WILMA MAGALDI HENRIQUES Supervisão: Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica São Paulo 2005 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. WILMA MAGALDI HENRIQUES Supervisão: Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Orientadora: Dra. Henriette T. P. Morato. São Paulo 2005 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudos ou pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP Henriques, W. M. Supervisão: lugar mestiço para aprendizagem clínica / Wilma Magaldi Henriques – São Paulo: s.n., 2005. – 216p. Tese (doutorado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Orientadora: Henriette Tognetti Penha Morato. 1. Supervisão clínica 2. Intersubjetividade 3. Alteridade 4. Mestiçagem I. Título. FOLHA DE APROVAÇÃO WILMA MAGALDI HENRIQUES SUPERVISÃO: Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica. Orientadora: Dra. Henriette Tognetti Penha Morato. Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Aprovada em: BANCA EXAMINADORA Profa . Dra. Dulce Mara Critelli. Assinatura:______________________________ Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Profa. Dra. Ângela Nobre de Andrade. Assinatura:________________________ Universidade do Espírito Santo. Prof. Dr. Antonius Terzis. Assinatura:___________________________________ Pontifica Universidade Católica de Campinas. Prof. Dr. Gilberto Safra. Assinatura:____________________________________ Universidade de São Paulo. Profa. Dra. Henriette T. P. Morato. Assinatura:___________________________ Universidade de São Paulo. i DEDICATÓRIA Para Bruno e Marcelo —meus filhos— com amor e confiança no futuro. ii AGRADECIMENTOS Ter o prazer e o privilégio de agradecer àqueles que acreditaram em minhas possibilidades, antes mesmo que o meu desejo por esse trabalho se anunciasse, aos que me auxiliaram, incentivaram ou, de alguma forma, tornaram possível este momento, mais do que uma necessidade, é um ato de reconhecimento, de gratidão e de amor. Muito obrigada, Dra. Henriette Tognetti Penha Morato, por sua orientação no curso da elaboração desta tese. Suas observações pontuais, sugestões, acolhimento e cuidados contribuíram, de modo determinante, para a composição final deste trabalho. À Jozélia Regina Diaz Olmos, minha grande amiga, que, em momento singular de sua vida pessoal, se dispôs a dedicar todo carinho especial aos meus rascunhos, que implicou entregar-se a horas seguidas de trabalho. Aos professores da Banca de Qualificação, Dr. Gilberto Safra e Dra. Ângela Nobre de Andrade, que contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento desta pesquisa. Ao Juarez Porto Henriques, companheiro de todas as horas, que pode tolerar e compreender minhas ausências, ansiedades, incertezas, dúvidas, estando amorosamente disponível para tudo, diante das turbulências deste percurso. Aos alunos e aos supervisores que foram interlocutores desta pesquisa, pela confiança e disponibilidade com que partilharam comigo suas experiências de supervisão, ajudando-me a clarear meus pensamentos. Aos amigos do Laboratório de Estudos e Práticas em Psicologia Fenomenológica Existencial do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (LEF/IPUSP), pela amizade que me foi confiada e pelo acolhimento em diversos momentos da preparação desta tese. iii Aos meus alunos, supervisionandos, que com suas indagações tanto me ajudaram a pensar a nossa prática. Aos meus colegas e professores do Curso de Doutorado em Psicologia, da Universidade de São Paulo, que tanto contribuíram nessa trajetória. À Universidade de São Paulo (USP), pela acolhida e oportunidade de realização do Curso de Pós-Graduação e da Tese de Doutorado. Aos meus irmãos, Rosália e Lair, com quem tanto aprendo sobre a processualidade e a arte de viver. Aos meus familiares, por compreenderem meu afastamento e poderem dar retaguarda às minhas necessidades, aos meus amigos em geral, pelo apoio e disponibilidade com que ofereceram ajuda e, pacientemente, ouviram e aguardaram que o meu envolvimento por esse texto arrefecesse. Ao Orlando e Léa (in memoriam), pais inesquecíveis que desconheciam o impossível diante da força do amor, que, com suas presenças e exemplos, me proporcionaram a semente do que vai exposto aqui. A tantos outros que em mim habitam e com quem contraceno diante de tantos espelhamentos. A todos, o meu reconhecimento e a minha gratidão. iv RESUMO HENRIQUES, Wilma Magaldi. Supervisão: lugar mestiço para aprendizagem clínica. São Paulo, 2005. 216p. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Este trabalho teve por objetivo compreender o que acontece “entre” supervisor-supervisionando, considerando que pensar supervisão é pensar necessariamente nas diferenças, refletindo a relação na relação. Para dar corpo à questão percorreram-se as temáticas: intersubjetividade, clínica, supervisão e narrativa. Como investigação, o trabalho perspectivou o modo fenomenológico existencial da analítica do sentido para pesquisar, pelo qual se busca sentido pelo próprio fazer e refletir em ação. Para compreensão do “entre” interrogado foram entrevistados supervisores e supervisionandos do último ano de um Curso de Psicologia. A partir do entrecruzamento desses depoimentos, observou-se que o abrir-se à alteridade é fundamental para que se possa desenvolver um pensamento crítico e clínico instituinte de uma ética. Afetar-se pelo outro, pelo estrangeiro, pelo diferente, atrai e atemoriza: o outro sugere ser decifrado pelo meu próprio decifrar-me/encontrar-me pela reflexividade, implicando uma ética, constituída no e pelo acolhimento da multiplicidade, do hibridismo, da mestiçagem próprios do modo humano de ser co-existindo, revelando como a supervisão é um lugar mestiço para a aprendizagem clínica. Palavras-chave: Supervisão. Intersubjetividade. Alteridade. Mestiçagem. v ABSTRACT HENRIQUES, Wilma Magaldi. Supervision: a mestizo place to clinical apprenticement. São Paulo, 2005. 216 p. Thesis (Doctorate). Institut of Psychology, University of São Paulo. This work aimed at understanding (ou comprehending) what happens “between” supervisor-supervisee, considering that thinking supervision is necessarily thinking the differences, reflecting the relation in the relation. To build up the question it goes through the following themes: intersubjectivity, clinics, supervision and narrative. As an investigation the work put into perspective the existential phenomenological way of the sense analytics to search the sense bu proper making and pondered in action. To understand (ou comprehend) the “between”, we interviewed supervisors and supervisees of the psychology course’s last year. From the analysis of these interviews, it was observed that to open one’s mind to the alterity is fundamental to develop a critical and clinical way of thinking capable of creating an ethic. To be affected by the other, by the foreign, by the different, attracts and frightens at the same time. The other suggests to be deciphrated by myself deciphration and by the reflectivity which implicate an ethic constituted in and by well receiving multiplicity, hybridism, miscegenation which are a human way of co-existence, revelling that supervision is a “mestizo” place to clinical apprenticement. Key-Words: Supervision. Intersubjectiviy. Alterity. Miscegenation. vi RÉSUMÉ HENRIQUES, WILMA MAGALDI. Supervision: Lieu Métis pour l'apprentissage Clinique. São Paulo, 2005. 216 p. Thèse (Doctorat). Institut de Psychologie. "Universidade de São Paulo". L'objetif du présent travail a été celui de comprendre ce qui se produit "entre" superviseur-supervisé, en considérant que penser la supervision, c'est penser nécessairement aux différences, en reflétant la relation dans la relation. Pour que la question prenne corps, on a parcouru les thèmes suivants: intersubjectivité, clinique, supervision et récit. En tant qu'investigation, la perspective du travail a été la façon phénoménologique existentielle de l'analytique du sens à faire des recherches, par laquelle cherche-t-on un sens par l'acte même de faire et de réfléchir dans l'action. En vue de comprendre le "entre" interrogé, des interviews ont été réalisées avec des superviseurs et des supervisés de vii SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 3 INTERREGNO 16 CAPÍTULO 1 – O QUE E COMO BUSCAR: SUPERVISÃO EM QUESTÃO 28 CAPÍTULO 2 – INTERSUBJETIVIDADE ENTREPOSTA COMO QUESTÃO CAPÍTULO 3 – 48 CLÍNICA, SUPERVISÃO E NARRATIVA: DANDO CORPO À QUESTÃO 79 CAPÍTULO 4 - A COISA ESTENDIDA: A TESSITURA DA QUESTÃO – ATO CLÍNICO EM AÇÃO 110 CONTRACENANDO COM DIFERENTES CENÁRIOS: 120 A – O CUIDADO COMO CONDIÇÃO 120 B - ANCORADOS NA TEORIA 126 C - A DIMENSÃO ÉTICA 132 FECHANDO A CORTINA 142 (IN)CONCLUSÕES CONSIDERADAS 146 viii POST-SCRIPTUM 152 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 160 ANEXO A – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S1 E RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS 171 ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S2 E RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS 189 ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S3 E RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS 207 ANEXO D – CARTA DE UMA SUPERVISIONANDA 214 3 CENA I É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo. Todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto fora do seu domínio e do seu alcance nalgum objeto material (na sensação que nos daria este objeto material) que nós nem suspeitamos. Este objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca. (M.Proust, 1972, p.45) (Combray – Em busca do tempo perdido.) Qual será aqui a cena disparadora de minhas inquietudes? Por onde começar? Qual o objeto evocado? Sabemos que introduzir significa dizer de dentro, portanto, para me apresentar, preciso dizer de onde venho. Preciso buscar as raízes. Para buscar as raízes, preciso falar da minha participação na minha história. Afinal é através da participação que uma raiz se define em nosso coração. Começo pela presença de minha mineirice. Ainda muito pequena tive o privilégio de morar na casa de meus avós maternos, e de lá tenho lembranças muito especiais: casarão antigo; cômodos amplos, quintal com pomar e muitas flores. Porém, só agora me dou conta 4 como, de tudo, o que mais me fascinava eram as “gretas” dos assoalhos da casa de minha avó. Ali eu permanecia por horas a fio, deitada sobre o assoalho, com os olhinhos curiosos e afixados em cada uma daquelas “gretas”, deixando sempre uma sensação de perplexidade e indagação a todos que assim me viam. Quantas recordações... preciosa essência! Lembro-me de que aquilo se constituía um segredo; só eu experienciava aquilo que ali eu via e com ninguém queria dividir os meus sonhos, os meus encantamentos. Havia vida naquele subterrâneo; a potência do meu olhar fazia incidir sobre os objetos uma luz mágica, deixando-me ver através deles, passando a mostrar imagens refletidas de coisas ausentes, como demonstrou Lewis Carrol, fazendo Alice atravessar o vidro e entrar no mundo das imagens especulares. Quantos outros ali habitavam? Duendes, fadas, príncipes, bruxas, madrastas, anjos, personagens folclóricos, palhaços, figuras mitológicas; mendigos, animais, flautistas... e tantos outros. Entrar naquele cenário, deixar-me afetar por ele, sempre se constituía uma viagem repleta de acontecimentos inesperados. Lembro-me de que sempre ficava fascinada com a tentativa de buscar compreensão do que ali se passava. Parecia-me sempre algo cheio de tramas e mistérios. Que mundo enigmático era aquele? E por que sempre atraída me sentia por aquela travessia? Como uma “flâneureuse” curiosa, ali naquela cidade labiríntica, eu mapeava 5 sonhos e ludicamente inventava espaços de autonomia, em meio a grandes alegorias. Lembro-me de que inicialmente ficava ali somente de longe (mas que era também de perto), observando o que lá se passava. Daí a alguns instantes, já me sentia não mais observadora, mas completamente mergulhada naquele encontro, conduzindo-me, algumas vezes, a um pertencimento e outras a uma grande estranheza. Hoje, ressignificando algumas daquelas experiências, avalio que já, naquela época, havia em mim uma busca pelo outro, já me sentia tocada pelo visível e invisível, já me movimentava frente à ocultação e o desvelamento. Com o crescimento, com a puberdade, tudo aquilo que se constituía sonho e poesia, tiveram que ser abandonados. A primazia da razão sobre as emoções foi-se constituindo... Ser boa aluna, racional e objetiva, era o que naquele momento me era solicitado. Veio o segundo grau e muito inquieta com a decisão que tomaram por mim de fazer o que, na época, se chamava Magistério, decidi que, em paralelo, por minha escolha, faria também o Curso Técnico de Contabilidade, associando a tudo isto o curso de Inglês na Cultura Brasil-Estados Unidos. E, assim, foi até concluir, ao mesmo tempo, como não poderia deixar de ser, os três referidos cursos. Lembro-me da diversidade que, acontecer na minha vida acadêmica. naquele momento, começava a 6 Imperava uma reflexão, criação. objetividade que me impedia pensamentos, Eram alteridades 1 que a mim se apresentavam de maneira dogmática e absoluta. Momento do vestibular: faço a escolha pelo curso de Psicologia, buscando sei lá o quê. Ou melhor, me buscando. O que encontro: formas e explicações racionais para tudo o que se dizia do humano. Era o início dos anos 70, nos quais todos nós sabemos da importância do Behaviorismo em nossa formação. Foi assim que logo me identifiquei com os ensinamentos desta escola e até me tornei monitora de Psicologia Experimental. Assim que me formei, prestei seleção para dar aula de Psicologia Experimental em uma Universidade do Estado de Minas Gerais e lá comecei minha carreira docente. Então comecei a aproximar-me de outros professores desta mesma disciplina que ensinavam: Gestalt, Percepção, Alan Watts, Rollo May e outros. Aquilo, à primeira vista, me soou com estranheza, porém, logo a seguir, eu que vinha de uma formação do Behaviorismo Radical, lá estava neste novo fazer me constituindo. Ao trocar experiências com outros colegas docentes, aproximeime do Psicodrama Analítico. Tinha tanto a aprender com eles que então decidi fazer minha formação: viagens semanais para Belo Horizonte onde, com Pierre Weil, aprendi a técnica psicodramática. 1 A lter id ad e : o ser ou tro, o co lo car-se ou con s titu ir- se co mo ou tro. É um co nceito ma is r e str ito do qu e d iv ersid ad e (pod e ser pur amen te nu mé r ica) e ma is ex tenso do qu e d if er ença. Cf. ABBAGNANO, N. D icioná rio d e Filosofia. 1982. 7 Comecei também, nesta ocasião, a minha prática clínica. Trabalhei mais de dez anos como psicodramatista, na Saúde Pública, em especial, na Saúde Mental. Minhas indagações e inquietudes filosóficas e sociais conduziram-me, na década de 80, à militância política p.140r daí, acontecia em mim uma nova abertura ao novo: entro na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) para fazer o Mestrado em Psicologia Social. Começo, então, um novo percurso, agora dentro do materialismo histórico-dialético, mas o mestrado eu abandono no momento da qualificação. Devido a estar numa prática clínica em Saúde Mental, faço então minha formação e especialização em Grupanálise5e, após seu término, desperta em mim o desejo de verticalizar meus estudos na Psicanálise, quando então ingresso no Instituto Sedes Sapientiae e faço o curso de Especialização e Formação em Psicanálise. Relembro que, assim, eram inesgotáveis as minhas buscas. Eram muitas as efervescências que repercutiam também na minha atividade docente5e na minh a ação, enquanto psicóloga, nas instituições de saúde. Lembro-me do meu fazer “in-disc 8 que naquele cotidiano, cada vez mais, me fazia acreditar numa ética dos afetos, do cuidado e do não-saber. Ainda, com um outro exemplo, lembro-me do meu primeiro encontro, com Wilma (minha xará), completamente “em surto” (com delírios e alucinações). Naquela ocasião, o Ambulatório de Saúde Mental, recém inaugurado, estava funcionando sem diretor e sem médicos. Num primeiro momento, me senti em completo desamparo junto àquela pessoa, não sabia como agir. Foi então que resolvi convidá-la a tomar um banho (a paciente se apresentava muito suja, pois há dias perambulava pelas ruas), e ali no banheiro quantas surpresas! Afetada pelo sofrimento daquela jovem fui me aproximando... Quanto afeto! A minha ação ali não passava por nenhum conhecimento, por nenhum saber aprisionado por quaisquer teorias, mas sim, passava por algo que era e continua sendo inominável naquele encontro. Wilma também se revelava afetada por mim e, juntas, começamos a cantar, a brincar, a sorrir. E assim foi meu percurso na Saúde Mental. Surpresas atrás de surpresas e eu sempre buscando a plasticidade, a multiplicidade, o acolhimento ao outro. Cansada, decepcionada com o serviço público, resolvi, no início da década de 90, pedir minha exoneração. Momento difícil. Foram tantos sonhos, tantas experiências acumuladas, tantas as possibilidades de invenção dentro dos Postos de Saúde, dos Ambulatórios de Saúde Mental, dos Hospitais Dia, das Emergências nos Hospitais Gerais, etc. 9 A partir daí, começo a ensinar aos meus alunos essas práticas diversificadas. Sofro críticas de colegas, sofro retaliações na carga horária, enquanto professora horista de uma Universidade Particular de Ensino Superior. Naquele momento começamos, enquanto docentes, a ser pressionados com a questão da titulação. Apesar dos meus diferentes títulos de especialista, e de todo este percurso aqui narrado, ainda não era suficiente. É quando então, em 1995, ingresso na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) e, após três anos, concluo o Mestrado em Psicologia Clínica, trabalhando com a temática da supervisão na formação do psicólogo. Nesta ocasião, começo a tecer uma intimidade maior com a Fenomenologia Existencial, especialmente ao ler as publicações de Morato sobre a supervisão e dela, logo me apaixono. Neste momento, aumenta a minha Fenomenologia proximidade Existencial. com Com uma nossos amiga, professora encontros, começo de a enveredar novamente por um “caminho nunca d’antes navegado”. E, assim, chegou para mim o novo século, ano 2000, ingressei no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) para o doutorado. Ainda havia em mim uma indagação muito grande sobre a supervisão na formação dos alunos durante o curso de Psicologia. Escolho-a para dar continuidade a esta busca. Passo, então, a direcionar meus estudos à Fenomenologia Existencial. Quantos desalojamentos, quantas transformações, quantos novos territórios. Inicialmente, um desgarrar-me de uma forma tradicional de 10 pensar o cotidiano e ir-me constituindo neste hibridismo permanente de desmanches e configurações. Neste momento, resgato as lembranças das “gretas” do assoalho retratadas no início desta exposição. Naquela época, eu era poeta e não sabia. Fui tecendo um percurso pelo qual, em determinado momento, me sentia numa camisa de força; e, deixo criar em mim uma brecha que, hoje avalio, permitiu e permite recuperar o meu ontológico, através desta densidade experiencial aqui narrada. Pareceme, assim, que o verdadeiro desejo surge na mais remota infância. Confesso que, em muitos momentos, me sentia como uma grande e inacabada colcha de retalhos. Ao longo de tantos encontros e desencontros, vivido ia buscando, no de tantas e diferentes experiências, pontos de encaixe que me conduziam a articular sentidos. Em meio a tão diferentes e diversas subjetividades, fui me constituindo no meu fazer, fui criando, inventando, buscando-me, encontrando-me, perdendo-me, experienciando-me. Nestas redes de bifurcações é que minha mestiçagem, enquanto professora, supervisora, terapeuta, mãe, mulher, amiga, se revelam. Minha ética se constitui neste saber indisciplinado. Este parece ter sido, ao longo de minha trajetória, o meu ofício. 11 CENA II Desde que iniciei minha formação, tive oportunidade de ter diversos tipos de supervisão, tanto individual como em grupo. Tive supervisores que tentavam dirigir-me, como se eu tivesse que ser o seu clone e me lembro de que me sentia muito irritada com aquela postura e, como conseqüência, vinham sempre a minha teimosia e desobediência. Felizmente, tive também supervisores que “cuidavam” do grupo de supervisão e de seus supervisionandos, que faziam uma espécie de “maternagem” inicial, pela qual os laços de confiança entre os membros do grupo eram uma pré-condição para se expor ao grupo e ao supervisor. Com meu trabalho na Saúde Pública, tive oportunidade de ter: supervisão programática, supervisão institucional e supervisão clínica. Nestas supervisões, pude aprender a exercitar o raciocínio clínico, pude me ver no contexto institucional e, dentro dele, tecer minha historicidade; e pude, ainda, aprender a pensar criticamente diante de uma polissemia de diferentes supervisores com diferentes formações. Durante minha formação, inicialmente em Psicodrama Analítico, posteriormente na Grupanálise e na Psicanálise, aconteceram alguns encontros muito felizes com diferentes supervisores, que certamente muito me ajudaram a encontrar o meu próprio estilo, o meu próprio 12 caminho. Interessante é, neste momento, poder pensar e revisitar as marcas que cada um deles deixou em mim. Muitas são as reminiscências! Lembro-me ainda de quando, há mais de 20 anos, Maria Antonieta Pezzo Fisch me dizia: “seu trabalho é winnicotiano”. E eu, atordoada, sem entender o que ela dizia me perguntava: o que será isto? Lembro-me, ainda, de Luís Carlos Menezes afirmando: “o enquadre é a única coisa lúcida no processo analítico. O resto é tudo um sonho”. Recordo-me da minha reação “abestalhada”... “Como não entendo este homem!!!... O que será que ele quer dizer com isto?” E como haveria de esquecer Armando Colognesi, com aquele seu sorriso acolhedor, com sua boa escuta, agasalhava minhas dúvidas, incertezas e angústias e possibilitava que eu pudesse ficar com o paciente e com “os restos dele deixados em mim”. Felizes encontros. Boas recordações. Grandes saudades. Agradeço a todos: Maria Emília Lino Silva, Pierre Weil, Suzana Viana, Antonio Terzis, Silva Lane, Henriette Morato; enfim, agradeço também a tantos outros, aqui não citados, que me ajudaram e me ajudam no meu percurso como terapeuta, supervisora, companheira, mãe, amiga, enfim, pessoa. Associada a toda mestiçagem, já mencionada na primeira parte desta Apresentação, resta, neste momento, assinalar, como algo de grande importância, este berço no qual me senti embalada, sustentada 13 nos meus momentos de desamparo, durante o meu percurso profissional. Consideradas as diferenças em suas devidas proporções, revisito, hoje, lembranças de supervisão, nas quais pude vivenciá-las como experiências que me possibilitaram abrir horizontes, enfrentar o outro no estranhamento que despertava em mim, atribuir sentidos a tudo que eu vivia, re-instalar-me enquanto terapeuta e supervisora, apesar de não saber dizer naquelas ocasiões, como tudo isso acontecia. A minha escolha para esta apresentação foi pela via da memória, pela qual, possivelmente, alguns elementos aqui presentes estão conduzidos de forma fragmentária, por lembranças e esquecimentos que estiveram abrindo e fechando caminhos neste acontecer. Haverá, com certeza, outras experiências a serem contadas, recortadas, recontadas, ampliadas, recriadas. Aqui, pude contar um pouco de mim mesma. Devo confessar que hoje me sinto autorizada a tornar público este meu percurso; entretanto, durante alguns anos, ele se manteve aberto apenas a determinadas pessoas e situações. Havia em mim um certo desconforto, uma certa vergonha, um medo da crítica do que o outro podia pensar desta bricolagem que me constitui ou desde meu nomadismo constituinte. 28 Por tantos anos, busquei o meu Caminho enquanto supervisora e foi, assim, que em minha dissertação de mestrado trabalhei um grupo de supervisão coletiva, enfocando as angústias vivenciadas pelos alunos na sua primeira tarefa clínica, recorrendo ao método clínico, da abordagem psicanalítica e da técnica grupal, para a compreensão das formulações psíquicas 1 ocorridas durante o processo de supervisão. Hoje, sei que meu Caminho não sou eu; são os outros, ou melhor, somos eu e os outros, ou ainda sou eu nos outros e os outros em mim. Como vou buscar os significados, o sentido de supervisão, para isto, vou olhar, tocar, saborear, ouvir o fenômeno, lembrando aqui que o fenômeno não é a coisa em si; o fenômeno é a relação supervisorsupervisionando. Portanto vou buscar o sentido do que é a supervisão, através de interlocutores: supervisores e seus supervisionandos. Ao olhar, vê-se o mundo e, de repente, ele pode abrir-se como algo nunca visto, como assinala Gruzinski (1999) 2 ; quando o olho abre desconcertado pelo espetáculo que lhe é oferecido, a imagem não comparece ao encontro marcado com o sentido. Como lembra Bacchi (2000), o espaço de supervisão, enquanto espaço de formação, se 1 For mu lações p s íqu icas: conjun to d e r eaçõ es constitu ídos de emo ções in tensas d es e mp en h an d o p ap e l d e ter mi n an te n a o r g an iz a ç ão d o g r u p o d e sup er v is ão, n a r ea liz aç ão d e sua tare fa e n a sa tisf a ção e ne c es s idade s de seu s me mb ro s. (H enr iqu es, 1998) . 