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A HORA E A VEZ DO BOI. Andria da Silva Oliveira. Mestranda em Estudos de
Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso – Cuiabá-MT
CAPES/ FAPEMAT/ UFMT
Resumo: A pesquisa em sua gênese e percurso visou analisar o conto “Boi da
Cara Preta”, de Carlos Carvalho (1975), identificando os recursos artísticos
utilizados pelo autor, e a que realidade eles nos levam. Procuramos também
compreender como os mecanismos do capital influenciaram na conduta e vida
no campo e, amparados por teóricos que estudam o fenômeno da
modernidade, fazer uma possível leitura da obra como alegoria da sociedade
moderna.
Palavras chaves: Literatura engajada – homem rural – Modernidade –
Alienação.
“Moderniza-se para sobreviver, mas destroem-se para ser moderno” (Latouche:
1994).Essas palavras de Latouche, retirada da obra Ocidentalização do Mundo,
leva-nos a refletir sobre a profunda crise de identidade que se instaura em
nossos dias. Precisamos, para sobreviver acompanhar as mudanças e
transformações que a modernidade impõe a sociedade. E segundo Chesneaux
(1995), essas imposições são organizadas em sistemas rígidos, os quais
desprezam o funcionamento flexível e natural dos seres; degradam a natureza
e nos impedem de agir e decidir segundo nossos desejos e necessidades
como humanos.
“Instintivamente, sou talvez por demais sensível àquilo
que a modernidade-mundo nos despegou para sempre,
nos arrancou em definitivo. O habito de caminhar à
noite sob as estrelas, o cheiro dos tomates lentamente
amadurecidos ao sol, a doçura intacta das paisagens
erguidas em milhares de séculos e, mais ainda, a
capacidade de ser humano de se orientar por si mesmo
tanto na natureza como na sociedade; a capacidade de
refletir e criar por si mesmo, de desabrochar sem
depender de aparelhos eletrodomésticos e eletrosculturais cada vez mais sofisticados. Eu bem sei,
porém, que cada época percebe muito mais claramente
o que perde do que ganha em função das mutações
históricas pelas quais passa” (Chesneaux, 1995, p. 13)
O homem moderno não mais se orienta pela tradição e nem tão
pouco pelos seus projetos pessoais; mas sim por um “outro”. Mills (1968), dizia
que o outro determina quem devo ser o que devo fazer e como devo viver.
Somos e vivemos como o mundo capitalista nos faz acreditar ser o
melhor. Deixamos de ser sujeitos ativos da sociedade política e civil para
cedermos lugar ao individuo – objeto, ao homem reflexo, integrado à rotina fria
da máquina social e preso aos seus valores.
Baudelaire, citado por Chesneaux (1995), definia o homem moderno
por sua procura exigente e solitária, busca algo que o distancia cada vez mais
2
de si mesmo: “Vai, corre, procura... Tal solitário de imaginação ativa, sempre
viajando pelo grande deserto dos homens, tem um objetivo mais elevado que
de um ocioso... ele procura alguma coisa que poderemos chamar de
modernidade” (p.91).
Percebemos que o modo de vida colocado em ação pela
modernidade busca o rompimento com a condição de vida tradicional, e as
mudanças que ela propõe são mais profundas que a de períodos anteriores,
elas alteram nossas características pessoais e a nossa própria essência. 1.
Ao dizermos que a modernidade altera nossa própria essência,
estamos dizendo que mediante as exigências para acompanhar o tempo e o
espaço do moderno, deixamos de agir e viver como ser racional, dotado de
escolha e capacidade de pensar para incorporar um ser reificado, submisso a
uma ordem maior.
