UM OLHAR DA SEMIÓTICA GREIMASIANA SOBRE O LIVRO DIDÁTICO DE
LÍNGUA MATERNA
Glaucia Muniz Proença Lara
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: Neste trabalho, examinamos, à luz da semiótica greimasiana, com contribuições da AD
francesa, o livro Português: linguagens (MAGALHÃES & CEREJA), focalizando, de um lado, as
modalidades, os valores e as projeções de pessoa e de tempo e, de outro, a relação texto/contexto, a
fim de apreender a(s) imagem(ns) da língua que esse LD constrói discursivamente.
Palavras-chave: discurso; livro didático; imagem; língua.
Abstract: In this paper we examine, in the light of Greimas’ semiotics with contributions of the
French school of discourse analysis, the book Português: linguagens, (MAGALHÃES &CEREJA).
We focus on the modalities, the values and the projections of person and time, but also on the
relationship between the text and the context, so as to find out the image(s) of the language built in
such book.
Keywords: discourse; school book; image; language
1. Introdução:
No presente trabalho, que é parte de uma pesquisa maior1, analisaremos um dos livros
didáticos (LDs) de português mais utilizados no contexto brasileiro da atualidade: Português:
linguagens (1 ed. 1998)2, de Thereza Magalhães e William Cereja. Nosso foco recai sobre o
volume dedicado à 8ª série por se tratar, a nosso ver, do ponto de transição entre o ensino
fundamental e o médio. O LD em questão é tomado como discurso e, portanto, embasaremos
nossa análise na semiótica francesa (ou semiótica do discurso), mas complementado-a com
contribuições da chamada “análise do discurso de linha francesa” (AD), uma vez que essa
abordagem privilegia a relação texto/contexto, pouco explorada pela teoria semiótica. Assim,
examinaremos, num primeiro momento, as modalidades, os valores e as projeções
enunciativas (pessoa e tempo) presentes em Português: linguagens – que, doravante,
denominaremos PL – para, em seguida, articular essas categorias com as determinações
sócio-históricas (materializadas em formações discursivas) que as engendram.
Considerando o tripé de práticas preconizado pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa (1998): leitura – produção de textos – análise lingüística,
mas detendo nosso olhar um pouco mais sobre essa última prática – já que é nela que se
realiza um trabalho mais explícito e consistente com e sobre a língua – procuraremos chegar
1
A pesquisa “As imagens da língua portuguesa no discurso da escola” (vide LARA, 2007) foi
desenvolvida no período de agosto de 2004 a fevereiro de 2007, na Faculdade de Letras/UFMG, e analisou não
apenas LDs de português contemporâneos, publicados no Brasil, mas também manuais do início e de meados do
século XX.
2
Analisamos a 2ª edição reformulada (2001), em sua 9ª reimpressão.
à(s) imagem(ns) desse “objeto” (= a língua portuguesa) construída(s) discursivamente Na
obra em questão. Nesse sentido, tomaremos por base o livro do aluno, tal como ele aparece no
exemplar do professor, mas sem perder de vista as posições teóricas e metodológicas
apresentadas no Manual do Professor propriamente dito, que vem no final do livro como uma
espécie de encarte. Isso porque essas posições, via de regra, procuram explicar ou mesmo
justificar as atividades desenvolvidas na parte dedicada ao aluno, embora, como veremos,
nem sempre tenham sucesso nessa tarefa.
Cabe lembrar que é a partir da década de 1970 que os LDs ganham um manual do
professor, que se propõe complementar o livro do aluno, oferecendo àquele objetivos,
orientações teóricas e metodológicas, sugestões de atividades e – o que seria impensável até
os anos 1960 – as respostas dos exercícios (SOARES, 2000). Transfere-se, dessa forma, do
professor para o livro didático a tarefa de preparar aulas, elaborar exercícios e fornecer
respostas.