2 Gru z insk i (1999) no seu livro “O pensamen to me stiço ”, den tre outras co is as, f az u ma a ná lis e d e Macun aíma , d e Mário d e Andr ad e, enfo cando esp e c ia lme n te o seu v erso : “Sou u m tup i tang endo u m alaúd e”, mo strando que é possível ser tup i – por tan to, índ io do Br asil – e to car u m in s tru me n to eu ropeu, tão an tigo e r ef inad o c o mo u m a l a ú d e . N ad a é i n con c i l iá v e l , n ada é in co mp a tíve l. E o au tor con tinu a : “ Não é porqu e o alaúde e os tup is per ten ce m à s h is tór ia s d ife ren tes qu e e le s não pod em se en con trar na p ena de um p o e ta, ou no me io d e u ma aldeia ind íg ena ad min istrada p e los j e itos.” (p.28) . 29 caracteriza como um momento de articular a experiência vivida com o intuito de atribuir-lhe alguma significação, refletindo a relação na relação. Buscar as tramas que tais cenários podem revelar é também buscar os paradoxos que podem aparecer em cenas; é, certamente, deparar-me, enquanto pesquisadora, com uma polifonia de questões. Afinal, dos olhos depende todo o nosso ser. A fenomenologia é uma viagem, uma aventura que traz à tona a multiplicidade que se organiza numa trama, uma aventura pelos cenários dos encontros. Empreende a aventurar-se pelo seu desafio. Nas palavras de Clarice Lispector (1984, p. 755) Aí está ele, o mar, o mais inteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na areia, o mais ininteligível dos seres humanos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro... Para adiante! Pelo mar largo! Livrando o corpo da lição frágil da areia! Ao mar! – disciplina humana para a empresa da vida. A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas de perigo. Desafio de grande beleza! Desafio que solicita desalojar-me de apriores para me deixar afetar e me transformar junto ao outro em mim. Desafio de produção permanente de desmanches e configurações! Desafio que solicita descolar-me de mim mesma, abrir-me para o mundo com o outro. Desafio que envolve espelhos, que transforma as coisas espetáculos, espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim. em 30 Espelhos que completam a minha invisibilidade visível, tornando-me visível ao meu interior afetado, possibilitando um duplo que me repete, possibilitando um corpo para mim; um corpo para mim como outro; um corpo refletido; um corpo especular. Um corpo determinado por um olhar que, como disse Alberto Caeiro num de seus versos, “não basta não ser cego para ver as árvores e as montanhas”. Os místicos orientais falavam que era preciso que se abrisse um “terceiro olho” – experiência de iluminação a que davam o nome de “satori”. É como quando se vê o livro O Olho Mágico: olha-se para a página. De forma normal e focada, só se vêem manchas coloridas que se parecem com uma tela abstrata. No entanto, se os olhos são desfocados, olha-se com olhar perdido, como quem não quer ver, e, repentinamente, um cenário, dantes invisível, aparece diante dos olhos, em três dimensões. Parece-me que esta é a arte de ver cenários que não podem ser resumidos ao poder e controle das palavras: são os cenários-experiências, que guardam segredos incomunicáveis para uma fala e compreensão cotidiana, mas podendo ser revelados pelo dizer da poética, pois a poesia é a arte de pintar com palavras, palavras estas como peixes saídos das profundezas do mar. E palavras que não surgem do “fundo do mar” não possibilitam uma abertura à revelação. Neste sentido, enquanto pesquisadora, necessito da disponibilidade de olhar o invisível, de tocar o intocável, de escutar o não dito e o mal dito. Como afirma Coelho Jr. (1991) acerca do visível e do invisível em Merleau-Ponty, há uma intenção em suprimir a clivagem entre sujeito e objeto. 31 Frayze-Pereira (1984, p.142) mostra que a intersubjetividade é a possibilidade que cria aberturas para outras experiências e, referindose a Merleau-Ponty, afirma que a intersubjetividade antes de ser espiritual é corpórea. Assim, esclarece o autor que o que o outro vê de seu lugar não é apenas a película superficial de minha pele, mas uma interioridade inesgotável, “sendo possível aos corpos enlaçados um ao outro (um corpo em geral visível-vidente), fazerem seu exterior seu interior, seu interior seu exterior”. Portanto, o que permite que o meu corpo seja para mim e para o outro é o olhar. Otavio Paz (1982, p.144165) diz que o olhar é uma interpretação: vemos repente, ele se abre como algo nunca visto. o mundo e, de Frayse-Pereira (1984, p.144) ainda diz que corpo e mundo são tecidos na mesma trama, tudo que é humano é corporal; o corporal está em toda a parte, onde está a sensorialidade (visão, gestos, sons). Revela-se, assim, a exteriorização de interioridade: um corpo sonante e sonoro que se abre à “dimensão invisível do pensamento”, pois existe uma reversibilidade entre o som (palavra) e o sentido (significado), ficando a palavra entre o sentido e o pensamento; a palavra é cega, mas é a imagem que a torna visível. Assim sendo, a intersubjetividade, que encontramos ao nível de experiência perceptiva, se alarga com a linguagem; porém, salienta o autor, “assim como o mundo nunca está dado, a linguagem jamais se encontra plenamente dita”. Ao investigar o que acontece no espaço entre supervisor e supervisionando - espaço intersubjetivo – como se constitui esta relação intersubjetiva, os possíveis inusitados oferecidos por este 32 encontro supervisor-supervisionando foram se revelando. Isto possibilitou encontrar os significados de supervisão. Conforme esclarece Morato (1989, p.82) a relação entre dado corporal e a compreensão ativa de um processo se articulando, vão levar ao significado sentido e este significado pode, então, ser comunicado, porque sua articulação em linguagem já está também implicada no experienciando. Como podemos ver, estarei aqui privilegiando a “experiência” 3 . Esta palavra vem do latim experientia, do verbo experiri “experimentar” que significa ato ou efeito de experimentar (se), “experienciar” (experimentar experienciando). Gendlin (citado por Morato,1989) afirma que experienciando é uma dimensão subjetiva 4 de eventos; refere-se ao que a pessoa “conhece” intuitivamente, ou seja, que é em seu experienciando próprio que a pessoa não só vive, mas também olha o mundo a partir dele e através dele. Este é o conhecer incorporado que constitui o mundo próprio de fenômenos dotados de sentido. Por conseguinte, para Morato (1999, p. 126): neste contexto os processos de aprendizagem revelamse como possibilidades de compreensão e conhecimento e, portanto, de atribuição de significado para relações e situações vividas pela pessoa, seja 3 O apelo à exper iên cia, qu ando f o i for mu lado p e la pr imeir a v ez, no p lano f i lo sóf ico , i s to é , n o s é cu lo X I I I , f o i u m a p e lo à i n tui ç ão . A l imi t a ç ã o d a e x p er i ên c ia à i n t u iç ão s e n s ív e l f o i r ef o r ç ada , d o R en as c ime n t o e m d i a n te , p e lo mo t i v o p o lêmic o , an t i- r a c io n a l is t a e a p ar t ir d o s écu lo X V I o ape lo à e x p e r i ên c ia te m c la r a me n te o s ign ific ado de um li mite o u d e u ma n eg aç ão d as pr e ten sõ es da r az ão. 4 Cab e aqu i a s s ina lar que d if er en teme n te d e autor es qu e exp lica m a vid a a par tir do s an tagonismo s en tr e du as in stâncias, mu ndo in terno v ersus ex te rno, subjetivo v ersu s obj e tivo, es tar ei n es te me u pe rcu rso tr abalhando a par tir da perspectiva do a co lh i me n to à v id a n a su a mu l t ip l ici d ade e p r o ce s sua l id ad e c o n f o r me e x e mp l o s d e Su ely Ro ln ik, Ju rand ir Fr eire d a Costa, Ângela Nobr e d e Andr ad e, Ma r ia Rita K eh l e tc . 33 consigo mesma, seja com o mundo ou com os outros. Dentro desta perspectiva, Gendlin (citado por Morato, 1996) aponta uma possibilidade de se constituir conhecimento a partir de uma tradição fenomenológica existencial. Seria essa a possibilidade do que Figueiredo (1993) denomina por conhecimento tácito? Voltarei a isto mais adiante. De qualquer modo, o processo de aprender, a partir da criação de sentidos, do que está enigmático, é atravessado pela relação ética como habitação ou morada de significados que vão sendo construídos. Como lembra Andrade (1996), é na supervisão, como lugar, que o estagiário se questionamento depara ao com saber a alteridade, teórico-técnico fazendo adquirido emergir até o então, oferecendo-se como possibilidade de abertura para esse estagiário afirmar ou negar a diferença aí produzida. Refiro-me em minha dissertação de mestrado, que o estagiário se coloca num lugar de quem nada sabe, esperando que o Supervisor, o Grande Messias, possa lhe indicar os passos para os rituais de iniciação. Se o supervisor se mantém nesta relação de dominação, a supervisão se constitui na barbárie, impossibilitando o estagiário de efetivar uma ruptura de encontrar a si próprio. Andrade (1996), em sua pesquisa sobre a formação do psicólogo, investiga alunos da USP e PUCSP, relatando que, nos dois diferentes universos, a “trans-formação pessoal” é apontada por unanimidade como produto da formação. Entretanto, a autora também 34 enfatiza que as expectativas desses alunos no ingresso ao curso variam desde as demandas mais ingênuas, no sentido de encontrar uma Psicologia mágica como explicação e conserto do ser humano, até demandas “mais maduras”, em que a Psicologia aparece como uma possibilidade de elaboração e construção de conhecimentos a partir da própria experiência. A autora resgata, ainda, que a estrutura universitária visa a reproduzir o sistema de pensamento dominante, mediante a universalização e generalização de um saber verdadeiro e objetivo sobre o mundo que, no caso da Psicologia, aponta para os mistérios do ser humano e sua psique, mostrando que tais expectativas são construídas a começar do projeto epistemológico moderno. Assim, a autora encontra depoimentos pelos quais os alunos negam a alteridade no encontro, permanecendo na ilusão da existência de uma verdade, na busca de um conhecimento objetivo e totalizante sobre o ser humano. Entretanto, a autora também mostra depoimentos de alunos mais plásticos, críticos, que tendem a relativizar o valor das teorias e construir outros modos de pensar o psicólogo baseando-se na própria experiência e vivência da alteridade. Ao longo de seu trabalho, a autora, dentre outros aspectos, aponta que os alunos da USP, por unanimidade, relatam sentirem-se mais acolhidos em sua produção no estágio de “aconselhamento psicológico” (AP), onde a preocupação do supervisor se centra na compreensão do movimento do cliente naquilo que está afetando o estagiário. O referencial teórico apresenta-se como possibilidade de pensar o atendimento e construir algo iniciado a partir dessa 35 experiência. Para esses alunos, o desenvolvimento de uma postura ao longo do curso ocorreria através daquilo que faz sentido. Como salienta a autora, observa-se um movimento instituinte constante de um “si próprio”, em que não ocorre uma separação sujeito-objeto. Mediante o exposto, parece-me que a supervisão é um ato clínico, porque antes de tudo é uma ação de acolhimento, de sustentação à alteridade. Mas será que é isto mesmo? Para tanto, preciso não só estar em contato com o outro, mas também acompanhálo para uma possível ressignificação do que seja esse encontro. Ao acompanhar o supervisor e seus supervisionandos, como pesquisadora, já tenho um olhar alterado pelo próprio modo de visualizar este objeto: o “olhar etnográfico”, olhar esse sensibilizado pela minha prática e teoria enquanto supervisora. Nesse sentido, o “entre” na relação supervisor-supervisionando não é visto com ingenuidade. Contudo, o olhar por si é insuficiente, ou seja, preciso tornar as pessoas minhas interlocutoras: ouvi-las. O ouvir, segundo Oliveira (1998), altera a relação numa verdadeira interação, a que os antropólogos chamam de “observação participante”, o que significa que o pesquisador é aceito por aquele grupo. Deste encontro, no qual o que vale é o diálogo, abre-se uma interpretação possível para compreender o fenômeno em estudo, conduzindo ao escrever. Ainda lembrando os estudos de Andrade (1996), os alunos da PUC, em sua maioria, ingressam na experiência do estágio com o ideário dominante em Psicologia de que é possível um saber a priori sobre o outro. No entanto, o “projeto pronto”, levado a diferentes 36 grupos, comunidades, não se sustenta no cotidiano do encontro, apontando para sua própria falência. É exatamente essa falência que remete os alunos à instituição de outros modos de estar e de pensar a Psicologia. Enquanto, para a maioria dos alunos da USP, a vivência da alteridade no transformadora, encontro para os é angustiante, da desestruturadora e ameaçadora. PUC, esta porém é gratificante uma e experiência Enquanto, na USP, a tendência dos supervisores é incentivar os alunos a produzirem algo a partir daquilo que estão sentindo ou que lhes está afetando no encontro com o cliente, os supervisores da PUC também apontam para os sentimentos do aluno, porém, não promovem um espaço para elaboração desses sentimentos, voltando a atenção e discussão para os aspectos do cliente. Andrade (1996) observa que o processo instituinte de uma ética da afirmação não se reduz a uma diversidade de práticas e a uma diversidade de experiências vividas pelo aluno. Não se trata da experiência da multiplicidade como estado (diferença identitária entre as práticas: esta prática é diferente daquela), mas do acolhimento à multiplicidade enquanto processo. Este acolhimento não passa por um falar sobre ou explicar algo, mas por uma construção permanente a partir daquilo que nos afeta. Como bem explicita Figueiredo (1993, p. 91-93): a atividade profissional do psicólogo requer uma incorporação dos saberes psicológicos às suas habilidades práticas de tal forma que o mesmo conhecimento explícito e expresso como teoria só 37 funciona enquanto conhecimento tácito 5 [que] é o seu saber de ofício, no qual as teorias são impregnadas pela experiência pessoal e a estão impregnando numa mescla indissociável, este saber de ofício é radicalmente pessoal, em grande medida intransferível e dificilmente comunicável. Assim, o conhecimento tácito impõe um movimento contínuo de metabolização de experiências, de informações consigo mesmo, entretanto, o autor salienta que o psicólogo é um profissional do encontro; ou seja, ele lida com o outro na sua alteridade. Mesmo que chegue a este encontro com precária segurança de teorias e técnicas, o que importa é a disponibilidade para a alteridade enquanto um desconhecido, desafiante e diferente, que se revela como algo que se impõe e contesta, conforme sublinha o autor, “fazendo-nos efetivamente outro que nós mesmos”. Portanto, seria o acolhimento à alteridade que capacitaria para o exercício da profissão, pois é trazendo junto a mim as sombras dos meus outros que esta multiplicidade se converte na condição mesma do trabalho como psicólogo. Nas palavras do autor, “é no contato com as alteridades do outro e com nossas próprias alteridades que transcorre e se efetua toda a nossa experiência; é da experiência que se pode originar nossa eficácia”. Por que o acolhimento ou estranheza à alteridade é tão difícil? Estamos desde o nosso início “dentro” dos outros, da família, da nação, de uma tradição. É um outro que é anterior ao “eu” e a vida toda estaremos imersos neste outro. Assim sendo, a alteridade é um 5 Par a Po laniy (1975) conh ecimen to tácito é aqu e le conhecime n to in corpor ado às c ap a c id ad es a f e t iva s, co g n i t iv as, mo t o r a s e v er b a i s d e u m s u j e ito . F ig u e ir ed o (1996) apon ta que etimo log icamen te tácido é calado , silencio so e qu e esta c onc ep ção nã o é exp lorad a por Po lan iy. 38 fenômeno subjetivo, não temos como objetivá-la. Este estrangeiro, portanto, emerge desde um plano de comunidade constituinte e podemos ter ou não abertura para a sua afetação. E, para Figueiredo (1994, p.307) “é lá de dentro deste acolhimento que ele se poderá revelar na sua estranheza”. Retomo a conclusão de Andrade (1996) quando aponta a presença dessa dimensão ética do acolhimento à alteridade em Laborde e no Plantão da USP, por não utilizarem uma determinada teoria como modelo. Procuram estabelecer um processo de pensamento que institua outros modos de estar a partir daquilo que está sendo vivenciado no encontro, a partir da diferença ali imanente. É por essa perspectiva que se apresenta a questão do aluno como produtor de sua própria formação: implica em um agir por si próprio e a partir de si próprio. Diz respeito a uma ação. Arendt (2001) afirma existirem fundamentais: labor, trabalho e ação. três atividades humanas O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho corresponde ao artificialismo da existência humano e a ação corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo, ou seja, são todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. Ação é atividade exercida diretamente entre os homens, diz respeito à condição humana de pluralidade, é, ao mesmo tempo, um meio de liberdade (capacidade de reger as próprias opções/escolhas) como também uma 39 única forma de expressão da singuralidade. Ação, como processo, diz respeito à experiência humana real que se realiza em trânsito pela vida. Assim, cada supervisionando é capaz de realizar o infinitamente improvável e singular. Tal ação não é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade como o trabalho. Ela pode ser estimulada, mas nunca condicionada pela presença dos outros, como lembra Arendt (2001, p.190), referindo-se às ações: “o seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos e as quais respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa” Deste modo, não cabe ao supervisor impedir o supervisionando de agir, pois ele não seria o início de uma coisa; supervisor é alguém que é, ele próprio, um iniciador. Nesse sentido, ação é um meio de liberdade e de expressão de singularidade de um (supervisor) e outro (supervisionando) em sua situação de con-vivência. Como afirma Montrelay (1985), referindo-se ao agir do supervisor, como um mestre, em Bali, guia a aprendizagem de um jovem bailarino, colocando-se atrás deste. A autora mostra como ele transmite ao aluno a arte de dançar na condição de que esse dance por si; do mesmo modo, o supervisor deve possibilitar que o supervisionando associe, coloque hipóteses, seguindo seu próprio caminho sem se identificar com o supervisor. Isto porque nada pode ser aprendido em espelho, por reprodução de um modelo. A tarefa do supervisor consiste apenas em possibilitar ao supervisionando a encontrar seu próprio caminho, seu próprio espaço de trabalho, de iniciar seus próprios processos. Para Morato (1996), o instrumento de 40 trabalho do psicólogo é ele mesmo; é a sua sensibilidade experienciada no encontro com o outro que propicia a condição de conhecimento, compreensão e comunicação para o cuidado e cura. Por sua vez, Fédida (2000) afirma que o supervisionando narra ao supervisor o que ficou, o que apreendeu e, sobretudo, o que elaborou de seu encontro clínico. O supervisor escuta o que vai além das palavras ouvidas, o que escapa, o que surge de estranho no conteúdo de um discurso, o que surpreende em uma palavra “mal dita”. Nessa perspectiva, esse modo de ser supervisor me faz lembrar o que Benjamin (1985, p. 205) enfatiza como sendo o narrador: aquele que troca, por palavras, as experiências vividas, ou seja, que a narrativa é tecida lentamente, pois ninguém se torna capaz de transmitir experiência, sem antes adquiri-las e incorporá-las à sua própria vida. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo e ela se perde quando as histórias não são mais contadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece, enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho do tecer se apodera dele, escuta as histórias de tal modo que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se tece a rede em que está guardado o dom narrativo. De outro modo, mas com sentido análogo, Figueiredo (1996, p.119) faz intensa discussão quanto à preocupação do psicólogo: formação e treinamento. Enfatiza que formar é proporcionar uma forma, mas não é modelar uma forma, mostrando que disciplinas formativas propiciam o ser psicológico e que, independentemente das 41 escolas teóricas de cada um, implica em situar-se nos campos da epistemologia e da ética, não sendo jamais apenas um feixe de habilidades técnicas. O treinar, lembra o autor, vem de tragere, trazer para si, puxar, pois “quem puxa, coloca-se à frente, atraindo o treinado, mas mantendo-se sempre uma certa distância”. O autor salienta, no entanto, que as disciplinas de treinamento abrem o apetite do aluno e que, portanto, são disciplinas que devem propiciar ao aluno aprender razoavelmente bem alguma coisa, para que ele tome o gosto por fazer melhor e passe a buscar suas próprias formas neste mister. Se o eixo formativo não estiver sendo bem desenvolvido, o treinamento trará poucos ganhos, especialmente se houver uma sobrecarga de treinamentos, podendo gerar desamparo e incompetência. Como afirma Critelli (1996, p.39) investigar é sempre colocar em andamento uma interrogação a respeito de alguma coisa que nos afeta, que nos provoca, que buscamos compreender. Segundo a autora, todo interrogar pelo ser (de algo, que é o que constitui qualquer investigação) tem sempre uma prévia interpretação de ser que o orienta: “o ser que se busca através da fenomenologia não é nenhuma entidade em si mesma, nem mesmo uma idéia a respeito da substância dos entes”. Enfatiza que a questão do conhecimento (e, portanto, do método) é: o modo-de-ser-no-mundo-do-homem, o mostrar-se e o ocultar-se. Relembrando Heidegger, em Ser e Tempo, Critelli (1996, p.45-46) diz que o problema do ser é um problema de ser, isto é, existencial: “o modo co-determinado pelo modo mesmo do 42 homem ser-no-mundo-lidando-com-as-coisas-falando-com-os-outros”. Somente assim seria possível ao ser tornar-se acessível, pois ser “não pertence à coisa como seu próprio atributo, mas a uma trama de relações significativas que a precede e sustenta”. Nessa perspectiva, para Critelli, os entes não são objéticos mas sim fenomênicos, mostrando-se como fenômenos. Afinal, o que as coisas são não está nelas mesmas, ou melhor, em si mesmas, mas sim na relação inextirpável entre um olhar e a coisa mostrando-se para esse olhar: a coisa mostra-se como o que é e mostra-se também como o que não é. A realidade, portanto, é o que é atualizado nesse encontro. Desse modo, minha indagação como pesquisadora é:o que se atualiza nessa relação/encontro entre supervisor e supervisionando? Nesse sentido, este olhar que me é próprio, implica, ao mesmo tempo, todos os outros olhares olhados. Sendo assim, o método fenomenológico é um caminho onde o olhar se institui junto ao fenômeno e não sobre o objeto, um olhar que trnasparece os paradoxos, a multiplicidade na trama existente. É um olhar de um investigador que, segundo Critelli (1996, p.135), “enquanto interroga o real está dando conta de ser, dando conta, inclusive, de ser ele mesmo (própria ou impropriamente)”. A autora continua dizendo que os sentidos se revelam de diversas maneiras e por isto tudo vale como registro: visitas, entrevistas, vídeos, desenhos. Porém, o registro é apenas um sinal, uma referência. Critelli (1996, p.137) afirma que o olhar 43 fenomenológico só empreende “desvelamentos cuja passagem é o inaudito, que exige daquele que olha a coragem da aventura.”. A partir daí pude enveredar por um caminho para atingir meus objetivos e tomei decisões metodológicas que considerei apropriadas, conforme relatado no Capítulo 4 – A Coisa Estendida – A Tesssitura da Questão. 44 PALAVRAS APENAS FISICAMENTE Na Itália, il miracolo é de pesca noturna. Mortalmente ferido pelo arpão, larga no mar sua tinta roxa. Quem o pesca, desembarca antes de o sol nascer, sabendo com o rosto lívido e responsável que arrasta pelas areias o enorme peso da pesca milagrosa: il miracolo amore. Milagre é lágrima caindo na folha, treme, desliza, tomba: eis milhares de milágrimas brilhando na relva. The miracle tem dura pontas de estrela e muita prata farpada. Le miracle é um octógono de cristal que pode girar lentamente na palma da mão. Ele está na mão, mas é de se olhar. Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono de cristal. Até que de repente – arriscando o corpo e já toda pálida de sentido – a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octógono, mas lê miracle. A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se. Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-se em estilhaços, assim como o fogo de artifício é um objeto opaco até ser, no seu destino um fulgor no ar e a própria morte. Na passagem de simples corpo a sentido de amor, o zangão tem o mesmo atingimento supremo: ele morre. Clarice Lispector (1984) 48 Pensar em supervisão é pensar necessariamente nas diferenças, é pensar a intersubjetividade como forma de o outro fazer parte de mim e vice versa. Focalizando o fenômeno da intersubjetividade e seu papel no campo das relações pessoais, recorro a Morato (1996), quando afirma que a condição de existência relacional possibilita mudanças nas pessoas, especificamente por ser essa mesma condição constituinte do existir: possibilidade de afirmação de sua especificidade no encontro com outros. A presença com outro vai possibilitar um abrir-se ao outro e sair de si para encontrar-se encontrando. Encontro com a diferença em si mesmo. Augras (1986) aponta que, no reconhecimento interpessoal, os limites da identidade são assegurados pela revelação da alteridade e que a delimitação do eu apóia-se ao esbarrar com o não-eu. Mas como reconhecer o outro em sua propriedade, sem afirmar o próprio estranhamento gerador de abertura para o outro? A cisão confirma-se como condição de conhecimento. A autora, referindo-se a Kierkgaard, lembra que, em sua meditação sobre os possíveis da liberdade humana, ele desenvolve o “conceito de angústia” e observa que, no mito cristão, a angústia primordial aparece juntamente com a figura de Eva, a fundamentalmente outra. No Gênesis, Eva é criada a partir de uma costela de Adão, ou seja, surge de dentro dele: o outro é um componente de si. A alteridade reside dentro do ser, é da ordem do acolhimento da diferença, pela diferença. Não há “eu” e 49 “outro” puros, em si. O que há é uma relação intersubjetiva que vai desenhando espaços de existência para ambos, como no poema de Drummond (1984, p.7): Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me E é de tal modo sagaz Que a mim de mim ele oculta. Refletir a relação na relação é, muitas vezes, penoso. É nesse momento que o inusitado, algumas vezes, a mim tem se apresentado e fico diante do indizível. Como tornar dizível este turbilhão de pensamentos, emoções e movimentos que se passam dentro de mim? O enigma que aí se instala me traz muita inquietação, especialmente no que tange ao aparecer e ao ocultar fenomenal. Meu olhar de pesquisadora poderá realizar um dado recorte na compreensão daquilo que se mostra até aqui. Recorte este que se oferece como produto de minha subjetividade e de minhas experiências. Escrever sobre a experiência é imprimir a minha marca: o meu olhar; o meu sentir; é também ouvir o outro como companheiro desta viagem. Um tal percurso, em dados momentos, me paralisa com medo de revelar como dizível aquilo que é visível aos meus olhos. E assim começo este pequeno ensaio, brincando com o meu pensar, na expectativa de que os meus interlocutores possam, através de seus olhares interrogativos, ajudar-me a ver além do que se vê. E para começar a pensar, 50 retomo através de uma narrativa de Benjamin, (1936, p. 205) o começo de tudo. A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade - , é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime n a narrativa a marca d o narrador como a mão do oleiro na argila do vaso. No campo do meu trabalho profissional, a docência é um vértice ao qual tenho me dedicado com interesse; por isso, a formação dos alunos de Psicologia é objeto de minha paixão. Ser professora-supervisora em Psicologia, traz-me muitas responsabilidades e diversas inquietações: inquietações relativas ao intenso relacionamento professor-aluno e outros relacionamentos humanos; inquietações referentes à ideologia transmitida nas supervisões; inquietações que dizem respeito à transformação do aluno; inquietações no que se refere à construção de subjetividades, inquietações em como “possibilitar” o supervisionand 51 Como é que eu sei que existe não apenas eu, mas o resto do mundo? Como é que eu consigo perceber que nesse mundo existe uma parte feita de homens como eu, que são sujeitos pensantes, capazes também de refletir, de agir, enfim, de desempenhar-se enquanto sujeitos? O estrangeiro está sempre ali, à nossa frente, constituindo-se um enigma a ser traduzido, um mistério. O estrangeiro nos impõe os deveres da hospitalidade; não temos como evitá-lo e/ou barrar sua entrada. Como diz Serres (1993, p. 15) É necessário partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornarse vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de se expor . A voz do outro, a presença do outro está em toda parte. Nesta medida, aponta Figueiredo (1994, p.303), ao fazer uma análise da questão da alteridade na teoria de Jean Laplanche, enfatizando que Laplanche mostra um desconhecimento de como ocorre a emergência da alteridade, “(...) ele não faz o trabalho fenomenológico que dá conta da emergência simultânea de uma alteridade e do si como protótipo de todos os acontecimentos, como o acontecimento inaugural”. Pensar numa realidade maternante é constatar que o outro já está presente em mim, antes mesmo de eu me defrontar com ele, é isto que caracteriza o chamado solo transubjetivo, onde não há separação, mas só espaço para emersão. Porém, conforme Figueiredo (1991), há, a seguir, uma irrupção da alteridade, chamada intersubjetividade traumática, onde nos 52 constituímos a partir de nossas defesas e passamos à intersubjetividade interiorizada a partir das relações de objetos. Se partirmos da filosofia moderna, ficará difícil a constatação de que o mundo possa existir independente de mim. Tal problema teve suas vicissitudes ao longo da trajetória do conhecimento, desde os gregos até Hegel. A perspectiva inaugurada por Descartes, no limiar irreversível da modernidade, independentes: falava Res de duas modalidades Cogitans (fenômenos de seres, mentais) e distintos Res e Extensa (fenômenos físicos). Ambos reuniam em si, de maneira paradigmática, os principais elementos que vão reaparecer, de formas diversas e diferenciadas, praticamente em todos os paradigmas da modernidade. À Res Cogitans (o pensamento, a consciência), coincide o eu, como realidade primeira, sendo pensamento ou consciência. Por sua vez, a Res Extensa (o corpo, a matéria), fica, assim, reduzida à materialidade e à objetividade, passando a ser vista como natural, regida por princípios mecânicos e físicos, desvendáveis pela ciência, compreendida como cognição ou raciocínio, a partir da Res Cogitans. Nessa perspectiva, a consciência, por outro lado, escondida no corpo, atuaria sobre ele, controlando-o. Entretanto, e tão somente, por essa relação de exterioridade, o que podemos apreender do outro é, apenas, sua expressão exterior, manifestada como comportamento (não é esse o modelo do behaviorismo?). É nesta perspectiva que nasce, em 1879, na Universidade de Leipzig (Alemanha), o primeiro Laboratório de Psicologia, 53 fundado pelo Dr. Wilhelm Wundt, marcando a influência do positivismo científico, ainda presente neste campo do conhecimento. Este foi o primeiro passo para a criação de centros de ensino e formação em Psicologia, situando-a como uma ciência que transitava entre as ciências naturais e humanas, ora lançando mão de métodos experimentais (Psicologia Experimental), ora propondo a análise de fenômenos culturais (Psicologia Social). Wundt, via de regra, é apresentado, somente, pelos seus trabalhos em Psicologia Experimental, contudo esta não era a sua área de maior ênfase. Wundt, de fato, dava igual ou maior importância ao campo dos fenômenos sociais, lançando mão dos métodos comparativos da antropologia e da filologia 1 . Vale ressaltar que Wundt já trazia uma preocupação com a experiência imediata dos sujeitos, sem se deter às diferenças entre esses sujeitos, porém, já apontando que a experiência deveria ser o objeto da psicologia. Na verdade, o que ele chama de experiência imediata estaria mais ligado à noção de vivência, pois para ele “a experiência imediata é a experiência tal como o sujeito a vive antes de se pôr a pensar sobre ela, antes de comunicá-la, antes de ‘conhecê-la’ 2 . É, em outras palavras, a experiência tal como ela se dá” (Figueiredo, 2003, p. 58-59), ou seja, o vivido anterior a qualquer tipo de reflexão. 1 Corr esponde ao “Estudo d a língu a em to da sua amp litud e, e dos do cu me n tos escr ito s qu e serv em p ara do cu me n tá- la” (Aur élio Bu arqu e d e Ho land a Ferr eir a, Novo D icion ár io d a Língu a Por tugu esa, p. 779) 2 A sp as do au tor 54 Em seus trabalhos, Wundt trazia uma noção de subjetividade compreendida como um “entre” o indivíduo e a sociedade. Embora essa relação fosse considerada, redundava em problema para a pesquisa, pela hegemonia do método experimental. Desse modo, segundo Figueiredo (2003, p.61), Wundt recorreu à ‘unidade psicofísica’ para poder superar a contradição metodológica imposta por dois conceitos de homens distintos e não conciliáveis. Desde então, toda a Psicologia constituiu-se a partir de superposições, tanto no que se refere aos procedimentos metodológicos, quanto ao seu próprio objeto de estudo. Dito de outra forma, cada corrente de pensamento que emergia se firmava por questionar o objeto de outra, propondo como foco um outro aspecto do ser humano e oferecendo um novo, preciso e confiável modelo metodológico capaz de assegurar a verdade sobre o que é o psicológico e seus desdobramentos. Tais questionamentos e discussões introduzem o pensamento do solipsismo 3 . Contrariando a própria fé experiencial de Descartes, ao propor o raciocínio por analogia 4 : ao ver o corpo do outro e nele certos movimentos, constato a semelhança do corpo alheio e do meu e, por analogia, deduzo o que se passa nesse outro psiquismo, nessa outra consciência. Nessa perspectiva o outro é uma experiência indireta e provável. Apenas posso suspeitar de sua presença; na realidade, não se trata 3 D e so lu s ipse, ser só , diz do pen samen to que as s ever a a exis tên c ia ex clus iv a do eu ou, no má x imo , d e ou tro s eus dep end en te s e redu zidas ao me u eu. 4 Cf. Abbagn ano, o termo tem d ois sign ificado s fundame n tais, sendo qu e u m d eles é e mp r egado n a f ilo sof ia mo dern a e con te mpor âne a e qu er s ign ific ar o s en tido de e x ten são prov áve l do conh ec ime n to, me d ian te o uso d e se me lh an ça s gen ér ica s qu e s e pod e m adu zir en tr e s itua çõ es d ive rsa s. 55 de presença (Da-sein) 5 , mas de consciência, reflexão e pensamento por analogia comparativa: reconhecer o que é o outro pelo que eu reconheço que sou (Cogito). O solipsismo constituiu-se num traço da filosofia da modernidade, expressando o individualismo burguês alimentado pela ideologia. Embora tenha se tornado uma fonte de reflexão, em verdade passou a ser problema a ser superado, como já apresentado pela tentativa de unidade psicofísica para Wundt. Verificar na história do pensamento como isso aconteceu demandaria um desvio de meu propósito, que não é mais do que traçar alguns pontos da trajetória da experiência inter-humana. O que apenas quero apontar é que a superação desse “solipsismo” pode demandar ainda algum tempo, se é que ele poderá ser superado, principalmente se considerarmos a Psicologia, tão repleta de teorias e práticas, implicando ver sua multiplicidade como que decorrente de diferentes noções solipsistas. Husserl (1976), como Descartes, partiu da evidência como critério único para alcançar a verdade. Tal critério seria dado pela intuição imediata, buscando, por el 56 a evidência apodítica procurada. Pratica a suspensão 7 , ou epoké, de juízo de tudo o que é tomado como real natural, pois que a atitude irrefletida e ingênua da vida corrente contém em si uma crença existencial relativa ao mundo, não podendo conduzir ao conhecimento. Retornando-se à compreensão de Wundt acerca da experiência imediata, como aquela vivida pelo sujeito antes de sobre ela pensar, Husserl estaria praticando a epoké como possibilidade de transcender à noção de vivência, ou seja, ao imediatamente vivido como anterior a qualquer tipo de reflexão. Nesse caminho encontra algo que não pode ser reduzido ou colocado entre parêntese: a consciência, que é a evidência apodítica buscada, ou seja, a transcendência da consciência. Mas não se trata da consciência de que fala o psicólogo, ou seja, nome dado a um conjunto de fatos externos e internos observáveis e explicados casualmente. A consciência a que se refere Husserl é o sujeito do conhecimento como estrutura e atividade universal e necessária do saber. É a consciência como sujeito transcendental. Essa consciência teria o poder de descobrir as essências, que são significações produzidas por ela, na qualidade de poder doar sentido ao mundo. 7 Husser l propõ e o “ re t o r n o à s c o isa s m e sma s” co mo pon to d e p ar tid a para o c o n h e c i me n t o , só q u e n ão se r ef er e a u ma r e a l id ade e m- s i, ma s co mo f en ô me n o . O recu rso u tilizado é a re du ção. Para Forgh ier i (1993 , p .15-16) , a redução não é u ma abstração , ma s u ma mud ança de atitud e – d a atitude natural (aqu ela qu e acred ita que o mu ndo ex iste por si me smo , independen te de no ssa presen ça; n ão r ef letida, v iv id a no co tid iano) p ara a atitud e f eno me no lóg ica ( e m que suj e ito /obj eto como to talid ad es se r evelam como sign if icaçõ es) . Isso é possív e l susp end endo ou co locando en tre p arên tesis, for a d e ação, a f é na ex is tên c ia do mu ndo em si e todo s os p recon ceito s e teor ia s das ciên cias da n a tur eza qu e d e corr em d e ssa f é. Não d eve susp end er não so men te o mu ndo , ma s o própr io suj e ito, toma d o co mo tema de ref lex ão, d e ix ando a p ar e ce r o e u p u ro ou o “ego t ran s cendenta l” co mo e xpe c tador imp a r c ia l, a p to a apreend er tudo o que a ele se apr esen te co mo fenô me no. 57 Em outras palavras, a consciência não é um fato observável nem uma substância pensante, mas é pura atividade, ato de constituir essências ou significações, doando sentido ao mundo das coisas, que seria o correlato da consciência: aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido, pois a consciência é sempre consciência de algo. A isto Husserl nomeia de intencionalidade. Sendo a consciência sempre consciência de, a análise dessa consciência intencional seria a descrição das formas como a consciência tematiza seus objetos, ou seja, a descrição das diferentes formas de relação entre o sujeito e o seu mundo. Ela é a mediadora entre o sujeito e o mundo, cabendo captar a intencionalidade a partir de suas manifestações corporais, comportamentais e, também, das obras e criações espirituais. Husserl afirma que não há "coisa em-si" (o nôumeno de Kant) como incognoscível. Tudo o que existe é o fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno é a presença real das coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresenta diretamente à consciência. Assim, o que chamamos de cultura seriam também fenômenos, isto é, significações ou essências que apareceriam à consciência e que seriam constituídas pela própria consciência. Desse modo, de acordo com Husserl, o psicólogo deveria considerar que o eu vive no mundo, mas não somente preso àquilo que vivencia no momento; vivencia o passado e faz prospecções para o futuro, devendo dirigir-se ao “mundo da vida”, ao mundo da vivência cotidiana imediata, no qual todos vivemos, aspiramos e agimos. Além disso, os seres humanos, 58 embora sejam peculiares, constituem-se no e com o mundo, possuindo certa “comunalidade”, pela qual existem uns com os outros, dada a capacidade de se aproximarem e se compreenderem mutuamente em suas vivências. Para Husserl (1969), o mundo recebe o seu sentido não apenas a partir das constituições de um sujeito solitário, mas do intercâmbio entre a pluralidade de constituições dos vários sujeitos existentes no mundo, realizado através do encontro que se estabelece entre eles. Embora não haja precedência do eu sobre o outro, pois, na experiência mesma, o outro já está desde o começo comigo, sendo possível distinguir o que é meu próprio através de uma experiência direta, minha própria experiência, enquanto que a experiência do outro é acessível, indiretamente, pelo seu corpo animado. Em outras palavras: a experiência do eu seria da ordem da presença, ao passo que a experiência do outro seria da ordem da apresentação, fazendose fenômeno dado à consciência. Para Husserl, a noção de intersubjetividade ocupa lugar importante na discussão sobre a possibilidade de se conhecer a experiência que temos de um outro, assim como do mundo objetivo. Só me é dado saber/conhecer o outro como outra consciência, ou outro eu, a partir de minha consciência intencional. Deste modo, é possível afirmar que, no plano da consciência intencional, o mundo vivido é sempre o mundo vivido de cada um. Assim, a experiência de um sujeito não teria como ser remetida como condição constituinte a um mundo vivido em comum, compartilhado com outros. Habitar o espaço da intersubjetividade, interposto por Husserl, poderia apresentar-se como um ultrapassamento tanto ao racionalismo 59 quanto ao solipsismo, enfrentado por Wundt e pelos psicólogos introspeccionistas. Permitiria que diferentes sujeitos pudessem ter acesso ao mesmo mundo. conhecimento. Ele legitima o sujeito como ponto de partida do Ele rompe com o conhecimento científico da objetividade, da razão. Contudo, como também já foi discutido, a compreensão de intersubjetividade para Husserl contemplava somente o encontro de dois mundos: ao ver o corpo do outro e nele certos movimentos, constato a semelhança do corpo alheio e do meu e, reconhecendo-o como outra consciência de, é possível ter acesso a esse outro psiquismo, outra consciência. Trata-se de encontrar a intersubjetividade como consciência de, conhecendo-a por uma redução de julgamento, ou seja, pela supressão do próprio eu vivido pela experiência imediata. Gostaria, neste momento, de deixar claro para o leitor que, apesar de reconhecer o grande avanço de Husserl na compreensão da intersubjetividade, estou aqui apenas mostrando o que alguns autores pensam sobre esta questão, o que não significa que, necessariamente, eu concorde com eles. Merleau–Ponty (1984), interrogando a intersubjetividade, recorrendo à compreensão de Da-sein de Heidegger 8 e à percepção estudada pela Psicologia da Gestalt 9 , reflete o espaço intersubjetivo como aquele onde 8 Cf . p. 55, no ta d e rod ap é nº 5. G es ta lt c o mpr eend id a co mo conf igur ações p er c ep tiva s. 9 s ign if ic a ção c ontex tu aliz ad a pe la a ltern ân cia de 60 vidente e visível, tocante e tocado se confundem, traduzindo-se em movimento sempre reversível. Como já assinalado no capítulo 1, Coelho Jr. (1991), acerca do visível e do invisível em Merleau-Ponty, afirma que há uma intenção em suprimir a clivagem entre sujeito e objeto. Para ele, o fundante não é a consciência em face de um mundo, mas o que ele denomina “Carne”. Nessa perspectiva, vidente e visível, tato e tangível, apesar de apresentarem um movimento reversível, implicam, na realidade, em uma reversibilidade sempre iminente e nunca de fato realizada, pois corpo e coisas são feitos do mesmo estofo. Assim, Merleau-Ponty aclara a questão da intersubjetividade a partir da corporeidade. Nesse sentido, o espaço entre precisaria ser privilegiado para poder se apreender questões referentes à existência humana. Como observa Merleau-Ponty (1980, p.278) “imerso no visível por seu corpo, embora ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê: só se aproxima dele pelo olhar”. Ou seja, vejo as coisas porque estou entre elas, porque também sou visível. Há entre mim e outro uma relação de pertença imbricada no mesmo mundo, implicando que, por meio desta coisa intersensorial, experiência e sentido se comunicam. Tomamos emprestada neste momento a pergunta de Frayze-Pereira (1984, p. 142) Ora, se a experiência do corpo consigo mesmo, um visível capaz de reflexividade, se propaga na relação entre ele e as coisas, por que não se verificaria essa propagação entre ele e um outro corpo? Abertos um para o outro, numa experiência iminente, podemos nos tocar, comungamos um 61 mesmo panorama, é a abertura que permite ao outro ver o mesmo mundo, embora por outra face... o ser não é solipsista, mas intersubjetivo, intersubjetividade esta que não resulta de uma soma eu mais outro, individualidades mutuamente exteriores, mas faz parte da estrutura do ser. É porque o outro me toca, é porque o outro me faz carinho, é porque o outro olha para mim, é porque o outro se comporta diante do meu corpo, que eu sinto este outro, enquanto um outro mesmo. Perceber o outro é perceber que estou sendo também percebido por esse outro, percebendo que o outro está se comunicando, fazendo, agindo em relação a mim. Originalmente, passamos meses da nossa vida calados, enquanto só os outros falam; assim, muito antes de sermos falantes, somos falados somente pelo falar de outros. Portanto, muito antes de sermos falantes, fomos ouvintes, e, nesta condição, tocados e ditos pelas palavras dos outros... Assim, aprendemos a falar palavras que são as ouvidas da fala dos outros; vamos nos acontecendo falantes, por termos sido bons ouvintes. Enquanto ouvinte, enquanto objeto do toque alheio, do movimento corporal alheio, podemos reconhecer a existência desse outro, ao mesmo tempo em que esse mesmo reconhecimento é solo para meu próprio reconhecimento como um si mesmo. Esse outro que é um sujeito que fala, que se mexe, que pensa, possibilita que, a partir dele, eu possa saber de mim, dando-me conta de minha própria existência. Desse modo, ouvir (ser tocado pelo mundo e pelo outro) abre-me ao meu dizer de mim (ação de também tocar o mundo e o outro): reversibilidade irreversível. Por esta reflexão, é possível compreender como Merleau-Ponty, começando com Heidegger, visto a seguir, abre possibilidades para uma 62 fenomenologia da intersubjetividade como constituição fundante para o conhecimento. Partindo não do sujeito individual e isolado da consciência de, inaugura o lugar da relacionalidade comunicacional. A fala é o modo de apropriação do sujeito no mundo entre outros. Assim, a linguagem não é a expressão de um sujeito, como também não é uma representação, mas sim é expressão de uma forma de relação no mundo com outros. Não é uma expressão do sujeito como se esse sujeito pudesse existir independente da situação mundana na qual está imerso, assim como não há consciência vazia, mas sim intencional, dada pela percepção da experiência do vivido existencial como sendo no mundo no modo da con-vivência: interpenetrabilidade inalienável. Assim, buscar compreensão numa fala não é apenas conhecer um sujeito, mas sim mostrar a expressão de um modo possível de relação entre sujeito-objeto, eu-mundo-com outros. O sujeito não existe antes de ser um sujeito falante. Sendo um sujeito no mundo com outros, constitui-se através da intersubjetividade. É no contexto intersubjetivo que se faz possível a este sujeito encontrar-se: saber de si e do mundo. Para Frayze-Pereira (1984), a intersubjetividade é a possibilidade que cria no sujeito a perspectiva de aberturas a outras experiências possíveis. Ancorado em Merleau-Ponty, diz que a intersubjetividade é corpórea antes de ser espiritual, pois primeiro se percebe uma outra sensibilidade, para depois fazer-se pensamento. Diz, ainda, que outro caráter marcante da intersubjetividade é a transitividade (reflexividade) de um corpo a (e) outro, instaurada pelos sensíveis perceptuais (visão, gestos e sons) revelando expressividade e 63 exteriorização. Com isto, abre-se, segundo Frayze-Pereira (1984, p. 144145): a dimensão invisível do pensamento (...) e da linguagem, pois existe ainda a reversibilidade entre o som (palavra) e o sentido (significado). (...) A relação entre os homens darse-á agora através de signos, ficando a palavra a meio caminho entre o sentido e o pensado. (...) Em parte alguma haverá esses fetiches que são o fato puro e a idéia pura, mas mescla e reversibilidade de sensibilidade e idealidade. Nessa mesma direção, Morato (1989), a partir de Gendlin, aponta que a experiência, como modo de ser humano constituinte pela abertura ao mundo (ou seja, experienciar em situações), desvela a intersubjetividade ocorrendo pela possibilidade de comunicação de significados. Contudo, tais significados referir-se-iam diretamente ao que estaria ocorrendo na situação vivida. Desse modo, Morato (1989) citando Gendlin (1962, p.81), diz: Não podemos conhecer o que um conceito “significa”, ou usá-lo significativamente, sem o “sentir” deste significado. Nenhuma quantidade de símbolos, definições ou algo similar, pode ser usado no lugar de significado sentido. Se não há significado sentido do conceito, não é possível compreender o conceito – (este) aí somente fazendo-se um ruído verbal. Nem se poderia pensar sem significado sentido. Assim, a autora, recorrendo a Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, Gendlin apresenta como o significado sentido (felt meaning) se relaciona com articulação de significados (cognição/pensamento), referindo-se ao que denomina como experienciar em situação, sensação corpórea intuitivamente percebida/sentida (felt sense, ou seja, sentido sentido), dada pela condição de ser situado no mundo, própria ao humano. Implica em uma compreensão prévia do que está sendo sentido como acontecimento que pode ter efeitos a partir tanto de mim mesmo quanto da situação em que me encontro. Embora 64 implícita (não cognitivamente pensada, nem conscientemente percebida), essa afetação é ativa, pois, articulando-se ao que foi corporeamente sentido, permite abrir-se ou não a um significado sentido (felt meaning ou experiencing meaning), comunicável em linguagem, já implicitamente constituída pelo experienciar como modo de ser: fazer experiência na intersubjetividade. (Morato, 1989). Acredito que o compartilhar a constituição de mesmo espaço de encontro possibilita aos sujeitos se reconhecerem singulares, podendo, por isso mesmo, se expressar e constitur significados, pois todo sistema de significação, criado pelo corpo histórico-cultural, reporta a significadossentido, produzidos intersubjetivas. por subjetividades antecedentes em situações 65 possibilidades que o mundo oferece, onde o sentido é construído nesse espaço intersubjetivo aberto ao inusitado oferecido pelos encontros acontecimentais. Desse modo, a supervisão apareceria não só como um momento de perceber-se no fazer da própria prática, mas também lugar para tornar-se um terceiro instruído, encontrando novo significado-sentido para um outro próprio si próprio.. O supervisor, fazendo-se presença, ou seja, junto ao outro, sustentação/afirmação ofereceria para o si próprio como supervisionando possibilidade fazer experiência de e compreender-se como abertura para criar novos significados-sentido. Pode, efetivamente, fazer uso daquilo que faz, como faz, como atualização de si próprio, apropriando-se de si, sendo atravessado por sua experiência como abertura, para dirigir-se adiante: um novo lugar em e para si próprio no mundo. O supervisor, por sua vez, por seu olhar singularmente outro nessa mesma situação intersubjetiva, no lugar de ouvinte, pode ir tecendo um fio de compreensão por entre a descontinuidade do que lhe é apresentado pelo supervisionando, permitindo-se sustentar essa fenda como abertura de possibilidades para novos caminhos na direção da experiência de um fazer próprio do supervisionando. É a presença com outro, que vai possibilitar um abrir-se à experienciação e instituir outros modos de estar-no-mundo. Tal modo de fazer supervisão exige do supervisor uma afirmação dessa situação como clínica. À medida que o supervisionando pode afirmar o estranho/as rupturas, ele pode experienciar um ambiente que lhe permite “ser” (ser ele próprio), ele então vai se sentindo autorizado estar ali de forma própria. 