Casamento e Maternidade entre Escravas de Angra dos Reis, Século XIX* Marcia Cristina Roma de Vasconcellos USP Palavras-chave: mulheres escravas, procriação, casamento, família escrava. Na freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba1, a população dedicava-se ao cultivo de alimentos, de cana-de-açúcar, conseqüentemente à produção de aguardente, e ao plantio do café que, devido à umidade e temperatura elevadas, era de qualidade inferior ao plantado no vale do Paraíba2. Ao mesmo tempo, o porto localizado na freguesia era, dentre os existentes em Angra dos Reis, um dos que mais escoava a produção proveniente do vale do Paraíba paulista e fluminense3. Por decorrência, foram criados armazéns de café4 superados em número apenas aos localizados no centro de Angra5. Tratou-se de uma atividade que auxiliou na dinamização da vida econômica local na medida em que trouxe comerciantes e tropeiros, gerando empregos aos moradores e ensejando a venda de excedentes. * Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. 1 A Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, criada em 1808, estava localizada em Angra dos Reis na fronteira entre Angra e Parati, no litoral sul-fluminense. Em seu território estão, hoje, a Vila Histórica de Mambucaba e as Usinas Nucleares de Angra dos Reis. 2 Segundo Hebe Maria Mattos de Castro, a expansão e a qualidade do café plantado na região serrana deslocou a produção cafeeira de Capivary (atual Silva Jardim - RJ), uma área de temperatura e umidade elevadas, ao comércio interno. Cf. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História. Lavradores Pobres na Crise do Trabalho Escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987. Partimos do princípio que o mesmo se deu em Mambucaba. 3 Sobre o movimento portuário local é interessante ver o Mapa do Arrolamento feito pela Coletoria de Angra dos Reis, contendo informações da origem do café, nome dos seus donos, províncias de procedência e as arrobas embarcadas nos portos de Mambucaba, Jerumerim, Ariró e Itanema. PEREIRA, Waldick. Cana, Café & Laranja. História Econômica de Nova Iguaçu. Rio de Janeiro: FGV, 1977. p. 56-70. 4 IPANEMA, Marcello de & IPANEMA, Cybelle de. Angra dos Reis no Segundo Reinado. Angra dos Reis: Prefeitura Municipal, 1990. vol 1; _______________. Angra dos Reis no Segundo Reinado. Angra dos Reis: Prefeitura Municipal, 1991. vol 2; ____________. Angra dos Reis no Segundo Reinado. Angra dos Reis: Prefeitura Municipal, 1992. vol. 3. Tais livros apresentam informações retiradas do Almanaque Laemmert relativas a Angra dos Reis entre os anos de 1844 e 1850. 5 Na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Angra dos Reis, atual centro da cidade. Tal atividade perdeu força quando a Estrada de Ferro D. Pedro II chegou ao vale, por volta da década de 18606, num contexto em que a população do litoral sulfluminense já vivia os impactos do término efetivo do tráfico atlântico, em 1850, até então, principal meio de reposição de mão-de-obra escrava no Brasil. Estes dois elementos conjugados conduziram a um quadro de transformação econômica local7 que atingiu a população livre e, como extensão, seus cativos. A população livre, que havia crescido entre os anos de 1840 e 1856, em mais de 4.550 indivíduos, passando de 12.050 para 16.600, entre 1856 e 1872, quando o aumento foi de apenas 689, chegou a 17.289. Ou seja, a alteração no quadro econômico local, iniciada no contexto da segunda metade do Oitocentos, veio desestimular a ida de forasteiros à região, situação não verificada até 1856. Ao mesmo tempo, a população escrava decresceu numericamente, entre 1840-1856, de 10.552 a 9.659, correspondendo a menos 893 indivíduos e, entre 1856-18728, desapareceram 5.115 cativos, chegando a 4.5449. A contração do movimento portuário e o fim efetivo do tráfico de escravos criaram cada vez mais condições adversas aos livres que não conseguiam repor a mãode-obra, quer via tráfico interno, quer via nascimentos. Muitos deveriam estar vendendo seus cativos, em momentos de expansão do preço dos escravos, às áreas de ponta na economia imperial tentando, assim, amenizar os impactos de um processo de empobrecimento a que muitos estavam vulneráveis. Tal processo foi verificado mediante a análise de 19 inventários de proprietários de escravos de Mambucaba, quando 60.0% de proprietários com até 3 cativos e 22.2% daqueles com 15 ou mais 6 Por meio das entradas no porto do Rio de Janeiro de embarcações provenientes do litoral sulfluminense, verificamos que: entre 1828-1838, foram 655 entradas; 1839-1849, 727; 1850-1860, 805; e, 1861-1871, 533. As informações a respeito das entradas foram extraídas do Jornal do Comércio, dos meses de março e outubro, entre os anos de 1828 e 1871. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Sobre a Estrada de Ferro, cf EL-KAREH, Almir Chaiban. Filha Branca de Mãe Preta: a Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II (1855-1865). Petrópolis: Vozes, 1982. 7 Cf. CAPAZ, Camil. Memórias de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: edição do autor, 1996; LIMA, Honório. Notícia Histórica e Geográfica de Angra dos Reis. 2 edição. Angra dos Reis: Prefeitura Municipal, 1972; MENDES, Alípio. Ouro, Incenso e Mirra. Angra dos Reis: Gazeta de Angra, 1970. 8 Fontes consultadas: Quadro Estatístico da população da província do Rio de Janeiro, segundo as condições, sexos e cores-1840, extraído do Relatório de Presidente de Província do Rio de Janeiro de 1840 e 1841, Recenseamento da população escrava e livre da Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ. 9 Tal movimento também se deu em outras regiões da Província do Rio de Janeiro. Em Capivary, os escravos somavam 5.999, em 1856, enquanto que em 1872 eram 3.903. CASTRO, H. M. M. de. op.cit, p. 39. 2 escravos tinham dívidas superiores aos montes brutos10. Outros possíveis destinos dos cativos desaparecidos poderia ter sido a alforria, a fuga ou a morte. É nesse contexto que a procriação entre as escravas será analisada. A procriação passava pelo casamento, mas principalmente por uniões consensuais e fortuitas. Entre as mulheres que casaram entre 1830 e 1871, predominaram, em 84.6%, uniões com cônjuges de mesma origem11. Os africanos, “estrangeiros”, uma vez que chegavam sem laços de amizade e familiar ligavam-se a outros também identificados na região como “estranhos”, afinados por ausência de conhecimentos, correspondendo a 61.5% dos registros de casamentos. Eles possuíam maiores possibilidades de localizar, dentro da propriedade a que a sorte os “jogou”, futuros cônjuges; primeiro porque, eram em número representativo12, e segundo, porque não tinham laços familiares estabelecidos, o que, a princípio, viabilizava o casamento com qualquer um da propriedade. Os crioulos, por sua vez, também casavam entre si, correspondendo a 23.1%. Estes acabavam sendo menos presentes nas cerimônias, pois tinham maiores dificuldades em localizar parceiros nas propriedades em que viviam, conseqüentemente, buscavam companheiros para além dos limites das propriedades13. Como o casamento entre escravos de diferentes propriedades era evitado pelos senhores14, os crioulos tenderam a estabelecer uniões consensuais. Para os africanos, “estranhos”, o matrimônio significava um dos caminhos para a ressocialização e oferecia aos envolvidos, vantagens emocionais. Mas existiam outros caminhos para a socialização como, uniões consensuais, amizades que iam sendo 10 Inventários post-mortem de proprietários de escravos de Mambucaba, 1840 a 1881. Arquivo Nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro. 11 Esse mesmo padrão foi encontrado para o agro-fluminense entre 1790 e 1830 por FLORENTINO, Manolo Garcia & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas. Famílias Escravas e Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 12 Por meio da contagem realizada mediante cruzamento de batismos, casamentos e inventários, chegamos a 58.8% de africanos com idades acima de 14 anos e 41.2% de crioulos nas mesmas condições. Para saber os critérios empregados na contagem cf. VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Nas Bênçãos de Nossa Senhora do Rosário. Relações Familiares entre Escravos em Mambucaba, Angra dos Reis, 1830 a 1881. Niterói: 2001. Dissertação (Mestrado em História)-UFF. p. 75-76. 13 Livro de Casamento de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ. 