WILMA MAGALDI HENRIQUES
Supervisão:
Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica
São Paulo
2005
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WILMA MAGALDI HENRIQUES
Supervisão:
Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutor
em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia
Escolar
e
Desenvolvimento
Humano.
Orientadora: Dra. Henriette T. P.
Morato.
São Paulo
2005
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudos ou pesquisa,
desde que citada a fonte.
Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca
e Documentação do Instituto de Psicologia da USP
Henriques, W. M.
Supervisão: lugar mestiço para aprendizagem clínica / Wilma Magaldi
Henriques – São Paulo: s.n., 2005. – 216p.
Tese (doutorado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade.
Orientadora: Henriette Tognetti Penha Morato.
1. Supervisão clínica 2. Intersubjetividade 3. Alteridade 4.
Mestiçagem I. Título.
FOLHA DE APROVAÇÃO
WILMA MAGALDI HENRIQUES
SUPERVISÃO: Lugar Mestiço para Aprendizagem Clínica.
Orientadora: Dra. Henriette Tognetti Penha Morato.
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de
Doutor em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia
Escolar e Desenvolvimento Humano.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Profa . Dra. Dulce Mara Critelli. Assinatura:______________________________
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Profa. Dra. Ângela Nobre de Andrade. Assinatura:________________________
Universidade do Espírito Santo.
Prof. Dr. Antonius Terzis. Assinatura:___________________________________
Pontifica Universidade Católica de Campinas.
Prof. Dr. Gilberto Safra. Assinatura:____________________________________
Universidade de São Paulo.
Profa. Dra. Henriette T. P. Morato. Assinatura:___________________________
Universidade de São Paulo.
i
DEDICATÓRIA
Para Bruno e Marcelo
—meus filhos—
com amor e confiança no futuro.
ii
AGRADECIMENTOS
Ter o prazer e o privilégio de agradecer àqueles que acreditaram em
minhas possibilidades, antes mesmo que o meu desejo por esse trabalho se
anunciasse, aos que me auxiliaram, incentivaram ou, de alguma forma,
tornaram possível este momento, mais do que uma necessidade, é um ato de
reconhecimento, de gratidão e de amor.
Muito obrigada,
Dra. Henriette Tognetti Penha Morato, por sua orientação no curso da
elaboração desta tese. Suas observações pontuais, sugestões, acolhimento e
cuidados contribuíram, de modo determinante, para a composição final
deste trabalho.
À Jozélia Regina Diaz Olmos, minha grande amiga, que, em momento
singular de sua vida pessoal, se dispôs a dedicar todo carinho especial aos
meus rascunhos, que implicou entregar-se a horas seguidas de trabalho.
Aos professores da Banca de Qualificação, Dr. Gilberto Safra e Dra. Ângela
Nobre de Andrade, que contribuíram de forma significativa para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Ao Juarez Porto Henriques, companheiro de todas as horas, que pode tolerar
e compreender minhas ausências, ansiedades, incertezas, dúvidas, estando
amorosamente disponível para tudo, diante das turbulências deste percurso.
Aos alunos e aos supervisores que foram interlocutores desta pesquisa, pela
confiança e disponibilidade com que partilharam comigo suas experiências
de supervisão, ajudando-me a clarear meus pensamentos.
Aos amigos do Laboratório de Estudos e Práticas em Psicologia
Fenomenológica Existencial do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (LEF/IPUSP), pela amizade que me foi confiada e pelo
acolhimento em diversos momentos da preparação desta tese.
iii
Aos meus alunos, supervisionandos, que com suas indagações tanto me
ajudaram a pensar a nossa prática.
Aos meus colegas e professores do Curso de Doutorado em Psicologia, da
Universidade de São Paulo, que tanto contribuíram nessa trajetória.
À Universidade de São Paulo (USP), pela acolhida e oportunidade de
realização do Curso de Pós-Graduação e da Tese de Doutorado.
Aos meus irmãos, Rosália e Lair, com quem tanto aprendo sobre a
processualidade e a arte de viver.
Aos meus familiares, por compreenderem meu afastamento e poderem dar
retaguarda às minhas necessidades, aos meus amigos em geral, pelo apoio e
disponibilidade com que ofereceram ajuda e, pacientemente, ouviram e
aguardaram que o meu envolvimento por esse texto arrefecesse.
Ao Orlando e Léa (in memoriam), pais inesquecíveis que desconheciam o
impossível diante da força do amor, que, com suas presenças e exemplos,
me proporcionaram a semente do que vai exposto aqui.
A tantos outros que em mim habitam e com quem contraceno diante de
tantos espelhamentos.
A todos, o meu reconhecimento e a minha gratidão.
iv
RESUMO
HENRIQUES, Wilma Magaldi. Supervisão: lugar mestiço para
aprendizagem clínica. São Paulo, 2005. 216p. Tese (Doutorado).
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
Este trabalho teve por objetivo compreender o que acontece “entre”
supervisor-supervisionando, considerando que pensar supervisão é pensar
necessariamente nas diferenças, refletindo a relação na relação. Para dar
corpo à questão percorreram-se as temáticas: intersubjetividade, clínica,
supervisão e narrativa. Como investigação, o trabalho perspectivou o modo
fenomenológico existencial da analítica do sentido para pesquisar, pelo
qual se busca sentido pelo próprio fazer e refletir em ação. Para
compreensão do “entre” interrogado foram entrevistados supervisores e
supervisionandos do último ano de um Curso de Psicologia. A partir do
entrecruzamento desses depoimentos, observou-se que o abrir-se à
alteridade é fundamental para que se possa desenvolver um pensamento
crítico e clínico instituinte de uma ética. Afetar-se pelo outro, pelo
estrangeiro, pelo diferente, atrai e atemoriza: o outro sugere ser decifrado
pelo meu próprio decifrar-me/encontrar-me pela reflexividade, implicando
uma ética, constituída no e pelo acolhimento da multiplicidade, do
hibridismo, da mestiçagem próprios do modo humano de ser co-existindo,
revelando como a supervisão é um lugar mestiço para a aprendizagem
clínica.
Palavras-chave: Supervisão. Intersubjetividade. Alteridade. Mestiçagem.
v
ABSTRACT
HENRIQUES, Wilma Magaldi. Supervision: a mestizo place to clinical
apprenticement. São Paulo, 2005. 216 p. Thesis (Doctorate). Institut
of Psychology, University of São Paulo.
This work aimed at understanding (ou comprehending) what happens
“between” supervisor-supervisee, considering that thinking supervision is
necessarily thinking the differences, reflecting the relation in the relation.
To build up the question it goes through the following themes:
intersubjectivity, clinics, supervision and narrative. As an investigation the
work put into perspective the existential phenomenological way of the sense
analytics to search the sense bu proper making and pondered in action. To
understand (ou comprehend) the “between”, we interviewed supervisors and
supervisees of the psychology course’s last year. From the analysis of these
interviews, it was observed that to open one’s mind to the alterity is
fundamental to develop a critical and clinical way of thinking capable of
creating an ethic. To be affected by the other, by the foreign, by the
different, attracts and frightens at the same time. The other suggests to be
deciphrated by myself deciphration and by the reflectivity which implicate
an ethic
constituted in and by well receiving multiplicity, hybridism,
miscegenation which are a human way of co-existence, revelling that
supervision is a “mestizo” place to clinical apprenticement.
Key-Words:
Supervision. Intersubjectiviy. Alterity. Miscegenation.
vi
RÉSUMÉ
HENRIQUES, WILMA MAGALDI.
Supervision: Lieu Métis pour
l'apprentissage Clinique. São Paulo, 2005. 216 p. Thèse (Doctorat).
Institut de Psychologie. "Universidade de São Paulo".
L'objetif du présent travail a été celui de comprendre ce qui se produit
"entre" superviseur-supervisé, en considérant que penser la supervision,
c'est penser nécessairement aux différences, en reflétant la relation dans la
relation. Pour que la question prenne corps, on a parcouru les thèmes
suivants:
intersubjectivité, clinique, supervision et récit.
En tant
qu'investigation, la perspective du travail a été la façon phénoménologique
existentielle de l'analytique du sens à faire des recherches, par laquelle
cherche-t-on un sens par l'acte même de faire et de réfléchir dans l'action.
En vue de comprendre le "entre" interrogé, des interviews ont été réalisées
avec des superviseurs et des supervisés de
vii
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
3
INTERREGNO
16
CAPÍTULO 1 – O QUE E COMO BUSCAR: SUPERVISÃO EM
QUESTÃO
28
CAPÍTULO 2 – INTERSUBJETIVIDADE ENTREPOSTA
COMO QUESTÃO
CAPÍTULO 3 –
48
CLÍNICA, SUPERVISÃO E NARRATIVA:
DANDO CORPO À QUESTÃO
79
CAPÍTULO 4 - A COISA ESTENDIDA: A TESSITURA DA
QUESTÃO – ATO CLÍNICO EM AÇÃO
110
CONTRACENANDO COM DIFERENTES
CENÁRIOS:
120
A – O CUIDADO COMO CONDIÇÃO
120
B - ANCORADOS NA TEORIA
126
C - A DIMENSÃO ÉTICA
132
FECHANDO A CORTINA
142
(IN)CONCLUSÕES CONSIDERADAS
146
viii
POST-SCRIPTUM
152
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
160
ANEXO A – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S1 E
RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS
171
ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S2 E
RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS
189
ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS DE S3 E
RESPECTIVOS SUPERVISIONANDOS
207
ANEXO D – CARTA DE UMA SUPERVISIONANDA
214
3
CENA I
É assim com o nosso passado. Trabalho perdido
procurar evocá-lo. Todos os esforços da nossa
inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto fora
do seu domínio e do seu alcance nalgum objeto
material (na sensação que nos daria este objeto
material) que nós nem suspeitamos. Este objeto, só
do acaso depende que o encontremos antes de morrer,
ou que não o encontremos nunca.
(M.Proust, 1972, p.45)
(Combray – Em busca do tempo perdido.)
Qual será aqui a cena disparadora de minhas inquietudes? Por
onde começar? Qual o objeto evocado?
Sabemos que introduzir significa dizer de dentro, portanto,
para me apresentar, preciso dizer de onde venho.
Preciso buscar as raízes. Para buscar as raízes, preciso falar da
minha participação na minha história. Afinal é através da participação
que uma raiz se define em nosso coração.
Começo pela presença de minha mineirice. Ainda muito pequena
tive o privilégio de morar na casa de meus avós maternos, e de lá
tenho lembranças muito especiais: casarão antigo; cômodos amplos,
quintal com pomar e muitas flores. Porém, só agora me dou conta
4
como, de tudo, o que mais me fascinava eram as “gretas” dos
assoalhos da casa de minha avó.
Ali eu permanecia por horas a fio, deitada sobre o assoalho, com
os olhinhos curiosos e afixados em cada uma daquelas “gretas”,
deixando sempre uma sensação de perplexidade e indagação a todos
que assim me viam.
Quantas recordações... preciosa essência!
Lembro-me de que aquilo se constituía um segredo; só eu
experienciava aquilo que ali eu via e com ninguém queria dividir os
meus sonhos, os meus encantamentos.
Havia vida naquele subterrâneo; a potência do meu olhar fazia
incidir sobre os objetos uma luz mágica, deixando-me ver através
deles, passando a mostrar imagens refletidas de coisas ausentes, como
demonstrou Lewis Carrol, fazendo Alice atravessar o vidro e entrar no
mundo das imagens especulares.
Quantos outros ali habitavam? Duendes, fadas,
príncipes,
bruxas, madrastas, anjos, personagens folclóricos, palhaços, figuras
mitológicas; mendigos, animais, flautistas... e tantos outros.
Entrar naquele cenário, deixar-me afetar por ele, sempre se
constituía
uma
viagem
repleta
de
acontecimentos
inesperados.
Lembro-me de que sempre ficava fascinada com a tentativa de buscar
compreensão do que ali se passava. Parecia-me sempre algo cheio de
tramas e mistérios.
Que mundo enigmático era aquele? E por que
sempre
atraída
me
sentia
por
aquela
travessia?
Como
uma
“flâneureuse” curiosa, ali naquela cidade labiríntica, eu mapeava
5
sonhos e ludicamente inventava espaços de autonomia, em meio a
grandes alegorias.
Lembro-me de que inicialmente ficava ali somente de longe
(mas que era também de perto), observando o que lá se passava. Daí a
alguns
instantes,
já
me
sentia
não
mais
observadora,
mas
completamente mergulhada naquele encontro, conduzindo-me, algumas
vezes, a um pertencimento e outras a uma grande estranheza.
Hoje, ressignificando algumas daquelas experiências, avalio que
já, naquela época, havia em mim uma busca pelo outro, já me sentia
tocada pelo visível e invisível, já me movimentava frente à ocultação e
o desvelamento.
Com o crescimento, com a puberdade, tudo aquilo que se
constituía sonho e poesia, tiveram que ser abandonados. A primazia da
razão sobre as emoções foi-se constituindo... Ser boa aluna, racional e
objetiva, era o que naquele momento me era solicitado.
Veio o segundo grau e muito inquieta com a decisão que
tomaram por mim de fazer o que, na época, se chamava Magistério,
decidi que, em paralelo, por minha escolha, faria também o Curso
Técnico de Contabilidade, associando a tudo isto o curso de Inglês na
Cultura Brasil-Estados Unidos. E, assim, foi até concluir, ao mesmo
tempo, como não poderia deixar de ser, os três referidos cursos.
Lembro-me
da
diversidade
que,
acontecer na minha vida acadêmica.
naquele
momento,
começava
a
6
Imperava
uma
reflexão, criação.
objetividade
que
me
impedia
pensamentos,
Eram alteridades 1 que a mim se apresentavam de
maneira dogmática e absoluta.
Momento do vestibular: faço a escolha pelo curso de Psicologia,
buscando sei lá o quê. Ou melhor, me buscando. O que encontro:
formas e explicações racionais para tudo o que se dizia do humano.
Era o início dos anos 70, nos quais todos nós sabemos da importância
do Behaviorismo em nossa formação. Foi assim que logo me
identifiquei com os ensinamentos desta escola e até me tornei
monitora de Psicologia Experimental.
Assim que me formei, prestei seleção para dar aula de
Psicologia Experimental em uma Universidade do Estado de Minas
Gerais e lá comecei minha carreira docente. Então comecei a
aproximar-me de outros professores desta mesma disciplina que
ensinavam: Gestalt, Percepção, Alan Watts, Rollo May e outros.
Aquilo, à primeira vista, me soou com estranheza, porém, logo a
seguir, eu que vinha de uma formação do Behaviorismo Radical, lá
estava neste novo fazer me constituindo.
Ao trocar experiências com outros colegas docentes, aproximeime do Psicodrama Analítico. Tinha tanto a aprender com eles que
então decidi fazer minha formação: viagens semanais para Belo
Horizonte onde, com Pierre Weil, aprendi a técnica psicodramática.
1
A lter id ad e : o ser ou tro, o co lo car-se ou con s titu ir- se co mo ou tro. É um co nceito
ma is r e str ito do qu e d iv ersid ad e (pod e ser pur amen te nu mé r ica) e ma is ex tenso do
qu e d if er ença. Cf. ABBAGNANO, N. D icioná rio d e Filosofia. 1982.
7
Comecei também, nesta ocasião, a minha prática clínica.
Trabalhei mais de dez anos como psicodramatista, na Saúde Pública,
em especial, na Saúde Mental.
Minhas
indagações
e
inquietudes
filosóficas
e
sociais
conduziram-me, na década de 80, à militância política
p.140r daí, acontecia em mim uma nova abertura ao novo: entro na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) para fazer o
Mestrado em Psicologia Social.
Começo, então, um novo percurso,
agora dentro do materialismo histórico-dialético, mas o mestrado eu
abandono no momento da qualificação.
Devido a estar numa prática clínica em Saúde Mental, faço
então minha formação e especialização em Grupanálise5e, após seu
término, desperta em mim o desejo de verticalizar meus estudos na
Psicanálise, quando então ingresso no Instituto Sedes Sapientiae e
faço o curso de Especialização e Formação em Psicanálise.
Relembro que, assim, eram inesgotáveis as minhas buscas. Eram
muitas as efervescências que repercutiam também na minha atividade
docente5e na minh a ação, enquanto psicóloga, nas instituições de
saúde.
Lembro-me do meu fazer “in-disc
8
que naquele cotidiano, cada vez mais, me fazia acreditar numa ética
dos afetos, do cuidado e do não-saber.
Ainda, com um outro exemplo, lembro-me do meu primeiro
encontro, com Wilma (minha xará), completamente “em surto” (com
delírios e alucinações). Naquela ocasião, o Ambulatório de Saúde
Mental, recém inaugurado, estava funcionando sem diretor e sem
médicos.
Num primeiro momento, me senti em completo desamparo junto
àquela pessoa, não sabia como agir. Foi então que resolvi convidá-la a
tomar um banho (a paciente se apresentava muito suja, pois há dias
perambulava pelas ruas), e ali no banheiro
quantas surpresas!
Afetada pelo sofrimento daquela jovem fui me aproximando... Quanto
afeto!
A minha ação ali não passava por nenhum conhecimento, por
nenhum saber aprisionado por quaisquer teorias, mas sim, passava por
algo que era e continua sendo inominável naquele encontro. Wilma
também se revelava afetada por mim e, juntas, começamos a cantar, a
brincar, a sorrir. E assim foi meu percurso na Saúde Mental. Surpresas
atrás
de
surpresas
e
eu
sempre
buscando
a
plasticidade,
a
multiplicidade, o acolhimento ao outro.
Cansada, decepcionada com o serviço público, resolvi, no início
da década de 90, pedir minha exoneração.
Momento difícil. Foram
tantos sonhos, tantas experiências acumuladas, tantas as possibilidades
de invenção dentro dos Postos de Saúde, dos Ambulatórios de Saúde
Mental, dos Hospitais Dia, das Emergências nos Hospitais Gerais, etc.
9
A partir daí, começo a ensinar aos meus alunos essas práticas
diversificadas.
Sofro críticas de colegas, sofro retaliações na carga
horária, enquanto professora horista de uma Universidade Particular
de Ensino Superior.
Naquele
momento
começamos,
enquanto
docentes,
a
ser
pressionados com a questão da titulação. Apesar dos meus diferentes
títulos de especialista, e de todo este percurso aqui narrado, ainda não
era suficiente. É quando então, em 1995, ingresso na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) e, após três anos,
concluo o Mestrado em Psicologia Clínica, trabalhando com a temática
da supervisão na formação do psicólogo.
Nesta ocasião, começo a tecer uma intimidade maior com a
Fenomenologia Existencial, especialmente ao ler as publicações de
Morato sobre a supervisão e dela, logo me apaixono. Neste momento,
aumenta
a
minha
Fenomenologia
proximidade
Existencial.
com
Com
uma
nossos
amiga,
professora
encontros,
começo
de
a
enveredar novamente por um “caminho nunca d’antes navegado”.
E, assim, chegou para mim o novo século, ano 2000, ingressei
no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) para
o doutorado. Ainda havia em mim uma indagação muito grande sobre a
supervisão na formação dos alunos durante o curso de Psicologia.
Escolho-a para dar continuidade a esta busca. Passo, então, a
direcionar meus estudos à Fenomenologia Existencial.
Quantos desalojamentos, quantas transformações, quantos novos
territórios. Inicialmente, um desgarrar-me de uma forma tradicional de
10
pensar o cotidiano e ir-me constituindo neste hibridismo permanente
de desmanches e configurações.
Neste momento, resgato as lembranças das “gretas” do assoalho
retratadas no início desta exposição. Naquela época, eu era poeta e
não sabia.
Fui tecendo um percurso pelo qual, em determinado
momento, me sentia numa camisa de força; e, deixo criar em mim uma
brecha
que,
hoje
avalio,
permitiu
e
permite
recuperar
o
meu
ontológico, através desta densidade experiencial aqui narrada. Pareceme, assim, que o verdadeiro desejo surge na mais remota infância.
Confesso que, em muitos momentos, me sentia como uma grande
e inacabada colcha de retalhos.
Ao longo de tantos encontros e
desencontros,
vivido
ia
buscando,
no
de
tantas
e
diferentes
experiências, pontos de encaixe que me conduziam a articular
sentidos. Em meio a tão diferentes e diversas subjetividades, fui me
constituindo no meu fazer, fui criando, inventando, buscando-me,
encontrando-me, perdendo-me, experienciando-me.
Nestas redes de bifurcações é que minha mestiçagem, enquanto
professora, supervisora, terapeuta, mãe, mulher, amiga, se revelam.
Minha ética se constitui neste saber indisciplinado. Este parece ter
sido, ao longo de minha trajetória, o meu ofício.
11
CENA II
Desde que iniciei minha formação, tive oportunidade de ter
diversos tipos de supervisão, tanto individual como em grupo. Tive
supervisores que tentavam dirigir-me, como se eu tivesse que ser o seu
clone e me lembro de que me sentia muito irritada com aquela postura
e,
como
conseqüência,
vinham
sempre
a
minha
teimosia
e
desobediência.
Felizmente, tive também supervisores que “cuidavam” do grupo
de supervisão e de seus supervisionandos, que faziam uma espécie de
“maternagem” inicial, pela qual os laços de confiança entre os
membros do grupo eram uma pré-condição para se expor ao grupo e ao
supervisor.
Com meu trabalho na Saúde Pública, tive oportunidade de ter:
supervisão programática, supervisão institucional e supervisão clínica.
Nestas supervisões, pude aprender a exercitar o raciocínio clínico,
pude me ver no contexto institucional e, dentro dele, tecer minha
historicidade; e pude, ainda, aprender a pensar criticamente diante de
uma polissemia de diferentes supervisores com diferentes formações.
Durante minha formação, inicialmente em Psicodrama Analítico,
posteriormente na Grupanálise e na Psicanálise, aconteceram alguns
encontros muito felizes com diferentes supervisores, que certamente
muito me ajudaram a encontrar o meu próprio estilo, o meu próprio
12
caminho. Interessante é, neste momento, poder pensar e revisitar as
marcas que cada um deles deixou em mim.
Muitas são as reminiscências!
Lembro-me ainda de quando, há mais de 20 anos, Maria
Antonieta Pezzo Fisch me dizia: “seu trabalho é winnicotiano”. E eu,
atordoada, sem entender o que ela dizia me perguntava: o que será
isto?
Lembro-me, ainda, de Luís Carlos Menezes afirmando: “o
enquadre é a única coisa lúcida no processo analítico. O resto é tudo
um sonho”. Recordo-me da minha reação “abestalhada”... “Como não
entendo este homem!!!... O que será que ele quer dizer com isto?”
E como haveria de esquecer Armando Colognesi, com aquele seu
sorriso acolhedor, com sua boa escuta, agasalhava minhas dúvidas,
incertezas e angústias e possibilitava que eu pudesse ficar com o
paciente e com “os restos dele deixados em mim”.
Felizes
encontros.
Boas
recordações.
Grandes
saudades.
Agradeço a todos: Maria Emília Lino Silva, Pierre Weil, Suzana
Viana, Antonio Terzis, Silva Lane, Henriette Morato; enfim, agradeço
também a tantos outros, aqui não citados, que me ajudaram e me
ajudam no meu percurso como terapeuta, supervisora, companheira,
mãe, amiga, enfim, pessoa.
Associada a toda mestiçagem, já mencionada na primeira parte
desta Apresentação, resta, neste momento, assinalar, como algo de
grande importância, este berço no qual me senti embalada, sustentada
13
nos
meus
momentos
de
desamparo,
durante
o
meu
percurso
profissional.
Consideradas
as
diferenças
em
suas
devidas
proporções,
revisito, hoje, lembranças de supervisão, nas quais pude vivenciá-las
como experiências que me possibilitaram abrir horizontes, enfrentar o
outro no estranhamento que despertava em mim, atribuir sentidos a
tudo que eu vivia, re-instalar-me enquanto terapeuta e supervisora,
apesar de não saber dizer naquelas ocasiões, como tudo isso acontecia.
A minha escolha para esta apresentação foi pela via da memória,
pela qual, possivelmente, alguns elementos aqui presentes estão
conduzidos de forma fragmentária, por lembranças e esquecimentos
que estiveram abrindo e fechando caminhos neste acontecer.
Haverá, com certeza, outras experiências a serem contadas,
recortadas, recontadas, ampliadas, recriadas. Aqui, pude contar um
pouco de mim mesma. Devo confessar que hoje me sinto autorizada a
tornar público este meu percurso; entretanto, durante alguns anos, ele
se manteve aberto apenas a determinadas pessoas e situações.
Havia em mim um certo desconforto, uma certa vergonha, um
medo da crítica do que o outro podia pensar desta bricolagem que me
constitui ou desde meu nomadismo constituinte.
28
Por tantos anos, busquei o meu Caminho enquanto supervisora e
foi, assim, que em minha dissertação de mestrado trabalhei um grupo
de supervisão coletiva, enfocando as angústias vivenciadas pelos
alunos na sua primeira tarefa clínica, recorrendo ao método clínico, da
abordagem psicanalítica e da técnica grupal, para a compreensão das
formulações psíquicas 1 ocorridas durante o processo de supervisão.
Hoje, sei que meu Caminho não sou eu; são os outros, ou melhor,
somos eu e os outros, ou ainda sou eu nos outros e os outros em mim.
Como vou buscar os significados, o sentido de supervisão, para
isto, vou olhar, tocar, saborear, ouvir o fenômeno, lembrando aqui que
o fenômeno não é a coisa em si; o fenômeno é a relação supervisorsupervisionando. Portanto vou buscar o sentido do que é a supervisão,
através de interlocutores: supervisores e seus supervisionandos.