66 Pensando na questão da intersubjetividade, Figueiredo (1991), numa Mesa Redonda na PUCSP, numa interlocução com as idéias de Max Scheler, lembra que as vivências são originalmente e a maior parte do tempo muito menos diferenciadas e diferenciáveis do que imaginamos. O autor, nesta Mesa, cita as palavras de Scheler: “O homem vive de início e, principalmente, dentro dos outros e não de si mesmo, ele vive mais dentro da comunidade do que dentro de sua própria individualidade”. Figueiredo mostra, com esta citação de Scheler, que estamos todos, assim, dentro dos outros, e que este outro é anterior ao “eu”, ao “tu’ e ao “ele” e que as vivências são originalmente e a maior parte do tempo, muito menos diferenciadas e diferenciáveis do que imaginamos. E como acontece a diferenciação? Figueiredo diz, nesta mesa redonda, que Scheler sugere que o processo de diferenciação que permite segregação de uma região de vivência, originalmente coletiva, organizada em torno do “eu”, em oposição a outros “eus”, ocorre dos movimentos e tendências expressivas dos corpos individuais e segundo interesses, demandas etc. da própria coletividade, ou seja: é dentro da coletividade que eu me individualizo, pois são movimentos que se constituem no transubjetivo que constituem a minha individualidade. Lembramos, no entanto, que esta diferenciação nunca é total, pois estamos sempre imersos numa coletividade. Aquilo que pode nos parecer mais privativo constitui-se dentro do outro indiferenciado. É importante ressaltar que em Scheler a separação eu-tu não é o dado primeiro, mas sim um processo de indiferenciação, pré-reflexivo, onde há produção de uma corrente de experiências psíquicas indiferenciadas sem 67 ligação com qualquer dos pólos eu-tu e que, então, começa a haver possibilidade de comunicação. Aliás, não é só aí, mas em qualquer situação essa possibilidade é permanente, mesmo quando já há diferenciação entre eu-tu. É justamente esse solo transubjetivo que possibilita a compreensão, o sentir e o pensar. Entretanto esta diferenciação nunca é total, pois sempre há um solo transubjetivo, coletivo, comum, que permite a comunicação, os encontros, sejam eles “amorosos, pedagógicos, terapêuticos” (Figueiredo, 1991, p.7). Lévinas (1997) mostra que o ser está em constante transformação, possível pelo contato com o outro, que, no entanto, é o mesmo. O autor coloca que “somos o mesmo e o outro”, mostrando que a alteridade só existe na relação entre subjetividades, quando o eu se defronta com o outro cotidianamente. Ou seja, não há “eu” e “outro” puros, em si. O que há é uma relação intersubjetiva que vai desenhando espaços de existência para ambos. Para este autor, o homem é de início sofrido, vulnerável, desamparado e, neste sofrimento, ele se depara com o rosto (expressão), que é exigência, exigência de uma resposta a ele e, nesta condição, começa a existir uma interação, uma interpelação mútua. Começa aí a subjetividade. Não existe, para Lévinas, processo de constituição de si, se não for uma resposta a uma intromissão do outro. Aí, embutido, encontramos um passado imemorial que é a experiência de ter sido interpelado pelo outro, antes mesmo de ter memória. Este outro deixará marcas e cicatrizes, que deixarão vestígios que contêm a visitação pré-histórica da alteridade. Como 68 afirma Lévinas (1997), o rosto é um sentido por si mesmo, ele é o incontido, leva sempre para o além. O pensamento não consegue abarcá-lo. Resgato Melo (2003), falando da concepção levinasiana, mostra que o rosto é expressão que dá significado à ética da alteridade. Etimologicamente, o rosto é essencialmente visual (do latim visus, aspecto aparente e videre, ver). O rosto é outrem olhado, sou eu olhado por outrem. O rosto é visibilidade. O olhar do rosto é imersão do sujeito, dentro de uma relação face a face, na qual o outro que me olha é aquele que me revela. No encontro, diz o autor acima citado, o Mesmo é interpelado a abandonar o seu posto de vigilante solitário da existência do mundo, o lugar de quem tudo contempla e sabe. O olhar é desconfortável, põe o Mesmo em situação de êxodo. É o outro que apela para o Mesmo, que o desinstala, que lhe exige abertura e acolhida. O olhar do outro me expõe, põe-me em perigo, temporaliza-me, espacializa-me. Revelo-me através do outro que me apreende como objeto do seu olhar. O olhar é revelado por ele ser comunicação e comunicante, por ele ser apelo e apelante, por ele ser acolhida. Como vimos, intersubjetividade, no que diz respeito encontramos na literatura à alteridade, várias e como diferentes compreensões. Do ponto de vista da supervisão devemos perceber todas as expressões do espaço intersubjetivo, onde o supervisor possa ser capaz de presentificar o estilo de ser do seu supervisionando, onde ambos (supervisor-supervisionando) possam realizar um encontro caracterizado 69 como espaço “entre” as duas pessoas, onde não há um e outro separados, mas ambos relacionando–se e constituindo-se simultaneamente nessa relação. Figueiredo (1996) mostra que o que vai caracterizar a clínica, é a submissão do sujeito a um outro que interrompe e se eleva à sua frente, expressando sofrimento, mas que será também este mesmo outro que pode assumir diante do sujeito uma posição ensinante. Segundo o autor, é como Lévinas assinalava: é a experiência ética por excelência: a partir de um simesmo, reconhecer o “outro” na sua alteridade, a eleidade do outro transborda os limites da minha consciência intencional, os limites da minha compreensão e se eleva à minha frente impondo–se a mim. Voltando ao fio do meu “tricô”, parece-me que, no trabalho da formação do aluno, necessário se faz o que Figueiredo (2000) chama de olhar de fora do campo, que fala dele, que trata do campo enquanto tal. O autor mostra que o casal Baranger, na década de 60, chamou-o de segundo olhar. O segundo olhar desobstrui, combate o fechamento do campo. Este segundo olhar é um olhar de reserva, cuja função, nos afirma Figueiredo, é também a de repor em reserva a mente do analista que, na dinâmica transferencial–contratransferencial, havia sido excessivamente capturada, sofria de um “excesso de implicação”. O segundo olhar reabre o “aqui e agora” para a sua multiplicidade constitutiva. O autor assinala que a supervisão é como um “olhar de reserva”, capaz de repor em reserva o supervisionando, liberando-o de um campo de concentração totalitário. 70 Na minha dissertação de mestrado (1988) saliento que a supervisão é um lugar de compartilhar experiências, é um espaço de co-construção, onde o supervisionando precisa ser sustentado nas suas angústias, onde se criam possibilidades para sua independência. O supervisionando precisa ser “embalado” por este olhar e escuta de reserva que o bom supervisor deve proporcionar, possibilitando que a supervisão seja um lugar de abertura para a afirmação dos estranhamentos, bem como um lugar de serenidade caracterizado pela capacidade de esperar o inesperado e de sustentar-se na abertura do aberto. Figueiredo (2000) afirma que, na fenomenologia do tédio profundo, iremos encontrar melhores subsídios para pensar a indiferença sem a qual não se cria nem se conserva a presença reservada do analista. É aí no tédio profundo que o dasein submerge na indiferença e já não encontra nem procura saídas pelo facilitário, pois ele nada quer, nada resiste, recolhe-se em si mesmo, se paralisa. É o afeto 10 que dá ao homem a possibilidade de se reconhecer ou se recolocar em sua relação originária com o “nada”. Heidegger (1991) nos fala da angústia do temor mostrando que aí estamos diante de algo determinado que nos amedronta e que na angústia estamos diante de nada determinado, só temos a impossibilidade. No primeiro caso, a ameaça vem dos entes, e no segundo caso os entes faltam, abandonam o homem à sua 10 Cf. Abbagn ano (1982, p . 19), a palavr a af eto d esigna o conjun to d e ato s ou d e atitudes como a b ondad e, a b enevo lência, a inclinação , a d evo ção , a pro teção , o ap ego, a g r a t id ã o , a t e r n u ra e tc . q u e , n o s e u to d o , pod em ser caracter izado s co mo a situação em qu e u ma p es so a “ to ma c u idado de ” ou “ nu tre so lic itude por ” u ma o u tra p es soa , ou qu e estou tr a r e spon sab ilid ad e, po sitivame n te, ao cu id ado ou à solicitud e de qu e fo i obj eto. 71 incompletude. Sendo assim, como diz Heidegger (1991, p. 250) “aquilo com que a angústia se angustia, é o nada que não se revela em parte alguma”. Heidegger posteriormente desloca a problemática da angústia e começa a pensar em como escapar da armação, do total desamparo e resgatar o habitar primordial. Habitar com confiança é estar pronto para o que der e vier. Figueiredo (1996) afirma que para Heidegger, o com é uma determinação do ser–aí, no sentido de que o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros (Mitwelt) e que, por consegüinte, o encontro com os outros não é a apreensão que um sujeito faz de outros sujeitos distintos dele, nem tampouco uma visão de si mesmo que estabelece uma diferença em relação aos outros. O Dasein só é na medida em que possui a estrutura essencial do ser–com. Como nos lembra o autor é o Cuidado 11 que permite interpretar o ser–com e que a compreensão do ser do Dasein já implica uma compreensão dos outros. Sendo assim, na relação com a alteridade o outro é um outro Dasein, isto é, encontra-se no registro do meu cuidado. O envolvimento primordial com os outros daseins é interpretado como um habitar primordial (Condasein), que nos leva a pensar em um habitar conjunto (mesmo que não haja uma interação, ou seja, o outro não 11 Cf . Ab agnano (1982) - Cu id ado (lat. Cur a ; al. Sorg e) é a pr eocup a ção, enqu an to é, segundo Heid egger , o própr io ser do Ser-aqu i, isto é, d e ex is tên c ia . O C. é a to ta lidad e d as estru tu ras on to lóg icas do Ser- aqu i, enqu anto é u m ser-no- mundo : em o u tro s te r mo s, ele co mpr eende tod as as po ssib ilid ades da ex is tência, enquan to estão v incu lad as às co is as e ao s ou tro s ho mens e do min a das p e la situ ação. (p.208). 72 precisa estar ali presente), cada vez que encontro outro dasein, estou encontrando uma cadeia de daseins. Para Clarice Lispector (1984, p.426): Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós. Retomando o meu tecer neste momento, faço uso das palavras de Morato (1996, p. 89) quando afirma: Pela intersubjetividade no encontro terapêutico é que se revela a especificidade do fazer do terapeuta: a qualidade de sua função receptora ou empatia. Qualidade abrangente de uma receptividade que lembra a dimensão estética existencial do encontro humano. Diz Fédida (1986, p. 624), uma ‘ressonância tonal’, encontro profundo e significativamente potenciável para propiciar mudanças e que demanda do terapeuta uma qualidade especial para acolher, ouvir e promover relação de intimidade, de afetos, quase tão primitiva como um mito. Demanda, compreensão e escuta do quase infantil, pré-verbal, para que esse impronunciável, sendo acolhido e ouvido, assim traduzido, dizer-se. Qualidade de escuta e ato de compreensão que possibilitam “cura” (cuidado) na pro–cura repetida: revérie, holding, congruência, aceitação, acolhimento, empatia, ou seja, condição de presença com compreensão cuidadosa do terapeuta. Passo agora a me perguntar: Que subjetividade é esta do meu supervisionando? E, para responder, lanço mão da explicação de Naffah (1999, p. 9), quando mostra que subjetividade assim como sujeito, vem do latim sub–jectum, que significa “aquilo que subjaz”. E para ilustrar, o autor utiliza-se do seguinte comentário de Warter Brugger: atos, de que os atos estão “nele”, exprime-se filosoficament(...) Sujeito é a realidade que está na base, que sustenta, o “sustentador”, o “portador”, denota pois, essencialmente, uma relação a outra realidade que “descansa sobre ele”, que é “sustida” por ele (...). o que se pretende explicar com as expressões gráficas de “sustentar”, “receber”, só nos é dado originalmente, de modo imediato, na relação de nosso eu com seus atos e estados. O fato vivido de que o eu “tem” os atos como seus e, denominando o eu como sujeito dos mesmos atos. 73 Este sujeito não precisa do Outro? Recorro a Assoun (1997) que mostra que Lévinas apreende o tempo como relação do sujeito com outrem, portanto contra a representação de um Dasein isolado, mas resgatando a alteridade e a morte, enquanto desmanche do aqui-e-agora, em toda existência e, assim, ligando-se exterioridade e alteridade, ameaça que vem de fora, mas que de qualquer modo, é neste horizonte que a relação com o outro irá se impor ao sujeito. A partir da ótica da fenomenologia existencial heideggeriana, o ser do homem se constitui no cuidado e isto é constituinte da dimensão ontológica humana. O homem é o lugar do ser, é o ser-aí que é também o ser-no-mundo que responde aos apelos dos entes que lhe aparecem (intramundanos). Assim, o ser-aí jamais pode ser um indivíduo monádico, pois os outros, que com ele estão no mundo, constituem seu próprio eu, portanto ser-aí é sercom. O mundo abre-se para o encontrar-se do ser-aí, angustiar-se é um modo de encontrar-se no mundo. Assim, posso compreender as buscas, o lançar-se, o angustiar-se de um supervisionando, quando ele depara com a inospitalidade com que o mundo lhe aparece, quando ele imagina que para poder ser, depende do que possa aprender e estocar, tendo o supervisor como modelo. Nessa busca, esquece que o homem se constitui nas possibilidades de ser que se mostram através dele mesmo, ou seja, que cada homem só pode ser aquele que ele já é. 74 Como bem mostra Morato (1999), são múltiplos os espelhos em que o supervisionado pode mirar-se e em que, ao mirá-los, não vêem apenas imagens de si mesmo, mas outras imagens. Pois, no espelho, nos vemos refletidos e aos outros, ou melhor, em nós e nos outros, nós mesmos. Daí a importância da supervisão coletiva, pois o grupo se constitui uma galeria de espelhos. Com mais um passo neste percurso, retomo Figueiredo (1996), quando enfatiza o pensamento de Maldiney, resgatando o irredutível, que é o estranho, o inassimilável, onde a pronta impressão é sempre uma fonte de surpresa e é irredutível à minha consciência intencional. Maldiney, segundo Figueiredo, vai falar de um novo existencial que é transpassibilidade como existencial: o ser lançado “além do mundo”, significando que sou afetado por tudo aquilo que pertence ao mundo, mas que, além da minha passividade, tenho uma trans-possibilidade e uma trans-passibilidade, ou seja, o exterior irrompe, faz furos, traumatiza. Trata-se de uma abertura que transcende o possível e o passível, de uma abertura ao catastrófico, ao acontecimento que surpreende, ao inesperado de uma abertura ao real como avesso e irredutível a qualquer expectativa e a qualquer simbolização. Assim, somos afetados pelo impossível, que é o acontecimento como transpossível, constituindo, portanto, uma quebra, uma irrupção, revelando que o homem não só está passivo ao possível, mas está também aberto ao impossível. O autor aponta que, para Maldiney, a dimensão fundante para o homem é, de início, sofrer (pathos), que ele chama páthos Mathei, que é o saber da experiência de ser afetado sem saber quanto e como. Como 75 assinala Figueiredo (1996), trata-se da abertura ao sofrimento mudo e sem nome, trans-possibilidade e trans-passibilidade apresentadas como existenciais, como modos-de-ser-no-mundo. Neste momento, lembro-me dos meus supervisionandos quando relutam em iniciar os atendimentos, quando fogem das supervisões, mostrando um sofrimento que não sabem de onde vem, um sofrimento aparentemente sem logos, um corpo estranho não identificado, algo que interrompe, surpreende, algo que perturba. Faço aqui um intervalo para questionamento do que Andrade (1996) chama de “pensamento modelar”. Será que também eu, enquanto pesquisadora, estou aqui me deixando capturar em explicações teóricas reducionistas? Será que estou deixando o lugar mestiço? Retomando aqui a epígrafe de Lispector, quando falava do risco ao se pensar, creio que não estou saindo deste ensaio com coração pesado, mas com o desejo de continuar buscando compreender o trabalho que faço enquanto supervisora de estágios, apropriando-me cada vez mais dele, tematizando-o, transformando-o. Intersubjetividade: esta é a questão. O que é produzido a partir dessa relação: supervisor-supervisionando? Se iniciei este pequeno ensaio com algumas perguntas e inquietudes, percebo agora que as dúvidas aumentaram, e, de certa forma, isto é natural, pois aprendi com todos esses pensadores que o espaço “entre” é o lugar privilegiado, para apreendermos as questões da existência humana. Exporme ao outro, aos outros, às estranhezas, me faz distanciar um pouco de mim 76 mesma, mas permite transformações. Afinal, não tenho como encontrar o outro de outra forma que não a partir de mim própria. 79 A psicologia clínica aparece no Brasil na década de 50, construindo suas teorias a partir de uma prática e do modelo clínico, este apoiado em um enfoque intrapsíquico e aquela voltada ao atendimento individual, em consultório, de segmentos mais abastados da sociedade. Para Andrade e Morato (2004), neste contexto, a psicologia clínica não se revelava como uma prática social. Contudo na década de 80, com a ampliação da psicologia clínica para outros espaços, principalmente pelo espaço de trabalho criado na rede pública, a psicologia se depara com uma nova realidade. Passa-lhe a ser exigido um outro modo de produção de um novo pensamento e de outras formas de se fazer psicologia. Segundo artigos publicados em 1988 e 1994 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), o contexto social vai sendo considerado pelos psicólogos como constitutivo do próprio sujeito-alvo dos cuidados psicológicos e não algo que faz sentir sua pressão ou sua influência sobre ele. Por sua vez, para Vaisberg (2001), nenhum fazer humano se dá à margem da vida sócio-histórica e cultural. A clínica psicológica não seria, evidentemente, uma exceção a esta compreensão, o que conduz à reflexão deste fazer como uma questão fundamentalmente ética/política. Torna-se, desse modo, cada vez mais importante para o psicólogo clínico perguntar-se acerca de quem é esse indivíduo ou coletivo, constituído pelos indivíduos, o qual necessita receber sua atenção e que tipo de atenção será essa. 80 Figueiredo (1996) assinala que é necessário desfazer algumas confusões a respeito do psicólogo clínico. A primeira delas, segundo o autor, diz respeito ao lugar: o clínico que atende em consultório particular, é um profissional liberal? Ao perguntar o que opõe a psicologia básica à psicologia aplicada, o que opõe psicologia escolar ou do trabalho à psicologia clínica, o autor afirma ser verdade que a clínica implica numa intervenção, mas é um equívoco pensá-la como mera aplicação de conhecimentos básicos, assim como é verdade que o sentido da intervenção clínica se diferencia, em alguns aspectos, dos sentidos da intervenção educacional. De qualquer modo, é um equívoco tratar a clínica como uma mera área de atuação ou como uma área de conhecimento separada de outras áreas. Diante de uma enorme diversidade de práticas clínicas em contextos diferentes e variados, a clínica apresenta-se por um dado “ethos” 1 , ou seja, pela sua ética: comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e dos conflitos. Trata-se de um acolhimento ao excluído como sustentação da processualidade que impele para o movimento, para as transformações. Figueiredo (1996) afirma que as éticas têm em comum algo a ver com o habitar o mundo. O homem é arremessado num mundo que ele não escolheu e, aí, ele é como a abertura ao que deste mundo lhe vem 1 O sign if icado da p a la vra et hos, pr es en te n es te mo me n to, é o a do tado por Figu e ir ed o , r ef er in d o - se a u m c o n j u n to d e v a lo r e s , p o s tur as e h áb ito s consid er ados co mo u ma mo r adia, p ar te do mundo na qual pod emo s nos sen tir r e la tiv a me nte abr ig ados, lev ando-se em con ta qu e o sign if icado etimo lóg ico de e thos, p a lavr a d a qua l s e o rig in a é tica , ref er e-s e tan to a os co s tu me s, qu an to à mo r ad a (1995). 