AMIGO É COISA PARA SE MOSTRAR EM LIVRO RODRIGO DE SOUZA LEÃO © 2002 Literatura é risco. Mesmo quando se quer guardar distância do limite (o que nos torna menos inventivos) entre o novo e o antigo, o pop e a alta cultura, eis onde morrem os riscos de um bom romance. É muito difícil fazer o trivial bem feito, com élan e qualidade. Corriqueiro é cair no lugar comum, seguindo ladeira abaixo o caminho mais fácil. Um exemplo atípico, onde – mesmo explorando um assunto já batido - a escritora consegue atingir todos os objetivos de seu projeto literário é “Querido Amigo” (Editora Melhoramentos), de Flávia Savary. Neste livro a autora, sob a égide de Júlia, escreve cartas a um amigo partilhando seu dia-a-dia e reflexões sobre a vida. O que poderia ser um prosaico relicário do enfadonho, nada mais é do que uma pérola para a nossa juventude: um livro que transcende a definição de infanto-juvenil. Dona de um extenso vocabulário, a autora insere palavras próprias de adulto, não empobrecendo seu texto a fim de criar uma ilusória facilidade, e faculta aos jovens acesso a uma prosa elaborada. Sobretudo o adolescente tão disposto a conhecer um mundo cheio de novidades e dicotomias. Flávia Savary, em tão pouco tempo de escritura, já faz ecoar a sua voz poética e pessoal. Numa prosa onde há o forte impacto da maturidade discursiva, ela obedecendo sempre à linha literária que apregoa o minimalismo sem inapetência, ou seja, escrevendo um texto enxuto guiado pela regra da simplicidade - consegue chegar a lugares ao mesmo tempo profundos e singelos do ser humano. Poderia se dizer que Flávia é uma espécie de fada que nos conduz pela simplicidade de suas frases curtas e diretas. Cada toque com sua varinha de condão é um novo olhar sobre temas corriqueiros, nos levando a uma iluminação mais alta, mostrando a profundidade que as coisas simples têm. Há em todo o opúsculo uma vocação para a afetividade mais profunda. Apesar de amigos e, na troca de cartas, a escritora ter descortinado apenas as da personagem feminina, há uma bela composição do personagem masculino: um artista plástico que Júlia conheceu em uma vernissage. Talvez por sua grande importância é tratado de Querido Amigo — um amigo presente em todas as horas. Num mundo onde as relações são voláteis e seguem ao sabor do fútil, do irrisório e as pessoas caminham no território do desamor e do desamparo, o livro de Flávia Savary é um libelo à amizade e ao conhecimento do próximo: na medida exata em que conhecer o outro é revelar a si mesmo, desvelando o que há de comum entre os seres humanos. Sem uma linha de sexo apelativo, nem apelar para duplo sentido ou ironia, a autora penetra no âmago da questão: é possível um relacionamento afetivo de alto nível hoje em dia? Quem nos responde é Júlia e seu intenso relato de amizade, onde a pretensa falta de compromisso é o eterno compromisso do respeitar ao outro como a si mesmo. Ela trata seu amigo como deve ser tratado e o guarda, como nos diz a música de Milton, “dentro do coração, no lado esquerdo do peito”. Cartas para o melhor amigo Apesar das cartas de Júlia não serem marcadas por um amor tórrido – o que por si só já é uma novidade em tempos de sexualidade tão exacerbada –, é patente que existe certa atração entre os dois personagens principais. Agora, se é uma atração sublimada ou não, isto é coisa que somente a autora poderá revelar, colocado, quem sabe, em outro volume. O grande valor deste livro de Flávia Savary é o de despertar o adolescente para as novidades da vida adulta. Tudo é dito com zelo, com a responsabilidade de quem vive a vida com muita qualidade. Assim como Júlia, Flávia mora em Teresópolis, perto do Dedo de Deus, onde a qualidade de vida é tão pura quanto o ar. Lá onde cada palavra é meticulosamente acoplada ao texto para que guie o leitor ao melhor dos prazeres: o da leitura. Leitura esta que bem pode ser em voz alta – por exemplo, na sala de aula – lendo carta por carta. Diálogo entre signos Há no “Querido Amigo” um diálogo entre as ilustrações e o que é dito no livro. Flávia é mestra neste tipo de obra. Dona de um traço preciso e precioso, ela passeia entre as diversas técnicas de ilustração, que vão desde o bricolage até o bico de pena. Tudo muito bem pensado e articulado dentro do projeto. Exemplo: acender a luz da inteligência dentro de um blecaute. Assim é quando ao escrever sobre um blecaute, a autora opta por Júlia fazê-lo em páginas da cor negra, como uma noite silenciosa e sem luz. Portanto, há o isomorfismo. O texto se mistura à ilustração e vice-versa, num jogo lúdico que despertará o jovem para o mundo adulto e colocará o adulto nos trilhos de uma vida renovada. Por tudo isto é necessário entrar em contato com a escritora e artista plástica Flávia Savary, através do livro “Querido Amigo”. Aceite o convite e torne-se mais um grande amigo da leitura. Leia: amigo livro é coisa pra se guardar dentro do peito e do coração. Assim nos fala Flávia Savary. Ah, esta resenha não tem PS — só vai entender quem ler o livro. RODRIGO DE SOUZA LEÃO, jornalista, músico e poeta. http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/