desvios
morais na sociedade goiana, criticando em vários momentos o clero secular, que ainda
mantinha vícios do passado colonial, quando, segundo o bispo, os padres eram “atraídos
pelo ouro e esquecidos do ouro principal, „as almas‟ ”457.Este esforço moralizador se
apresenta, principalmente, no sentido de reforçar a prática dos sacramentos junto à
população goiana, em especial do casamento, tendo por principal alvo a mulher e o
fortalecimento de uma moral feminina marcadamente conservadora.
A ROMANIZAÇÃO DA IGREJA E A MORAL FEMININA EM GOIÁS (1870-1930)
A moral feminina em Goiás foi debatida à luz de dois pensamentos distintos, o
positivismo e as concepções católicas. O positivismo, paradoxalmente, alimentou posturas
progressistas e, ao mesmo tempo, conservadoras, principalmente no que diz respeito à
institucionalização do casamento civil e a conquista do direito do votofeminino,
respectivamente.
A concepção positivista colocou na cena política uma nova elite intelectual, com um
projeto de gestão que associou cientificismo e progresso, nascendo daí processos de
Idem, p. 95.
Idem, p. 100.
457 Idem, p. 98.
455
456
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urbanização e higienização que copiavam os padrões europeus, principalmente na capital da
República e em São Paulo, que se tornaram vitrines para as elites de outros estados458.
A entrada no cenário político dos bacharéis, engenheiros, advogados e médicos,
reforçou as novas concepções de sociabilidade e civilidade, levando a um profundo desprezo
pelos grupos sociais destituídos de educação formal. As relações sociais decorrentes deste
novo cenário entrelaçavam formas tradicionais de dominação com uma ideologia
progressista fundamentada em uma racionalidade científica fortemente caracterizada pelo
darwinismo social. O positivismo também modelou os códigos morais, refletindo tanto no
comportamento dos indivíduos quanto na divisão de papeis sociais.
Reproduzindo um artigo extraído de um jornal francês, o periódico O Lar apresentou
a discussão entre conservadores e progressistas nos seguintes termos,
A mulher tem recursos para a política, terá também direitos políticos? O evangelho emancipando-a da
injusta sujeição em que vivia no mundo pagão, reconheceo-lhe o caráter de pessoa humana, elevou-a a
dignidade de colaboradora do homem – e no dizer bíblico, o seu complemento em toda a obra que
interesse à humanidade. E nessa colaboração ela se tem elevado a alturas que muito a dignificam459.
A necessidade de construir uma nova imagem nacional encontrava suporte em uma
intelectualidade que definia, a partir de pressupostos científicos, os papéis sociais de
homens e mulheres na edificação do progresso econômico e moral do país. A valorização do
saber erudito, visto como alicerce moral para os indivíduos refletiu-se no modelo de ensino
adotado460. O ideal de civilização tornou-se atributo natural da elite dirigente, legitimou as
relações de poder político, consolidou a exclusão social dos grupos populares considerados
incivilizados e definiu os laços familiares de acordo com a natureza de cada sexo461.
AugusteComte, ao definir o núcleo central do positivismo, redefiniu o conceito de
progresso como forma de aperfeiçoamento dos elementos permanentes na sociedade, a
religião, a família, a propriedade, a linguagem, etc. Em 1852, publicou o seu Catecismo
Positivista, que se propõe a ser, para além de uma doutrina social, uma religião universal.
Para Nicolau Sevcenko, tratava-se de “um tempo mais acelerado, impulsionado por novos potenciais
energéticos e tecnológicos, em que a exigência de acertar os ponteiros brasileiros com o relógio global suscitou a
hegemonia de discursos técnicos, confiantes em preservar a vitória inelutável do progresso e por isso dispostos a
fazer a modernização a qualquer custo”. Cf. SEVCENKO, Nicolau. Introdução. In: (Org). História da vida privada no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, v. 3, 1998, p. 27.
459Jornal O Lar. Pirenópolis. Edição de 15 de fevereiro de 1927.
460 Em uma avaliação escrita de uma aluna do curso de magistério, no ano de 1905, pode ser lido que “Os
princípios, as regras cardeais da didactica não são arbitrarias; repousam sobre a própria natureza do espírito
humano e sobre a essência das cousas. As regras que o professor precisa practicar no ensino estão traçadas na
parte da methodologia chamada didactica. A didactica traça princípios relativos ao ensino, aos alunos e ao
professor. É assim que diz o 1º Princípio: O ensino deve ser racional, isto é, reger-se pelas leis da razão pura,
basear-se na logica, no conhecimento das faculdades psychicas”. O princípio didático exposto pela estudante é
revelador de dois aspectos fundamentais que se pode notar naquele momento: o caráter laico e científico que
orienta as concepções didáticas e a forte influência do positivismo, bem como de novas áreas de conhecimento
como a psicanálise surgida em 1885. Cf. AHG (Arquivo Histórico de Goiás). Instrução Pública. Cx. 0567.
461 Segundo Clarice Ismério, no positivismo é observado um discurso que considera a mulher responsável pela
manutenção da moral e pela realização do culto privado. No seu Catecismo Positivista, Auguste Comte
estabeleceu modelos de conduta feminina baseados na estrutura patriarcal de família. “A mulher deveria ser a
rainha do lar e o anjo tutelar de sua família e, para atingir esses modelos, seguiria formas pré-estabelecidas pelo
Catecismo Positivista, no qual Comte codificou todo o pensamento conservador em torno da mulher”. Cf.
ISMÉRIO, Clarice. A mulher, a moral e o imaginário: 1889-1930. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 19.
458
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Sua proposta fundamentava-se em rígidos preceitos morais, dimensionando os papéis
sociais de homens e mulheres na família a partir de pressupostos patriarcais. Para o
pensador,
a mãe tem para ambos os sexos igual preponderância, não só como fonte essencial de nossa existência,
mesmo física, mas sobretudo em virtude de sua presidência normal no conjunto de nossa educação.Em
torno da mãe agrupam-se naturalmente, em primeiro lugar o pai, e algumas vezes a irmã, depois o
mestre e o protetor, além das relações análogas que se pode multiplicar muito na família e, sobretudo,
fora dela. Estendendo a mesma apreciação aos outros tipos, instituímos uma série de adorações,
gradativamente menos íntimas, porém cada vez mais gerais, de onde resulta uma transição quase
insensível do culto privado para o culto público”462.
Em suas premissas Auguste Comte apontaa família como o esteio institucional da
sociedade. Nela, a mulher tem papel primordial como guarita moral e educadora,
transmitindo aos filhos valores positivos e assegurando à sociedade bons cidadãos. No Brasil
seu pensamento encontrou eco nos mais variados círculos sociais e políticos. A primeira
sociedade positivista no país, fundada em 1876, inspirada no Catecismo Positivista, teve
entre os seus objetivos conquistar novos crentes para a religião da humanidade e criar
cidadãos capazes de influir nos negócios públicos, influenciando decisivamente os ideais
republicanos tanto entre os militares quanto entre os civis.
Os princípios morais do positivismo comteanose entrelaçavam aos interesses das
elites brasileiras. Neste sentido, a absorção de normas comportamentais que regulavam o
papel social das mulheres tornou-se mecanismo de reprodução dos valores oligárquicos.
Para os grupos politicamente dominantes a normatização das formas de conduta tornou-se
importante meio de distinção, social e cultural, e assim afirmava seu poder.
A concepção positivista sobre a mulher é claramente delineada pela Igreja Positivista
do Brasil. Em conferência no dia 27 de novembro de 1908, um de seus membros exalta:
Quanto a mulher, acabamos de provar a sua preeminência social e moral. Compéte-lhe o primeiro lugar
na jerarquia social; é o elemento principal na ordem humana, do progresso da sociedade. No ponto de
vista moral, é o tipo do acendente contínuo do altruísmo sobre o egoísmo; é o intermediário entre a
humanidade e seus filhos(...)Demos ao hômem a consciência da sua missão, à mulher a consciência de
seus deveres (...)Coloquemos a Mulher na sua função de mãe de família, de filha, de irman, de espoza: é
o seu verdadeiro destino a formação do homem; e para isso é preciso que o homem cada vez mais se
aprefeiçôe, de maneira a transformar a Terra num verdadeiro Paraízo463.
O entrelaçamento entre os valores tradicionais, arraigados na estrutura patriarcal da
família brasileira em geral, e da goiana em particular, com os pressupostos morais do
positivismo, que reservam à mulher uma condição de igualdade moral com os homens,
inspirou o surgimento das primeiras ligas que lutavam pelo progresso feminino. Segundo
Pedro Oliveira, na década de 1870, consolidou-se, com o movimento republicano no Brasil,
os valores que consideravam que homens e mulheres formavam a nação do Brasil e que,
portanto, a educação dos cidadãos haveria ter como base a família e a escola, iniciando aí
462Apud
463
ISMÉRIO, Clarice. A mulher, a moral e o imaginário: 1889-1930, op. cit., p. 161.
REVISTA DA IGREJA POSITIVISTA DO BRASIL, n. 273, p. 64-65.
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os movimentos que reivindicavam a instrução pública para meninos e, sobretudo, para as
meninas464.
Por outro lado, a laicização da educação, com o fim da obrigatoriedade do ensino
religioso, foi vista por setores da elite goiana como fator para a corrupção dos costumes que,
segundo os mais conservadores, acompanhava os modernismos dos novos tempos. Em
artigo publicado no jornal O Lar, em 15 de fevereiro de 1927, uma das redatoras assim se
expressa:
Alinhavos...
É de palpitante necessidade, sobretudo nos tempos actuaes, a educação religiosa. E, por isso, não
possuindo, infelizmente nossos grupos escolares e grande parte de escolas isoladas aquelle ramo de
educação, ensina-se nas egrejas o catecismo. É essa lacuna, - a ausência da educação religiosa – que
contribue poderosamente para arrastar a sociedade à anarchia, à degeneração do caracter, à corrupção
dos costumes. Desgraçadamente, poucos conhecem esse pequeno livro que se ensina as creanças e
que contém, na simplicidade encantadora de suas páginas, a solução de todos os problemas da vida
humana e seus destinos eternos. (...). Vigários fazem, não raras vezes, sacrifícios para doutrinar as
creanças, assiste aos senhores paes de família a obrigação de se enteressar para que seus filhos vão à
egreja, à hora designada, afim de adquirirem, ali, algumas noções, ao menos, das grandiosas verdades
contidas no catecismo. – Quantos desgostos poderá evitar aos paes um filhinho assíduo às aulas de
catecismo! A sciencia humana trata apenas dos problemas da vida material mas a raiz de todo o
progresso está na formação moral, e esta é inseparável da religião. A crise de caracter que avassala a
sociedade moderna não é outra cousa senão uma consequência logica e natural da ausência de moral
religiosa que a impiedade dos governos pretendeu substituir por uma moral leiga. E a desgraça maior
que pesa sobre a nossa querida pátria é a chamada escola leiga, onde se pregam muitas vezes,
doutrinas deletérias, perniciosas, onde se permite ensinar um pouco de tudo as creanças, menos
daquilo de que a alma infantil tem mais necessidade, isto é, de Deus, da religião. Esforcemo-nos todos,
sacrifiquemo-nos, se preciso fôr, para adquirirmos os conhecimentos humanos, mas sem desprezarmos
a sciencia da religião, a mais bela, a mais útil, a mais necessária, a única indispensável e insubstituível.
(...) Empreguemos nessa benemérita cruzada os nossos esforços, pois, assim, poderemos nos orgulhar
de ter desempenhado parte de nosso dever, como filhos da Santa Egreja Catholica465.
Esta visão conservadora do valor social da educação religiosa encontrou sustentação
no reformismo ultramontano que, ao difundir a moralidade cristã, obtevenas elites respaldo
para a ação pastoral, como demonstra o artigo acima. Os valores disseminados pela Igreja
reproduziam formas de comportamento desejáveis, principalmente aqueles relacionados à
autoridade patriarcal, base da família goiana. Considerada o alicerce da sociedade,
sobretudo por aqueles que eram árduos defensores dos preceitos republicanos,fazia-se
necessáriaa preservação da estrutura familiar nos moldes tradicionais e sua
indissolubilidade era tida como inquestionável, como demonstra artigo publicado em 1926.
“A questão do divórcio
... Vem, de algum tempo a esta parte, empolgando a atenção das classes mais ilustradas do paíz,
jornaesque abrem enquetes e apuram opiniões que, aliás, variam conforme os pontos de vistas das
pessoas que são ouvidas. Parece-nos, felizmente, que ainda desta vez os adeptos do divórcio não
conseguirão ver convertida em realidade a lei que o autorize. O clero nacional se movimenta
francamente contra o divórcio tendo algumas autoridades dirigido ao Presidente da República e ao
Senado e à Câmara Federaes o seguinte telegrama:“Em nosso nome e no do povo catholico das nossas
464OLIVEIRA,
Pedro A. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.
465Jornal O Lar. Pirenópolis. Edição de 15 de fevereiro de 1927.
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dioceses, protestamos energicamente contra o atentado do projecto do divórcio, como anti-social, antipatriótico, anti-religioso. Arcebispos da Bahia, Parahyba, Olinda, Bello Horizonte e Maceio, Bispos do
Sergipe, Peauhy, Petrolina, Santa Maria, Garanhuns, Nazareth e Conceição do Araguaya466.
Nos últimos anos da década de 1920, quando começou a circular o folhetim O Lar, a
vida política brasileira estava marcada por efervescente debate sobre a condição feminina e
a conquista de direitos pela mulher, especialmente o direito de voto. Tais reflexões estiveram
presentes entre as redatoras deste jornal, marcando posições distintas sobre o assunto.
Aquelas que argumentavam contra o direito, fundamentavam suas concepções
conservadoras em preceitos religiosos, como demonstra um artigo publicado dezembro de
1927:
O voto feminino
Talvez meu modo de pensar revele excessivo atraso ou arraigamento a velhos costumese educação
antiga; não prescindo comtudo, de deixal-o externado nas colunas dessa folha, onde floresce, dia-a-dia,
a inteligência de um grupo de conterrâneas. À Mulher foi confiada uma tarefa mais nobre: creou-a Deus
para o amor e o carinho do lar, onde os seus afazeres se multiplicam quotidianamente. Que título mais
belo e mais sublime do que o de mãe? Não será, no entanto, concorrendo às urnas que a mulher
grangeará a honra dignificadora qualificação de boa esposa e de mãe exemplar. Para que em nosso
país, haja homens conscios de seus deveres, torna-se-a necessário que a mulher se embrenhe em
prélios políticos, onde, quase sempre reinam a deslealdade, a hypocrisia e a injustiça? Não! É no lar, no
suave aconchego dos corações maternos, que se formam caracteres probos e almas altruísticas, honra
das gerações a que pertencem a glória da nação brasileira! Será justo que uma dona de casa, em
cumprimento de seus deveres políticos abandone o lar, os filhos e o marido, dirigindo-se a uma secção
eleitoral? Ou uma filha, verdadeiramente mulher, vá confundir-se nessa massa informe que litiga numa
eleição? É fora de dúvida que a sinceridade de nossos princípios manda responder pela negativa 467.
Apesar de abrir espaço para manifestações mais conservadoras como essa
apresentada acima, periódicoO Lar foi saudado entre a intelectualidade goiana como um
jornal progressista, como um instrumento cujo objetivo era ampliar a ilustração da mulher
como reflexo da luta pelo progresso feminino. E em seu editorial, no primeiro número, podese ler que:
Realmente já se nos apresenta algum tanto acentuado o movimento da mulher em nosso paiz. Vemol-a,
de norte a sul, a infiltrar-se por quase todos os ramos da atividade humana. Se temos mulheres em
casa, cuidando dos seus sagrados deveres de família, temol-as também, entre outras modalidades da
vida. (...) somente Goyaz, parecia, não desejava fazer côro com as nossas irmãs de outros estados.
Agora, felizmente, surge na capital um grupo de goyanas abnegadas, empunhando a bandeira de
reerguimento do sexo. Bravos! Com a aparição d‟O Lar, orgam da mentalidade feminina, e que pela sua
significação, encerra o que há de mais sublime para a mulher de nossa terra468.
De fato, ao final do século XIX e início do século XX formaram-se as primeiras ligas
femininas que tinham como objetivo a emancipação cultural da mulher. Naquele momento,
o progresso feminino teria como ponto de partida a conquista do direito de instrução, pois
tirar a mulher do obscurantismo seria o primeiro passo para a conquista e ampliação dos
466Jornal
O Lar. Pirenópolis. Edição de 30 de outubro de 1926.
O Lar. Pirenópolis. Edição de 15 de dezembro de 1927.
468 Idem, 15 de agosto de 1926.
467Jornal
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seus direitos. Este propósito é encontrado na criação da Federação Brasileira para o
Progresso Feminino469, pois em seus estatutos encontramos que:
Capítulo I: Da Federação e seus fins:
Art. 2.A „Federação Brasileira pelo Progresso feminino”, destina-se a coordenar a orientar os esforços da
mulher no sentido de elevar-lhe o nível da cultura (...). Art. 3. Com esse intuito trabalhará a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino para os seguintes fins: 1. Promover a educação da mulher e elevar o
nível de instrução feminina470.
Em Goiás, o movimento republicano deu vazão às novas concepções sobre a
mulherdesde o final do século XIX. Os mais importantes instrumentos que difundiram
princípios, valores e ideais republicanos, tornando-se porta-vozes do movimento,foram os
jornais A República e oGoyás. Este último, fundado em 1890 com o propósito de
propagandear o novo regime implantado em 1889, lançou entre seus leitores uma discussão
sobre a emancipação feminina. Na seção de cartas, uma leitora fez uma reflexão que ilustra
o momento vivido pela mulher goiana:
Cidadão. A propaganda que o Goyás inicia em favor da mulher hade fazer rápidos progressos e
triunphará mais cedo que geralmente se presume. Atravessamos um período revolucionário em que as
idéias sãs e humanitárias desenvolvem-se e culminam com espantosa facilidade e se impõem aos
espíritos mais rebeldes e retrógrados.Não admita. No primeiro período de nossa vida nacional
dominaram, como era natural, os princípios de ordem e autoridade; no segundo, porém, em que
estamos, imperam os de autonomia e liberdade.A ocasião é, pois, mais que oportuna para a
propaganda da idéia (não digo nova, por que é do tempo de Platão) da igualdade econômica, social e
política dos dous sexos.Avante!Se o bello sexo goyano quiser ouvir-me (já me julgo com o direito de
fazer-me ouvir – pela minha edade, minha experiência e posição social) formará um partido para vos
auxiliar na vossa gloriosa cruzada. Se ensurdecer-se ao meu apelo, continuarei apezar disto a prestar
meu fraco concurso à grande causa que se pleitêa perante o tribunal da consciência pública no nosso
paíz.De vossa constante leitora.S. B. Bulhões471.
O movimento republicano em Goiás está diretamente associado à família dos
Bulhões que, em 1882, iniciou na região as agitações em torno do republicanismo. O ideário
do novo regime foi amplamente difundido pelos periódicos que estavam ligados a este grupo
oligárquico, que assumiu a condução da vida política goiana com a implantação da
República. Os debates sobre a condição feminina produziram alguns consensos, como a
necessidade de se pensar a instrução feminina e acaloradas discussões sobre temas
polêmicos como o direito de voto para a mulher.
Neste sentido, por muitas vezes,o feminismo foi visto pelas mulheres goianas no
início do século XX como forma de superar o obscurantismo e o atraso em que viviam suas
antepassadas, como expressa Grace Machado, uma das articulistas que contribuíam com o
jornal O Lar:
o feminismo para as velhas provincianas de então era o desmantelamento das famílias e elas não
procuravam conhecer os nomes suntuosos das Evas imorais que naquele tempo, como agora,
apareciam tocadas de beleza e admiração. Hoje, felizmente, tudo tem se transformado: a maioria das
velhas sertanejas rejuvenesceu; soube apreciar boas leituras, compreendeu a extensão da capacidade
Entidade civil organizada por Bertha Lutz no Rio de Janeiro, em 1922.
Estatuto da Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Rio de Janeiro, 1922, p. 01.
471 Jornal Goyáz. Edição de 20 de maio de 1890.
469
470
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mulheril e entusiástica, abandonou os clássicos costumes dos antepassados, para preparar a mocidade
com conselhos de experiências na maneira de tratar os homens e espera, fervorosa, as emocionantes
justas em que tomarão parte as suas filhas, as suas netas, afim de elegerem o homem e os homens
que deverão dirigir os destinos do país e em cujas mãos se coloca febrilmente a esperança de um povo,
de toda uma raça de gente patriótica e idealista472.
O processo de conquista de direitos para a mulher, sobretudo o direito de voto, correu
paralelamente à luta pelo direito de instruir-se. A instrução feminina em Goiás, assim como
no restante do interior do Brasil, teve seu início associado a uma lei do Governo Imperial,
sancionada em 15 de outubro de 1831, que orientava os governos provinciais a criarem, nas
localidades mais povoadas, escolas para a instrução feminina. Na Província de Goiás,
conforme é apontado por Bretas (1991) foram instaladas duas instituições: a primeira,
fundada em Natividade, por decreto lei datado de 7 de junho de 1831, e, a segunda, na
capital, em setembro de 1832.
Mas foi com a fundação do Colégio Santana, em 1887 473, que a educação feminina
de fato firmou-se na Cidade de Goiás. Neste sentido, pode-se dizer que a educação da
mulher foi, sobretudo, assumida por instituições particulares, demonstrando que a
preocupação com a formação da mulher era restrita às elites474. Para Genesco Bretas, tal
fato se confirma pela instalação desta instituição como resultado dos esforços das damas
da sociedade junto a Dom CláudioPonce de Leão, bispo de Goiás, que, atendendo aos
apelos, trouxe para a capital as irmãs dominicanas que foram responsáveis por sua
fundação475. Em 1926, Noemi Lisbôa de Castro, fiscal do governo, em correspondência
dirigida ao Secretário dos Negócios do Interior e Justiça de Goiás, ressalta o papel dessa
instituição de ensino:
O Collegio Sant‟Anna vae correspondendo às exigências pedagógicas na actualidade e,
imnegavelmente, vem prestando ao nosso Estado grandes e assignalados serviços na actuação e
formação intelectual e moral da mulher goyanna, nesta época em que o ideal feminista – igualitário –
adquire proselytos e é uma bandeira desfraldada nos países cultos, preocupando os respectivos
parlamentos476.
472Jornal
O Lar. Pirenópolis. Edição de 15 de janeiro de 1928.
Embora destinado à educação da elite goiana o Colégio Santana também recebia alunas pobres cuja
frequência na escola era subsidiada e fiscalizada pelo estado como demonstra vários mapas de matriculas
encontrados no acervo do Arquivo Histórico de Goiás na documentação referente ao ensino público no estado, no
período de 1903 a 1926.
474 A escola normal foi o principal meio para a formação intelectual da mulher, concebia-se que a função de
educadora da mulher exercia-se em primeira mão no lar, instruindo os filhos dentro de uma moral cívica e cristã.
As escolas católicas geridas por congregações de origem europeia, por seu rigor e disciplina, cumpriam o papel
de formadoras de uma moral feminina com excelência como pode atestar os diversos relatórios sobre o ensino
ministrado no Colégio Santana, como é mostrado pelos dizeres: “A Escola Normal do Collegio Sant‟Anna, gozando
dos favores da equiparação, sob minha directa fiscalização é um instituto que vae preenchendo os fins de sua
creação e satisfazendo os preceitos pedagógicos, systematizados de acordo com a nossa doutrina. (...). Em
minhas visitas a essa casa de ensino, tenho, com satisfação, observado a regularidade e a eficácia do estudo ali
feito, revelando as alunnas bom aproveitamento. A matrícula e a frequência ali são o índice e o melhor atestado
de sua recomendação. AHG. Instrução Pública. Caixa 0755.
475BRETAS, Genesco Ferreira. História da Instrução Pública em Goiás. Goiânia: CEGRAF / UFG, Coleção
Documentos Goianos, n. 21, 1991.
476 AHG. Instrução Pública. Caixa 0737.
473
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O Colégio Santana cumpriu um importante papel na formação da mulher em
A formação moral difundida pela instituição preparava as moças para o exercício
da maternidade, educando seus filhos no espírito cívico cristão conforme era exigido por sua
condição social, e também para o magistério, formando professoras que se encarregavam
da elevação moral de seus alunos. Como uma segunda mãe. Em 1919, na condição de
paraninfo das formandas daquela instituição, o bispo de Goiás, Dom Prudêncio Gomes da
Silva fez um discurso ressaltando o papel da mulher na preservação da instituição familiar e
sua formação moral na escola:
Goiás477.
O escritor portuguez Julio Dantas, cujo espírito religioso, aliás, não conheço para encamiar-lhe as
produções, publicando no “Correio da Manhan” um artigo com a epigraphe “A Crise no Lar”, disse que
uma das características inquietantes da vida portuguesa no momento que passa, é a dissolução do
velho espírito patriarcal, do sentimento de família, outrora tão fortemente enraizado no coração das
populações, visto tender o homem a permanecer no lar o mínimo tempo que pode (...). Por toda parte,
continua o escritor, se abrem cafés, clubs, cinemas, bars, theatros, casa de jogos, industrias de prazer
de varia ordem, e todas as noites essas casas regorgitam de homens, que abandonam o ambiente
intimo e sereno da família para se intoxicarem, se neurasthenisarem, desperdiçarem nervos e energia,
etc. E perguntado-o porque desse afastamento do homem da família exclama: antes de tudo e acima de
tudo, a razão é que o lar não o attrae, a mulher que nelle vive, seja filha, seja espoza, seja irman, não
sabe torna-lo atraente. E qual o motivo? Cahimos num delicado problema, responde, e esse problema é
a educação da mulher, não da mulher que se propõe substituir-nos, mas da mulher que se destina a
amparar-nos. Existe realmente entre nós, conclue, uma crise do lar, e só há um meio de combate-la: é
educar a mulher478.
Como é perceptível pelo discurso do bispo de Goiás, Dom Prudêncio, a igreja
romanizada encontrou, em razão dos princípios morais e a defesa das virtudes femininas
ligadas à educação, respaldo entre as elites goianas479. De acordo com Euzébio de Carvalho,
a reforma católica, a partir do Concílio Vaticano I, inaugurou novas formas de experiências e
vivências religiosas no interior do Brasil 480. Este catolicismo renovado, que fortaleceu os
Segundo relato da inspetoria de ensino em 1926, o curso normal do Colégio Santana “é feito em quatro anos
e as matérias lecionadas são as exigidas pelo regulamento adoptado pela sua congenere oficial. E são:
Portuguez, Francez, Arithimética, Geographia, Corographia, Cosmographia, Geometria, Desenho, História
Universal, História Patria, História Natural, Physica, Chimica, Methodologia e Pedagogia. Além dessas disciplinas,
existe ainda a de prática escolar, onde as alunas se exercitam no manejo dos methodos aconselhados pela
doutrina. O corpo docente é composto, em quase sua totalidade, das próprias Irmãs de hábito, aliás
competentíssimas que, a par de muita inteligência e grande preparo em humanidades dispõem de
excellentesmethodos de ensino. AHG. Instrução Pública. Caixa 0737.