81 ao encontro. Considerar o “ethos” como casa, morada, é ver nele algo equivalente à moradia de onde se pode contemplar, a uma certa distância, as coisas lá fora, nela podendo receber estranhos, tratar de nossos males, repousar. É primordial sentir-se em casa onde se criam condições para as experiências de encontro com a alteridade e para os conseqüentes acontecimentos desalojadores. Alteridade, nessa ótica, é ambigüidade, é a percepção do outro, do estranho em mim. Assim, neste momento, passo a me indagar: Qual seria a diferença entre clínica e supervisão? A clínica não é um trabalho de investigação, assim como o é o da supervisão? Tanto a clínica como a supervisão não nos remetem às afecções 2 ? Estas inquietações me conduzem a pensar não somente no fazer da psicologia e no sofrimento de seus atores, mas também nos referenciais identitários. Estão instituindo uma ética ou reproduzindo velhas práticas e moral vigentes? Ainda hoje, a estruturação dos cursos de Psicologia obedece a uma concepção de ciência da modernidade, pela qual o conhecimento é cumulativo e conduz à verdade científica. Assim, os currículos privilegiam os conhecimentos teóricos, desembocando nos estágios em que ainda hoje se exige uma filiação teórica. Assim, a formação do psicólogo está ainda amarrada aos currículos e às teorias, tendo o discurso pedagógico, como referencial, o sujeito da razão. Em tal perspectiva, o seu desempenho se sustenta na busca de formas ideais 2 Cf. Abb agn ano (1982 p. 18-19), af e cção design a todo estado, cond ição ou q u a l idad e q u e co n s i s te n o sof r er u ma a ç ã o o u n o s er inf lu en c i ad o o u mo d if ic ad o p o r e la . A p a lav r a afec ç ão é e mp r egad a p o r E sp in o za , p a r a d ef in ir o q u e e l e c h a ma a fe c tu s e que nós ch amamo s emo ç ões ou sen timen to s. 82 de ensino-aprendizagem, na crença de que as técnicas poderiam dar conta das possibilidades do “bom diálogo” e, portanto, da transmissão de um saber objetivável. Entretanto, sabe-se que na medida em que o ensino se torna rigidamente programado e controlado, não há mais espaço para a criatividade. Hodendorff (1999) relata que, se um saber, na sua transmissão, deve levar em conta a singularidade de cada um, e se um método (o pedagógico) aponta o universal, pode-se dizer que é apenas no estilo de mestria que podemos esperar algo da ordem de uma singularização no processo educativo. Que estilo de mestria seria este? Educar vem do latim educare que significa criar, alimentar, adestrar, instruir. No entanto, em sua acepção poética, educar significa moldar, esculpir, escrever. Considerando isso, para mim, compreender na educação atualiza-se algo da ordem de uma marca que molda, possibilita certa condição existencial. Concordo com Lajonquière (1999) que aquele que aprende algo não só obtém domínio de algo, que pode dizer respeito à natureza, às letras, às virtudes, mas também é marcado pelo apre(e)ndido no próprio coração da vida. Melhor dizendo, toda educação pressupõe a transmissão de um certo saber existencial, que não se reduz ao conhecimento sobre nenhum mundo possível nem somente a conteúdos específicos. Como diz Figueiredo (1996), se o eixo formativo não for bem desenvolvido, que ganhos trará o treinamento habilitante durante a formação? Assim, muitas vezes, em supervisão deparamo-nos com 83 sentimentos de desamparo e “incompetência” em nossos supervisionandos. Se o treinamento é oferecido por aquele mestre que se coloca à disposição com teorias e técnicas prontas e efetivas, impossibilitando o supervisionando de viver a experienciação, estará desenvolvendo postura/valores dogmáticos. Como aponta Morato (1989), na literatura por ela consultada, encontraram-se várias propostas de modelos para supervisão, mas não a preocupação sobre uma teoria da supervisão. Conforme assinala Fedida (1988, p.65), “teoria, a bem dizer, ainda não foi feita”, referindo-se à supervisão. Ainda hoje, muitos profissionais entendem a supervisão como aprendizagem de uma técnica, como mostra Morato (1989, p. 123) ...visando a objetivo de transmissão de uma habilidade, uma formação específica que deve ser controlada tanto pessoal quanto profissionalmente por um outro que vê além, quer dizer, para onde o aluno deve ir. Morato (1999, p.66), citando Webster, esclarece que técnica vem do grego techné que significa arte, artesanato, criação. “No entanto, a psicologia, distanciada destes sentidos originários, cindiu-se entre ciência básica e mera aplicabilidade”. Ainda há supervisores que se utilizam da supervisão como uma técnica na dimensão instrumental, não se dando conta do que assinala Michelazzo (1999, p. 159) que a técnica, antes de ser aprendida como um meio ou instrumento, é um modo do desvelamento, isto é, uma forma da apresentação da verdade (aletheia) 3 . 3 A l eth e ia em g r ego sign if ic a v erd ade; n ão-o culto, n ão- escond ido, n ãod issimu lado. O verd ad eiro é o que se ma n if esta aos o lhos do corpo e do esp ír ito ; a v er d ad e é a ma n i f es t aç ão d aq u i lo q u e é o u ex i st e t a l co mo é . A le th e ia s e r ef er e ao qu e as co isas são e está n as p rópr ias co isas ou n a próp ria r ealid ad e. Por outro lado, em latim, v erd ade é ve r i tas q u e s e r ef er e à p r e c is ão , a o r ig o r e a e x a t id ão d e 84 Ou ainda, como nos lembra Herrmann (1991, p.225): a supervisão está suportada pela mais antiga e eficaz das ilusões humanas: aquela que, por crer que alguém sabe fazer, leva-nos a fazer o que ainda não sabemos, para descobrir tarde demais que nenhum dos dois sabia, verdadeiramente, mas que já o fizeram. Enquanto alguns supervisores estiverem presos à concepção da técnica como mero instrumento para atingir determinados fins, continuarão inteiramente cegos à sua genealogia. No mundo pós-moderno, as ilusões são criadas para negar as evidências. Pensamos por “diques”, estamos acostumados à lógica do objeto e não do sujeito. Impera a tecnologia educacional que tenta coroar o processo fabril na educação: a técnica é expressão mais acabada do homem do nosso tempo, manifestando-se em volúpia, em agressividade; a ordem é ser rápido e eficiente, tornando-nos herdeiros da consumação da metafísica. Assim, supervisores que não permitem desalojar-se de um modo tradicional de fazer supervisão, ou até mesmo de pensar a vida em sua imanência, ou seja, em sua processualidade, ficam numa configuração em que as coisas também não se transformam. Esta é a ordem social: cada um e cada produção humana no seu devido lugar, devidamente categorizadas, hierarquizadas, constituindose todos como partes (elementos) de uma “unidade impenetrável” de u m r e la to no qu a l s e d iz co m d e ta lh es, po r menor es e f id e lid ade, o que acon teceu. V e r i tas s e r e f e r e aos f at o s q u e f o r am, e con s id era - s e q u e a v er d ade d ep en d e d o r igor e da pr ecisão n a cr iação e no uso d e r egr as d e lingu agem qu e dev e m expr imir , ao me smo temp o, no sso p ensamen to ou no sso s id éias e os acon tecime n tos ou f atos ex ter ior es a nós. ( Cf. Mar ilena Ch au í, Conv ite à Filo sof ia, 5ªa ed. São Pau lo : Á tica, 1995, p.99). 85 dominação onde só resta a abstração (matematização). Como afirma Adorno (1985), um mundo de idealidades cujos objetivos não se tornam acessíveis ao nosso conhecimento; (somente) um método racional acaba por alcançar todo o objeto, tal como é em si mesmo. Assim, também, para Crochik (1998), a tecnologia educacional, através de seus diversos meios, tenta coroar o processo fabril na educação. O conhecimento, não necessariamente, se constitui na crença indiscutível de que tudo que é tem uma razão para ser. Quando aprisionados ao conhecimento explícito, trabalhamos com a maior parte do que escutamos em nosso fazer, ora interpretando por comparação com o quadro referencial de nossa escolha, levando-nos a pôr ordem nas coisas e buscando causas subjacentes ao que nos é dito, ora descrevendo padrões de comportamento e fazendo prognóstico e previsões. É isto que ensina a ciência moderna. Estas reflexões conduzem-me a uma pro-vocação que diz respeito à minha formação na psicanálise, à qual muitas vezes me vejo ainda agarrada, trazendo-me incômodos e desalojamentos que buscam uma re-criação diante da perplexidade da infidelidade à teoria até então abraçada. Loparic (1994) afirma, no prefácio do livro Escutar, Recordar, Dizer, de L. C. Figueiredo, que a teoria psicanalítica trata o existir como mera presentidade, como fenômeno natural gerado por um jogo de forças psíquicas que obedecem ao principio de causalidade. Os processos psíquicos são tratados como explicitáveis e explicáveis por 86 meio de categorias próprias à consciência racional. Segundo o autor, não se trata de uma crítica aos fundamentos da psicanálise, o que se visa, não é a superação, mas a desconstrução, o que não significa desmontar a sua fenomenologia. Significa remeter seus ingredientes metafísicos à origem não metafísica, ou seja, possibilitar que a psicanálise seja repensada sem considerar o ser do homem como mera presentidade, mero jogo de forças de acordo com o princípio de causalidade. A capacidade de criar algo novo aparece sempre como uma “inquietude”. Era mais cômodo e confortável quando eu também me amparava na vida contemplativa da teoria; porém a necessidade de uma desconstrução urge em minhas experiências. Toda criação, diz Augras (1986), requer uma destruição, porém esse novo mundo permaneceria inalcançável em sua novidade, se não contivesse uma mensagem que pudesse ser decifrada pelo espectador. A obra desperta no espectador um significado que está dentro dele próprio, porque a transformação do mundo que ela vem propor é, em última análise, a transmutação do próprio espectador. Quem se arrisca transformar-se? Todas essas questões, bastante complexas, apontam na prática do cotidiano, que no fazer da clínica e da supervisão necessário se faz, segundo Figueiredo (1996), reconhecer a contribuição decisiva de Polanyi na formulação do conceito de conhecimento tácito ou pessoal em oposição ao que chamou de conhecimento explícito, conforme já mencionei. 87 O conhecimento tácito é incorporado às capacidades afetivas, cognitivas, motoras e verbais (de natureza pré-reflexiva), é o modo como o supervisionando é afetado. O conhecimento explícito se torna disponível na forma de sistemas de representação, como é o caso de uma teoria. Para o autor, é necessário levar a sério a idéia de que a experiência incorporada, o conhecimento tácito e pessoal entranhado no corpo, não é totalmente transparente e convertível em teoria. Como pesquisadora, acredito que é necessário, para a formação do aluno e compreensão do fenômeno clínico, ouvi-lo na organização da experiência que traz em seu bojo: o espaço do encontro com o inesperado, da investigação, do pensamento. Resgato Figueiredo (2000, p.29), quando afirma que “podemos reconhecer na exigência de um olhar de reserva o que se cria em uma boa experiência de supervisão”. Assim o supervisor, na sua “presença reservada”, sustenta, acolhe a condição de emergência de vida psíquica de seu supervisionando, mantendo o seu ouvido reservado para o inaudível, sua atenção reservada para o inesperado, sua mente reservada para o devaneio, sua fala reservada para o acontecimental. 4 4 A no ção da fala co mo acon tecime n to fo i d esenvo lv ida po r Figueir edo (1994) q u an d o e s ta é a f a l a q u e a co n te c e a o f a l an t e e o co loc a à e s cu ta , a q u e n o me i a o e n ig ma e o c o loc a à j u sta d i s tân cia , à d is t ânc i a j u s ta p ar a s er a lg o . A p a lav r a r e inan te acon tece ao f a lan te, abrindo par a ele tan to co mo para o ouvin te o hor izon te da v isib ilid ad e em qu e o s f enô me no s se mo stram co mo sendo isto ou a q u i lo. Ma s e l a me s mo s o a co mo est r an h a ; é d es t a p a lav r a i n d isp o n ív el e p o r is so lib er ta d as tarefas d a represen ta ção, co mu n icação e expressão qu e se pode fazer u ma e x p e r iê n c i a. A r ig o r , d ian t e d es t a p alavra ou tr a, só o lug ar d a e s cu ta e s tá d eso cupado , po is o do f a lan te é ocupado pela f a la ela mesma. Nesta me d id a, o a con te cer da f a la acon te c ime n ta l é u m mo me nto n e ce ss ar ia me n te fenome n o lóg ico d a análise, an ter io r e d istin to de qualquer mov ime n to in terpr e ta tivo . 88 A escuta, como tenho aprendido em minhas experiências, é escuta da fala como acolhimento, a fala é resposta a algo que solicita. Algo que, segundo Figueiredo (1994), ainda não é nada além de suspeita, inquietações e exigências de tradução. É deixar-me afetar e me transformar, fazendo da experiência um encontro com o outro na sua alteridade, é deixar-me atravessar por esta fala, acolhê-la na sua estranheza. Para Figueiredo (1994), o acontecimento é uma das vias do encontro, colocando-nos em contato com a questão da temporalidade e da historicidade existenciais. A fala como acontecimento é um dispositivo presença, acontecimental termo que, que segundo resgata o autor a transpassibilidade Maldiney, se refere da à passibilidade, ao inesperado, ao surpreendente, ao impossível, ao inacreditável e que, enquanto inantecipável, é a figura paradigmática da alteridade, tendo seu lugar instituído pela perda. Assim, o acontecimento é abertura que propicia outros acontecimentos e/ou outras configurações. De acordo com Figueiredo (2000), é Thomas Ogden quem na atualidade parece ter-se aproximado de uma elaboração abrangente das questões da ética e da técnica. A técnica, ao invés de se sustentar em um código, se sustenta na manutenção de uma posição, de um lugar, se sustenta em uma ética. Ele vai nos falar do que denomina de “terceiro analítico”, de um lado, fonte comum e transubjetiva de experiências sensoriais, afetivas e intelectuais dos dois participantes; de outro, o objeto de um confronto, algo a ser desconstruído. Esta dialética de 89 estar com e simultaneamente, deixar-se fazer separar-se dele pelo e outro, do mas, campo sucessiva e transubjetivo, é garantida pela posição de isolamento pessoal, espaço de experiências incomunicáveis que jamais encontrarão registros intersubjetivos, mas que alimenta o psiquismo. Não será isto que ocorre no processo de supervisão? Será que é nesta reserva de si que o supervisionando se fará terapeuta, nutrindose no campo “transubjetivo”? Conforme Figueiredo (2003, p. 40): para além da clínica psicanalítica e sua ética, descortina-se uma nova militância cultural dedicada a criar territórios existenciais mais ricos, mais diversificados e menos desautorizadores, mais aptos ao acolhimento dos corpos, dos afetos e das linguagens em toda sua multiplicidade indisciplinada. Neste percurso, já consegui delinear o que é supervisão e o que aí se faz? É importante, ainda, pensarmos nos “cuidados” com estilo pessoal de cada supervisionando, na possibilidade de revelação do ser terapeuta de cada um, na reflexão do aluno estagiário frente à sua prática, no apoio que o supervisionando espera. Como diz Morato (1995, p. 2), oferecer: Uma situação contextualizada para que um profissional resgate sua própria condição de indivíduo com dúvidas e estranhamentos em seu contato profissional de ajuda a indivíduos para que, a partir de seus próprios questionamentos e dificuldades, possa apresentar-se mais propriamente receptivo e disponível em sua atuação de ajuda para encaminhar o cliente e redimensionar-se em sua vida. Pensar na clínica ou na supervisão é pensar no contato inusitado com as estranhezas. Para Serres (1993), não há aprendizado sem 90 exposição, às vezes, perigosa ao outro: nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar, eu me exponho ao outro, às estranhezas e com isto me faço outro. Ainda pensar na clínica ou na supervisão é pensar no que diz respeito à “pré-ocupação” 5 . Terapeuta e supervisor exercem o “préocupar-se” quando participam do acontecer daquela pessoa. Participar do acontecer é cuidar, entregando-se o estar-aí às possibilidades de liberdade de escolha por parte daquele que clama pelo seu ser-maispróprio. Cuidar, portanto, constitui-se no exercício da “pre-ocupação” com o acontecer. Terapeuta e supervisor prosseguem no cuidado com a pessoa na abertura de caminhos, estabelecendo um movimento como acontecer, como ec-sistir. Supervisão é um espaço privilegiado e compartilhado na reconstrução e compreensão do encontro, onde novos sentidos são gerados, possibilitando mudanças de olhar, de um olhar que indaga e descobre. Espera-se que o supervisionando suporte permanecer no campo da dúvida, para que seja possível a descoberta do novo, havendo uma constante movimento de apropriação de si próprio. O saber decorrente dessa experiência caracteriza-se por ser inacabado e incerto. Segundo Augras (1986), a fala enuncia o encontro. Na medida em que 5 o indivíduo se expressa, a sua intencionalidade é sempre Segundo Feijoo (2000, p.79) na pr eo cupação pod em- se d estacar d if eren tes po ssib ilid ades: a preocupa ção substitu tiva ou substitu ição dom inado ra qu ando se substitu i o cu id ado co m o ou tro e ocup a- se d esse ou tro e a p reo cupação de an teposição ou an teposição lib ertado ra, a pr e- sen ç a enquan to cu id ado, ma n témse n a cura, vo lta-se para a ex istên c ia do ou tro e n ão dela se ocupa, por tan to, c u ida . 91 comunicativa, porque a expressão implica a compreensão da coexistência. A função da mediação entre o eu e o outro articula a compreensão deste mundo revelada na interação. Porém, lembra a autora que a linguagem pode ser também obscurecimento, falatório, palavrório, a possibilidade de tudo descrever sem nada alcançar. Para Figueiredo (2003, p.36), a idéia do fazer sentido é o mesmo que “dar passagem”, ou seja: “que os afetos passem às linguagens, que as linguagens passem aos corpos, que os corpos passem aos afetos, que cada um dê passagem aos demais, e assim por diante”. Os sentidos são sempre produzidos, um acontecimento produz uma infinidade de sentidos; assim, a existência se situa na abertura do que ainda não é, na abertura do sonhar, sonhar que pode vir-a-ser. Como diz Pompéia (2004, p. 28): a peculiaridade da terra fértil é sua abertura para acolher a semente que cai sobre ela. Esse solo recolhe a semente para que o grão venha a ser, pois uma semente é sempre um poder ser, uma promessa daquilo que ainda não é, mas que poderá ser e chegará a ser quando encontrar a terra fértil. Não será aquilo que a terra possa querer que ela seja, mas aquilo que ela mesma, semente, já traz como poder-ser. Pacientes e supervisionandos são como sementes que, quando lançados na direção de um trabalho cuidadoso, de um terapeuta ou de supervisor “suficientemente bom”, começam a formar raízes e crescer, produzindo sentidos, compartilhando seus sonhos e dando a eles grandes dimensões. Compartilhar sonhos, crenças, desejos, tudo aquilo que aponta para o futuro, tudo aquilo que aponta para um desabrochar, a presença 92 do outro ajuda a sustentar, a abarcar e a conter as dores e as alegrias das buscas e dos mistérios. Em contrapartida, quero refletir sobre o indizível. Segundo Figueiredo (1999), o indizível são experiências que nos desorganizam e cortam a palavra. O pavoroso, o angustiante, o assustador, mas também, o exultante, o maravilhoso e o sublime são diversos nomes para sugerir o indizível. O indizível nos lança nas trevas de uma solidão incomunicável, portanto, ele não deveria jamais ser concebido, mas apenas experimentado. Acrescenta o autor que “experimentar” já supõe certa organização, certo sentido, certa lógica; o indizível não poderia nada ser senão o limite de toda experiência, o limite de todo sentido, o limite de toda lógica. A vivência do indizível é, assim, apenas a da resistência de algo que não se deixa capturar pelas redes consensuais da linguagem, de algo que desfaz a esperança de consenso ou, como salienta Barros (1981, p.100): ... é preciso recolhimento. É preciso penumbra. É preciso sugestão. Se se permanece no inteiramente claro, não se pode insinuar; A luz fecunda o que vem do escuro. Tudo vem das trevas. Em minha dissertação de mestrado, a cada encontro com o grupo de supervisão em estudo, estive debruçada na análise e reflexão da afetação em mim suscitada em cada experiência de supervisão. A abertura às minhas algumas experiências. inquietudes possibilitava ressignificações de 93 Conforme Fedida (2001), a relação supervisor-supervisionando é uma relação de igualdade, uma relação horizontal. Para o autor numa relação de supervisão, assim como em toda e qualquer relação humana, devemos sempre nos perguntar: Será que eu vou poder me renovar com esta pessoa? Figueiredo (2003, p.128) nos fala de uma postura, de “um deixarse colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata”. O autor afirma que isto implica numa disponibilidade de “deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmensurado e mesmo de incomensurável, não só desconhecido, como incompreensível”. Essa postura primordial, da ordem do invisível, é elemento importantíssimo na constituição do psiquismo, é uma das condições para que algo possa vir-a-ser, é condição do existir. É necessário que o supervisor tenha esta disponibilidade para ajudar que aconteçam raízes de todos os processos de singularização e permitindo-se afetar pela alegria das descobertas e sem pressa de afastar o sofrimento, podendo permanecer junto com o supervisionando o tempo necessário para abarcá-lo. Pompéia (2004, p.66), citando Heidegger em seu texto “O Caminho do Campo”, tem uma imagem bonita que nos ajuda a compreender esta experiência: ... o grande carvalho, que se encontra lá no caminho, precisa mergulhar profundamente suas raízes na terra escura. É na obscuridade da terra que ele vai buscar a força que o manterá vivo, que lhe dará condição de expandir sua copa em direção à imensidão do céu. 94 Trabalho árduo, mas também de exuberância e leveza é a supervisão, onde há sempre alguma coisa que recomeça, onde as raízes penetram na terra de modo profundo, silencioso e lento. Como nos lembra Safra (2004, p.24), é partindo da “solidão essencial” que ... o ser humano entra no mundo na condição de exilado surpreendido, acolhido no abraço e no olhar de alguém para que um lugar se estabeleça e um iniciar-se pessoa acontecer... O supervisionando está lá, precisa ser acolhido, esse é o lugar que se constitui horizonte na sua existência. É preciso encontrar o outro, mas não podemos nos esquecer de que é fundamental o retorno à solidão, é preciso chegar e ir-se, alcançar e recolher. Conforme Safra (2004, p. 28-34), o percurso do indivíduo por meio das condições necessárias ao acontecer humano permite-lhe apropriar-se de uma ética, a ética do ser. A supervisão, assim como a clínica, ambas são essencialmente éticas, pois se caracterizam pelo cuidado que estabelece as condições necessárias ao acontecer humano a partir daquilo que é o ontológico no ser humano. É como se referencia o autor: É uma clínica que exige que o profissional possa estar situado no registro ético-ontológico, a fim de que possa ouvir a dor de seu paciente no registro de seu aparecimento. 6 Esta reflexão me conduz mais uma vez àquilo que Figueiredo (1994) chama de fala como um dispositivo acontecimental. Como já 6 o con c eito d e so lid ão ex is ten c ia l as s in a la qu e h á e m c ad a s er hu ma no u m c e rne q u e j a ma i s c h eg a à comu n i c aç ão , s en d o a sol id ão o p o n to d e p a r t ida d o acon t e ce r hu ma no. (Safr a, 2004) . 95 foi dito, esta é a fala que acontece ao falante e o coloca à escuta, a que nomeia o enigma e o coloca à justa distância, à distância justa para ser algo. A fala que responde ao acontecimento terá função fenomenalizadora de dar-ao-que-força-a-passagem vindo ao encontro da verdade como aletheia, instaurando um jogo de desvelamento e ocultação. A linguagem do diálogo entre supervisor e supervisionando é como a linguagem do diálogo entre terapeuta e paciente. Tem uma via cuja compreensão é traduzida pela palavra grega poiesis, que como nos ensina Pompéia (2004, p. 158-161) significa não só poesia, como também criação ou produção. Poiesis é como um levar a luz, é trazer algo para a desocultação. (...) Quando me expresso poeticamente o outro não é obrigado a concordar comigo. (...) Nesta forma de linguagem quem fala é a emoção, não há necessidade de argumentação mediada pela razão. A clínica e supervisão estão voltadas à pro-cura da verdade como aletheia da qual podemos nos aproximar por via poética, pois o esquecido pode ser o recordado. O autor lembra que recordar vem do radical latino cor-cordis, que significa coração. Então, recordar é colocar o coração de novo, aletheia, verdade – não meramente o não- esquecido, mas aquilo em que se pode pôr de novo o coração. Tanto na clínica como na supervisão, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, a narrativa traz o recordado, traz a possibilidade, através da linguagem poética, de podermos re-encontrar a verdade. 96 Ás vezes, tanto o paciente quanto o supervisionando perdem o sentido da verdade que liberta e encontram na clínica e na supervisão, pela via da poiesis, uma forma de re-encontrá-lo. Penso que esta fala que faz acontecer efetivamente faz história. Para Queiroz (1991), o relato oral constitui a maior fonte humana de difusão do saber e, em todas as épocas, a educação humana se baseara na narrativa, que encerra uma primeira transposição: a da experiência indizível que se procura traduzir em vocábulos, pois a palavra parece ter sido, senão a primeira, pelo menos uma das mais antigas técnicas de transmissão do saber. Hoje, quase nada do que acontece está a serviço da narrativa e quase tudo está a serviço da informação. Uma fenda na estrutura de um saber que deve se reconhecer como incompleto é condição de possibilidade e convite à criação. A escuta e a fala abrem um lugar possível de enunciação para o sujeito, um lugar de criação e transmissão de uma experiência. Nesse sentido, a narrativa não é instrumento para comunicar informações nem um mero relato de fatos. O que ela oferece é um nomear, por meio da palavra, o inominado e proporcionar um movimento que se abre para novas figurações, pontuada por estranhezas e silêncios, condição de toda fala e de toda escuta. Cardoso (1997, p. 169), em seu texto A Narrativa Silenciada, conta sobre os pichis (colônia de sobreviventes nas Malvinas) os quais se organizavam em torno de uma única missão social: a sobrevivência. 