2. Um primeiro olhar sobre o livro
No caso de PL, o exemplar do professor acrescenta ao livro do aluno observações em
letra menor, na cor azul, que funcionam seja como respostas às questões propostas, seja como
sugestões ou recomendações ao professor. Já o Manual do Professor propriamente dito aborda
questões que vão de explicações sobre a estrutura obra até propostas de avaliação, passando
por explicações teóricas e sugestões de como desenvolver as várias atividades. É nessa seção,
composta de 32 páginas, que há um diálogo mais consistente e direto com o professor, o que,
no livro do aluno (exemplar do professor), limita-se a alguns “lembretes”.
Uma rápida folheada do exemplar analisado mostra ao leitor a importância conferida
pelos autores aos textos não verbais (como pinturas e fotografias) e aos textos sincréticos
(como tiras humorísticas, charges e anúncios publicitários), bem como à diversidade de
gêneros do discurso (com ênfase nos textos literários – conto, poema, crônica – e midiáticos –
notícia, editorial, artigo de opinião), explorada tanto nas atividades de leitura quanto nas de
produção de texto. Vemos, assim, uma busca de sintonia com o discurso dos PCNs, que
tomam os gêneros do discurso (compreendidos na perspectiva bakhtiniana) – e não mais os
tipos – como objeto de ensino, embora nem sempre fique muito claro para o leitor a distinção
entre gênero e tipo (como propõe, por exemplo, MARCUSCHI, 2002).
2
Consultando o sumário, constatamos que o livro é composto de quatro unidades, cada
uma delas apresentando um tema geral – I. Juventude; II. Valores; III. Amor; IV. Século XXI
– a que se vinculam temas parciais (distribuídos ao longo de três capítulos em cada unidade).
Trata-se de temas atuais e compatíveis com os interesses e a faixa etária dos alunos.
Nos capítulos, há partes fixas e complementares – todas elas detalhadamente descritas
no Manual do Professor (final do livro) –, buscando-se, nesse sentido, contemplar as três
práticas: leitura, produção de textos e análise lingüística. Chama a atenção do leitor o fato de
essa última prática, que vem desenvolvida, principalmente, na seção intitulada “A língua em
foco”, abordar questões de morfologia (estrutura e formação de palavras) e, sobretudo, sintaxe
(orações subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais; orações coordenadas; pronome
relativo; concordância nominal e verbal; regência nominal e verbal; colocação pronominal),
numa perspectiva bastante tradicional que, aliás, nada fica a dever a obras de décadas
anteriores centradas na gramática normativa.
Paradoxalmente, no final das unidades, vem a bibliografia, que se mostra em plena
sintonia com os desdobramentos mais recentes da Lingüística (por exemplo, teorias do
texto/discurso) e do ensino de língua (a partir dos gêneros), citando autores que vão dos
estrangeiros Jean-Paul Bronckart e Dominique Maingueneau a brasileiros como Ingedore
Koch, Luiz Carlos Travaglia e Maria Helena de Moura Neves, sem, no entanto, renunciar a
gramáticos tradicionais, como Celso Cunha e Evanildo Bechara. No Manual do Professor
(Introdução, p. 2), os autores justificam essa “mescla” de abordagens, com o seguinte
comentário:
Nesta edição, procuramos confirmar e aprofundar os rumos traçados na 1a. edição. Por exemplo, a
proposta de um trabalho consistente de leitura, com uma seleção de textos representativos da
cultura contemporânea e comprometida com a formação de leitores competentes de todos os tipos
de textos e gêneros em circulação social; uma abordagem da gramática que, sem renunciar à
gramática normativa, alarga os horizontes dos estudos de linguagem apoiando-se nos recentes
avanços da lingüística e da análise do discurso; uma proposta de produção textual apoiada na teoria
dos gêneros textuais ou discursivos e na lingüística textual; e o interesse em explorar (seja na
condição de receptor, seja na de produtor) outras linguagens, além da verbal, como a pintura, o
Cartum, a charge, o anúncio publicitário, etc.