Ao olhar, vê-se o mundo e, de repente, ele pode abrir-se como
algo nunca visto, como assinala Gruzinski (1999) 2 ; quando o olho abre
desconcertado pelo espetáculo que lhe é oferecido, a imagem não
comparece ao encontro marcado com o sentido. Como lembra Bacchi
(2000), o espaço de supervisão, enquanto espaço de formação, se
1
For mu lações p s íqu icas: conjun to d e r eaçõ es constitu ídos de emo ções in tensas
d es e mp en h an d o p ap e l d e ter mi n an te n a o r g an iz a ç ão d o g r u p o d e sup er v is ão, n a
r ea liz aç ão d e sua tare fa e n a sa tisf a ção e ne c es s idade s de seu s me mb ro s.
(H enr iqu es, 1998) .
2
Gru z insk i (1999) no seu livro “O pensamen to me stiço ”, den tre outras co is as, f az
u ma a ná lis e d e Macun aíma , d e Mário d e Andr ad e, enfo cando esp e c ia lme n te o seu
v erso : “Sou u m tup i tang endo u m alaúd e”, mo strando que é possível ser tup i –
por tan to, índ io do Br asil – e to car u m in s tru me n to eu ropeu, tão an tigo e r ef inad o
c o mo u m a l a ú d e . N ad a é i n con c i l iá v e l , n ada é in co mp a tíve l. E o au tor con tinu a :
“ Não é porqu e o alaúde e os tup is per ten ce m à s h is tór ia s d ife ren tes qu e e le s não
pod em se en con trar na p ena de um p o e ta, ou no me io d e u ma aldeia ind íg ena
ad min istrada p e los j e itos.” (p.28) .
29
caracteriza como um momento de articular a experiência vivida com o
intuito de atribuir-lhe alguma significação, refletindo a relação na
relação.
Buscar as tramas que tais cenários podem revelar é também
buscar os paradoxos que podem aparecer em cenas; é, certamente,
deparar-me, enquanto pesquisadora, com uma polifonia de questões.
Afinal, dos olhos depende todo o nosso ser.
A fenomenologia é uma viagem, uma aventura que traz à tona a
multiplicidade que se organiza numa trama, uma aventura pelos
cenários dos encontros.
Empreende a aventurar-se pelo seu desafio.
Nas palavras de Clarice Lispector (1984, p. 755)
Aí está ele, o mar, o mais inteligível das existências
não humanas. E aqui está a mulher, de pé na areia, o
mais ininteligível dos seres humanos. Como o ser
humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo,
tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o
mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios
se um se entregasse ao outro...
Para adiante! Pelo mar largo! Livrando o corpo da
lição frágil da areia! Ao mar! – disciplina humana para
a empresa da vida. A solidez da terra, monótona,
parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande
mar, multiplicada em suas malhas de perigo. Desafio
de grande beleza!
Desafio que solicita desalojar-me de apriores para me deixar
afetar e me transformar junto ao outro em mim. Desafio de produção
permanente de desmanches e configurações! Desafio que solicita
descolar-me de mim mesma, abrir-me para o mundo com o outro.
Desafio
que
envolve
espelhos,
que
transforma
as
coisas
espetáculos, espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim.
em
30
Espelhos
que
completam
a
minha
invisibilidade
visível,
tornando-me visível ao meu interior afetado, possibilitando um duplo
que me repete, possibilitando um corpo para mim; um corpo para mim
como outro; um corpo refletido; um corpo especular. Um corpo
determinado por um olhar que, como disse Alberto Caeiro num de seus
versos, “não basta não ser cego para ver as árvores e as montanhas”.
Os místicos orientais falavam que era preciso que se abrisse um
“terceiro olho” – experiência de iluminação a que davam o nome de
“satori”. É como quando se vê o livro O Olho Mágico: olha-se para a
página. De forma normal e focada, só se vêem manchas coloridas que
se parecem com
uma tela abstrata. No entanto, se os olhos são
desfocados, olha-se com olhar perdido, como quem não quer ver, e,
repentinamente, um cenário, dantes invisível, aparece diante dos
olhos, em três dimensões. Parece-me que esta é a arte de ver cenários
que não podem ser resumidos ao poder e controle das palavras: são os
cenários-experiências, que guardam segredos incomunicáveis para uma
fala e compreensão cotidiana, mas podendo ser revelados pelo dizer da
poética, pois a poesia é a arte de pintar com palavras, palavras estas
como peixes saídos das profundezas do mar. E palavras que não
surgem do “fundo do mar” não possibilitam uma abertura à revelação.
Neste
sentido,
enquanto
pesquisadora,
necessito
da
disponibilidade de olhar o invisível, de tocar o intocável, de escutar o
não dito e o mal dito. Como afirma Coelho Jr. (1991) acerca do visível
e do invisível em Merleau-Ponty, há uma intenção em suprimir a
clivagem entre sujeito e objeto.
31
Frayze-Pereira (1984, p.142) mostra que a intersubjetividade é a
possibilidade que cria aberturas para outras experiências e, referindose a Merleau-Ponty, afirma que a intersubjetividade antes de ser
espiritual é corpórea. Assim, esclarece o autor que o que o outro vê de
seu lugar não é apenas a película superficial de minha pele, mas uma
interioridade inesgotável, “sendo possível aos corpos enlaçados um ao
outro (um corpo em geral visível-vidente), fazerem seu exterior seu
interior, seu interior seu exterior”. Portanto, o que permite que o meu
corpo seja para mim e para o outro é o olhar. Otavio Paz (1982, p.144165) diz que o olhar é uma interpretação: vemos
repente, ele se abre como algo nunca visto.
o mundo e, de
Frayse-Pereira (1984,
p.144) ainda diz que corpo e mundo são tecidos na mesma trama, tudo
que é humano é corporal; o corporal está em toda a parte, onde está a
sensorialidade (visão, gestos, sons). Revela-se, assim, a exteriorização
de interioridade: um corpo sonante e sonoro que se abre à “dimensão
invisível do pensamento”, pois existe uma reversibilidade entre o som
(palavra) e o sentido (significado), ficando a palavra entre o sentido e
o pensamento; a palavra é cega, mas é a imagem que a torna visível.
Assim sendo, a intersubjetividade, que encontramos ao nível de
experiência perceptiva, se alarga com a linguagem; porém, salienta o
autor, “assim como o mundo nunca está dado, a linguagem jamais se
encontra plenamente dita”.
Ao investigar o que acontece no espaço entre supervisor e
supervisionando - espaço intersubjetivo – como se constitui esta
relação intersubjetiva, os possíveis inusitados oferecidos por este
32
encontro
supervisor-supervisionando
foram
se
revelando.
Isto
possibilitou encontrar os significados de supervisão.
Conforme esclarece Morato (1989, p.82)
a relação entre dado corporal e a compreensão ativa de
um processo se articulando, vão levar ao significado
sentido e este significado pode, então, ser comunicado,
porque sua articulação em linguagem já está também
implicada no experienciando.
Como podemos ver, estarei aqui privilegiando a “experiência” 3 .
Esta
palavra
vem
do
latim
experientia,
do
verbo
experiri
“experimentar” que significa ato ou efeito de experimentar (se),
“experienciar” (experimentar experienciando).
Gendlin (citado por Morato,1989) afirma que experienciando é
uma dimensão subjetiva 4 de eventos; refere-se ao que a pessoa
“conhece” intuitivamente, ou seja, que é em seu experienciando
próprio que a pessoa não só vive, mas também olha o mundo a partir
dele e através dele.
Este é o conhecer incorporado que constitui o
mundo próprio de fenômenos dotados de sentido.
Por conseguinte,
para Morato (1999, p. 126):
neste contexto os processos de aprendizagem revelamse
como
possibilidades
de
compreensão
e
conhecimento e, portanto, de atribuição de significado
para relações e situações vividas pela pessoa, seja
3
O apelo à exper iên cia, qu ando f o i for mu lado p e la pr imeir a v ez, no p lano
f i lo sóf ico , i s to é , n o s é cu lo X I I I , f o i u m a p e lo à i n tui ç ão . A l imi t a ç ã o d a
e x p er i ên c ia à i n t u iç ão s e n s ív e l f o i r ef o r ç ada , d o R en as c ime n t o e m d i a n te , p e lo
mo t i v o p o lêmic o , an t i- r a c io n a l is t a e a p ar t ir d o s écu lo X V I o ape lo à e x p e r i ên c ia
te m c la r a me n te o s ign ific ado de um li mite o u d e u ma n eg aç ão d as pr e ten sõ es da
r az ão.
4
Cab e aqu i a s s ina lar que d if er en teme n te d e autor es qu e exp lica m a vid a a par tir
do s an tagonismo s en tr e du as in stâncias, mu ndo in terno v ersus ex te rno, subjetivo
v ersu s obj e tivo, es tar ei n es te me u pe rcu rso tr abalhando a par tir da perspectiva do
a co lh i me n to à v id a n a su a mu l t ip l ici d ade e p r o ce s sua l id ad e c o n f o r me e x e mp l o s d e
Su ely Ro ln ik, Ju rand ir Fr eire d a Costa, Ângela Nobr e d e Andr ad e, Ma r ia Rita
K eh l e tc .
33
consigo mesma, seja com o mundo ou com os
outros.
Dentro desta perspectiva, Gendlin (citado por Morato, 1996)
aponta uma possibilidade de se constituir conhecimento a partir de
uma tradição fenomenológica existencial. Seria essa a possibilidade do
que Figueiredo (1993) denomina por conhecimento tácito? Voltarei a
isto mais adiante. De qualquer modo, o processo de aprender, a partir
da criação de sentidos, do que está enigmático, é atravessado pela
relação ética como habitação ou morada de significados que vão sendo
construídos.
Como lembra Andrade (1996), é na supervisão, como lugar, que o
estagiário
se
questionamento
depara
ao
com
saber
a
alteridade,
teórico-técnico
fazendo
adquirido
emergir
até
o
então,
oferecendo-se como possibilidade de abertura para esse estagiário
afirmar ou negar a diferença aí produzida.
Refiro-me em minha dissertação de mestrado, que o estagiário se
coloca num lugar de quem nada sabe, esperando que o Supervisor, o
Grande Messias, possa lhe indicar os passos para os rituais de
iniciação. Se o supervisor se mantém nesta relação de dominação, a
supervisão se constitui na barbárie, impossibilitando o estagiário de
efetivar uma ruptura de encontrar a si próprio.
Andrade
(1996),
em
sua
pesquisa
sobre
a
formação
do
psicólogo, investiga alunos da USP e PUCSP, relatando que, nos dois
diferentes universos, a “trans-formação pessoal” é apontada por
unanimidade como produto da formação. Entretanto, a autora também
34
enfatiza que as expectativas desses alunos no ingresso ao curso variam
desde as demandas mais ingênuas, no sentido de encontrar uma
Psicologia mágica como explicação e conserto do ser humano, até
demandas “mais maduras”, em que a Psicologia aparece como uma
possibilidade de elaboração e construção de conhecimentos a partir da
própria
experiência.
A
autora
resgata,
ainda,
que
a
estrutura
universitária visa a reproduzir o sistema de pensamento dominante,
mediante a universalização e generalização de um saber verdadeiro e
objetivo sobre o mundo que, no caso da Psicologia, aponta para os
mistérios do ser humano e sua psique, mostrando que tais expectativas
são construídas a começar do projeto epistemológico moderno. Assim,
a autora encontra depoimentos pelos quais os alunos negam a
alteridade no encontro, permanecendo na ilusão da existência de uma
verdade, na busca de um conhecimento objetivo e totalizante sobre o
ser humano.
Entretanto, a autora também mostra depoimentos de
alunos mais plásticos, críticos, que tendem a relativizar o valor das
teorias e construir outros modos de pensar o psicólogo baseando-se na
própria experiência e vivência da alteridade.
Ao longo de seu trabalho, a autora, dentre outros aspectos,
aponta que os alunos da USP, por unanimidade, relatam sentirem-se
mais acolhidos em sua produção no estágio de “aconselhamento
psicológico” (AP), onde a preocupação do supervisor se centra na
compreensão do movimento do cliente naquilo que está afetando o
estagiário. O referencial teórico apresenta-se como possibilidade de
pensar
o
atendimento
e
construir
algo
iniciado
a
partir
dessa
35
experiência. Para esses alunos, o desenvolvimento de uma postura ao
longo do curso ocorreria através daquilo que faz sentido. Como
salienta a autora, observa-se um movimento instituinte constante de um
“si próprio”, em que não ocorre uma separação sujeito-objeto.
Mediante o exposto, parece-me que a supervisão é um ato
clínico, porque antes de tudo é uma ação de acolhimento, de
sustentação à alteridade.
Mas será que é isto mesmo?
Para tanto,
preciso não só estar em contato com o outro, mas também acompanhálo para uma possível ressignificação do que seja esse encontro.
Ao acompanhar o supervisor e seus supervisionandos, como
pesquisadora, já tenho um olhar alterado pelo próprio modo de
visualizar este objeto: o “olhar etnográfico”, olhar esse sensibilizado
pela minha prática e teoria enquanto supervisora. Nesse sentido, o
“entre”
na
relação supervisor-supervisionando
não
é
visto
com
ingenuidade. Contudo, o olhar por si é insuficiente, ou seja, preciso
tornar as pessoas minhas interlocutoras: ouvi-las.
O ouvir, segundo
Oliveira (1998), altera a relação numa verdadeira interação, a que os
antropólogos chamam de “observação participante”, o que significa
que o pesquisador é aceito por aquele grupo. Deste encontro, no qual
o que vale é o diálogo, abre-se uma interpretação possível para
compreender o fenômeno em estudo, conduzindo ao escrever.
Ainda lembrando os estudos de Andrade (1996), os alunos da
PUC, em sua maioria, ingressam na experiência do estágio com o
ideário dominante em Psicologia de que é possível um saber a priori
sobre o outro. No entanto, o “projeto pronto”, levado a diferentes
36
grupos, comunidades, não se sustenta no cotidiano do encontro,
apontando para sua própria falência. É exatamente essa falência que
remete os alunos à instituição de outros modos de estar e de pensar a
Psicologia.
Enquanto, para a maioria dos alunos da USP, a vivência da
alteridade
no
transformadora,
encontro
para
os
é
angustiante,
da
desestruturadora e ameaçadora.
PUC,
esta
porém
é
gratificante
uma
e
experiência
Enquanto, na USP, a tendência dos
supervisores é incentivar os alunos a produzirem algo a partir daquilo
que estão sentindo ou que lhes está afetando no encontro com o
cliente, os supervisores da PUC também apontam para os sentimentos
do aluno, porém, não promovem um espaço para elaboração desses
sentimentos, voltando a atenção e discussão para os aspectos do
cliente.
Andrade (1996) observa que o processo instituinte de uma ética
da afirmação não se reduz a uma diversidade de práticas e a uma
diversidade de experiências vividas pelo aluno. Não se trata da
experiência da multiplicidade como estado (diferença identitária entre
as práticas: esta prática é diferente daquela), mas do acolhimento à
multiplicidade enquanto processo. Este acolhimento não passa por um
falar sobre ou explicar algo, mas por uma construção permanente a
partir daquilo que nos afeta. Como bem explicita Figueiredo (1993, p.
91-93):
a atividade profissional do psicólogo requer uma
incorporação dos saberes psicológicos às suas
habilidades práticas de tal forma que o mesmo
conhecimento explícito e expresso como teoria só
37
funciona enquanto conhecimento tácito 5 [que] é o seu
saber de ofício, no qual as teorias são impregnadas
pela experiência pessoal e a estão impregnando numa
mescla indissociável, este saber de ofício é
radicalmente pessoal, em grande medida intransferível
e dificilmente comunicável.
Assim, o conhecimento tácito impõe um movimento contínuo de
metabolização
de
experiências,
de
informações
consigo
mesmo,
entretanto, o autor salienta que o psicólogo é um profissional do
encontro; ou seja, ele lida com o outro na sua alteridade. Mesmo que
chegue a este encontro com precária segurança de teorias e técnicas, o
que importa é a disponibilidade para a alteridade enquanto um
desconhecido, desafiante e diferente, que se revela como algo que se
impõe
e
contesta,
conforme
sublinha
o
autor,
“fazendo-nos
efetivamente outro que nós mesmos”. Portanto, seria o acolhimento à
alteridade que capacitaria para o exercício da profissão, pois é trazendo
junto a mim as sombras dos meus outros que esta multiplicidade se
converte na condição mesma do trabalho como psicólogo. Nas palavras
do autor, “é no contato com as alteridades do outro e com nossas
próprias alteridades que transcorre e se efetua toda a nossa experiência;
é da experiência que se pode originar nossa eficácia”.
Por que o
acolhimento ou estranheza à alteridade é tão difícil?
Estamos desde o nosso início “dentro” dos outros, da família, da
nação, de uma tradição. É um outro que é anterior ao “eu” e a vida toda
estaremos imersos neste outro. Assim sendo, a alteridade é um
5
Par a Po laniy (1975) conh ecimen to tácito é aqu e le conhecime n to in corpor ado às
c ap a c id ad es a f e t iva s, co g n i t iv as, mo t o r a s e v er b a i s d e u m s u j e ito . F ig u e ir ed o
(1996) apon ta que etimo log icamen te tácido é calado , silencio so e qu e esta
c onc ep ção nã o é exp lorad a por Po lan iy.
38
fenômeno subjetivo, não temos como objetivá-la. Este estrangeiro,
portanto, emerge desde um plano de comunidade constituinte e
podemos ter ou não abertura para a sua afetação. E, para Figueiredo
(1994, p.307) “é lá de dentro deste acolhimento que ele se poderá
revelar na sua estranheza”.
Retomo a conclusão de Andrade (1996) quando aponta a presença
dessa dimensão ética do acolhimento à alteridade em Laborde e no
Plantão da USP, por não utilizarem uma determinada teoria como
modelo. Procuram estabelecer um processo de pensamento que institua
outros modos de estar a partir daquilo que está sendo vivenciado no
encontro, a partir da diferença ali imanente. É por essa perspectiva que
se apresenta a questão do aluno como produtor de sua própria
formação: implica em um agir por si próprio e a partir de si próprio.
Diz respeito a uma ação.
Arendt
(2001)
afirma
existirem
fundamentais: labor, trabalho e ação.
três
atividades
humanas
O labor é a atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho
corresponde
ao
artificialismo
da
existência
humano
e
a
ação
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens,
e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo, ou seja, são todos
os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a
qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. Ação é
atividade exercida diretamente entre os homens, diz respeito à condição
humana de pluralidade, é, ao mesmo tempo, um meio de liberdade
(capacidade de reger as próprias opções/escolhas) como também uma
39
única forma de expressão da singuralidade. Ação, como processo, diz
respeito à experiência humana real que se realiza em trânsito pela vida.
Assim, cada supervisionando é capaz de realizar o infinitamente
improvável e singular. Tal ação não é imposta pela necessidade, como
o labor, nem se rege pela utilidade como o trabalho. Ela pode ser
estimulada, mas nunca condicionada pela presença dos outros, como
lembra Arendt (2001, p.190), referindo-se às ações: “o seu ímpeto
decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos e as quais
respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa” Deste
modo, não cabe ao supervisor impedir o supervisionando de agir, pois
ele não seria o início de uma coisa; supervisor é alguém que é, ele
próprio, um iniciador. Nesse sentido, ação é um meio de liberdade e de
expressão
de
singularidade
de
um
(supervisor)
e
outro
(supervisionando) em sua situação de con-vivência.
Como
afirma
Montrelay
(1985),
referindo-se
ao
agir
do
supervisor, como um mestre, em Bali, guia a aprendizagem de um
jovem bailarino, colocando-se atrás deste. A autora mostra como ele
transmite ao aluno a arte de dançar na condição de que esse dance por
si;
do
mesmo
modo,
o
supervisor
deve
possibilitar
que
o
supervisionando associe, coloque hipóteses, seguindo seu próprio
caminho sem se identificar com o supervisor. Isto porque nada pode ser
aprendido em espelho, por reprodução de um modelo. A tarefa do
supervisor consiste apenas em possibilitar ao supervisionando a
encontrar seu próprio caminho, seu próprio espaço de trabalho, de
iniciar seus próprios processos. Para Morato (1996), o instrumento de
40
trabalho do psicólogo é ele mesmo; é a sua sensibilidade experienciada
no encontro com o outro que propicia a condição de conhecimento,
compreensão e comunicação para o cuidado e cura.
Por sua vez, Fédida (2000) afirma que o supervisionando narra ao
supervisor o que ficou, o que apreendeu e, sobretudo, o que elaborou de
seu encontro clínico. O supervisor escuta o que vai além das palavras
ouvidas, o que escapa, o que surge de estranho no conteúdo de um
discurso, o que surpreende em uma palavra “mal dita”. Nessa
perspectiva, esse modo de ser supervisor me faz lembrar o que
Benjamin (1985, p. 205) enfatiza como sendo o narrador: aquele que
troca, por palavras, as experiências vividas, ou seja, que a narrativa é
tecida
lentamente,
pois
ninguém
se
torna
capaz
de
transmitir
experiência, sem antes adquiri-las e incorporá-las à sua própria vida.
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo e ela se
perde quando as histórias não são mais contadas. Ela se perde porque
ninguém mais fia ou tece, enquanto ouve a história.
Quanto mais o
ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o
que é ouvido.
Quando o ritmo do trabalho do tecer se apodera dele,
escuta as histórias de tal modo que adquire espontaneamente o dom de
narrá-las. Assim se tece a rede em que está guardado o dom narrativo.
De outro modo, mas com sentido análogo, Figueiredo (1996,
p.119) faz intensa discussão quanto à preocupação do psicólogo:
formação e treinamento. Enfatiza que formar é proporcionar uma
forma, mas não é modelar uma forma, mostrando que disciplinas
formativas propiciam o ser psicológico e que, independentemente das
41
escolas teóricas de cada um, implica em situar-se nos campos da
epistemologia e da ética, não sendo jamais apenas um feixe de
habilidades técnicas. O treinar, lembra o autor, vem de tragere, trazer
para si, puxar, pois “quem puxa, coloca-se à frente, atraindo o
treinado, mas mantendo-se sempre uma certa distância”. O autor
salienta, no entanto, que as disciplinas de treinamento abrem o apetite
do aluno e que, portanto, são disciplinas que devem propiciar ao
aluno aprender razoavelmente bem alguma coisa, para que ele tome o
gosto por fazer melhor e passe a buscar suas próprias formas neste
mister. Se o eixo formativo não estiver sendo bem desenvolvido, o
treinamento trará poucos ganhos, especialmente se houver uma
sobrecarga
de
treinamentos,
podendo
gerar
desamparo
e
incompetência.
Como afirma Critelli (1996, p.39) investigar é sempre colocar
em andamento uma interrogação a respeito de alguma coisa que nos
afeta, que nos provoca, que buscamos compreender.
Segundo a
autora, todo interrogar pelo ser (de algo, que é o que constitui
qualquer investigação) tem sempre uma prévia interpretação de ser
que o orienta: “o ser que se busca através da fenomenologia não é
nenhuma entidade em si mesma, nem mesmo uma idéia a respeito da
substância dos entes”. Enfatiza que a questão do conhecimento (e,
portanto,
do
método)
é:
o
modo-de-ser-no-mundo-do-homem,
o
mostrar-se e o ocultar-se. Relembrando Heidegger, em Ser e Tempo,
Critelli (1996, p.45-46) diz que o problema do ser é um problema de
ser, isto é, existencial: “o modo co-determinado pelo modo mesmo do
42
homem ser-no-mundo-lidando-com-as-coisas-falando-com-os-outros”.
Somente assim seria possível ao ser tornar-se acessível, pois ser “não
pertence à coisa como seu próprio atributo, mas a uma trama de
relações significativas que a precede e sustenta”.
Nessa perspectiva, para Critelli, os entes não são objéticos mas
sim fenomênicos, mostrando-se como fenômenos. Afinal, o que as
coisas são não está nelas mesmas, ou melhor, em si mesmas, mas sim
na relação inextirpável entre um olhar e a coisa mostrando-se para
esse olhar: a coisa mostra-se como o que é e mostra-se também como
o que não é. A realidade, portanto, é o que é atualizado nesse
encontro. Desse modo, minha indagação como pesquisadora é:o que se
atualiza nessa relação/encontro entre supervisor e supervisionando?
Nesse sentido, este olhar que me é próprio, implica, ao mesmo tempo,
todos
os
outros
olhares
olhados.
Sendo
assim,
o
método
fenomenológico é um caminho onde o olhar se institui junto
ao
fenômeno e não sobre o objeto, um olhar que trnasparece os
paradoxos, a multiplicidade na trama existente. É um olhar de um
investigador que, segundo Critelli (1996, p.135), “enquanto interroga
o real está dando conta de ser, dando conta, inclusive, de ser ele
mesmo (própria ou impropriamente)”.
A autora continua dizendo que os sentidos se revelam de
diversas maneiras e por isto tudo vale como registro: visitas,
entrevistas, vídeos, desenhos. Porém, o registro é apenas um sinal,
uma
referência.
Critelli
(1996,
p.137)
afirma
que
o
olhar
43
fenomenológico só empreende “desvelamentos cuja passagem é o
inaudito, que exige daquele que olha a coragem da aventura.”.