478 AHG. D. Prudêncio. Caixas Avulsas. 1919.
479 O jornal O Lar trazia em sua colona “esboços” perfil de jovens moradoras da Cidade de Goiás. As perfiladas se
destacavam por sua delicadeza, bons modos e compostura, bem como por suas habilidades, como tocar um
instrumento musical, geralmente o violão ou o piano, e o canto, habilidades apresentadas em encontros sociais
em ocasião de festas e solenes. O exemplar de 19 de maio de 1927 trouxe um esboço bastante ilustrativo, que
além de ressaltar a formação intelectual da perfilada faz também uma relação com formação moral religiosa tão
característica da mulher goiana, assim dizendo: “Esta morena cor de jambo é um talento primordial, que encanta
os leitores com sua pena sem rival. O seu pequeno apelido é mesmo muito infantil, trata todos com alegria, é
também muito gentil. Sua casa faz esquina numa zona muito fria; é cantora do Rosário, professora e filha de
Maria. Esta folha desvanecida tem seus escritos publicados, sendo estes com entusiasmo geralmente
apreciados. Toca piano admiravelmente e gosta muito de flores, possue uma biblioteca composta dos melhores
autores. É muito talentosa e de grande notabilidade, pois recebeu ultimamente a benção de sua santidade".
480CARVALHO, Euzébio de. Experiências e práticas religiosas a partir do sujeito: os relatos de Anna Joaquina da
Silva Marques – Cidade de Goiás, final do século XIX. In: QUADROS, Eduardo Gusmão de; SILVA, Maria da
477
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dogmas da Igreja e a autoridade papal, foi gradativamente controlando e tomando espaço
do catolicismo devocional, tipicamente popular. Para este estudioso, a chegada dos
dominicanos em Goiás, a convite de Dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, em 1881,
marcou de forma mais efetiva o início da renovação católica na região.
As novas formas devocionais, principalmente os cultos marianos, assim como a
disciplinarização do clero e dos fiéis iam ao encontro dos anseios dos grupos dominantes,
que viam com certo receio as conquistas modernas na Europa e Estados Unidos,
principalmente naquilo que diz respeito à conquista e ampliação dos direitos sociais de
trabalhadores e em especial das mulheres. A devoção mariana prega uma concepção de
maternidade associada à resignação e ao caráter passivo da mulher na sociedade.
Na tradição devocional cristã a Maria a maternidade assume um lugar primordial e o
nascimento de Jesus tem um sentido axial, confirmando as promessas proféticas presentes
nas tradições e na memória do povo judaico. A maternidade é apresentada paradoxalmente
como uma forma de poder que reveste o nascimento como um projeto sagrado, e como
resignação, pois Maria, a escolhida de Deus para que se cumprisse o seu projeto, resignavase ao destino do filho. O Cordeiro de Deus. A maternidade configura-se, no cristianismo,
como um atributo feminino por excelência, cujo caráter sagrado impõe à mulher uma
rigorosa disciplina familiar.
A maternidade se apresenta em Maria como atributo feminino por excelência não só
pela sua concepção, mas, também, por sua resignação. Ao conceber ela também é capaz de
antever o destino do filho, a morte na cruz como forma de redenção dos pecados da
humanidade, a qual ele também representa, pagando com o seu próprio sangue a remissão
dos pecados dos homens. A maternidade, para a Igreja, protegida pelo sacramento do
casamento, é vista como a consecução e realização da missão social da mulher.
No entanto, se o papel social da mulher voltado para a maternidade e o casamento
era consensual entre a Igreja e a nova elite política que emergia em Goiás com a
implantação da República, o mesmo não ocorria no que diz respeito ao conteúdo
sacramental que envolvia estes dois atos. A questão dos registros civis de nascimento e,
especialmente, do casamento suscitou na sociedade goiana da época intensas discussões
entre o clero romanizado e os arautos do novo regime.
A defesa do caráter sacramental do batismo e do casamento por parte da Igreja, cuja
propaganda tinha como principal alvo as mulheres, fundamentalmente as mais jovens em
idade para se casarem, era visto com certo desprezo e considerado atraso entre os
defensores do novo regime. O próprio ultramontanismo, símbolo da igreja renovada, passou
a ser alvo de duras críticas por parte dos republicanos, como expressa a reflexão
apresentada pelo jornal Goyaz, em 4 de junho de 1887, ocasião da morte de seu fundador,
Félix de Bulhões, um dos mais árduos defensores das modernidades liberais e republicanas
que eram combatidas pela reforma, motivo pelo qual foram negadas solenidades religiosas
em seu enterro:
Se a religião consiste em contínuas [ilegível] e de excluir o cuidado com a vida futura, privando o homem
de ocupar com as grandes ideas que são o fructo da razão com o que o Ser Supremo o dotou: se a
Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de (Orgs). Cristianismos no Brasil Central – história e historiografia.
Goiânia: Editora da UCG, 2008, p. 110-111.
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religião, dizemos, pretende separar de seu seio os homens sábios, os bemfeitores da ordem social, e
lançar-lhes a comdemnação, tal religião não é a christã não tem cunho algum de verdade481.
O clero reformado em Goiás procurou intensificar sua ação pastoral incentivando a
prática sacramental, principalmente do matrimônio, considerando o casamento civil uma
mancebia legalizada pelo Estado. Nas primeiras décadas do século XX, o confronto de ideias
entre o clero romanizado e a intelectualidade goiana ficou claramente delineado nas
páginas dos jornais republicanos e católicos, como mostra um artigo publicado na folha A
República, em 28 de setembro de 1896, com o título de Esses Padres (Nos
quoquesgenssumus):
O reverendo da confissão católica para responder a criteriosa censura levantada por este jornal contra
insidioso acto da qualificação parva, que deu de ilegítimos os filhos havidos do casamento civil, que, na
maneira estulta do seu pensar, só essa legitimidade traz o casamento religioso sobre abraseado ao
púlpito em uma das noites passadas e dall‟ibordalengou livremente, em estytlo consoante ou
phiologismo dos tempos do manipansos ageológicos – para em heréticas esturradas e cristalinas
tolices, tão alprestemente românticas, salientar seu conceito sobre os pontos differenciaisdos dois
modos de contrahir casamento – civil ou religioso - dando preferencia a este dentro da sua Egreja com
razões tão conceituosas que se ainda vivesse o padre percebe o menino faria dele um converso.Para
demonstrar até onde se estende a elasticidade d‟uma inépcia, comparando a validade dos dois
cazamentos, fez exhibição de espírito anão e tolice agigantada para dar a entender, que, na sua opinião,
a egreja se lhe afigura um estado no estado, e o modus vivendi será como o de potencia a potencia.De
parte as rapsódias bíblicas procuraremos incutir-lhe no espírito ducilosencinamentos dos padres doutos,
que jamais irrogarão aos paes de família honesta a injuria soez de chamar illegitimosseus filhos havidos
de casamento civil, único que a lei reconhece legal, capaz de formar a família de transmittor de direitos
hereditários, em quanto o casamento catholico não produz esses effeitos, e os filhos desse ajuntor
perto, verdadeiro concubinato pois da lei de 1890 são considerados espúrios ou de paternidade
illegitima.O padre catholico ilustrado, que sabe pela cultura de seu espírito capciliar os deveres de
cidadão e do dogmatizante d‟uma confissão qualquer, é aquelle que ao cazar o seu devoto lhe dá a
instrucção precisa, convencendo-o de que o seu enlace só pode produzir os effeitosdesejados, que é a
constituição da família, a legitimidade dos filhos depois que tiver realizado o cazamento civil.Assim
procedendo evitaria o avultado número de cazamentoscatholicos, de que ha noticia,emboidos os
nubentes por falsas doutrinas da desnecessidade do casamento civil.O que adianta civilizado a
pytrhonice do padre inculto?Simplesmente a implantação da nulificação ou ignorância da lei do estado,
preconizar o concubinato, o desprestígio da família perante a sociedade, como a illegitimidadade dos
filhos. Se o padre da arenga quiser vir a imprensa discutir a questão pelo lado philosophico tem francas
as linhas desse jornal, onde podemos terçar em leal torneio em terreno egual-que, não o outro d‟onde
faz jorrar a eloquência da frangalhice e mixórdia.Somos brasileiros, somos catholicos – não são somos
fanáticos nem obscurantista482.
O jornal A república se definia como um órgão imparcial que defendia os interesses
públicos de toda a sociedade. No entanto, em suas páginas é notória a campanha
empreendida contra a Igreja Católica no que diz respeito ao casamento como instituição e
sacramento. O argumento sempre levantado em seus artigos é o da validação do casamento
pela lei, alegando que o sacramento religioso não teria validade legal, não assegurando a
legitimidade dos filhos e, por conseguinte, o direito de herança. A concepção legal do
matrimônio é afirmada pelo seu caráter contratual, como base para a formação da família,
valorizada segundo o espírito republicano como alicerce da organização social.
481Jornal
GOYAZ. Ultramontanismo, 4 de junho de 1887.
482Jornal
A República. Cidade de Goiás, 28 de setembro de 1896.
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Considerando o casamento religioso, em seu aspecto sacramental, como ato solene
e cerimonial, a legislação do casamento civil define que compete ao Estado legislar sobre o
casamento. Após aimplementação da lei do casamento civil houve uma depreciação no
valor do custo religioso da cerimônia, diminuindo a arrecadação que a provisão rendia para a
caixa episcopal. A propaganda clerical fundamentava-se na tradição e postulava uma
moralidade que sustentava o aspecto sacramental do casamento, defendendo que o seu
valor sagrado, consagrado pelo amor declarado entre os nubentes diante do sacerdote,
constituía o ato primeiro na formação da família diante de Deus.
A formação do Partido Católico defendendo prerrogativas da Igreja que se
fundamentavam nas tradições sugeria que a instituição buscava respaldo também no
campo político, o que em certa medida enfraquecia os seus argumentos, pois os defensores
do casamento civil não viam contradição alguma entre a fé e a lei. Nesta lógica a ingerência
da Igreja em assuntos civis era vista pelos republicanos como uma maneira da instituição
gozar interesses materiais e manter privilégios, inclusive os econômicos, desrespeitando a
igualdade diante da lei, o que deveria reger as relações sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de romanização da Igreja Católica enfrentou a oposição dos políticos
locais em Goiás. O conflito que assumiu maior proporção foi o confronto com a oligarquia
dos Bulhões na Cidade de Goiás. Dom Eduardo Duarte Silva demonstrou uma forte
preocupação com os desvios morais na sociedade goiana, criticando os vícios do passado. O
esforço moralizador da Igreja Católicamanifesta-se nos esforços do bispo em reforçar a
prática dos sacramentos, particularmente do casamento. À mulher, principalmente aquelas
em idade de casamento, se dirigiam as perolações clericais, o que resultava no
fortalecimento de uma moral feminina marcadamente conservadora, calcada nos atributos
da maternidade.
Embora existissem divergências entre os dois grupos, católicos e republicanos, tanto
o clero quanto os ideólogos republicanos concebiam o caráter sagrado da família como
elemento basilar da sociedade e, portanto, consideravam que a maternidade assumia valor
sagrado frente às relações sociais. O apelo à mulher, ressaltando o valor sacramental do
casamento feito pelo clero, tinha por objetivo sustentar concepções que se opunham aos
princípios liberais difundidos pelo republicanismo, afirmando que os laços de maternidade
só teriam validade com as bênçãos do sacerdote, considerando o casamento civil como ato
torpe e pecaminoso que ofenderia a pureza de uma donzela.
Por sua vez, os arautos do republicanismo não questionavam as crenças religiosas,
mas apelavam para a necessidade de legalizar a relação conjugal conforme determinava a
lei, pois só assim a mulher poderia, de fato, possuir filhos legítimos e ter as garantias
asseguradas pelo casamento civil, principalmente no que diz respeito ao direito de herança,
ou pensão, para a viúva e sua prole. Esse argumento foi amplamente defendido pelos jornais
republicanos. Em 27 de junho de 1890, o periódico Goyaz trouxe longo artigo expondo tais
idéias. Os argumentos apresentados, assim se expressavam:
É preciso que as pessoas de bom senso vejam que o cazamento civil em nada ofende as crenças
religiosas de quem quer que seja: a lei quer pôr todos os cidadãos em perfeita igualdade de condições, e
para isso estabelece, unicamente para os efeitos civis que a prova da legitimidade do cazamento é
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fornecida pela auctoridade civil, livre a cada um o direito de obedecer aos impulsos da consciência, no
modo de santificar a união que contrahe.Quando um indivíduo qualquer, por mais religioso que seja,
quer dispor de parte de seus bens em vida ou por ocasião de sua morte, em favor d‟estas ou d‟aquellas
instituições, não é à egreja que elle recorre para cumprir as suas vontades é à auctoridade civil que se
encarrega de fiscalizar o cumprimento d‟ellas.Antes de termos a lei do cazamentocivil, quando se
contrahia um cazamento religioso com separação de bens, com o regime total, não era a egreja que
regulava a matéria era a auctoridade civil que fiscalizava a execução do contractoanti-matrimonial.O
cazamento civil não é mais que isto, a legislação do contracto sob a lei da comunhão de bens, se não há
contracto expresso em contrário; mas só elle de agora em diante tem valor em direito, só elle constitui a
família legalmente.
O casamento civil, instituído oficialmente em 24 de maio de 1890, foi o principal
ponto de discórdia entre os republicanos e os que seguiam as reformas adotadas pela Igreja
a partir do papado de Pio IX. Os liberais consideravam superstição e atraso os princípios
morais da Igreja fundados em dogmas e apelavam para a sensibilidade
feminina,notadamente no que dizia respeito ao sentimento maternal de proteção aos filhos.
Alegavam que as autoridades civis não veriam direitos reconhecidos apenas no
consentimento religioso e não consentiriam direitos de pensão e herança àqueles que não
fossem fruto de uniões civis legais.
No entanto, pode-se perceber que os valores morais católicos que propugnavam a
subordinação da mulher ao homem no casamento, que defendiam sua submissão e
abnegação, reforçando sua passividade e docilidade ao masculino, considerado intrépido,
batalhador e criatura superior, jamais foram questionados pelos defensores da República.
Resposta interessante a este liberalismo conservador masculino que prevaleceu no
ideário republicano pode ser encontrada em instigante artigo de Grace Machado, no jornal O
Lar de 15 de setembro, que, ao defender o direito de voto para a mulher afirma que “a
mulher é revolucionária e o homem ... político legalista”483.
483Jornal
O Lar. Pirenópolis. Edição de 15 de setembro de 1928.
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VOZES DO SILÊNCIO484
LENA CASTELLO BRANCO FERREIRA DE FREITAS
Doutora em História pela USP
Sócia emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás
Por via telegráfica, a notícia da deposição do presidente da República, Washington
Luis, chegou no mesmo dia 24 de outubro de 1930 à Cidade de Goiás. Concluía-se, com a
vitória dos revolucionários, o movimento iniciado há meses, tendo à frente políticos da
Aliança Liberal, militarmente liderados pelos “tenentes”. Executor do estado de sítio e
comandante da resistência legalista no estado de Goiás, o senador Antônio (Totó) Ramos
Caiado485 relata que, tendo dissolvido as forças que arregimentara, telegrafou para a Junta
Militar investida no poder, no Rio de Janeiro, dizendo
(...) que não entregaria o governo do Estado aos elementos irresponsáveis da pequena oposição (local)
[...] pedi que enviassem um elemento digno [grifo no original] para receber em Palácio o Governo do
Estado, e foi então nomeado para vir, acompanhado de forças federais, o Dr. Pinheiro Chagas486.
Depois de vencer a resistência dos goianos, a coluna revolucionária Artur Bernardes –
formada por mineiros e gaúchos – chegou à Cidade de Goiás somente em 27 de outubro.
Durante solenidade realizada no Palácio Conde dos Arcos, o médico Carlos Pinheiro
Chagas487 – que a integrava - recebeu o governo do Estado das mãos do vice-presidente em
exercício, Humberto Martins Ribeiro488. O novo governante é chamado com urgência a Minas
Gerais; enquanto isso, o Estado Maior da Revolução nomeia uma junta governativa para
cada estado da Federação. Em Goiás, compõem-na figuras da antiga oposição: o
desembargador Emílio Póvoa, o juiz de direito da capital, Mário d‟Alencastro Caiado, e o
médico Pedro Ludovico Teixeira. A junta terá curta duração: Pedro Ludovico logo será
designado interventor federal.
Na esteira das influências recebidas da Europa, a Revolução de 1930 aproximava-se
dos ideais românticos do fascismo, que fazia uma nova leitura da história, tendo o
nacionalismo como fator de coesão e desenvolvimento econômico e social. Governos fortes
Versão ampliada do capítulo homônimo do livro da autora - Poder e paixão: a saga dos Caiado. 2 v. Goiânia:
Cânone Editorial, 2009.
485 Antônio (Totó) Ramos Caiado: bacharel em direito e líder do Partido Democrata em Goiás, de cuja Comissão
Executiva foi presidente. Elegeu-se deputado federal e senador da República, cassado após a Revolução de 1930.
486 CAIADO, Antônio Ramos. Depoimento. Autos de inventário de Cory de Carvalho Caiado, nº 3.905. Cartório de
Família da comarca de Goiás. In: BARBOSA, Alaor. Totó Caiado depõe. O Popular. Suplemento Literário, p. 2.
Goiânia, 11 de junho de 1978.
487 MICELI, Sérgio. Carne e osso da elite política brasileira pós-1930. In: FAUSTO, Boris (Dir.). O Brasil Republicano.
História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, v. 2. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977, p. 593.
488 Humberto Martins Ribeiro: médico e político filiado ao Partido Democrata; como vice-presidente, exerceu a
presidência do Estado por renúncia do titular, Alfredo Lopes de Moraes.
484
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eram tidos como desejáveis. Nas palavras de Pedro Ludovico: “É preferível a ditadura
honesta e criteriosa, como a que temos, do que um governo mascarado de liberal, mal
intencionado e carcomido pela politicagem”489.
Tanto na economia, como na política, o liberalismo era visto por muitos como causa
dos males que afligiam a civilização ocidental, dramaticamente afetada pela crise do
capitalismo, em 1929. Com o crescente autoritarismo do governo que se instalara no Brasil,
afirmou-se o exercício discricionário do poder e o cerceamento das liberdades civis, levando
à postergação das prometidas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte.
Nos estados, aboliram-se de vez os pruridos legalistas. Fechadas as assembleias
estaduais e as câmaras municipais, governavam os delegados da Revolução – os
interventores federais, com a colaboração de conselhos consultivos; nos municípios,
assumiram os intendentes, estes como aqueles da escolha dos interventores.
Em Goiás, o exercício da política seguia tradicionalmente padrões de autoritarismo e
personalismo; a circulação das elites estivera praticamente bloqueada, tanto sob o regime
imperial, como na Velha República. Pequenos e pouco expressivos grupos formavam na
oposição que veio a ascender ao governo estadual em 1930.
Derrotados os democratas - que dirigiram os destinos do Estado por quase duas
décadas (1912-1930) - os vencedores buscaram legitimar-se, inclusive com a proscrição dos
antigos donos do poder. Foram presos os irmãos Caiado – Leão490 e Antônio (Totó) Ramos
Caiado, o filho deste, Ubirajara491, além de outros líderes políticos que passaram a integrar a
chamada situação decaída. A teia de parentescos e cumplicidades que medrava nas
oligarquias dificultava, entretanto, a ação dos revolucionários.
Exemplo disso é o fato ocorrido em novembro de 1930, quando familiares de Totó
Caiado tentaram comunicar, por telegrama, a prisão do senador ao seu sobrinho, capitão
Aguinaldo Caiado de Castro, que era ajudante de ordens do coronel Góes Monteiro, chefe do
Estado Maior da Revolução. Não o conseguiram: a mensagem foi interditada, sendo
devolvido o valor pago aos remetentes. Entretanto, a despeito da severa vigilância exercida
sobre os políticos depostos e seus correligionários, sempre havia quem os ajudasse.
Correu a notícia de que um motorista do interventor Pedro Ludovico fora escalado
para conduzi-lo até Uberlândia, no Triângulo Mineiro; procurado por um dos Caiado, com
quem mantinha laços de amizade, ele concordou em levar a mensagem, que foi
acondicionada dentro do pneu do automóvel. Chegando ao destino, transmitiu-a por via
telegráfica para o destinatário na capital federal492.
Entrementes, na Cidade de Goiás, Ramos Caiado fora solto, depois de ficar preso
durante oito dias, no quartel do exército493. Em 19 de novembro de 1930, chegou-lhe às
mãos um telegrama:
Ao Dr. Ramos Caiado:
TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Última entrevista de Pedro Ludovico. Jornal Opção. Ano 27, nº 1419. Goiânia, 14-20
de junho de 2002, p. 47.
490 Leão di Ramos Caiado: bacharel em direito e Delegado Fiscal do Tesouro Nacional em Goiás.
491 Ubirajara Caiado: fazendeiro e pecuarista, filho de Antônio Ramos Caiado; havido antes do casamento, foi
reconhecido pelo pai, que o educou.
492 Cf. Iracema Caiado Zilli: neta de Antônio (Totó) Ramos Caiado, em entrevista à Autora
(2001). Indagada sobre o nome do motorista, preferiu não o revelar.
493 LUDOVICO, Pedro Ludovico. Última entrevista de Pedro Ludovico, op. cit., p. 47.
489
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Cap[itão] Aguinaldo abraça afetuosamente e diz autorizado C[oron]el Góes Monteiro, Chefe Estado Maior
forcas revolucionárias pergunta se deseja recolher-se preso aqui no Rio com todas as garantias ou si
deseja ficar aí stop Pergunta si recebeu algum dinheiro do governo federal para organização batalhões
patrióticos stop Pergunta qual parente que esta passando mal stop Capitão Aguinaldo aguarda resposta
aqui no ap[artamento]. Isso Elée diz do Rio494.
Elée é Helê Caiado de Castro495, sobrinha de Ramos Caiado e prima do capitão
Aguinaldo. O telegrama - com os recados do capitão Aguinaldo496 - chegou sem dificuldade
às mãos de Totó, até porque a interceptação poderia desagradar pessoas bem situadas na
hierarquia revolucionária. O telegrama era também um aviso de que ele contava com
proteção nos altos escalões revolucionários. Ao tomarem conhecimento dos seus termos, os
novos donos do poder em Goiás “alarmaram-se”, lembra Ramos Caiado em depoimento
escrito anos depois 497. Claro está que Totó optou pela prisão no Rio de Janeiro, onde se
sentiria seguro, longe de complôs provincianos.
Totó, Ubirajara e Leão são mandados sob escolta militar para o Rio de Janeiro. A
versão oficial é que o ministro do Interior os requisitara498. Chegando à capital federal, são
levados à presença do chefe de polícia e recolhidos à Casa de Detenção, onde estão
confinados muitos decaídos. Ali permaneceram durante três dias, findos os quais o capitão
Aguinaldo comunicou-lhes que não permaneceriam presos nem seriam deportados, mas
ficariam em liberdade vigiada, tendo a cidade do Rio de Janeiro por menagem499.
No começo de dezembro, Ubirajara é autorizado a regressar para Goiás; Leão
continuará na capital federal até maio. Relativamente a Totó, o governo revolucionário em
Goiás quer vê-lo o mais distante possível. As autoridades federais são advertidas pelo
Secretário de Segurança, Domingos Vellasco, de que o ex-senador é “elemento perigoso”; se
voltar ao seu Estado, o governo não poderá responder pela ordem pública. E mais: seria
linchado pelo povo, se viesse a atravessar “as lindeiras do Paranaíba”.
Debaixo de estrita vigilância500 e preso sob palavra, Totó ficará retido no Rio de
Janeiro durante dezessete meses501. A esposa e os numerosos filhos continuaram na cidade
de Goiás. A enorme família compreende adultos e crianças, inclusive um recém-nascido que
veio ao mundo logo depois da Revolução. Residem na chácara da Rua Nova502, divididos em
duas casas simples, de construção rústica.
A Mariquita – Maria Adalgisa de Amorim Caiado, esposa de Totó - cabe a gerência da
casa e o cuidado dos filhos. O mais velho é Ubirajara; ao voltar do Rio de Janeiro, será
responsável pela administração das fazendas e a manutenção da família. Das três filhas do
primeiro casamento de Totó, a mais chegada ao pai é Consuelo, que foi investida na
Telegrama datado de 19.11.1930, em papel da “Repartição do Telegrapho”. Arquivo da Família Caiado
(doravante AFC).
495 Filha de Colombina Ramos Caiado e Agenor Alves de Castro,
496Aguinaldo Caiado de Castro: filho de João Alves de Castro e Therezina Caiado de Castro. Oficial do exército,
apoiou a Revolução de 1930. Participou da Força Expedicionária Brasileira, na Itália. Foi chefe da Casa Militar do
presidente Getúlio Vargas e senador da República em 1955.
497 CAIADO, Antônio Ramos. Depoimento, op. cit., p. 2.
498 ROSA, Joaquim. Por esse Goiás afora. Goiânia: Cultura Goiana, 1974, p. 114.
499 Menagem: concessão que se faz a um prisioneiro, para ter como cárcere uma fortaleza, vila ou cidade, dentro
da qual pode mover-se livremente.
500 FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Poder e paixão. A saga dos Caiado. 2 v. Goiânia: Cânone Editorial,
2009, p. 99.
501 De novembro de 1930 a abril de 1932.
502 Atualmente, Rua Hermógenes Coelho, Cidade de Goiás.
494
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responsabilidade de acompanhar a política local e mantê-lo informado a respeito. De igual
modo, deverá inteirar-se da atuação da Comissão de Sindicância local, instalada pelo
governo revolucionário para apurar denúncias contra os decaídos e encaminhá-las aos
órgãos competentes, para que sejam punidos. Na capital federal estavam sediados os
órgãos de cúpula da justiça revolucionária, a saber, o Tribunal Especial 503 e a Comissão de
Correição Administrativa504.
Mesmo à distância, a sombra de Totó Caiado incomoda o governo revolucionário em
Goiás: a Comissão de Sindicância pede ao Tribunal Especial, no Rio de Janeiro, que o exsenador seja objeto de estrita vigilância, no que é prontamente atendida505.
Na correspondência guardada nos acervos da família Caiado, relativa ao período de
permanência forçada de Totó no Rio de Janeiro, há 17 cartas escritas por ele, quase todas
endereçadas à esposa506. A leitura dessa documentação permite acompanhar o dia-a-dia do
político decaído na capital federal, inicialmente como prisioneiro “sob palavra”, e, depois, por
deliberação própria, a fim de providenciar sua defesa e a dos irmãos, junto aos tribunais
revolucionários 507.
Assim é que, ao anunciar que o filho, Ubirajara, estava retornando a Goiás, Ramos
Caiado comunica à esposa: “Eu ainda não sei quando poderei ir. Quero deixar o caso pessoal
e político decidido antes do meu regresso”. Diante da difícil situação em que se encontra,
certo fatalismo transparece na espontaneidade das palavras escritas alguns dias depois de
chegar à capital federal: “Que a resignação povoe a nossa casa nessa hora de amarguras e
de tristeza são os meus desejos”508.