E, mais adiante, quando tratam especificamente da seção intitulada “A língua em
foco”, acrescentam:
...esta obra contempla aspectos relacionados tanto à gramática normativa – em seus aspectos
prescritivos (normatização a partir de parâmetros da variedade padrão: ortografia, flexões,
concordância, etc) e descritivos (descrição de classes e categorias: substantivo, sujeito, predicado,
número, pessoa, modo, etc) – quanto à gramática de uso (que, por meio de exercícios estruturais amplia
a gramática internalizada do falante), quanto, ainda, à gramática reflexiva (que explora aspectos ligados
à semântica e ao discurso). (Manual do Professor, p. 5; grifos dos autores).
3
Infelizmente, apesar da boa intenção dos autores, é a gramática normativa que acaba
prevalecendo no trabalho com e sobre a língua que se realiza mais especificamente nessa
seção, ficando as demais gramáticas relegadas a um segundo plano.
3. As modalidades, os valores e as projeções enunciativas de pessoa e de tempo
Feitas as considerações iniciais, passemos à análise do corpo da obra, em busca da(s)
imagem(ns) da língua que nela se constrói(em)3. Comecemos pelas modalidades. O discurso
prescritivo, ligado ao bom uso, aparece não apenas através do uso explícito do modalizador
deôntico dever, mas também no emprego do imperativo, de construções na voz passiva
sintética (usa-se; não se usa; recomenda-se), de substantivos como regra e prescrição e de
adjetivos como obrigatório, entre outros recursos. Seguem exemplos:
1) Observe que, nesse caso, não se emprega a forma “Mandei ela sair”, porque a variedade padrão
recomenda a forma: “Mandei-a sair”. (p. 34).4
2) EXISTE O PRONOME RELATIVO AONDE? Sim, existe. Mas, de acordo com a variedade
padrão, ele deve ser empregado apenas quando acompanha verbos que indicam movimento (...).
Assim, recomenda-se dizer: “O lugar onde estou é perigoso”... (p. 49)
3) [Concordância nominal] Regras especiais de acordo com a variedade padrão. (p. 193)
Há, portanto, usos e formas que devem-ser (recomendados, prescritos e mesmo
obrigatórios) e outros que devem não-ser (proibidos). Contrapõe-se, portanto, o bom uso
(relacionado à variedade padrão) aos maus usos (ligados às variedades não padrão), embora
seja raro o emprego de palavras como erro para qualificar esses últimos, preferindo-se
desvios, problemas, inadequação, desacordo e mesmo “diferenças”. No Manual do Professor
(Introdução, p. 2), Magalhães & Cereja explicam essa atitude, citando entre os avanços
alcançados na 2a edição, “a mudança de postura em relação à língua (eliminando, por
exemplo, a noção de erro e inserindo a noção de adequação...” (grifos dos autores).
Apesar da explicação dada, constatamos, como já foi dito, uma dose considerável de
prescrição, o que favorece o discurso da boa e da má norma e aponta para uma imagem de
língua heterogênea, mas com usos hierarquizados: uns são melhores – mais “recomendados”
3
Em nossa análise, não estamos considerando os muitos textos, de diferentes autores, que são utilizados
por Magalhães & Cereja para as atividades de leitura e produção de textos (e, em alguns casos, para o estudo da
gramática), mas apenas as explanações, os comentários, as perguntas/respostas e os exercícios que os
acompanham. Nossas observações e constatações referem-se, portanto, à parte de PL cuja elaboração é de
responsabilidade exclusiva dos autores.
4
Os exemplos retirados do livro mantêm os recursos de ênfase (negritos, itálicos, letras maiúsculas etc)
utilizados pelos autores.
4
– do que outros, o que é compatível com a função claramente pedagógica que PL assume
Essa imagem heterogênea é reforçada também pela insistência com que os autores pedem ao
aluno que identifique, nos textos lidos e produzidos, a variedade lingüística utilizada – que,
via de regra, é a padrão – e que reescreva frases de acordo com essa variedade. Não podemos
deixar de observar, por outro lado, uma espécie de “deslizamento” para o discurso da norma
única em que a variedade padrão passa a valer pela língua inteira, conferindo a esta, portanto,
a imagem de um “objeto” homogêneo e uniforme. Assim, ocorre a passagem do “normativo”
para o “normal”, o “natural”.