Esse processo quebra a regra do que é natural, “eu sou isto por não
ser aquilo”, e passa a ser interpretado como; somos homens vivendo como
animais e máquinas, Chesneaux diz mais:
“... A humanidade moderna está invertendo a relação
ancestral que desde as origens do homo habilis se
estabeleceu entre o humano como sujeito ativo e a
máquina - objeto, quer seja a pedra talhada, quer o avião
a reator” (p.128)
Neste cenário de mutações, as ciências sociais têm tentado
apreender o homem e seu cotidiano dentro de cada espaço de tempo,
apreendê-lo tal qual sua realidade (no lugar e na época em que vive), para
estudar suas relações.
As artes – embora a Literatura já tenha sido conceituada ao longo de
nossa historia político-intelectual, como instância portadora ou refletora do
mundo social, ou seja, obra literária como testemunho da sociedade, como
documento destinado ao registro de fatos – já não tem essa preocupação em
exprimir a sociedade ipsis litteris -, mas modificando-a e até mesmo a nega.
Nas palavras de Mônica Velloso2, ao contrario de registro fiel, de fotografia, a
literatura tende a insurgir-se contra este real, apresentando dele uma imagem
em que a própria sociedade muitas vezes se recusa a reconhecer-se.
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Compreendemos como essência a definição de Aristóteles citada e interpretada por Nicolas Abbgnano
(1999). Para Aristóteles “o enunciado refere-se sempre a alguma coisa, como também a afirmação, e é
sempre verdadeiro ou falso: mas o intelecto não é assim, sendo verdadeiro se enuncia a essência, segunda
a essência substancial, e não verdadeiro se enuncia relativamente a alguma coisa” ( De Na. III, 6, 430 b
26). Com isso, ele não coloca no mesmo plano todas as respostas que podem ser dadas à pergunta “ o
que?”. Se um homem à pergunta “o que és?”, responde “ um musico”, a sua resposta não exprime
verdadeiramente o que ele é por si mesmo, sempre e necessariamente, isto é, na sua substancia. De fato
ele podia muitíssimo bem não ser musico; e havendo começado a se-lo, pode deixar de se-lo. Mas se
responde que é “animal racional” então ele exprime o que não pode não ser ou o que é necessariamente
como homem... é a substancia mesma, considerada a parte do seu aspecto material” (p. 340)
2
Mônica velloso é pesquisadora do Cpdoc e co-autora de Estado Novo: ideologia e poder (Rio de
Janeiro: zahar, 1982). A citação usada neste trabalho foi retirada de seu artigo “A literatura como espelho
da nação” In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n 2, 1988, p.239
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Norteada por esse ponto de vista, analisaremos o conto Boi da Cara
Preta, de Carlos Carvalho (1975) 3. Segundo Aguiar (2000, p 352) o conto tem
como foco o avanço das relações declaradamente capitalistas no campo (no
caso, num matadouro), em que os trabalhadores são reificados (tratados como
coisa) e todos se tornam insensíveis e conformados diante da dominação
imposta.
O enredo se desenvolve em torno da ação de um antigo funcionário
do frigorífico, descrito na obra pelo nome de sua profissão, Matador. Ele era
considerado o melhor entre os funcionários, não errava um golpe. De tanto
matar, sua mão adquiriu uma nódoa que água e sabão não limpavam.
Certa manha quando a esposa foi acordá-lo, o Matador viu que algo
estranho estava acontecendo com seu corpo: este estava adquirindo a forma
dos animais que matara durante aqueles trinta anos. Escondeu o quanto pode
a transformação, que acontecia lentamente. Para substituir sua vaga no
frigorífico, foi enviado seu próprio filho. Um dia, porém, de todo transformado
em um grande Boi, foi visto pela mulher, da qual havia se escondido por muito
tempo. Ao ver o marido transformado em animal, desesperada, vai atrás de
orientação; logo depois traz uma corda, amarra o Boi (marido), e vende-o ao
Matadouro, onde seu próprio filho, já experiente no oficio e com a mesma
reputação do pai, esperava-o com uma faca afiada no final do corredor.
A mulher, ao receber o dinheiro da venda, compra uma televisão,
uma geladeira e mais um pedaço de corda para quando chegar a vez do filho.
Assim termina o conto, com um tom de denúncia social e com uma
ambientação alegórica.
