1 O SPORT NO “CLIMA CULTURAL” DA DÉCADA DE 1920: A “ENERGIZAÇÃO DO CARÁTER” Meily Assbú Linhales Doutora – EEFFTO/UFMG RESUMO Numa perspectiva historiográfica, o recorte estabelecido neste artigo aborda o esporte no Brasil, no clima cultural da década de 1920. Dialogando com textos produzidos no período, o propósito foi conhecer os esforços de interpretação de uma dada “civilização esportiva” que provocava debates e desconfianças, mas também exaltações e prescrições educativas. De modo mais específico, comparecem neste diálogo obras de Licínio Cardoso, João do Rio e Mário de Andrade. Uma idéia, anunciada como uma espécie de tarefa civilizadora, foi tomada como indício, como uma representação dos sentidos educacionais anunciados para o esporte: a idéia de “energização do caráter”. ABSTRACT In a historiographical point of view, this article’s outlines deals with sport in Brazil, concerning the cultural atmosphere from the 1920-decade. Dialoguing with texts from that period, the purpose was understand the interpretation efforts about a given “sportive civilization” that caused debate and distrust, however acclamations and educational prescriptions as well. Specifically, masterpieces of Licínio Cardoso, João do Rio and Mário de Andrade entered in this dialogue. An idea, announced as a sort of civilizatory task, was taken as evidence, as representations of educational meanings proclaimed to sport: the idea about “energizer of character”. RESUMEN Desde una perspectiva historiográfica, el recorte establecido en este artículo se alude al deporte en Brasil en el clima cultural de la década de 1920. Dialogando con los textos producidos en el período, el propósito ha sido lo de conocer los esfuerzos de interpretación de una cierta “civilización deportiva” que no sólo producía debates y desconfianzas sino tambien exaltaciones y ordenanzas educativas. Comparecen en este diálogo obras de Licínio Cardoso, João do Rio y Mário de Andrade. Una idea ha sido tomada como indicio y representación de los sentidos educativos anunciados para el deporte: la idea de “energización del carácter”. A narrativa que organiza este trabalho foi estabelecida a partir de meu estudo de doutorado que teve como temática central o processo de escolarização do esporte no Brasil e como tempo/lugar de produção de sentidos, as práticas discursivas e institucionais da Associação Brasileira de Educação nas décadas de 1920 e 1930. Dentro desta configuração maior, o recorte estabelecido pretende mostrar alguns elementos contextuais expressos em um movimento de idas e vindas, fatos e personagens, que aparecem como mediadores de um “clima cultural” de expressivas nuances sportivas. Dialogando com textos produzidos no período, o propósito foi conhecer os esforços de interpretação de uma dada “civilização esportiva” que provocava debates e desconfianças, mas também exaltações e prescrições educativas. De modo mais específico, comparecem neste diálogo obras de Licínio Cardoso, 2 João do Rio e Mário de Andrade. 1 A idéia de “energização do caráter”, anunciada como uma espécie de tarefa civilizadora, foi tomada como indício, uma vez que parecia representar sentidos educacionais anunciados tanto para a escola como para o esporte. Tal indício surge com o professor Licínio Atanásio Cardoso, catedrático professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que escreveu, em 1926, uma obra intitulada O ensino que nos convém.2 Segundo ele, a principal motivação para a escrita desse trabalho, em um momento em que já pretendia se retirar do magistério oficial, foi sua indignação com os índices de analfabetismo e “iletrismo” do País e com a ausência de um projeto capaz de tornar a educação uma responsabilidade pública. Assim, o eminente professor - impregnado de sua ciência positivista e republicana e de sua admiração por Conte - produziu um longo trabalho, convencido de que este era uma expressão de seu “dever cívico”, uma forma de “servir à pátria, senão em dias presentes, ao menos em dias do futuro”. 3 Discutiu a educação, propôs modelos para os vários níveis do sistema de ensino, estabeleceu responsabilidades para o Estado. Apostava na educação como solução capaz de fazer “vibrar a alma dos brasileiros”, ao mesmo tempo em que reconhecia que a “dificuldade está em poder determinar essa vibração que encontra no patriotismo diluído o seu maior amortecedor”. 