Com frequência, ele dá notícia de antigos companheiros. Sobre César da Cunha
Bastos509, anota que, recém chegado ao Rio de Janeiro, “queria consultar médico sobre
saúde. Achei-o forte, mas observei que ele se encontra muito nervoso”. Reportando-se ao
antigo companheiro e amigo de todas as horas, Artur Jucá, 510 registra: “Coitado! Está muito
sem recurso e tem emagrecido muito com os incômodos morais”. Esboça o perfil dos
decaídos, que “se conhecem ao longe”, pelas feições abatidas que mostram “o sofrimento e
a perseguição com que são assistidos”. Sobre sua própria pessoa, faz a ressalva de que tem
mantido “em certo equilíbrio a saúde”511.
Com a supressão das garantias constitucionais após a vitória da Revolução de 1930, o Poder Judiciário
funcionava com restrições. O Tribunal Especial – órgão máximo da justiça revolucionária – foi organizado através
do Decreto nº 19.440, de 28.11.1930, e instalado em 23.12.1930.
504 A Comissão de Correição Administrativa estava inserida no Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Foi
criada através do Decreto nº 20.424, de 21.11.1931. Emitia pareceres conclusivos nos processos originários das
Comissões de Sindicância dos Estados.
505 Tribunal Especial. (Sessão secreta). Rio de Janeiro, 31/12/1931. Sérgio de Oliveira (relator). Temístocles
Cavalcanti (procurador especial). Arquivo Nacional.
506 Cartas dirigidas por A. (Antônio) Ramos Caiado a Mariquita (Maria Adalgisa de Amorim Caiado, com quem se
casara em segundas núpcias em 1909). As cartas foram escritas do Rio de Janeiro, entre 06/12/1930 e
18/03/1932. Uma única é destinada a Consuelo (filha do primeiro casamento de Totó Caiado), em 31/08/1931.
Manuscrito. Acervo de Terezinha de Amorim Caiado (doravante: ATEAC).
507 Idem, datadas de 5 e de 18/03/1932.
508 Idem, 6.12.1930.
509 César da Cunha Bastos: advogado e político. Elegeu-se deputado federal por Goiás, pelo Partido Democrata.
Cassado pela Revolução de 1930.
510 Artur Jucá: político democrata e amigo fiel de Antônio Ramos Caiado, a quem acompanhou quando foi
deposto pelas tropas revolucionárias, em 1930.
511 Cartas dirigidas por A. (Antônio) Ramos Caiado a Mariquita, op. cit., 21.01.1931.
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Atento a manifestações de amizade e prestígio, Totó refere, prazerosamente, os
cumprimentos recebidos pelo aniversário, mostrando-se ressentido quando pessoas mais
chegadas deixam de telegrafar-lhe nessa data512. Queixa-se da indiferença de alguns – como
o correligionário de ontem “que por mim passou, tocando apenas no chapéu”513. De outros,
estranha a incoerência dos comentários que correm: fora advertido de que João d´Abreu514
estaria “contra nós”; ao encontrá-lo, porém, “fez muita festa e disse-me que virá me
visitar”515.
Para a capital federal convergem os denunciados e os perseguidos, que tentam
defender-se junto à justiça revolucionária. O Rio de Janeiro atrai os integrantes dos novos
governos estaduais, ciosos de manter seus cargos e prerrogativas, mas também cientes de
que, para consegui-lo, devem estar próximos da elite do poder. Nas ruas elegantes do centro
carioca, transitam os maiorais da República e também os políticos de província – os de
ontem e os de hoje – gravitando ao redor do facho de luz que emana do chefe do governo.
Durante os primeiros meses do novo regime, Domingos Vellasco516 – secretário de
Segurança Pública de Goiás – vai amiúde ao Rio de Janeiro, onde residira por muitos anos.
Com presença destacada na imprensa carioca, escreve para os grandes jornais sobre a
atuação revolucionária em seu estado. Em um deles, anuncia a supressão do Montepio,
espécie de previdência social do funcionalismo, há anos existente em Goiás. Comentando a
notícia, Ramos Caiado indigna-se: “Nunca vi tanta barbaridade! Até as famílias [são]
perseguidas!...517”.
É forte a animosidade entre Vellasco e Caiado; este reporta-se repetidamente ao
adversário nas cartas que escreve à família. Ao relatar que fora vítima de súbita dor na
perna, que o fizera caminhar com dificuldade, Totó procura minimizar o mal estar com uma
dose de ironia, evocando o apelido de Vellasco: “Melhorei um pouco, mas ainda estou
manqüeba...”518.
Na capital federal, o ex-senador acompanha a evolução da política nacional e
estadual. Quando recrudescem as reivindicações de políticos e populares que exigem a
convocação de eleição para a Assembleia Constituinte, escreve que, de acordo com
informação recebida de um amigo, “o Manqüeba está vendo as coisas muito ruins (...) não
voltará mais a Goiás”519. De fato: duas semanas depois, Vellasco pediu demissão e retornou
para a capital federal.
Ramos Caiado encontrou-se casualmente com ele, na porta da Livraria Garnier, na
Rua do Ouvidor: “Disse-lhe umas boas e afinal uns amigos meus entenderam que ele deveria
Idem, 18.05.1931.
Idem, 25.01.1931.
514 João d´Abreu: advogado, odontólogo e político democrata. Aliou-se posteriormente a Pedro Ludovico e
exerceu interinamente o governo do estado de Goiás (1936-1937).
515 Cartas dirigidas por A. (Antônio) Ramos Caiado a Mariquita, op. cit., 17.8.1931.
516 Domingos Vellasco: reformado como 1º Tenente do exército, ingressou no Jornalista Carioca, militando na
oposição. Combateu duramente os Caiado. Secretário de Segurança do interventor Pedro Ludovico Teixeira, com
quem rompeu, vindo a aliar-se a Antônio Ramos Caiado. Elegeu-se senador da República e deputado federal. Foi
um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro.
517 Cartas dirigidas por A. (Antônio) Ramos Caiado a Mariquita, op. cit., 25/01/1931.
518 Idem, 17/08/1931. Em conseqüência de um acidente, Domingos Vellasco claudicava de uma perna, pelo que
lhe foi dado o apelido de Manqueba.
519 Idem, 05/03/1932.
512
513
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tomar também uma surra; mas eu o apadrinhei, pedindo que largassem porque elle é
aleijado. O Manqüeba está louco de ódio”520.
Dada a imprevisibilidade dos rumos da Revolução, cresce entre os decaídos a
apreensão com o futuro. Com Totó Caiado não é diferente:
Não sei quando poderei daqui [do Rio de Janeiro] partir. Além das saudades, dos incômodos e dos
prejuízos, ainda tenho a sobrecarga da incerteza do dia de amanhã. Quem seria capaz de vaticinar
tantas infelicidades e tantos sofrimentos como essa série que o ano de [19]30 me proporcionou? Um
espírito um pouco mais fraco teria naufragado. Felizmente, continuo resistindo à luta com altivez e
ânimo resoluto. Enquanto eu tiver saúde tudo irá bem521.
A manutenção da família é preocupação de todas as horas:
Estou no regime da mais absoluta economia, temendo que de futuro venha a faltar o pão aos meus
filhos. Sempre tive terror de que isso viesse a acontecer e, entretanto, hoje vejo crescer esse fantasma
ante a desumana perseguição que me movem (...) continuo detido aqui no Rio, ou seja, banido, sem ter
quem cuide dos nossos haveres aí!... Que futuro nos aguardará?522
Sob permanente ameaça de arbitrariedades e perseguições, Ramos Caiado vive sob
tensão. Chamado à polícia, externa a “má profecia” de que seria preso - mas a convocação
diz respeito a um simples pedido de informação523. Dias depois, é novamente convidado a
comparecer à 4ª Delegacia, juntamente com o irmão, Leão: “Não sei de que se trata” –
confessa à esposa. E desabafa: “Não sei quando terminará essa via crucis”524.
Através das cartas que recebe da filha, Consuelo, Totó fica ciente de fatos pertinentes
à política estadual. Como a correspondência particular é censurada, vive-se em ambiente de
suspeição e medo. No arquivo da família Caiado, há papéis carimbados com letras negras:
ABERTO PELA CENSURA. Ramos Caiado alerta a família para o que está ocorrendo – e
escreve, em desafio: “Vai esta [carta] para ser lida pelos censores que hão de se convencer
que comigo perdem o tempo, porque nesta hora cuido da minha família e da minha situação
pessoal525.
Avisada da atuação da censura, Consuelo resolve, a partir de então, “remeter as
cartas [para o pai], além de registradas, numeradas, de modo que se faltar alguma, poderei
por meio dos recibos reclamá-la. É escusado dizer que, mesmo registradas, terei cuidado ao
enviá-las"526.
A série vai de 1 a 46 – mas faltam 19 cartas527. Foram censuradas ou interceptadas?
Ou foram perdidas? A última hipótese parece improvável, dado o cuidado com que a
correspondência é controlada pelos missivistas. Meio ano depois de iniciada a numeração, o
ex-senador registra: “As cartas estão chegando censuradas outra vez”528.
Idem, 18/03/1932.
Idem, 21/01/1931.
522 Ibidem.
523 Idem, 12/01/1931.
524 Idem, 25/01/1931.
525 Idem, 21/01/1931.
526 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, em 25/01/1931. Manuscrito. AFC.
527 Faltam as cartas de nº 2, 8, 11 a 16, 22-23, 25-26, 31, 38-40, 42-43 e 45.
528 Carta de A. Ramos Caiado para Consuelo. Rio de Janeiro, 31/08/1931. Manuscrito. ATEAC.
520
521
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Em frases eivadas de desprezo pelos novos donos do poder e temperadas com a
esperança de retorno à situação anterior, as idas e vindas dos auxiliares de Ludovico são
relatadas a Totó por Consuelo, que também as avalia e interpreta.
Ainda nos primeiros tempos pós-Revolução, quando o Manqüeba (Domingos
Vellasco) não comparece a reunião havida em palácio, a missivista registra: “Dizem as boas
línguas, que foi inaugurar uma estrada de automóvel”. Outra versão – a das “más línguas” –
assegurava, contudo, que Vellasco teria ido oferecer dinheiro a certo político, para que não
mais escrevesse artigos contra o governo 529. Em outro momento, é assinalado que
“Domingos Vellasco seguiu ontem em viagem, dizem alguns que para Planaltina, fazendo
política, dizem outros que para o Rio, afim (sic) de ser ouvido sobre o [novo] interventor ”530.
Um baile em palácio merece observação sarcástica: “Hoje pouco se fez na [Comissão
de] Sindicância, porque os síndicos lá não demoraram, saindo para tratar das toilettes
(cabelos e barbas)”531. O assunto volta a ser comentado: “Para o baile dado quinta-feira em
palácio, a oficialidade [o mundo oficial] recebeu ordem para comparecer às 19 1/2 horas”.
Entre os presentes, estavam alguns “amigos considerados nossos” – partidários dos Caiado cujos nomes são relacionados532. Assim, fica Totó ciente de quais são os antigos aliados que
estão a aproximar-se dos governantes.
É evidente a preocupação de levar boas novas ao pai, a quem Consuelo relata
conversas até certo ponto ingênuas – como o comentário feito pela esposa de um prócer
governista, que disse estar o marido “sem gente para nomear”, pois os melhores elementos
“foram aproveitados pelos Caiados”533. Os percalços do novo governo são relatados com
ironia: “O Pedro Ludovico está lhe prestando [a Totó Caiado] ótimos serviços. A gente do
interior está furiosa por causa do imposto de terras, e a gente da capital e dos arredores,
além do imposto, protestam [sic] contra a mudança da Capital”534.
Consuelo supõe que, em consequência dessa repulsa, “à manifestação que fizeram
ao Interventor compareceram quando muito umas trinta pessoas”535. Dificuldades vividas
pelo execrado adversário, o jornal Voz do Povo, são assinaladas: quando é afixado “edital de
confiscação do jornal”, soltaram-se foguetes na cidade em sinal de regozijo536.
Subjacente ao registro do que acreditava serem indícios de rejeição aos governantes,
identifica-se a esperança – sempre renovada – de que mude a situação política: “Está
correndo na cidade que o [general] Tasso Fragoso ou o [general] Leite de Castro537 rompeu
com o Getúlio. Desejava que isto fosse verdade...”538. Passados alguns meses, as
especulações sobre a renúncia ou substituição do interventor são reforçadas por novos
rumores: alvo de “muitos ataques”, Pedro Ludovico “pretende deixar o Palácio”539.
Por sua vez, os situacionistas propalam a falsa notícia de que Ramos Caiado fora
preso no norte de Goiás, onde estaria incitando a população à revolta – o que é acidamente
Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, em 25/01/1931. Manuscrito. AFC.
Idem, 05/03/1931.
531 Idem, 26/02/1931.
532 Idem, 28.02.1931.
533 Idem, 03/03/193.
534 Ibidem.
535 Idem, 06/07/1931.
536 Idem, 20/06/1931.
537 Augusto Tasso Fragoso e José Fernandes Leite de Castro (generais): comandantes militares da Revolução de
1930.
538 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 12/03/1931. Manuscrito. ATEAC.
539 Carta de Consuelo para Papai. datada da Cidade de Goiás, 10/11/1931. Manuscrito. AFC.
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comentado em carta de Totó à esposa: “Então [os governistas] estão assustando das
sombras, pensando que sou eu que por aí [pelo norte de Goiás] ando? Coitados! Essa é a
sorte de quem não tem eleitores e quer fazer política. Esses meus desafetos são capazes de
mandar me assassinar de medo”540.
Caiado reitera que, no Rio de Janeiro, vive “sem sequer ir a divertimentos, aborrecido,
longe dos meus, e afastado dos meus interesses”. Com peculiar desprezo, observa que,
mesmo continuando longe de Goiás, em reclusão forçada, “esses meus idiotas inimigos daí
[de Goiás] ficam assombrados, sonhando que eu mandei fazer revolução no Norte! Logo no
Norte! Será possível que esses cretinoides [sic] não compreendam que nenhuma finalidade
teria qualquer perturbação da ordem no Norte e nem mesmo no Estado!”
Especula Totó se a explicação para “tanta besteira” (sic) estaria no fato “de ter ido
em exercício da sua profissão ao Norte [de Goiás] o Fagundes Varella 541 e eu lhe ter dado
algumas cartas de recomendação aos meus amigos. E como [os adversários de Totó]
tivessem noticia por lá do Varella, a medorreia invadiu-lhes o bestunto (...)”542.
No Rio de Janeiro, comparecendo a missa de sétimo dia “muito concorrida”,
celebrada na igreja da Candelária, Ramos Caiado tomou conhecimento de boatos
preocupantes: “Goiás vai deixar de ser estado, para ser território federal, equiparado ao Acre.
Será dividido em dois territórios, conforme me assegurou o João Mangabeira (...) 543. Mato
Grosso terá a mesma sorte. Que dirão a isto os nossos inimigos? Será o cumulo da
humilhação dos goianos”544.
Durante a maior parte de sua estada compulsória no Rio de Janeiro, Ramos Caiado
morou em casa da irmã, Theresina545, “que tem tanto cuidado comigo que até me
incomoda”546. Visita parentes e amigos, inclusive a líder feminista, Bertha Lutz, com quem
mantém laços de amizade, a fim de parabenizá-la pelo aniversário547. Tais cortesias
objetivam tanto à ratificação do status social, pessoal e familiar, como à manutenção dos
contatos políticos.
Na cidade de Goiás, nas rodas que se formam nos tradicionais pontos de encontro, a
volta de Ramos Caiado é dada como certa. Determinado, entretanto, a só retornar quando
estivessem resolvidos os processos que tramitam na justiça contra sua pessoa, seus irmãos
e amigos, o ex-senador enfrenta solidão e tristeza no Rio de Janeiro. No dia do aniversário da
esposa – “Minha Mariquita” - deixa extravasar a amargura:
Hoje levantei muito cedo e fui ao telégrafo transmitir-lhe as minhas felicitações (...) Estava chovendo,
triste a manhã, como a minha alma, traspassada de dores e intermináveis angustias, que há mais de
um ano me torturam e pungem a vida. Si é certo o dizer dos católicos, que na terra se purificam pelos
sofrimentos as almas, eu devo ir direitinho para o céu (...) Com muitas saudades e muita tristeza, com
mais saudades e abraços, sou o seu A. Ramos Caiado548.
Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 17/03/1932. Manuscrito. ATEAC.
Fagundes Varella: filho do consagrado poeta do mesmo nome, era aparentado dos Ramos Caiado por
ascendência materna. Claudina, esposa de Torquato Caiado, era paulista, do clã dos Fagundes.
542 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 17/03/1932. Manuscrito. ATEAC.
543 João Mangabeira: político baiano, eleito deputado federal em 1934. Integrava o bloco de oposição ao governo
Vargas. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
544 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 18/05/1931. Manuscrito. ATEAC.
545 Therezina Caiado de Castro, casada com o desembargador João Alves de Castro, ex-governador de Goiás.
546 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 12/01/1931.
547 Idem, 03/08/1931.
548 Ibidem.
540
541
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Mesmo abalado pelas adversidades, Ramos Caiado continua de ânimo forte e
disposto à luta – como faz questão de ressaltar, quando se reporta ao arqui-inimigo, Pedro
Ludovico: “Ontem o Oswaldo Aranha contou a um amigo nosso que o Pedro Ludovico dissera,
que eu não voltei a Goiás, porque não o quis; que ele me daria lá todas as garantias. Veja
que farsante! Eu vou e não o temo, porque sou homem acostumado a pegar o boi pelas
aspas”549.
A conjuntura política evolui rapidamente e passa a ser exigido o retorno à
normalidade institucional; mas o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas, protela a
edição da lei eleitoral e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Ramos Caiado
mantém-se atento aos acontecimentos, ainda que ansioso por voltar para Goiás: “Estou com
vontade de regressar nestes dias”550, diz em carta de outubro. Quatro meses depois,
continua, porém, no Rio de Janeiro:
Hoje, dizem que será decretada a Lei eleitoral. Se o for, eu partirei logo que terminar a defesa dos meus
irmãos. Tenho trabalhado dia e noite (...) Das 10 e meia às 5 [horas] fico na Comissão de Correição
[Administrativa], lendo processos, depois vou para casa, janto e passo a escrever até as 11 horas, meia
noite. Levanto-me às 6, leio os jornais e agarro de novo nas notas e documentos, e trabalho até
colocarem o almoço na mesa; depois do almoço, visto-me e vou para a Comissão. Nunca andei mais
apertado na vida (...)551.
Os fatos ganham dinâmica própria. A campanha em favor da constituinte vai às ruas.
Coincidindo com a esperada edição da lei eleitoral, anunciam-se “grandes coisas”, mas Totó
confessa-se cético: “Creio que tudo ficará em prosa. São Paulo, então, dizia-se, que estava na
iminência de coisas terríveis. É provável que não haja. Ando muito descrente de parlapatices.
Tenho ouvido tanto e visto tanta promessa falhar, que fiquei como S. Thomé"552.
Adensavam-se, contudo, as nuvens da tempestade que se anunciava, com a
insubordinação de antigos participantes da Revolução, no Rio Grande do Sul e em São
Paulo, onde se articula a rebelião contra o governo de Vargas. Como observador privilegiado,
escreve Ramos Caiado: “Estamos vivendo horas impressionantes na política, momentos
sensacionais. Os dois grupos revolucionários estão se preparando para hostilidades. Cada
qual se julga mais forte”. Sentindo renascer o velho espírito combativo deplora: “E nós daqui
ficamos a espiar...”553.
Em Goiás, é grande a expectativa sobre a volta de Ramos Caiado; correm boatos,
conforme refere a filha, Enery: “Aqui na cidade só se fala em sua chegada e a do [novo]
interventor. Inventam-se datas e até que o senhor vem de avião”554. Ainda se passarão vários
meses até o regresso de Totó.
Entre os decaídos, especula-se sobre quem será o esperado substituto de Pedro
Ludovico; consta que um dos mais cotados é um major do exército, que o "Manqueba"
persegue – mas que é amigo do poderoso ministro Oswaldo Aranha555.
Em verdade, o interventor federal enfrenta séria crise: “A política no atual governo
está fervendo”, rejubila-se Consuelo, ao referir o pedido de demissão de José Honorato 556,
Idem, 21/09/1931.
Idem, de 27/10/1931.
551 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 24/02/1932. Manuscrito. ATEAC.
552 Ibidem.
553 Idem, 5.3.1932.
554 Carta de Enery para Papai. Cidade de Goiás, 13/11/1931. Manuscrito. AFC.
555 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 04/08/1931. Manuscrito. AFC.
549
550
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secretário de Interior e Justiça. Demitem-se, outrossim, o comandante da polícia e alguns
oficiais comissionados.
Tais fatos agravam-se com a notícia de que José Honorato vai editar um jornal, que
se chamará “Contra voz”; e consta que descontentes cogitam de fundar um novo partido557.
Ciente dos acontecimentos, Totó anota, com ceticismo: “Não creio na cisão dos elementos
políticos daí [de Goiás]. Eles se reconciliam” 558. Quando é alertado pela filha de que
criminosos tinham sido libertados da cadeia para emboscá-lo e aos irmãos, tranquiliza a
esposa aflita: como estratégia preventiva de defesa, fizera publicar em jornais cariocas “a
noticia de que eles (os criminosos) foram perdoados para nos agredirem”559. Dadas as
circunstâncias, é provável que a matéria tenha sido veiculada por Totó como matéria paga.
Informações sobre velhos companheiros amenizam-lhe o exílio. Consuelo cita-os
nominalmente. Dentre outros, o coronel Castrinho560 e Geraldino561 “aceitaram gentilmente
servir como testemunhas” em processo que envolve o ex-senador562. Quando se tenta
organizar um partido de oposição, formado de ex-democratas e dissidentes aliancistas, o expresidente do Estado, Humberto Martins Ribeiro recusa-se a participar, porque Ramos
Caiado não fora convidado563.
Mais do que amigo, Alfredo Nasser564 é partícipe das preocupações e angústias da
família. Correspondente assíduo, sugere a Totó providências legais e estratégias de defesa
nos processos a que responde. Acompanha o andamento das ações contra os Caiado na
Comissão de Sindicância em Goiás; corajosamente, depõe como testemunha em favor do
ex-senador, no processo que lhe é movido pelo "facínora" Rolando Guarany565.
Confortadora é a longa carta de um amigo e admirador, dirigida a Consuelo; em
linguagem empolada, o signatário diz estar ciente de que
o vosso idolatrado Pai e o vosso dedicado tio os meus distinguidos e saudosos Amigos Drs. Antonio
Ramos Caiado e Leão Dy Ramos Caiado eram esperados a qualquer momento chegarem aí na nossa
Capital; e que o vosso distinto tio, e meu exemplar amigo Dr. Brasil Ramos Caiado já estava em sua
ampla liberdade sem constrangimento de nossos adversários aí dentro da Capital (...)
Condizente com o próprio nome – Fidélio - diz o missivista:
(...) como sempre anspirei, anspiro e anspirarei (sic) pelas felicidades e tranqüilidades (sic)
constantemente desses meus Amigos, venho muito respeitosamente solicitar a V. Exa. a finesa [sic] de
me dispensar a elevada honra de me enviar noticias minuciosamente e urgente [...] aproveitando a
José Honorato da Silva e Souza: bacharel em direito e político, foi dos auxiliares mais próximos do interventor
Pedro Ludovico. A despeito de ameaçar demitir-se do governo, não o fez de imediato. Anos depois passará a
integrar a oposição.
557 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 04.08.1931, Manuscrito. AFC.
558 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 10.8.1931. Manuscrito. ATEAC.
559 Idem, 25.4.1931.
560 Diógenes de Castro Ribeiro (Castrinho): fazendeiro e político democrata, foi vice-presidente do estado de Goiás
durante o governo de Brasil Caiado.
561 Geraldino Caiado Fleury: fazendeiro e político democrata, elegeu-se deputado estadual em várias legislaturas.
562 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 25/04/1931. Manuscrito. AFC.
563 Idem, 22/10/1931.
564 Alfredo Nasser: político e tribuno goiano. De ideias liberais, militou na oposição ao interventor, Pedro Ludovico
Teixeira. Foi deputado federal e senador da República.
565 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 14/03/1931. Manuscrito. AFC.
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oportunidade para enviar respeitos e amplexos ao distinguido Amigo Dr. Caiado. Subscrevendo-me De V.
Exa. Cr(iad)o. e Obr(igadíssi)mo. Fidélio de Lima Neto566.
O signatário é o mesmo Fidelinho, de quem Consuelo diz ser “dos melhores amigos”,
dispondo-se a viajar para o sertão, a fim de “arranjar testemunhas” que irão depor em favor
de Totó. Entretanto, “o cavalo dele não agüenta ir e voltar com pressa”; na chácara, não há
animais, nem mesmo na fazenda Europa567. O jeito é recorrer a conhecidos, para que os
emprestem568, a fim de que o dedicado mensageiro possa cumprir sua missão.
Não há, porém, como ocultar de Totó as más notícias. Único desembargador que não
assinou o pedido de intervenção federal, durante o governo de Brasil Caiado569, Ayrosa Alves
de Castro é posto em disponibilidade pelo governo revolucionário 570. De igual modo, é
revogada a lei que instituíra o serviço de saúde pública no estado, e que fora tida como
motivo de orgulho para os democratas depostos571.
Muitos correligionários estão presos desde outubro de 1930; sobre eles, escreve
Consuelo: “Ontem, o [Otoniel] Sotter572 fez [da janela da cadeia] sinal para o [Alfredo]
Nasser, de que pretendia falar com ele. Nasser foi pedir licença ao [carcereiro] Seu Nem que
a negou, dizendo haver recebido ordem do Manqueba para não permitir visitas à cadeia”573.
Meses depois, volta ao assunto: somente em maio de 1931, “os presos políticos
foram postos em liberdade pelo Manqueba, que às 13 horas foi à cadeia e declarou-lhes que
estava resolvido a dar a liberdade, que não os desejava mais ver na cadeia (...)”574.
Estavam finalmente soltos os presos políticos de Goiás. A magnânima disposição
anunciada por Vellasco, como sendo de motu próprio, era contestada por notícia que corria
na cidade: a liberdade concedida resultara de “ordem vinda do Rio, há mais de oito dias,
mas como Manqueba estivesse em viagem, esperaram a sua volta”575. E mais: um dos
libertados, Octacílio de Castro, foi novamente preso e ninguém sabia por que... Passado um
mês, será solto – por igualmente desconhecidas razões576.
Informa Consuelo, outrossim, que o tenente João da Costa577 escapou de ser preso;
há uma nota de desafio, quando conta que o militar ”conseguiu sair, enquanto a mulher
discutia à porta da rua com os soldados”578.
No Rio de Janeiro, o ex-senador Ramos Caiado – em liberdade vigiada – mantém
contatos e providencia documentos para defender-se, junto à Comissão de Correição
Administrativa. Assim como outros decaídos, procura atrair a simpatia da opinião pública,
Carta dirigida à “Exma. Snra. Da. Consuelo Ramos Caiado”. Fazenda Boa Esperança, 22/06/1931.
Manuscrito. AFC.
567 Fazenda Europa: originária de antiga sesmaria, remonta ao século XVIII. É a mais antiga propriedade rural da
família Caiado.
568 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 05/03/1931. Manuscrito. AFC.