Examinemos agora as modalidades do querer e do poder. O querer (ser e fazer) cria no
usuário o desejo de bem falar/escrever a língua (padrão), mostrando-a como um objeto, ao
mesmo tempo, proveitoso/necessário (modalizado pelo dever-ser) e desejável (modalizado
pelo querer-ser). Nesse caso, um dos recursos empregados é mostrar que um dado uso é
referendado por usuários de prestígio. Em PL, os locutores autorizados vão de escritores –
sobretudo os brasileiros contemporâneos – a autores de textos jornalísticos atuais (Folha de S.
Paulo, Veja, Superinteressante), passando por compositores da MPB. Magalhães & Cereja, na
medida em que respondem pela autoria de muitas frases exemplares, também se incluem
nessa vasta lista. Começam também a aparecer textos de alunos. Nesse caso, entretanto, ainda
que o texto seja elogiado por um ou outro aspecto (por exemplo, por suas qualidades
argumentativas), seu autor não é poupado de comentários negativos quando se trata do uso da
variedade padrão. Em outras palavras: o aluno não é visto como um usuário de prestígio. A
título de ilustração seguem os comentários que antecedem um desses textos:
4) Leia o texto a seguir. Ele foi produzido por uma aluna do 1o. ano do ensino médio a propósito do
tema cidadania. O texto foi transcrito diretamente, sem nenhum tipo de correção. Por isso, é normal que
haja desvios gramaticais e inadequação de alguns termos. (p. 238)
O poder, por seu turno, cria o regime da facultatividade, indicando as variantes que
podem (ou não) ser nos limites de aceitação da norma. Em PL (Manual do Professor, p. 2), os
autores apontam, entre os avanços da 2a edição sobre a 1a, uma “abertura para as variedades
lingüísticas”. Porém, quando examinamos o livro do aluno, constatamos que essa “abertura”
constitui mais a exceção do que a regra. Por exemplo, como já apontamos, a seção “A língua
em foco” é absolutamente prescritiva, valorizando a variedade padrão, acima de tudo, embora
se diga que o “bom usuário da língua é aquele que sabe utilizá-la de modo adequado às
diferentes situações de comunicação” (p. 129).
Outra constatação: não há, na obra, uma abordagem sistemática nem da variação
histórica nem da geográfica, limitando-se sua presença a alguns exemplos ou comentários
5
esparsos. Com isso, a variação lingüística parece restringir-se às vertentes social e estilística5.
Esses dois tipos de variação, aliás, nem sempre são distinguidos com a devida clareza, o que
pode levar o aluno a tomá-los como equivalentes. Veja-se, a título de ilustração, o trecho que
segue:
5) Observe a construção desta frase: “Se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele?” Ela
também apresenta marcas da variedade coloquial e informal da língua. Reescreva a frase, adequando-a
à variedade culta e formal da língua, isto é, à variedade padrão. (p. 86; grifos nossos).
Quanto às modalidades da língua, não há, na obra, um trabalho consistente, voltado,
por exemplo, para o exame das especificidades que caracterizam fala e escrita. Ainda que haja
consenso entre os pesquisadores de que a língua falada merece um lugar de destaque no
ensino da língua (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 1999) e que os PCNs enfatizem a
importância de se estudar também o texto oral – e não apenas o texto escrito – a oralidade é
pouco explorada em PL, limitando-se a comentários esparsos (por exemplo, sobre marcas de
oralidade) e a sugestão ao professor de que algumas atividades sejam realizadas oralmente
(por exemplo, “leitura expressiva”, em voz alta, de algum poema). Não obstante a
recomendação dos PCNs, um único gênero oral – o seminário – é contemplado, privilegiandose gêneros escritos: conto, editorial, reportagem etc., sobretudo na seção voltada para a
produção de textos.