4 Em toda a obra, várias são as metáforas maquínicas, talvez por influência de sua “mecânica racional”. Formas de compreender e interpretar a sociedade como engrenagem; os sujeitos, como peças articuladas pelo binômio liberdade/responsabilidade; e a educação, como técnica eficaz. 5 Embora não trate destacadamente de educação física ou de esporte, seu projeto para uma educação cívica – capaz de preparação para o trabalho, a indústria, a ciência e a democracia – indicia preceitos “modernizantes” de uma educação do corpo. Preceitos de uma disciplina corporal orientada para e pela produção e pela eficiência, possibilitando, assim, maior rendimento. Corpo tratado como matéria modelável e adaptável. 6 Corroborando esses argumentos, uma expressão utilizada por Licínio Cardoso chama atenção – o que ele anuncia como “energização do caráter”: Problemas há, da maior importância, cuja solução é indispensável, toda gente o sabe, para a realização de nosso progresso efetivo. Entre outros, o da distribuição da justiça, o da organização de um poder legislativo capaz de legislar eficientemente, o da boa arrecadação das rendas, o da ordem – representada na conjunção entre o prestígio da autoridade que se imponha, pelo seu valor, sem violência, e o respeito ao poder constituído, que se manifeste espontaneamente sem humilhação – e, sobretudo, o da energização do caráter brasileiro, fonte essencial donde emanarão os impulsos necessários à solução de tudo quanto concerne ao nosso engrandecimento social. 7 1 Os autores destacados fazem parte de um conjunto maior que, na tese, também incluiu Fernando da Azevedo, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Carlos Sussekind de Mendonça e Jorge de Morais. Dados os limites textuais previstos para este artigo optei por eleger apenas alguns, deixando para outra oportunidade a apresentação dos demais. 2 Cf. CARDOSO, 1926. 3 CARDOSO, 1926, p. 12-13. 4 CARDOSO, 1926, p. 252. 5 CARDOSO, 1926, especialmente o capítulo 1. 6 Sobre esta relação comumente estabelecida entre “modernização” e modelagem corporal de inspiração maquínica, veja-se, dentre outros: VAZ, 1999, e, também, CARVALHO, 1997. 7 CARDOSO, 1926, p. 17, grifo do autor. 3 Essa idéia de energizar o caráter para o progresso efetivo, a eficiência e a ordem é o que destaco como referência para a leitura do esporte no clima cultural da década de 1920. Energizar pode ser interpretado como dar firmeza, veemência, eficácia, potência ou força; tornar um sistema capaz de realizar trabalho. O sistema em questão é o caráter de cada brasileiro, sua alma, seu temperamento, sua índole, que tem no corpo sua elementariedade física, como convida a pensar Alexandre Vaz em seu diálogo com Walter Benjamin.8 Corpo/Caráter, passível de ser aperfeiçoado pelas contribuições de uma “mecânica racional”. Também Nicolau Sevcenko, em estudos sobre a construção cultural de cidades e de identidades, destaca que as novas tecnologias e a idéia de “recondicionamento dos corpos” adquirem especial relevo nos anos 20, quando os repertórios herdados começam a ser reordenados “sob a presença dominante da máquina no cenário da cidade tentacular”. 9 O esporte, ou melhor, o sport estava, de certa forma, inventariado nessa herança. Desde a segunda metade do século XIX, as práticas esportivas se apresentavam como possibilidades culturais concretas na constituição da vida social de algumas cidades brasileiras. 10 Freqüentemente anunciados no plano dos divertimentos, dos entretenimentos e, em alguns casos, relacionados também às temáticas da higiene e da educação, os sports ajudaram a compor um projeto de modernidade. Projeto este que foi desenhando, gradativamente, uma “ética do ativismo” e da “energia superlativa” expressa na idéia de que um “engajamento corporal” e uma “percepção ativa” eram condições necessárias diante dos novos – e cada vez mais sofisticados – meios técnicos. 11 Com essas novidades técnicas, a expansão das atividades produtivas, a concentração populacional das áreas urbanas, a produção de uma sociedade de massas e a “aceleração” do tempo. No final do século XIX, Machado de Assis denominou de “civilização esportiva” essa novidade – ou essa “nova idade”. 