A partir daí pude enveredar por um caminho para atingir meus
objetivos e tomei decisões metodológicas que considerei apropriadas,
conforme relatado no Capítulo 4 – A Coisa Estendida – A Tesssitura
da Questão.
44
PALAVRAS APENAS FISICAMENTE
Na Itália, il miracolo é de pesca noturna. Mortalmente ferido pelo arpão,
larga no mar sua tinta roxa. Quem o pesca, desembarca antes de o sol
nascer, sabendo com o rosto lívido e responsável que arrasta pelas areias o
enorme peso da pesca milagrosa: il miracolo amore.
Milagre é lágrima caindo na folha, treme, desliza, tomba: eis milhares de
milágrimas brilhando na relva.
The miracle tem dura pontas de estrela e muita prata farpada.
Le miracle é um octógono de cristal que pode girar lentamente na palma da
mão. Ele está na mão, mas é de se olhar.
Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono
de cristal. Até que de repente – arriscando o corpo e já toda pálida de
sentido – a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octógono,
mas lê miracle.
A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se.
Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-se em
estilhaços, assim como o fogo de artifício é um objeto opaco até ser, no seu
destino um fulgor no ar e a própria morte. Na passagem de simples corpo a
sentido de amor, o zangão tem o mesmo atingimento supremo: ele morre.
Clarice Lispector (1984)
48
Pensar em supervisão é pensar necessariamente nas diferenças, é
pensar a intersubjetividade como forma de o outro fazer parte de mim e vice
versa.
Focalizando o fenômeno da intersubjetividade e seu papel no campo
das relações pessoais, recorro a Morato (1996), quando afirma que a
condição
de
existência
relacional
possibilita
mudanças
nas
pessoas,
especificamente por ser essa mesma condição constituinte do existir:
possibilidade de afirmação de sua especificidade no encontro com outros. A
presença com outro vai possibilitar um abrir-se ao outro e sair de si para
encontrar-se encontrando. Encontro com a diferença em si mesmo.
Augras (1986) aponta que, no reconhecimento interpessoal, os limites
da identidade são assegurados pela revelação da alteridade e que a
delimitação do eu apóia-se ao esbarrar com o não-eu. Mas como reconhecer
o outro em sua propriedade, sem afirmar o próprio estranhamento gerador
de
abertura
para
o
outro? A cisão
confirma-se
como
condição
de
conhecimento. A autora, referindo-se a Kierkgaard, lembra que, em sua
meditação sobre os possíveis da liberdade humana, ele desenvolve o
“conceito de angústia” e observa que, no mito cristão, a angústia primordial
aparece juntamente com a figura de Eva, a fundamentalmente outra. No
Gênesis, Eva é criada a partir de uma costela de Adão, ou seja, surge de
dentro dele: o outro é um componente de si. A alteridade reside dentro do
ser, é da ordem do acolhimento da diferença, pela diferença. Não há “eu” e
49
“outro” puros, em si. O que há é uma relação intersubjetiva que vai
desenhando
espaços
de
existência
para
ambos,
como
no
poema
de
Drummond (1984, p.7):
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
E é de tal modo sagaz
Que a mim de mim ele oculta.
Refletir a relação na relação é, muitas vezes, penoso. É nesse
momento que o inusitado, algumas vezes, a mim tem se apresentado e fico
diante do indizível. Como tornar dizível este turbilhão de pensamentos,
emoções e movimentos que se passam dentro de mim?
O enigma que aí se instala me traz muita inquietação, especialmente
no que tange ao aparecer e ao ocultar fenomenal. Meu olhar de pesquisadora
poderá realizar um dado recorte na compreensão daquilo que se mostra até
aqui. Recorte este que se oferece como produto de minha subjetividade e de
minhas experiências.
Escrever sobre a experiência é imprimir a minha marca: o meu olhar;
o meu sentir; é também ouvir o outro como companheiro desta viagem. Um
tal percurso, em dados momentos, me paralisa com medo de revelar como
dizível aquilo que é visível aos meus olhos.
E assim começo este pequeno ensaio, brincando com o meu pensar, na
expectativa de que os meus interlocutores possam, através de seus olhares
interrogativos, ajudar-me a ver além do que se vê. E para começar a pensar,
50
retomo através de uma narrativa de Benjamin, (1936, p. 205) o começo de
tudo.
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio
artesão – no campo, no mar e na cidade - , é ela própria, num
certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não
está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa
narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha
a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim, se imprime n a narrativa a marca d o narrador como a
mão do oleiro na argila do vaso.
No campo do meu trabalho profissional, a docência é um vértice ao
qual tenho me dedicado com interesse; por isso, a formação dos alunos de
Psicologia é objeto de minha paixão. Ser professora-supervisora em
Psicologia, traz-me muitas responsabilidades e diversas inquietações:
inquietações relativas ao intenso relacionamento professor-aluno e outros
relacionamentos humanos; inquietações referentes à ideologia transmitida
nas supervisões; inquietações que dizem respeito à transformação do aluno;
inquietações no que se refere à construção de subjetividades, inquietações
em como “possibilitar” o supervisionand
51
Como é que eu sei que existe não apenas eu, mas o resto do mundo?
Como é que eu consigo perceber que nesse mundo existe uma parte
feita de homens como eu, que são sujeitos pensantes, capazes também de
refletir, de agir, enfim, de desempenhar-se enquanto sujeitos?
O estrangeiro está sempre ali, à nossa frente, constituindo-se um
enigma a ser traduzido, um mistério. O estrangeiro nos impõe os deveres da
hospitalidade; não temos como evitá-lo e/ou barrar sua entrada.
Como diz Serres (1993, p. 15)
É necessário partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornarse vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis
as três primeiras estranhezas, as três variedades de
alteridade, os três primeiros modos de se expor .
A voz do outro, a presença do outro está em toda parte. Nesta medida,
aponta Figueiredo (1994, p.303), ao fazer uma análise da questão da
alteridade na teoria de Jean Laplanche, enfatizando que Laplanche mostra
um desconhecimento de como ocorre a emergência da alteridade, “(...) ele
não faz o trabalho fenomenológico que dá conta da emergência simultânea
de uma alteridade e do si como protótipo de todos os acontecimentos, como
o acontecimento inaugural”.
Pensar numa realidade maternante é constatar que o outro já está
presente em mim, antes mesmo de eu me defrontar com ele, é isto que
caracteriza o chamado solo transubjetivo, onde não há separação, mas só
espaço para emersão. Porém, conforme Figueiredo (1991), há, a seguir, uma
irrupção da alteridade, chamada intersubjetividade traumática, onde nos
52
constituímos a partir de nossas defesas e passamos à intersubjetividade
interiorizada a partir das relações de objetos.
Se partirmos da filosofia moderna, ficará difícil a constatação de que
o mundo possa existir independente de mim. Tal problema teve suas
vicissitudes ao longo da trajetória do conhecimento, desde os gregos até
Hegel.
A perspectiva inaugurada por Descartes, no limiar irreversível da
modernidade,
independentes:
falava
Res
de
duas
modalidades
Cogitans
(fenômenos
de
seres,
mentais)
e
distintos
Res
e
Extensa
(fenômenos físicos). Ambos reuniam em si, de maneira paradigmática, os
principais
elementos
que
vão
reaparecer,
de
formas
diversas
e
diferenciadas, praticamente em todos os paradigmas da modernidade.
À Res Cogitans (o pensamento, a consciência), coincide o eu, como
realidade primeira, sendo pensamento ou consciência. Por sua vez, a Res
Extensa (o corpo, a matéria), fica, assim, reduzida à materialidade e à
objetividade, passando a ser vista como natural, regida por princípios
mecânicos
e
físicos,
desvendáveis
pela
ciência,
compreendida
como
cognição ou raciocínio, a partir da Res Cogitans.
Nessa perspectiva, a consciência, por outro lado, escondida no corpo,
atuaria sobre ele, controlando-o. Entretanto, e tão somente, por essa relação
de exterioridade, o que podemos apreender do outro é, apenas, sua
expressão exterior, manifestada como comportamento (não é esse o modelo
do
behaviorismo?).
É
nesta
perspectiva
que
nasce,
em
1879,
na
Universidade de Leipzig (Alemanha), o primeiro Laboratório de Psicologia,
53
fundado pelo Dr. Wilhelm Wundt, marcando a influência do positivismo
científico, ainda presente neste campo do conhecimento. Este foi o primeiro
passo para a criação de centros de ensino e formação em Psicologia,
situando-a como uma ciência que transitava entre as ciências naturais e
humanas,
ora
lançando
mão
de
métodos
experimentais
(Psicologia
Experimental), ora propondo a análise de fenômenos culturais (Psicologia
Social).
Wundt, via de regra, é apresentado, somente, pelos seus trabalhos em
Psicologia Experimental, contudo esta não era a sua área de maior ênfase.
Wundt, de fato, dava igual ou maior importância ao campo dos fenômenos
sociais, lançando mão dos métodos comparativos da antropologia e da
filologia 1 .
Vale
ressaltar
que
Wundt
já
trazia
uma
preocupação
com
a
experiência imediata dos sujeitos, sem se deter às diferenças entre esses
sujeitos, porém, já apontando que a experiência deveria ser o objeto da
psicologia. Na verdade, o que ele chama de experiência imediata estaria
mais ligado à noção de vivência, pois para ele “a experiência imediata é a
experiência tal como o sujeito a vive antes de se pôr a pensar sobre ela,
antes de comunicá-la, antes de ‘conhecê-la’ 2 . É, em outras palavras, a
experiência tal como ela se dá” (Figueiredo, 2003, p. 58-59), ou seja, o
vivido anterior a qualquer tipo de reflexão.
1
Corr esponde ao “Estudo d a língu a em to da sua amp litud e, e dos do cu me n tos escr ito s
qu e serv em p ara do cu me n tá- la” (Aur élio Bu arqu e d e Ho land a Ferr eir a, Novo D icion ár io
d a Língu a Por tugu esa, p. 779)
2
A sp as do au tor
54
Em seus trabalhos, Wundt trazia uma noção de subjetividade
compreendida como um “entre” o indivíduo e a sociedade. Embora essa
relação fosse considerada, redundava em problema para a pesquisa, pela
hegemonia do método experimental. Desse modo, segundo Figueiredo
(2003, p.61), Wundt recorreu à ‘unidade psicofísica’ para poder superar a
contradição metodológica imposta por dois conceitos de homens distintos e
não conciliáveis.
Desde
então,
toda
a
Psicologia
constituiu-se
a
partir
de
superposições, tanto no que se refere aos procedimentos metodológicos,
quanto ao seu próprio objeto de estudo. Dito de outra forma, cada corrente
de pensamento que emergia se firmava por questionar o objeto de outra,
propondo como foco um outro aspecto do ser humano e oferecendo um
novo, preciso e confiável modelo metodológico capaz de assegurar a
verdade sobre o que é o psicológico e seus desdobramentos.
Tais questionamentos e discussões introduzem o pensamento do
solipsismo 3 . Contrariando a própria fé experiencial de Descartes, ao propor
o raciocínio por analogia 4 : ao ver o corpo do outro e nele certos
movimentos, constato a semelhança do corpo alheio e do meu e, por
analogia, deduzo o que se passa nesse outro psiquismo, nessa outra
consciência. Nessa perspectiva o outro é uma experiência indireta e
provável. Apenas posso suspeitar de sua presença; na realidade, não se trata
3
D e so lu s ipse, ser só , diz do pen samen to que as s ever a a exis tên c ia ex clus iv a do eu ou,
no má x imo , d e ou tro s eus dep end en te s e redu zidas ao me u eu.
4
Cf. Abbagn ano, o termo tem d ois sign ificado s fundame n tais, sendo qu e u m d eles é
e mp r egado n a f ilo sof ia mo dern a e con te mpor âne a e qu er s ign ific ar o s en tido de
e x ten são prov áve l do conh ec ime n to, me d ian te o uso d e se me lh an ça s gen ér ica s qu e s e
pod e m adu zir en tr e s itua çõ es d ive rsa s.
55
de presença (Da-sein) 5 , mas de consciência, reflexão e pensamento por
analogia comparativa: reconhecer o que é o outro pelo que eu reconheço que
sou (Cogito).
O solipsismo constituiu-se num traço da filosofia da modernidade,
expressando o individualismo burguês alimentado pela ideologia. Embora
tenha se tornado uma fonte de reflexão, em verdade passou a ser problema a
ser superado, como já apresentado pela tentativa de unidade psicofísica para
Wundt.
Verificar na história do pensamento como isso aconteceu demandaria
um desvio de meu propósito, que não é mais do que traçar alguns pontos da
trajetória da experiência inter-humana. O que apenas quero apontar é que a
superação desse “solipsismo” pode demandar ainda algum tempo, se é que
ele poderá ser superado, principalmente se considerarmos a Psicologia, tão
repleta de teorias e práticas, implicando ver sua multiplicidade como que
decorrente de diferentes noções solipsistas.
Husserl (1976), como Descartes, partiu da evidência como critério
único para alcançar a verdade. Tal critério seria dado pela intuição
imediata, buscando, por el
56
a evidência apodítica procurada. Pratica a suspensão 7 , ou epoké, de juízo de
tudo o que é tomado como real natural, pois que a atitude irrefletida e
ingênua da vida corrente contém em si uma crença existencial relativa ao
mundo, não podendo conduzir ao conhecimento.
Retornando-se à compreensão de Wundt acerca da experiência
imediata, como aquela vivida pelo sujeito antes de sobre ela pensar, Husserl
estaria praticando a epoké como possibilidade de transcender à noção de
vivência, ou seja, ao imediatamente vivido como anterior a qualquer tipo de
reflexão. Nesse caminho encontra algo que não pode ser reduzido ou
colocado entre parêntese: a consciência, que é a evidência apodítica
buscada, ou seja, a transcendência da consciência.
Mas não se trata da consciência de que fala o psicólogo, ou seja,
nome dado a um conjunto de fatos externos e internos observáveis e
explicados casualmente. A consciência a que se refere Husserl é o sujeito
do conhecimento como estrutura e atividade universal e necessária do saber.
É a consciência como sujeito transcendental. Essa consciência teria o poder
de descobrir as essências, que são significações produzidas por ela, na
qualidade de poder doar sentido ao mundo.
7
Husser l propõ e o “ re t o r n o à s c o isa s m e sma s” co mo pon to d e p ar tid a para o
c o n h e c i me n t o , só q u e n ão se r ef er e a u ma r e a l id ade e m- s i, ma s co mo f en ô me n o . O
recu rso u tilizado é a re du ção. Para Forgh ier i (1993 , p .15-16) , a redução não é u ma
abstração , ma s u ma mud ança de atitud e – d a atitude natural (aqu ela qu e acred ita que o
mu ndo ex iste por si me smo , independen te de no ssa presen ça; n ão r ef letida, v iv id a no
co tid iano) p ara a atitud e f eno me no lóg ica ( e m que suj e ito /obj eto como to talid ad es se
r evelam como sign if icaçõ es) . Isso é possív e l susp end endo ou co locando en tre
p arên tesis, for a d e ação, a f é na ex is tên c ia do mu ndo em si e todo s os p recon ceito s e
teor ia s das ciên cias da n a tur eza qu e d e corr em d e ssa f é. Não d eve susp end er não
so men te o mu ndo , ma s o própr io suj e ito, toma d o co mo tema de ref lex ão, d e ix ando
a p ar e ce r o e u p u ro ou o “ego t ran s cendenta l” co mo e xpe c tador imp a r c ia l, a p to a
apreend er tudo o que a ele se apr esen te co mo fenô me no.
57
Em outras palavras, a consciência não é um fato observável nem uma
substância pensante, mas é pura atividade, ato de constituir essências ou
significações, doando sentido ao mundo das coisas, que seria o correlato da
consciência: aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido, pois a
consciência é sempre consciência de algo. A isto Husserl nomeia de
intencionalidade.
Sendo
a
consciência
sempre
consciência
de,
a
análise
dessa
consciência intencional seria a descrição das formas como a consciência
tematiza seus objetos, ou seja, a descrição das diferentes formas de relação
entre o sujeito e o seu mundo. Ela é a mediadora entre o sujeito e o mundo,
cabendo captar a intencionalidade a partir de suas manifestações corporais,
comportamentais e, também, das obras e criações espirituais.
Husserl afirma que não há "coisa em-si" (o nôumeno de Kant) como
incognoscível. Tudo o que existe é o fenômeno e só existem fenômenos.
Fenômeno é a presença real das coisas reais diante da consciência; é aquilo
que se apresenta diretamente à consciência. Assim, o que chamamos de
cultura seriam também fenômenos, isto é, significações ou essências que
apareceriam
à
consciência
e
que
seriam
constituídas
pela
própria
consciência.
Desse modo, de acordo com Husserl, o psicólogo deveria considerar
que o eu vive no mundo, mas não somente preso àquilo que vivencia no
momento; vivencia o passado e faz prospecções para o futuro, devendo
dirigir-se ao “mundo da vida”, ao mundo da vivência cotidiana imediata, no
qual todos vivemos, aspiramos e agimos. Além disso, os seres humanos,
58
embora sejam peculiares, constituem-se no e com o mundo, possuindo certa
“comunalidade”, pela qual existem uns com os outros, dada a capacidade de
se aproximarem e se compreenderem mutuamente em suas vivências.
Para Husserl (1969), o mundo recebe o seu sentido não apenas a partir
das constituições de um sujeito solitário, mas do intercâmbio entre a
pluralidade de constituições dos vários sujeitos existentes no mundo,
realizado através do encontro que se estabelece entre eles. Embora não haja
precedência do eu sobre o outro, pois, na experiência mesma, o outro já está
desde o começo comigo, sendo possível distinguir o que é meu próprio
através de uma experiência direta, minha própria experiência, enquanto que
a experiência do outro é acessível, indiretamente, pelo seu corpo animado.
Em outras palavras: a experiência do eu seria da ordem da presença, ao
passo que a experiência do outro seria da ordem da apresentação, fazendose fenômeno dado à consciência.
Para Husserl, a noção de intersubjetividade ocupa lugar importante na
discussão sobre a possibilidade de se conhecer a experiência que temos de
um outro, assim como do mundo objetivo. Só me é dado saber/conhecer o
outro como outra consciência, ou outro eu, a partir de minha consciência
intencional. Deste modo, é possível afirmar que, no plano da consciência
intencional, o mundo vivido é sempre o mundo vivido de cada um. Assim, a
experiência de um sujeito não teria como ser remetida como condição
constituinte a um mundo vivido em comum, compartilhado com outros.
Habitar o espaço da intersubjetividade, interposto por Husserl,
poderia apresentar-se como um ultrapassamento tanto ao racionalismo
59
quanto
ao
solipsismo,
enfrentado
por
Wundt
e
pelos
psicólogos
introspeccionistas. Permitiria que diferentes sujeitos pudessem ter acesso ao
mesmo
mundo.
conhecimento.
Ele
legitima
o
sujeito
como
ponto
de
partida
do
Ele rompe com o conhecimento científico da objetividade,
da razão.
Contudo,
como
também
já
foi
discutido,
a
compreensão
de
intersubjetividade para Husserl contemplava somente o encontro de dois
mundos: ao ver o corpo do outro e nele certos movimentos, constato a
semelhança do corpo alheio e do meu e, reconhecendo-o como outra
consciência de, é possível ter acesso a esse outro psiquismo, outra
consciência. Trata-se de encontrar a intersubjetividade como consciência
de, conhecendo-a por uma redução de julgamento, ou seja, pela supressão
do próprio eu vivido pela experiência imediata.
Gostaria, neste momento, de deixar claro para o leitor que, apesar de
reconhecer
o
grande
avanço
de
Husserl
na
compreensão
da
intersubjetividade, estou aqui apenas mostrando o que alguns autores
pensam sobre esta questão, o que não significa que, necessariamente, eu
concorde com eles.
Merleau–Ponty (1984), interrogando a intersubjetividade, recorrendo
à compreensão de Da-sein de Heidegger 8 e à percepção estudada pela
Psicologia da Gestalt 9 , reflete o espaço intersubjetivo como aquele onde
8
Cf . p. 55, no ta d e rod ap é nº 5.
G es ta lt c o mpr eend id a co mo
conf igur ações p er c ep tiva s.
9
s ign if ic a ção
c ontex tu aliz ad a
pe la
a ltern ân cia
de
60
vidente e visível, tocante e tocado se confundem, traduzindo-se em
movimento sempre reversível.
Como já assinalado no capítulo 1, Coelho Jr. (1991), acerca do
visível e do invisível em Merleau-Ponty, afirma que há uma intenção em
suprimir a
clivagem entre sujeito e objeto. Para ele, o fundante não é a
consciência em face de um mundo, mas o que ele denomina “Carne”. Nessa
perspectiva, vidente e visível, tato e tangível, apesar de apresentarem um
movimento reversível, implicam, na realidade, em uma reversibilidade
sempre iminente e nunca de fato realizada, pois corpo e coisas são feitos do
mesmo estofo. Assim, Merleau-Ponty aclara a questão da intersubjetividade
a partir da corporeidade. Nesse sentido, o espaço entre precisaria ser
privilegiado para poder se apreender questões referentes à existência
humana.
Como observa Merleau-Ponty (1980, p.278) “imerso no visível por
seu corpo, embora ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que
vê: só se aproxima dele pelo olhar”. Ou seja, vejo as coisas porque estou
entre elas, porque também sou visível. Há entre mim e outro uma relação de
pertença imbricada no mesmo mundo, implicando que, por meio desta coisa
intersensorial, experiência e sentido se comunicam.
Tomamos emprestada neste momento a pergunta de Frayze-Pereira
(1984, p. 142)
Ora, se a experiência do corpo consigo mesmo, um visível
capaz de reflexividade, se propaga na relação entre ele e as
coisas, por que não se verificaria essa propagação entre ele
e um outro corpo? Abertos um para o outro, numa
experiência iminente, podemos nos tocar, comungamos um
61
mesmo panorama, é a abertura que permite ao outro ver o
mesmo mundo, embora por outra face... o ser não é
solipsista, mas intersubjetivo, intersubjetividade esta que
não resulta de uma soma eu mais outro, individualidades
mutuamente exteriores, mas faz parte da estrutura do ser.
É porque o outro me toca, é porque o outro me faz carinho, é porque
o outro olha para mim, é porque o outro se comporta diante do meu corpo,
que eu sinto este outro, enquanto um outro mesmo.
Perceber o outro é
perceber que estou sendo também percebido por esse outro, percebendo que
o outro está se comunicando, fazendo, agindo em relação a mim.
Originalmente, passamos meses da nossa vida calados, enquanto só os
outros falam; assim, muito antes de sermos falantes, somos falados somente
pelo falar de outros. Portanto, muito antes de sermos falantes, fomos
ouvintes, e, nesta condição, tocados e ditos pelas palavras dos outros...
Assim, aprendemos a falar palavras que são as ouvidas da fala dos outros;
vamos nos acontecendo falantes, por termos sido bons ouvintes.
Enquanto ouvinte, enquanto objeto do toque alheio, do movimento
corporal alheio, podemos reconhecer a existência desse outro, ao mesmo
tempo em que esse mesmo reconhecimento é solo para meu próprio
reconhecimento como um si mesmo. Esse outro que é um sujeito que fala,
que se mexe, que pensa, possibilita que, a partir dele, eu possa saber de
mim, dando-me conta de minha própria existência. Desse modo, ouvir (ser
tocado pelo mundo e pelo outro) abre-me ao meu dizer de mim (ação de
também tocar o mundo e o outro): reversibilidade irreversível.
Por esta reflexão, é possível compreender como Merleau-Ponty,
começando com Heidegger, visto a seguir, abre possibilidades para uma
62
fenomenologia da intersubjetividade como constituição fundante para o
conhecimento. Partindo não do sujeito individual e isolado da consciência
de, inaugura o lugar da relacionalidade comunicacional. A fala é o modo de
apropriação do sujeito no mundo entre outros. Assim, a linguagem não é a
expressão de um sujeito, como também não é uma representação, mas sim é
expressão de uma forma de relação no mundo com outros. Não é uma
expressão do sujeito como se esse sujeito pudesse existir independente da
situação mundana na qual está imerso, assim como não há consciência
vazia, mas sim intencional, dada pela percepção da experiência do vivido
existencial
como
sendo
no
mundo
no
modo
da
con-vivência:
interpenetrabilidade inalienável. Assim, buscar compreensão numa fala não
é apenas conhecer um sujeito, mas sim mostrar a expressão de um modo
possível de relação entre sujeito-objeto, eu-mundo-com outros.
O sujeito não existe antes de ser um sujeito falante. Sendo um sujeito
no mundo com outros, constitui-se através da intersubjetividade. É no
contexto intersubjetivo que se faz possível a este sujeito encontrar-se:
saber de si e do mundo. Para Frayze-Pereira (1984), a intersubjetividade é a
possibilidade que cria no sujeito a perspectiva de aberturas a outras
experiências
possíveis.
Ancorado
em
Merleau-Ponty,
diz
que
a
intersubjetividade é corpórea antes de ser espiritual, pois primeiro se
percebe uma outra sensibilidade, para depois fazer-se pensamento. Diz,
ainda, que outro caráter marcante da intersubjetividade é a transitividade
(reflexividade) de um corpo a (e) outro, instaurada pelos sensíveis
perceptuais
(visão,
gestos
e
sons)
revelando
expressividade
e
63
exteriorização. Com isto, abre-se, segundo Frayze-Pereira (1984, p. 144145):
a dimensão invisível do pensamento (...) e da linguagem,
pois existe ainda a reversibilidade entre o som (palavra) e o
sentido (significado). (...) A relação entre os homens darse-á agora através de signos, ficando a palavra a meio
caminho entre o sentido e o pensado. (...) Em parte alguma
haverá esses fetiches que são o fato puro e a idéia pura, mas
mescla e reversibilidade de sensibilidade e idealidade.