Resta-nos falar dos valores presentes em PL. Dada a sua função primordialmente
pedagógica da obra (ensinar a “boa” norma, tomada como “a” norma própria da língua), nela
predominam os valores éticos (ligados à correção), embora, como já comentamos, estes
venham atenuados por palavras e expressões como problemas, desvios, inadequação,
desacordo (em substituição a “erro”). De qualquer forma, através do exame das modalidades
e valores, acreditamos poder afirmar que, quando se trata de estudar a língua, PL não assume
uma postura muito diferente dos manuais anteriormente estudados (vide LARA, 2007), apesar
da justificativa apresentada no Manual do Professor de que a abordagem gramatical buscaria
um “alargamento de horizontes”, com base “nos recentes avanços da lingüística e da análise
do discurso” (embora os autores se protejam, afirmando sua não-pretensão de “renunciar à
gramática normativa”).
Quanto ao 2o bloco de procedimentos, verificamos que, quando se trata das projeções
de pessoa (actanciais), predomina, nas exposições sobre um dado assunto e nas explanações
5
Lembramos que a variação social (ou sociocultural) abrange não apenas o nível socioeconômico e
cultural do indivíduo (da classe a que pertence), mas também fatores como idade, sexo, grau de instrução,
isolados ou conjugados entre si. Já a variação estilística engloba as variantes observadas num mesmo indivíduo,
conforme as circunstâncias (mais/menos formais) em que se processa a atividade verbal.
6
teóricas em geral, o ele(s) enuncivo, empregado, principalmente, para criar um efeito de
sentido de objetividade. Já nas questões sobre textos e nos exercícios propostos, aparece um
nós implícito (= nós, os autores) que se dirige diretamente ao você (aluno), seja pelo uso
explícito desse pronome de tratamento, seja pelas construções no imperativo (leia,
reescreva, identifique etc). Esse “diálogo” parece prescindir do professor, como observamos
no trecho abaixo (Apresentação da obra):
6) Caro estudante:
Este livro foi feito para você.
Para você, que é curioso, gosta de aprender, de realizar coisas, de trocar idéias com a turma sobre os
mais variados assuntos, que não se intimida ao dar uma opinião... porque tem opinião. (...)
Enfim, este livro foi escrito para você que deseja aprimorar sua capacidade de interagir com as pessoas
e com o mundo em que vive.
Um abraço,
Os Autores.
Cria-se, assim, um efeito de sentido de subjetividade, de proximidade entre o
enunciador ([nós], os autores) e o enunciatário (você = aluno/estudante). Em síntese: as
projeções de pessoa ora favorecem o emprego da 3a pessoa (debreagem enunciva), ora o
“diálogo” entre o nós e o você (debreagem enunciativa). Com isso, alternam-se efeitos de
sentido de objetividade/distanciamento e de subjetividade/proximidade entre enunciador e
enunciatário.
Já no que se refere às projeções de tempo, as mais usadas na obra de Magalhães &
Cereja são o presente omnitemporal ou gnômico, que se aplica, principalmente, às “verdades
eternas”, já que o momento de referência é um sempre implícito, favorecendo, no caso da
língua, o discurso da norma única, natural, e o imperativo, que não diz respeito propriamente
à temporalidade, mas à modalização do discurso. Indicando ordem (para o aluno, nas
instruções dos exercícios) ou sugestão/conselho (para o professor, nos “lembretes” a ele
direcionados – embora, nesse caso, os autores prefiram “sugerimos”, no presente do
indicativo), o imperativo instaura, para o enunciatário, uma obrigação, um dever-fazer (o que
pede cada exercício ou o que se “aconselha” para o bom andamento das atividades),
acentuando, dessa forma, a vertente prescritiva da obra.
4. As determinações sócio-históricas: as formações discursivas (FDs)6
6
No quadro da AD, o sujeito enuncia a partir de uma ou mais formações discursivas (FDs), que
determina(m), através da linguagem, o que pode e o que deve ser dito numa dada conjuntura e que se articula(m)
a uma formação ideológica, definida grosso modo, como a visão de mundo de uma dada classe social.