12 Analisando o Rio de Janeiro como uma “capital irradiante”, Nicolau Sevcenko argumenta que estes “novos recursos técnicos, por suas características mesmo, desorientam, intimidam, perturbam, confundem, distorcem, alucinam” e, assim sendo, alteram a cena urbana e as relações entre as pessoas, pois “as escalas, potencia is e velocidades envolvidos nos novos equipamentos e instalações excedem em absoluto as proporções e as limitadas possibilidades de percepção, força e deslocamento do corpo humano”. 13 O “caráter” já estava sendo, de alguma forma, “energizado”. Em seus estudos sobre os primórdios do esporte no Rio de Janeiro, Victor Melo representa a capital do país como uma “cidadesportiva” que vai sendo assim modelada desde meados do século XIX. Pelas apostas no turfe e no remo, pelos interesses das elites, pela proliferação de clubs, pela mediação da imprensa e, também, pelo gradativo processo de adesão das camadas populares, as novas massas. 14 Segundo esse autor, as bases e os sentidos 8 Cf. VAZ, 2001. SEVCENKO, 1992, p. 18. 10 Alguns estudos recentes corroboram essa afirmação. No diálogo com tais produções fui tecendo uma trama e um olhar sobre a relação esporte-cultura no Brasil, no primeiro quartel do século XX. Destaco especialmente Sevcenko, 1992 e 1998; Pereira, 2000; Melo, 2001; Moreno, 2001; Herschemann; Lerner, 1993; Herschmann; Pereira, 1994; dentre outros. 11 As expressões entre aspas são utilizadas por Sevcenko (1992), especialmente no Capítulo 1. 12 SEVCENKO, 1998, p 568. O autor toma como fonte uma crônica escrita por Machado de Assis para o periódico A SEMANA, 29/3/1896. 13 SEVCENKO, 1998, p. 516. 14 Cf. MELO, 2001. 9 4 básicos do que Sevcenko chamou de “febre esportiva” vinham crescendo desde meados do século XIX, encontrando, nas décadas de 1920 e 1930, condições mais concretas para se desenvolver. 15 Essa febre ou civilização esportiva expressou-se com mais vigor após a primeira grande guerra, trazendo com ela uma euforia pelo moderno, pelos novos modos de ver e de ser visto, de agir e de se vestir, de lidar com as temporalidades. Maneiras de estar e de participar em uma sociedade urbana e de massas, de construir um Brasil “moderno”. Mas esse boom esportivo trouxe também receios e desconfianças tornando-se, por isso, mais um tema de debates e polêmicas na constituição de um clima cultural estabelecido por múltiplos atores, grupos e redes de sociabilidade. Junto com o esporte, outros códigos correlatos, como saúde, higiene, educação, eugenia, estética, disciplina, limpeza, beleza, eficiência, etc., passam a ser abordados e problematizados. Como um exercício de demarcação de identidades compartilhadas e politicamente posicionadas, o debate sobre o esporte acontecia na sociedade carioca, onde adesões e críticas, prós e contras eram expressos por jornalistas, médicos, educadores, militares e esportistas por meio de jornais, revistas, livros, estudos, conferências e teses. Suas idéias circularam em congressos, associações, clubes, agremiações, sociedades... Múltiplos lugares de produção de idéias, de práticas, de interesses e de discursos. A adesão ao esporte precisava ser interpretada no que ousava anunciar como uma nova referência de civilidade, mas, principalmente, naquilo que provocava tamanha adesão, atração e euforia nos mais diversos segmentos e grupos sociais. Discutir o esporte era uma forma de interpretar a vida moderna, como se essa prática expressasse, metaforicamente, os novos tempos, como um de seus dispositivos disciplinares. De acordo com Herschmann e Pereira, nas décadas de 1920 e 1930, afirmar-se “moderno” significava “tentar assumir um lugar prestigiado no debate científico e artístico – não importando tanto o fato de se atingir ou não o reconhecimento pleno – expressando também uma sintonia de certa forma obrigatória com determinado conjunto de questões”. 16 Mesmo que essas questões não estivessem suficientemente claras para os envolvidos, parecia importante palpitar – dar palpite, fazer pulsar! Por que as pessoas estão aderindo tão freneticamente a essa prática de estrangeirismo anglo-americano? Quais os prós e os contras? Sua apropriação é inevitável? Quais as mediações possíveis? A adesão ao esporte e ao debate sobre o esporte configurava-se como prática cultural, constituindo, assim, possibilidades de produção de novos sentidos e significados. Diante de tanta efervescência, não era casual a existência de polêmicas que ora aproximavam, ora distanciavam vários autores-personagens. Suas práticas pareciam expressar a intensidade e a dificuldade das questões, quando se lançavam na produção de parâmetros de inteligibilidade. Intérpretes da febre esportiva realizaram exercícios de apropriação que comportaram exercícios de enunciação e recriação de sentidos. TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO DA “CIVILIZAÇÃO ESPORTIVA” Em 1910, o cronista João do Rio publicou, pela primeira vez, no jornal Gazeta de Notícias, a novela “A profissão de Jacques Pedreira”, 17 Neste personagem o autor representou 15 MELO, 2001, p. 214. HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 15. 