Nessa mesma direção, Morato (1989), a partir de Gendlin, aponta que
a experiência, como modo de ser humano constituinte pela abertura ao
mundo (ou seja, experienciar em situações), desvela a intersubjetividade
ocorrendo pela possibilidade de comunicação de significados. Contudo, tais
significados referir-se-iam diretamente ao que estaria ocorrendo na situação
vivida. Desse modo, Morato (1989) citando Gendlin (1962, p.81), diz:
Não podemos conhecer o que um conceito “significa”, ou
usá-lo significativamente, sem o “sentir” deste significado.
Nenhuma quantidade de símbolos, definições ou algo
similar, pode ser usado no lugar de significado sentido. Se
não há significado sentido do conceito, não é possível
compreender o conceito – (este) aí somente fazendo-se um
ruído verbal. Nem se poderia pensar sem significado
sentido.
Assim, a autora, recorrendo a Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger,
Gendlin apresenta como o significado sentido (felt meaning) se relaciona
com articulação de significados (cognição/pensamento), referindo-se ao que
denomina como experienciar em situação, sensação corpórea intuitivamente
percebida/sentida (felt sense, ou seja, sentido sentido), dada pela condição
de ser situado no mundo, própria ao humano. Implica em uma compreensão
prévia do que está sendo sentido como acontecimento que pode ter efeitos a
partir tanto de mim mesmo quanto da situação em que me encontro. Embora
64
implícita (não cognitivamente pensada, nem conscientemente percebida),
essa afetação é ativa, pois, articulando-se ao que foi corporeamente sentido,
permite abrir-se ou não a um significado sentido (felt meaning ou
experiencing meaning), comunicável em linguagem, já implicitamente
constituída pelo experienciar como modo de ser: fazer experiência na
intersubjetividade. (Morato, 1989).
Acredito que o compartilhar a constituição de mesmo espaço de
encontro possibilita aos sujeitos se reconhecerem singulares, podendo, por
isso mesmo, se expressar e constitur significados, pois todo sistema de
significação, criado pelo corpo histórico-cultural, reporta a significadossentido,
produzidos
intersubjetivas.
por
subjetividades
antecedentes
em
situações
65
possibilidades que o mundo oferece, onde o sentido é construído nesse
espaço
intersubjetivo
aberto
ao
inusitado
oferecido
pelos
encontros
acontecimentais. Desse modo, a supervisão apareceria não só como um
momento de perceber-se no fazer da própria prática, mas também lugar para
tornar-se um terceiro instruído, encontrando novo significado-sentido para
um outro próprio si próprio.. O supervisor, fazendo-se presença, ou seja,
junto
ao
outro,
sustentação/afirmação
ofereceria
para
o
si
próprio
como
supervisionando
possibilidade
fazer
experiência
de
e
compreender-se como abertura para criar novos significados-sentido. Pode,
efetivamente, fazer uso daquilo que faz, como faz, como atualização de si
próprio, apropriando-se de si, sendo atravessado por sua experiência como
abertura, para dirigir-se adiante: um novo lugar em e para si próprio no
mundo. O supervisor, por sua vez, por seu olhar singularmente outro nessa
mesma situação intersubjetiva, no lugar de ouvinte, pode ir tecendo um fio
de compreensão por entre a descontinuidade do que lhe é apresentado pelo
supervisionando, permitindo-se sustentar essa fenda como abertura de
possibilidades para novos caminhos na direção da experiência de um fazer
próprio do supervisionando. É a presença com outro, que vai possibilitar um
abrir-se à experienciação e instituir outros modos de estar-no-mundo. Tal
modo de fazer supervisão exige do supervisor uma afirmação dessa situação
como clínica.
À medida que o supervisionando pode afirmar o estranho/as rupturas,
ele pode experienciar um ambiente que lhe permite “ser” (ser ele próprio),
ele então vai se sentindo autorizado estar ali de forma própria.
66
Pensando na questão da intersubjetividade, Figueiredo (1991), numa
Mesa Redonda na PUCSP, numa interlocução com as idéias de Max Scheler,
lembra que as vivências são originalmente e a maior parte do tempo muito
menos diferenciadas e diferenciáveis do que imaginamos. O autor, nesta
Mesa,
cita
as
palavras
de
Scheler:
“O
homem
vive
de
início
e,
principalmente, dentro dos outros e não de si mesmo, ele vive mais dentro
da comunidade do que dentro de sua própria individualidade”.
Figueiredo mostra, com esta citação de Scheler, que estamos todos,
assim, dentro dos outros, e que este outro é anterior ao “eu”, ao “tu’ e ao
“ele” e que as vivências são originalmente e a maior parte do tempo, muito
menos diferenciadas e diferenciáveis do que imaginamos. E como acontece
a diferenciação? Figueiredo diz, nesta mesa redonda, que Scheler sugere
que o processo de diferenciação que permite segregação de uma região de
vivência, originalmente coletiva, organizada em torno do “eu”, em oposição
a outros “eus”, ocorre dos movimentos e tendências expressivas dos corpos
individuais e segundo interesses, demandas etc. da própria coletividade, ou
seja: é dentro da coletividade que eu me individualizo, pois são movimentos
que se constituem no transubjetivo que constituem a minha individualidade.
Lembramos, no entanto, que esta diferenciação nunca é total, pois estamos
sempre imersos numa coletividade. Aquilo que pode nos parecer mais
privativo constitui-se dentro do outro indiferenciado.
É importante ressaltar que em Scheler a separação eu-tu não é o dado
primeiro, mas sim um processo de indiferenciação, pré-reflexivo, onde há
produção de uma corrente de experiências psíquicas indiferenciadas sem
67
ligação com qualquer dos pólos eu-tu e que, então, começa a haver
possibilidade de comunicação. Aliás, não é só aí, mas em qualquer situação
essa possibilidade é permanente, mesmo quando já há diferenciação entre
eu-tu. É justamente esse solo transubjetivo que possibilita a compreensão, o
sentir e o pensar.
Entretanto esta diferenciação nunca é total, pois sempre há um solo
transubjetivo, coletivo, comum, que permite a comunicação, os encontros,
sejam eles “amorosos, pedagógicos, terapêuticos” (Figueiredo, 1991, p.7).
Lévinas (1997) mostra que o ser está em constante transformação,
possível pelo contato com o outro, que, no entanto, é o mesmo. O autor
coloca que “somos o mesmo e o outro”, mostrando que a alteridade só existe
na relação entre subjetividades, quando o eu se defronta com o outro
cotidianamente. Ou seja, não há “eu” e “outro” puros, em si. O que há é
uma relação intersubjetiva que vai desenhando espaços de existência para
ambos. Para este autor, o homem é de início sofrido, vulnerável,
desamparado e, neste sofrimento, ele se depara com o rosto (expressão), que
é exigência, exigência de uma resposta a ele e, nesta condição, começa a
existir uma interação, uma interpelação mútua. Começa aí a subjetividade.
Não existe, para Lévinas, processo de constituição de si, se não for uma
resposta a uma intromissão do outro. Aí, embutido, encontramos um
passado imemorial que é a experiência de ter sido interpelado pelo outro,
antes mesmo de ter memória. Este outro deixará marcas e cicatrizes, que
deixarão vestígios que contêm a visitação pré-histórica da alteridade. Como
68
afirma Lévinas (1997), o rosto é um sentido por si mesmo, ele é o
incontido, leva sempre para o além. O pensamento não consegue abarcá-lo.
Resgato Melo (2003), falando da concepção levinasiana, mostra que
o
rosto
é
expressão
que
dá
significado
à
ética
da
alteridade.
Etimologicamente, o rosto é essencialmente visual (do latim visus, aspecto
aparente e videre, ver). O rosto é outrem olhado, sou eu olhado por outrem.
O rosto é visibilidade. O olhar do rosto é imersão do sujeito, dentro de uma
relação face a face, na qual o outro que me olha é aquele que me revela.
No encontro, diz o autor acima citado, o Mesmo é interpelado a
abandonar o seu posto de vigilante solitário da existência do mundo, o lugar
de quem tudo contempla e sabe. O olhar é desconfortável, põe o Mesmo em
situação de êxodo. É o outro que apela para o Mesmo, que o desinstala, que
lhe exige abertura e acolhida.
O olhar do outro me expõe, põe-me em
perigo, temporaliza-me, espacializa-me. Revelo-me através do outro que me
apreende como objeto do seu olhar. O olhar é revelado por ele ser
comunicação e comunicante, por ele ser apelo e apelante, por ele ser
acolhida.
Como
vimos,
intersubjetividade,
no
que
diz
respeito
encontramos
na
literatura
à
alteridade,
várias
e
como
diferentes
compreensões.
Do
ponto
de
vista
da
supervisão
devemos
perceber
todas
as
expressões do espaço intersubjetivo, onde o supervisor possa ser capaz de
presentificar
o
estilo
de
ser
do
seu
supervisionando,
onde
ambos
(supervisor-supervisionando) possam realizar um encontro caracterizado
69
como espaço “entre” as duas pessoas, onde não há um e outro separados,
mas
ambos
relacionando–se
e
constituindo-se
simultaneamente
nessa
relação.
Figueiredo (1996) mostra que o que vai caracterizar a clínica, é a
submissão do sujeito a um outro que interrompe e se eleva à sua frente,
expressando sofrimento, mas que será também este mesmo outro que pode
assumir diante do sujeito uma posição ensinante. Segundo o autor, é como
Lévinas assinalava: é a experiência ética por excelência: a partir de um simesmo, reconhecer o “outro” na sua alteridade, a eleidade do outro
transborda os limites da minha consciência intencional, os limites da minha
compreensão e se eleva à minha frente impondo–se a mim.
Voltando ao fio do meu “tricô”, parece-me que, no trabalho da
formação do aluno, necessário se faz o que Figueiredo (2000) chama de
olhar de fora do campo, que fala dele, que trata do campo enquanto tal. O
autor mostra que o casal Baranger, na década de 60, chamou-o de segundo
olhar. O segundo olhar desobstrui, combate o fechamento do campo. Este
segundo olhar é um olhar de reserva, cuja função, nos afirma Figueiredo, é
também a de repor em reserva a mente do analista que, na dinâmica
transferencial–contratransferencial, havia sido excessivamente capturada,
sofria de um “excesso de implicação”. O segundo olhar reabre o “aqui e
agora” para a sua multiplicidade constitutiva.
O autor assinala que a supervisão é como um “olhar de reserva”,
capaz de repor em reserva o supervisionando, liberando-o de um campo de
concentração totalitário.
70
Na minha dissertação de mestrado (1988) saliento que a supervisão é
um lugar de compartilhar experiências, é um espaço de co-construção, onde
o supervisionando precisa ser sustentado nas suas angústias, onde se criam
possibilidades para sua independência. O supervisionando precisa ser
“embalado” por este olhar e escuta de reserva que o bom supervisor deve
proporcionar, possibilitando que a supervisão seja um lugar de abertura para
a afirmação dos estranhamentos, bem como um lugar de serenidade
caracterizado pela capacidade de esperar o inesperado e de sustentar-se na
abertura do aberto.
Figueiredo (2000) afirma que, na fenomenologia do tédio profundo,
iremos encontrar melhores subsídios para pensar a indiferença sem a qual
não se cria nem se conserva a presença reservada do analista. É aí no tédio
profundo que o dasein submerge na indiferença e já não encontra nem
procura saídas pelo facilitário, pois ele nada quer, nada resiste, recolhe-se
em si mesmo, se paralisa.
É o afeto 10 que dá ao homem a possibilidade de se reconhecer ou se
recolocar em sua relação originária com o “nada”. Heidegger (1991) nos
fala da angústia do temor mostrando que aí estamos diante de algo
determinado que nos amedronta e que na angústia estamos diante de nada
determinado, só temos a impossibilidade. No primeiro caso, a ameaça vem
dos entes, e no segundo caso os entes faltam, abandonam o homem à sua
10
Cf. Abbagn ano (1982, p . 19), a palavr a af eto d esigna o conjun to d e ato s ou d e
atitudes como a b ondad e, a b enevo lência, a inclinação , a d evo ção , a pro teção , o ap ego,
a g r a t id ã o , a t e r n u ra e tc . q u e , n o s e u to d o , pod em ser caracter izado s co mo a situação em
qu e u ma p es so a “ to ma c u idado de ” ou “ nu tre so lic itude por ” u ma o u tra p es soa , ou qu e
estou tr a r e spon sab ilid ad e, po sitivame n te, ao cu id ado ou à solicitud e de qu e fo i obj eto.
71
incompletude. Sendo assim, como diz Heidegger (1991, p. 250) “aquilo com
que a angústia se angustia, é o nada que não se revela em parte alguma”.
Heidegger posteriormente desloca a problemática da angústia e
começa a pensar em como escapar da armação, do total desamparo e
resgatar o habitar primordial. Habitar com confiança é estar pronto para o
que der e vier.
Figueiredo
(1996)
afirma
que
para
Heidegger,
o
com
é
uma
determinação do ser–aí, no sentido de que o mundo é sempre o mundo
compartilhado com os outros (Mitwelt) e que, por consegüinte, o encontro
com os outros não é a apreensão que um sujeito faz de outros sujeitos
distintos dele, nem tampouco uma visão de si mesmo que estabelece uma
diferença em relação aos outros. O Dasein só é na medida em que possui a
estrutura essencial do ser–com. Como nos lembra o autor é o Cuidado 11 que
permite interpretar o ser–com e que a compreensão do ser do Dasein já
implica uma compreensão dos outros.
Sendo assim, na relação com a
alteridade o outro é um outro Dasein, isto é, encontra-se no registro do meu
cuidado.
O envolvimento primordial com os outros daseins é interpretado
como um habitar primordial (Condasein), que nos leva a pensar em um
habitar conjunto (mesmo que não haja uma interação, ou seja, o outro não
11
Cf . Ab agnano (1982) - Cu id ado (lat. Cur a ; al. Sorg e) é a pr eocup a ção, enqu an to é,
segundo Heid egger , o própr io ser do Ser-aqu i, isto é, d e ex is tên c ia . O C. é a to ta lidad e
d as estru tu ras on to lóg icas do Ser- aqu i, enqu anto é u m ser-no- mundo : em o u tro s te r mo s,
ele co mpr eende tod as as po ssib ilid ades da ex is tência, enquan to estão v incu lad as às
co is as e ao s ou tro s ho mens e do min a das p e la situ ação. (p.208).
72
precisa estar ali presente), cada vez que encontro outro dasein, estou
encontrando uma cadeia de daseins. Para Clarice Lispector (1984, p.426):
Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia
dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós.
Retomando o meu tecer neste momento, faço uso das palavras de
Morato (1996, p. 89) quando afirma:
Pela intersubjetividade no encontro terapêutico é que se
revela a especificidade do fazer do terapeuta: a qualidade de
sua função receptora ou empatia. Qualidade abrangente de
uma receptividade que lembra a dimensão estética
existencial do encontro humano. Diz Fédida (1986, p. 624),
uma
‘ressonância
tonal’,
encontro
profundo
e
significativamente potenciável para propiciar mudanças e
que demanda do terapeuta uma qualidade especial para
acolher, ouvir e promover relação de intimidade, de afetos,
quase tão primitiva como um mito. Demanda, compreensão e
escuta do quase infantil, pré-verbal,
para que esse
impronunciável, sendo acolhido e ouvido, assim traduzido,
dizer-se. Qualidade de escuta e ato de compreensão que
possibilitam “cura” (cuidado) na pro–cura repetida: revérie,
holding, congruência, aceitação, acolhimento, empatia, ou
seja, condição de presença com compreensão cuidadosa do
terapeuta.
Passo agora a me perguntar: Que subjetividade é esta do meu
supervisionando? E, para responder, lanço mão da explicação de Naffah
(1999, p. 9), quando mostra que subjetividade assim como sujeito, vem do
latim sub–jectum, que significa “aquilo que subjaz”. E para ilustrar, o autor
utiliza-se do seguinte comentário de Warter Brugger:
atos,
de
que
os
atos
estão
“nele”,
exprime-se
filosoficament(...) Sujeito é a realidade que está na base,
que sustenta, o “sustentador”, o “portador”, denota pois,
essencialmente, uma relação a outra realidade que “descansa
sobre ele”, que é “sustida” por ele (...). o que se pretende
explicar com as expressões gráficas de “sustentar”,
“receber”, só nos é dado originalmente, de modo imediato,
na relação de nosso eu com seus atos e estados. O fato
vivido de que o eu “tem” os atos como seus e, denominando
o eu como sujeito dos mesmos atos.
73
Este sujeito não precisa do Outro?
Recorro a Assoun (1997) que
mostra que Lévinas apreende o tempo como relação do sujeito com outrem,
portanto contra a representação de um Dasein isolado, mas resgatando a
alteridade e a morte, enquanto desmanche do aqui-e-agora, em toda
existência e, assim, ligando-se exterioridade e alteridade, ameaça que vem
de fora, mas que de qualquer modo, é neste horizonte que a relação com o
outro irá se impor ao sujeito.
A partir da ótica da fenomenologia existencial heideggeriana, o ser do
homem se constitui no cuidado e isto é constituinte da dimensão ontológica
humana. O homem é o lugar do ser, é o ser-aí que é também o ser-no-mundo
que responde aos apelos dos entes que lhe aparecem (intramundanos).
Assim, o ser-aí jamais pode ser um indivíduo monádico, pois os outros, que
com ele estão no mundo, constituem seu próprio eu, portanto ser-aí é sercom.
O mundo abre-se para o encontrar-se do ser-aí, angustiar-se é um
modo de encontrar-se no mundo. Assim, posso compreender as buscas, o
lançar-se, o angustiar-se de um supervisionando, quando ele depara com a
inospitalidade com que o mundo lhe aparece, quando ele imagina que para
poder ser, depende do que possa aprender e estocar, tendo o supervisor
como modelo. Nessa busca, esquece que o homem se constitui nas
possibilidades de ser que se mostram através dele mesmo, ou seja, que cada
homem só pode ser aquele que ele já é.
74
Como bem mostra Morato (1999), são múltiplos os espelhos em que o
supervisionado pode mirar-se e em que, ao mirá-los, não vêem apenas
imagens de si mesmo, mas outras imagens. Pois, no espelho, nos vemos
refletidos e aos outros, ou melhor, em nós e nos outros, nós mesmos. Daí a
importância da supervisão coletiva, pois o grupo se constitui uma galeria de
espelhos.
Com mais um passo neste percurso, retomo Figueiredo (1996),
quando enfatiza o pensamento de Maldiney, resgatando o irredutível, que é
o estranho, o inassimilável, onde a pronta impressão é sempre uma fonte de
surpresa e é irredutível à minha consciência intencional. Maldiney, segundo
Figueiredo, vai falar de um novo existencial que é transpassibilidade como
existencial: o ser lançado “além do mundo”, significando que sou afetado
por tudo aquilo que pertence ao mundo, mas que, além da minha
passividade, tenho uma trans-possibilidade e uma trans-passibilidade, ou
seja, o exterior irrompe, faz furos, traumatiza. Trata-se de uma abertura que
transcende o possível e o passível, de uma abertura ao catastrófico, ao
acontecimento que surpreende, ao inesperado de uma abertura ao real como
avesso e irredutível a qualquer expectativa e a qualquer simbolização.
Assim, somos afetados pelo impossível, que é o acontecimento como transpossível, constituindo, portanto, uma quebra, uma irrupção, revelando que o
homem não só está passivo ao possível, mas está também aberto ao
impossível. O autor aponta que, para Maldiney, a dimensão fundante para o
homem é, de início, sofrer (pathos), que ele chama páthos Mathei, que é o
saber da experiência de ser afetado sem saber quanto e como. Como
75
assinala Figueiredo (1996), trata-se da abertura ao sofrimento mudo e sem
nome,
trans-possibilidade
e
trans-passibilidade
apresentadas
como
existenciais, como modos-de-ser-no-mundo.
Neste
momento, lembro-me
dos meus supervisionandos quando
relutam em iniciar os atendimentos, quando fogem das supervisões,
mostrando um sofrimento que não sabem de onde vem, um sofrimento
aparentemente sem logos, um corpo estranho não identificado, algo que
interrompe, surpreende, algo que perturba.
Faço aqui um intervalo para questionamento do que Andrade (1996)
chama
de
“pensamento
modelar”.
Será
que
também
eu,
enquanto
pesquisadora, estou aqui me deixando capturar em explicações teóricas
reducionistas? Será que estou deixando o lugar mestiço?
Retomando aqui a epígrafe de Lispector, quando falava do risco ao se
pensar, creio que não estou saindo deste ensaio com coração pesado, mas
com o desejo de continuar buscando compreender o trabalho que faço
enquanto supervisora de estágios, apropriando-me cada vez mais dele,
tematizando-o, transformando-o.
Intersubjetividade: esta é a questão. O que é produzido a partir dessa
relação: supervisor-supervisionando?
Se iniciei este pequeno ensaio com algumas perguntas e inquietudes,
percebo agora que as dúvidas aumentaram, e, de certa forma, isto é natural,
pois aprendi com todos esses pensadores que o espaço “entre” é o lugar
privilegiado, para apreendermos as questões da existência humana. Exporme ao outro, aos outros, às estranhezas, me faz distanciar um pouco de mim
76
mesma, mas permite transformações. Afinal, não tenho como encontrar o
outro de outra forma que não a partir de mim própria.
79
A psicologia clínica aparece no Brasil na década de 50,
construindo suas teorias a partir de uma prática e do modelo clínico,
este apoiado em um enfoque intrapsíquico e aquela voltada ao
atendimento individual, em consultório, de segmentos mais abastados
da sociedade. Para Andrade e Morato (2004), neste contexto, a
psicologia clínica não se revelava como uma prática social. Contudo
na década de 80, com a ampliação da psicologia clínica para outros
espaços, principalmente pelo espaço de trabalho criado na rede
pública, a psicologia se depara com uma nova realidade. Passa-lhe a
ser exigido um outro modo de produção de um novo pensamento e de
outras formas de se fazer psicologia.
Segundo artigos publicados em 1988 e 1994 pelo Conselho
Federal de Psicologia (CFP), o contexto social vai sendo considerado
pelos psicólogos como constitutivo do próprio sujeito-alvo dos
cuidados psicológicos e não algo que faz sentir sua pressão ou sua
influência sobre ele. Por sua vez, para Vaisberg (2001), nenhum fazer
humano se dá à margem da vida sócio-histórica e cultural. A clínica
psicológica
não
seria,
evidentemente,
uma
exceção
a
esta
compreensão, o que conduz à reflexão deste fazer como uma questão
fundamentalmente ética/política. Torna-se, desse modo, cada vez mais
importante para o psicólogo clínico perguntar-se acerca de quem é
esse indivíduo ou coletivo, constituído pelos indivíduos, o qual
necessita receber sua atenção e que tipo de atenção será essa.
80
Figueiredo (1996) assinala que é necessário desfazer algumas
confusões a respeito do psicólogo clínico. A primeira delas, segundo o
autor, diz respeito ao lugar: o clínico que atende em consultório
particular, é um profissional liberal?
Ao perguntar o que opõe a psicologia básica à psicologia
aplicada, o que opõe psicologia escolar ou do trabalho à psicologia
clínica, o autor afirma ser verdade que a clínica implica numa
intervenção, mas é um equívoco pensá-la como mera aplicação de
conhecimentos básicos, assim como é verdade que o sentido da
intervenção clínica se diferencia, em alguns aspectos, dos sentidos da
intervenção educacional.
De qualquer modo, é um equívoco tratar a
clínica como uma mera área de atuação ou como uma área de
conhecimento separada de outras áreas.
Diante de uma enorme diversidade de práticas clínicas em
contextos diferentes e variados, a clínica apresenta-se por um dado
“ethos” 1 , ou seja, pela sua ética: comprometida com a escuta do
interditado e com a sustentação das tensões e dos conflitos. Trata-se
de um acolhimento ao excluído como sustentação da processualidade
que impele para o movimento, para as transformações.
Figueiredo (1996) afirma que as éticas têm em comum algo a ver
com o habitar o mundo. O homem é arremessado num mundo que ele
não escolheu e, aí, ele é como a abertura ao que deste mundo lhe vem
1
O sign if icado da p a la vra et hos, pr es en te n es te mo me n to, é o a do tado por
Figu e ir ed o , r ef er in d o - se a u m c o n j u n to d e v a lo r e s , p o s tur as e h áb ito s
consid er ados co mo u ma mo r adia, p ar te do mundo na qual pod emo s nos sen tir
r e la tiv a me nte abr ig ados, lev ando-se em con ta qu e o sign if icado etimo lóg ico de
e thos, p a lavr a d a qua l s e o rig in a é tica , ref er e-s e tan to a os co s tu me s, qu an to à
mo r ad a (1995).
81
ao encontro. Considerar o “ethos” como casa, morada, é ver nele algo
equivalente à moradia de onde se pode contemplar, a uma certa
distância, as coisas lá fora, nela podendo receber estranhos, tratar de
nossos males, repousar. É primordial sentir-se em casa onde se criam
condições para as experiências de encontro com a alteridade e para os
conseqüentes acontecimentos desalojadores. Alteridade, nessa ótica, é
ambigüidade, é a percepção do outro, do estranho em mim.