97 Os pichis carecem ab solutamente de futuro, caminham para a morte e, por isso mesmo, só podem raciocinar em termos de sobrevivência (...) seu tempo é puro presente; e sem temp oralidade, não há configuração do passado, compreensão do presente, nem projeto... Os pichis sofrem os efeitos do que lhes acontece, mas não percebem a origem daquilo que lhes acontece. Assim não há lugar para a narrativa de uma história, o que há é a impossibilidade de narrar a própria história. Passo, então, a me perguntar se os supervisionandos, ao contarem suas histórias, se permitem ser reconhecidos em toda parte e dar aos eventos passados a forma da reconciliação com o que foi vivido. O supervisionando narra ao supervisor o que apreendeu e sobretudo o que elaborou de seu encontro clínico. O supervisor escuta o que vai além das palavras, o que surge de estranho no discurso, nos seus tropeços e nos seus silêncios, abrindo possibilidades para que o supervisionando se desfaça de representações definitivas e ouse afirmarse na incerteza. Benjamin (1936) mostra que as narrativas estão em baixa, porque estão em baixa as ações da experiência. Segundo ele, a arte de narrar foi diluída pelo advento capitalista e pelo surgimento dos novos meios de comunicação, que trouxeram como conseqüência uma diminuição da disponibilidade de escuta do homem. Em suas reflexões sobre a Primeira Guerra Mundial, mostra que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha, mais pobres em experiência comunicável, apontando para a perda da importância da palavra, como dimensão simbólica e, conseqüentemente para o indivíduo, que perde a sua própria história, porque cada vez menos é capaz de narrá-la. 98 A reflexão de Benjamin sobre a Guerra e o fim da possibilidade da narrativa é um dos núcleos expressivos do que seria uma reflexão mais abrangente sobre a cultura contemporânea, na qual o que experimentamos é uma miséria simbólica com a prevalência de uma linguagem cada vez mais instrumental. No fluxo narrativo, o sujeito não fala de si para garantir a permanência de sua identidade, mas, ao contar sua história, se desfaz de representações definitivas e tem a ousadia de afirmar-se na incerteza. Segundo Benjamin (1985, p.205), Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua experiência, e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camad as muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso desaparece o dom de ouvir e desaparece a co munidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo... ela se perde porque ninguém mais fia ou tece, enquanto ouve a história... Benjamin (1985) a chama de “forma artesanal de comunicação”, ela é tecida e trançada lentamente, pois ninguém se torna capaz de transmitir experiências sem antes adquiri-las e incorporá-las à sua própria vida. Aquele que fala e que aceita falar para um outro encontra, pouco a pouco, as vias que farão de sua própria fala a resposta à sua fala; por isto, a tarefa do narrador é reativar no presente as marcas, às 99 vezes imperceptíveis do passado. A possibilidade de falar a própria história significa ainda a possibilidade que o sujeito tem de reconhecer-se ou estranhar-se dentro dela. Para Goolishian e Anderson (1994), o self não é uma representação, mas uma expressão cambiante de nossa narração, uma maneira de contar a própria individualidade. Ele muda continuamente e não está limitado ou fixado a um lugar geográfico ou a um momento no tempo. O self é uma expressão, um ser e um devir através da linguagem e da narração. Para os autores, isto faz com que a natureza do self e de nossas subjetividades se convertam em fenômenos intersubjetivos: o produto de narrarmos histórias uns aos outros e a nós mesmos acerca de nós, e as que os outros narram para nós e sobre nós. Assim, a clínica e a supervisão são conversações terapêuticas que remetem a uma busca recíproca de compreensão e exploração, através do diálogo, as quais implicam num processo de “estar ali juntos”, pois tanto o cliente fala para o terapeuta quanto o supervisionando fala para o supervisor. Falam um com o outro, não ao outro, dando abertura a novos significados, a novas narrações, a novas realidades. Lembro aqui que a perda da capacidade da conversação e da narração é a impossibilidade de partilhar uma experiência. Segundo Augras (1986), o mundo humano é essencialmente mundo da coexistência, o conhecimento do outro, pois supõe a compreensão ontológica da existência como ser da coexistência. A compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência e, ao mesmo tempo, constitui-se como ponto de partida para a 100 compreensão do outro. Coexistência é também co-estranheza. O outro se apresenta como que fornecendo um “modelo” para a construção da imagem de um si mesmo. Contudo, por ser outro, ele possibilita revelar que a imagem de si comporta, também, uma parte de si mesmo como alteridade. Por essa compreensão, me indago: Como compreender outros, sem neles incluir-me e sem que eles não se façam incluídos em mim? Abrigar a multiplicidade do ser idêntico a si mesmo e outro diferente de si torna-se, para mim, uma questão central na minha investigação. Afinal, o modo da coexistência como condição da humanidade do homem interpõe-se ao modo de conhecer atravessado por minha própria multiplicidade, ou seja, pelos diversos aspectos com que o outro pode revestir-se dentro de mim. Na experiência imediata, a descoberta que fazemos da alteridade, apóia-se no encontro com o espelho. O espelho é a porta para a visão do outro mundo. Quero olhar-me no espelho? Que medo me dá! Parece-me ser necessário um certo traquejo para encarar a suposta malignidade do mundo do espelho, como em “O Retrato de Dorian Gray”. Como afirma Bacchi (2000), ao olharmos no espelho, podemos não reconhecer a própria imagem, permitindo nos vermos como que diante de um enigma. O espelho reflete a imagem que, sendo imagem, não é si mesmo. No entanto, é também si mesmo, pois é o reflexo, a imagem refletida do rosto que se coloca à sua frente. 101 Ao brincar de me olhar no espelho, às vezes me assusto, mas, às vezes, me reconheço. Vejo a mim e a tantos outros, ao mesmo tempo em que ele me afirma uma realidade que é minha, que é concreta, como um objeto simultaneamente entre à os minha demais que percepção. aparecem no espelho; Se um reflexo há contrapropondo-me a existência de um duplo imaterial, idêntico e, contudo, inverso, pareço ver um outro mundo constituído de tantos outros semelhantes e simultaneamente tão diferentes de mim. Segundo supervisionando, Fedida há um (1988, p.65), movimento na relação histórico, um supervisãomomento de historização de si, que o autor compara com o momento na análise pessoal, em que a historização de si se inicia com o que poderíamos chamar de constituição do métier, ou seja, o momento em que alguém se dirige a outro para iniciar sua primeira supervisão como exigência de sua formação (como se houvesse uma constituição histórica da clínica analítica naquele que está em análise). Esclarece-nos , ainda, que isto significa que dois analistas (supervisor-supervisionando) falam juntos,“a palavra de um sempre produz efeitos sobre o outro: uma comunidade analítica é isso”. Deixa claro que o supervisor deve simplesmente ajudar o supervisionando a encontrar seu próprio estilo, buscando-o na historização de si mesmo, através de seus questionamentos pessoais, do resgate de sua condição de sujeito que sofre, que tem dúvidas e estranhamentos no seu acontecer profissional. 102 Na busca por um método para entender o que se passa na relação supervisor-supervisionando, me questionei: Onde narrativa e supervisão se entrecruzam? A narrativa nos revela que os fatores experienciais não podem ser ignorados, pois eles conduzem ao significado, conduzem a si próprio, conduzem a um si próprio vivido com o outro. Augras (1986) afirma que a porta de entrada para a realidade da vivência primordial, realidade em si inalcançável, é a significação, o sentido - o meu e o seu - quando se torna, irrevogavelmente, um só no ato da compreensão. A partir deste questionamento, tomo uma afirmativa de Morato (1999, 434), para quem supervisionandos narradores contam suas experiências ao supervisor ouvinte e permitem que este se conduza ao re-encontro de sua atenção. Revelam-lhe sua habilidade de ver e ouvir apoiado na referência direta de sua própria experiência – seu próprio fazer, seu próprio instrumental. Para a autora (1989), supervisão não é lugar para aprender uma forma de trabalhar, ou uma forma de interpretar, ela é o espaço de criação de novas possibilidades de pensar, é o espaço onde se aprende o que já faz parte de nós mesmos. É travessia turbulenta, provocada pelo paradoxo da fala que ora é repetição e ora é possibilidade de criação. Figueiredo (1994) mostra que um acontecimento é, de início, uma ruptura na trama das representações e das rotinas; é a transição para novo sistema representacional; destroça mundo e funda mundo, portanto há dois momentos em cada acontecimento: uma quebra de 103 sentido (com a conversão do homem em signo vazio de sentido) e a reemergência de sentido (que reconstitui passado e descortina um novo futuro). Nesta medida cada acontecimento é em si mesmo um só depois de outros acontecimentos que, por ele, são ressignificados; pela mesma razão. Cada acontecimento servirá de apoio para acontecimentos futuros que lhe “descobrirão novos sentidos”. É neste espaço entre que nos deparamos a cada momento com o hibridismo, com a mestiçagem de que somos feitos. Neste encontro, cabe ao professor-supervisor gerar condições para constituição da subjetividade profissional. Para Cupertino (1995, p. 257), este é um campo para experiência, lugar para aprendizado do múltiplo, do outro, do diferente, um aprendizado da possibilidade de construção de modos válidos de conhecer . A prática de supervisão impõe-se como elemento facilitador do processo de compreensão dos fenômenos da intersubjetividade e transubjetividade. Schmidt (1999, p. 111) descreve subjetividade como um certo tipo de aprendizagem uma aprendizagem ‘simples’ da ordem dos sentimentos que não se adapta aos símbolos verbais, uma apropriação baseada na experiência e não em símbolos, uma aprendizagem que é autodescoberta e que não pode ser ensinada. Esta reflexão nos conduz a Morato e Schmidt (1999, p.117-118), quando afirmam que o fenômeno da aprendizagem significativa tem se mostrado central para a compreensão das dimensões 104 cognitivo-afetivas constitutivas do processo de ensinoaprendizagem. As autoras lembram que foi Rogers (1978) quem forneceu as bases para experiências inaugurais neste campo. Apoiadas em autores como Benjamin, Figueiredo e Wechsler, afirmam que na aprendizagem significativa as noções de intersubjetividade, experiência e criatividade permitem articular seus modos próprios de transmissão, elaboração e avaliação do saber (...) designa o processo de constituição e apropriação de um saber-fazer/saberdizer co-respondendo desta forma, à experiência... Ou ainda, como assinala Morato (1999, p. 432), “atribuindo sentido ao vivido, a aprendizagem significativa possibilita a compreensão do processo de aprendizagem na experiência humana”. Esta é a tessitura da supervisão: o acolhimento de acontecimentos que possibilitam ressignificações. Andrade (1996) conclui, em sua tese de doutorado, que dos quatro professores–supervisores por ela acompanhados, três se mostraram particularmente sensíveis ou preocupados em acolher uma produção do reducionistas. aluno Esses sem capturá-lo professores em trabalham explicações com a teóricas produção de diferença no encontro; diferença esta não nomeável, mas passível de ser “escutada” ou acolhida através daquilo que está afetando o aluno e produzindo outros modos de ser e sentir. Esse processo me leva a questionar minha prática enquanto supervisora identificada, algumas vezes, como porta-voz de certos autores, não possibilitando aos meus alunos o processo de apropriação de si próprios. 105 Em minha dissertação de mestrado, mostrei que o supervisor se assemelha ao mestre Zen: abre para o supervisionando um campo de possibilidades, fazendo-o, ao mesmo tempo, entender que tanto a escolha do caminho quanto o processo para vivenciá-lo, será sempre uma vivência solitária. Longe de assemelhar-se a um professor, cuja preocupação é de fornecer conteúdos e/ou teorias, o supervisor, em analogia ao mestre Zen, é aquele que conduz o supervisionando a se despojar de todas as fórmulas, a fim de que possa constatar que cada paciente será sempre uma surpresa que exige saber esperar e que possibilita sonhar e poetar. Como já citei em outra parte, Montrelay (1985) afirma, referindo-se a um mestre em Bali que guia a aprendizagem de um jovem bailarino colocando-se atrás deste, e mostrando que ele lhe passa a arte de dançar, na condição de que o aluno dance por si. Ao dar corpo à questão da clínica, supervisão e narrativa, fui me dando conta que também corporificava o meu ofício de pesquisadora, pois ao contar e re-contar histórias imprimi minha marca através de meu olhar e do meu tecer sentido. Enquanto uma artesã, ao tecer sentido, fui deparando com questionamentos, inquietações, desalojamentos que me possibilitaram criar um caminho para dar conta da minha questão. O próximo capítulo mostrará este caminho. 106 Criar não é mais chorar o que perdeu, o que não se pode recuperar, mas substituí-lo por uma obra tal que, ao construí-la, se reconstrói a si próprio. Anzieu, D., 1989, p. 23 110 A partir de tantos reflexos advindos do espelhamento, comecei a “colheita dos meus dados”. “Colheita” que significa “recolher”. “Recolher” diz de atos envolvidos nessa ação: reunir, colher, colocar ao abrigo, debruçar-me sobre eles, envolver-me e misturar-me com eles. Ou ainda, como afirma Cupertino (1995), colheita pode ser empreendida pelo verbo legere (dizer, falar), palavra alemã legen, homônima de legere, traduzível como: reunir, recolher e “estender diante de si”. Para a autora, colher e estender são uma mesma coisa, sem que este estender seja um “deixar estendido”, no sentido de “deixar ir” ilimitadamente. É um estender diante de si que conserva a coisa estendida para o desvelamento do recolhido. Nesse sentido, segundo Cabral e Morato (2003, p.158) Um trabalho de pesquisa, dessa maneira compreendido, é necessariamente autoral. Ele é tecido a partir da experiência do pesquisador, cujo cenário é a condição de ser-no-mundo-com-os-outros. Todo trabalho de pesquisa, desde o polimento da questão, definição de objetivos, passando pela pesquisa bibliográfica, elaboração da metodologia, trabalho de campo, análise, até a escrita final do que vai sendo desvelado, é uma experiência propriamente dita. Dito de outro modo, esta é uma man eira fenomenológica possível de compreender e realizar pesquisa. Por outro lado, referindo-se à pesquisa qualitativa, Gomes (1998, p. 32) afirma que O pesquisador transforma-se assim num sujeito participante e envolvido na situação que deseja conhecer e investigar, sendo simultaneamente sujeito e objeto (consciência reflexa sobre si mesma). Sua não neutralidade passa a ser valorizada como um meio instrumental de aquisição de informações tácitas de extrema importância para o conhecimento sensível e refinado do problema. O método implica em constantes 111 reformulações à medida em que o pesquisador amplia o seu entendimento da situação em foco. Nessa direção, como assinala Queiroz (1991), o pesquisador é guiado por seu próprio interesse ao procurar um narrador, pois quer conhecer, esclarecer algo que o preocupa. O narrador, por sua vez, quer transmitir sua experiência com detalhes, o que pode convir ou não ao pesquisador. Assim, tentará trazer o narrador ao bom caminho, isto é, ao assunto que ele, pesquisador, estuda. Pedir a narradores que falem das suas experiências de supervisão seria solicitar um relato de algo que experimentou, pois, segundo Queiroz (1991), o colóquio pode ser dirigido diretamente pelo pesquisador e da vida de seu informante só lhe interessam os acontecimentos que venham se inserir diretamente no trabalho. Assim, a autora afirma que, ao utilizar o relato, o pesquisador fará de acordo com suas preocupações e não com as intenções do narrador, ficando, em segundo plano, o propósito do narrador. Entretanto, se a narrativa para Benjamin (1985) se apresenta como situação para a elaboração de experiência, tanto para o narrador quanto para o ouvinte, pode-se pensar que o narrador imprime seu propósito no depoimento que oferece ao pesquisador. Mesmo que não explicitado nem captado pelo pesquisador por ele desinteressado, propósitos estão sendo comunicados durante a entrevista e demandam escuta e interpretação por parte do ouvinte. 112 É por essa compreensão que a pesquisa e a clínica podem se aproximar. Nessa direção, Cabral e Morato (2003, p.174) compreendem o método da pesquisa como um modo de pensar para encontrar uma franja do real e não um modo de pensar por raciocínio, cálculo, ou categorização de conteúdo, para achar o real em si. Se a “colheita” demanda cuidado e atenção ao que ocorre entre pesquisado e pesquisador, narrador e ouvinte, respectivamente, a comunicação dos depoimentos recolhidos conduz-se por essa mesma direção. Afinal, é a partir do depoimento textualizado que o pesquisador orientará a compreensão do recolhido para comunicá-la como interpretação. 113 se produz enquanto dela também participo, como diz Meihy (1996, p. 28) o entrevistador, por um lado, deixa de ser aquele que olha para o entrevistado contemplando-o com um mero objeto de pesquisa, por outro ângulo, ele próprio deixa de ser um observador da experiência alheia e se compromete com o trabalho de maneira mais sensível e compartilhada. Para Meihy (1991), a textualização é um estágio mais graduado na feitura de um texto de história oral. Esclarece o autor que o fazer do novo texto permite que se pense a entrevista como algo ficcional, aceitando-se, sem constrangimento, esta condição no lugar de uma cientificidade que seria ainda mais postiça. A isto, Queiroz (1991) ainda acrescenta que esse texto precisaria ser decomposto: fragmentálo, separar os componentes e recortá-los, a fim de utilizar somente o que é compatível com a síntese que se busca, como uma análise possível. À medida que fui refletindo sobre a coisa estendida, ou seja, como colher, recolher e interpretar o recolhido, passei a viver situações desalojadoras, sentindo-me enredada numa trama que me desequilibrava e desestabilizava, remetendo-me a composições diversas, ora me encontrando, ora me escondendo, ora me revelando. Nestas composições diversas, encontrei não só a tensão entre o conhecimento tácito e o explícito, podendo compreender este interjogo através das experiências narradas entre supervisores e supervisionandos, como também fui construindo uma forma de olhar, 114 de tentar compreender aquilo que a mim se apresentava de forma tão enigmática. Foi pela perspectiva do modo fenomenológico de compreender e realizar pesquisa (Cupertino 1995; Cabral e Morato, 2003; Critelli, 1996), ou seja, fazendo e refletindo em ação, buscando sentido, após ter observado algumas supervisões, tomei meus depoentes como interlocutores, na tentativa de abertura para uma narrativa não silenciada. Nas entrevistas, esta foi a pergunta disparadora: “Pode me contar como tem sido as suas experiências de supervisão?” A preocupação era a presença do “entre” na experiência. Tendo como bússola a questão da intersubjetividade, questão que conduz à pergunta e à “colheita”, com gravador em punho, comecei diferentes a “colheita” abordagens de que depoimentos de supervisionam seis supervisores Estágio no Curso de de Formação de Psicólogo, e trinta e seis entrevistas dos respectivos supervisionandos, totalizando quarenta e duas entrevistas. Este foi o modo inicial para me aproximar e compreender como ocorre a relação entre supervisor e supervisionando. Após a “colheita” das narrativas e seguindo o método proposto por Meihy (1991), transcrevi para a grafia, fielmente, o que foi, não mudando nada. A seguir, cada depoimento foi lido e relido, procurando marcar as palavras-chave, lembrando que a função da palavra-chave é básica e fundamental por definir a musicalidade da entrevista e afiançar o tom pretendido pelo narrador. 115 Passei, então, à textualização que anula a voz “do entrevistador”, para dar à fala do narrador, cuja fala, se incorpora a esta como uma questão provocadora. Tomando por referência a textualização, reorganizei os discursos, obedecendo à estruturação requerida para um texto escrito, tornando as entrevistas compreensíveis e literariamente agradáveis. Em seguida, realizei uma cartografia 1 (Andrade; Morato. 2004, p.348) por entre todos os depoimentos para conhecer onde neles a questão inquietadora se impunha. Esse assinalamento permitiu que fosse feita uma escolha pelo pesquisador, por aqueles depoimentos que contemplavam a questão pela multiplicidade revelada. Desse modo, os relatos foram escolhidos a partir de um critério de exemplaridade: narrativa de depoimentos reveladores do mérito da questão. Tais depoimentos estão, na íntegra, nos Anexos A, B e C. Mesmo acreditando que este era um modo possível para compreender o que acontece na relação supervisor-supervisionando, muitas vezes me perguntei se fragmentar a experiência, como diz Queiroz (1991), não poderia ser uma mutilação do que foi solicitado ao narrador. Foi então que me apazigüei com a fala de Meihy (1991, p. 32), ao afirmar: o fluir do tempo tem garantido que o responsável pelo texto é quem o textualiza, isso como resultado da 1 Cf. Andr ad e; Mo rato, 2004, p.348 - Ca r tografar in clu i o aco mp anhame n to, em c a mp o, d as v ibr açõ e s /pu ls a çõe s, conf igur ad as n a pr áx is cotid iana . 116 elaboração do processo criativo em que deixa de funcionar como mediador. Assim sendo, o que fiz neste processo de transcrição e textualização de depoimentos, foi chegar ao melhor transcriar possível, transcriando-o como quem traduz. Compreende-se traduzir como quem conta uma história, recorrendo à narratividade para buscar compreender o que se passa no espaço entre supervisor e supervisionando. Sendo assim, penso que este fazer se constituiu numa pequena textualização de minha memória de supervisora. Continha ela mesma referências significativas quanto ao processo de supervisão, enquanto um lugar onde não há uma designação de uma forma de trabalhar ou de interpretar, mas sim como um lugar de espaço de criação de novas possibilidades de pensar e de ser, constituindo-se, assim, numa interpretação do que se presentificou através do meu passado como supervisora. Mas, ainda assim, permanecia um dilema: Como fazer uso dos depoimentos de modo que pudessem mostrar o fenômeno presente na minha questão — “entre”— a fim de que eu pudesse encaminhar uma interpretação do “entre” por sua mostração? Fui experienciando caminhos. No primeiro momento, tentei uma compreensão de algumas falas dos depoentes, interpretando-as isoladamente e, assim, o “entre” que era tão buscado não se revelava. Sentia-me no mundo da escrita pictográfica, cada personagem naquele 117 cenário se apresentava como algo a ser decifrado e me perguntava: Será que sou uma caçadora do inalcançável? No segundo momento, caí numa categorização onde a interlocução com meus depoentes se empobreceu, revelando que o meu modo de investigação e compreensão precisava ser outro. Aquilo que se apresentava solicitava-me atenção minuciosa e prolongada. Comecei então a percorrer todos os detalhes, precisei enfrentarl, a cada instante, escolhas, exclusões, hierarquia de preferências, sem deixar em conta o meu próprio eu. Afinal, de quem são os olhos que olham? Através deles, havia uma janela que se debruçava sobre o mundo e afinal eu era também parte daquele mundo. Assim eu era a própria janela através da qual o mundo contemplava o mundo. Então não bastava observar a supervisão por fora. Foi quando girei o olhar em torno, à espera de uma transfiguração. Da superfície muda das coisas partiu um sinal, um chamado: uma coisa se destaca das outras com a intenção de significar algo. Quanto mais me perdia nos emaranhados de diferentes contextos de supervisão, mais eu me indagava sobre o meu modo de ser supervisora, e melhor compreendia de onde havia partido para a compreensão da supervisão do outro. Passei então a reconstituir as etapas de minhas viagens e, assim, aprendi a conhecer o porto de onde havia zarpado e os lugares familiares de meu início enquanto supervisora, tendo, naquele momento, a sensação que finalmente podia ver o que estava às minhas costas: a viagem só se dá no passado. Aquilo que eu procurava estava 118 diante de mim e mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que eu prosseguia em minha viagem, pois o passado do viajante muda de acordo com o itinerário. Aquele monte de recortes me entrava pelos olhos e ocupava todo o campo visual. Tirei-os fora do fluxo das imagens causais e fragmentáveis, concentrando tempo e espaço numa forma finita, como se a surpresa da visão e da minha compreensão fossem dois reflexos ligados entre si. Passei então a entrelaçar recortes de falas de meus depoentes e recortes de reflexões próprias mestiçadas, como tentativa de encontrar sentido e refletir algumas interpretações acerca de minha questão. Busquei contracenando com eles, encontrar a multiplicidade de todos nós e de nossos questionamentos, não para demonstrar uma verdade, mas sim para, através de tal compreensão, desvelar a constituição mestiça de modos de ser e de refletir, possíveis de se apresentarem numa situação de supervisão para formação do ser psicólogo: a fluidez de um fazer-se significativo. Essa tentativa permitiu-me realizar uma colagem, que começou a se oferecer como “colheita recolhida” para elaborar uma possível interpretação de minha questão: como se apresenta e qual o sentido do que acontece na relação “entre” supervisor e supervisionando. Desse modo, o que estava sendo buscado, passou a revelar brechas do real pelo próprio modo como eu, ouvinte/pesquisadora, me relacionei com o recolhido. Ou seja, aconteceu o desvelamento de minha interrogação “no” e “pelo” modo como me disponibilizei para 119 ser afetada e afetar o recolhido: o “entre” buscado manifestou-se por uma experiência mestiça em ação por três cenários “regiões” transitados. Cada um deles diz de elementos dispostos como pano de fundo pertinente à trama dramática que é a situação de supervisão, a partir da ótica do pesquisador, ao transitar por uma região determinada. Para que o leitor possa transitar por essa travessia, recorro a uma legenda para esse diálogo. Usarei A para as vinhetas do supervisionando depoente e S para as vinhetas do supervisor depoente. 