17 RIO, 1992. Essa reedição tomou como referência a primeira edição integral da novela, de 1913. As informações relativas encontram-se disponíveis em www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto. 16 5 um cidadão típico da elite de seu tempo. Oportunista, malandro e atento às novas modas e aos prazeres, ele se engajava nas maneiras de ser e de estar na sociedade em que vivia. “A fatalidade naquele momento sobrecarregava-o de dois sports: o automóvel e a mulher” e “... os automóveis haviam transmitido a sua inquieta alma ao proprietário”. 18 Assim, em seu exercício de pertencimento, Jacques Pedreira toma o esporte como regra do tempo e das relações sociais. De forma muito astuciosa, argumenta que [...] tudo na vida é sport. O maior sportman de todos os tempos foi possivelmente Deus, Nosso Senhor. Esse cavalheiro, predestinado de fato, venceu todas as performances e todos os handcaps, e, segundo observações inteligentes foi o inventor do puzzle na organização do caos. Não é de admirar que a humanidade, à proporção que conhece mais intimamente Deus, mais esportiva se revele. A corrente contemporânea é particularmente esportiva. Os jornais falam de matches, de velocidades. Os termos ingleses surgem a cada corrida, ou a cada pontapé; as pessoas andam nas ruas como quem vai para um desafio ou pelo menos para uma aposta. 19 Suas palavras em inglês, suas atitudes e tentativas de incorporação dos novos padrões de conduta expressam um movimento da negociação de sentidos e significados culturais, onde os “desafios” e “apostas” demandavam “observações inteligentes” e capazes de construir novas configurações, novos consensos táticos. Ferramentas para ver, viver e tentar dialogar com a turbulência, a velocidade e a produtividade orientada pela tecnologia e pela competitividade. Para além da elite da cidade ou tomando-a por referência, outros segmentos sociais também queriam falar esse novo idioma. Mas ele era tão inglês, tão gentlemam... Seria esse, também, um efeito da modernidade e de sua diversificação? Mário de Andrade não tratou especificamente do esporte, mas produziu possibilidades interpretativas para essa “modernidade”, essa “civilização esportiva”. Em especial, recorro a “Macunaíma”, personagem construído como “o herói sem nenhum caráter” para a rapsódia escrita em 1926 e publicada pela primeira vez em 1928. 20 Nessa construção, Mário de Andrade provoca o encontro entre a rusticidade brasileira - com suas tradições e costumes - e a modernidade de estrangeirismos, com velocidades, máquinas e signos “esportivos”. Nesses termos parecem pertinentes os argumentos de Serge Gruzinski quando afirma que as experiências humanas podem ser compreendidas como mestiçagens, na medida em que as trocas que se estabelecem entre diferentes sujeitos ou grupos não são necessariamente “culturas se encontrando” mas sim "fragmentos e estilhaços que, em contatos uns com os outros, não ficam intactos por muito tempo". 21 Citando Mário de Andrade – "sou um Tupi tangendo um alaúde" –, Gruzinski nos desafia a considerar os elementos contraditórios, e por vezes antagônicos, que podem compor duas faces de uma mesma moeda, sem que possamos dissociá- las. Esses argumentos parecem pertinentes uma vez que contribuem para a interpretação do esporte no clima cultural da década de 1920. Mais do que um processo evolutivo e linear, a trama de sentidos e significados esportivos tecida no Brasil é expressão de “fragmentos e estilhaços”, 18 RIO, 1992, p. 77. RIO, 1992, p. 77. 20 Cf. ANDRADE, 2004. 21 GRUZINSKI, 2001, p. 52. 