569 Sobre a crise do Judiciário no governo de Brasil Caiado, ver FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Poder e
paixão. A saga dos Caiado Freitas, op. cit., p. 319-352.
570 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 14/03/1931. Manuscrito. AFC.
571 Idem, 20/06/1931.
572 Otoniel Sotter: advogado e político filiado ao Partido Democrata.
573 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 26/02/1931. Manuscrito. AFC.
574 Idem, 19/05/1931.
575 Ibidem.
576 Idem, 19/06/1931.
577 João da Costa: oficial da Força Pública, sobre quem pesavam acusações de violência no sudoeste goiano
durante o período do caiadismo. Cf. FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Poder e paixão. A saga dos Caiado
Freitas, op. cit., p. 51-92.
578 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, [s/d]. Manuscrito. AFC.
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escrevendo cartas para os jornais – mas faz-se preciso pagar para divulgá-las, conforme
relata: “O Jornal traz hoje nos `A pedidos´ a carta do [Otoniel] Sotter. Custou 80$000. Que
fazer?!”579.
De linha independente, O Globo publica uma carta de Ramos Caiado. Recortes são
remetidos para familiares e amigos em Goiás, provocando comentários: ao encontrar-se
Consuelo com Zaccheu Crispim580, este mostrou-se “satisfeitíssimo” porque foi lembrado
pelo ex-senador; Benjamim Vieira também manifestou seu aplauso581.
Em Goiás, afora alguns amigos e parentes, ignoram-se as cartas que Ramos Caiado
publica na imprensa da capital federal, as quais não são transcritas nos jornais locais,
submetidos à censura. De outra parte, a propaganda oficial atuará com eficiência em duas
vertentes: no endeusamento dos dirigentes revolucionários e na obstrução sistemática à
divulgação de esclarecimentos ou peças de defesa dos políticos da situação decaída.
A partir de meados de 1931, o grande debate passa a ser o da mudança da capital
goiana. A ideia fora ventilada em discurso de Carlos Pinheiro Chagas, quando assumiu
interinamente o governo de Goiás, em outubro de 1930. Obviamente, suas palavras
repercutiram mal entre os habitantes da cidade de Goiás, sendo o assunto relegado a
segundo plano.
No decorrer dos dias, multiplicavam-se, contudo, os problemas enfrentados pelos
novos governantes na capital, onde a simpatia pelos políticos da situação decaída expressase em diferentes ocasiões e sob diversas formas: como referido, ora é pessoa de confiança
dos aliancistas, que transporta clandestinamente e transmite telegrama censurado; ora são
funcionários dos Correios, que cientificam familiares de Totó sobre o conteúdo de
mensagens confidenciais; até mesmo o filho de um integrante da Comissão de Sindicância
relata a Consuelo o que se passa durante as sessões secretas.
Tais percalços contribuíram, certamente, para que Pedro Ludovico se decidisse pela
imediata mudança da capital do estado. Quatro meses depois da vitória da Revolução, o
genro, Lincoln Caiado de Castro582, comunicava a Totó: “Consta que a capital do estado será
mudada e é ponto principal da nova política” 583. Quando integrantes do governo e
representantes dos municípios reúnem-se em Bonfim (Silvânia), Consuelo – bem informada cientifica o pai de que vão tratar, além de outros assuntos, da mudança da capital 584.
A vida continua, inclusive para Totó e seus familiares, dentre os quais moças e
rapazes que estão no limiar da idade adulta. Tarsila 585 prepara o casamento “das
meninas”586 para o mês de maio: Lacy, pretende convidar Totó para testemunha587, mas
Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 05/03/1931. Manuscrito. ATEAC.
Zaccheu Crispim: advogado filiado ao Partido Democrata.
581 Como consta de cartão endereçado a “D. Mariquita”. Anexo à carta de Consuelo Caiado para Papai, Cidade de
Goiás, 07/03/1931. Manuscrito. AFC.
582 Lincoln Caiado de Castro: médico, sobrinho e genro de Antônio Ramos Caiado, casado com Comary.
583 Carta de Lincoln Caiado de Castro para Totó. Cidade de Goiás, 27/02/1931. Manuscrito. AFC.
584 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 14/07/1931. Manuscrito. AFC.
585 Tarsila: irmã de Totó Caiado, casada com o médico Joviano Alves de Castro.
586 Genesy e Lacy, filhas do casal Tarsila/Joviano Alves de Castro.
587 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 20.04.1931. Manuscrito. AFC.
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Genesy – cujo noivo, Colemar, “está como professor de História da Escola Normal”588 – adiou
o casório589.
A alegria e vitalidade dos jovens transparecem em notícias da família, como a do
nascimento da filha de Noêmia e Brasil Caiado590. No casarão da chácara da Rua Nova591,
enquanto Consuelo e Mariquita escrevem para o chefe da família,”Nasser, Cory e Enery 592
deliciam-se com uma vitrola”593. Do Rio de Janeiro, Totó envia-lhes um disco; ele regozija-se
quando sabe que não se quebrou no caminho e “chegou em condições de ser ouvido. E que
o entenderam”. Ao que parece, fora gravada uma mensagem para a família, inclusive para a
pequena Eldory594, que “ouviu bem o nome dela”595.
Altair, “filha de Tia Nenê”596, foi a organizadora de um baile em benefício de um
clube de futebol. No dia da festa, faleceu um parente, mas – como promotora do evento – a
jovem não só compareceu como dançou, provocando comentários597.
Pequenas alegrias e contrariedades pontuam o dia-a-dia da numerosa família de
Totó, em que a mais velha das filhas ultrapassara os 30 anos e o caçula era pouco mais do
que um bebê. "O pequeno não nos deixa dormir com a choradeira que faz à noite”, queixa-se
Consuelo, que acrescenta, bem humorada: “só uma gordura como a minha (88kg.) resiste
perfeitamente bem [às noites mal dormidas]”.
“O pequeno” é o filhinho de Totó e Mariquita, nascido dias depois da Revolução.
Ainda não tem nome598, mas é lembrado com ternura nas cartas do pai, que ainda não o
conhece: “Fiquei sabendo que o caçulinha está forte, embora tendo dor de barriga (...)”.
Passado algum tempo, veio de Goiás um filme fotográfico para ser revelado no Rio, com
retratos do menino, mas nada se pôde ver. Totó consola a esposa: “Dizem que o pequeno é
bonitinho, eu calculo que ele seja a cara da mãe”599.
Nas cartas trocadas, transparece carinho para com as crianças: quando Elcyval 600, de
apenas oito anos, é mandado ao Correio para retirar um “registrado”, comenta Consuelo que
o menino “está contente pois ele mesmo vai assinar [o recibo]”601. Em diversas ocasiões, os
parentes ajudam-se mutuamente – como quando Lincoln e Comary vão para a fazenda e
deixam os filhos com Consuelo602.
É constante o cuidado de manter o pai informado do cotidiano da família. Dizendo-se
versão bem nutrida, mas igualmente frustrada do Jeca Tatu603, Consuelo escreve, com bom
humor, que as formigas “(...) continuam a tomar os seus [de Totó] latifúndios [grifo no
Idem, 05/03/1931.
Idem, 06/07/1931. Colemar Natal e Silva: advogado formado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.
Casou-se com Genesy Caiado de Castro, apoiou Pedro Ludovico na mudança da capital para Goiânia. Foi um dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico e da Universidade Federal de Goiás, da qual foi o primeiro Reitor.
590 Idem, 21/09/1931. A menina, nascida em 04/09/1931, recebeu o nome de Brasilete.
591 Residência de Totó Caiado e sua família, à Rua Nova (hoje Hermógenes Coelho).
592 Cory e Enery: respectivamente, filhas do primeiro e do segundo casamento de Antônio (Totó) Ramos Caiado.
593 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 06/05/1931. Manuscrito. AFC.
594 Filha de Antônio Ramos Caiado e Mariquita.
595 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 10/08/1931. Manuscrito. ATEAC.
596 Altair: filha de Antonieta (Nenê) Caiado e Abílio Alves de Castro.
597 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 12/07/1931. Manuscrito. AFC.
598 Será registrado como Antônio Ramos Caiado Filho.
599 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 18/05/1931. Manuscrito. ATEAC.
600 Elcyval: filho de Antônio Ramos Caiado e Mariquita.
601 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 20/04/1931. Manuscrito. AFC.
602 Idem, 05/05/1931.
603 Jeca Tatu: personagem emblemático de Monteiro Lobato que luta ingloriamente contra as formigas e outros
males da vida no interior do país.
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original]. No jardim as poucas roseiras que tínhamos estão sendo comidas. Já pus algodão
nos pés das roseiras, já pusemos cinco latas de Formicida Tatu e...elas continuam (...)604.
Doenças trazem preocupação: ora é Emival que veio gripado do sítio; ora é Elcy, que
está com febre, depois de banhar-se no rio; ou Enery605, afetada pelo reumatismo. Como
Cory está muito magra, a irmã casada, Comary606, convida-a para ficar uns dias em sua casa,
com o que concorda Consuelo607. De longe, Totó manifesta-se apreensivo, quando Mariquita
resolve seguir para a fazenda das Lages, “devido à magreza da Enery”. Comenta,
amargurado: “É mais uma coisa a me incomodar (...) As notícias que me chegam de Goiás
são sempre portadoras de dissabores morais. Que série interminável!”608.
Na medida em que recrudescem as perseguições aos vencidos, as dificuldades
financeiras crescem e a ansiedade aumenta. Exacerbam-se as expectativas quanto aos
processos em tramitação na Comissão de Sindicância. Consuelo desdobra-se para
acompanhá-los. Mariquita avisa Totó de que os novos dirigentes pretendem tomar-lhes as
fazendas Tesouras e Aricá, extensas propriedades cujos títulos são contestados
judicialmente pelo governo revolucionário. Aparentemente, Ramos Caiado não se deixa
alarmar: “Penso que voltado ao regime normal, conseguirei garantir os meus direitos, que
tenho por incontestes diante da lei”609.
Consuelo recebe do pai documentos e mensagens, que devem ser entregues ao
advogado, Dr. Benjamim da Luz Vieira; há que copiá-los, o que é feito à mão ou mediante
pública forma, pois ainda não existem mecanismos de reprografia. Ela remete outros tantos
para o pai, bem como relata informações que lhe chegam, trazidas por amigos infiltrados no
governo.
De um deles, obtém cópia da carta que o presidente da Comissão de Sindicância fora
buscar pessoalmente na distante localidade de Leopoldina 610 e entregara ao secretário de
Segurança. Trata-se de documento de interesse de Totó e tudo é cercado do maior sigilo.
Consuelo informa que deu ciência do conteúdo ao Dr. Benjamim, mas assegura: “foi o único
a quem mostrei [a carta]”611.
De fonte não revelada, foi ela inteirada de que, no Tribunal de Justiça, não votaram a
favor da prisão preventiva do ex-presidente do Estado, Brasil Caiado – irmão mais moço de
Totó - por causa do telegrama que ele passara ao delegado Erkonwald de Barros, em Rio
Verde, “mandando soltar Teotônio Borges e Ludovico”, nos anos anteriores à Revolução.
Contudo, consta que capangas estão vigiando a fazenda das Lages – onde ele estaria
escondido - e que, na Serra Dourada, diversos homens esperam a chegada de Brasil, para
prendê-lo612.
Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, em 01/09/1931. Manuscrito. AFC.
Emival, Elcy e Enery: filhos do segundo casamento de Tóto Caiado, com Maria Adalgisa de Amorim Caiado
(Mariquita).
606 Cory e Comary: juntamente com Consuelo, filhas do (primeiro) casamento de Totó Caiado com Iracema de
Carvalho Caiado.
607 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 12/11/1931. Manuscrito. AFC.
608 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 10/07/1931. Manuscrito. ATEAC.
609 Idem, 12/11/1931. A legitimidade dos títulos de propriedade das fazendas Tesouras e Aricá será reconhecida
por acórdão exarado pelo ministro Soriano Filho, no Supremo Tribunal Federal, na vigência do regime de exceção.
610 Leopoldina (atual Aruanã) está a mais de 200 km da Cidade de Goiás, às margens do rio Araguaia.
611 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 28/02/1931. Manuscrito. AFC.
612 Idem, 22/10/1931.
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Contra Brasil, ex-presidente do estado, são veiculadas acusações613, sendo uma
delas relativa às despesas feitas pelo governo, cinco anos antes, quando era aguardada a
visita do então candidato a presidente da República, Washington Luis, que afinal não veio a
Goiás. Sobre o assunto, escreve Brasil ao irmão, Totó: “(...) parece-me que o que há contra
mim é a abertura de um crédito para esse fim; pois os objetos e o automóvel adquiridos
foram utilizados pela Secretaria do Interior”614.
Por todos os meios, Consuelo busca inteirar-se das acusações feitas ao pai e demais
parentes e correligionários. Quando o ambiente parece mais calmo, eis que aparecem mais
denúncias na Comissão de Sindicâncias: uma contra Totó, outra contra Leão615. Ubirajara é
apontado como cúmplice no assassinato de um peão; o advogado – o ex-desembargador
Ayrosa - entende ser “muito fácil” a defesa, porque o acusado estava em casa, no momento
do crime, ocorrido a duas léguas de distância”616.
No Rio de Janeiro, Totó anota nas cartas recebidas a data em que as responde e,
eventualmente, resume o conteúdo das respostas. Expede ordens e determina providências;
manda pareceres, decretos e leis que possam subsidiar o trabalho do advogado em Goiás.
Dos comentários de Consuelo e das cartas de Ramos Caiado, infere-se que pai e filha
gostariam que o Dr. Benjamim Vieira fosse mais expedito em suas ações: “ele tem o
costume de deixar tudo para depois”, queixa-se Consuelo617.
A ansiedade gera descrença. São imensas as dificuldades enfrentadas quando se
defende um político decaído: o advogado manda dizer a Totó que está “completamente
enganado com o que se passa em Goiás”, pois todos aqueles “com os quais tem que lidar
tem a máxima má vontade” para com o ex-senador618. Na opinião de Leão Caiado, que
acompanha de perto as ações e colabora com o Dr. Benjamim, os processos relativos às
fazendas dificilmente terão desfecho favorável, uma vez que “a decisão final será dada pelo
Supremo [Tribunal Federal] que está atualmente organizado pela justiça do Getúlio Vargas e
por isso não irá contra os interesses da justiça revolucionária da qual somos vítima619.
Durante os primeiros meses de exílio, Totó procura manter-se de ânimo forte: “Não
sei [o] que nos esperará mais em sofrimentos. Estou porem firme a espera do que der e vier.
Só desejo que não me obriguem a entrar no terreno do desforço pessoal, quando ficar
desiludido e sem esperança da justiça e do respeito a que me julgo com direito”620.
Manifesta estranheza e revolta com o desenrolar dos acontecimentos, parecendo-lhe
“tudo tão fora dos limites que o cavalheirismo traçara e os homens de linha não
ultrapassavam”. Quando a justiça indefere pedidos dos seus advogados, protesta em carta a
Mariquita: “Não há mais absurdo que os detenha”. Com os olhos voltados para o futuro,
adverte: “(...) essa gente [seus inimigos] parece que não se lembra do dia de amanhã”.
Refere as manifestações de insatisfação contra o governo que se sucedem em diferentes
pontos do país, “um dia após outro”. Dá a notícia de que, na véspera, rebelara-se parte da
Há indícios de que mais processos tenham sido instaurados contra os Caiado, mas não foi possível localizálos.
614 Carta de Brasil para Totó. 25/11/1931 (sem indicação de procedência). Manuscrito. AFC.
615 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 06/5/1931. Manuscrito. AFC. Parece tratar-se de processo
relativo a antiga estrada existente na fazenda Europa.
616 Idem, 13.11.1931.
617 Idem, 23.6.1931.
618 Anotação à margem de carta enviada por Ubirajara ao Pai. Cidade de Goiás, 22/04/1931. Manuscrito. AFC.
619 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 09/09/1931. Manuscrito. AFC.
620 Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 09/12/1930. Manuscrito. ATEAC.
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força federal no interior de São Paulo, "mas foi abafada, segundo os jornais”. Entende que os
acontecimentos permitem “a esperança de reavermos o que o ódio nos tem feito sofrer,
nessa cadeia de hostilidades e perseguições inconscientes, dos inimigos insaciáveis. A nossa
hora há de chegar! E só para isto que tenho ambição de viver. Tenho aprendido tanto!...”621
Ramos Caiado e seus irmãos não seriam condenados nos processos identificados
como provenientes da Comissão de Sindicância de Goiás, que chegaram à Junta de Sanções,
no Rio de Janeiro; referidos processos foram extintos ou arquivados, por inconsistentes; o
mesmo sucedeu com aqueles em que estiveram envolvidos seus auxiliares ou
correligionários. Entretanto, em carta a Mariquita622, Ramos Caiado refere que “a Junta [de
Sanções] me condenou”; a despeito de exaustiva pesquisa, não foi localizado qualquer
documento a respeito do assunto. É razoável supor-se que tenha recorrido e conseguido
reformar a sentença.
Entre as cartas escritas por Totó Caiado à família, foi possível encontrar uma única
dirigida a “Consuelo”623. Está acompanhada de cópia do decreto que definiu ser a Justiça
Federal o órgão competente para executar as decisões da Junta de Sanções, o que o
beneficia, uma vez que afasta o governo estadual dos processos em andamento naquela
corte.
A hora é de agir. Totó escreve à filha, dizendo que enviou dois telegramas, um deles
para o Dr. Benjamim, “mandando tomar providências”. No outro, determina que Consuelo
avise Leão para auxiliar o advogado: “O Leão tomará o caso a sério”, diz Totó, lembrando que
ele deve “ser ajudado com opinião do [desembargador] Ayrosa”.
Do Rio de Janeiro, o ex-senador comanda a equipe de defensores: o advogado
Benjamim da Luz Vieira, o irmão, também advogado, Leão Caiado, o ex-desembargador
Ayrosa Alves de Castro e o sobrinho e genro, Lincoln Caiado de Castro. A cada um atribui
tarefas; e alerta no sentido de que as providências sejam imediatas: “É preciso que o Leão
não consinta que Benjamim fique descançado (sic)”624.
Paralelamente, Totó cuida de alicerçar-se em sólido embasamento jurídico: Irá
consultar o jurista Clóvis Bevilacqua625. E manifesta-se esperançoso: “Em qualquer hipótese
(...) teremos o Supremo Tribunal”626.
Na correspondência percorrida, informações e relatos dizem respeito às finanças da
família Caiado e, em especial, de Totó. Ubirajara e Brasil são seus representantes, em
assuntos econômico-financeiros, mantendo-se Consuelo em segundo plano. Tanto para Totó,
como para seus familiares, a situação é difícil. De um lado, as cobranças de impostos
avolumam-se; de outro, aumenta a desorganização das fazendas, em razão da longa
ausência do proprietário.
Leão, funcionário federal, não tem maior vínculo com a política estadual. Mesmo
assim, foi preso e remetido para o Rio de Janeiro, juntamente com Totó; depois de vários
meses, volta para Goiás. Ameaçado de ser preso novamente, esconde-se nas matas de sua
fazenda.
Idem, 10/07/1931.
Ibidem.
623 Carta de A. Ramos Caiado para Consuelo. Rio de Janeiro, 31/08/1931. Manuscrito. AFC.
624 Ibidem.
625 Ibidem. Clóvis Bevilacqua: escritor, filósofo e jurista, autor do projeto do Código Civil Brasileiro, de 1916.
626 Ibidem.
621
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Arnulpho, personagem que se mantém discreta, é profissional liberal – dentista –,
mas vê-se praticamente impedido de exercer a profissão. Antigos clientes mostram-se
arredios, temendo perseguições e represálias dos novos donos do poder; opta por mudar-se
para a fazenda.
Brasil, como ex-presidente do estado, é alvo privilegiado do assim proclamado “zelo
revolucionário”; caçado pela polícia, permanece foragido. Ao que parece, houve um acordo
tácito entre ele e os governistas, que não o prenderiam se continuasse escondido627.
Entretanto, o secretário de Segurança, em público e em diversas ocasiões, a ele se referiu de
forma pejorativa e insultuosa628.
Médico de reconhecida competência, Brasil não tem como exercer a clínica; quando
finalmente reconquista a liberdade, passa a trabalhar como fazendeiro e criador de gado,
em tempo integral. No fim de 1931, escreve longa carta629, prestando conta de negócios do
interesse de Totó.
Brasil tinha como certo o breve regresso do irmão: “Deixei de mandar relatório das
vaqueijadas (sic) do sertão porque aguardava sua vinda a todo momento”, escreve. Segue-se
minucioso relato: esteve “salgando gado”630 durante quinze dias no Barreiro Alto, de onde
trouxe “143 vacas paridas para fazer manteiga no Ceará”631. A vaquejada correu muito bem;
o gado foi marcado, sendo mais de 600 reses, das quais foi retirada a parte dos
vaqueiros632.
Em descrição cheia de vida e colorido, Brasil conta que pegou “bravezas” 633, mas
perdeu algumas reses durante a viagem, a despeito de ter procurado “o mais possível, um
meio de salvar esses bois eradões634.
Conduzindo a boiada com a ajuda de camaradas, enfrentou dificuldades no percurso:
“O gado que eu trouxe vem estourando desde [a fazenda] S. Antonio”, escreve,
acrescentando o número dos bois mortos ou que se machucaram. Prosseguindo viagem,
colocou homens experientes na “talha da frente”635; entretanto,
na saída do mato essa talha estourou e foram embora 14 bois erados (...). Na matta da Europa houve 3
arrancos e 2 estouros feios636 que esfarinhou toda boiada, estive 3 dias pegando bois e faltaram no fim
9 (...) os [bois] que chegaram estropiados na fazenda do Romão, sangrei-os, dei sal e os deixei na
invernada do Joaquim Sant`Anna, até que passasse por lá qualquer boiada que m´os trouxesse.
É de imaginar-se a cena: Brasil a cavalo, campeando o gado, a longa barba ao vento
e a risada sonora espraiando-se pelos campos e cerrados. Sinal dos tempos: faltavam
profissionais da área da saúde em Goiás, mas, por artes da política, o médico usava as
mãos, treinadas para minorar o sofrimento humano, na pega e salga de bois. Nem por isso,
deixava de cuidar das dores e doenças dos camaradas, peões e suas famílias, quando o
Ibidem.
Ibidem.
629 Carta de Brasil para Totó, de 25/11/1931. Sem indicação de procedência. Manuscrito. AFC.
630 Salgar o gado: ministrar sal ao gado, para suprir deficiências minerais.
631 Barreiro Alto e Ceará: retiros nas fazendas dos Caiado.
632 Parte dos vaqueiros: pagamento feito anualmente aos vaqueiros, sob a forma de bezerros, correspondendo à
quarta parte (25%) do gado nascido no intervalo entre as vaquejadas.
633 Braveza ou brabeza: gado rústico do sertão, criado em liberdade.
634 Bois erados: bois adultos, próprios para reprodução ou corte.
635 Talha da frente: parte dianteira da boiada que se desloca.
636 Estouro: debandada da boiada ou rebanho em marcha.
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necessitassem. Para descansar o espírito, intercalava caçadas e pescarias637, na companhia
de outros aficionados.
Brasil detém-se em minucioso relato sobre as transações feitas com o gado: quem
comprou e por quanto; onde foram feitos os negócios, se foram à vista ou a prazo. Oferece
estimativa do rebanho que resta numa das fazendas de Totó:
Eu calculo que nas Lages tenham ficado 400 a 500 bois, sendo uns 300 em condições de venda, mas
estão sumidos nas capoeiras e de difícil pega (...) 3 camaradas há 3 dias estiveram pegando bois para
corte e só conseguiram pegar 4 (...) Vendi ao boiadeiro 338 bois (...). No mesmo dia entreguei o dinheiro
dos seus a Consuelo (...).
Do total, Brasil retirou pequena parte, a título de empréstimo, para “pagar uma letra
que assinara para o Hermógenes [Coelho]”, na certeza de poder restituir o numerário, na
semana seguinte, "com a entrega dos meus bois ao mesmo boiadeiro”. O negócio não deu
certo; depois de ter juntado o gado, recebeu telegrama do comprador avisando “que não
tinha mais dinheiro”. O acerto ficou para ser feito dentro em breve.
Escrevendo ao irmão distante, Brasil o põe a par da situação em que encontrou as
fazendas e sugere providências:
Penso que você tem necessidade de mandar fiscalizar suas fazendas do sertão e mandar mais alguns
cavalos para os vaqueiros (...) só tem 3 cavalos em condições de campo (...). O Anthero tem pegado
bezerros, mas as onças estão comendo muito, em 3 dias de campo encontrei 4 carniças de menos de 8
dias (...). No Baixio, o Arthur vai muito bem, foi o gado mais manso que encontrei, mas só tem 3 cavalos
(...) os outros estão muito velhos e magros [...].
Finaliza Brasil: “Um favor agora, peço-lhe mandar a conta das despesas feitas na
Junta de Correição, a fim de que lhe possa restituir (...) no dia em que vender os meus bois
que estão presos, à espera do boiadeiro”.
As quantias obtidas com a venda do gado são vultosas, mas há muitos
compromissos a atender. As famílias de Totó e de Brasil são grandes, muitos dos filhos estão
em idade escolar, a única fonte de renda possível é a pecuária. A crise econômica
generalizada afeta os negócios; falta dinheiro na praça, as vendas são feitas a prazo e
sempre há quem queira beneficiar-se da difícil situação dos políticos depostos.
A cobrança de impostos agrava a situação. Imediatamente depois da vitória da
Revolução - em novembro de 1930 – um expediente é enviado a Ramos Caiado,
comunicando que o coronel intendente provisório de Itaberaí638 havia determinado a
cobrança da dívida ativa do município,
(...) e tendo encontrado o nome de V. S. como devedor à Fazenda d‟este, conforme a conta abaixo
especificada da importância de 837$600 (...) convido V. S. a fazer o obsequio de entrar com referida
importância afim (sic) de que seja dada a baixa do nome de V. S., constante das listas da divida ativa 639.
Fazia-se preciso levantar dinheiro para atender a esta e a outras cobranças, com o
acréscimo de multas e juros. Do Rio de Janeiro, Totó incumbe Ubirajara de tratar do
Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 01/09/1931. Manuscrito. AFC.
Itaberaí: antigo Curralinho, município onde Totó Caiado possuía fazendas, situado a cerca de 30 km da
Cidade de Goiás.
639 Carta de Consuelo para Papai. Cidade de Goiás, 01/12/1930. Manuscrito. AFC.
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assunto640; meses depois, insiste em que todos os impostos sejam quitados: “Eu estou
incomodado – escreve – imaginando que não se lembrem de pagá-los a tempo”641. A tantas
despesas, somam-se as decorrentes dos processos em andamento nas diversas instâncias
da justiça revolucionária.
Na situação de insegurança em que vive, o chefe da família dá instruções sobre o
“livro de assentos” de seus negócios, advertindo que “precisa ficar guardado, de modo que
não me furtem. Ninguém deve vê-lo”. E explica: “Hoje só me desejam dar prejuízos. É preciso
que se acautelem para evitá-los”642.
Adverte o sobrinho e genro, o médico Lincoln Caiado de Castro, de que precisa
manter-se “altivo e animado” e exigir do governo a restituição dos cavalos confiscados pelos
“revolucionários”, além do conserto do “sobradinho”, do qual estes se apossaram, e a
devolução do terreno, onde foi plantada alfafa para os animais da polícia militar 643.