Assim, neste momento, passo a me indagar: Qual seria a
diferença entre clínica e supervisão? A clínica não é um trabalho de
investigação, assim como o é o da supervisão? Tanto a clínica como a
supervisão não nos remetem às afecções 2 ?
Estas inquietações me conduzem a pensar não somente no fazer
da psicologia e no sofrimento de seus atores, mas também nos
referenciais identitários. Estão instituindo uma ética ou reproduzindo
velhas práticas e moral vigentes?
Ainda hoje, a estruturação dos cursos de Psicologia obedece a
uma concepção de ciência da modernidade, pela qual o conhecimento é
cumulativo e conduz à verdade científica. Assim, os currículos
privilegiam os conhecimentos teóricos, desembocando nos estágios em
que ainda hoje se exige uma filiação teórica. Assim, a formação do
psicólogo está ainda amarrada aos currículos e às teorias, tendo o
discurso pedagógico, como referencial, o sujeito da razão. Em tal
perspectiva, o seu desempenho se sustenta na busca de formas ideais
2
Cf. Abb agn ano (1982 p. 18-19), af e cção design a todo estado, cond ição ou
q u a l idad e q u e co n s i s te n o sof r er u ma a ç ã o o u n o s er inf lu en c i ad o o u mo d if ic ad o
p o r e la . A p a lav r a afec ç ão é e mp r egad a p o r E sp in o za , p a r a d ef in ir o q u e e l e
c h a ma a fe c tu s e que nós ch amamo s emo ç ões ou sen timen to s.
82
de ensino-aprendizagem, na crença de que as técnicas poderiam dar
conta das possibilidades do “bom diálogo” e, portanto, da transmissão
de um saber objetivável. Entretanto, sabe-se que na medida em que o
ensino se torna rigidamente programado e controlado, não há mais
espaço para a criatividade.
Hodendorff (1999) relata que, se um saber, na sua transmissão,
deve levar em conta a singularidade de cada um, e se um método (o
pedagógico) aponta o universal, pode-se dizer que é apenas no estilo
de mestria que podemos esperar algo da ordem de uma singularização
no processo educativo. Que estilo de mestria seria este?
Educar vem do latim educare que significa criar, alimentar,
adestrar, instruir. No entanto, em sua acepção poética, educar significa
moldar, esculpir, escrever. Considerando isso, para mim, compreender
na educação atualiza-se algo da ordem de uma marca que molda,
possibilita certa condição existencial. Concordo com Lajonquière
(1999) que aquele que aprende algo não só obtém domínio de algo, que
pode dizer respeito à natureza, às letras, às virtudes, mas também é
marcado pelo apre(e)ndido no próprio coração da vida. Melhor
dizendo, toda educação pressupõe a transmissão de um certo saber
existencial, que não se reduz ao conhecimento sobre nenhum mundo
possível nem somente a conteúdos específicos.
Como diz Figueiredo (1996), se o eixo formativo não for bem
desenvolvido, que ganhos trará o treinamento habilitante durante a
formação?
Assim, muitas vezes, em supervisão deparamo-nos com
83
sentimentos
de
desamparo
e
“incompetência”
em
nossos
supervisionandos.
Se o treinamento é oferecido por aquele mestre que se coloca à
disposição com teorias e técnicas prontas e efetivas, impossibilitando
o supervisionando de viver a experienciação, estará desenvolvendo
postura/valores dogmáticos. Como aponta Morato (1989), na literatura
por ela consultada, encontraram-se várias propostas de modelos para
supervisão, mas não a preocupação sobre uma teoria da supervisão.
Conforme assinala Fedida (1988, p.65), “teoria, a bem dizer, ainda não
foi feita”, referindo-se à supervisão.
Ainda hoje, muitos profissionais entendem a supervisão como
aprendizagem de uma técnica, como mostra Morato (1989, p. 123)
...visando a objetivo de transmissão de uma
habilidade, uma formação específica que deve ser
controlada tanto pessoal quanto profissionalmente por
um outro que vê além, quer dizer, para onde o aluno
deve ir.
Morato (1999, p.66), citando Webster, esclarece que técnica vem
do grego techné que significa arte, artesanato, criação. “No entanto, a
psicologia, distanciada destes sentidos originários, cindiu-se entre
ciência básica e mera aplicabilidade”. Ainda há supervisores que se
utilizam da supervisão como uma técnica na dimensão instrumental,
não se dando conta do que assinala Michelazzo (1999, p. 159) que
a técnica, antes de ser aprendida como um meio ou
instrumento, é um modo do desvelamento, isto é, uma
forma da apresentação da verdade (aletheia) 3 .
3
A l eth e ia em g r ego sign if ic a v erd ade; n ão-o culto, n ão- escond ido, n ãod issimu lado. O verd ad eiro é o que se ma n if esta aos o lhos do corpo e do esp ír ito ; a
v er d ad e é a ma n i f es t aç ão d aq u i lo q u e é o u ex i st e t a l co mo é . A le th e ia s e r ef er e ao
qu e as co isas são e está n as p rópr ias co isas ou n a próp ria r ealid ad e. Por outro
lado, em latim, v erd ade é ve r i tas q u e s e r ef er e à p r e c is ão , a o r ig o r e a e x a t id ão d e
84
Ou ainda, como nos lembra Herrmann (1991, p.225):
a supervisão está suportada pela mais antiga e eficaz
das ilusões humanas: aquela que, por crer que alguém
sabe fazer, leva-nos a fazer o que ainda não sabemos,
para descobrir tarde demais que nenhum dos dois
sabia, verdadeiramente, mas que já o fizeram.
Enquanto alguns supervisores estiverem presos à concepção da
técnica
como
mero
instrumento
para atingir determinados fins,
continuarão inteiramente cegos à sua genealogia.
No mundo pós-moderno, as ilusões são criadas para negar as
evidências. Pensamos por “diques”, estamos acostumados à lógica do
objeto e não do sujeito. Impera a tecnologia educacional que tenta
coroar o processo fabril na educação: a técnica é expressão mais
acabada do homem do nosso tempo, manifestando-se em volúpia, em
agressividade; a ordem é ser rápido e eficiente, tornando-nos herdeiros
da consumação da metafísica. Assim, supervisores que não permitem
desalojar-se de um modo tradicional de fazer supervisão, ou até
mesmo de pensar a vida em sua imanência, ou seja, em sua
processualidade, ficam numa configuração em que as coisas também
não se transformam.
Esta é a ordem social: cada um e cada produção humana no seu
devido lugar, devidamente categorizadas, hierarquizadas, constituindose todos como partes (elementos) de uma “unidade impenetrável” de
u m r e la to no qu a l s e d iz co m d e ta lh es, po r menor es e f id e lid ade, o que acon teceu.
V e r i tas s e r e f e r e aos f at o s q u e f o r am, e con s id era - s e q u e a v er d ade d ep en d e d o
r igor e da pr ecisão n a cr iação e no uso d e r egr as d e lingu agem qu e dev e m
expr imir , ao me smo temp o, no sso p ensamen to ou no sso s id éias e os
acon tecime n tos ou f atos ex ter ior es a nós. ( Cf. Mar ilena Ch au í, Conv ite à
Filo sof ia, 5ªa ed. São Pau lo : Á tica, 1995, p.99).
85
dominação onde só resta a abstração (matematização). Como afirma
Adorno (1985), um mundo de idealidades cujos objetivos não se
tornam acessíveis ao nosso conhecimento; (somente) um método
racional acaba por alcançar todo o objeto, tal como é em si mesmo.
Assim, também, para Crochik (1998), a tecnologia educacional,
através de seus diversos meios, tenta coroar o processo fabril na
educação.
O conhecimento, não necessariamente, se constitui na crença
indiscutível de que tudo que é tem uma razão para ser. Quando
aprisionados ao conhecimento explícito, trabalhamos com a maior
parte do que escutamos em nosso fazer, ora interpretando por
comparação com o quadro referencial de nossa escolha, levando-nos a
pôr ordem nas coisas e buscando causas subjacentes ao que nos é dito,
ora descrevendo padrões de comportamento e fazendo prognóstico e
previsões. É isto que ensina a ciência moderna.
Estas reflexões conduzem-me a uma pro-vocação que diz
respeito à minha formação na psicanálise, à qual muitas vezes me vejo
ainda agarrada, trazendo-me incômodos e desalojamentos que buscam
uma re-criação diante da perplexidade da infidelidade à teoria até
então abraçada.
Loparic (1994) afirma, no prefácio do livro Escutar, Recordar,
Dizer, de L. C. Figueiredo, que a teoria psicanalítica trata o existir
como mera presentidade, como fenômeno natural gerado por um jogo
de forças psíquicas que obedecem ao principio de causalidade. Os
processos psíquicos são tratados como explicitáveis e explicáveis por
86
meio de categorias próprias à consciência racional. Segundo o autor,
não se trata de uma crítica aos fundamentos da psicanálise, o que se
visa, não é a superação, mas a desconstrução, o que não significa
desmontar a sua fenomenologia. Significa remeter seus ingredientes
metafísicos à origem não metafísica, ou seja, possibilitar que a
psicanálise seja repensada sem considerar o ser do homem como mera
presentidade, mero jogo de forças de acordo com o princípio de
causalidade.
A capacidade de criar algo novo aparece sempre como uma “inquietude”. Era mais cômodo e confortável quando eu também me
amparava na vida contemplativa da teoria; porém a necessidade de
uma desconstrução urge em minhas experiências.
Toda criação, diz Augras (1986), requer uma destruição, porém
esse novo mundo permaneceria inalcançável em sua novidade, se não
contivesse uma mensagem que pudesse ser decifrada pelo espectador.
A obra desperta no espectador um significado que está dentro dele
próprio, porque a transformação do mundo que ela vem propor é, em
última análise, a transmutação do próprio espectador. Quem se arrisca
transformar-se?
Todas essas questões, bastante complexas, apontam na prática
do cotidiano, que no fazer da clínica e da supervisão necessário se faz,
segundo Figueiredo (1996), reconhecer a contribuição decisiva de
Polanyi na formulação do conceito de conhecimento tácito ou pessoal
em oposição ao que chamou de conhecimento explícito, conforme já
mencionei.
87
O conhecimento tácito é incorporado às capacidades afetivas,
cognitivas, motoras e verbais (de natureza pré-reflexiva), é o modo
como o supervisionando é afetado. O conhecimento explícito se torna
disponível na forma de sistemas de representação, como é o caso de
uma teoria.
Para o autor, é necessário levar a sério a idéia de que a
experiência incorporada, o conhecimento tácito e pessoal entranhado
no corpo, não é totalmente transparente e convertível em teoria. Como
pesquisadora, acredito que é necessário, para a formação do aluno e
compreensão
do
fenômeno
clínico,
ouvi-lo
na
organização
da
experiência que traz em seu bojo: o espaço do encontro com o
inesperado, da investigação, do pensamento.
Resgato Figueiredo (2000, p.29), quando afirma que “podemos
reconhecer na exigência de um olhar de reserva o que se cria em uma
boa experiência de supervisão”. Assim o supervisor, na sua “presença
reservada”, sustenta, acolhe a condição de emergência de vida
psíquica de seu supervisionando, mantendo o seu ouvido reservado
para o inaudível, sua atenção reservada para o inesperado, sua mente
reservada para o devaneio, sua fala reservada para o acontecimental. 4
4
A no ção da fala co mo acon tecime n to fo i d esenvo lv ida po r Figueir edo (1994)
q u an d o e s ta é a f a l a q u e a co n te c e a o f a l an t e e o co loc a à e s cu ta , a q u e n o me i a o
e n ig ma e o c o loc a à j u sta d i s tân cia , à d is t ânc i a j u s ta p ar a s er a lg o . A p a lav r a
r e inan te acon tece ao f a lan te, abrindo par a ele tan to co mo para o ouvin te o
hor izon te da v isib ilid ad e em qu e o s f enô me no s se mo stram co mo sendo isto ou
a q u i lo. Ma s e l a me s mo s o a co mo est r an h a ; é d es t a p a lav r a i n d isp o n ív el e p o r is so
lib er ta d as tarefas d a represen ta ção, co mu n icação e expressão qu e se pode fazer
u ma e x p e r iê n c i a. A r ig o r , d ian t e d es t a p alavra ou tr a, só o lug ar d a e s cu ta e s tá
d eso cupado , po is o do f a lan te é ocupado pela f a la ela mesma. Nesta me d id a, o
a con te cer da f a la acon te c ime n ta l é u m mo me nto n e ce ss ar ia me n te fenome n o lóg ico
d a análise, an ter io r e d istin to de qualquer mov ime n to in terpr e ta tivo .
88
A escuta, como tenho aprendido em minhas experiências, é
escuta da fala como acolhimento, a fala é resposta a algo que solicita.
Algo que, segundo Figueiredo (1994), ainda não é nada além de
suspeita, inquietações e exigências de tradução. É deixar-me afetar e
me transformar, fazendo da experiência um encontro com o outro na
sua alteridade, é deixar-me atravessar por esta fala, acolhê-la na sua
estranheza.
Para Figueiredo (1994), o acontecimento é uma das vias do
encontro, colocando-nos em contato com a questão da temporalidade e
da historicidade existenciais. A fala como acontecimento é um
dispositivo
presença,
acontecimental
termo
que,
que
segundo
resgata
o
autor
a
transpassibilidade
Maldiney,
se
refere
da
à
passibilidade, ao inesperado, ao surpreendente, ao impossível, ao
inacreditável e que, enquanto inantecipável, é a figura paradigmática
da alteridade, tendo seu lugar instituído pela perda. Assim, o
acontecimento é abertura que propicia outros acontecimentos e/ou
outras configurações.
De acordo com Figueiredo (2000), é Thomas Ogden quem na
atualidade parece ter-se aproximado de uma elaboração abrangente das
questões da ética e da técnica. A técnica, ao invés de se sustentar em
um código, se sustenta na manutenção de uma posição, de um lugar, se
sustenta em uma ética. Ele vai nos falar do que denomina de “terceiro
analítico”, de um lado, fonte comum e transubjetiva de experiências
sensoriais, afetivas e intelectuais dos dois participantes; de outro, o
objeto de um confronto, algo a ser desconstruído. Esta dialética de
89
estar
com
e
simultaneamente,
deixar-se
fazer
separar-se
dele
pelo
e
outro,
do
mas,
campo
sucessiva
e
transubjetivo,
é
garantida pela posição de isolamento pessoal, espaço de experiências
incomunicáveis que jamais encontrarão registros intersubjetivos, mas
que alimenta o psiquismo.
Não será isto que ocorre no processo de supervisão? Será que é
nesta reserva de si que o supervisionando se fará terapeuta, nutrindose no campo “transubjetivo”? Conforme Figueiredo (2003, p. 40):
para além da clínica psicanalítica e sua ética,
descortina-se uma nova militância cultural dedicada a
criar territórios existenciais mais ricos, mais
diversificados e menos desautorizadores, mais aptos ao
acolhimento dos corpos, dos afetos e das linguagens
em toda sua multiplicidade indisciplinada.
Neste percurso, já consegui delinear o que é supervisão e o que
aí se faz?
É importante, ainda, pensarmos nos “cuidados” com estilo
pessoal de cada supervisionando, na possibilidade de revelação do ser
terapeuta de cada um, na reflexão do aluno estagiário frente à sua
prática, no apoio que o supervisionando espera. Como diz Morato
(1995, p. 2), oferecer:
Uma situação contextualizada para que um profissional
resgate sua própria condição de indivíduo com dúvidas
e estranhamentos em seu contato profissional de ajuda
a indivíduos para que, a partir de seus próprios
questionamentos e dificuldades, possa apresentar-se
mais propriamente receptivo e disponível em sua
atuação de ajuda para encaminhar o cliente e
redimensionar-se em sua vida.
Pensar na clínica ou na supervisão é pensar no contato inusitado
com as estranhezas. Para Serres (1993), não há aprendizado sem
90
exposição, às vezes, perigosa ao outro: nunca mais saberei quem sou,
onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar, eu me exponho
ao outro, às estranhezas e com isto me faço outro.
Ainda pensar na clínica ou na supervisão é pensar no que diz
respeito à “pré-ocupação” 5 . Terapeuta e supervisor exercem o “préocupar-se” quando participam do acontecer daquela pessoa. Participar
do acontecer é cuidar, entregando-se o estar-aí às possibilidades de
liberdade de escolha por parte daquele que clama pelo seu ser-maispróprio. Cuidar, portanto, constitui-se no exercício da “pre-ocupação”
com o acontecer. Terapeuta e supervisor prosseguem no cuidado com a
pessoa na abertura de caminhos, estabelecendo um movimento como
acontecer, como ec-sistir.
Supervisão
é
um
espaço
privilegiado
e
compartilhado
na
reconstrução e compreensão do encontro, onde novos sentidos são
gerados, possibilitando mudanças de olhar, de um olhar que indaga e
descobre.
Espera-se que o supervisionando suporte permanecer no campo
da dúvida, para que seja possível a descoberta do novo, havendo uma
constante movimento de apropriação de si próprio. O saber decorrente
dessa experiência caracteriza-se por ser inacabado e incerto.
Segundo Augras (1986), a fala enuncia o encontro. Na medida em
que
5
o
indivíduo
se
expressa,
a
sua
intencionalidade
é
sempre
Segundo Feijoo (2000, p.79) na pr eo cupação pod em- se d estacar d if eren tes
po ssib ilid ades: a preocupa ção substitu tiva ou substitu ição dom inado ra qu ando se
substitu i o cu id ado co m o ou tro e ocup a- se d esse ou tro e a p reo cupação de
an teposição ou an teposição lib ertado ra, a pr e- sen ç a enquan to cu id ado, ma n témse n a cura, vo lta-se para a ex istên c ia do ou tro e n ão dela se ocupa, por tan to,
c u ida .
91
comunicativa,
porque
a
expressão
implica
a
compreensão
da
coexistência. A função da mediação entre o eu e o outro articula a
compreensão deste mundo revelada na interação. Porém, lembra a
autora que a linguagem pode ser também obscurecimento, falatório,
palavrório, a possibilidade de tudo descrever sem nada alcançar.
Para Figueiredo (2003, p.36), a idéia do fazer sentido é o mesmo
que “dar passagem”, ou seja: “que os afetos passem às linguagens, que
as linguagens passem aos corpos, que os corpos passem aos afetos, que
cada um dê passagem aos demais, e assim por diante”.
Os sentidos são sempre produzidos, um acontecimento produz
uma infinidade de sentidos; assim, a existência se situa na abertura do
que ainda não é, na abertura do sonhar, sonhar que pode vir-a-ser.
Como diz Pompéia (2004, p. 28):
a peculiaridade da terra fértil é sua abertura para
acolher a semente que cai sobre ela. Esse solo recolhe
a semente para que o grão venha a ser, pois uma
semente é sempre um poder ser, uma promessa daquilo
que ainda não é, mas que poderá ser e chegará a ser
quando encontrar a terra fértil. Não será aquilo que a
terra possa querer que ela seja, mas aquilo que ela
mesma, semente, já traz como poder-ser.
Pacientes e supervisionandos são como sementes que, quando
lançados na direção de um trabalho cuidadoso, de um terapeuta ou de
supervisor “suficientemente bom”, começam a formar raízes e crescer,
produzindo sentidos, compartilhando seus sonhos e dando a eles
grandes dimensões.
Compartilhar sonhos, crenças, desejos, tudo aquilo que aponta
para o futuro, tudo aquilo que aponta para um desabrochar, a presença
92
do outro ajuda a sustentar, a abarcar e a conter as dores e as alegrias
das buscas e dos mistérios.
Em contrapartida, quero refletir sobre o indizível.
Segundo Figueiredo (1999), o indizível são experiências que nos
desorganizam e cortam a palavra. O pavoroso, o angustiante, o
assustador, mas também, o exultante, o maravilhoso e o sublime são
diversos nomes para sugerir o indizível. O indizível nos lança nas
trevas de uma solidão incomunicável, portanto, ele não deveria jamais
ser concebido, mas apenas experimentado. Acrescenta o autor que
“experimentar” já supõe certa organização, certo sentido, certa lógica;
o indizível não poderia nada ser senão o limite de toda experiência, o
limite de todo sentido, o limite de toda lógica.
A vivência do indizível é, assim, apenas a da resistência de algo
que não se deixa capturar pelas redes consensuais da linguagem, de
algo que desfaz a esperança de consenso ou, como salienta Barros
(1981, p.100):
... é preciso recolhimento. É preciso penumbra. É
preciso sugestão. Se se permanece no inteiramente
claro, não se pode insinuar; A luz fecunda o que vem
do escuro. Tudo vem das trevas.
Em minha dissertação de mestrado, a cada encontro com o grupo
de supervisão em estudo, estive debruçada na análise e reflexão da
afetação em mim suscitada em cada experiência de supervisão. A
abertura
às
minhas
algumas experiências.
inquietudes
possibilitava
ressignificações
de
93
Conforme Fedida (2001), a relação supervisor-supervisionando é
uma relação de igualdade, uma relação horizontal. Para o autor numa
relação de supervisão, assim como em toda e qualquer relação humana,
devemos sempre nos perguntar: Será que eu vou poder me renovar com
esta pessoa?
Figueiredo (2003, p.128) nos fala de uma postura, de “um deixarse colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de
quem se trata”. O autor afirma que isto implica numa disponibilidade
de “deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de
desmensurado e mesmo de incomensurável, não só desconhecido, como
incompreensível”. Essa postura primordial, da ordem do invisível, é
elemento importantíssimo na constituição do psiquismo, é uma das
condições para que algo possa vir-a-ser, é condição do existir.
É necessário que o supervisor tenha esta disponibilidade para
ajudar que aconteçam raízes de todos os processos de singularização e
permitindo-se afetar pela alegria das descobertas e sem pressa de
afastar o sofrimento, podendo permanecer junto com o supervisionando
o tempo necessário para abarcá-lo.
Pompéia (2004, p.66), citando Heidegger em seu texto “O
Caminho do Campo”, tem uma imagem bonita que nos ajuda a
compreender esta experiência:
... o grande carvalho, que se encontra lá no caminho,
precisa mergulhar profundamente suas raízes na terra
escura. É na obscuridade da terra que ele vai buscar a
força que o manterá vivo, que lhe dará condição de
expandir sua copa em direção à imensidão do céu.
94
Trabalho árduo, mas também de exuberância e leveza é a
supervisão, onde há sempre alguma coisa que recomeça, onde as raízes
penetram na terra de modo profundo, silencioso e lento.
Como nos lembra Safra (2004, p.24), é partindo da “solidão
essencial” que
... o ser humano entra no mundo na condição de
exilado surpreendido, acolhido no abraço e no olhar de
alguém para que um lugar se estabeleça e um iniciar-se
pessoa acontecer...
O supervisionando está lá, precisa ser acolhido, esse é o lugar
que se constitui horizonte na sua existência. É preciso encontrar o
outro, mas não podemos nos esquecer de que é fundamental o retorno à
solidão, é preciso chegar e ir-se, alcançar e recolher.
Conforme Safra (2004, p. 28-34), o percurso do indivíduo por
meio das condições necessárias ao acontecer humano permite-lhe
apropriar-se de uma ética, a ética do ser.
A supervisão, assim como a clínica, ambas são essencialmente
éticas, pois se caracterizam pelo cuidado que estabelece as condições
necessárias ao acontecer humano a partir daquilo que é o ontológico no
ser humano. É como se referencia o autor:
É uma clínica que exige que o profissional possa estar
situado no registro ético-ontológico, a fim de que
possa ouvir a dor de seu paciente no registro de seu
aparecimento. 6
Esta reflexão me conduz mais uma vez àquilo que Figueiredo
(1994) chama de fala como um dispositivo acontecimental. Como já
6
o con c eito d e so lid ão ex is ten c ia l as s in a la qu e h á e m c ad a s er hu ma no u m c e rne
q u e j a ma i s c h eg a à comu n i c aç ão , s en d o a sol id ão o p o n to d e p a r t ida d o acon t e ce r
hu ma no. (Safr a, 2004) .
95
foi dito, esta é a fala que acontece ao falante e o coloca à escuta, a
que nomeia o enigma e o coloca à justa distância, à distância justa
para ser algo.
A fala que responde ao acontecimento terá função
fenomenalizadora de dar-ao-que-força-a-passagem vindo ao encontro
da verdade como aletheia, instaurando um jogo de desvelamento e
ocultação.
A linguagem do diálogo entre supervisor e supervisionando é
como a linguagem do diálogo entre terapeuta e paciente. Tem uma
via cuja compreensão é traduzida pela palavra grega poiesis, que
como nos ensina Pompéia (2004, p. 158-161)
significa não só poesia, como também criação ou
produção. Poiesis é como um levar a luz, é trazer
algo para a desocultação. (...) Quando me expresso
poeticamente o outro não é obrigado a concordar
comigo. (...) Nesta forma de linguagem quem
fala é a emoção, não há necessidade de
argumentação mediada pela razão.
A clínica e supervisão estão voltadas à pro-cura da verdade como
aletheia da qual podemos nos aproximar por via poética, pois o
esquecido pode ser o recordado. O autor lembra que recordar vem do
radical latino cor-cordis, que significa coração. Então, recordar é
colocar o coração de novo, aletheia, verdade – não meramente o não-
esquecido, mas aquilo em que se pode pôr de novo o coração.
Tanto na clínica como na supervisão, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, a narrativa traz o recordado, traz a possibilidade, através da linguagem poética, de
podermos re-encontrar a verdade.