19 6 aproximações impregnadas de apropriações capazes de comportar e evidenciar os “combates” e as contradições que lhes engendraram os sentidos culturais. É nessa perspectiva que merece destaque na rapsódia composta por Mário de Andrade, a curiosa idéia de que o futebol seria uma dentre outras pragas brasileiras inventadas por Macunaíma e seus irmãos: “O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas”. 22 Portanto, o futebol é representado como uma praga moderna inventada pelo herói sem nenhum caráter. Pensar o esporte – no caso o futebol, por ser o mais popular no momento – como uma invenção de Macunaíma constitui uma possibilidade que permite interrogar a “naturalidade disciplinar” com que o esporte adentra a sociedade e também a escola, bem como as justificativas sumárias de que ele é uma representação de um processo civilizatório e de dominação cultural. A circularidade de idéias e discursos sobre o tema, operada com ingredientes culturais e científicos, de percepção da realidade e de referências estrangeiras parecem mostrar aqueles “combates jamais ganhos e sempre recomeçados”. 23 Como apropriações, expressam o caráter polemológico que as engendram, evidenciando a existência de um debate político nos processos de produção cultural. Por um lado, a adesão dos brasileiros, dos “heróis sem nenhum caráter”, ao esporte e a sua capacidade de reinventar o futebol aparecem como elemento de realidade a provocar permanentes reconfigurações nos discursos que os identificam em sua rusticidade, como dotados de um psiquismo mórbido ou como incapazes de construir (sem contribuição estrangeira) um projeto cultural. Por outro, esses mesmos discursos reafirmam a idéia do moderno, agregando- lhe a capacidade para o self-government, a aposta na regeneração física e moral, as necessárias contribuições científicas de médicos e educadores e a idéia de que, como máquinas, os corpos poderiam render mais por meio dos esportes e da “energização do caráter” que ele proporcionaria. E, sobre máquinas, Macunaíma também oferece sua reflexão: Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios- luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés...eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói escutando assuntado maquinando uma cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Maquina, mais cantadeira que a Mãe-d’água. Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca, mas as três cunhãs deram muita risada e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém brinca porque ela mata.[...] Macunaíma passou então uma semana sem comer sem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem queres ser fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço de um arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu: 22 23 ANDRADE, 2004, p. 50. GRUZINSKI, 2001, p. 320. 7 – Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate. [...] De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha a luz: os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe. 24 A obra de Mário de Andrade ordena a expressão de uma possibilidade: o “privilégio de pertencer a vários mundos numa só vida: sou um Tupi tangendo um alaúde...”. 25 Assim também parece ser a trama que institui no campo educacional brasileiro (“tupi”) a possibilidade de escolarizar o esporte (“um alaúde” ou mais “uma Máquina”). Este “tangenciar”, aqui entendido como um processo de aproximações sucessivas, parece evidenciar esforços e tentativas operadas para a “energização do caráter” de um povo muitas vezes considerado “sem nenhum caráter”. Operação complexa, que pode até mesmo ser pensada como uma luta que não deu em “empate”, que pode ter saído pela tangente, escapado do previsto! Mário de Andrade constrói Macunaíma como um personagem outsider, como uma espécie de anti- herói fora da lei que, ao mesmo tempo, é capaz de dialogar com o clima cultural moderno, organizando racionalidades e tecnologias singulares e até “inventando” o futebol. Constrói um brasileiro que, com sua astúcia, fez “pegar” por aqui a moda esportiva. Macunaíma e Jacques Pedreira parecem duas faces de uma mesma moeda, cunhada nas tensões e ambigüidades da “civilização esportiva”. Diferentemente de Antinoüs, de Fernando de Azevedo, por exemplo, não são estátuas que já vêm com o caráter esculpido; são homens ordinários, produtores de seu próprio tempo e – de acordo com o ponto de vista – sem nenhum caráter ou com um caráter indolente, a ser energizado. Sports, desportos, esportes... Diante dessas práticas discursivas, olhares e apropriações produzidas