A administração das propriedades é preocupação permanente, até porque se
constituem na única fonte de recursos para a família. Ubirajara, encarregado pelo pai do
“fornecimento das fazendas”, precisa providenciar o necessário “para evitar queixas dos
camaradas”644.
Em seu prolongado exílio, Caiado repassa mentalmente – com uma ponta de
nostalgia - os trabalhos que devem ser feitos nas fazendas e os detalha para a esposa: “(...) é
preciso que mandem dar sal aos animais nas [fazendas] Lajes e no Limoeiro, não
esquecendo das éguas. É preciso correr as cercas de arame, para consertá-las e não fugirem
os animais. Fale ao Ubirajara para mandar indagar (...) sobre os cavalos que estão
sumidos”645.
O aluguel de imóveis proporciona rendimentos modestos; alguns estão a exigir
reparos, como o da Rua 13 de maio, na Cidade de Goiás, onde há problemas com o esgoto.
Ubirajara vende boiadas em fevereiro e março; segundo instruções de Ramos Caiado, deve
ser priorizado o pagamento de empréstimo que tomara do genro 646. Em junho e setembro,
outras transações são feitas, mas há mais dívidas a saldar647. Totó dá ordem peremptória
aos filhos: o dinheiro apurado deve ser depositado no Banco, em nome de Consuelo, “a fim
de evitar qualquer canalhice dos meus inimigos”648.
É difícil receber de correligionários e amigos os empréstimos feitos há tempos,
alguns dos quais sem comprovação documental, tendo como garantia o que foi apalavrado.
Emblemático é o caso do senhor Ernesto, quando vai acertar contas de um débito que
remonta a 1928649. Como o devedor não sabe redigir, Nasser serve-lhe de secretário; em
carta para Totó, depois de pedir que o dispense da capitalização dos juros, esclarece: “Dei já
2:000$000 [dois contos de réis] e 4 cavalos, sendo destes, 3 para descontar no documento
[da dívida] e 1 de presente [grifo nosso] para o Sr. [para Totó]”. Não deixa passar a ocasião
para obsequiar o amigo e queixar-se dos adversários: “ O chefe [político] de Itaberaí muito
Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 09/12/1930. Manuscrito. ATEAC.
Idem, 22/09/1931.
642 Ibidem. Não foi localizado o “livro de assentos” de Ramos Caiado.
643 Idem, 12/01/1931.
644 Idem, 09/10/1931.
645 Idem, 10/07/1931.
646 Idem, 27/10/1931 e 03/03/1932.
647 Idem, 16.06.1931.
648 Ibidem.
649 Idem, 19/05/1931.
640
641
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tem perseguido meu genro e, nada conseguindo contra ele, quer, por todos os meios,
envolver-me [...]”.
A discussão sobre os juros da dívida estendeu-se por alguns meses; afinal, escreve
Consuelo ao pai que o Sr. Ernesto resolveu “passar o crédito (...) satisfazendo às suas
ordens”650.
Outros devedores propõem-se a pagar velhas contas com gado em pé - mas há
necessidade de dinheiro vivo, quase impossível de obter651. As negociações arrastam-se, o
tempo passa, as carências e exigências são maiores a cada dia.
Persistindo, ao longo dos anos, as dificuldades e a falta de recursos financeiros, é
lembrada a exploração das jazidas de esmeraldas que, na fazenda Lages, existiriam “à flor
da terra, em aluviões”652. Ramos Caiado sempre se recusara a fazê-lo, alegando que o
dinheiro obtido facilmente seria prejudicial à formação do caráter dos seus filhos653.
Dispõe-se agora a admiti-lo, dada a difícil situação vivenciada por ele e pela família.
Amostra das pedras é enviada para a sobrinha, Altair, que tenta comercializá-las em São
Paulo. Os resultados são decepcionantes: ninguém ofereceu “quantias satisfatórias”, diz a
improvisada marchande, nem mesmo por três esmeraldas que, embora “bonitinhas”, têm
defeitos. Feitos contactos na embaixada de Portugal, debaixo da “maior reserva”, houve
manifestação de interesse; por enquanto, Consuelo deve dar ciência a Totó dos termos do
negócio - e, “se acham conveniente, avise-nos”654.
Cabral – marido de Altair – pergunta se Totó conhece o novo Código de Minas; acha
ser preciso que ele registre as jazidas que lhe pertencem, a fim de “evitar incômodos (...) pois
os aventureiros estão famintos” (grifos no original).
Para bem informar Consuelo, Altair escreve-lhe que um amigo contou “diversas
cousas” a respeito da pessoa que se candidatara a explorar as minas, sobre quem adverte:
“Achamos que vocês não devem receber esse sujeito [o candidato a explorar as minas] mais
aí. Imagine, Conso655, que ele, alem de ter praticado uma serie de gatunagens aqui (...) disse
numa roda (...) que o Tio Totó é um assassino e um ladrão. Exibindo um punhado de
esmeraldas [afirmou] que [elas] são de terrenos usurpados do Estado”656.
O negócio não prospera e as dificuldades financeiras continuam a afligir os Caiado, a
despeito de serem proprietários de numerosas fazendas, de onde devem retirar a
subsistência própria e de seus familiares.
Não estão claros os motivos que levaram Ramos Caiado a voltar para Goiás, em abril
de 1932. Um dos principais objetivos de sua permanência no Rio de Janeiro fora alcançado:
a confirmação dos títulos de domínio das fazendas Tesouras e Aricá, pelo Supremo Tribunal
Federal. Ao que parece, a volta do ex-senador teria algo a ver com a Revolução
Constitucionalista, cuja deflagração se aproximava. Estaria ele articulado com os líderes
paulistas, com vistas a angariar, entre os goianos, apoio ao movimento contra Vargas?
Idem, 01/07/1931.
Idem, de 19/05/1931.
652 BRITTO, Célia Coutinho Seixo de. A mulher, a história e Goiás. Goiânia: UNIGRAF, 1982, p. 104.
653 Cf. Depoimento de Emival Caiado à Autora, em 1998.
654 Carta de Altair para Consuelo. São Paulo, 11/10 (data incompleta). O documento está muito danificado, não
sendo possível identificar o ano. Parece ser de 1934, pois fala no Código de Minas, editado em 10/7/1934.
Manuscrito. AFC.
655 Conso: abreviatura de Consuelo.
656 Anos depois, a exploração das esmeraldas volta a ser cogitada, conforme procuração outorgada por Antônio
Ramos Caiado ao filho Emival, em 26/07/1943. Manuscrito. AFC.
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Documentos confirmam que, antes de deixar a capital federal, Totó manteve contactos com
amigos e correligionários, conforme escreve para Mariquita: “(...) o povo de Santa Luzia,
Formosa, Catalão, Santa Cruz, Pires do Rio, Anapolis, Bela Vista, etc, me mandaram pedir
que avisasse o dia do meu regresso. Noto um entusiasmo muito grande nos amigos, a
despeito das perseguições do Governo”657.
Por mais um mês, entretanto, ele continuou no Rio de Janeiro. Nesse ínterim,
delineavam-se mudanças no panorama nacional – e o ex-senador acompanhava-as de perto:
“A política aqui está fervendo. Não sabemos onde vamos parar. Aguardamos com ansiedade
os desfechos dos casos de São Paulo e Rio Grande [do Sul]”658.
Antônio Ramos Caiado chegou a Goiás em abril de 1932. Três meses depois, no
começo de julho, voltou a ser preso, como suspeito de apoiar a Revolução Constitucionalista
de São Paulo. Foi solto no final de outubro, após a derrota dos revoltosos.
Nomeado por Getúlio Vargas – por cuja deposição lutavam os insurretos - o
interventor federal via com suspeição a presença do ex-senador na Cidade de Goiás, como
provável articulador da oposição que emergia das sombras, tendo a reforçá-la antigos
aliancistas que começavam a desertar da grei governista.
É possível que, a essa altura dos acontecimentos, Pedro Ludovico – na expressão de
Câmara659 – já tivesse a “idéia fixa” da mudança da capital, estando convicto da
necessidade de preparar terreno para fazê-la.
No seio da sociedade goiana, tinha início a disputa entre mudancistas e antimudancistas, que apaixonou as elites do estado nos anos iniciais da década de 1930. Pouco
depois do fim da Revolução Constitucionalista, sendo vitoriosas as hostes governistas – que
contaram com tropas goianas, na defesa do situacionismo – Pedro Ludovico, politicamente
fortalecido, nomeia comissão para estudar o local onde se construiria a futura capital do
estado660.
Tinha início nova etapa da história de Goiás; Pedro Ludovico permanecerá como
governador/interventor até o final do Estado Novo, em 1945. A atuação dos políticos de
oposição, nesse contexto, será cerceada por manobras e atos autoritários do ludoviquismo
em ascensão.
De caráter privado, a correspondência analisada data dos dois anos imediatamente
subsequentes à Revolução de 1930 e diz respeito às dificuldades vivenciadas por políticos
depostos, bem como à maneira como eles e seus familiares encaravam a derrota e o
ostracismo.
A historiografia sobre esse período privilegia os vencedores, a formação dos novos
quadros políticos e administrativos, e o início do que seria uma Nova República. De maneira
implícita, entende-se que as personagens afastadas do proscênio o foram de forma
definitiva – até como purgação pelos erros e desmandos dos carcomidos da Velha
República. Não se cogita de saber como seguiram em frente os decaídos – outra designação
pejorativa -, nem de que maneira se adaptaram (ou não) ao novo contexto histórico e social.
Carta de A. Ramos Caiado para Mariquita. Rio de Janeiro, 05/3/1932. Manuscrito. ATEAC.
Ibidem.
659 CÂMARA, Jaime. Os tempos da mudança. Goiânia: Cultura Goiana, 1973, p. 47.
660 A comissão foi nomeada pelo decreto nº 2.727, publicado no Correio Oficial do Estado de Goiás em
20.12.1932.
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No presente capítulo, trabalhou-se com a visão dos políticos vencidos em 1930 e
apeados do poder, manu militari, no distante e desimportante estado de Goiás. Através de
cartas familiares existentes nos acervos da família Caiado – hegemônica no estado durante
as duas últimas décadas da Primeira República – é possível conhecer como encaravam a si
próprios e aos seus algozes, integrantes da elite do poder pós-revolucionária. São juízos de
valor que se tecem entre os vencidos, ante o regime de exceção que começava a vigir no
país e em Goiás – e que os afetou não só do ponto de vista político, mas também pessoal,
familiar, econômico e social.
Cartas revestem importância peculiar como documentos para estudos biográficos e
históricos. Seguindo embora normas de boas maneiras e de linguagem, mantêm
características de espontaneidade e autenticidade, sobretudo aquelas trocadas entre
indivíduos da mesma família, ligados por laços de afeição e de interesses. De igual modo,
trazem marcas do momento em que foram redigidas, do vocabulário às expressões
linguísticas e à ortografia, dos gostos aos modismos e valores.
No caso vertente, estudam-se cartas de políticos depostos e perseguidos, submetidos
à censura mesmo na correspondência particular: são vozes do silêncio, falando do âmago da
derrota e do ostracismo. Cartas escritas pelo marido à mulher, pelas filhas ao pai – e por
este às filhas. Cartas de irmão para irmão; e mais algumas poucas que foram enviadas por
correligionários e admiradores, até por devedores. Todas são provenientes do círculo mais
próximo do líder deposto – Antônio (Totó) Ramos Caiado - em torno de quem gravitam as
idealizadas lembranças do passado, assim como as incertas perspectivas do futuro.
Das cartas da autoria de Totó Caiado, emergem traços marcantes de sua
personalidade: autoritarismo e capacidade de liderança. Transparece, igualmente, sua
profunda ligação com a família, ainda que expressa com rígida contenção de palavras e de
sentimentos. Estes são mais visíveis (e suavizados) nas missivas endereçadas para “Minha
Mariquita”, tal como é amorosa e possessivamente chamada a esposa, mãe e madrasta de
seus numerosos filhos.
Das entrelinhas, fluem os valores que norteavam o político deposto. Ante as ideias e
os costumes colocados em cheque pela Revolução de 1930, ele é um homem à moda
antiga, que deplora o cavalheirismo perdido, invoca a honra e cultiva a lealdade aos amigos.
Em nenhum momento Totó assume ter cometido erros, ou confessa sentir-se de algum
modo culpado. Pelo contrário: proclama-se injustiçado e perseguido.
Conhecendo os homens – e em especial os mandatários - encara o jogo político
como ele é. Acalenta a certeza de que um dia a maré da sorte irá mudar. Enquanto aguarda
a reviravolta – que, acredita, virá beneficiá-lo – cuida de manter os contactos sociais e
familiares. E, sobretudo, resguardar o patrimônio pessoal, moral e econômico, de maneira a
preservar o panache e a independência financeira, que não se origina do patrimônio público,
nem com ele se confunde.
Totó pouco se atém às ideias ou à atuação político-administrativa dos novos
governantes: naquele momento, seu horizonte é o da defesa pessoal e familiar. Mostra-se
prudente quanto a expectativas de reinserção na política estadual; acompanha os
acontecimentos nacionais com descrença, mas não sem interesse. Preocupa-se com a sorte
de amigos e correligionários; e procura manter a crença de que o momento difícil passará,
até porque não internalizou o fato de que um novo tipo de político – o populista - chegava
para ficar, com o getulismo que se esboçava.
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Nas cartas de Consuelo para o genitor, o tom formal e despido de manifestações de
afeto aponta para o distanciamento gerado pelo autoritarismo paterno. Do subtexto,
contudo, fluem devoção e lealdade, ao lado da obediência que se espera das mulheres, em
particular das filhas. De outro lado, assinalem-se as reiteradas expectativas dos vencidos
relativas à queda do interventor e à nomeação de outro, do qual possam aproximar-se.
Sempre presentes, repetem-se as intrigas, os boatos, as perseguições, as desilusões – mas
também as solidariedades recebidas. O tom sarcástico, às vezes depreciativo, em relação
aos novos governantes testemunha a elevada autoestima dos Caiado, não minimizada pela
adversidade.
A realidade vivenciada pelos decaídos, expressa na correspondência familiar
analisada, desmente a afirmação oficial – e oficiosa – de que não havia perseguições aos
políticos depostos em 1930, após a instalação do governo revolucionário e seus prepostos,
os interventores federais. Reveladoras são, igualmente, as dificuldades financeiras
enfrentadas pelos Caiado que, depois de prolongada (e combatida) hegemonia no estado de
Goiás, não acumularam fortuna ou reservas que lhes propiciassem disponibilidade financeira
para enfrentar a débâcle política. Inviável era, igualmente, o exercício de profissões liberais
pelos vencidos; sendo proprietários de vastas extensões de terra, restou-lhes como
alternativa de sobrevivência a lida da terra e a criação de gado, cuja comercialização foi
também dificultada por expedientes diversos.
A volumosa documentação existente nos acervos da família Caiado inclui diversos
conjuntos de cartas, dos quais uma pequena amostra foi aqui entremostrada. A exploração
dessa correspondência, em parte redigida quando vigorava a censura imposta pelo governo
de exceção, irá contribuir, sem dúvida, para o conhecimento mais aprofundado de tópicos
relevantes da história goiana e brasileira.
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A COLÔNIA E A BARRANCA NOS TEMPOS DA FRONTEIRA:
DEMARCAÇÕES SIMBÓLICAS ÀS MARGENS DO
RIO DAS ALMAS
SANDRO DUTRA E SILVA
Doutor em História pela UnB
Professor do Mestrado em Territórios e Expressão Cultural do Cerrado (TECCER) da UEG
Professor do Mestrado em Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente do Centro Universitário de
Anápolis (PPSTMA/UniEVANGELICA)
Desbravamento. Lastro. Variante.
Descrença dos vencidos.
Deserção.
E ao cântico de fé dos vencedores,
surge uma cidade nova.
Cora Coralina
INTRODUÇÃO
Segundo Speridião Faissol, geógrafo do Conselho Nacional de Geografia, que
estudava os processos de colonização que vinham acontecendo no país nas décadas de
1940 e 1950, o povoamento que acontecia nesse período poderia ser interpretado como um
conjunto de medidas governamentais, refletindo um tipo de ocupação que se distinguia dos
modelos historicamente percebidos nos processos anteriores de deslocamentos no território
brasileiro661. Entre as décadas de 1940 e 1950, o conceito de colonização representava um
movimento orientado por programas e ideologias governamentais, cujos exemplos mais
marcantes foram a criação das Colônias Agrícolas Nacionais (1941), da Fundação Brasil
Central (1943) e do plano de mudança e construção da nova capital federal na segunda
metade da década de 1950. Essa perspectiva de ocupação e colonização apresentava a
fronteira não mais como lócus da barbárie e dos conflitos, mas como um novo eldorado no
Oeste brasileiro orientado pelas diretrizes governamentais de controle e organização.
O objeto deste capítulo insere-se na discussão acima apresentada por considerar
que, a despeito das políticas governamentais de colonização e das tentativas de fazer com
que esse processo nas décadas citadas ocorresse sobre o controle e organização do Estado,
FAISSOL, Speridião. Que é colonização? In: Revista Brasileira de Geografia. Ano XIV, nº 3, julho-setembro de
1952. Rio de Janeiro: IBGE, 1952.
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a ocupação e povoamento das fronteiras do planalto goiano, às margens do Rio das Almas,
foi marcada por outra ordem de conflito. Os “encontros e desencontros” ocorridos nas
barrancas do Rio das Almas em Goiás, nas décadas de 1940 e 1950, apresentam as
características dessas duas formas distintas de expansão de fronteiras: o deslocamento
privado das frentes pioneiras de expansão e a colonização planejada sobre a tutela do
Estado.
Nas margens do Rio das Almas instalaram-se duas comunidades com formas
distintas de ocupação social do espaço e de povoamento, resultando em conflitos dos mais
diversos. De um lado do rio localizava-se a sede da Colônia Agrícola Nacional de Goiás,
cidade planejada para receber os burocratas e servidores da primeira experiência brasileira
de colonização agrícola, na época chamada de Colônia pelos moradores da região, e que deu
origem a cidade de Ceres. Na margem oposta localizava-se a comunidade da Barranca,
povoamento resultante, em sua maioria, de camponeses excluídos da Colônia pelos critérios
de seleção e doação dos lotes rurais e urbanos, atualmente a cidade de Rialma.
Comunidades que não tinham na temporalidade as causas do conflito, na medida
em que a ocupação dos espaços ribeirinhos ocorreu numa mesma época. Tampouco as
causas dos conflitos eram de ordem social, considerando que o povoamento se deu por uma
população de camponeses em busca de terras doadas pelo governo federal. O fato é que a
relação dessas comunidades, geograficamente, temporalmente, socialmente e
culturalmente próximas foi marcada por conflitos. Sejam os conflitos simbólicos pela
distinção, pelo uso pejorativo de léxicos e adjetivações no sentido de estigmatizar o outro ou
pela sócio-dinâmica da demarcação de “fronteiras”, desencontros eram percebidos. Ou
ainda, o conflito se manifestava nas constantes demonstrações de violência marcadas pela
intolerância e por rixas promovidas pela juventude dessas localidades nos momentos de
sociabilidade e no trânsito de uma “barranca” para outra. O fato é que, uma reflexão acerca
da colonização, povoamento e expansão de fronteiras no Oeste brasileiro, tendo como
cenário as comunidades ribeirinhas do Rio das Almas em Goiás não pode desconsiderar as
lutas simbólicas pela demarcação dos espaços sociais.
Nossa intenção, no entanto, na discussão que propomos nesse capítulo, não é
apresentar as características das lutas simbólicas vivenciadas pelas comunidades
ribeirinhas da Colônia e da Barranca, mas evidenciar a base teórica que permitiu essa
reflexão. Em outros trabalhos e publicações procuro desenvolver essas características662,
deixando para esse texto em particular as reflexões acerca das motivações cientificas e
fundamentações teóricas presentes na construção desse objeto. Nesse sentido, nossa
intenção não é apenas descrever conceitos e teorias utilizadas, mas destacar que, apesar
das orientações governamentais para a ocupação do Oeste, propostas no sentido de evitar
os conflitos e interesses particulares, sobretudo com questões agrárias já características de
expansão de fronteiras, novas formas e novos conflitos simbólicos podem ser observados,
numa representação da fronteira como um lugar do enfrentamento das diferenças, portanto
SILVA, Sandro Dutra. Os estigmatizados: distinções urbanas às margens do Rio das Almas em Goiás (19411959). Tese de Doutorado (Doutorado em História). Universidade de Brasília. Brasília: UnB, 2008. Do mesmo
autor: A experiência urbana de Ceres: representações simbólicas do planejamento e da ocupação social do
espaço. In: Revista UFG, Ano XI, nº 6, 2009. Goiânia: UFG, 2009 e A construção urbana de Ceres: as políticas de
planejamento e ocupação do espaço. In: BERNARDES, Genilda Darc; PRADO, Roberto (Org). Políticas públicas:
meio ambiente e tecnologia. Goiânia: Editora Vieira, 2010.
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um lugar de “encontros e desencontros”. Esse é o enredo para a discussão das diferenças
simbólicas, das demarcações territoriais e culturais nas barrancas do Rio das Almas.
A COLÔNIA E A BARRANCA NOS TEMPOS DA FRONTEIRA
O projeto de ocupação proposta para as Colônias Agrícolas Nacionais, por meio do
Decreto Lei nº 3.059 do Diário Oficial de 14 de fevereiro de 1941, trazia como peculiaridade
a instalação de núcleos rurais, mas também, o que parece ser uma particularidade desse
projeto de ocupação, a instalação de núcleos urbanos. As intenções desse projeto de
colonização e expansão das fronteiras agrícolas no Brasil eram muito mais abrangentes do
que as categorias campo/cidade pudessem abarcar. O foco era, sobretudo, as
intencionalidades nacionais, impulsionadas por uma postura centralizadora e nacionalista
que o Estado Novo (1937-1945) incorporava. Uma consideração inicial pode ser apontada
como justificativa à análise urbana desse tipo de ocupação, na medida em que o Decreto Lei
nº 3.059 deixava muito evidente as suas intenções em relação à instalação de centros
urbanos para as áreas de colônia. O objetivo dos núcleos urbanos não era apenas servir de
sede aos núcleos agrícolas, mas também funcionavam como centros irradiadores do
desenvolvimento regional. O artigo 5º do referido decreto apresenta as considerações acerca
do projeto urbano para as colônias:
Art. 5º. Fixada a região onde a colônia deverá ser fundada, será projetada a sua futura sede, escolhendose para isso a zona que melhores condições oferecer.
Parágrafo único. No projeto da sede serão observadas todas as regras urbanísticas, visando a criação de
um futuro núcleo de civilização no interior do país663.
Esse documento apresentava indícios não apenas das intencionalidades urbanas
para as colônias agrícolas, mas também a inclusão de princípios norteadores para as futuras
cidades. Esses princípios podem ser resumidamente identificados no caráter racional que a
ocupação do espaço urbano incorporava, ao enquadrar o planejamento dentro de “regras
urbanísticas” visando a construção de um “núcleo de civilização” geograficamente
direcionado para o “interior do país”. A racionalidade da ocupação incorporava as categorias
da cidade planejada e do sertão civilizado, princípios amplamente divulgados pela Marcha
para Oeste664 e ideologicamente atrelados aos interesses nacionalistas do Estado Novo.
Após a publicação do Decreto Lei Federal nº 6.882665, que institucionalizava a
Colônia Agrícola Nacional de Goiás, em 19 de fevereiro de 1941, deu-se início ao processo
de escolha, demarcação e ocupação das áreas que receberiam esse núcleo, tornando-se a
Brasil. Decreto Lei nº 3059. Diário Oficial. 14 de fevereiro de 1941. Senado Federal. Subsecretaria de
Informações. Texto Integral. Publicação: Coleção Leis do Brasil.
664 A Marcha para Oeste se manifestou numa política de interiorização do país, fundamentada numa ideologia
que procurava construir uma identidade nacional a partir da integração territorial. A divulgação dessa política
pautava-se na concepção de que o verdadeiro espírito de brasilidade estava nessa vocação bandeirante dos
brasileiros. Cassiano Ricardo (1959) apresenta essa construção da identidade nacional a partir das bandeiras
paulistas, identificando os personagens que contribuíram para a conquista territorial do Brasil. Sua relação com o
Estado Novo estava na divulgação ideológica dos novos ideais de ocupação territorial, ao identificar nesse
processo histórico a retomada do verdadeiro espírito brasileiro do desbravamento. Cf. ESTERCI, N. O mito da
democracia no país das bandeiras. 1972. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Antropologia) Universidade
Federal do Rio de Janeiro, RJ, UFRJ, 1972 e LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.
665 BRASIL. Decreto Lei nº 6882. Diário Oficial. 19 de fevereiro de 1941. Senado Federal. Subsecretaria de
Informações. Texto Integral. Publicação: Coleção Leis do Brasil.
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primeira das oito colônias nacionais a implantar-se no país666. O engenheiro agrônomo
carioca Bernardo Sayão, foi nomeado por Getúlio Vargas para coordenar os trabalhos. O
ponto de partida para sua empreitada foi a cidade de Anápolis, onde iniciou as obras da
estrada denominada de Transbrasiliana, aproveitando um trecho já em uso entre Anápolis e
Jaraguá. Partindo de Jaraguá a estrada entrava numa região de mata fechada, as Matas do
São Patrício, em direção à região escolhida para sede da Colônia. Os anos que se seguiram
foram marcados por uma intensa migração em direção a Colônia, cuja grande maioria da
população era composta por camponeses oriundos de vários estados brasileiros,
principalmente de Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Como a legislação das Colônias
Agrícolas estabelecia critérios de seleção, nem todos os que solicitavam os lotes tornavamse colonos. Muitos, não conseguindo estabelecer-se na Colônia, retornavam à sua região de
origem ou continuam a jornada em direção à região Norte do Estado de Goiás. Todavia, um
expressivo contingente populacional, a despeito da recusa da autorização para ocupar os
lotes da Colônia, fixou-se à margem oposta do Rio das Almas, de frente à Colônia, dando
origem ao povoado da Barranca, cujos moradores eram pejorativamente chamados de
“barranqueiros”.
Em nossa tese de doutoramento procuramos apresentar os indícios da distinção
decorrente das experiências vivenciadas pelos moradores da Colônia, não apenas nas
referências imaginárias da consciência da diferença, mas também pelos elementos
estruturantes, percebidos nas relações cotidianas, orientados por coerções presentes nas
normatizações oficiais, interpretados como práticas e estilo de vida. Essas experiências
estruturais e culturais permitiram o estabelecimento de práticas sociais distintas para a
Colônia, cuja característica marcante foi a racionalidade que se impôs pela ocupação
planejada. Todavia, mesmo que esses traços de distinção foram constituídos por
experiências sociais vividas na época, eles se reforçavam na consciência estabelecida para o
lugar e na negação das práticas sociais da vizinha Barranca, muitas vezes generalizadas
com a finalidade de demarcar a distinção pela estigmatização do outro. Dessa forma, em
consonância com as intenções desse texto, apresentamos as bases teóricas utilizadas na
construção e na busca de compreensão e sentido histórico desse objeto.