96
Ás vezes, tanto o paciente quanto o supervisionando perdem o
sentido da verdade que liberta e encontram na clínica e na supervisão,
pela via da poiesis, uma forma de re-encontrá-lo. Penso que esta fala
que faz acontecer efetivamente faz história.
Para Queiroz (1991), o relato oral constitui a maior fonte
humana de difusão do saber e, em todas as épocas, a educação humana
se baseara na narrativa, que encerra uma primeira transposição: a da
experiência indizível que se procura traduzir em vocábulos, pois a
palavra parece ter sido, senão a primeira, pelo menos uma das mais
antigas técnicas de transmissão do saber.
Hoje, quase nada do que acontece está a serviço da narrativa e
quase tudo está a serviço da informação. Uma fenda na estrutura de
um saber que deve se reconhecer como incompleto é condição de
possibilidade e convite à criação. A escuta e a fala abrem um lugar
possível de enunciação para o sujeito, um lugar de criação e
transmissão de uma experiência. Nesse sentido, a narrativa não é
instrumento para comunicar informações nem um mero relato de fatos.
O que ela oferece é um nomear, por meio da palavra, o inominado e
proporcionar um movimento que se abre para novas figurações,
pontuada por estranhezas e silêncios, condição de toda fala e de toda
escuta.
Cardoso (1997, p. 169), em seu texto A Narrativa Silenciada,
conta sobre os pichis (colônia de sobreviventes nas Malvinas) os quais
se organizavam em torno de uma única missão social: a sobrevivência.
97
Os pichis carecem ab solutamente de futuro, caminham
para a morte e, por isso mesmo, só podem raciocinar
em termos de sobrevivência (...) seu tempo é puro
presente; e sem temp oralidade, não há configuração do
passado, compreensão do presente, nem projeto...
Os pichis sofrem os efeitos do que lhes acontece, mas não percebem
a origem daquilo que lhes acontece. Assim não há lugar para a narrativa de
uma história, o que há é a impossibilidade de narrar a própria história.
Passo, então, a me perguntar se os supervisionandos, ao
contarem suas histórias, se permitem ser reconhecidos em toda parte e
dar aos eventos passados a forma da reconciliação com o que foi vivido.
O supervisionando narra ao supervisor o que apreendeu e
sobretudo o que elaborou de seu encontro clínico. O supervisor escuta o
que vai além das palavras, o que surge de estranho no discurso, nos seus
tropeços e nos seus silêncios, abrindo possibilidades para que o
supervisionando se desfaça de representações definitivas e ouse afirmarse na incerteza.
Benjamin (1936) mostra que as narrativas estão em baixa, porque
estão em baixa as ações da experiência. Segundo ele, a arte de narrar
foi diluída pelo advento capitalista e pelo surgimento dos novos meios
de comunicação, que trouxeram como conseqüência uma diminuição da
disponibilidade de escuta do homem. Em suas reflexões sobre a
Primeira Guerra Mundial, mostra que os combatentes tinham voltado
silenciosos
do
campo
de
batalha,
mais
pobres
em
experiência
comunicável, apontando para a perda da importância da palavra, como
dimensão simbólica e, conseqüentemente para o indivíduo, que perde a
sua própria história, porque cada vez menos é capaz de narrá-la.
98
A reflexão de Benjamin sobre a Guerra e o fim da possibilidade
da narrativa é um dos núcleos expressivos do que seria uma reflexão
mais abrangente sobre a cultura contemporânea, na qual o que
experimentamos é uma miséria simbólica com a prevalência de uma
linguagem cada vez mais instrumental.
No fluxo narrativo, o sujeito não fala de si para garantir a
permanência de sua identidade, mas, ao contar sua história, se desfaz
de representações definitivas e tem a ousadia de afirmar-se na
incerteza.
Segundo Benjamin (1985, p.205),
Quanto maior a naturalidade com que o narrador
renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a
história se gravará na memória do ouvinte, mais
completamente ela se assimilará à sua experiência, e
mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de
recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá
em camad as muito profundas e exige um estado de
distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o
ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto
mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de
sonho que choca os ovos da experiência. O menor
sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as
atividades intimamente associadas ao tédio – já se
extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no
campo. Com isso desaparece o dom de ouvir e
desaparece a co munidade dos ouvintes. Contar histórias
sempre foi a arte de contá-las de novo... ela se perde
porque ninguém mais fia ou tece, enquanto ouve a
história...
Benjamin (1985) a chama de “forma artesanal de comunicação”,
ela é tecida e trançada lentamente, pois ninguém se torna capaz de
transmitir experiências sem antes adquiri-las e incorporá-las à sua
própria vida. Aquele que fala e que aceita falar para um outro encontra,
pouco a pouco, as vias que farão de sua própria fala a resposta à sua
fala; por isto, a tarefa do narrador é reativar no presente as marcas, às
99
vezes imperceptíveis do passado. A possibilidade de falar a própria
história
significa
ainda
a
possibilidade
que
o
sujeito
tem
de
reconhecer-se ou estranhar-se dentro dela.
Para
Goolishian
e
Anderson
(1994),
o
self
não
é
uma
representação, mas uma expressão cambiante de nossa narração, uma
maneira de contar a própria individualidade. Ele muda continuamente e
não está limitado ou fixado a um lugar geográfico ou a um momento no
tempo.
O self é uma expressão, um ser e um devir através da
linguagem e da narração. Para os autores, isto faz com que a natureza
do self e de nossas subjetividades se convertam em fenômenos
intersubjetivos: o produto de narrarmos histórias uns aos outros e a nós
mesmos acerca de nós, e as que os outros narram para nós e sobre nós.
Assim, a clínica e a supervisão são conversações terapêuticas
que remetem a uma busca recíproca de compreensão e exploração,
através do diálogo, as quais implicam num processo de “estar ali
juntos”,
pois
tanto
o
cliente
fala
para
o
terapeuta
quanto
o
supervisionando fala para o supervisor. Falam um com o outro, não ao
outro, dando abertura a novos significados, a novas narrações, a novas
realidades. Lembro aqui que a perda da capacidade da conversação e da
narração é a impossibilidade de partilhar uma experiência.
Segundo Augras (1986), o mundo humano é essencialmente
mundo da coexistência, o conhecimento do outro, pois supõe a
compreensão ontológica da existência como ser da coexistência. A
compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência
e, ao mesmo tempo, constitui-se como ponto de partida para a
100
compreensão do outro. Coexistência é também co-estranheza. O outro
se apresenta como que fornecendo um “modelo” para a construção da
imagem de um si mesmo. Contudo, por ser outro, ele possibilita
revelar que a imagem de si comporta, também, uma parte de si mesmo
como
alteridade.
Por
essa
compreensão,
me
indago:
Como
compreender outros, sem neles incluir-me e sem que eles não se façam
incluídos em mim?
Abrigar a multiplicidade do ser idêntico a si mesmo e outro
diferente de si torna-se, para mim, uma questão central na minha
investigação. Afinal, o modo da coexistência como condição da
humanidade do homem interpõe-se ao modo de conhecer atravessado
por minha própria multiplicidade, ou seja, pelos diversos aspectos com
que o outro pode revestir-se dentro de mim.
Na
experiência
imediata,
a
descoberta
que
fazemos
da
alteridade, apóia-se no encontro com o espelho. O espelho é a porta
para a visão do outro mundo. Quero olhar-me no espelho? Que medo
me dá! Parece-me ser necessário um certo traquejo para encarar a
suposta malignidade do mundo do espelho, como em “O Retrato de
Dorian Gray”.
Como afirma Bacchi (2000), ao olharmos no espelho, podemos
não reconhecer a própria imagem, permitindo nos vermos como que
diante de um enigma. O espelho reflete a imagem que, sendo imagem,
não é si mesmo. No entanto, é também si mesmo, pois é o reflexo, a
imagem refletida do rosto que se coloca à sua frente.
101
Ao brincar de me olhar no espelho, às vezes me assusto, mas, às
vezes, me reconheço. Vejo a mim e a tantos outros, ao mesmo tempo
em que ele me afirma uma realidade que é minha, que é concreta,
como
um
objeto
simultaneamente
entre
à
os
minha
demais
que
percepção.
aparecem
no
espelho;
Se
um
reflexo
há
contrapropondo-me a existência de um duplo imaterial, idêntico e,
contudo, inverso, pareço ver um outro mundo constituído de tantos
outros semelhantes e simultaneamente tão diferentes de mim.
Segundo
supervisionando,
Fedida
há
um
(1988,
p.65),
movimento
na
relação
histórico,
um
supervisãomomento
de
historização de si, que o autor compara com o momento na análise
pessoal, em que a historização de si se inicia com o que poderíamos
chamar de constituição do métier, ou seja, o momento em que alguém
se dirige a outro para iniciar sua primeira supervisão como exigência
de sua formação (como se houvesse uma constituição histórica da
clínica analítica naquele que está em análise). Esclarece-nos , ainda,
que isto significa que dois analistas (supervisor-supervisionando)
falam juntos,“a palavra de um sempre produz efeitos sobre o outro:
uma comunidade analítica é isso”. Deixa claro que o supervisor deve
simplesmente ajudar o supervisionando a encontrar seu próprio estilo,
buscando-o
na
historização
de
si
mesmo,
através
de
seus
questionamentos pessoais, do resgate de sua condição de sujeito que
sofre, que tem dúvidas e estranhamentos no seu acontecer profissional.
102
Na busca por um método para entender o que se passa na
relação supervisor-supervisionando, me questionei: Onde narrativa e
supervisão se entrecruzam?
A narrativa nos revela que os fatores experienciais não podem
ser ignorados, pois eles conduzem ao significado, conduzem a si
próprio, conduzem a um si próprio vivido com o outro. Augras (1986)
afirma que a porta de entrada para a realidade da vivência primordial,
realidade em si inalcançável, é a significação, o sentido - o meu e o
seu
-
quando
se
torna,
irrevogavelmente,
um
só
no
ato
da
compreensão.
A partir deste questionamento, tomo uma afirmativa de Morato
(1999, 434), para quem
supervisionandos narradores contam suas experiências
ao supervisor ouvinte e permitem que este se conduza
ao re-encontro de sua atenção. Revelam-lhe sua
habilidade de ver e ouvir apoiado na referência direta
de sua própria experiência – seu próprio fazer, seu
próprio instrumental.
Para a autora (1989), supervisão não é lugar para aprender uma
forma de trabalhar, ou uma forma de interpretar, ela é o espaço de
criação de novas possibilidades de pensar, é o espaço onde se aprende
o que já faz parte de nós mesmos.
É travessia turbulenta, provocada
pelo paradoxo da fala que ora é repetição e ora é possibilidade de
criação.
Figueiredo (1994) mostra que um acontecimento é, de início,
uma ruptura na trama das representações e das rotinas; é a transição
para novo sistema representacional; destroça mundo e funda mundo,
portanto há dois momentos em cada acontecimento: uma quebra de
103
sentido (com a conversão do homem em signo vazio de sentido) e a reemergência de sentido (que reconstitui passado e descortina um novo
futuro). Nesta medida cada acontecimento é em si mesmo um só
depois de outros acontecimentos que, por ele, são ressignificados; pela
mesma
razão.
Cada
acontecimento
servirá
de
apoio
para
acontecimentos futuros que lhe “descobrirão novos sentidos”.
É neste espaço entre que nos deparamos a cada momento com o
hibridismo, com a mestiçagem de que somos feitos. Neste encontro,
cabe ao professor-supervisor gerar condições para constituição da
subjetividade profissional.
Para Cupertino (1995, p. 257), este é um
campo para experiência, lugar para aprendizado do
múltiplo, do outro, do diferente, um aprendizado da
possibilidade de construção de modos válidos de
conhecer .
A prática de supervisão impõe-se como elemento facilitador do
processo de compreensão dos fenômenos da intersubjetividade e
transubjetividade.
Schmidt (1999, p. 111) descreve subjetividade como um certo tipo
de aprendizagem
uma aprendizagem ‘simples’ da ordem dos sentimentos
que não se adapta aos símbolos verbais, uma
apropriação baseada na experiência e não em símbolos,
uma aprendizagem que é autodescoberta e que não pode
ser ensinada.
Esta reflexão nos conduz a Morato e Schmidt (1999, p.117-118),
quando afirmam que
o fenômeno da aprendizagem significativa tem se
mostrado central para a compreensão das dimensões
104
cognitivo-afetivas constitutivas do processo de ensinoaprendizagem.
As autoras lembram que foi Rogers (1978) quem forneceu as
bases para experiências inaugurais neste campo. Apoiadas em autores
como Benjamin, Figueiredo e Wechsler, afirmam que
na
aprendizagem
significativa
as
noções
de
intersubjetividade, experiência e criatividade permitem
articular seus modos próprios de transmissão,
elaboração e avaliação do saber (...) designa o processo
de constituição e apropriação de um saber-fazer/saberdizer co-respondendo desta forma, à experiência...
Ou ainda, como assinala Morato (1999, p. 432), “atribuindo
sentido
ao
vivido,
a
aprendizagem
significativa
possibilita
a
compreensão do processo de aprendizagem na experiência humana”.
Esta
é
a
tessitura
da
supervisão:
o
acolhimento
de
acontecimentos que possibilitam ressignificações.
Andrade (1996) conclui, em sua tese de doutorado, que dos
quatro
professores–supervisores
por
ela
acompanhados,
três
se
mostraram particularmente sensíveis ou preocupados em acolher uma
produção
do
reducionistas.
aluno
Esses
sem
capturá-lo
professores
em
trabalham
explicações
com
a
teóricas
produção
de
diferença no encontro; diferença esta não nomeável, mas passível de
ser “escutada” ou acolhida através daquilo que está afetando o aluno e
produzindo outros modos de ser e sentir. Esse processo me leva a
questionar minha prática enquanto supervisora identificada, algumas
vezes, como porta-voz de certos autores, não possibilitando aos meus
alunos o processo de apropriação de si próprios.
105
Em minha dissertação de mestrado, mostrei que o supervisor se
assemelha ao mestre Zen: abre para o supervisionando um campo de
possibilidades, fazendo-o, ao mesmo tempo, entender que tanto a
escolha do caminho quanto o processo para vivenciá-lo, será sempre
uma vivência solitária. Longe de assemelhar-se a um professor, cuja
preocupação é de fornecer conteúdos e/ou teorias, o supervisor, em
analogia ao mestre Zen, é aquele que conduz o supervisionando a se
despojar de todas as fórmulas, a fim de que possa constatar que cada
paciente será sempre uma surpresa que exige saber esperar e que
possibilita sonhar e poetar. Como já citei em outra parte, Montrelay
(1985) afirma, referindo-se a um mestre em Bali que guia a
aprendizagem de um jovem bailarino colocando-se atrás deste, e
mostrando que ele lhe passa a arte de dançar, na condição de que o
aluno dance por si.
Ao dar corpo à questão da clínica, supervisão e narrativa, fui me
dando conta que também corporificava o meu ofício de pesquisadora,
pois ao contar e re-contar histórias imprimi minha marca através de
meu olhar e do meu tecer sentido. Enquanto uma artesã, ao tecer
sentido,
fui
deparando
com
questionamentos,
inquietações,
desalojamentos que me possibilitaram criar um caminho para dar conta
da minha questão. O próximo capítulo mostrará este caminho.
106
Criar não é mais chorar o que perdeu, o que não
se pode recuperar, mas substituí-lo por uma obra
tal que, ao construí-la, se reconstrói a si próprio.
Anzieu, D., 1989, p. 23
110
A partir de tantos reflexos advindos do espelhamento, comecei a
“colheita dos meus dados”.
“Colheita” que significa “recolher”.
“Recolher” diz de atos envolvidos nessa ação: reunir, colher, colocar
ao abrigo, debruçar-me sobre eles, envolver-me e misturar-me com
eles. Ou ainda, como afirma Cupertino (1995), colheita pode ser
empreendida pelo verbo legere (dizer, falar), palavra alemã legen,
homônima de legere, traduzível como: reunir, recolher e “estender
diante de si”. Para a autora, colher e estender são uma mesma coisa,
sem que este estender seja um “deixar estendido”, no sentido de
“deixar ir” ilimitadamente. É um estender diante de si que conserva a
coisa estendida para o desvelamento do recolhido.
Nesse sentido, segundo Cabral e Morato (2003, p.158)
Um trabalho de pesquisa, dessa maneira compreendido,
é necessariamente autoral. Ele é tecido a partir da
experiência do pesquisador, cujo cenário é a condição
de ser-no-mundo-com-os-outros.
Todo trabalho de
pesquisa, desde o polimento da questão, definição de
objetivos, passando pela pesquisa bibliográfica,
elaboração da metodologia, trabalho de campo, análise,
até a escrita final do que vai sendo desvelado, é uma
experiência propriamente dita. Dito de outro modo, esta
é uma man eira fenomenológica possível de compreender
e realizar pesquisa.
Por outro lado, referindo-se à pesquisa qualitativa, Gomes
(1998, p. 32) afirma que
O pesquisador transforma-se assim num sujeito
participante e envolvido na situação que deseja
conhecer e investigar, sendo simultaneamente sujeito e
objeto (consciência reflexa sobre si mesma). Sua não
neutralidade passa a ser valorizada como um meio
instrumental de aquisição de informações tácitas de
extrema importância para o conhecimento sensível e
refinado do problema. O método implica em constantes
111
reformulações à medida em que o pesquisador amplia o
seu entendimento da situação em foco.
Nessa direção, como assinala Queiroz (1991), o pesquisador é
guiado por seu próprio interesse ao procurar um narrador, pois quer
conhecer, esclarecer algo que o preocupa. O narrador, por sua vez, quer
transmitir sua experiência com detalhes, o que pode convir ou não ao
pesquisador. Assim, tentará trazer o narrador ao bom caminho, isto é,
ao assunto que ele, pesquisador, estuda.
Pedir
a
narradores
que
falem
das
suas
experiências
de
supervisão seria solicitar um relato de algo que experimentou, pois,
segundo Queiroz (1991), o colóquio pode ser dirigido diretamente
pelo pesquisador e da vida de seu informante só lhe interessam os
acontecimentos que venham se inserir diretamente no trabalho. Assim,
a autora afirma que, ao utilizar o relato, o pesquisador fará de acordo
com suas preocupações e não com as intenções do narrador, ficando,
em segundo plano, o propósito do narrador.
Entretanto, se a narrativa para Benjamin (1985) se apresenta
como situação para a elaboração de experiência, tanto para o narrador
quanto para o ouvinte, pode-se pensar que o narrador imprime seu
propósito no depoimento que oferece ao pesquisador. Mesmo que não
explicitado nem captado pelo pesquisador por ele desinteressado,
propósitos estão sendo comunicados durante a entrevista e demandam
escuta e interpretação por parte do ouvinte.
112
É por essa compreensão que a pesquisa e a clínica podem se
aproximar.
Nessa
direção,
Cabral
e
Morato
(2003,
p.174)
compreendem o método da pesquisa como
um modo de pensar para encontrar uma franja do real
e não um modo de pensar por raciocínio, cálculo, ou
categorização de conteúdo, para achar o real em si.
Se a “colheita” demanda cuidado e atenção ao que ocorre entre
pesquisado e pesquisador, narrador e ouvinte, respectivamente, a
comunicação dos depoimentos recolhidos conduz-se por essa mesma
direção. Afinal, é a partir do depoimento textualizado que o
pesquisador orientará a compreensão do recolhido para comunicá-la
como interpretação.
113
se produz enquanto dela também participo, como diz Meihy (1996, p.
28)
o entrevistador, por um lado, deixa de ser aquele que
olha para o entrevistado contemplando-o com um mero
objeto de pesquisa, por outro ângulo, ele próprio deixa
de ser um observador da experiência alheia e se
compromete com o trabalho de maneira mais sensível e
compartilhada.
Para Meihy (1991), a textualização é um estágio mais graduado
na feitura de um texto de história oral. Esclarece o autor que o fazer
do novo texto permite que se pense a entrevista como algo ficcional,
aceitando-se, sem constrangimento, esta condição no lugar de uma
cientificidade que seria ainda mais postiça.
A isto, Queiroz (1991)
ainda acrescenta que esse texto precisaria ser decomposto: fragmentálo, separar os componentes e recortá-los, a fim de utilizar somente o
que é compatível com a síntese que se busca, como uma análise
possível.
À medida que fui refletindo sobre a coisa estendida, ou seja,
como colher, recolher e interpretar o recolhido, passei a viver
situações desalojadoras, sentindo-me enredada numa trama que me
desequilibrava
e
desestabilizava,
remetendo-me
a
composições
diversas, ora me encontrando, ora me escondendo, ora me revelando.
Nestas composições diversas, encontrei não só a tensão entre o
conhecimento
tácito
e
o
explícito,
podendo
compreender
este
interjogo através das experiências narradas entre supervisores e
supervisionandos, como também fui construindo uma forma de olhar,
114
de tentar compreender aquilo que a mim se apresentava de forma tão
enigmática.
Foi pela perspectiva do modo fenomenológico de compreender e
realizar pesquisa (Cupertino 1995; Cabral e Morato, 2003; Critelli,
1996), ou seja, fazendo e refletindo em ação, buscando sentido, após
ter observado algumas supervisões, tomei meus depoentes como
interlocutores, na tentativa de abertura para uma narrativa não
silenciada.
Nas entrevistas, esta foi a pergunta disparadora: “Pode me
contar como tem sido as suas experiências de supervisão?” A
preocupação era a presença do “entre” na experiência.
Tendo como bússola a questão da intersubjetividade, questão
que conduz à pergunta e à “colheita”, com gravador em punho,
comecei
diferentes
a
“colheita”
abordagens
de
que
depoimentos
de
supervisionam
seis
supervisores
Estágio
no
Curso
de
de
Formação de Psicólogo, e trinta e seis entrevistas dos respectivos
supervisionandos, totalizando quarenta e duas entrevistas.
Este foi o modo inicial para me aproximar e compreender como
ocorre a relação entre supervisor e supervisionando.
Após a “colheita” das narrativas e seguindo o método proposto
por Meihy (1991), transcrevi para a grafia, fielmente, o que foi, não
mudando nada. A seguir, cada depoimento foi lido e relido, procurando
marcar as palavras-chave, lembrando que a função da palavra-chave é
básica e fundamental por definir a musicalidade da entrevista e
afiançar o tom pretendido pelo narrador.
115
Passei, então, à textualização que anula a voz “do entrevistador”,
para dar à fala do narrador, cuja fala, se incorpora a esta como uma
questão
provocadora.
Tomando
por
referência
a
textualização,
reorganizei os discursos, obedecendo à estruturação requerida para um
texto escrito, tornando as entrevistas compreensíveis e literariamente
agradáveis.
Em seguida, realizei uma cartografia 1 (Andrade; Morato. 2004,
p.348) por entre todos os depoimentos para conhecer onde neles a
questão inquietadora se impunha. Esse assinalamento permitiu que
fosse feita uma escolha pelo pesquisador, por aqueles depoimentos que
contemplavam a questão pela multiplicidade revelada. Desse modo, os
relatos foram escolhidos a partir de um critério de exemplaridade:
narrativa de depoimentos reveladores do mérito da questão. Tais
depoimentos estão, na íntegra, nos Anexos A, B e C.
Mesmo acreditando que este era um modo possível para
compreender o que acontece na relação supervisor-supervisionando,
muitas vezes me perguntei se fragmentar a experiência, como diz
Queiroz (1991), não poderia ser uma mutilação do que foi solicitado
ao narrador. Foi então que me apazigüei com a fala de Meihy (1991,
p. 32), ao afirmar:
o fluir do tempo tem garantido que o responsável pelo
texto é quem o textualiza, isso como resultado da
1
Cf. Andr ad e; Mo rato, 2004, p.348 - Ca r tografar in clu i o aco mp anhame n to, em
c a mp o, d as v ibr açõ e s /pu ls a çõe s, conf igur ad as n a pr áx is cotid iana .
116
elaboração do processo criativo em que deixa de
funcionar como mediador.
Assim sendo, o que fiz neste processo de transcrição e
textualização
de
depoimentos,
foi
chegar
ao
melhor
transcriar
possível, transcriando-o como quem traduz. Compreende-se traduzir
como quem conta uma história, recorrendo à narratividade para buscar
compreender
o
que
se
passa
no
espaço
entre
supervisor
e
supervisionando.
Sendo assim, penso que este fazer se constituiu numa pequena
textualização de minha memória de supervisora. Continha ela mesma
referências significativas quanto ao processo de supervisão, enquanto
um lugar onde não há uma designação de uma forma de trabalhar ou de
interpretar, mas sim como um lugar de espaço de criação de novas
possibilidades de pensar e de ser, constituindo-se, assim, numa
interpretação do que se presentificou através do meu passado como
supervisora.
Mas, ainda assim, permanecia um dilema: Como fazer uso dos
depoimentos de modo que pudessem mostrar o fenômeno presente na
minha questão — “entre”— a fim de que eu pudesse encaminhar uma
interpretação do “entre” por sua mostração?
Fui experienciando caminhos. No primeiro momento, tentei uma
compreensão
de
algumas
falas
dos
depoentes,
interpretando-as
isoladamente e, assim, o “entre” que era tão buscado não se revelava.
Sentia-me no mundo da escrita pictográfica, cada personagem naquele
117
cenário se apresentava como algo a ser decifrado e me perguntava:
Será que sou uma caçadora do inalcançável?
No
segundo
momento,
caí
numa
categorização
onde
a
interlocução com meus depoentes se empobreceu, revelando que o meu
modo de investigação e compreensão precisava ser outro. Aquilo que
se
apresentava
solicitava-me
atenção
minuciosa
e
prolongada.