14 Nenhum dos 96 registros de casamento trabalhados envolviam cativos de proprietários diferentes, o que confirma também para Mambucaba que as escolhas de cônjuges por parte dos cativos tinham restrições impostas pelos limites da propriedade, tal como foram apresentados por FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998 e SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: as Esperanças e Recordações na Formação da Família Escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 3 estabelecidas no decorrer do dia-a-dia e pelos laços de compadrio que adquiriam, quer seja como pais de batizandos, quer seja como padrinhos. Com isso, o “estranho”, gradativamente, tornava-se “conhecido”. Para os crioulos, o casamento geraria a ampliação e confirmação de laços estabelecidos, possíveis também mediante uniões não reconhecidas pela Igreja e o compadrio. Para ambos, a família seria um lugar de criação e preservação de espaços de resistências dentro da sociedade escravista, espaço em que experiências foram passadas aos descendentes e na elaboração de um universo próprio a eles. Para os senhores, representaria um caminho a fim de viverem “melhor” a escravidão. Porém, dentro desse projeto, estavam excluindo gradativamente, o casamento sancionado pela Igreja, no decorrer do século XIX15, garantindo a possibilidade de venda de suas escravarias, caso houvesse necessidade16. Esse tipo de comportamento era coerente no caso de realidades como a de Mambucaba, onde o contexto da segunda metade do século gerou maiores dificuldades para os homens livres, constatadas pelos casos de endividamento. Os escravos, por sua vez, respondiam a essa dificuldade, estabelecendo famílias matrifocais, elevando a ilegitimidade e fazendo do nascimento de filhos um caminho para efetivação de laços de compadrio tendentes a serem estabelecidos com outros escravos, especialmente no caso das madrinhas. Entre as que tiveram filhos, mas na condição de solteiras, as africanas chegaram a 49.2%, embora predominassem ligeiramente as crioulas em 50.8%, entre 1830 e 1881. Algumas dessas mulheres, após gerar filhos “naturais”, acabaram se casando. Nesse caso, incluíam-se 16 mulheres africanas, que se associaram a 14 homens de mesma origem, um homem crioulo e um de origem desconhecida. Das nascidas no Brasil, seis uniram-se a quatro homens também crioulos e dois africanos. Com exceção de uma cerimônia, todas se deram antes de 1849, anos em que o casamento era menos dificultoso17. Geralmente, essas mulheres, africanas e crioulas, tenderam a gerar apenas 15 Entre 1830-1849, foram 73 registros, enquanto que, entre 1850-1871, foram, apenas, 23. Livro de Registros de Casamentos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ. 16 Vale afirmar que a Igreja condenava a separação de casais escravos. 17 Tal afirmação apóia-se na diminuição de registros de casamentos após 1850. Livro de Casamento de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ. 4 um filho ilegítimo antes do casamento, situação vivida por 19, em contraposição a duas, que tiveram dois, e uma com três crianças18. Ligada a constituição das famílias havia uma peça, diga-se de passagem, central, por trazer consigo a consangüinidade e laços como o de compadrio: os filhos. Eles chegavam cedo à vida das mulheres escravas. Nas faixas etárias entre 14-16 anos, foram 13 mulheres (46.4%); entre 17-19 anos, sete (25.0%); entre 20-22 anos, cinco (17.9%); e, com 23 anos ou mais, três (10.7%)19. Para a realização da contagem, procuramos, nos inventários de proprietários escravistas, as mulheres que, segundo estimativa dos avaliadores dos bens, possuíam até 29 anos20. Uma vez localizadas, consultamos os registros de batismo a fim de nos certificar do ano de nascimento, informação freqüente em 90.0% das fontes de Mambucaba, do primeiro filho batizado, que nem sempre estava junto à progenitora no ato da avaliação dos bens, resultado, possivelmente, da elevada mortalidade infantil. Com a data que, se não era do primeiro filho nascido, ao menos era a mais próxima à primeira gestação, chegamos às faixas etárias definidas na contagem acima, englobando os anos de 1830 a 1881. Embora seja pequena a amostragem, que, inclusive, trata das crioulas solteiras, pois apenas uma mulher era africana, a média encontrada coincide com a anotada por Florentino & Góes. Eles estipularam a mesma idade para o início da procriação escrava, entre os 14 e 16 anos, no caso das crioulas. Entre as africanas, girava por volta dos 16 e 19 anos. Sobre estas, os autores afirmam que “é certo que apenas uma entre cada quatro delas chegava ao Brasil antes dos 15 anos, mas também o é que 85% das africanas desembarcavam no porto carioca com idades flutuantes entre cinco ou 29 anos (metade com 19 anos). Ou seja: ao desembarcarem no Brasil, ainda eram portadoras da maior parte de suas potencialidades genésicas”21. 