120 CONTRACENANDO COM DIFERENTES CENÁRIOS Buscando o lugar, a clareira, a iluminação, por onde pudesse olhar, a partir de mim mesma, pelas observações realizadas nas três diferentes supervisões, bem como dos depoimentos colhidos, passei a contracenar com uma pluralidade de olhares nos três cenários dos três diferentes supervisores e seus respectivos supervisionandos; cenários esses que se apresentavam por um silêncio ruidosamente ouvido. Afinal, todo silêncio consiste na rede de rumores míudes que o envolvem. A. O CUIDADO COMO CONDIÇÃO Então... supervisão é, acolhimento... É você se sentir aceito... independente daquilo que foi feito... Porque... ser aceito... não quer dizer que o supervisor vai concordar com tudo que você fez... Mas te dá essa liberdade de se lembrar que o caminho é seu... que existem outras possibilidade... mas... a forma de fazer... vai ser sempre sua. (A3/S1) Supervisão é um momento de troca tanto do supervisor para gente como da gente para o supervisor... de aprendizagem... de acolhimento... acho que ali a gente vai se abrir... abrir nossos medos, nossas angústias... medo do que a gente está 121 trabalhando... de como a gente está trabalhando... é preciso que o supervisor acolha. (A4/S1) Na supervisão não só se traz os atendimentos mas o que ficou para o supervisionando... acho que tem que acontecer muito na relação... às vezes não é tanto o caso que nos interessa... mas assim, o que ficou...qual foi a sensação do terapeuta... no caso do estagiário... lá na situação... como é que a partir dessa situação... desse sentimento que ficou nele... ele pode trabalhar.(A2/S2) Acho que supervisão é um momento de acolhimento... Na semana anterior... eu não tinha atendido... Eu cheguei para a supervisora dizendo que eu estava mal... ela falou assim: “então... se dê um tempo!...”sempre acolhendo... nesse sentido... de tomar os cuidados com os nossos limites... A paciente... na semana que veio... parecia um trator!... E a supervisora foi tentando me ajudar... a dar uma respirada... Parece que a gente fala algumas coisas que estão num caminho legal... e a gente não percebe isso... Acho que deu para falar algumas coisas significativas para aquela mãe que atendi... Supervisão é um momento de cuidar da gente... Cuidado... assim... de você estar parando... escutando você mesma no atendimento... (A6/S2) Supervisão para mim diz respeito a um cuidado que todo supervisor deveria ter com seus supervisionandos. Estamos aprendendo... por isto sofremos... ficamos perdidos. É tão bom quando o supervisor entende isto! Quantas vezes chego à supervisão e estou cheia de problemas pessoais... familiares... financeiros... acabo ficando ensurdecida a tudo que vivi no estágio,... daí quando o supervisor pode me ouvir... com tudo isso que me fez sofrer... ou quando ele me olha com olhar de carinho... eu me sinto mais leve... só que isto não pode acontecer nesta supervisão... porque a professora X não entende essas coisas... não sei se ela não entende ou acha que na supervisão não é lugar para isso. (A4/S3) A supervisão, enquanto lugar de cuidado, foi apontada pela maioria dos entrevistados. Expressavam-na como um lugar onde o supervisionando precisa do gesto acolhedor do supervisor, orientado pela capacidade de compreender suas necessidades e acolher suas angústias, para que ele se ponha em devir. Isto me leva a encontrar a 123 necessariamente implica cuidar: cuidado como “pré-ocupação”, atenção e zelo com o acontecer do outro. Em sendo assim, S1 e S2 cuidaram de seus supervisionandos, abriram-se à condição própria de ser humano. A existência de outros (supervisionandos) afetava suas próprias existências. Disto sou testemunha! Durante as minhas observações desses dois supervisores, pude ver, ouvir e sentir o cuidado sendo concretizado, como lembra Boff (1999), ora por meio de um gesto, como um sorriso, uma carícia, ora por meio de palavras, ora por meio de um olhar. Os movimentos desses supervisores se deram a ver como acolhimento e preocupação para com os supervisionandos e tornando-me deles testemunha, podia perceber como que “um clima, no ar” sempre de muita emoção, manifestado, por vezes, por alegria e entusiasmo, por vezes, por tristeza e compaixão. Era como se o tão buscado “entre” fosse se revelando pela via do cuidar-se, sendo cuidado para cuidar. Para eles, a experiência de cuidar cuidando-se é condição do existir. Inclinam-se ao supervisionando, com atenção e dedicação pela escuta. Eis um ato clínico acontecendo na formação de clínicos. Quando os alunos vão para as instituições... creches... asilos... escolas... eles vão morrendo de medo... acho que inseguros por não terem nada para oferecer. As primeiras supervisões depois desses primeiros contatos, são sempre muito difíceis... daí tenho que acelerar a construção de um projeto de intervenção. Daí sim... eles parecem que ficam mais calmos... pois passam a saber o quê e como fazer... passam a ter uma resposta para dar àquela demanda.(S3) 124 Contudo, esse depoimento me conduz para outra direção. S3 revelou-se aprisionada. Supervisão, para ela, não se apresenta como espaço, mas como ponto especificamente delimitado para um único movimento. Mostra-se conduzida por uma supervisão como verdade enquanto veritas (conforme p.83), uma vez que compreende cuidado como que sustentado pelo oferecimento de intervenções: supervisor deve propiciar ao específica de atuar. supervisionando uma maneira corretamente Revelando como ela compreende ser coerente como constância de atuação no tempo, testemunhei, durante sua supervisão, que não se permitia acolher as angústias dos supervisionandos, preocupada que estava em oferecer a técnica como forma de apaziguar o não saber. Tenho tido algumas supervisões que têm me ajudado muito... e outras que me deixam muito solta... que não me orientam... que não dizem o que tenho que fazer. Gosto desta supervisão da professora X... porque ela é muito prática... eu sei o que ela quer que eu faça... ela me ensina como fazer. (A1/S3) Felizmente meu caminho com as supervisões em geral... tem me proporcionado muitas aprendizagens. Meus supervisores passam para mim a técnica. Esta supervisão por exemplo... me ajuda muito. Venho da creche cheia de dúvidas... são tantas coisas que não dão certo. Na supervisão aprendo como fazer intervenções para a próxima semana. A supervisora é muito boa... tem muita experiência e passa isso para gente. (A2/S3) No seu modo de fazer supervisão, como uma atuação, S3 afeta seus supervisionandos que devido à angústia de não saber o quê e como fazer, se agarram à técnica por ela oferecida, sentindo-se desta forma “cuidados”. Durante a trajetória para compreender o cuidado na relação supervisor-supervisionando, uma hierarquia de valores a mim se apresentava e, nesta, a coragem ocupou o primeiro lugar. Tudo que ali estava revelado podia ser traduzido em recordações que diziam respeito ao cuidado, ou descuido, que, até então, havia vivido eu 125 mesma com meus supervisionandos. Por isso, faz-se necessário conversar comigo mesma, interlocutando com os habitantes desses diferentes lugares, encontrados neste percurso. Entretanto confesso que meus pensamentos corriam por conta própria, no circuito de alternativas e de dúvidas que eu não conseguia desligar. Foi necessário um esforço, bastante diferente do habitual, para me concentrar na direção do que as falas, aqui ouvidas, me remetiam: Será que eu como supervisora fui cuidadosa? Nesse momento, percebi-me “deixando de ficar atenta a uma direção”. Era como se um farol houvesse dilatado para varrer a escuridão de meu campo visual, desaparecendo em seguida e, de repente, às minhas costas; arrastando atrás de si uma espécie de luminescência submarina. Ouvia como num feixe de raios luminosos, lampejo e ofuscação me seguindo. Ou seriam lanternas que eu segui? Enfim, eram muitos os sinais que passavam pelo caminho, cada um com um significado, ora permanecendo escondido e indecifrável, ora possibilitando imagens, traduzidas por experiências próprias. Todos me assinalavam que, muitas vezes, descuidei de meus supervisionandos. Como foi duro admitir o descuido! Havia aprendido e reassegurado por encontrar-me em um ambiente, no qual cada coisa somente podia estar em um mesmo sempre seu lugar, sem surpresas possíveis, infundindo-me calma. De fato era muito confortável! E agora, toda minha vida em desordem... Mas, quando me lembrava do motivo por que viajava, bastando fechar os olhos e mergulhar nos inúmeros recortes de meus depoentes, a impressão de esqualidez se desmanchava e só encontrava a mim mesma diante da aventura mesma da viagem. Uma solidão completa, junto a tantos companheiros de jornada, se fez, expelindo da área de meu pensamento quaisquer aspectos de outras realidades que pudessem perturbar-me ou que não me fossem úteis, mas que, agora, se impunham como algo que, verdadeiramente, merecia ser interrogado. Como era muito difícil me sentir “entre” 126 territórios, “entre” regiões, “entre” tantos outros! Isto me fazia lembrar a seguinte passagem, descrita por Ítalo Calvino (2004, p.79) : Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra. — Mas, qual é a pedra que sustenta a ponte? pergunta Kublai Khan. — A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra. - responde Marco – mas, pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: — Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Pólo responde: — Sem pedras o arco não existe. Por aqueles cenários, de andanças impelidas pela paciência e impaciência, quantas muitas outras pedras ainda teria eu para descobrir! B. ANCORADOS NA TEORIA Só não jogo fora o embasamento teórico da supervisora... fora as visões das outras pessoas dentro do grupo. Além do conhecimento teórico do supervisor, ele está me acolhendo... acho que é uma qualidade que cada supervisor deveria ter... acolher... me ouvir... e tentar me auxiliar... me guiar... mostrar novos caminhos... o embasamento teórico... o direcionamento. (A1/S1) Para mim supervisão é tudo... porque sem a supervisão eu não saberia que rumo tomar. É como um farol que ilumina... me encaminha... que vai me orientando o que fazer... como inteferir nas sessões... sem a supervisão acho que eu não iria...acho importante. A supervisora tem que contemplar a parte teórica... a teoria mesmo... porque é baseado na teoria que a gente vai poder aprender. (A6/S1). A Psicanálise trabalha com conteúdos mais íntimos... talvez com coisas que não estão aqui explícitas... é o que está acontecendo... não tenho palavras... é o que está acontecendo nessa relação... não é só o dito... há 127 muito mais do que o dito na supervisão de psicanálise...quando minha paciente disse: “eu não consigo me separar de meu primeiro marido”... esse primeiro marido lá em outra supervisão era o primeiro marido dela... com quem ela casou e se separou... aqui não é o primeiro marido com que casou e separou... é o marido anterior de todas as mulheres de quem ela não conseguia se desligar... que seria o pai no caso... então é muito mais profundo... (A1/S2) Na hora eu me foco muito no objetivo...a pessoa está falando e eu estou percebendo a partir da fala do sujeito... não consigo ver o latente... aquilo que não está sendo dito... tenho dificuldade... e na supervisão às vezes ela me traz isso... a partir do que eu relatei ela me traz de volta para eu ver o que não estava sendo falado...ou o que às vezes eu não escutei... não tenho essa possibilidade de escutar além do que está sendo dito... às vezes... quando estou com o paciente... então ela, a supervisora, me traz um pouco para pensar no que não estava sendo dito ali. (A3/S2) Acho que todo supervisor deveria ser assim competente, coerente com a teoria que adota. Tenho colegas que não gostam da abordagem comportamental... eu não! Eu acho que é uma linha muito coerente... falam que é mecanicista... não me importo muito com isso. O importante para mim é que é uma linha objetiva... não gosto dessas outras linhas que tudo você tem que pensar... compreender... interpretar. Isto me dá a sensação que tudo pode ser uma enrolação... que tudo cabe dentro da Psicologia. (A1/S3) Ter uma linha precisa... clara... objetiva... é fundamental no estágio e isso a nossa supervisora tem... ela consegue ser coerente... ela faz um levantamento e a correlação das variáveis naquele dado contexto e a partir disto nos mostra como devemos intervir. Por causa da atuação dessa supervisora é que me sinto mais segura na minha prática... eu chego lá e sei o que fazer... não é como em outros estágios que nunca sei o que tenho que fazer... que o supervisor parece que não tem o que nos oferecer... fico sem respaldo. (A2/S3) Ao ler e reler os depoimentos, inevitável foi prestar atenção a um aspecto que saltava aos olhos Estes não puderam deixar de 128 observar o vértice da teoria interpondo-se como uma questão de supervisão. Passei, então, a ouvir a modulação, a cambiante, o compósito. Quantas fotografias possíveis! Mas aquilo que eu realmente buscava era a fotografia única, que contivesse tanto uma quanto outra: era ao invisível que eu queria chegar. Entendi que fotograf 130 cru para o estágio... além da falta de conhecimentos teóricos... Ele apresenta-se também... muitas vezes... com um descomprometimento ético. Eles não entendem que é necessário abraçar uma teoria... que precisamos da teoria para iluminar nosso fazer. Eles acabam se comportando como alguém do senso comum,,, ou fazem uma salada teórica. Sinto-me na obrigação de não só oferecer respaldo teórico... como também de controlar aquilo que ele faz. Para isso trabalho com uma ficha de desempenho. Temo os desastres que podem acontecer a partir de uma intervenção mal feita... Alguns alunos acham que podem fazer aquilo que lhes passa pela cabeça. É por isso que sempre trabalho com intervenções planejadas. Quando o aluno vai para a instituição ele já sabe o que tem de fazer... ele não é pego de surpresa. (S3) A revelação de tantas fotografias conduziu-me ao que a mim mesma se testemunhou quando presente nas supervisões: vi e ouvi, em alguns momentos, a teoria explicando ou se antepondo ao encontro com o outro. Percebi quase que uma necessidade de os supervisores fazerem uma espécie de demonstração de seus conhecimentos. Seria essa atitude expressão de como eles foram afetados pela minha presença (uma estranha, estrangeira)? Percebi neles, em muitos momentos, uma preocupação em explicar; através de uma verdade teórica, o que ocorria no encontro do supervisionando com seus paciente, conformando-se a um “saber apriorístico sobre” e, assim, reduzindo a experiência a um mero pensamento representacional. Era como uma revelação de que não suportavam a angústia do encontro com a alteridade, acreditando que, com o conhecimento teórico, pudessem superar incertezas, negando o 131 processo de afetação no encontro. A veracização dessa percepção encontra-se nos depoimentos. Escutando as falas nessas experiências, fui remetendo-me ao meu fazer na supervisão. Por muito tempo, ensurdecida, agarrada às explicações metafísicas. também, fiquei E, até hoje, sinto que, às vezes, delas ainda me utilizo, especialmente em momentos, aos quais me percebo paralisada pela impossibilidade de acolher “o afetado”, o “fazer sentido”. Contracenando com meus depoentes, a vereda por onde me encaminhei, assinalava como era angustiante o caminho de busca de sentido para o meu ser supervisora. Afinal, por elas se revela a minha própria intimidade, o meu modo de ser: refletir o meu fazer, entrar em contato com as minhas experiências de supervisora é usar de mim mesma como instrumento para supervisionar. Tais percepções foram revelando como o meu jeito de fazer supervisão foi se transformando paralelamente no encaminhar desta pesquisa. Os diferentes cenários experienciados, apesar do medo e do intimidamento, foram, gradual e silenciosamente, abrindo possibilidades para a ousadia de ser eu mesma, disponibilizando-me ao novo, ao poético, redimensionando assim, o meu ser supervisora em supervisão. Em meio a tantas travessias, fui lentamente desgarrando-me do domínio de um saber teórico, permitindo-me que o conhecimento tácito falasse a mim. Transitando por essas outras paragens, fui encontrando o meu próprio caminho: um novo reino começou a ser 132 conquistado, o coração endurecido passava descompassadamente, à brandura. C – A DIMENSÃO ÉTICA Acho que a supervisão pode abrir outras perspectivas... outras possibilidades... mas mudar não. Eu só vou mudar o atendimento ou o jeito que estou fazendo no momento em que fizer sentido para mim... Faz sentido quando... por exemplo... era uma coisa que eu não reparei... era uma outra possibilidade, outra hipótese que eu possa estar testando no caso... uma coisa que eu não tinha me dado conta ou que me tocou de alguma forma... (A1/S1) Acredito que o supervisor pode ajudar a clarear em alguns momentos... pois você também pode se perder nesse meio do atendimento... se bate uma questão sua e você se enrosca... o atendimento não continua e às vezes você não consegue perceber isso... para quem está de fora às vezes é mais simples, é mais fácil de ver o que está acontecendo... de discernir... agora o que você vai fazer com tudo isso é uma função sua... se vai trabalhar lá fora... na terapia... análise... com o amigo... sei lá com quem for... é você que vai ter que reintegrar essa experiência dentro de você. Faço uso do que o supervisor falou quando faz sentido. Quando o supervisor fala algo pra você e... é engraçado... você se sente tocado por aquela fala... ela tem um sentido. Parece que existe uma lógica... uma coerência... não só racional... mas que te toca enquanto pessoa. Então aí você fala: bom, então... acho que eu posso utilizar disso sim... porque agora faz parte de mim também. É como se fosse você pegar os pedacinhos do outro... aquelas coisas que fazem sentido e ir te constituindo... dando uma nova forma para tudo isso. (A3/S1) Sair leve ou pesada depende da relação, do que aconteceu na sessão... do que ele contou... de como você reagiu... e... às vezes... mesmo da escuta do 133 professor... porque... às vezes... ele não consegue te ouvir totalmente ou às vezes ele te coloca em desespero ou sem querer te acalma.. Acho que é um somatória... às vezes... percebo que para mim não era tão pesado... mas que para outras pessoas do grupo foi extremamente pesado... principalmente para o supervisor... Nessa hora que eu páro... penso... se é tudo isso mesmo... se eu estou me dando bem ou se eu não estou sabendo ouvir totalmente... ou se eu estou ouvindo o paciente... não me deixando afetar.. às vezes... não fico afetada como o supervisor ou como os colegas... Outras vezes eu fico afetada e eles não. Acho que tem a ver com a história de cada um... com o momento de cada um... com a maneira de interpretar as coisas... Eu acho que enquanto está afetando é porque está funcionando... por mais pesado que seja ou mais leve... é porque está funcionando. (A5/S1). Em primeiro lugar é essencial que eu permita... eu acho que o principal é o terapeuta estar aberto... estar trabalhando algumas questões da vida dele... principalmente quando se depara com alguma coisa que mexe com ele no atendimento... e sempre mexe... como ela (a supervisora) acabou de falar: se não está mexendo é porque não está andando... é porque não está seguindo em frente. E quando não mexe... acontece de não mexer... quando não mexe é porque... a gente não está podendo escutar. (A1/S2) A gente acaba se esquecendo... acaba falando do relato do atendimento... então a gente esquece de repente... de dar uma brecha para falar como que eu me senti... eu sinto isso... e até por conta do supervisor que acaba não dando o espaço para falar como isso aconteceu em você... só acontece quandol... de repente tem uma frase do tipo: “ah! Fiquei muito mal, fiquei muito brava com a situação que a pessoa, que o paciente me trazia”... aí tem um gancho... que daí ficou muito claro... daí o supervisor acaba puxando o que ficou em você. Aí se puxa... mas quando... de repente... não tem uma fala dessa tão clara... às vezes até acaba se esquecendo... acaba não falando do que ficou em você. Vou falar de mim naquele momento porque às vezes pode ter interferido... vou poder falar do que aconteceu em mim ali. (A2/S2). A supervisão é um momento muito importante com um profissional mais experiente que vai falar um pouco do olhar que ele tem sobre o meu cliente. 134 Vejo a supervisão como um lugar de apoio para minhas angústias... Lógico que não substitui uma terapia individual... mas um lugar também em que eu possa me colocar... Mas eu acho fundamental que mesmo o supervisor sendo experiente... sou eu quem sabe sobre o meu paciente. A supervisão é uma relação de amor e ódio... também, porque às vezes você diz: que legal!... foi o máximo!... depois... que raiva!. Como eu saí na supervisão passada. Mas depois passa e vem o amor de novo... depois vem o ódio. Acho que a vida toda é assim... (A8/S2) É por essas falas que encontro o sentido da ética como morada, ainda que, em momentos, se revele, identificando-se à teoria. Falam de si mesmos, de como a situação de supervisão abre para encontros, nem sempre suaves, nem previsíveis, consigo mesmos. Deixam brechas nas suas narrativas, revelando a propriedade de condição ao acontecer humano, buscando re-encontrar modos de sentir e uma maneira própria de estar no encontro. Por outro lado, apresentando-se por uma ambigüidade, essas palavras permitem que se mostre como os espaços instituintes de uma ética são plásticos: múltiplos, híbridos, mestiços e sempre possíveis no encontro entre supervisor-supervisionando, entre supervisionandopaciente, entre tantos “entres”. Suportar diferenças emergentes em encontros abre-se ao acolhimento, que não passa por um falar sobre ou um explicar algo, mas por um transitar a partir da afetação: desconstrução e reconstrução de modos de existir, não capturáveis nem por teorias nem por valores morais dominantes, enfim, uma ética diz respeito a ser in-disciplinada. O aprendizado acontece pela passagem, pelo lugar mestiço no desalojamento do conhecido... para o conhecer. É um aprendizado no e pelo trânsito, com disponibilidade para se deixar contrariar e com possibilidade de sempre se surpreender. Precisamos de um conhecimento científico... sedimentado em fatos observáveis e é isto que sinto nesta supervisão... não preciso ficar olhando para os lados... desviando minha atenção. Eu tenho uma 135 meta a seguir... um objetivo a alcançar. A professora X me ensina a detectar problemas e a solucioná-los. Acho que isso é ser competente e o que precisamos aprender é isto: competência. (A1/S3). Eu acho que o jeito dessa supervisora é muito importante para minha formação... eu quero ser igual a ela quando crescer. Ela é muito didática... séria... é exigente conosco... faz questão que na supervisão estejamos com relatório a ser lido para o grupo. Não tem enrolação... ela se prende aos fatos descritos no relatório... não tem blá-blá-blá... não tem conversa fiada... gosto desta maneira organizada de ela conduzir a supervisão. (A2/S3). Menos plásticos e críticos, alguns supervisionandos afetados pelo modo de ser de sua supervisora deixam-se conduzir pela representação da “ética” como referente à objetividade, à praticidade no fazer “psi”: num código moral. Revelavam-se limitados para acolher diferenças, aprisionados que estavam ao pensamento modelar de uma verdade técnica pronta e acabada. Circulando em uma realidade normatizada, viviam a alteridade como uma incompletude pessoal, negando a diferença como possibilidade no encontro com o outro. Durante a supervisão, observei como estes alunos se colocavam no lugar de um não saber. Tocados pela racionalidade competente da supervisora, abrigavam-se num anonimato dependente. Quanto mais se percebiam vigiados, cobrados e controlados, mostravam-se seguros como autômatos, deixando que seus depoimentos desocultassem um desamparo interditado em sua expressão. Acho que não me encaixo em certas supervisões. Essa coisa prontinha... certinha... arrumadinha... 