Semiotizando as noções de FD e de FI, Fiorin (1988) associa à primeira um conjunto de temas (e figuras) que
“concretizam” pela linguagem a visão de mundo (FI) que lhes é correspondente e que – acrescentamos – inclui
uma visão da língua.
7
Tomando por base tanto os temas relacionados mais claramente às unidades que
compõem a obra de Magalhães & Cereja quanto aqueles que a “atravessam” de forma menos
evidente, teremos as seguintes FDs: a) uma FD cultural (que se liga aos conhecimentos de
ordem histórica, filosófica, artística e, sobretudo, literária transmitidos na obra); b) uma FD
ligada ao universo do jovem (que focaliza seus valores, suas formas de relacionamento com o
outro, suas expectativas, seus conceitos e preconceitos); c) uma FD escolar (que explora
elementos ligados ao contexto da escola, incluindo textos de alunos para análise e dicas para a
facilitação da aprendizagem); d) uma FD do senso comum (que se manifesta seja através de
frases óbvias construídas pelos próprios autores, seja de provérbios da “sabedoria popular”);
e) uma FD lúdica (que aparece nas atividades envolvendo gêneros de “fruição”, como a
charge, a tira humorística e a piada); f) uma FD midiática (que aborda a informação, nos
domínios político, econômico e social, além do consumo, no domínio da publicidade); e g)
uma FD científica (que envolve conhecimentos médicos, comportamentais, ecológicos etc).
Não podemos perder de vista que há ainda, na obra analisada (mais especificamente,
no âmbito do estudo da língua), uma relação dialógica (harmônica) com a FD gramatical
vigente, representada, como já observamos, sobretudo pela gramática normativa enquanto
instância legítima. Essa FD convive pacificamente e, diríamos mesmo, se articula –
contraditoriamente – com a FD lingüística (que inclui a sociolingüistica, a análise do discurso,
a teoria dos gêneros de Bakhtin, entre outras vertentes) e com a FD governamental,
representada, no caso, pelos PCNs (que buscam incorporar as concepções e os princípios
preconizados pela FD lingüística). Cabe ressaltar que a FD lingüística, cuja presença é
marcante no Manual do Professor, nem sempre é observada no livro do aluno, o que resulta,
muitas vezes, num desacordo entre o que se diz em um e o que se faz no outro. Esse mesmo
desacordo marca, algumas vezes, a relação com a FD governamental, isto é, os parâmetros
apresentados teoricamente no Manual do Professor não são concretizados no livro do aluno.
Desse modo, PL dialoga com os PCNs quando em seu discurso se fazem presentes
termos como “interação”; quando aborda, por exemplo, os fatores de textualidade (coesão e
coerência), os gêneros e as condições de produção dos textos, ou ainda quando postula que o
bom usuário da língua é aquele que sabe adequar-se às diferentes situações de comunicação,
questões essas tão prezadas pelos PCNs. Esse diálogo se verifica também quando a obra
contempla o texto oral e as variedades lingüísticas, mesmo que seu aproveitamento seja
mínimo, se comparado à ênfase dada ao estudo da variedade padrão e da modalidade escrita.
Contudo, a imagem de uma língua heterogênea, em que as variedades se equivalem ou
de uma língua que busca atender às necessidades sócio-comunicativas dos falantes dá lugar,
8
como vimos na obra estudada, seja à imagem de uma língua heterogênea, mas com usos
hierarquizados (recomendados ou não), seja a de uma língua única, homogênea – a norma
culta – tomada como a certa e adequada, independentemente do contexto e das intenções dos
falantes. Assim, não se considera, efetivamente, a língua como fato interacional, pois, ao se
imporem regras (associadas a termos como “obrigatoriedade” e “dever”), esquece-se de que a
língua se constitui nas e pelas interações sociais, excluindo-a, conseqüentemente, das
situações reais de uso, como se este fosse sempre previsível e, em decorrência disso, pudesse
ser catalogado e seguido.