18 Fontes Consultadas: Livro de Registros de Batismos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ; Inventários post-mortem de Proprietários Escravistas de Mambucaba. Arquivo Nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro, RJ. 19 Livro de Registros de Batismo de Escravos de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ e Inventários post-mortem de proprietários escravistas de Mambucaba, 1840-1881. Arquivo nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro, RJ. 20 FLORENTINO, M. G. & GÓES, J. R. op. cit, p. 134. Tratou-se da mesma idade estipulada pelos autores citados. 21 Ibidem, p. 134-135. 5 Comparativamente, ambas começavam a procriar mais cedo que a mulher inglesa dos séculos XVII e XVIII e até mesmo que a escrava do sul dos Estados Unidos, só para citar alguns exemplos22. As mulheres escravas de Mambucaba davam à luz cedo e só tinham seus últimos filhos entre os 39 e 42 anos. Foram contabilizadas 28 mulheres, entre 1830 e 1881, distribuídas nas faixas etárias: 31-34 anos, foram cinco (17.9%); 35-38 anos, seis (21.4%); entre os 39-42 anos, 14 (50.0%); e, com 43 anos ou mais, três (10.7%)23. O procedimento adotado para o somatório foi semelhante ao de elaboração da contagem para o início do período reprodutivo, ou seja, localizamos, nos inventários, aquelas mulheres com idades, anotadas pelos avaliadores, acima dos 40 anos24 e verificamos, nos registros de batismo, o ano de nascimento do último filho levado ao sacramento, pois aqueles que estavam juntos a elas nos inventários poderiam não ser os filhos mais novos. Aqui, ao contrário, estiveram presentes mães africanas e crioulas, quase todas solteiras. As cativas começavam a procriar cedo e tarde davam fim a esse estágio, mas por quê? Mudando a pergunta, o que significariam os filhos para essa parcela da população? Antes de responder, faz-se necessária a observação dos intervalos entre os nascimentos. Sobre isso, dispomos de um número maior de mulheres encontradas nos registros de batismo de seus filhos. Após rastreá-las, calculamos o intervalo entre os nascimentos das crianças, trabalho do qual resultaram as tabelas a seguir. Observamos apenas que os dados correspondem aos intervalos máximos, pois muitas das mães contabilizadas poderiam ter tido, entre os intervalos calculados, filhos que morreram antes mesmo do batismo. Tabela 1-Intervalos entre nascimentos dos filhos de escravas de Mambucaba a partir de suas origens e condições, 1830-1871 Intervalos Solteiras Casadas 22 Ibidem, p. 135. Livro de Registros de Batismo de Escravos de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ e Inventários post-mortem de proprietários escravistas de Mambucaba, 1840-1881. Arquivo nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro, RJ. 24 FLORENTINO, M. G. & GÓES, J. R. op. cit, p. 136. Idade igualmente estipulada pelos autores citados. 23 6 AF % CR % AF % CR % 12m a 1A6m 18 10.9 25 15.1 6 12.8 4 16.7 1A7m a 2A 21 12.7 24 14.5 12 25.5 3 12.5 total 1 39 23.6 49 29.6 18 38.3 7 29.2 2A1m a 2A6m 32 19.4 37 22.3 11 23.4 7 29.2 2A7m a 3A 26 15.8 23 13.8 5 10.6 7 29.2 total 2 58 35.2 60 36.1 16 34.0 14 58.3 3A1m a 3A6m 18 10.9 14 8.4 1 2.1 0 0.0 3A7m a 4A 13 7.9 15 9.1 2 4.3 0 0.0 total 3 31 18.8 29 17.5 3 6.4 0 0.0 4A1m a 4A6m 12 7.3 14 8.4 5 10.6 1 4.2 4A7m a 5A 7 4.2 6 3.6 4 8.5 1 4.2 total 4 19 11.5 20 12.0 9 19.2 2 8.3 5A1m a 5A6m 10 6.1 3 1.8 1 2.1 1 4.2 5A7m a 6A 8 4.8 5 3.0 0 0.0 0 0.0 total 5 18 10.9 8 4.8 1 2.1 1 4.2 total geral 165 100.0 166 100.0 47 100.0 24 100.0 Fonte: Livro de Batismos de Escravos de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ. Obs: A letra A refere-se aos anos e m aos meses. AF=Africanas e CR=Crioulas. As africanas solteiras e as crioulas, tanto solteiras quanto casadas, davam à luz entre dois anos e um mês a 3 anos (total 2), o que representava, em percentuais, respectivamente, 35.2%, 36.1% e 58.3%. Ao contrário, no caso das africanas