136 planejadinha... me angustia. Parece que as pessoas não conseguem se colocar na vida de outra maneira. Acho isto horrível! Muitas vezes saio desta supervisão e fico pensando... será que as pessoas acreditam mesmo que o mundo é assim tão controlável? Gosto de cinema... de dançar... de arte... de cantar... de poesia... de literatura... de carnaval... gosto do imprevisível... gosto de deixar a vida me levar. Sinto muito incomodada de ter de estar nesta supervisão... é isto mesmo... ter que estar... não tenho escolha. Gostaria de ter supervisores que junto comigo problematizassem o conhecimento... que pudessem sair das alienações... que abolissem a ficha de desempenho... os relatórios... os manuais... os chavões teóricos... que me deixassem ser e fossem uma metamorfose ambulante. Que nos permitissem nossas próprias experiências... é dentro delas que certamente nos encontramos... não quero se uma “tequiniquzinha”...acho que a ação do psicólogo é muito maior do que isso. (A3/S3). Fico com pena da maioria dos meus colegas... que como eu... tentam buscar aprender... porém sem qualquer crítica... sem qualquer oposição. Me irrito muito com essa supervisão que acabei de sair... a supervisora se acha dona da verdade... nós somos para ela um bando de imbecis... acéfalos... O pior é que eu percebo que ela é assim em tudo que ela faz... acho que não tem a menor consciência que aquilo que ela faz não cabe no mundo atual... aliás... acho que nunca coube em nenhum mundo. Por sorte tenho tipo um outro supervisor que me permite pensar... me contrapor... percorrer meu próprio caminho. Este sim, mostra respeito à minha pessoa... ele pacientemente espera que eu faça as minhas próprias descobertas. Ele não faz julgamento dos meus atos. Ele na supervisão tenta compreender o que eu vivo naquele encontro com o paciente. Ele me faz ver aquilo que está escondido em mim... o que faz sentir-me muitas vezes estranha... confusa... inquieta... agoniada. (A4/S3). Ás vezes os colegas ou o supervisor mostram como pensam uma dada questão... daí em penso como eu vejo aquilo e como as pessoas da instituição em que faço estágio percebem e sentem aquilo... É daí que eu vou saber como agir e na maioria das vezes dá certo. Só que às vezes isso é tão confuso... porque tenho que revelar para o supervisor como é que eu fiz... daí tenho que enfiar isso num dado conhecimento para parecer científico e me 137 atrapalho toda... e me angustio muito. Acho que as supervisões... no geral... poderiam ser mais lights... se pudesse ter um espaço para eu falar mais daquilo que eu vivo... e não ficassem tão presas aos procedimentos e resultados. Me sinto muito avaliada nesta supervisão e daí parece que perco a mim mesma... que perco a minha espontaneidade. (A6/S3). Contudo, essa interdição não intimidou outros alunos desta mesma supervisora. Confortavelmente incomodados, não podiam compactuar com uma ética desumanizadora deles mesmos, como sendo humanos. Ancorados em sua própria experiência, como sendo o realmente vivido que dizia do ser si mesmo, contrapunham-se a essa representação de uma atuação estável em Psicologia. Eu acho que ninguém pode ser aquilo que não é... isso acho que a gente compreende muito tardiamente... No início da nossa vida a gente sempre está querendo ser aquilo que a gente não é... não sei se dá para entender... a gente quer ser mais magra... quer ser mais bonita... quer ser mais inteligente... não queria ser do jeito que é... queria ser como aquela... você tem modelos... acho que é o próprio convívio... o com... da forma como está aí... o poder vai se instalando no mundo... mas com o tempo você se permite ser você mesma... pelo menos naquele momento... porque você nunca é você mesmo na totalidade. Você está sempre sendo... vindo a ser... naquele momento você tem que ser o mais autêntico possível... o mais próximo possível de você mesmo naquele momento da sua trajetória... acho que isso é positivo. Então a minha teoria seria bem essa: o supervisor estar acompanhando o acontecer daquela pessoa... daquele estagiário... não como num processo de intervenção que dependa da ação de um interventor para atingir resultados... eu não quero atingir resultados... mas quero ser aquela pessoa que está exercendo o cuidado no acontecer do outro. É só isso. (...) acho que é isso o que eu entendo como supervisão... essa questão do retornar às coisas... voltando-se para elas em si mesmas... abre um lugar para o singular... para o si próprio... e é esse si próprio que eu tento buscar... buscar o centro... o si-mesmo... o si-mesmo próprio... não é que já está lá... não é um potencial 138 não... que já está lá e vai ser desenvolvido... não sabemos qual é esse centro... nós temos um chamamento... mas não sabemos qual é... eu não acredito em potencialidade... não existe um potencial... você tem possibilidades... infinitas... infinitas possibilidades. (S1). Supervisão já é um nome complicado... põe a gente num lugar muito super e eu acho que não é uma visão tão ampla assim... é assim: dar umas pequenas pontuadas naquilo que faz um emaranhado entre a subjetividade do terapeuta e aquele encontro que ele está tendo que se remeter e onde ele é tocado e onde tem um a mais que faz com que ele paralise. Eu tento trabalhar isso. Eu procuro escutar o terapeuta... o que atravessa o terapeuta enquanto subjetividade quando ele entra em encontro com outra pessoa e que ele tem essa tarefa de escutar aquilo que obstaculiza a escuta dele... que faz com ele fique muito angustiado... muito tocado e que faz com que ele tome como uma identidade ou como igualdade coisas que são absolutamente diferentes... que ele tome semelhanças por igualdades. Eu tento ajudar a fazer um pouco essa discriminação... a pontuar esses nós. Quando não há reconhecimento por parte do supervisor acho que o aluno paralisa... paralisa porque ele está iniciando toda uma tarefa e se ele fica muito ancorado nesse lugar de aluno universitário... fica num lugar onde é sempre aprendiz e numa é aquele que é autor. Como ele está sempre de aprendiz se você reproduz uma relação aluno-professor,.. quer dizer... na medida em ue ele é aprendiz ele se desimplica... se desautoriza,,, a cada ato que tiver que fazer ali na frente do seu paciente é dele... é da autoria dele... e aí... se ele não é reconhecido nisso... não é autorizado nisso... eu sinto que ele fica paralisado numa posição de aprendiz... ele não pode escutar... se sente abandonado e ele abandona o seu paciente... ele paralisa... porque aí enquanto aprendiz ele não tem nada a dizer ao outro, ele tem sempre que perguntar para aquele que sabe... então... se ele fica ancorado nessa condição universitária de aluno-professor ele fica um aluno que nunca tem o que dizer... que nunca sabe... que sempre ainda vai aprender... então ele se desimplica da sua responsabilidade dos seus atos.Para você ser um terapeuta você tem que se responsabilizar por cada coisa que você faz... por seus atos... eu acho que quando você não consegue fazer essa marca no aluno ele fica perdido...porque ele fica se sentindo aluno... ele fica aluno...ele não vira terapeuta... ele 139 precisa sair desse lugar de aluno... se deslocar desse lugar e poder ter uma autoria. (S2). ...é preciso muita paciência de minha parte... muitas cobranças quanto às leituras indicadas... quanto à pontualidade no estágio... quanto aos relatórios... quanto à elaboração, desenvolvimento e aplicação do plano interventivo. Outro problema que encontro como supervisora é que os grupos de alunos... habitualmente são muito grandes... às vezes... 10-12 alunos para 2h 30 min de supervisão. Para que alguns alunos não manipulem o grupo e usem o tempo só para si... tenho trabalhado com uma ampulheta sobre a mesa... assim marcamos o tempo para cada aluno... uma maneira mais democrática de dividirmos o tempo... sem prejudicar um ou outro. Faço questão de supervisionar a todos... de fornecer metas... dicas... de mostrar o certo e o errado... de orientar... de marcar um caminho. O aluno nessa hora fica muito perdido... é preciso passar para ele a minha experiência para que ele tenha um guia... um norte... para que ele aprenda o que e como fazer. (S3). Ao pensar em uma ética, necessariamente reflito acerca de um modo de agir: uma ação. Questiono a possibilidade da psicologia contemporânea deixar-se capturar pela cama de Procrusto, uma ética da eficiência da teoria ou ética disciplinadora da técnica. Na perspectiva da ética, S1 e S2 preocupam-se em acolher o estagiário do modo por que ele se apresenta. O compartilhar nos encontros possibilita a seus estagiários se reconhecerem singulares. Revelam compreender a condição da existência como co-existência possibilitadora desse acontecer: uma possibilidade de elaboração e construção de conhecimentos a partir da própria experiência de alteridade. Acolhem, assim, sentimentos de estranheza e angústia provocados pelo encontro, como forma de um encontro com seu modo próprio de ser si mesmos. Compreendem ética como morada-ethos. 140 Entretanto, compreensão de no modo ética se de S3 fazer manifesta. supervisão, Reduzindo o uma fazer outra dos supervisionandos a um pensamento explicativo de relações causais, preocupa-se com uma normatividade de atuação, imprimindo ao supervisionando um modo de ser distanciado das emoções vividas pela e na experiência. Entende as práticas disciplinares do psicólogo como controladas aprisionadamente por normas disciplinares positivistas: um modelo construído a priori. Em sua visão, há elementos explicativos e universais para os fenômenos psíquicos, que se tornam objetos de manipulação por intermédio de um método pré-estabelecido de conhecimento: o “saber sobre” é o principal requisito para que o outro possa ser ajudado. Desse modo, faz uso da técnica para apaziguar a angústia, tanto do aluno quanto do cliente, estando o atuar do psicólogo associado à função de explicar ou de dar respostas à demanda do outro. Colocando-se na posição de quem disponibiliza um saber por técnicas prontas estabelece uma relação assimétrica em relação ao outro. Nessa ótica, entendendo a Psicologia mera aplicabilidade técnica, comunica aos alunos um fazer para justar; ou seja, transmite a representação de que ser psicólogo é fazer-se um mero instrumento, para que fins determinados sejam atingidos. Por essa mesma direção, expressa que o encontro com o outro não passa pela via da experiência, mas sim da eficácia competente, para a qual o outro é apenas um outro objeto para expressão de tecnicidade como cuidado. 141 Robotizando o outro, como desajustado a pedir “conserto”, comunica aos supervisionandos a disruptividade da angústia por perturbar a ordem estabelecida e o fazer competentemente produtivo. Nessa perspectiva, alteridade é simplesmente uma ilusão a ser evitada. Afinal, saber é poder para assistir os menos favorecidos. E pensar que um dia eu fui assim como S3! ainda hoje, isso me indigna e incomoda. menos houve, em algum momento, E confesso que, Posso reconhecer que pelo abertura para que rupturas pudessem acontecer, redirecionando-me a um outro jeito de fazer supervisão e ser supervisora. Mas, de qual outro jeito se trata? Retomo o sentido de ética, que inexoravelmente me remete a refletir um modo de agir: refere-se à autenticação de ser si mesmo pela ação como um dizer público, diante de outros. Tal agir publicizado implica deixar-se ser visto pelo outro e ver-se através do outro: um modo outro de ser si mesmo – como alteridade. Diante de um outro mesmo si mesmo possível, ethos como morada revela a pluralidade de todos nós em cada um de nós: arlequins múltiplos, mestiços, híbridos a desalojarem-se, enquanto transitam para se encontrarem a si mesmos, ao se acolherem estrangeiros estranhos de si. Falo, então, do que é ser supervisora fazendo supervisão: um jeito híbrido, mestiço, um viajante sem ser, jeito esse pelo qual hospedar o outro é condição fundamental que possibilita um sentir si mesmo em casa. Si mesmo estando em casa para morar, sonhar e ter 142 esperança. Um jeito que contempla o modo de ser do outro como um outro si mesmo, ao seu próprio estilo, no seu próprio idioma. Se assim eu puder ser eu mesma com o outro naquilo que faço, sinto que meu gesto pode se disponibilizar como abertura a possibilidades: possibilidade de ser solicitude atenta e cuidadosa como ética para acontecimento com meus supervisionandos. FECHANDO A CORTINA O cuidado, o zelo, a atenção, a pré-ocupação com o supervisionando são condições fundamentais para o seu acontecer. O supervisor ao mesmo tempo em que experimenta a alteridade na presença de seu supervisionando, vive com ele uma comunidade de destino porque com ele compartilha solidariamente das questões do seu destino de psicólogo/terapeuta. Compartilhar o sonho, sonho do fim de uma história, existente no coração de cada supervisionando, abertos para a esperança pelo futuro, implica numa ação de acolhimento pelo supervisor, que conduz o supervisionando à serenidade, quando esta ação o singulariza e cria aberturas para que possa apropriar-se de seu estilo de ser. Alcançar a possibilidade de ser o que é, depende da hospitalidade ofertada pelo supervisor. 143 Cuidar é mais do que um ato, é uma atitude. O supervisor cordial ausculta seus supervisionandos, prestando atenção e pondo cuidado em seu acontecer, saindo de si e centrando-se no outro, numa ação de pré-ocupação, de in-quietação e responsabilidade. Na ação de supervisão, a aprendizagem significativa é condição para a criação de sentidos, onde as dimensões cognitivas e afetivas se integram, tendo como referência a própria experiência, o próprio fazer do supervisionando, como abertura para ressignificações. É pela via da narrativa que o supervisionando conta suas experiências e o supervisor cuidadosa e amorosamente transita por elas: é em meio a este hibridismo que se encontram múltiplos na singularidade experienciada de cada um. Assim, a supervisão é um lugar narrativo continente para expressão de questionamentos e angústias, onde se configura afetação e o reconhecimento, por parte do supervisionando do significado da experiência humana; seja a sua própria, a do outro ou da relação do ser com o mundo. Deste modo, a supervisão se constitui num ato clínico por excelência, portanto, um lugar mestiço para aprendizagem clínica. 146 Comecei este ensaio com uma questão inquietante: o que acontece na relação entre supervisor-supervisionando? Por um intenso percurso, chego agora ao final e posso (in)concluir que esta relação deve permitir uma abertura (portas, janelas, átrio) a partir da qual sejam possíveis encontros que possibilitem a criação de espaços instituintes de uma ética. Esta ética depende do acolhimento da multiplicidade, do hibridismo, da mestiçagem imanentes no encontro entre supervisor-supervisionando e tantos outros. É por esta perspectiva que posso compreender a supervisão constituindo-se em um ato clínico por excelência, apresentando-a, assim, como um lugar mestiço para aprendizagem clínica. Pela travessia em que este trabalho se embrenhou, foi possível resgatar o fenômeno da intersubjetividade como forma de conhecimento para refletir aquilo que acontece entre supervisor e supervisionando. Desvelou-se a sensibilidade experienciada, no encontro/relação entre um e outro como condição de abertura para a alteridade, compreensão e conhecimento: uma aprendizagem significativa. Pela alteridade mostrar-se presença via estranhamento e angústia, um lugar para acolhê-la como experiência fundante faz-se necessário para que supervisor e supervisionando possam abrir-se a um pensamento crítico/clínico, instituinte de uma ética, ou seja, “aprender com” supervisor e acontece na fronteira do desequilíbrio, na qual supervisionando são demandados a exporem-se abertamente à alteridade: a um outro que é diferente de si mesmo em 147 si mesmo, mas que, ao mesmo tempo em que surpreende, por ser outro, possibilita que com ele se possa aprender. É por esta perspectiva que não há nenhum modelo clínico instituído, nem de atendimento, nem de supervisão, que possa contemplar a alteridade ela mesma. A possibilidade de suportar as diferenças emergentes no encontro abre para o acolhimento não via um falar sobre ou explicar algo, mas por um moto contínuo à compreensão a partir da afetação. Revela-se um modo desconstrutivamente reconstrutor de ser, próprio do existir humano: uma ética in-disciplinada, não capturável nem pelas teorias nem pelos valores morais dominantes. É nesse sentido que a aprendizagem acontece em trânsito, ou seja, em passagem pelo lugar mestiço do desalojamento entre o já conhecido e o ainda a conhecer. Refere-se ao aprender no e pelo trânsito, entre o significado e o sentido, disponibilizável a se contrariar pela abertura à possibilidade de se surpreender à criação de um significado sentido. Desse modo, no contexto da situação de supervisão, na qual a intercambialidade entre experiências acontece via a narratividade deixando a ver a alteridade como estranhamento, desvela-se a aprendizagem significativa como fenômeno constituinte ao fazer de ofício do clínico acontecendo entre supervisor e supervisionando. E, em trânsito pela reflexão para a escritura desse texto, eis-me, mais uma vez, deixando-me surpreender por aquilo que aqui se mostrou: quantas coisas ainda faltam para descobrir!!!... Quantas incompletudes a serem in-concluídas!!!... Quantos sonhos por ainda 148 serem sonhados a sonhar!!!... Quantas outras aberturas ainda para buscas... 152 Aquele que conhece, pensa ou inventa, logo se torna um presente mestiço. nem posto, nem oposto, incessantemente exposto. Serres, 1993, p.20 Pela correspondência entre o poeta Rilke (1992) e o jovem Kappus, é possível compreender, metaforicamente, o papel e o lugar da supervisão para situações que se dirigem à compreensão e à expressão de assuntos humanos. É indispensável para a compreensão da poesia de Rilke a leitura de sua vasta correspondência. As “Cartas a um Jovem Poeta” que Rainer Maria Rilke, poeta nascido em Praga em 1875, entre 1903 e 1908, dirigiu a Franz Xavier Kappus, um jovem aprendiz de poeta, constituem o evangelho de uma geração inteira de poetas. Rilke pode acolher cuidadosamente as angústias e dúvidas de Kappus, de mil modos delicados, ia indicando as mil condições favoráveis para Kappus aproximar-se de seus sonhos, não oferecendo uma receita literária, mas abrindo caminhos essenciais para o exercício da literatura, mostrando ao jovem poeta que é na solidão que ele encontrará a poesia, que são nas frestas deixadas pelas dúvidas que surge espaço para a criação. As respostas do discípulo só poderão ser encontradas em si no espaço mais solitário e simultaneamente mais povoado que existir possa, o espírito. 153 Rilke, levando vida de viajante permanente, principalmente na França, foi (1905-1906) secretário particular do escultor Auguste Rodin, com quem posteriormente troca correspondência, mostrando que não ignorava o que é necessitar de alguém, pedindo-lhe conselhos sobre o segredo de viver e de criar. A correspondência de Kappus com o sensível supervisor e poeta Rilke revela a necessidade de interlocução sobre o trabalho solitário que se faz na clínica ou na escrita poética. A comunicação com o supervisor pode permitir que o supervisionando se ouça a si mesmo. Embora, muitas vezes, os supervisionandos esperem caminhos, dicas, respostas, também esperam a delicadeza de uma escuta, como Rilke, para abrirem espaço de busca destas respostas em si mesmos. Afinal, aprender é abrir-se ao outro, situação essa em que se está completamente exposto. Após tal exposição, nunca mais será possível ser o mesmo. Falar de minhas experiências é falar da minha interioridade, é falar do meu fazer, é resgatar minha condição de supervisora com dúvidas e incertezas do ainda por vir para vir a ser. Desse modo, esta minha obra, assim ainda inacabada, oculta sons que não pude ouvir, sons que não soaram claramente, mas cujas ressonâncias pude entreouvir. Como aprendiz de poeta, quero descobrir caminhos que possam conduzir-me aos meus sonhos. Afinal, conforme diz Kehl: “mesmo admitindo que há utopias e utopias, o que venho 154 questionando é o que se passa numa época em que nenhum pensamento utópico parece ter lugar” (1991, p. 45). Aprendi com Pompéia (2004) que um desfecho, ao se encerrar e fechar um momento de meditação, faz-se abertura para que algo outro comece mais uma vez. Por isso, escolho encerrar este ensaio, com a carta que recebi de uma supervisionanda, por ela autorizada para publicação. Assim, é como uma metáfora de correspondência entre dois artesãos de ofício... À Professora Wilma Deixei minha criatividade morrer... Me academizaram, me academizei e nem mesmo me dei conta... Tiraram o brilho de meus olhos, aquele brilho que emana das pessoas no ofício da criação. Não consigo mais escrever... Não consigo mais ler com os mesmos Órgãos de antigamente Olhos e mãos se confundem... Os sentimentos e a intuição, motores da criação, 155 se fundem em mente... E a mente mente... Deixei minha criatividade morrer... Não há espaço na academia para o inusitado. A institucionalização é mesmo uma merda! Pois em seu contexto, verdadeira poderia ser qualquer afirmação de algum sujeito desalmado a respeito deste texto, por exemplo... Verdadeiro poderia ser este sujeito sem alma dizer que em poesia não cabe às poetisas usar a palavra merda, porque merda é palavrão... Poderia, ainda, o mesmo sujeito, em contexto institucional, se este a ele conferir tal poder, afirmar, em tom irônico e cheio de “razão”, que não sou poetisa... Que não sei escrever poesia... Que meus versos não têm prosa, nem lira nem rima... Que a gramática não está boa, nem a grafia, 156 nem a ortografia... E que até a “fia” de dona Ida melhor do que eu “escrevinharia”... Mas, no momento em que empunho papel e caneta, sucumbo à emoção e traio a razão... Torno-me dona do mundo que crio, onde sou poetisa que às vezes brinca de ser psicóloga... Onde merda é palavra de cinco letras e palavrão é a tal da institucionalização... E onde esta última não faz rima com nada, muito menos com o coração, posso, com o poder que eu me atribuo, dar voz somente a quem tem alma. inventar meus amigos e escolher meus mestres... Na academia, não sei por que, deixei minha criatividade morrer... Mas, na vida prática, tal qual conto de fadas, há pessoas mágicas, que apareceram para nos salvar... De uma existência medíocre, 157 doces foram as aulas que tive com a professora Wilma... que com sua varinha de condão, quebrou o feitiço que amaldiçoava minha capacidade de criação... Que, com suas supervisões, fez emergir de mim o que há tempos esteve morto, inanimado... Ah!... professora Wilma, como foram bons os dias que a tive a meu lado... Da aluna Fernanda Quevedo 08/11/2004 160 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi et al. 2 a . ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982 ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Estudos sobre o anti- semitismo. Em Dialética do Esclarecimento. , 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ALMEIDA, F. M. Aconselhamento Psicológico numa visão fenomenológico-existencial: cuidar de ser. In. MORATO, H.T.P. (Org). Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa: Novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. p. 45-60. ANDRADE, A. NOBRE. A Angústia frente ao Caos: um estudo genealógico da formação do psicólogo clínico. São Paulo. Tese (Doutorado). 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