Nessa perspectiva, se PL, inspirado nos PCNs, avança, mesmo com algumas
restrições, nas práticas de leitura e produção de textos, a prática de análise lingüística deixa a
desejar. Isso porque, embora haja “honrosas” exceções, o estudo da língua, no geral, não se dá
como um exercício de reflexão (a partir de atividades lingüísticas e epilingüísticas), mas, sim,
como um estudo que se conforma à perspectiva da gramática normativa – ou de uma
gramática descritiva, mas de um único uso: o bom uso, o que não faz muita diferença, afinal
de contas –, com ênfase nas atividades metalingüísticas (regras, nomenclaturas,
classificações).
Conseqüentemente, apesar de se tomar o texto como ponto de partida para o trabalho
com a língua, como propõem os PCNs, este acaba sendo mais um pretexto para a
metalinguagem, cabendo ao aluno a ele se dirigir apenas para reconhecer estruturas,
identificar e/ou classificar determinada palavra ou função, o que se observa mais claramente
na seção dedicada ao estudo da língua propriamente dito (“A língua em foco”). Vejam-se, por
exemplo, as atividades desenvolvidas a partir de uma tira humorística. No primeiro
quadrinho, o sapo diz ao rato: “Sabia que eu sou um príncipe encantado?”. Seguem as
atividades:
7) a) Identifique os verbos ou locuções verbais desse período e responda: Quantas orações há nessa
frase? Duas, pois há dois verbos.
b) Portanto, trata-se de um período simples ou de um período composto? Trata-se de um período composto.
c) Qual é a palavra que liga as duas orações? É a conjunção que. – p. 26
O que deve ser ensinado, então, corresponde aos conteúdos da gramática tradicional,
desarticulados, portanto, da reflexão proposta pelos PCNs. As frases, simplesmente
“pinçadas” do texto, passam por uma abordagem normativa, não sendo, então, analisadas do
ponto de vista do seu “funcionamento”, ou seja, de sua articulação intra e intertextual, dos
implícitos que veiculam, dos efeitos de sentido que constroem etc. É, enfim, o texto como
pretexto para a exploração de questões gramaticais (no sentido prescritivo).
9
5. À guisa de conclusão
Diante do que foi exposto, é possível perceber que PL constata a existência da
variação lingüística, sem, no entanto, propiciar uma reflexão mais profunda sobre essa
questão. Além do mais, sugerindo um trabalho calcado, via de regra, apenas na variedade
padrão e priorizando situações comunicativas mais formais, evita a(s) variedade(s) não
padrão, confirmando a supremacia da variedade padrão (escrita) e, em decorrência disso, a
imagem de que essa variedade é melhor do que as outras – perspectiva purista, normativa,
que, em última análise, deliza para uma perspectiva “normal”, “natural”, em que se toma a
norma culta como a “verdadeira” língua. A língua é, pois, ora vista como um “objeto”
heterogêneo, mas com usos hierarquizados, ora como um “objeto” homogêneo, sem variação;
e não como ela é, na realidade: um “objeto” pluriforme, multifacetado, que varia no tempo e
no espaço e se diversifica de acordo com as circunstâncias em que se dá a interação verbal.
Referências bibliográficas
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares
nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua Portuguesa. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
FÁVERO, Leonor L.: ANDRADE, Maria Lúcia C. V. O.; AQUINO, Zilda G. O. Oralidade e
escrita. São Paulo: Cortez, 1999.
LARA, Glaucia M. P. As imagens da língua portuguesa no discurso da escola. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2007. Relatório de pesquisa. 319 p.
MAGALHÃES, Thereza A. C.; CEREJA, William R. Português: linguagens. São Paulo:
Saraiva/Atual, 2001.
MASCUSCHI, Luiz A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Angela
et al. (orgs). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002).
SOARES, Magda. O livro didático como fonte para uma história do professor-leitor. In:
MARINHO, M. (org.). Ler e navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas: Mercado
de Letras, 2000, p. 31-76.
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Um olhar da semiótica greimasiana sobre o livro didático de língua