no clima cultural da década de 1920, pareceu- me possível afirmar que o esporte já constituía o cotidiano das cidades e era por ele constituído, trazendo para o debate aqueles elementos que Hebert Marcuse considerou como as [...] possibilidades acorrentadas da sociedade industrial adiantada: desenvolvimento das forças produtivas em escala ampliada, extensão da conquista da natureza, crescente satisfação das necessidades de números cada vez maior de pessoas, criação de faculdades e necessidades nova s. 26 Possibilidades interpretativas que guardam estreito vínculo com a idéia da energização do caráter. O esporte pensado como tecnologia educacional e como produção eficiente tem nas metáforas maquínicas um de seus principais vetores de expressão. 27 Associada a essa expressão do moderno, ressalta-se também a “extensão da conquista da natureza”, especialmente no que diz respeito ao corpo, natureza humana a ser controlada por códigos 24 ANDRADE, 2004, p. 42-43. GRUZINSKI, 2001, p. 320. 26 MARCUSE, 1973, p. 233. 27 Essa idéia tem sido anunciada e problematizada por Vaz (1999a, 1999b). 25 8 civilizadores. Cultivar os corpos por meio do esporte não significava pensá-lo apenas como um fim em si mesmo. Ao contrário disso, as prescrições para a prática esportiva aparecem impregnadas de um ideário estético e principalmente de um ideário moral, que vincula seu potencial à saúde e à regeneração dos fracos e débeis, contra os vícios e a boemia. A popularização do esporte e sua extensão às massas puseram em relevo as preocupações com a mocidade e a infância, dando a ver a “crescente satisfação das necessidades de números cada vez maior de pessoas”. 28 Note-se que esses novos praticantes do esporte – as camadas populares e os jovens da população – foram freqüentemente representados num sentido essencialmente negativo, vinculado à idéia de massa desordenada, desagregada e desprovida de disciplina. Sobre a relação entre modernidade industrial e “criação de faculdades e necessidades novas” note-se que ser esportivo passa a ser uma representação do ser moderno, indicando a urgência em dotar a população amorfa de um grupo de indivíduos saudáveis, disciplinados, solidários, corajosos, alegres e plenamente aptos. Faculdades individuais sempre relacionadas à necessidade de fortalecimento da nação, e nesse caso o esporte assume, também, o status de um instrumento de destaque na produção de uma educação cívica. Mas toda essa engenharia, essa “mecânica racional”, de um modelo cultural estrangeiro impregnado de idealizações, foi também marcada pelas experiências de apropriação realizadas por sujeitos e grupos que dele participaram. Assim sendo, o esporte, já como um “costume visível” e cotidiano apresentava-se também como “campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes”. 29 Essa argumentação de E. P. Thompson sobre os diálogos culturais e costumeiros guarda, em alguma medida, afinidades com as proposições de Serge Gruzinski também acionados para iluminar um caminho interpretativo da relação entre esporte, história e cultura. Parece possível argumentar que o esporte aqui em questão é prática polissêmica e polimorfa, sempre redesenhada como sport, desporto, cultura athlética, educação física, etc. Modelos impostos em nome da “modernidade”, mas também experiência reinventada. Disciplina e, ao mesmo tempo, subversão à regra. Ao compreender a “civilização esportiva” pelo prisma desses autores-personagens da década de 1920, parece pertinente anunciar que o esporte adentra as prescrições escolares a partir de um duplo movimento. Por um lado, como prática social já disseminada, precisaria ser orientado e pedagogizado (disciplinado) no sentido de oferecer às novas gerações possibilidades educativas. Por outro lado, considerado como prática moderna, contribuiria para impregnar a experiência escolar de sentidos e significados modernizadores, capazes de contribuir para a superação do que era considerado rús tico, atrasado, não moderno. Pela via da escolarização, o esporte parece ser, ao mesmo tempo, prática de contenção e prática de inovação, ora pendendo mais para um desses pontos, aparentemente opostos, mas, talvez, essencialmente complementares. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Garnie, 2004. CARDOSO, Licínio. O ensino que nos convém. 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