AS DEMARCAÇÕES SIMBÓLICAS DAS COMUNIDADES RIBEIRINHAS DO RIO DAS ALMAS
Assim como a Colônia, que estabeleceu hábitos e práticas sociais distintas na
construção simbólica do espaço social, os moradores da Barranca também tiveram uma
experiência com o espaço em construção que também interferiu no desenvolvimento de
hábitos e práticas específicas para o lugar. O que percebemos, nos relatos e depoimentos
orais coletados com os pioneiros da Colônia, foi a necessidade de lançar sobre a Barranca e
seus moradores uma carga negativa de valores depreciativos, que eram generalizados para
As oito colônias nacionais foram implementadas foram as seguintes: em 1941, por decreto federal foram
criadas as colônias de Goiás e Amazonas. Em 1942, foram decretadas a implantação das Colônias de Monte
Alegre (Pará) e Barra da Corda (Maranhão). Em 1943 os decretos federais instalavam as colônias de General
Osório (Paraná) e a de Dourados (no Território de Ponta Porã, hoje Mato Grosso do Sul), e no ano seguinte a
colônia de Oeiras no Piauí. Em 1948, no governo do General Dutra, foi criada a colônia de Jaíba em Minas Gerais.
Cf. NEIVA, I. C. O outro lado da colônia: contradições e formas de resistência popular na Colônia Agrícola Nacional
de Goiás. 1984. Dissertação de Mestrado (Instituto de Ciências Humanas), Universidade de Brasília, Brasília,
1984, p. 71.
666
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o lugar (onde as normas e a racionalidade não imperavam) e seus moradores, apresentados
como preguiçosos (avessos à moral do trabalho), baderneiros (dado aos prazeres e vícios) e
festeiros (correlação com a moral do trabalho). E, muitas vezes, quando se referiam à
Barranca, faziam questão de mencionar a zona de meretrício que se instalava na parte baixa
da cidade, região “beira-rio”.
A negação do outro, muitas vezes, apresentava-se de forma explícita – quando
arguidos sobre o cotidiano da Colônia, a maioria fazia questão de referenciar-se à Barranca,
como para reforçar aquilo que consideravam fundamental de sua comunidade –
evidenciando as estratégias de demarcar territórios e fronteiras entre as duas comunidades.
As estratégias da sócio-dinâmica da estigmatização procuravam reforçar os pontos
considerados pelo grupo estigmatizador como positivos e superiores, generalizando e
evidenciando hábitos e práticas sociais consideradas inferiores no grupo estigmatizado.
Portanto, quando afirmavam que “lá podia tudo”, tinham a intenção em reforçar que “aqui
não podia tudo”, que é diferente de “aqui não podia nada”.
Na verdade, a função da Barranca no imaginário social da Colônia era evidenciar que
as escolhas “feitas” por essa comunidade, no entendimento de seus pioneiros, foram as
mais acertadas, principalmente no que dizia respeito às orientações normativas, conforme
apresentado no relato de um pioneiro da Colônia: “lá podia tudo. [...] A Colônia era mais
elitizada. E lá era uma baderna. [...] Então tinha a zona lá, tinha a mulherada. Era um caso
sério. Lá, de vez em quando, dava o chamado puxa-faca”. As características destacadas
pelas narrativas memorialistas do grupo estigmatizador apresentavam a Barranca como
espaço da violência, decorrentes do uso abusivo de bebidas alcoólicas e das práticas do
meretrício.
Os relatos memorialistas dos pioneiros da Colônia, também procuravam selecionar
as lembranças, reforçando aquelas que indicavam essa visão dominante na consciência
coletiva. As precariedades e dificuldades enfrentadas no início da colonização geralmente
eram omitidas. Quando eram apresentadas tinham a intenção de reforçar o espírito
bandeirante-desbravador, característico dos discursos da Marcha para Oeste667. As
informações sobre essas dificuldades aparecem em outros relatórios como, por exemplo, os
relatos dos pesquisadores do IBGE na década de 1960, que apontam que houve
“dificuldades no cumprimento das determinações legais: em 1948 a administração da
colônia só havia construído 100 casas, todas elas de tijolos e cobertas de telhas”668, e a
justificativa para a precariedade de habitações estava na falta de verbas para concluir os
assentamentos. Entretanto, as lembranças “selecionadas” pelos pioneiros buscavam
reforçar o planejamento, os serviços e os benefícios da Colônia, bem como o estilo de vida
de seus moradores.
Mas, considerando que essa estratégia fazia parte da lógica da memória coletiva, e
que, portanto, as lembranças devem ser consideradas pelos seus conteúdos simbólicos,
ficava evidente a relação de dependência da Barranca para com a Colônia. Um fato que
caracterizava essa relação de dependência era a formação da Barranca pela população
excluída da Colônia. A cidade estigmatizada era composta, sobretudo, pela massa não
RICARDO, Cassiano. Marcha para oeste: a influência da bandeira na formação social e política do Brasil. Rio
de Janeiro: José Olímpio, 1959.
668 VALVERDE, Orlando; DIAS, Cartharina Vergolino. A Rodovia Belém-Brasília: estudo de geografia regional.
Biblioteca Geográfica Brasileira, Série A, nº 22. Rio de Janeiro: IBGE, 1967.
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estabelecida, pelo povo outsider669. As estratégias simbólicas da distinção faziam referência
ao “outro lado do Rio das Almas”, não apenas para demarcar geograficamente as fronteiras
(regio/finis), mas constituir um novo tipo de distinção, assumindo assim novas
representações. Enquanto o processo exclusivista do povoamento, as coerções normativas
de convivência regidas pela moral do trabalho e o planejamento racional da ocupação foram
elementos fundantes do imaginário da Colônia, a Barranca, nessa construção tipológica,
aparecia como lugar de ocupação espontânea e marginal, em que a lógica racional era
ausente e o espírito da festividade substituía a moral do trabalho.
A Barranca, por não experimentar uma ocupação de tipo planejada e por receber um
quantitativo populacional – em sua maioria excluídos da colonização oficial –, conviveu com
experiências urbanas diferentes da Colônia, mas que se assemelhavam às experiências e
aos modelos reproduzidos pela formação das cidades brasileiras. Talvez, por esse motivo, a
estigmatização, que era tão cara aos moradores da Colônia para estabelecer sua distinção,
não tivesse o impacto desejado na comunidade da Barranca, que se considerava como a
regra geral, e era a Colônia a representação do diferente.
De acordo com Emmanuel Araújo, a formação das cidades brasileiras caracterizavase pelo “signo do provisório”, cujo princípio que norteava essa experiência fundamentava-se
no senso de desapego e desleixo com o lugar 670. Nessa representação urbana, a relação
estabelecida entre a população e o lugar impossibilitava a constituição do senso de
pertencimento, na medida em que o espaço social era visto como ponto de passagem, locus
de experiência provisória, portanto, sem vínculos. No caso da Barranca, o signo do provisório,
além de impossibilitar a emergência do senso de pertencimento, permitiu, justamente por
esse desapego ao espaço social, o estigma por parte dos moradores da Colônia, na medida
em que as estratégias de estigmatização estabelecem-se num contexto de
interdependência, em que persistiam relações de poder específicas, cuja peça central foi o
equilíbrio instável de poder671.
A Colônia, ao selecionar seus habitantes e ao impor a essa população regras de
conduta bem definidas, legitimadas pelo grupo social, estabelecia uma identificação com
seus moradores e com o lugar por meio das práticas sociais e dos hábitos que os
representavam. Também essa identidade constituía-se a partir das visões imaginárias do
espaço social, no estabelecimento da orientação normativa para as relações interpessoais
que buscavam legitimar a manutenção desse imaginário, reforçando as diferenças na
antítese da Barranca. Portanto, os relatos memorialistas insistiam em apresentar a Barranca
como outro lugar que não a Colônia, como um espaço diferente, fora das suas fronteiras. A
Barranca na representação imaginária da Colônia simbolizava outra geografia (o outro lado
do rio), outra sociabilidade, outra cultura e outra identidade. Para tanto procuravam expor a
realidade da “cidade estigmatizada” que se opunha ao ideal de planejamento, na medida
em que evidenciavam que seu povoamento surgia de forma desordeira, marcado pelo signo
do provisório.
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
670 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Brasília: UNB; Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
671 ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
669
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As estratégias utilizadas para impor o senso de distinção procuravam estigmatizar o
lugar e estender o estigma a seus moradores672, tidos como pessoas de conduta moral
questionável – privilegiavam o lazer em detrimento do trabalho, o improviso em relação ao
planejamento, a desordem em detrimento da ordem, cuja vida boêmia era apontada como a
característica mais marcante daquela comunidade. As lutas simbólicas evidenciavam a
representação da Barranca como “coisa provisória”, destacando uma relação instável de
poder entre a cidade que impunha os estigmas e a outra que os recebia.
Uma experiência inicial que evidencia a representação da distinção pode ser
observada a partir do uso de léxicos de estigmatização lançados sobre a Barranca e seus
moradores. Os termos “Barranca” e “barranqueiros”, a princípio, eram utilizados na tentativa
explícita de demarcar o grupo social que não pertencia às experiências da Colônia. O lugar
(Barranca) e seus moradores (barranqueiros), na representação social da Colônia,
simbolizavam a condição do “outro”, o outsider, aquele que se situava para além das
fronteiras do seu espaço social e, portanto, diferente. Era comum o uso do termo barranca
para denominar os paredões situados às margens dos rios (a barranca do rio tal), mas que
na luta simbólica pela distinção, o uso das palavras era intencional para demarcar o lugar
dos excluídos e marginalizados pelo processo de seleção da Colônia.
Sandra Pesavento673 referenciou-se em Bourdieu para analisar os vocabulários da
estigmatização urbana em Porto Alegre, lançados sobre determinados lugares, personagens
e práticas sociais no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A autora
identificava os “lugares malditos” da cidade, a partir do uso das linguagens para identificar
certos espaços da cidade, com a finalidade de demarcar esses lugares “amaldiçoados” (no
caso estudado, os becos de prostituição em áreas centrais da capital gaúcha). A autora
fundamentava-se na compreensão das representações expressas pelo uso da linguagem nas
lutas simbólicas de poder, utilizando assertivas do sociólogo francês ao afirmar que, as
palavras e os nomes que constituem uma realidade social são, ao mesmo tempo, os alvos e
os frutos de uma luta política, possibilitando assim compreender o real como um campo de
lutas para definição do que é o real674.
Assim como a análise de Pesavento tratava os elementos da linguagem como
representação das lutas de poder para a construção do real, percebe-se que a utilização dos
vocábulos “Barranca” e “barranqueiros” não indicam apenas termos depreciativos do lugar,
dos moradores e de suas práticas expressas na linguagem cotidiana. Os léxicos da
estigmatização, muito mais do que apenas denominar, demarcam as relações de poder na
medida em que evidenciam os sujeitos que impunham a linguagem, bem como as intenções
dos vocábulos e os referenciais simbólicos que eles suportavam. Ficava evidente, ainda, o
desejo de realidade que as representações indicavam e que foram lançadas na luta pela
constituição material e imaginária do lugar.
As representações urbanas dessas sociedades ribeirinhas do rio das Almas
identificavam na Colônia o locus do poder simbólico, cuja vontade de distinção lança sobre a
Nas entrevistas feitas com os pioneiros eles apresentavam uma visão a priori pejorativa do lugar e de seus
moradores, principalmente quando a questão era sobre a Colônia. Mas quando perguntados sobre a Barranca,
havia uma postura mais cautelosa, procurando afirmar que “tinha muita gente honesta lá”. Ou seja, a visão
estigmatizada da Barranca era muito mais reforçada nas lembranças e recordações da Colônia, em que o
passado da localidade vizinha aparecia espontaneamente e sempre generalizada negativamente.
673 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Lugares malditos: a cidade do “outro” no sul brasileiro (Porto Alegre, passagem do
século XIX ao século XX). Revista Brasileira de História, vol. 19, nº 37, 1999.
674 Ibidem.
672
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Barranca a representação do “outro”, do diferente, da cidade estigmatizada. O rio delimitava
as fronteiras geográficas, enquanto outras demarcações se constituíam por meio do uso das
palavras, que por sua vez traduziam novas fronteiras imbuídas da necessidade da distinção.
Os léxicos de depreciação da Barranca constituem-se, portanto, em indício das experiências
de lutas simbólicas travadas entre essas localidades, identificando a origem social da cidade
estigmatizada e os agentes da estigmatização.
A visão depreciativa sobre os moradores da Barranca, geralmente generalizada pelos
depoimentos, aparecia nos relatos muito mais para justificar as práticas e os valores sociais
da cidade estigmatizadora do que para simplesmente fazer menção ao passado da
localidade vizinha. A necessidade de afirmar e distinguir as normatividades e coerções
sociais identificadas como um estilo de vida ordeiro e racional se justificava na comparação
ao senso improvisado e aventureiro do grupo que se formava na outra margem do rio. De
acordo com Holanda,
o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e,
inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia,
imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem -, tudo, enfim, quanto se relacione com
a concepção espaçosa do mundo, características desse tipo675.
As normatividades próprias da moral do trabalho, que justificavam práticas e estilos
de vida, observavam com desprezo outras formas de sociabilidade que não as regidas pelo
senso ordeiro de vida social. O senso do provisório e aventureiro ganhava novas feições na
luta pela imposição da diferença, isto é, além da necessidade de evidenciar as diferenças
fazia-se na estigmatização do diferente. Portanto, duas comunidades se estabeleceram
numa mesma região, numa mesma temporalidade, experimentando um mesmo processo
de colonização, orientadas pelo mesmo discurso de imigração, mas que desenvolveram
práticas sociais e estilos de vida muito distintos entre si. Ao mesmo tempo, um grupo social
procurava, na construção de sua identidade, estabelecer sua cultura baseada na negação e
diferença do outro.
Dentre os elementos apresentados pelo grupo estigmatizador em sua estratégia de
demarcar as diferenças, destacam-se como os mais frequentes nos depoimentos orais, a
referência de que a Barranca se originou em decorrência da colonização federal, por uma
população excluída dos processos seletivos. A segunda referência se fundamentava na
afirmação de que no outro lado do rio prevalecia a desordem e a vagabundagem, em que os
relatos procuravam reforçar a violência ocorrida na zona de meretrício. De forma geral o
lugar era considerado como de formação provisória, que valorizava o ócio, a festividade, a
vagabundagem, onde o controle social era ausente.
Feitas essas considerações, consideramos fundamental apresentar as bases teóricas
que justificavam compreender a relação entre essas comunidades como estratégias e
conflitos simbólicos situados no universo da estigmatização social, da luta pela
diferenciação e distinção. A proposta de estudar a sociodinâmica da estigmatização da
Barranca pelos moradores da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang) originou-se a partir
da pesquisa realizada no Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás,
675
HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 44.
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concluída em 2002, denominada “No Oeste a terra e o céu: a construção simbólica da
Colônia Agrícola Nacional de Goiás”676. Nesse trabalho procuramos investigar o povoamento
da região, na perspectiva da ocupação social do espaço, refletindo a respeito da distinção
dessa abordagem em relação aos modelos propostos pela expansão das fronteiras. Durante
a coleta de dados percebemos que era fundamental ampliar os horizontes de investigação
para a cidade de Rialma, uma vez que os depoimentos e outras fontes evidenciavam os
conflitos entre essas comunidades ribeirinhas, o que resultou na minha pesquisa de
doutoramento em História Social pela Universidade de Brasília677.
A pesquisa fundamentou-se na hipótese de que os moradores da Barranca
simbolizavam o lugar de população outsider, excluída, na visão estigmatizada da Colônia,
cuja sociabilidade urbana era identificada como a reprodução do modelo social do
improvisado, do provisório, da desorganização, da festividade e espaço social anômico. Os
moradores da Colônia construíram um discurso da autoafirmação, reconhecendo-se como a
sociedade estabelecida e organizada, geração pioneira e herdeira da Marcha para Oeste,
cujas relações sociais eram orientadas no sentido de valorizar os princípios da racionalidade
e da moral do trabalho. Também, os elementos simbólicos formadores dos hábitos dessa
comunidade reforçavam-se na negação e rejeição das práticas sociais da Barranca. Portanto,
os usos pejorativos da linguagem e dos discursos apontavam estratégias simbólicas para
demarcar as distinções. A Barranca, por sua vez, recebia esses conteúdos pejorativos,
naturalizando e amenizando esses estigmas, na percepção de que sua experiência urbana
representava a forma tradicional da cultura goiana e brasileira de se perceber urbana. Dessa
forma, não negava nem se sentia inferior por ser o alvo dessas estratégias.
De acordo com Roger Chartier678, a crise de inteligibilidade histórica e das suas
consequências, possibilitou a emergência da interdisciplinaridade nas discussões
historiográficas. Uma primeira observação desse cenário foi a retirada da historiografia da
confortável posição de lócus dos debates em ciências sociais que, consequentemente, gerou
a fragmentação e a multiplicidade dos objetos de investigação, dos métodos e das
temáticas históricas. A interdisciplinaridade foi assumida como um novo elemento capaz de
dar sentido às novas investigações historiográficas, agora sensíveis aos novos enfoques que
procuravam recuperar o papel dos indivíduos nas redes de relações sociais, promovendo
uma interação com a sociologia e antropologia. Para Chartier, a partir dessa compreensão,
deslocamentos fundamentais surgiram, em que o sentido da exclusividade cedeu lugar à
discussão das pluralidades. Essa nova perspectiva inspirava-se nos modelos interacionistas e
etnometodológicos, buscando reconstruir a “maneira pelo qual os indivíduos produzem o
mundo social, por suas alianças e seus confrontos, através das dependências que os unem
ou os conflitos que os opõem”679.
O objetivo da história, nesta perspectiva, não era mais a identificação de estruturas,
mecanismos e/ou hierarquias que se situavam fora do universo subjetivo, mas as
racionalidades e as estratégias que mobilizam as comunidades e os indivíduos. O resultado
dessa nova percepção histórica e o sentido das investigações historiográficas a
SILVA, Sandro Dutra e. No Oeste a terra e o céu: a construção simbólica da colônia agrícola nacional de Goiás.
Dissertação de Mestrado (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de Goiás. Goiânia, UFG, 2002.
677 SILVA, Sandro Dutra. Os estigmatizados: distinções urbanas às margens do Rio das Almas em Goiás (19411959), op. cit., 2008.
678 CHARTIER, Roger. Uma crise da história? A história entre narração e conhecimento. In: PESAVENTO, Sandra
Jatahy (org.). Fronteiras do milenio. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
679 Idem, p. 119.
676
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transformaram, ao mesmo tempo, em abordagem social e cultural, deslocando o foco das
normas de controle macro-sociais para os seus usos imaginativos e ao universo das decisões
práticas que traçavam de maneira “móvel, instável, as relações sociais ou as diferenças
culturais”680, ao mesmo tempo em que descortinavam os espaços abertos às estratégias
individuais. Foi um deslocamento significativo, que permitiu aos estudos e às pesquisas em
história (social e cultural), a ampliação de seus objetos para as “manifestações estéticas de
um período ou contexto, numa constante alteração de fronteiras que só pode beneficiar a
produção do saber”681. Nessa perspectiva, procuramos nos orientar por esse cenário de
possibilidades metodológicas (pluralidades investigativas), entendendo que, uma análise,
meramente estrutural do processo de ocupação de fronteiras, que deu origem a duas
comunidades, situadas uma de frente a outra, numa mesma temporalidade, poderia não
responder às questões que envolviam as distinções e a carga de sensibilidades que
reforçava essas diferenças.
Esses esclarecimentos epistemológicos colocaram-se como base da reflexão que
propomos na pesquisa, no sentido de identificar o lugar em que o passado de estigma
ocupava, tanto para o grupo estabelecido quanto para o grupo outsider. E ainda, pela
possibilidade de identificar os reflexos das experiências práticas, expressas nas soluções,
historicamente dadas, para a configuração das distinções entre esses grupos sociais. Nesse
sentido, o conceito de cultura histórica apresentado por Estevão Martins682 reforça a opção
pela abordagem culturalista, ao estabelecer a relação desta com as diferentes identidades
que se processam num determinado espaço social. O estudo de Martins, que teve como foco
o Estado em suas relações identitárias internas e externas, serviu como orientação na
compreensão das diferenças coletivas, uma vez que, fundamenta-se na cultura histórica
como possibilidade de percepção dos elementos de reconhecimento mútuo para
preservação de identidade.
Para o autor, o estudo acerca da construção de identidade orienta-se no
reconhecimento e descrição das questões que indicam semelhanças e diferenças,
promovendo, assim, uma articulação de sentidos em torno dessas mesmas questões.
Apresenta, ainda, como processo de construção de identidade, quatro caminhos, a saber:
identidade por assimilação, por contraste, por rejeição e por diferença. Interessa-nos, nesse
estudo acerca da distinção baseada no estigma, a categoria da identidade por diferença,
assim caracterizada por Martins:
A consciência da diferença, necessariamente decorrente da contemplação do outro, pode derivar para a
assimilação, para o contraste, para a rejeição. No entanto, o fiel processo decisório é a consciência da
diferença, ou das diferenças, se se preferir. Se há campos em que as diferenças alcançam um
significado destacado, como a raça, a língua, a política, a religião ou a economia, a descrição de si e de
sua comunidade contempla uma infinidade de pormenores, cuja importância relativa para a autoafirmação depende da escala de valores e de sua realização histórica concreta no tempo e no espaço
correspondentes ao(s) sujeito(s)683.
Idem, p. 120.
ELEUTÉRIO, Maria de. Um desafio irrecusável: a contribuição da literatura para os estudos da história. In:
Projeto História: Revista do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo: EDUC, nº 0, 1981, p. 227.
682 MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Relações Internacionais: cultura e poder. Brasilia: IBRI, 2002.
683 Idem, p. 57.
680
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No caso das comunidades ribeirinhas do Rio das Almas, a percepção da diferença e,
portanto, a construção da identidade baseada nesse princípio, não se fundamentava nos
critérios de raça, língua, ou classe, por exemplo. Essas categorias analíticas não foram,
nitidamente, perceptíveis a ponto de demarcar as distinções. A distinção estabelecia-se na
Colônia, na rejeição aos hábitos da Barranca, demarcando, assim, os limites culturais e a
diferenciação que os sujeitos buscavam demarcar em sua prática social – apesar dessas
comunidades serem constituídas, a princípio, por um mesmo grupo social, cujas
circunstâncias históricas separaram. Da mesma forma, a rejeição ao diferente, não se
expressava na violência física entre seus moradores, apesar das brigas ocasionais que
envolvia a juventude das duas cidades. O que acontecia era a necessidade de demarcar as
diferenças, mesmo que o convívio social fosse, num certo sentido, até amigável. O conflito
manifestava-se por meio da violência simbólica, que evidenciava as diferenças e a
necessidade de distinção nas práticas e nos hábitos sociais que favoreceram a
estigmatização de um grupo por outro.
A referência teórica, e em parte metodológica para a compreensão da
“sociodinâmica da estigmatização”, baseia-se em estudo realizado, citado acima, por
Norbert Elias na cidade inglesa de Winston Parva. Esse estudo apresentava as relações de
poder e as tensões existentes entre o grupo social que havia se estabelecido na região há
mais tempo e que, portanto, baseando-se nessa variável, lançava sobre os novos habitantes
instalados na cidade por causa da Segunda Grande Guerra, referências do estigma social. O
autor considera as dificuldades metodológicas na identificação e análise da dinâmica do
estigma social e, para tanto, propõe um exame rigoroso do papel desempenhado pela
imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo e de seu próprio status como membro
pertencente a esse grupo.
Assim, a análise da estigmatização fundamenta-se no que o autor considera como
“método de figuração”, cujo procedimento propõe investigar os mecanismos constituintes da
perspectiva específica que cada grupo estabelecia de si e do outro. A abordagem
figuracional distingue a sociodinâmica da estigmatização da concepção de preconceito, na
medida em que as estratégias utilizadas procuravam identificar no outro grupo os traços da
diferença e inferioridade, não considerando os atributos da negação nos indivíduos
isoladamente, mas na visão generalizada e pejorativa do conjunto social. A estigmatização
pode ser percebida na figuração formada pelos grupos implicados, a partir do contexto de
interdependência que caracterizavam as relações de poder e a natureza dessas relações
(violência simbólica). Para o autor, um grupo só pode “estigmatizar outro com eficácia
quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é
excluído. Enquanto isso acontece, o estigma de desonra coletiva imputado aos outsiders
pode fazer-se prevalecer”684.
As relações de poder e as posições do grupo estabelecido constroem uma autorepresentação de honra, ao mesmo tempo em que transfere ao grupo outsider o estigma da
desonra. Essas proposições possibilitam a busca pela compreensão das relações de poder
entre a Cang e a Barranca no processo de estigmatização. O aporte teórico construído por
Elias foi extremamente relevante para esse estudo, mas adaptações no método foram
necessárias, como veremos na discussão metodológica. No estudo proposto por Elias, a
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de
uma pequena comunidade, op. cit., p. 23.
684
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distinção era marcada pela diferença em relação ao tempo de ocupação (uns se
estabeleceram primeiro e constituíram suas práticas sociais, e o outro grupo que chegou
depois, introduzindo na cidade novos comportamentos). As tensões em relação à
temporalidade distinguiam os antigos moradores, estabelecidos em área tradicional da
cidade, dos forasteiros imigrantes, que mudaram para Winston Parva em função da guerra,
ocupando uma nova área do espaço urbano daquela localidade. Os hábitos sociais
colocavam em conflito os “estabelecidos” que, por sua vez, condenavam os outsiders,
lançando sobre esse grupo os estigmas. O grupo outsider era reconhecido pelos hábitos
trazidos da vida urbana na periferia de Londres e que eram conflitantes ao estilo de vida da
comunidade de Winston Parva, tipicamente provinciana. No caso das distinções urbanas
ocorridas às margens do Rio das Almas, a temporalidade não foi o elemento da diferença,
pois esses grupos foram contemporâneos no processo de povoamento da região. Mas o
estudo da distinção e do consequente estigma, numa visão fotográfica mais geral, deslocouse na compreensão do espaço das relações de poder que se distinguiam nas experiências e
nos modelos de ocupação adotados. Considerando, ainda, importante destacar que nesse
processo de distinção e violência simbólica, o rio compunha uma fronteira geográfica que
demarcava esses espaços e suas diferenças. A geografia, portanto, tornava mais visível as
fronteiras territoriais, mas, também, explicitava as diferenças culturais, fortalecendo a
percepção da classificação entre “estabelecidos e outsiders”.
Procuramos nos referenciar, ainda, nos conceitos de Pierre Bourdieu685 acerca da
distinção como categoria simbólica. Não apenas as distinções de classe, estilo de vida e
gostos, mas também as distinções sociais que demarcam grupos e territórios sociais. Para
tanto, os seus estudos sobre o espaço social, região, distinção, poder e violência simbólica,
foram importantes nesta pesquisa, na medida em que seus estudos redirecionam a
investigação do regional, em que os fundamentos metodológicos outorgavam ultrapassar os
limites da realidade objetiva, considerando as sensações, sensibilidades, representações e
subjetividades, baseando-se na premissa de que “o que faz a região não é o espaço, mas sim
o tempo, a história”686.