casadas, a tendência era entre os 12 meses a 2 anos (total 1), 38.3%, particularmente, entre 1 ano e 7 meses a 2 anos, ou seja, o período entre um nascimento e outro era menor e, em tese, deveriam ter mais filhos. Por quê? Se levarmos em conta a idade de 19 anos estipulada por Florentino & Góes para o nascimento do primeiro filho entre as africanas, já no Brasil, e calcularmos o período reprodutivo destas, tendo como data final os 42 anos, idade máxima para o fim do período reprodutivo, temos 23 anos, teoricamente, propícios à reprodução, ou 276 meses, que, se considerarmos o intervalo máximo de 24 meses entre um nascimento e 7 outro, a africana casada estaria apta a gerar 11.5 filhos. No caso da africana solteira, chegando-se aos mesmos 276 meses, mas, com intervalo de 36 meses entre um filho e outro, a média cairia para 7.7 filhos, ligeiramente abaixo dos 8.7 filhos entre as crioulas solteiras e casadas, calculadas a partir dos 16 anos, idade máxima entre a faixa de 14-16, até 42 anos, idade máxima para o final do período de reprodução, com 26 anos ou 312 meses divididos a intervalos de 36 meses. Disso, concluímos duas coisas: gerar filhos era algo que interessava a comunidade escrava, mais ainda às africanas casadas. Sobre a segunda observação, o fato pode estar associado a um dado empírico localizado para os anos anteriores a 1830, no agro fluminense, que indica, quando do momento da partilha, a maior permanência de famílias constituídas por africanos com filhos, independentemente do contexto do tráfico externo, ao contrário do verificado quando não tinham filhos, “a presença de filhos se constituía em fator agregador das famílias escravas, com a consangüinidade dando maior estabilidade aos grupos parentais”25. Famílias legalmente constituídas, africanas e com filhos, tinham um índice de separação menor do que os outros tipos de estrutura familiar, leia-se as matrifocais com mães de duas origens. Cremos que as famílias deveriam conhecer tal tendência, adquirida pela experiência e vivência no regime escravista ao qual respondiam, gerando filhos. As mulheres africanas que, como vimos, contraíam matrimônio com homens africanos, viam na união a expectativa da ressocialização e a busca da estabilidade. Dentro desse projeto, os filhos tornavam-se importante alternativa visando garantir a permanência de suas famílias nucleares, assim como a família seria entendida como espaço necessário para a criação e formação dos descendentes. Da mesma forma, os percentuais encontrados para os diferentes perfis de famílias apontam para a necessidade de procriação. O que poderia ter significado o nascimento de filhos naqueles intervalos? Em primeiro lugar, seria o ponto de partida para a reconstituição de um núcleo familiar anteriormente destruído, quer pelo tráfico externo, pela venda e/ou separação de membros familiares pela partilha, condição inerente ao “viver escravo”. Além disso, abriria possibilidades de estabelecimento de outros laços, como os de compadrio, tantas vezes quanto nasciam as crianças e, conseqüentemente, de ampliação dos 25 Ibidem, p. 119-120. 8 conhecimentos. Em terceiro, a busca de criação de espaços de solidariedade, trocas, ajudas mútuas, de passagem de experiências, valores e crenças. Uma última questão a ser verificada diz respeito aos intervalos entre africanas de diferentes procedências26. Sabe-se que os registros paroquiais e cartorários pouco informam sobre as verdadeiras etnias das estrangeiras, deixando transparecer, em geral, os portos de embarque destas, ao mesmo tempo, mediante características físicas, muitos homens da época conseguiam reconhecer, dentro do grau de conhecimento que tinham da África, possíveis procedências, principalmente daquelas comuns no tráfico para o sudeste. Anotada a observação, apresentamos as variações entre os intervalos de escravas africanas provenientes da chamada África Ocidental e da África Central Atlântica. Observamos, claramente, diferentes comportamentos quanto à questão analisada, diferença que não passava pela condição de casada ou solteira, mas a partir da procedência. Tabela 2-Intervalos entre nascimentos dos filhos de mães africanas de Mambucaba a partir da procedência, 1830-1871 Intervalos Solteiras Casadas AOC % ACA % AOC % ACA % 12m a 1A6m 5 27.8 3 7.1 5 45.4 0 