Comecei então a percorrer todos os detalhes, precisei enfrentarl, a
cada instante, escolhas, exclusões, hierarquia de preferências, sem
deixar em conta o meu próprio eu. Afinal, de quem são os olhos que
olham? Através deles, havia uma janela que se debruçava sobre o
mundo e afinal eu era também parte daquele mundo. Assim eu era a
própria janela através da qual o mundo contemplava o mundo. Então
não bastava observar a supervisão por fora. Foi quando girei o olhar
em torno, à espera de uma transfiguração.
Da superfície muda das coisas partiu um sinal, um chamado:
uma coisa se destaca das outras com a intenção de significar algo.
Quanto mais me perdia nos emaranhados de diferentes contextos de
supervisão, mais eu me indagava sobre o meu modo de ser supervisora,
e melhor compreendia de onde havia partido para a compreensão da
supervisão do outro.
Passei então a reconstituir as etapas de minhas viagens e, assim,
aprendi a conhecer o porto de onde havia zarpado e os lugares
familiares
de
meu
início
enquanto
supervisora,
tendo,
naquele
momento, a sensação que finalmente podia ver o que estava às minhas
costas: a viagem só se dá no passado. Aquilo que eu procurava estava
118
diante de mim e mesmo que se tratasse do passado, era um passado
que mudava à medida que eu prosseguia em minha viagem, pois o
passado do viajante muda de acordo com o itinerário.
Aquele monte de recortes me entrava pelos olhos e ocupava
todo o campo visual. Tirei-os fora do fluxo das imagens causais e
fragmentáveis, concentrando tempo e espaço numa forma finita, como
se a surpresa da visão e da minha compreensão fossem dois reflexos
ligados entre si.
Passei então a entrelaçar recortes de falas de meus depoentes e
recortes de reflexões próprias mestiçadas, como tentativa de encontrar
sentido e refletir algumas interpretações acerca de minha questão.
Busquei contracenando com eles, encontrar a multiplicidade de todos
nós e de nossos questionamentos, não para demonstrar uma verdade,
mas sim para, através de tal compreensão, desvelar a constituição
mestiça de modos de ser e de refletir, possíveis de se apresentarem
numa situação de supervisão para formação do ser psicólogo: a fluidez
de um fazer-se significativo.
Essa tentativa permitiu-me realizar uma colagem, que começou a
se oferecer como “colheita recolhida” para elaborar uma possível
interpretação de minha questão: como se apresenta e qual o sentido do
que acontece na relação “entre” supervisor e supervisionando.
Desse modo, o que estava sendo buscado, passou a revelar
brechas do real pelo próprio modo como eu, ouvinte/pesquisadora, me
relacionei com o recolhido.
Ou seja, aconteceu o desvelamento de
minha interrogação “no” e “pelo” modo como me disponibilizei para
119
ser afetada e afetar o recolhido: o “entre” buscado manifestou-se por
uma
experiência
mestiça
em
ação
por
três
cenários
“regiões”
transitados.
Cada um deles diz de elementos dispostos como pano de fundo
pertinente à trama dramática que é a situação de supervisão, a partir
da ótica do pesquisador, ao transitar por uma região determinada.
Para que o leitor possa transitar por essa travessia, recorro a
uma legenda para esse diálogo.
Usarei A para as vinhetas do
supervisionando depoente e S para as vinhetas do supervisor depoente.
120
CONTRACENANDO COM DIFERENTES
CENÁRIOS
Buscando o lugar, a clareira, a iluminação, por onde pudesse
olhar, a partir de mim mesma, pelas observações realizadas nas três
diferentes supervisões, bem como dos depoimentos colhidos, passei a
contracenar com uma pluralidade de olhares nos três cenários dos três
diferentes supervisores e seus respectivos supervisionandos; cenários
esses que se apresentavam por um silêncio ruidosamente ouvido.
Afinal, todo silêncio consiste na rede de rumores míudes que o
envolvem.
A. O CUIDADO COMO CONDIÇÃO
Então... supervisão é, acolhimento... É você se sentir
aceito... independente daquilo que foi feito...
Porque... ser aceito... não quer dizer que o supervisor
vai concordar com tudo que você fez... Mas te dá essa
liberdade de se lembrar que o caminho é seu... que
existem outras possibilidade... mas... a forma de
fazer... vai ser sempre sua. (A3/S1)
Supervisão é um momento de troca tanto do
supervisor para gente como da gente para o
supervisor... de aprendizagem... de acolhimento...
acho que ali a gente vai se abrir... abrir nossos
medos, nossas angústias... medo do que a gente está
121
trabalhando... de como a gente está trabalhando... é
preciso que o supervisor acolha. (A4/S1)
Na supervisão não só se traz os atendimentos mas o
que ficou para o supervisionando... acho que tem que
acontecer muito na relação... às vezes não é tanto o
caso que nos interessa... mas assim, o que ficou...qual
foi a sensação do terapeuta... no caso do estagiário...
lá na situação... como é que a partir dessa situação...
desse sentimento que ficou nele... ele pode
trabalhar.(A2/S2)
Acho que supervisão é um momento de acolhimento...
Na semana anterior... eu não tinha atendido... Eu
cheguei para a supervisora dizendo que eu estava
mal... ela falou assim: “então... se dê um
tempo!...”sempre acolhendo... nesse sentido... de
tomar os cuidados com os nossos limites...
A
paciente... na semana que veio... parecia um trator!...
E a supervisora foi tentando me ajudar... a dar uma
respirada... Parece que a gente fala algumas coisas
que estão num caminho legal... e a gente não percebe
isso... Acho que deu para falar algumas coisas
significativas para aquela mãe que atendi...
Supervisão é um momento de cuidar da gente...
Cuidado... assim... de você estar parando... escutando
você mesma no atendimento... (A6/S2)
Supervisão para mim diz respeito a um cuidado que
todo
supervisor
deveria
ter
com
seus
supervisionandos. Estamos aprendendo... por isto
sofremos... ficamos perdidos. É tão bom quando o
supervisor entende isto! Quantas vezes chego à
supervisão e estou cheia de problemas pessoais...
familiares... financeiros... acabo ficando ensurdecida
a tudo que vivi no estágio,... daí quando o supervisor
pode me ouvir... com tudo isso que me fez sofrer... ou
quando ele me olha com olhar de carinho... eu me
sinto mais leve... só que isto não pode acontecer nesta
supervisão... porque a professora X não entende essas
coisas... não sei se ela não entende ou acha que na
supervisão não é lugar para isso. (A4/S3)
A supervisão, enquanto lugar de cuidado, foi apontada pela
maioria dos entrevistados. Expressavam-na como um lugar onde o
supervisionando precisa do gesto acolhedor do supervisor, orientado
pela capacidade de compreender suas necessidades e acolher suas
angústias, para que ele se ponha em devir. Isto me leva a encontrar a
123
necessariamente
implica
cuidar:
cuidado
como
“pré-ocupação”,
atenção e zelo com o acontecer do outro.
Em sendo assim, S1 e S2 cuidaram de seus supervisionandos,
abriram-se à condição própria de ser humano. A existência de outros
(supervisionandos)
afetava
suas
próprias
existências.
Disto
sou
testemunha! Durante as minhas observações desses dois supervisores,
pude ver, ouvir e sentir o cuidado sendo concretizado, como lembra
Boff (1999), ora por meio de um gesto, como um sorriso, uma carícia,
ora por meio de palavras, ora por meio de um olhar. Os movimentos
desses supervisores se deram a ver como acolhimento e preocupação
para com os supervisionandos e tornando-me deles testemunha, podia
perceber como que “um clima, no ar” sempre de muita emoção,
manifestado, por vezes, por alegria e entusiasmo, por vezes, por
tristeza e compaixão. Era como se o tão buscado “entre” fosse se
revelando pela via do cuidar-se, sendo cuidado para cuidar.
Para eles, a experiência de cuidar cuidando-se é condição do
existir. Inclinam-se ao supervisionando, com atenção e dedicação pela
escuta. Eis um ato clínico acontecendo na formação de clínicos.
Quando os alunos vão para as instituições...
creches... asilos... escolas... eles vão morrendo de
medo... acho que inseguros por não terem nada para
oferecer. As primeiras supervisões depois desses
primeiros contatos, são sempre muito difíceis... daí
tenho que acelerar a construção de um projeto de
intervenção. Daí sim... eles parecem que ficam mais
calmos... pois passam a saber o quê e como fazer...
passam a ter uma resposta para dar àquela
demanda.(S3)
124
Contudo, esse depoimento me conduz para outra direção.
S3
revelou-se aprisionada. Supervisão, para ela, não se apresenta como
espaço, mas como ponto especificamente delimitado para um único
movimento.
Mostra-se conduzida por uma supervisão como verdade
enquanto veritas (conforme p.83), uma vez que compreende cuidado
como que sustentado pelo oferecimento de intervenções: supervisor
deve
propiciar
ao
específica de atuar.
supervisionando
uma
maneira
corretamente
Revelando como ela compreende ser coerente
como constância de atuação no tempo, testemunhei, durante sua
supervisão,
que
não
se
permitia
acolher
as
angústias
dos
supervisionandos, preocupada que estava em oferecer a técnica como
forma de apaziguar o não saber.
Tenho tido algumas supervisões que têm me ajudado
muito... e outras que me deixam muito solta... que não
me orientam... que não dizem o que tenho que fazer.
Gosto desta supervisão da professora X... porque ela
é muito prática... eu sei o que ela quer que eu faça...
ela me ensina como fazer. (A1/S3)
Felizmente meu caminho com as supervisões em
geral... tem me proporcionado muitas aprendizagens.
Meus supervisores passam para mim a técnica. Esta
supervisão por exemplo... me ajuda muito. Venho da
creche cheia de dúvidas... são tantas coisas que não
dão certo. Na supervisão aprendo como fazer
intervenções para a próxima semana. A supervisora é
muito boa... tem muita experiência e passa isso para
gente. (A2/S3)
No seu modo de fazer supervisão, como uma atuação, S3 afeta
seus supervisionandos que devido à angústia de não saber o quê e
como fazer, se agarram à técnica por ela oferecida, sentindo-se desta
forma “cuidados”.
Durante a trajetória para compreender o cuidado na relação
supervisor-supervisionando, uma hierarquia de valores a mim se
apresentava e, nesta, a coragem ocupou o primeiro lugar. Tudo que ali
estava revelado podia ser traduzido em recordações que diziam
respeito ao cuidado, ou descuido, que, até então, havia vivido eu
125
mesma com meus supervisionandos. Por isso, faz-se necessário
conversar comigo mesma, interlocutando com os habitantes desses
diferentes lugares, encontrados neste percurso.
Entretanto confesso que meus pensamentos corriam por conta
própria, no circuito de alternativas e de dúvidas que eu não conseguia
desligar.
Foi necessário um esforço, bastante diferente do habitual,
para me concentrar na direção do que as falas, aqui ouvidas, me
remetiam: Será que eu como supervisora fui cuidadosa? Nesse
momento, percebi-me “deixando de ficar atenta a uma direção”.
Era
como se um farol houvesse dilatado para varrer a escuridão de meu
campo visual, desaparecendo em seguida e, de repente, às minhas
costas; arrastando atrás de si uma espécie de luminescência submarina.
Ouvia como num feixe de raios luminosos, lampejo e ofuscação me
seguindo. Ou seriam lanternas que eu segui? Enfim, eram muitos os
sinais que passavam pelo caminho, cada um com um significado, ora
permanecendo escondido e indecifrável, ora possibilitando imagens,
traduzidas por experiências próprias.
Todos me assinalavam que,
muitas vezes, descuidei de meus supervisionandos.
Como foi duro admitir o descuido!
Havia aprendido e
reassegurado por encontrar-me em um ambiente, no qual cada coisa
somente podia estar em um mesmo sempre seu lugar, sem surpresas
possíveis, infundindo-me calma.
De fato era muito confortável!
E
agora, toda minha vida em desordem... Mas, quando me lembrava do
motivo por que viajava, bastando fechar os olhos e mergulhar nos
inúmeros recortes de meus depoentes, a impressão de esqualidez se
desmanchava e só encontrava a mim mesma diante da aventura mesma
da viagem.
Uma solidão completa, junto a tantos companheiros de jornada,
se fez, expelindo da área de meu pensamento quaisquer aspectos de
outras realidades que pudessem perturbar-me ou que não me fossem
úteis, mas que, agora, se impunham como algo que, verdadeiramente,
merecia ser interrogado.
Como era muito difícil me sentir “entre”
126
territórios, “entre” regiões, “entre” tantos outros!
Isto me fazia
lembrar a seguinte passagem, descrita por Ítalo Calvino (2004, p.79) :
Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra.
— Mas, qual é a pedra que sustenta a ponte? pergunta Kublai Khan.
— A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra.
- responde Marco – mas, pela curva do arco que estas
formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta:
— Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Pólo responde:
— Sem pedras o arco não existe.
Por aqueles cenários, de andanças impelidas pela paciência e
impaciência,
quantas
muitas
outras
pedras
ainda
teria
eu
para
descobrir!
B. ANCORADOS NA TEORIA
Só não jogo fora o embasamento teórico da
supervisora... fora as visões das outras pessoas
dentro do grupo. Além do conhecimento teórico do
supervisor, ele está me acolhendo... acho que é uma
qualidade que cada supervisor deveria ter...
acolher... me ouvir... e tentar me auxiliar... me
guiar... mostrar novos caminhos... o embasamento
teórico... o direcionamento. (A1/S1)
Para mim supervisão é tudo... porque sem a
supervisão eu não saberia que rumo tomar. É como
um farol que ilumina... me encaminha... que vai me
orientando o que fazer... como inteferir nas sessões...
sem a supervisão acho que eu não iria...acho
importante. A supervisora tem que contemplar a parte
teórica... a teoria mesmo... porque é baseado na
teoria que a gente vai poder aprender. (A6/S1).
A Psicanálise trabalha com conteúdos mais íntimos...
talvez com coisas que não estão aqui explícitas... é o
que está acontecendo... não tenho palavras... é o que
está acontecendo nessa relação... não é só o dito... há
127
muito mais do que o dito na supervisão de
psicanálise...quando minha paciente disse: “eu não
consigo me separar de meu primeiro marido”... esse
primeiro marido lá em outra supervisão era o
primeiro marido dela... com quem ela casou e se
separou... aqui não é o primeiro marido com que
casou e separou... é o marido anterior de todas as
mulheres de quem ela não conseguia se desligar... que
seria o pai no caso... então é muito mais profundo...
(A1/S2)
Na hora eu me foco muito no objetivo...a pessoa está
falando e eu estou percebendo a partir da fala do
sujeito... não consigo ver o latente... aquilo que não
está sendo dito... tenho dificuldade... e na supervisão
às vezes ela me traz isso... a partir do que eu relatei
ela me traz de volta para eu ver o que não estava
sendo falado...ou o que às vezes eu não escutei... não
tenho essa possibilidade de escutar além do que está
sendo dito... às vezes... quando estou com o
paciente... então ela, a supervisora, me traz um pouco
para pensar no que não estava sendo dito ali.
(A3/S2)
Acho que todo supervisor deveria ser assim
competente, coerente com a teoria que adota. Tenho
colegas
que
não
gostam
da
abordagem
comportamental... eu não! Eu acho que é uma linha
muito coerente... falam que é mecanicista... não me
importo muito com isso. O importante para mim é
que é uma linha objetiva... não gosto dessas outras
linhas que tudo você tem que pensar... compreender...
interpretar. Isto me dá a sensação que tudo pode ser
uma enrolação... que tudo cabe dentro da Psicologia.
(A1/S3)
Ter uma linha precisa... clara... objetiva... é
fundamental no estágio e isso a nossa supervisora
tem... ela consegue ser coerente... ela faz um
levantamento e a correlação das variáveis naquele
dado contexto e a partir disto nos mostra como
devemos intervir.
Por causa da atuação dessa
supervisora é que me sinto mais segura na minha
prática... eu chego lá e sei o que fazer... não é como
em outros estágios que nunca sei o que tenho que
fazer... que o supervisor parece que não tem o que
nos oferecer... fico sem respaldo. (A2/S3)
Ao ler e reler os depoimentos, inevitável foi prestar atenção a
um aspecto que saltava aos olhos Estes não puderam deixar de
128
observar o vértice da teoria interpondo-se como uma questão de
supervisão.
Passei, então, a ouvir a modulação, a cambiante, o compósito.
Quantas fotografias possíveis! Mas aquilo que eu realmente buscava
era a fotografia única, que contivesse tanto uma quanto outra: era ao
invisível que eu queria chegar. Entendi que fotograf
130
cru para o estágio... além da falta de conhecimentos
teóricos... Ele apresenta-se também... muitas vezes...
com um descomprometimento ético.
Eles não
entendem que é necessário abraçar uma teoria... que
precisamos da teoria para iluminar nosso fazer. Eles
acabam se comportando como alguém do senso
comum,,, ou fazem uma salada teórica. Sinto-me na
obrigação de não só oferecer respaldo teórico... como
também de controlar aquilo que ele faz. Para isso
trabalho com uma ficha de desempenho. Temo os
desastres que podem acontecer a partir de uma
intervenção mal feita... Alguns alunos acham que
podem fazer aquilo que lhes passa pela cabeça. É por
isso
que
sempre
trabalho
com
intervenções
planejadas. Quando o aluno vai para a instituição ele
já sabe o que tem de fazer... ele não é pego de
surpresa. (S3)
A revelação de tantas fotografias conduziu-me ao que a mim
mesma se testemunhou quando presente nas supervisões: vi e ouvi, em
alguns momentos, a teoria explicando ou se antepondo ao encontro
com o outro.
Percebi quase que uma necessidade de os supervisores fazerem
uma espécie de demonstração de seus conhecimentos.
Seria essa
atitude expressão de como eles foram afetados pela minha presença
(uma estranha, estrangeira)?
Percebi neles, em muitos momentos, uma preocupação em
explicar; através de uma verdade teórica, o que ocorria no encontro do
supervisionando com seus paciente, conformando-se a um “saber
apriorístico sobre” e, assim, reduzindo a experiência a um mero
pensamento representacional. Era como uma revelação de que não
suportavam a angústia do encontro com a alteridade, acreditando que,
com o conhecimento teórico, pudessem superar incertezas, negando o
131
processo de afetação no encontro.
A veracização dessa percepção
encontra-se nos depoimentos.
Escutando as falas nessas experiências, fui remetendo-me ao
meu
fazer
na
supervisão.
Por
muito
tempo,
ensurdecida, agarrada às explicações metafísicas.
também,
fiquei
E, até hoje, sinto
que, às vezes, delas ainda me utilizo, especialmente em momentos, aos
quais me percebo paralisada pela impossibilidade de acolher “o
afetado”, o “fazer sentido”.
Contracenando com meus depoentes, a vereda por onde me
encaminhei, assinalava como era angustiante o caminho de busca de
sentido para o meu ser supervisora. Afinal, por elas se revela a minha
própria intimidade, o meu modo de ser: refletir o meu fazer, entrar em
contato com as minhas experiências de supervisora é usar de mim
mesma como instrumento para supervisionar.
Tais percepções foram
revelando como o meu jeito de fazer supervisão foi se transformando
paralelamente no encaminhar desta pesquisa.
Os diferentes cenários
experienciados, apesar do medo e do intimidamento, foram, gradual e
silenciosamente, abrindo possibilidades para a ousadia de ser eu
mesma, disponibilizando-me ao novo, ao poético, redimensionando
assim, o meu ser supervisora em supervisão.
Em meio a tantas travessias, fui lentamente desgarrando-me do
domínio de um saber teórico, permitindo-me que o conhecimento
tácito falasse a mim.
Transitando por essas outras paragens, fui
encontrando o meu próprio caminho: um novo reino começou a ser
132
conquistado, o coração endurecido passava descompassadamente, à
brandura.
C – A DIMENSÃO ÉTICA
Acho que a supervisão pode abrir outras
perspectivas... outras possibilidades... mas mudar
não. Eu só vou mudar o atendimento ou o jeito que
estou fazendo no momento em que fizer sentido para
mim... Faz sentido quando... por exemplo... era uma
coisa que eu não reparei... era uma outra
possibilidade, outra hipótese que eu possa estar
testando no caso... uma coisa que eu não tinha me
dado conta ou que me tocou de alguma forma...
(A1/S1)
Acredito que o supervisor pode ajudar a clarear em
alguns momentos... pois você também pode se perder
nesse meio do atendimento... se bate uma questão
sua e você se enrosca... o atendimento não continua
e às vezes você não consegue perceber isso... para
quem está de fora às vezes é mais simples, é mais
fácil de ver o que está acontecendo... de discernir...
agora o que você vai fazer com tudo isso é uma
função sua... se vai trabalhar lá fora... na terapia...
análise... com o amigo... sei lá com quem for... é
você que vai ter que reintegrar essa experiência
dentro de você. Faço uso do que o supervisor falou
quando faz sentido. Quando o supervisor fala algo
pra você e... é engraçado... você se sente tocado por
aquela fala... ela tem um sentido. Parece que existe
uma lógica... uma coerência... não só racional...
mas que te toca enquanto pessoa. Então aí você
fala: bom, então... acho que eu posso utilizar disso
sim... porque agora faz parte de mim também. É
como se fosse você pegar os pedacinhos do outro...
aquelas coisas que fazem sentido e ir te
constituindo... dando uma nova forma para tudo
isso. (A3/S1)
Sair leve ou pesada depende da relação, do que
aconteceu na sessão... do que ele contou... de como
você reagiu... e... às vezes... mesmo da escuta do
133
professor... porque... às vezes... ele não consegue te
ouvir totalmente ou às vezes ele te coloca em
desespero ou sem querer te acalma.. Acho que é um
somatória... às vezes... percebo que para mim não
era tão pesado... mas que para outras pessoas do
grupo foi extremamente pesado... principalmente
para o supervisor... Nessa hora que eu páro...
penso... se é tudo isso mesmo... se eu estou me
dando bem ou se eu não estou sabendo ouvir
totalmente... ou se eu estou ouvindo o paciente...
não me deixando afetar.. às vezes... não fico afetada
como o supervisor ou como os colegas... Outras
vezes eu fico afetada e eles não. Acho que tem a ver
com a história de cada um... com o momento de cada
um... com a maneira de interpretar as coisas... Eu
acho que enquanto está afetando é porque está
funcionando... por mais pesado que seja ou mais
leve... é porque está funcionando. (A5/S1).
Em primeiro lugar é essencial que eu permita... eu
acho que o principal é o terapeuta estar aberto...
estar trabalhando algumas questões da vida dele...
principalmente quando se depara com alguma coisa
que mexe com ele no atendimento... e sempre mexe...
como ela (a supervisora) acabou de falar: se não
está mexendo é porque não está andando... é porque
não está seguindo em frente. E quando não mexe...
acontece de não mexer... quando não mexe é
porque... a gente não está podendo escutar. (A1/S2)
A gente acaba se esquecendo... acaba falando do
relato do atendimento... então a gente esquece de
repente... de dar uma brecha para falar como que eu
me senti... eu sinto isso... e até por conta do
supervisor que acaba não dando o espaço para falar
como isso aconteceu em você... só acontece
quandol... de repente tem uma frase do tipo: “ah!
Fiquei muito mal, fiquei muito brava com a situação
que a pessoa, que o paciente me trazia”... aí tem um
gancho... que daí ficou muito claro... daí o
supervisor acaba puxando o que ficou em você. Aí se
puxa... mas quando... de repente... não tem uma fala
dessa tão clara... às vezes até acaba se
esquecendo... acaba não falando do que ficou em
você. Vou falar de mim naquele momento porque às
vezes pode ter interferido... vou poder falar do que
aconteceu em mim ali. (A2/S2).
A supervisão é um momento muito importante com
um profissional mais experiente que vai falar um
pouco do olhar que ele tem sobre o meu cliente.
134
Vejo a supervisão como um lugar de apoio para
minhas angústias... Lógico que não substitui uma
terapia individual... mas um lugar também em que
eu possa me colocar... Mas eu acho fundamental que
mesmo o supervisor sendo experiente... sou eu quem
sabe sobre o meu paciente. A supervisão é uma
relação de amor e ódio... também, porque às vezes
você diz: que legal!... foi o máximo!... depois... que
raiva!. Como eu saí na supervisão passada. Mas
depois passa e vem o amor de novo... depois vem o
ódio. Acho que a vida toda é assim... (A8/S2)
É por essas falas que encontro o sentido da ética como morada,
ainda que, em momentos, se revele, identificando-se à teoria.
Falam de si mesmos, de como a situação de supervisão abre para
encontros, nem sempre suaves, nem previsíveis, consigo mesmos.
Deixam brechas nas suas narrativas, revelando a propriedade de
condição ao acontecer humano, buscando re-encontrar modos de sentir
e uma maneira própria de estar no encontro.
Por outro lado, apresentando-se por uma ambigüidade, essas
palavras permitem que se mostre como os espaços instituintes de uma
ética são plásticos: múltiplos, híbridos, mestiços e sempre possíveis
no encontro entre supervisor-supervisionando, entre supervisionandopaciente, entre tantos “entres”.
Suportar diferenças emergentes em
encontros abre-se ao acolhimento, que não passa por um falar sobre ou
um explicar algo, mas por um transitar a partir da afetação:
desconstrução e reconstrução de modos de existir, não capturáveis nem
por teorias nem por valores morais dominantes, enfim, uma ética diz
respeito a ser in-disciplinada.