Bourdieu procurou resgatar o papel da subjetividade em suas investigações sem
negar a importância da objetividade do exercício científico, defendendo que as classificações
práticas se subordinam a funções práticas, que por sua vez produzem efeitos sociais. O autor
compreende que a classificação vai além de apenas incluir o real na representação, mas
também compreender a luta das representações compostas por imagens e manifestações
sociais distintas da manipulação e da construção de novas imagens. A identidade regional,
assim, pode ser identificada como resultado de uma construção social, fundamentada em
lutas simbólicas para a imposição de uma visão social distinta. As concepções teóricas de
Bourdieu possibilitam a apropriação dos elementos simbólicos por meio das práticas sociais
e da incorporação de hábitos pelos grupos sociais em questão, permitindo a classificação da
distinção de um espaço em relação ao outro.
As observações desse objeto levavam a questionar esses espaços que, apesar da
proximidade geográfica e da orientação para os deslocamentos imigratórios, bem como seu
efetivo povoamento, desenvolveram práticas e hábitos sociais distintos. Da mesma forma,
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Do mesmo autor: Efeitos de lugar.
In: BOURDIEU, Pierre (org.) A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997; A economia das trocas simbólicas. São
Paulo: Perspectiva, 2003 e A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.
686 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, op.cit., p. 115.
685
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essa distinção baseava-se na negação do outro, como estratégia de demarcação dos
territórios e da identidade em formação nessa região. Outro fator identificado era que uma
dessas comunidades assumia a posição estratégica de lançar sobre a outra os estigmas
sociais, por meio do uso de discursos e linguagens.
Portanto, nos interessava compreender as razões que permitiam a Colônia se
posicionar como cidade estigmatizadora, identificando os indícios e as representações que
possibilitavam o estabelecimento das estratégias utilizadas nesse conflito simbólico. Da
mesma forma, nos interessava compreender o impacto dessas estratégias na localidade da
Barranca, identificando as características dessa comunidade e as representações desse
espaço social, utilizadas como sistemas simbólicos de desonra coletiva que a
caracterizavam como outsider.
Para tanto, na tentativa de compreender esse objeto e responder às questões
relativas à distinção baseada na estigmatização, era importante não apenas perceber as
representações de uma comunidade em particular, mas investigá-las na sua
complementariedade, em que o particular se constituía em razão do outro e das diferenças
percebidas e evidenciadas nas relações de tensão e violência simbólica. Nesse sentindo, nos
orientamos por procedimentos metodológicos que pudessem qualificar essas diferenças e
ao mesmo tempo elucidar as causas e as estratégias do conflito simbólico que,
historicamente, demarcava as distinções.
A pesquisa documental realizada buscava identificar as “evidências” históricas da
distinção e a compreensão dos sistemas simbólicos utilizados na estigmatização. Portanto, a
nossa pesquisa se orientou, basicamente, pela análise qualitativa das fontes coletadas,
fundamentando-nos nas orientações teórico-metodológicas da “análise figuracional” de
Norbert Elias, nos métodos adaptados da “distinção” e nos relatos memorialistas dos antigos
moradores da cidade. Como apresentado anteriormente, a base teórica que permitia o
estudo da estigmatização encontrava fundamentação nos conceitos e métodos
desenvolvidos por Elias acerca da sócio-dinâmica da estigmatização. Nesse estudo o autor
demonstrava que a metodologia que lhe permitiu identificar a dinâmica e as estratégias
desenvolvidas pelos grupos em conflito fundamentava-se no método figuracional, que
investigava os mecanismos constituintes da percepção que os dois grupos formavam entre
si.
Outro ponto que esse método esclarecia era que a estigmatização ocorria quando um
determinado grupo social era considerado diferente e inferior pelo estigmatizador e quando
as qualificações dos indivíduos não eram evidenciadas particularmente, mas apresentadas
como referências coletivas. Esse método indicava, ainda, que a figuração era a forma como
cada comunidade envolvida representava a si mesma e o outro, sendo que a estigmatização
baseava-se na natureza de interdependência que envolvia esses grupos.
Da mesma forma, as características da experiência urbana da Barranca eram
complementares à Colônia, permitindo a instalação de atividades até então proibidas para a
localidade federal. Mas essas estruturas não tinham o mesmo peso político para gerar um
equilíbrio ou estabilidade nas relações de poder. A Colônia oferecia as escolas, os hospitais,
os serviços técnicos, as indústrias, o maquinário e outras fichas simbólicas utilizadas para a
“barganha política” dessa relação de interdependência. Enquanto a Barranca apresentava
seus bares, a zona boêmia, outros empreendimentos de lazer e diversão, bem como o seu
comércio que trazia as novidades das regiões metropolitanas do país. Ou seja, era uma
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situação de complementariedade, mas que era baseada na instabilidade da relação de
poder, permitindo o desenvolvimento de estratégias que garantiam a eficácia da
estigmatização.
Os procedimentos que envolviam a busca pela compreensão desse objeto,
acompanhando a lógica da figuração, direcionavam para a oralidade, no sentido de
compreender os sistemas simbólicos recorrentes da memória coletiva, bem como outras
fontes que qualificavam os indícios dos relatos orais. Para Thompson 687 a evidência oral é
geralmente utilizada com outras fontes e tem se tornado um método eficiente para a
pesquisa historiográfica, sobretudo em pesquisas de história social determinados dados não
são encontrados em documentação escrita, o que prejudicaria a compreensão de questões
relativas a vivência cotidiana, como por exemplo, a forma como os grupos sociais se
relacionavam, namoravam; como encontravam ou mudavam de emprego; dentre outras
questões cujas respostas não seriam encontradas em fontes convencionais.
No estudo da figuração de interdependência procuramos qualificar as
representações que garantiam a “relação instável de poder” entre os grupos em conflito.
Nesse sentido baseamos nossa pesquisa na identificação dos traços de distinção
qualificados nos referenciais simbólicos da literatura da Marcha para Oeste e na tipologia do
pioneiro e do bandeirante apresentados nessa fonte. Identificamos esses traços da distinção
como parte do método figuracional nas normas que regiam o grupo estigmatizador, bem
como as estruturas e instituições que o colocavam numa posição superior de poder que,
consequentemente, favorecia as estratégias de estigma. Da mesma forma, buscamos nos
depoimentos orais do grupo estigmatizado, as qualificações dessa mesma estratégia. O
estudo da figuração na Barranca considerou, ainda, os traços que os moradores davam ao
lugar e o papel que essa comunidade ocupava na relação de interdependência estabelecida.
Nos estudos sobre a distinção procuramos fazer adaptações no método de
Bourdieu688 sobre os gostos e os estilos de vida, cujos procedimentos metodológicos foram
orientados pela aplicação de instrumentos de pesquisa que indicavam as estruturas
variáveis das representações (de gosto e estilo de vida) nos diferentes grupos pesquisados.
Em sua pesquisa descreveu os “conjuntos relativamente homogêneos”, identificados,
estatisticamente, pela observação de práticas sociais, gostos, frequências a museus, dentre
outras práticas, que apresentavam hábitos sociais e sistemas de disposições indicativas de
diferenças no estilo de vida dos grupos pesquisados.
No caso de uma pesquisa mais historiográfica, e menos sociológica, essa percepção,
em tese, poderia ser identificada na aplicação de um instrumento semelhante, que pudesse
indicar os conjuntos de relativa homogeneidade entre as duas localidades. Porém,
considerando a impossibilidade de retornar ao tempo dessas vivências e estratégias de
distinção, e aplicar instrumento semelhante aos moradores no período analisado (décadas
de 1940 e 1950), procuramos identificar esse conjunto de práticas e estilo de vida (fatores
de distinção), por meio dos relatos orais de cunho memorialista (“nos tempos da Colônia”).
Nossa intenção era que os relatos memorialistas pudessem indicar as “evidências”
que nos permitissem a classificação dessa distinção. Além da oralidade, buscamos coletar
outras fontes que admitissem a qualificação das diferenças em suas práticas sociais e que,
687
688
THOMPSON, Paul. A voz do passado: historia oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
BOUDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.
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ao mesmo tempo, funcionaram como as fichas simbólicas da instabilidade na
interdependência, que apontavam tensões e os conflitos pela diferenciação. Portanto, nos
interessava identificar as práticas, os gestos e os estilos de vida que garantiam a distinção e
a eficácia das estratégias de estigma social. No caso da Colônia: a coerção social de controle
das práticas e dos gestos no lugar; o valor social do trabalho em sentido latu; o valor social
da racionalidade da ocupação e distribuição do espaço social (limpeza, harmonia, estética
do lugar, das moradias, etc.). No caso da Colônia em relação à Barranca: a crítica à falta de
controle social; a depreciação à vida festiva, ao espírito aventureiro e à falta de organização
do espaço (aleatório, provisório, improvisado, etc.). No caso da Barranca: o
empreendedorismo dos pioneiros, geralmente orientados por espírito comercial e
aventureiro; o espaço como um lugar improvisado e provisório, em que o controle social e a
normatividade eram questões menos importantes do que as oportunidades econômicas; a
festividade como algo natural e permissivo (procissões, prostíbulos, carnavais, bailes, rádio,
futebol, cinema, teatro, etc.).
Neste trabalho, a oralidade foi utilizada como recurso e representação simbólica dos
traços da distinção, na forma como apareciam nas lembranças. Para Ginzburg689, a
oralidade é um recurso importante para o estudo que se propõe dar sentido ao cotidiano de
sociedades agrárias, em que a produção das tradições e dos relatos históricos dificilmente
se encontra em documentação. Para o autor, que se propôs analisar o cotidiano de uma
comunidade camponesa na Itália do século XVI, era fundamental o trabalho com a
oralidade. Mas descartava esse procedimento metodológico pelas impossibilidades óbvias
do deslocamento temporal. A alternativa encontrada por Ginzburg foi “ouvir” essa
comunidade em outras fontes que, no trabalho em questão, foi possível com a qualificação
dos depoimentos feitos para o tribunal de inquisição, que apresentavam relatos do réu,
acusadores e testemunhas.
Na pesquisa com os moradores da Colônia e da Barranca tivemos a oportunidade de
trabalhar com a oralidade, coletando depoimentos de pessoas que viveram naquele tempo.
Todavia, entendemos que esses relatos não teriam a mesma eficácia se coletados nas
décadas de formação dessas localidades e no auge dos conflitos simbólicos pela distinção.
Portanto, o trabalho era identificar as representações da memória coletiva e os indícios da
distinção presentes nesses relatos. Também outras fontes pesquisadas permitiriam a
comparação dos elementos constitutivos das narrativas, na identificação das seleções
imagéticas do passado que as lembranças queriam reforçar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os procedimentos de qualificação das distinções urbanas procuraram descrever,
tipologicamente, as práticas sociais identificadas como formadoras da diferença entre essas
localidades. Para tanto, os recursos da figuração e a apresentação dos hábitos sociais
auxiliaram na constituição das práticas entendidas como fundamentais para cada
comunidade e que marcavam sua identidade. Algumas práticas, por exemplo, funcionavam
como elemento configurador de hábitos que, historicamente, foram ressignificados como
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
689
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traços de identidade ou de “identidade pela diferença”. É o caso, por exemplo, da proibição
de bebidas alcoólicas e casas de prostituição na Colônia e de outras coerções e
normatividades que buscavam regular as sociabilidades e a conduta de seus moradores.
Nessa mesma lógica, a permissão do espaço do meretrício na Barranca e outras atividades
voltadas ao entretenimento, bem como a percepção do espaço urbano como lugar de
diversão e sociabilidades, como os carnavais de rua, barraquinhas e quermesses religiosas,
procissões e outras festividades.
Baseando-nos nessas assertivas podemos considerar que qualquer estudo sobre
essas localidades que procure investigar os grupos sociais constituintes da fundação
histórica desses lugares, estabelecendo uma visão generalizante das experiências vividas
por essas comunidades, corre o risco de enquadrá-los em determinada classificação em que
as distinções não sejam contempladas. As generalizações não respondem às tentativas da
Colônia em reforçar o estigma lançado sobre a Barranca na sua autoafirmação enquanto
grupo social distinto, nem tampouco consideram o universo das lutas simbólicas pela
imposição da visão de mundo que constituiu as fronteiras desses espaços urbanos
diferentes690.
Os encontros e desencontros de temporalidades na fronteira em expansão podem
identificar um conjunto de diferenças entre os grupos sociais estabelecidos e os forasteiros
outsiders (seja o índio e “chegante” nas diferentes marchas para o Oeste brasileiro ou os
desencontros entre os moradores de Wiston Parva e os chegantes de Londres no período da
segunda grande guerra). Nos encontros e desencontros das populações ribeirinhas do Rio
das Almas a temporalidade não foi o fator determinante, mas as questões simbólicas da
distinção e a vontade de diferenciação, sendo a dinâmica social da estigmatização a forma
encontrada para demarcar esses territórios.
690
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
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MEMÓRIA COLETIVA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA:
A PERCEPÇÃO DA DITADURA CIVIL-MILITAR EM GOIÁS
FERNANDO LOBO LEMES
Doutor em História pela Universidade Sorbonne - Paris 3
Professor convidado na Pontifícia Universidade Católica - PUC Goiás
LILA SPADONI
Doutora em Psicologia Social pela Universidade René Descartes Sorbonne - Paris 5
Professora da Pontifícia Unversidade Católica - PUC Goiás
Diretora da Faculdade de Psicologia da UniEvangélica
Não há ainda nas sociedades modernas uma
cultura do perdão estabelecida. Mas há uma
consciência crescente de que pontes precisam
ser construídas sobre o abismo do bem e do mal.
Jorn Rusen
MEMÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRIA
O objetivo do presente capítulo é apresentar um estudo que verificou a memória
social dos alunos do curso de direito de uma faculdade privada de Goiás, a respeito do
período da ditadura militar compreendido entre 1964 e 1985.
Segundo o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), talvez influenciado
pela inspiração de Theodor Adorno, “a compreensão do passado e a construção de um
consenso amplo sobre as violações dos Direitos Humanos nesse período histórico podem
garantir que essa história não se repita”691.
Na concepção de Theodor Adorno, o holocausto conduzido por Hitler durante a
Segunda Guerra Mundial, impôs como imperativo categórico para as gerações posteriores a
orientação do pensamento e da ação humanas de tal modo que "Auschwitz não se repita" e
"que não ocorra nada parecido"692. Hipótese improvável já que, como lembra José Carlos
Moreira da Silva Filho, "este mal radical", "contrariamente ao que a advertência de Adorno
poderia conduzir" (lembrar para que não aconteça de novo), não apenas aconteceu
novamente (noutras proporções, evidentemente) como continua acontecendo. Exemplos não
faltam: Guantánamo, Camboja, Ruanda, Kosovo, Nahr Al Bared e as ditaduras do Cone Sul
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República. Brasília: SEDH/PR, 2010, p. 170.
692 ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Madrid: Akal, 2005, p. 334.
691
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da América Latina693. Em que pese as possibilidades aventadas quanto ao futuro,
pretendemos analisar se essa consciência histórica se faz presente na acepção dos atuais
estudantes e futuros operadores do direito em Goiás.
De fato, a reflexão sobre a memória e a história nos remete a uma necessidade de
orientação para o futuro, cujas bases guardam uma relação ativa com o passado. Neste
sentido, a memória tem a função de tornar o passado significativo, mantendo-o vivo e
fazendo dele parte essencial para a orientação da vida no presente. Mais que isso, esta
orientação, enquanto demanda fundamental na vida dos homens, é indissociável de uma
perspectiva futura. Uma "direção" que, nas palavras de Jorn Rusen, "molde todas as
atividades e sofrimentos humanos"694.
Neste contexto, a história assume uma forma elaborada de memória que, na
perspectiva de Rusen, "trama as peças do passado rememorado em uma unidade temporal
aberta para o futuro, oferecendo às pessoas uma interpretação da mudança temporal"695.
Os homens, por sua vez, não podem prescindir desta orientação como forma de ajustar a
dinâmica de suas próprias vidas. Assim, se a memória e a história estão orientadas para o
futuro é preciso reconhecer os efeitos provocados pelo fardo pesado de uma experiência
histórica negativa como a ditadura militar na vida e na perspectiva futura da sociedade
brasileira.
Para viabilizar a violência estatal de um governo imposto nos moldes de uma
ditadura militar, um vasto mecanismo técnico de manipulação de informações e ações
orquestradas foi posto a serviço de crimes em massa, tais como relaciona Silva Filho: prisões
arbitrárias sem direito a contraditório ou garantia; torturas e atrocidades desumanas que
deixaram sequelas permanentes nos sobreviventes ou resultaram em mortes; sequestros de
crianças, pais, mães e filhos; assassinatos; desaparecimentos; monitoramentos e ameaças
constantes que resultavam em prisões e mortes; banimentos e pessoas compelidas ao exílio
e a descartabilidade de qualquer garantia ou qualificativo jurídico 696.
Esta carga histórica que fere a dignidade humana e inclui o Brasil na rota
internacional dos crimes cometidos contra a humanidade, este fardo do passado que
pressiona o presente, "empurra", na opinião de Rusen, "o processo de construção de
identidade para o confronto e produz um abismo entre um passado horripilante e um futuro
que pretende ser o contrário desse passado"697.
O que está em jogo na constituição dos discursos históricos ligados ao fardo que
representa a ditadura militar para a história do Brasil nas últimas décadas é a compreensão
possível dos conceitos de memória e consciência histórica. O discurso sobre a memória está
empenhando em revelar os modos de manter o passado presente. O discurso sobre a
consciência histórica inclui os procedimentos de produção de sentido inerentes ao espírito
humano. Isso quer dizer que a memória está "cravada no presente" e a "consciência
histórica abre esta relação para o futuro" 698. Qual o significado disso? Não é outro senão a
FILHO, José Carlos Moreira da Silva. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura militar no
Brasil. Veritas, vol. 53, nº 2, Porto Alegre, 2008, p. 154.
694 RUSEN, Jorn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da historiografia, nº
2, março, 2009, p. 164.
695 Ibidem.
696 FILHO, José Carlos Moreira da Silva. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura militar no
Brasil, op. cit., p. 156.
697 RUSEN, Jorn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história, op. cit., p. 164.
698 Idem, 166.
693
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compreensão de que não há perspectiva futura, não há mediações possíveis nos campos
político e jurídico capaz de consolidar os avanços democráticos no país, que não passe pela
construção de uma ponte que restabeleça uma conexão equilibrada entre o passado
apavorante e o futuro diferente do passado que se pretende construir.
Não cabe aqui um estudo sobre as categorias possíveis de memória. Mas é preciso
ressaltar que a memória é acionada pela intensidade de uma experiência específica, neste
caso particular dos desdobramentos ligados à ditadura militar no Brasil, que imprime
imagens, interpretações e representações na mente das pessoas. É nesta condição que
Rusen afirma que a "memória fere e uma força quase autônoma compele as pessoas a
reagir, a interpretá-la e superá-la. Esse tipo de memória imprime-se no espírito trazendo o
passado para o presente como uma imagem poderosa e persistente". E o conceito utilizado
para analisar este tipo de experiência histórica é a noção de trauma699.
A ditadura militar assume no horizonte da percepção das pessoas a condição de um
trauma, um "evento de qualidade perturbadora", cuja imagem latente representa um
obstáculo para a vida prática. Aqueles que viveram uma experiência traumática têm
necessidade de lutar para superá-la.
É exatamente por isto que o resgate da dignidade humana passa, antes de tudo, pela
memória, como diria Silva Filho, e, acrescentaríamos, pela consciência histórica, por meio de
um direcionamento da ação que esteja comprometido com o conhecimento do passado de
sofrimento e dor e, finalmente, por uma história, como diria Walter Benjamim, dos excluídos
e dos vencidos. Uma história "que possa redimir a humanidade", ou o cidadão brasileiro, "da
sua fria indiferença"700 e permitir aos mecanismos institucionais da nação continuar
avançando em direção a um futuro desejado.
Trata-se de lidar com o passado da vida social através da mediação da memória
coletiva, que assume um papel fundamental na existência cultural de toda sociedade, onde
as pessoas envolvidas experimentam um "forte sentimento de pertencimento", constituindose em importante fator de estabilidade para um amplo conjunto de instituições: partidos
políticos, movimentos sociais, escolas de pensamento no campo acadêmico, interesses de
grupo, etc701.
Segundo Soraia Ansara, a memória coletiva tem implicações no comportamento
político das pessoas que constituem diferentes gerações e que vivenciaram contextos
históricos e políticos distintos, ao mesmo tempo em que os comportamentos políticos e
posturas políticas influenciam a memória coletiva702.
Por seu turno, a psicologia social estuda a memória não apenas como processos
mentais, mas, sobretudo, enquanto fenômeno construído e compartilhado socialmente.
Memórias coletivas são conjuntos de representações que os grupos produzem, guardam,
institucionalizam e transmitem através da interação de seus membros703.
Os alunos de direito objeto do presente estudo fazem parte de uma geração que não
Idem, 167.
FILHO, José Carlos Moreira da Silva. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura militar no
Brasil, op. cit., p. 158.
701 RUSEN, Jorn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história, op. cit., p. 167.
702 ANSARA, Soraia. Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil. Curitiba: Editora Juruá, 2009, p. 43.
703 JEDLOWSKI apud SÁ, Celso Pereira et alli. A memória do regime militar ao longo de três gerações no Rio de
Janeiro: sua estrutura representacional. Estudos de psicologia [on line]. Campinas, 26 (2), p. 159-171, abr.-jun.
2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-66X2009000200004.
Acesso em: 27 mai. 2013, p. 161.
699
700
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vivenciou essa história, mas que convivem com outras gerações que viveram essa época e
sofreram o impacto do autoritarismo da ditadura. Eles absorveram e interpretaram esses
fatos da nossa história recente através de relatos familiares, de aulas de história e da
influência da mídia. A memória coletiva é construída a partir de significações e
interpretações dos fatos, onde as instituições sociais como escola, igreja, movimentos
sociais, bem como a ideologia veiculada pelos meios de comunicação e mesmo o senso
comum, atuam como instrumentos de mediação destes significados e exercem um grande
domínio no processo de formação da consciência das pessoas sobre a sua própria
história704.
Nesse sentido, é importante destacar a distinção feita por Mannheim entre
“memórias adquiridas” pessoalmente e “memórias apropriadas” de outras pessoas705. No
caso do nosso estudo, estamos tratando de memórias apropriadas que provavelmente são
diferentes da geração que vivenciou e que possui memórias adquiridas.
A memória histórica geracional pode ser vista como a reunião complexa de
memórias comuns (adquiridas ou apropriadas) dos participantes de uma determinada
situação e das memórias coletivas que grupos concretos desses participantes tenham
construído. Podendo as representações que compõem uma ou alguma destas memórias
coletivas adquirirem predominância sobre as demais e se difundirem mais amplamente no
seio de uma dada geração706.
Pesquisa realizada por Celso Pereira de Sá707 comparou as memórias de jovens,
adultos e idosos a respeito da ditadura militar com o objetivo de perceber as variações
produzidas pelas diferentes gerações: os “adultos” que viveram o Regime Militar durante o
período de maior retenção das experiências vividas, que se situaria entre o início da
adolescência e o fim da juventude ou início da vida adulta; os “jovens” que nasceram após o
regime militar ou eram muito crianças quando ele terminou; e os “idosos” que já haviam
passado pelo “período crítico” quando testemunharam o Regime Militar. A pesquisa revelou
que o Regime Militar aparece na memória dos adultos de forma crítica e acusadora,
entretanto é representado mais negativamente pelos jovens e de forma bem menos rigorosa
pelos idosos.
Revela ainda a pesquisa que a lembrança mais comum nas memórias das três
gerações estudadas corresponde ao seguinte resultado: o Regime Militar foi uma ditadura!,
tendo grande importância porque identifica uma resistência popular espontânea e
generalizada às tentativas de caracterizar o regime de forma mais amena como, por
exemplo, um mero ciclo de presidentes militares.
O período de exceção representado pelo Regime Militar conta hoje com uma história
escrita de extensão e relevância consideráveis, na qual incluem trabalhos de historiadores,
jornalistas, cronistas e analistas políticos. Porém, o Brasil processa ainda com dificuldades o
resgate da memória e da verdade sobre o que ocorreu com vítimas políticas. A
ANSARA, Soraia. Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil, op. cit., p. 43.
MANNHEIM apud SÁ, Celso Pereira et alli. A memória do regime militar ao longo de três gerações no Rio de
Janeiro: sua estrutura representacional, op.cit., p. 161.
.Estudos de psicologia [on line]. Campinas, 26 (2), p. 159-171, abr.-jun. 2009. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-66X2009000200004. Acesso em: 27 mai. 2013,
p. 161.
706 Cf. SÁ, Celso Pereira de. As Memórias da Memória Social. In: ______ (Org.) Memória imaginário e
representações sociais. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005, p. 63-86.
707 Ibidem.
704
705
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impossibilidade de acesso a todas as informações impede que familiares de mortos e
desaparecidos possam conhecer os fatos relacionados aos crimes praticados e não permite
a sociedade elaborar seus próprios conceitos sobre aquele período.
Em dezembro de 1995, foi promulgada a lei nº 9.140, que reconheceu a
responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de opositores do regime de 1964.
Resposta dada aos familiares de vítimas que desde 1990 vem atuando persistentemente
em função desta reivindicação, conseguindo, desde então, a abertura de importantes
arquivos sobre a repressão política decorrente do regime ditatorial. A citada lei instituiu uma
Comissão Especial para deferir pedidos de indenização e localizar os corpos das pessoas
desaparecidas, caso exista indícios de sua localização.
Com o propósito de conhecer o passado histórico, aprimorar as instituições de
segurança pública e contribuir com o princípio de não repetição, foi sancionada a Lei nº
12.528 de 2011, responsável por instituir a Comissão da Verdade no Brasil. Para Marlon
Alberto Weichert, as “Comissões da Verdade são mecanismos oficiais de apuração de graves
violações aos direitos humanos, normalmente aplicados em países emergentes de períodos
de exceção ou de guerras civis”. Tal figura é relativamente nova no cenário mundial, tendo
sua primeira aparição em 1974, quando foi instituída a Comissão para Investigação de
Desaparecimentos de Pessoas, em Uganda. Tais comissões possuem fundamento político e
moral, na medida em que reconhecem publicamente o “sofrimento não merecido” das
vítimas. Atualmente, já se contam mais de 40 Comissões da Verdade espalhadas pelo
mundo708.
Com a promulgação da Lei 6.683/79, o Brasil optou por não punir os crimes políticos
e conexos cometidos durante o período ditatorial. Nas palavras de Lauro Joppert Swensson
Junior, trata-se de uma lei juridicamente válida, socialmente eficaz, porém, axiologicamente
ilegítima ou injusta709. Posicionamento ratificado pelo Supremo Tribunal Federal. Em
consequência, a referida lei encontra-se em vigência no ordenamento jurídico brasileiro.
De fato, sua vigência é tida, tanto no plano interno como internacional, como
obstáculo à efetivação do resgate da memória política, bem como da reconciliação nacional.
Aqui, pode ser oportuno a menção à declaração proferida pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos onde, em julgamento de “convencionalidade”, declarou-se a invalidade da
Lei de Anistia brasileira.