0 1A7m a 2A 4 22.2 4 9.5 2 18.2 1 14.3 total 1 9 50.0 7 16.6 7 63.6 1 14.3 2A1m a 2A6m 2 11.1 5 11.9 3 27.3 4 57.1 2A7m a 3A 1 5.6 11 26.2 1 9.1 1 14.3 total 2 3 16.7 16 38.1 4 36.4 5 71.4 3A1m a 3A6m 3 16.7 4 9.5 0 0 0 0 26 As procedência, as classificações e as identificações estavam relacionadas a etapas de conquista, relações comerciais, assim como “vão desde os nomes das ilhas, portos de embarque, vilas, reinos a pequenos grupos étnicos”. SOARES, Mariza de Carvalho. Identidade Étnica, Religiosidade e Escravidão. Os “pretos minas” no Rio de Janeiro (século XVIII). Niterói: 1997. Tese (Doutorado em História)-UFF, p. 87. Ver também: KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 18081850. São Paulo: Cia das Letras, 2000; FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: Uma História do Tráfico Atlântico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1979. 9 3A7m a 4A 1 5.6 4 9.5 0 0 1 14.3 total 3 4 22.2 8 19.1 0 0 1 14.3 4A1m a 4A6m 0 0 2 4.8 0 0 0 0 4A7m a 5A 0 0 2 4.8 0 0 0 0 total 4 0 0 4 9.5 0 0 0 0 5A1m a 5A6m 1 5.6 4 9.5 0 0 0 0 5A7m a 6A 1 5.6 3 7.1 0 0 0 0 total 5 2 11.1 7 16.6 0 0 0 0 total geral 18 100.0 42 100.0 11 100.0 7 100.0 Fonte: Livro de Registros de Batismo de Escravos de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ. Obs: A letra A refere-se aos anos e m aos meses. AOC=África Ocidental; ACA=África Central Atlântica. Na divisão por procedência, observamos uma diferença de comportamento, quando o assunto era a procriação; diferença que não vinha a partir da condição de solteira ou casada. As cativas da África Ocidental tenderam a ter filhos a intervalos de 12 meses a 2 anos (total 1), enquanto as da África Central Atlântica estendiam o período para entre 2 anos e 1 mês a 3 anos (total 2). Não podemos, por agora, afirmar os motivos que estariam por trás dos dados levantados. Porém, algumas hipóteses podem e devem ser levantadas: a primeira diz respeito aos padrões culturais africanos, ou seja, as diferenças verificadas acerca dos intervalos entre os nascimentos poderiam resultar dos comportamentos reconhecidos e praticados pelas mulheres em suas terras de origem; e a segunda possibilidade de explicação talvez esteja nos padrões culturais oriundos do cativeiro, comportamentos construídos no dia-a-dia. Enfim, algumas dessas mães solteiras, muitas das quais africanas, principalmente antes de 1850, buscaram e conseguiram casar-se. Mulheres que antes de efetivar ou legalizar suas uniões geravam filhos ilegítimos, o que nos fez pensar nos possíveis papéis que a procriação poderia desempenhar para a população escrava. Para os proprietários, particularmente após 1850, a procriação escrava era uma das possibilidades viáveis de reposição, em médio prazo, da mão-de-obra que se perdia, 10 reposição que não teria sido suficiente em Mambucaba para garantir um crescimento populacional. Para os escravos, os filhos representavam o ponto de partida para a elaboração de uma nova unidade familiar, a adoção de laços de compadrio e, portanto, a possibilidade de ampliação da família escrava, englobando compadres e comadres escravos, forros e até livres. Os filhos chegavam cedo nas vidas das escravas, basta verificar que, tão logo a fase reprodutiva chegasse, entre os 14 e 16 anos, para as crioulas e quando as africanas chegavam ao Brasil, logo davam à luz. Assim como estendiam essa fase até os 42 anos, mais ou menos. Ou seja, a fase reprodutiva englobava uma média de 26 anos, com filhos que nasciam a intervalos de 12 meses a 2 anos e 2 anos e 1 mês a 3 anos. Fontes e Referências Bibliográficas: CASTRO, Hebe Maria Mattos. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista-Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLORENTINO, Manolo Garcia & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas. Famílias Escravas e Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. GÓES, José Roberto. O Cativeiro Imperfeito. Um Estudo sobre a Escravidão no Rio de Janeiro da Primeira Metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. _________________. Escravos da Paciência. Estudo sobre a Obediência Escrava no Rio de Janeiro (1790-1850). Niterói: 1998. Tese (Doutorado em História)-UFF. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. 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