O aprendizado acontece pela passagem, pelo lugar mestiço no
desalojamento do conhecido... para o conhecer. É um aprendizado no
e pelo trânsito, com disponibilidade para se deixar contrariar e com
possibilidade de sempre se surpreender.
Precisamos de um conhecimento científico...
sedimentado em fatos observáveis e é isto que sinto
nesta supervisão... não preciso ficar olhando para
os lados... desviando minha atenção. Eu tenho uma
135
meta a seguir... um objetivo a alcançar. A
professora X me ensina a detectar problemas e a
solucioná-los. Acho que isso é ser competente e o
que precisamos aprender é isto: competência.
(A1/S3).
Eu acho que o jeito dessa supervisora é muito
importante para minha formação... eu quero ser
igual a ela quando crescer. Ela é muito didática...
séria... é exigente conosco... faz questão que na
supervisão estejamos com relatório a ser lido para o
grupo. Não tem enrolação... ela se prende aos fatos
descritos no relatório... não tem blá-blá-blá... não
tem
conversa
fiada...
gosto
desta
maneira
organizada de ela conduzir a supervisão. (A2/S3).
Menos plásticos e críticos, alguns supervisionandos afetados
pelo modo de ser de sua supervisora deixam-se conduzir pela
representação da “ética” como referente à objetividade, à praticidade
no fazer “psi”: num código moral.
Revelavam-se limitados para
acolher diferenças, aprisionados que estavam ao pensamento modelar
de uma verdade técnica pronta e acabada.
Circulando em uma
realidade normatizada, viviam a alteridade como uma incompletude
pessoal, negando a diferença como possibilidade no encontro com o
outro.
Durante a supervisão, observei como estes alunos se colocavam
no lugar de um não saber. Tocados pela racionalidade competente da
supervisora, abrigavam-se num anonimato dependente.
Quanto mais
se percebiam vigiados, cobrados e controlados, mostravam-se seguros
como autômatos, deixando que seus depoimentos desocultassem um
desamparo interditado em sua expressão.
Acho que não me encaixo em certas supervisões.
Essa coisa prontinha... certinha... arrumadinha...
136
planejadinha... me angustia. Parece que as pessoas
não conseguem se colocar na vida de outra maneira.
Acho isto horrível!
Muitas vezes saio desta
supervisão e fico pensando... será que as pessoas
acreditam mesmo que o mundo é assim tão
controlável? Gosto de cinema... de dançar... de
arte... de cantar... de poesia... de literatura... de
carnaval... gosto do imprevisível... gosto de deixar
a vida me levar. Sinto muito incomodada de ter de
estar nesta supervisão... é isto mesmo... ter que
estar... não tenho escolha.
Gostaria de ter
supervisores que junto comigo problematizassem o
conhecimento... que pudessem sair das alienações...
que abolissem a ficha de desempenho... os
relatórios... os manuais... os chavões teóricos... que
me deixassem ser e fossem uma metamorfose
ambulante. Que nos permitissem nossas próprias
experiências... é dentro delas que certamente nos
encontramos...
não
quero
se
uma
“tequiniquzinha”...acho que a ação do psicólogo é
muito maior do que isso. (A3/S3).
Fico com pena da maioria dos meus colegas... que
como eu... tentam buscar aprender... porém sem
qualquer crítica... sem qualquer oposição.
Me
irrito muito com essa supervisão que acabei de
sair... a supervisora se acha dona da verdade... nós
somos para ela um bando de imbecis... acéfalos... O
pior é que eu percebo que ela é assim em tudo que
ela faz... acho que não tem a menor consciência que
aquilo que ela faz não cabe no mundo atual...
aliás... acho que nunca coube em nenhum mundo.
Por sorte tenho tipo um outro supervisor que me
permite pensar... me contrapor... percorrer meu
próprio caminho. Este sim, mostra respeito à minha
pessoa... ele pacientemente espera que eu faça as
minhas próprias descobertas.
Ele não faz
julgamento dos meus atos. Ele na supervisão tenta
compreender o que eu vivo naquele encontro com o
paciente. Ele me faz ver aquilo que está escondido
em mim... o que faz sentir-me muitas vezes
estranha... confusa... inquieta... agoniada. (A4/S3).
Ás vezes os colegas ou o supervisor mostram como
pensam uma dada questão... daí em penso como eu
vejo aquilo e como as pessoas da instituição em que
faço estágio percebem e sentem aquilo... É daí que
eu vou saber como agir e na maioria das vezes dá
certo. Só que às vezes isso é tão confuso... porque
tenho que revelar para o supervisor como é que eu
fiz... daí tenho que enfiar isso num dado
conhecimento para parecer científico e me
137
atrapalho toda... e me angustio muito. Acho que as
supervisões... no geral... poderiam ser mais lights...
se pudesse ter um espaço para eu falar mais daquilo
que eu vivo... e não ficassem tão presas aos
procedimentos e resultados.
Me sinto muito
avaliada nesta supervisão e daí parece que perco a
mim mesma... que perco a minha espontaneidade.
(A6/S3).
Contudo, essa interdição não intimidou outros alunos desta
mesma
supervisora.
Confortavelmente
incomodados,
não
podiam
compactuar com uma ética desumanizadora deles mesmos, como sendo
humanos. Ancorados em sua própria experiência, como sendo o
realmente vivido que dizia do ser si mesmo, contrapunham-se a essa
representação de uma atuação estável em Psicologia.
Eu acho que ninguém pode ser aquilo que não é...
isso acho que a gente compreende muito
tardiamente... No início da nossa vida a gente
sempre está querendo ser aquilo que a gente não é...
não sei se dá para entender... a gente quer ser mais
magra... quer ser mais bonita... quer ser mais
inteligente... não queria ser do jeito que é... queria
ser como aquela... você tem modelos... acho que é o
próprio convívio... o com... da forma como está aí...
o poder vai se instalando no mundo... mas com o
tempo você se permite ser você mesma... pelo menos
naquele momento... porque você nunca é você
mesmo na totalidade. Você está sempre sendo...
vindo a ser... naquele momento você tem que ser o
mais autêntico possível... o mais próximo possível
de você mesmo naquele momento da sua trajetória...
acho que isso é positivo. Então a minha teoria seria
bem essa: o supervisor estar acompanhando o
acontecer daquela pessoa... daquele estagiário...
não como num processo de intervenção que dependa
da ação de um interventor para atingir resultados...
eu não quero atingir resultados... mas quero ser
aquela pessoa que está exercendo o cuidado no
acontecer do outro. É só isso. (...) acho que é isso
o que eu entendo como supervisão... essa questão do
retornar às coisas... voltando-se para elas em si
mesmas... abre um lugar para o singular... para o
si próprio... e é esse si próprio que eu tento
buscar... buscar o centro... o si-mesmo... o si-mesmo
próprio... não é que já está lá... não é um potencial
138
não... que já está lá e vai ser desenvolvido... não
sabemos qual é esse centro... nós temos um
chamamento... mas não sabemos qual é... eu não
acredito em potencialidade... não existe um
potencial... você tem possibilidades... infinitas...
infinitas possibilidades. (S1).
Supervisão já é um nome complicado... põe a gente
num lugar muito super e eu acho que não é uma
visão tão ampla assim... é assim: dar umas pequenas
pontuadas naquilo que faz um emaranhado entre a
subjetividade do terapeuta e aquele encontro que ele
está tendo que se remeter e onde ele é tocado e onde
tem um a mais que faz com que ele paralise. Eu
tento trabalhar isso. Eu procuro escutar o
terapeuta... o que atravessa o terapeuta enquanto
subjetividade quando ele entra em encontro com
outra pessoa e que ele tem essa tarefa de escutar
aquilo que obstaculiza a escuta dele... que faz com
ele fique muito angustiado... muito tocado e que faz
com que ele tome como uma identidade ou como
igualdade coisas que são absolutamente diferentes...
que ele tome semelhanças por igualdades. Eu tento
ajudar a fazer um pouco essa discriminação... a
pontuar esses nós. Quando não há reconhecimento
por parte do supervisor acho que o aluno paralisa...
paralisa porque ele está iniciando toda uma tarefa e
se ele fica muito ancorado nesse lugar de aluno
universitário... fica num lugar onde é sempre
aprendiz e numa é aquele que é autor. Como ele
está sempre de aprendiz se você reproduz uma
relação aluno-professor,.. quer dizer... na medida
em ue ele é aprendiz ele se desimplica... se
desautoriza,,, a cada ato que tiver que fazer ali na
frente do seu paciente é dele... é da autoria dele... e
aí... se ele não é reconhecido nisso... não é
autorizado nisso... eu sinto que ele fica paralisado
numa posição de aprendiz... ele não pode escutar...
se sente abandonado e ele abandona o seu
paciente... ele paralisa... porque aí enquanto
aprendiz ele não tem nada a dizer ao outro, ele tem
sempre que perguntar para aquele que sabe...
então... se ele fica ancorado nessa condição
universitária de aluno-professor ele fica um aluno
que nunca tem o que dizer... que nunca sabe... que
sempre ainda vai aprender... então ele se desimplica
da sua responsabilidade dos seus atos.Para você ser
um terapeuta você tem que se responsabilizar por
cada coisa que você faz... por seus atos... eu acho
que quando você não consegue fazer essa marca no
aluno ele fica perdido...porque ele fica se sentindo
aluno... ele fica aluno...ele não vira terapeuta... ele
139
precisa sair desse lugar de aluno... se deslocar
desse lugar e poder ter uma autoria. (S2).
...é preciso muita paciência de minha parte... muitas
cobranças quanto às leituras indicadas... quanto à
pontualidade no estágio... quanto aos relatórios...
quanto à elaboração, desenvolvimento e aplicação
do plano interventivo. Outro problema que encontro
como supervisora é que os grupos de alunos...
habitualmente são muito grandes... às vezes... 10-12
alunos para 2h 30 min de supervisão. Para que
alguns alunos não manipulem o grupo e usem o
tempo só para si... tenho trabalhado com uma
ampulheta sobre a mesa... assim marcamos o tempo
para cada aluno... uma maneira mais democrática
de dividirmos o tempo... sem prejudicar um ou
outro. Faço questão de supervisionar a todos... de
fornecer metas... dicas... de mostrar o certo e o
errado... de orientar... de marcar um caminho. O
aluno nessa hora fica muito perdido... é preciso
passar para ele a minha experiência para que ele
tenha um guia... um norte... para que ele aprenda o
que e como fazer. (S3).
Ao pensar em uma ética, necessariamente reflito acerca de um
modo de agir: uma ação.
Questiono a possibilidade da psicologia
contemporânea deixar-se capturar pela cama de Procrusto, uma ética
da eficiência da teoria ou ética disciplinadora da técnica.
Na perspectiva da ética, S1 e S2 preocupam-se em acolher o
estagiário do modo por que ele se apresenta.
O compartilhar nos
encontros possibilita a seus estagiários se reconhecerem singulares.
Revelam compreender a condição da existência como co-existência
possibilitadora desse acontecer: uma possibilidade de elaboração e
construção de conhecimentos a partir da própria experiência de
alteridade. Acolhem, assim, sentimentos de estranheza e angústia
provocados pelo encontro, como forma de um encontro com seu modo
próprio de ser si mesmos. Compreendem ética como morada-ethos.
140
Entretanto,
compreensão
de
no
modo
ética
se
de
S3
fazer
manifesta.
supervisão,
Reduzindo
o
uma
fazer
outra
dos
supervisionandos a um pensamento explicativo de relações causais,
preocupa-se com uma normatividade de atuação, imprimindo ao
supervisionando um modo de ser distanciado das emoções vividas pela
e na experiência. Entende as práticas disciplinares do psicólogo como
controladas aprisionadamente por normas disciplinares positivistas:
um
modelo
construído
a
priori.
Em
sua
visão,
há
elementos
explicativos e universais para os fenômenos psíquicos, que se tornam
objetos de manipulação por intermédio de um método pré-estabelecido
de conhecimento: o “saber sobre” é o principal requisito para que o
outro possa ser ajudado.
Desse modo, faz uso da técnica para apaziguar a angústia, tanto
do aluno quanto do cliente, estando o atuar do psicólogo associado à
função de explicar ou de dar respostas à demanda do outro.
Colocando-se na posição de quem disponibiliza um saber por técnicas
prontas estabelece uma relação assimétrica em relação ao outro. Nessa
ótica, entendendo a Psicologia mera aplicabilidade técnica, comunica
aos alunos um fazer para justar; ou seja, transmite a representação de
que ser psicólogo é fazer-se um mero instrumento, para que fins
determinados sejam atingidos. Por essa mesma direção, expressa que
o encontro com o outro não passa pela via da experiência, mas sim da
eficácia competente, para a qual o outro é apenas um outro objeto para
expressão de tecnicidade como cuidado.
141
Robotizando o outro, como desajustado a pedir “conserto”,
comunica aos supervisionandos a disruptividade da angústia por
perturbar a ordem estabelecida e o fazer competentemente produtivo.
Nessa perspectiva, alteridade é simplesmente uma ilusão a ser
evitada. Afinal, saber é poder para assistir os menos favorecidos.
E pensar que um dia eu fui assim como S3!
ainda hoje, isso me indigna e incomoda.
menos
houve,
em
algum
momento,
E confesso que,
Posso reconhecer que pelo
abertura
para
que
rupturas
pudessem acontecer, redirecionando-me a um outro jeito de fazer
supervisão e ser supervisora.
Mas, de qual outro jeito se trata?
Retomo o sentido de ética, que inexoravelmente me remete a
refletir um modo de agir: refere-se à autenticação de ser si mesmo pela
ação como um dizer público, diante de outros.
Tal agir publicizado
implica deixar-se ser visto pelo outro e ver-se através do outro: um
modo outro de ser si mesmo – como alteridade.
Diante de um outro mesmo si mesmo possível, ethos como
morada revela a pluralidade de todos nós em cada um de nós: arlequins
múltiplos, mestiços, híbridos a desalojarem-se, enquanto transitam
para se encontrarem a si mesmos, ao se acolherem estrangeiros
estranhos de si.
Falo, então, do que é ser supervisora fazendo supervisão: um
jeito híbrido, mestiço, um viajante sem ser, jeito esse pelo qual
hospedar o outro é condição fundamental que possibilita um sentir si
mesmo em casa. Si mesmo estando em casa para morar, sonhar e ter
142
esperança. Um jeito que contempla o modo de ser do outro como um
outro si mesmo, ao seu próprio estilo, no seu próprio idioma.
Se
assim eu puder ser eu mesma com o outro naquilo que faço, sinto que
meu gesto pode se disponibilizar como abertura a possibilidades:
possibilidade de ser solicitude atenta e cuidadosa como ética para
acontecimento com meus supervisionandos.
FECHANDO A CORTINA
O
cuidado,
o
zelo,
a
atenção,
a
pré-ocupação
com
o
supervisionando são condições fundamentais para o seu acontecer. O
supervisor ao mesmo tempo em que experimenta a alteridade na
presença de seu supervisionando, vive com ele uma comunidade de
destino porque com ele compartilha solidariamente das questões do
seu destino de psicólogo/terapeuta.
Compartilhar o sonho, sonho do fim de uma história, existente
no coração de cada supervisionando, abertos para a esperança pelo
futuro, implica numa ação de acolhimento pelo supervisor, que conduz
o supervisionando à serenidade, quando esta ação o singulariza e cria
aberturas para que possa apropriar-se de seu estilo de ser. Alcançar a
possibilidade de ser o que é, depende da hospitalidade ofertada pelo
supervisor.
143
Cuidar é mais do que um ato, é uma atitude. O supervisor
cordial ausculta seus supervisionandos, prestando atenção e pondo
cuidado em seu acontecer, saindo de si e centrando-se no outro, numa
ação de pré-ocupação, de in-quietação e responsabilidade.
Na ação de supervisão, a aprendizagem significativa é condição
para a criação de sentidos, onde as dimensões cognitivas e afetivas se
integram, tendo como referência a própria experiência, o próprio fazer
do supervisionando, como abertura para ressignificações.
É pela via da narrativa que o supervisionando conta suas
experiências e o supervisor cuidadosa e amorosamente transita por
elas: é em meio a este hibridismo que se encontram múltiplos na
singularidade experienciada de cada um. Assim, a supervisão é um
lugar narrativo continente para expressão de questionamentos e
angústias, onde se configura afetação e o reconhecimento, por parte do
supervisionando do significado da experiência humana; seja a sua
própria, a do outro ou da relação do ser com o mundo. Deste modo, a
supervisão se constitui num ato clínico por excelência, portanto, um
lugar mestiço para aprendizagem clínica.
146
Comecei este ensaio com uma questão inquietante: o que
acontece na relação entre supervisor-supervisionando? Por um intenso
percurso, chego agora ao final e posso (in)concluir que esta relação
deve permitir uma abertura (portas, janelas, átrio) a partir da qual
sejam possíveis encontros que possibilitem a criação de espaços
instituintes de uma ética.
Esta ética depende do acolhimento da
multiplicidade, do hibridismo, da mestiçagem imanentes no encontro
entre
supervisor-supervisionando
e
tantos
outros.
É
por
esta
perspectiva que posso compreender a supervisão constituindo-se em
um ato clínico por excelência, apresentando-a, assim, como um lugar
mestiço para aprendizagem clínica.
Pela travessia em que este trabalho se embrenhou, foi possível
resgatar
o
fenômeno
da
intersubjetividade
como
forma
de
conhecimento para refletir aquilo que acontece entre supervisor e
supervisionando.
Desvelou-se a sensibilidade experienciada, no
encontro/relação entre um e outro como condição de abertura para a
alteridade,
compreensão
e
conhecimento:
uma
aprendizagem
significativa.
Pela
alteridade
mostrar-se
presença
via
estranhamento
e
angústia, um lugar para acolhê-la como experiência fundante faz-se
necessário para que supervisor e supervisionando possam abrir-se a
um pensamento crítico/clínico, instituinte de uma ética, ou seja,
“aprender com”
supervisor
e
acontece na fronteira do desequilíbrio, na qual
supervisionando
são
demandados
a
exporem-se
abertamente à alteridade: a um outro que é diferente de si mesmo em
147
si mesmo, mas que, ao mesmo tempo em que surpreende, por ser outro,
possibilita que com ele se possa aprender. É por esta perspectiva que
não há nenhum modelo clínico instituído, nem de atendimento, nem de
supervisão, que possa contemplar a alteridade ela mesma.
A
possibilidade
de
suportar
as
diferenças
emergentes
no
encontro abre para o acolhimento não via um falar sobre ou explicar
algo, mas por um moto contínuo à compreensão a partir da afetação.
Revela-se um modo desconstrutivamente reconstrutor de ser, próprio
do existir humano: uma ética in-disciplinada, não capturável nem
pelas teorias nem pelos valores morais dominantes.
É nesse sentido que a aprendizagem acontece em trânsito, ou
seja, em passagem pelo lugar mestiço do desalojamento entre o já
conhecido e o ainda a conhecer.
Refere-se ao aprender no e pelo
trânsito, entre o significado e o sentido, disponibilizável a se
contrariar pela abertura à possibilidade de se surpreender à criação de
um significado sentido. Desse modo, no contexto da situação de
supervisão, na qual a intercambialidade entre experiências acontece
via a narratividade deixando a ver a alteridade como estranhamento,
desvela-se a aprendizagem significativa como fenômeno constituinte
ao
fazer
de
ofício
do
clínico
acontecendo
entre
supervisor
e
supervisionando.
E, em trânsito pela reflexão para a escritura desse texto, eis-me,
mais uma vez, deixando-me surpreender por aquilo que aqui se
mostrou: quantas coisas ainda faltam para descobrir!!!... Quantas
incompletudes a serem in-concluídas!!!... Quantos sonhos por ainda
148
serem sonhados a sonhar!!!... Quantas outras aberturas ainda para
buscas...
152
Aquele que conhece, pensa ou inventa,
logo se torna um presente mestiço.
nem posto, nem oposto, incessantemente
exposto.
Serres, 1993, p.20
Pela correspondência entre o poeta Rilke (1992) e o jovem
Kappus, é possível compreender, metaforicamente, o papel e o lugar
da supervisão para situações que se dirigem à compreensão e à
expressão de assuntos humanos.
É indispensável para a compreensão da poesia de Rilke a
leitura de sua vasta correspondência.
As “Cartas a um Jovem Poeta” que Rainer Maria Rilke, poeta
nascido em Praga em 1875, entre 1903 e 1908, dirigiu a Franz
Xavier
Kappus,
um
jovem
aprendiz
de
poeta,
constituem
o
evangelho de uma geração inteira de poetas.
Rilke pode acolher cuidadosamente as angústias e dúvidas de
Kappus, de mil modos delicados, ia indicando as mil condições
favoráveis
para
Kappus
aproximar-se
de
seus
sonhos,
não
oferecendo uma receita literária, mas abrindo caminhos essenciais
para o exercício da literatura, mostrando ao jovem poeta que é na
solidão que ele encontrará a poesia, que são nas frestas deixadas
pelas dúvidas que surge espaço para a criação. As respostas do
discípulo só poderão ser encontradas em si no espaço mais solitário
e simultaneamente mais povoado que existir possa, o espírito.
153
Rilke, levando vida de viajante permanente, principalmente na
França, foi (1905-1906) secretário particular do escultor Auguste
Rodin, com quem posteriormente troca correspondência, mostrando
que não ignorava o que é necessitar de alguém, pedindo-lhe
conselhos sobre o segredo de viver e de criar.
A correspondência de Kappus com o sensível supervisor e
poeta Rilke revela a necessidade de interlocução sobre o trabalho
solitário que se faz na clínica ou na escrita poética.
A comunicação com o supervisor pode permitir que o
supervisionando se ouça a si mesmo. Embora, muitas vezes, os
supervisionandos
esperem
caminhos,
dicas,
respostas,
também
esperam a delicadeza de uma escuta, como Rilke, para abrirem
espaço de busca destas respostas em si mesmos. Afinal, aprender é
abrir-se ao outro, situação essa em que se está completamente
exposto. Após tal exposição, nunca mais será possível ser o mesmo.
Falar de minhas experiências é falar da minha interioridade, é
falar do meu fazer, é resgatar minha condição de supervisora com
dúvidas e incertezas do ainda por vir para vir a ser. Desse modo,
esta minha obra, assim ainda inacabada, oculta sons que não pude
ouvir, sons que não soaram claramente, mas cujas ressonâncias pude
entreouvir.
Como aprendiz de poeta, quero descobrir caminhos que
possam conduzir-me aos meus sonhos. Afinal, conforme diz Kehl:
“mesmo
admitindo
que
há
utopias
e
utopias,
o
que
venho
154
questionando é o que se passa numa época em que nenhum
pensamento utópico parece ter lugar” (1991, p. 45).
Aprendi com Pompéia (2004) que um desfecho, ao se encerrar
e fechar um momento de meditação, faz-se abertura para que algo
outro comece mais uma vez. Por isso, escolho encerrar este ensaio,
com a carta que recebi de uma supervisionanda, por ela autorizada
para publicação. Assim, é como uma metáfora de correspondência
entre dois artesãos de ofício...
À Professora Wilma
Deixei minha criatividade morrer...
Me academizaram,
me academizei
e nem mesmo me dei conta...
Tiraram o brilho de meus olhos,
aquele brilho que emana das pessoas
no ofício da criação.
Não consigo mais escrever...
Não consigo mais ler com os mesmos
Órgãos de antigamente
Olhos e mãos se confundem...
Os sentimentos e a intuição,
motores da criação,
155
se fundem em mente...
E a mente mente...
Deixei minha criatividade morrer...
Não há espaço na academia para o inusitado.
A institucionalização é mesmo uma merda!
Pois em seu contexto,
verdadeira poderia ser
qualquer afirmação de algum sujeito
desalmado a respeito deste texto, por exemplo...
Verdadeiro poderia ser
este sujeito sem alma dizer
que em poesia não cabe às poetisas
usar a palavra merda,
porque merda é palavrão...
Poderia, ainda, o mesmo sujeito,
em contexto institucional, se este
a ele conferir tal poder, afirmar,
em tom irônico e cheio de “razão”,
que não sou poetisa...
Que não sei escrever poesia...
Que meus versos não têm prosa,
nem lira nem rima...
Que a gramática não está boa,
nem a grafia,
156
nem a ortografia...
E que até a “fia” de dona Ida
melhor do que eu “escrevinharia”...
Mas, no momento em que empunho
papel e caneta,
sucumbo à emoção e traio a razão...
Torno-me dona do mundo que crio,
onde sou poetisa que às vezes brinca
de ser psicóloga...
Onde merda é palavra de cinco letras
e palavrão é a tal da institucionalização...
E onde esta última não faz rima
com nada, muito menos com o coração,
posso, com o poder que eu me
atribuo, dar voz somente a quem tem alma.
inventar meus amigos
e escolher meus mestres...
Na academia, não sei por que,
deixei minha criatividade morrer...
Mas, na vida prática,
tal qual conto de fadas,
há pessoas mágicas,
que apareceram para nos salvar...
De uma existência medíocre,
157
doces foram as aulas que tive
com a professora Wilma...
que com sua varinha de condão,
quebrou o feitiço que amaldiçoava
minha capacidade de criação...
Que, com suas supervisões,
fez emergir de mim
o que há tempos esteve morto, inanimado...
Ah!... professora Wilma,
como foram bons os dias
que a tive a meu lado...
Da aluna
Fernanda Quevedo
08/11/2004
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