A anistia formulada em 1979 no Brasil, fruto da pressão social pela abertura política
à época, acabou chancelada pelos próprios líderes do regime militar, o que impediu a
incidência de processos de resgate da memória política, tal como aconteceu no Chile e na
Argentina.
No Brasil, existe um luto inacabado associado, ao mesmo tempo, a um sentimento
de injustiça e à impossibilidade de sepultar os corpos desaparecidos para que junto deles se
possa também enterrar um passado traumático que insiste em reviver como fantasmas no
presente. Fantasmas que assombram, por sua vez, o futuro de todos os envolvidos.
Talvez seja realmente imperioso que homens e mulheres, que representam a nação
WEICHERT, Marlon Alberto. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a obrigação de
instituir uma Comissão da Verdade. In: GOMES, Luiz Flávio Gomes; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes da
Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São
Paulo: Editora RT, 2011, p. 231.
709 SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert. Anistia Penal: problemas de validade da Lei de Anistia brasileira. Curitiba:
Juruá, 2011, p. 213-214.
708
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e suas instituições, tomem para si a tarefa de fazer justiça às vítimas do passado, sem se
absterem da atenção à fragilidade do presente e à força quase irresistível da indiferença que
assola o compromisso assumido de continuar a edificar uma sociedade verdadeiramente
democrática. É neste contexto que foi elaborada a presente pesquisa.
METODOLOGIA E PARTICIPANTES DA PESQUISA
Segundo dispõe o PNDH-3, as violações sistemáticas dos Direitos Humanos pelo
Estado durante o regime ditatorial são desconhecidas pela maioria dos cidadãos brasileiros,
em especial pela população jovem710. Neste aspecto, o estudo realizado aqui objetiva saber
quais são as memórias presentes neste grupo e do que em especial se lembram.
Participaram 90 alunos dos primeiros períodos de uma faculdade de Direito do
Estado de Goiás, sendo 37% do sexo masculino e 63% do sexo feminino. A média de idade é
23,3 anos com desvio padrão de 7,8. A idade mínima é 16 e a máxima 54 anos. Os
questionários foram aplicados coletivamente em sala de aula.
O questionário aplicado possui 14 questões que foram organizadas em dois blocos
por variável investigada. O primeiro bloco de questões procura levantar o conhecimento dos
participantes a respeito desse período histórico, sendo composto por 6 perguntas de
múltipla escolha ou em escala likert. O segundo bloco de perguntas trata da
avaliação/implicação dos participantes sobre esse período.
RESULTADOS DA PESQUISA
1. O CONHECIMENTO DOS PARTICIPANTES SOBRE A DITADURA MILITAR
Vamos analisar inicialmente o primeiro bloco a fim de verificar o que os estudantes
sabem ou “se lembram” a respeito do nosso passado recente, conhecido como ditadura
militar. Perguntamos aos participantes sobre a origem e os motivos da instauração do
regime militar. As respostas estão representadas na tabela 1 e demonstram que 83,52%
dos estudantes de Direito atribuem o início da ditadura a um golpe de estado, quase 9%
acredita ter sido uma revolução, 3,3% um movimento popular, e 4,39% não sabem ou não
se lembram.
Tabela 1. Como se iniciou a ditadura militar?
Origem do Regime Militar
Entrevistados
Golpe de Estado
Revolução
Não sabe/lembra
Movimento popular
76
8
4
3
Total 91
710
Percentual
83,52%
8,79%
4,39%
3,30%
Total 100%
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos, op. cit., p. 173.
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Segundo Carlos Barbé, um Golpe de Estado ocorre quando as mudanças em um
Governo são feitas com base na violação da Constituição legal do Estado, normalmente de
forma violenta e por parte dos próprios detentores do poder político 711. A revolução, no
entanto, é caracterizada por instaurar um novo ordenamento político e jurídico, contrapondo
ao Golpe de Estado, que só realiza mudanças de menor porte. Gianfranco Pasquino,
caracteriza a expressão Revolução como “a tentativa, acompanhada do uso de violência, de
derrubar as autoridades políticas existentes e de as substituir, a fim de efetuar profundas
mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico-constitucional e na esfera
socioeconômica”712.
No Brasil, através da afirmação de Júlio Chiavenato podemos inferir que certamente
não se tratou de uma revolução. Senão, vejamos:
Revolução é a ruptura radical da ordem estabelecida. Pode originar-se de um processo violento, de uma
longa luta armada, ou até surgir de um golpe de Estado. Não é raro que venha do voto direto e
democrático. Pode ser uma revolução popular, que resgata o povo da miséria social ou da opressão
política. Ou, ao contrário, uma ação para subverter a ordem democrática e instalar um regime fechado e
reacionário713.
No Brasil, o Golpe de Estado foi justamente para se evitar a ruptura da ordem social
estabelecida. Como nos mostra Chiavenato, a marca principal do governo presidencial de
João Goulart, foram às tentativas de reformas, as denominadas Reformas de Base, as quais
assustaram as elites econômicas e a direita política, patrocinadas pelo capital internacional.
Estas fizeram com que a classe média acreditasse que também dividiam os mesmos
interesses714, deixando-a temerosa de perder os seus “privilégios”, resultando no seu apoio
ao golpe.
Inicialmente a classe média aspirava pela convivência harmônica entre a democracia
e o autoritarismo:
Em 1964, a classe média sonhou com a convivência entre democracia e autoritarismo, mascarada sob
a aparência de legalidade constitucional. Evidentemente, pensou-se em uma democracia de classe, ou
seja, liberdade para a classe média e autoridade para o povo, que hipoteticamente ameaçava os seus
“direitos”715.
No entanto, a concentração de poder nas mãos dos militares, começou a ameaçar as
elites, porque pressupunha uma enorme capacidade repressiva. Tal situação acabou
desencadeando um processo de ruptura da aliança que possibilitou o golpe.
A concentração de poder nas mãos dos militares, que se encaminhavam para um Estado totalitário,
começou a ameaçar as elites, porque pressupunha uma enorme capacidade repressiva. O poder
centralizado restringia a mobilidade da sociedade civil, impedindo o seu acesso aos mecanismos
políticos. A violenta censura imposta à imprensa desgostou as “classes culturais”. O enlaçamento do
Estado com as multinacionais prejudicou alguns setores da indústria nacional. A longo prazo,
BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: Dicionário de Política. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco (Orgs). Brasília: UnB, vol. 1, 2010, p. 545.
712 PASQUINO, Gianfranco. Revolução. In: Dicionário de Política, op.cit., p. 1.121.
713 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a Ditadura Militar. São Paulo: Moderna, 2009, p. 9.
714 Idem, p. 67.
715 Ibidem.
711
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especialmente quando o “milagre econômico” mostrou-se falso, a pressão da sociedade deu início à
ruptura da aliança que possibilitou o golpe716.
O fato de 9% dos entrevistados atribuírem a origem do Regime Militar a uma
revolução reflete o uso de técnicas mnemônicas utilizadas durante o governo militar, as
quais objetivavam minar a memória nacional. Nesse sentido, é o entendimento de Fabiana
Santos Dantas:
A própria maneira como se denominou o Golpe de Estado de 1964 foi um modo de minar a memória
nacional: ora Revolução, que pressupunha uma inexistente adesão massiva da população, ora
Contrarrevolução, considerando que os militares frustraram uma suposta revolução comunista que
estava em curso no Brasil717.
A definição ou classificação da ditadura no Brasil é um exemplo de como a memória
nacional aparece deturpada pelos interesses das “classes, grupos, e indivíduos que
dominaram” o campo político brasileiro ao longo de todo o período militar, com o objetivo de
se legitimarem politicamente. É o que nos ensina Dantas:
O período da ditadura militar no Brasil é especialmente rico quando se trata de analisar a deturpação da
memória nacional, aliás, como sempre ocorre em regimes autoritários. Para ilustrar a deformação de
fatos e registros: o Golpe de Estado de 1964, que foi denominado de “Revolução de 31.03.1964”, e para
alguns mais fundamentalistas como “Golpe de Estado”, “Revolução” ou “Contrarrevolução” não é um
mero preciosismo ideológico: ao contrário, é a medida de sua legitimidade política718.
Alguns participantes (3,3%) declararam que a ditadura iniciou-se com um movimento
popular. Este, no entanto, é uma forma de resistência das camadas sociais que vivem sobre
algum tipo de opressão, contra o poder estabelecido. Nesse sentido, vejamos:
Um movimento popular surge quando as pessoas que vivem dentro de uma determinada organização
social manifestam-se, pacificamente ou não, contra os representantes do poder estabelecido. Há vários
nomes para designar esse ato: rebelião, insurreição, sublevação, levante, sedição, motim719.
O regime militar brasileiro fez justamente o contrário, visto que seu objetivo era
evitar a “reforma das instituições”, como pretendia o ex-presidente João Goulart. Além do
mais, tal golpe contou com o apoio da elite econômica da época, da direita política, da
imprensa, da igreja e da classe média. Tudo foi feito para que se mantivesse o sistema de
“privilégios” vigente.
Mais da metade dos participantes (55,9%) que participaram da pesquisa acreditam
que o principal motivo da instauração da ditadura militar foi impedir o avanço do comunismo
no país. 22,6% acreditam ter sido para beneficiar os militares. 13,1% que o motivo principal
foi para alinhar a política brasileira à política norte americana. E 4,7% declarou que a
ditadura foi instaurada para acabar com a corrupção e com a baderna (3,5%).
Idem, p. 107.
DANTAS, Fabiana Santos. Direito Fundamental à Memória. Curitiba: Juruá, 2010, p. 224.
718 Idem, p. 225.
719 MACEDO, José Rivair. Movimentos populares na idade média. Coleção Desafios. São Paulo: Moderna, 1996, p.
8.
716
717
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Tabela 2. Quais motivos levaram à instauração da ditadura militar?
Motivos da instauração
Regime Militar
do
Entrevistados
Percentual
Impedir
o
avanço
Comunismo no Brasil
Beneficiar os militares
do
47
55,95%
19
22,62%
11
13,1%
4
3
4,76%
3,57%
Total 84
Total 100%
Alinhar a política brasileira à
política norte americana
Acabar com a corrupção
Acabar com a baderna
Podemos classificar essas respostas em dois grupos. O primeiro engloba as
respostas que utilizam justificativas que foram utilizadas pela propaganda de governo que
afirmava que a ditadura era necessária para afastar o comunismo, acabar com a corrupção
e com a baderna no país. É significativo observar que 64% dos estudantes utilizaram uma
dessas explicações para justificar a instauração da ditadura, o que demonstra os efeitos
duradouros dessa propaganda governamental.
O segundo grupo foi bem menos expressivo, pois apenas 35% dos participantes
consideraram que havia interesses dos militares e do capital norte-americano por trás do
golpe que instaurou a ditadura militar.
Poucos estudantes afirmaram que seus familiares viveram algum impacto da
ditadura militar. Apenas 6,9% afirmam terem familiares que se opuseram ao regime e 4,5%
afirmam terem familiares que viveram o período como militares. 30,7% dos estudantes
afirmam que seus familiares viveram esse período histórico como cidadãos comuns, sendo
que 15,9% responderam que não, e 42% responderam que não sabem.
Tabela 3. Você tem algum parente ou familiar que viveu sob o impacto da ditadura?
Se possui algum familiar que
vivenciou o período do Regime Militar
Não sei
Sim, como cidadão comum
Não
Sim, como opositor do regime
Sim, como militar
Entrevistados
Percentual
37
27
14
6
4
42%
30,7%
15,9%
6,9%
4,5%
Total 88
Total 100%
Pela média de idade dos estudantes podemos pressupor que os pais e avós dos
mesmos viveram durante a ditadura e assistiram o seu fim, portanto causa estranhamento o
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fato de 57% responderem que não sabem ou que seus parentes não viveram sob o impacto
da ditadura. Esse dado pode indicar que esse tema não é conversado nas famílias. Podemos
levantar várias hipóteses para explicar essa ausência de diálogo entre as gerações sobre
este acontecimento passado: o esquecimento, os efeitos da forte censura da época que ecoa
até os dias de hoje ou o forte impacto afetivo dessas memórias que levam a sentimentos
desagradáveis ao rememorá-las.
Foi também apresentada uma lista de fatos para que os estudantes marcassem
aqueles que aconteceram durante o período da ditadura militar. Os resultados estão
representados no gráfico abaixo:
Fechamento do Congresso
Guerrilha do Araguaia
Sequestros
Diretas Já
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Mundial de Futebol
Milagre Econômico
Tortura
Cerceamento de
Liberdades
Guerrilha do Araguaia
Cassação de Mandatos
Censura
Governadores Biônicos
Figura 1. Fatos que ocorreram durante a ditadura militar segundo estudantes de Direito.
Os fatos mais notados foram a tortura e a censura, pois foram lembrados por mais
de 90% dos participantes ou mais de 70 participantes dos 84 entrevistados. Em seguida,
temos as Diretas Já, a cassação de mandatos políticos, o cerceamento de liberdades, os
sequestros e as guerrilhas que foram lembrados por mais de 50% dos participantes.
No entanto, os governadores biônicos, o suposto milagre econômico, a guerrilha do
Araguaia e o fechamento do Congresso Nacional não foram lembrados pela maioria, nem
mesmo pela metade dos participantes. Destacamos que os governadores biônicos a
guerrilha do Araguaia e o fechamento do Congresso Nacional foram eventos que implicaram
diretamente o estado de Goiás, já que a guerrilha aconteceu no território de Goiás, que na
época abarcava o atual estado do Tocantins. Goiás teve governadores biônicos e muita
proximidade com o Distrito Federal, sede do Congresso Nacional. Isso significa que os
estudantes parecem desconhecer fatos que diferenciam a experiência vivida em Goiás da
experiência vivida nos demais estados do Brasil.
2. A AVALIAÇÃO DOS ESTUDANTES SOBRE A DITADURA MILITAR
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No segundo bloco analisamos a avaliação do participante a respeito do regime
militar e de alguns fatos desse período histórico. Todas as perguntas foram feitas de forma
que o participante pudesse escolher o grau em que ele avaliava o evento numa escala que ia
de 1 a 7, sendo que 1 seria o extremo da escala que indicava uma avaliação muito ruim e o
7 uma avaliação muito boa. Nesse sentido o 4 foi considerado como ponto médio e portanto
como uma avaliação neutra. A seguir relatamos a média das respostas dos participantes.
O regime militar foi definido pelos participantes como muito ruim (M = 2,4). Nesse
mesmo sentido, os participantes consideram que os militares fizeram mais coisas ruins,
durante o período da ditadura militar do que coisas boas (M = 3,0). A avaliação desse
período e da atuação dos militares é claramente negativa para os estudantes pesquisados.
Solicitamos aos participantes que marcassem os fatos que ocorreram durante a
ditadura militar e em seguida pedimos que eles os avaliassem. Na figura 2 apresentamos a
avaliação dos fatos pelos participantes que consideraram que eles ocorreram durante a
ditadura militar. Ou seja, não foram todos os participantes que se lembraram de todos os
fatos, conforme a Figura 1 que apresentamos acima. O participante podia marcar de 1 a 7,
sendo que quanto mais próximo de 7 mais positivo ele considerava o fato.
7
6
5
4
3
2
1
0
Figura 2. Avaliação dos fatos que ocorreram durante a ditadura militar segundo estudantes de Direito.
Percebe-se que os participantes avaliaram positivamente o movimento das Diretas
Já, o mundial de futebol e o suposto milagre econômico. Todos os demais eventos foram
avaliados negativamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados demonstraram que a memória social dos alunos é
predominantemente negativa e afetiva e relativamente pobre em termos de informações
dos fatos históricos, ou seja, em aspectos cognitivos. Os dados ainda revelam que essa
memória foi formada principalmente através da escola e da influência de parentes próximos
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e amigos, já que os alunos são jovens e não viveram esse período. Esses resultados indicam
que embora os alunos possuam uma “memória apropriada” e negativa da ditadura, eles
podem não ter conhecimento do que ela seja, o que gera lacunas na experiência coletiva de
construção da identidade nacional, abrindo espaço, de acordo com hipóteses antecipadas
pelo PNDH-3, para que futuras ditaduras possam vir a surgir720.
Nota-se que durante o processo de redemocratização, foram adotadas políticas que
estabeleceram uma memória oficial, o que nos deixou um legado autoritário em plena
democracia. Fato este, devido, em grande parte, ao consenso existente entre os altos oficiais
do regime militar e certas instâncias do poder judiciário brasileiro, já que a estrutura judicial
da época foi utilizada para reprimir opositores políticos, o que evitou, após o término do
regime, a instauração de uma justiça política721.
Observa-se, também, que há uma indiferença por parte da sociedade brasileira
relativa à promulgação do PNDH-3, provavelmente em função de um número significativo de
pessoas não se sentirem implicadas com as vítimas que sofreram as violações. Isso se deve
em grande medida às características do próprio regime, que utilizou o desconhecimento da
população como estratégia, contentando-se em manter as pessoas desinformadas. Outro
fator importante que deve ser considerado, é ter sido o regime militar brasileiro
caracterizado por um baixo índice de letalidade, se comparado com outros regimes
semelhantes na América Latina e na Europa, apesar da tortura ter sido adotada como um
procedimento institucional da época.
Essa política do desconhecimento e do silencio parece ainda ter seus efeitos na
atualidade, impedindo as diferentes gerações de conversarem abertamente sobre o tema.
Esta hipótese parece confirmada pelo fato de os universitários desse estudo demonstrarem
possuir apenas uma memória livresca do evento, estereotipada como algo ruim, mas
distante, não vivenciada.
Note-se que a própria sociedade da época não via com bons olhos quem questionava
o regime, considerando-os como “subversivos”. Some-se a isso o fato de o regime ter sido
apoiado pela elite econômica da época, a qual, insatisfeita com a vitória do presidente João
Goulart, queria manter os privilégios dos quais desfrutavam, daí a característica
conservadora do regime.
Finalmente, temos que a justiça de transição se insere em um contexto maior: por
um lado, tem-se a pouca expressividade das vítimas em reivindicar o estabelecimento de um
direito à memória e à verdade, sobretudo diante de outros interesses em jogo no cenário
interno brasileiro. Isso explica, ao menos em parte, o posicionamento oficial que vem sendo
adotado: o do silencio e do esquecimento. Por outro lado, tendo como fundamento a
doutrina dos direitos humanos, que se caracteriza por ser uma teoria mundialmente aceita,
o julgamento de fatos arbitrários perpetrados pelo Estado constitui-se justamente numa via
de legitimação democrática através de um consenso que envolve a participação e o aval de
órgãos internacionais preocupados com a situação dos direitos humanos no mundo. Nesse
contexto, punições simbólicas poderão ocorrer. Mesmo assim, contudo, o que menos
importará, novamente, serão as vítimas.
BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos, op. cit., p. 170.
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 142.
720
721
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T ERRITÓRIOS DA H I STÓRIA
G OI Â N IA , 23 D E A B RIL D E 2014
“UM NELORE PARA NÃO SAIR DE UMA BRIGA”:
A VALENTIA COMO COMPONENTE DA IDENTIDADE GOIANA
ELIÉZER CARDOSO DE OLIVEIRA
Professor de História da UEG
Coordenador do Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado / UEG
Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião / PUC-GO
O problema básico que guia esta pesquisa concebe a ética da valentia como um
importante elemento da identidade cultural goiana. Para os propósitos desta pesquisa, a
expressão “identidade cultural” pode ser concebida como o modo como uma coletividade se
vê e o modo como ela é vista pelas outras coletividades. Identidade cultural é formada pela
seleção de algumas características que o grupo concebe como significativas para moldar a
sua essência. Nesse caso, o significado é coerente com uma das definições apresentadas
por Stuart Hall:
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre “interior” e o “exterior” – entre o
mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades
culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”,
contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos como os lugares objetivos que ocupamos no
mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o
sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando
ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (Hall, 2006, p. 11-12).
A identidade cultural possibilita ao indivíduo se enxergar além da sua subjetividade,
integrando-se a sua comunidade familiar, a sua comunidade de vizinhança, a sua região e a
sua nação. No caso de Goiás, a identidade cultural foi sendo moldada a partir da
especificidade geográfica – a natureza crua do cerrado – e da especificidade histórica –
marcada pelo esforço de colonização, a partir do século XVIII, que resultou no conflito social
e na mescla etnocultural entre europeus, indígenas e africanos. O historiador
NasrFayadChaul, refletindo sobre “o que é ser goiano?”, afirmou que a maior especificidade
da identidade goiana é a tensão entre dois polos dicotômicos: entre isolamento e integração,
entre o velho e o novo, entre o atraso e o progresso, entre modernidade e tradição. Ele,
criativamente, sintetiza essas dicotomias por meio dos termos “goianice” e “goianidade”.
Os viajantes que passaram por Goiás com seus olhos embotados de realidades europeias conseguiram
vislumbrar um aspecto comum: a decadência da capitania. Esse estigma de terra do “atraso”, da
“decadência”, do marasmo e do ócio, serviu para se identificar o goiano – e criar o que chamaríamos de
goianice – por vários séculos, até que outra construção e outro estigma o substituísse, baseado na ideia
de modernização em forma de progresso apregoada após o movimento de 1930. Através do progresso
os arautos de 30 procuraram reconstruir a imagem de Goiás e imprimir uma face mais contemporânea
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ao estado, o que poderia ser visto como a tentativa de inserir a região na construção da nação. Assim, a
título de representação, a “goianice” nos remete à época em que a idéia de “decadência” serviu para
rotular o contexto da história de Goiás após a crise da mineração, enquanto o que chamamos de
“goianidade” nos indica a construção da ideia de modernização através de uma de suas representações,
o progresso, furto dos projetos político-econômicos do pós-30 em Goiás (Chaul, 2011, p. 42).
A elite intelectual e administrativa de Goiás sempre se preocupou com o estigma da
decadência ou do atraso. Por isso, empenhou-se na criação de mirabolantes planos de
modernização socioeconômica, tais como: navegação dos rios Araguaia e Tocantins,
integração logística por meio de ferrovias e rodovias, projetos de desenvolvimento da
agropecuária (como as colônias agrícolas), construção de Goiânia e o engajamento na
mudança da capital federal para o Planalto Central. Por trás dessas iniciativas
modernizadoras, estava o desejo da elite em desvincular-se das tradições e expressões
culturais populares de Goiás. Pretendiam-se superar os traços sertanejos, indígenas,
africanos que caracterizavam a identidade goiana. O que se pretendiam era a urbanização e
a educação do povo, infundindo-lhe práticas e atitudes “civilizadas” originadas da Europa,
Estados Unidos ou dos estados do Sul e Sudeste do Brasil.
No entanto, essa identidade modernizadora, pelo seu caráter artificial, não logrou
êxito totalmente. Apesar do inegável desenvolvimento socioeconômico, advindo após a
década de 1930, ainda persistem fortes elementos identitários típicos de uma sociedade
tradicional. Um desses elementos722 é a valorização do que se denomina aqui de “ética da
valentia”.
De acordo com Norbert Elias, a valentia é típica de uma sociedade não afetada pelo o
que ele denomina de “processo civilizador”. Na sua obra, Elias procura analisar como os
homens tornaram-se mais gentis e começaram a se tratar com regras de etiquetas que
expressavam boas maneiras. A sua hipótese é que o início desse processo civilizador deu-se
na corte dos monarcas absolutistas, quando a nobreza teve que se adaptar a uma
convivência regrada nas cortes.
Antes da emergência do processo civilizador, os seres humanos, sobretudo os nobres,
agiam de modo muito mais instintivo. O controle dos afetos e das funções corporais era bem
mais rudimentar e o sentimento de vergonha de mostrar as intimidades aos outros era
quase inexistente. Elias descreve a situação da Europa Medieval:
O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a
parede invisível de emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e
separando, a parede que é frequentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que
esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera
vista de muitas funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento
de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas
nessas ocasiões (Elias, 1994, p. 82).
Em uma sociedade pré-processo civilizador, como a medieval ou a goiana dos
séculos XVIII e XIX, os indícios de familiaridade com a violência estava no cotidiano da
população. Um deles era a habilidade e o prazer de trinchar animais para a alimentação
universalmente disseminado, inclusive entre as mulheres; o outro era o uso inseparável da
Os outros elementos típicos de uma identidade tradicional estão ligados a um perceptível saudosismo de um
modo de vida rural, evidenciado nas músicas sertanejas, no desejo da classe média de comprar um sítio para se
refugiar nos finais de semana, na preferência por uma culinária a base de frutos do cerrado ou de produtos rurais.
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faca. Em O Ermitão de Muquém, Bernardo Guimarães documenta o uso da faca pela
sociedade goiana: “Eram guapos rapagões em trajos domingueiros, porém muito à fresca
em razão do imenso calor que faz naquela terra, uns em mangas de camisa, outros
descalços, porém todos de chapéu na cabeça, cigarros na boca ou na orelha, e uma
comprida faca na cintura.” (Guimarães, 1858, p. 7).
Emersa de conflitos entre colonizadores, indígenas e africanos, a sociedade goiana
concebia a valentia como um dos mais importantes indicadores de prestígio social.
Exercendo a presidência da Província, Antero Cícero de Assis disse que houve tempo em que
“cometer mortes e outros crimes graves era adquirir um título de nobreza 723”. Ainda hoje, a
valentia é uma imagem componente da identidade goiana. Sobre isso é bastante
representativo o texto escrito por um tradicional escritor goiano, José Mendonça Teles, sobre
o significado de “ser goiano”: “É ser dócil e falante, impetuoso e tímido. É dar uma galinha
para não entrar numa briga e um nelore para não sair dela.” (Teles, 1988, p.11). Essa
imagem do goiano que sabe usar a valentia nos momentos e por motivos certos, sem
fanfarrice, é constante na literatura regional e na cultura popular. Nesse sentido, é
interessante perceber a mudança na representação da valentia num ambiente de cultura
urbana, onde se vê frases destacadas veículos, principalmente camionetes, exaltando uma
valentia barulhenta e bravateira:“Aqui o sistema é bruto”, “Nóis cabota, mas não breca”.
Portanto, mesmo com a emergência de uma sociedade pacificada em que a
violência legítima é monopolizada pelo Estado, em Goiás a valentia permanece importante
como elemento da identidade cultural.
Bibliografia
CHAUL, Nasr Fayad. “A identidade cultural do goiano”. In. Ciência e Cultura. Vol. 63, n. 3.
SBPC, São Paulo, 2001. P. 42-43.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. RJ: Jorge Zahar, 1994. Vol. 1
GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2003.
GUIMARÃES, Bernardo. O Ermitão do Muquém. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura:
Fundação
Biblioteca
Nacional,
1858.
Disponível
em:
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/ermitao.pdf. Acessado em 15 jul.
2013.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2006.
HANNAH, Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
SIMMEL, George. “A aventura”. In. SOUZA, J.; ÖELZE, B. (org.). Simmel e a modernidade.
Brasília: Ed. da UnB, 2005. P. 169-184.
TELES, José Mendonça.Quando os flamboyants florescem. Goiânia: Livraria Editora
Acadêmica, 1988.
Relatório apresentado pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis à Assembléia Legislativa Provincial de
Goyaz, no dia 1ode junho de 1871. In. http://www.crl.edu/content/brazil/goi.htm. Acesso em: 15 de jul.2003.
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