1.1O BERRO DO HOMEM
Entendemos o texto como uma alegoria da sociedade capitalista;
sociedade que pelas regras e limites transforma muitos homens em força de
trabalho e em coisa.
Sabemos que a decifração de uma alegoria depende sempre de uma
leitura intertextual, que permite identificar, num sentido abstrato um sentido
mais profundo e de caráter moralista.
Segundo Cirlot (1984), alegorias são “representações gráficas ou
artísticas, imagens poéticas e literárias, simbolização geralmente consciente de
idéias feitas baseadas na personificação...” (p.69), e temos também Abbgnano
(1999), Dicionário de Filosofia dizendo que: “sentido alegórico é o que se
esconde sob o manto destas fabulas, é uma verdade oculta sob bela mentira”
(p. 22).
Podemos entender alegoria, segundo essas citações como um
recurso literário que consiste em dizer uma coisa querendo dizer outra; ou seja,
sua construção é racional, feita no mesmo nível de consciência; de forma que
aquilo que é conhecido possa ser visto de outra maneira.
Essa liberdade de leitura possibilita o entendimento da realidade
ficcional como um arcabouço narrativo que compõe uma situação imaginada e
que remete ao mesmo tempo para um estado de mundo fora da imaginação,
um mundo onde os fatos são reais.
3
A obra em estudo foi retirada da Antologia de Flavio Aguiar Com palmos medida (2000, p.352 - 354).
As inicias BCP, significaram neste artigo a abreviação do titulo “Boi da Cara preta”.
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Em BCP, por exemplo, a narrativa nos remete aos acontecimentos
dos anos 60-70 no campo, onde as condições de sobrevivência dos
trabalhadores rurais sofriam profundas mudanças. O “progresso”, do ponto de
vista liberal e do capital, visava um aumento imediato da lucratividade das
empresas, então invadiam o campo transformando-o em um ambiente urbano.
Assim, os camponeses eram transformados em operários e distanciados do
contato simples com seu povo e com a terra.
Segundo o profº Hidelberto de Sousa Ribeiro (2000), essa ação do
Estado era mais técnica que social, e resultou no que Polanyi (1980), citado por
Ribeiro (2000), chamou de “catástrofes culturais”, momento em que raças,
culturas e o povo comum, gente pobre, sofrem as conseqüências da onda
modernizante.
“Tivemos um desenvolvimento sob o comando de um
estado autoritário que visava atingir alguns objetivos, e
um deles era alcançar a racionalização da produção,
mesmo que, para isso, em muitas ocasiões, fosse
utilizada a mão de obra escrava” (Ribeiro, 2000, p. 63)
Mediante esses fatores ocorre o desenraizamento do homem rural. Esse
desorientado e sem escolha, insere-se em um mundo desconhecido onde o
valor afetivo não é considerado.
A esse respeito Ecléa Bosi (2002), ao analisar os impactos provocados
pela migração compulsória na vida do camponês, afirma:
“O migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas, as
matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os visinhos,
as festas, a sua maneira de vestir, o entoado nativo de
falar, de viver de louvar a seu Deus. Suas múltiplas
raízes se partem” (Bosi, 2002, p. 17).
Podemos entender essa perda não só no espaço físico como também
uma perda de autenticidade, o desenraizamento ofusca o quanto pode a
originalidade do migrante;
“Quando duas culturas se defrontam, não como predador
e presa, mas como diferentes formas de existir, uma é
para a outra como uma revelação. Mas essa experiência
raramente acontece fora dos pólos submissão – domínio.
A cultura dominada perde os meios materiais de
expressar sua originalidade”(op cit)
E segundo Hall (2005), quando o homem não pode expressar aquilo
que ele acredita ser, ele se insere em um processo de descentramento, numa
perda de unidade, e isso leva o sujeito à não encontrar sentido na própria vida.
Ele não consegue inserir-se em outro grupo onde possa contar suas historias e
ouvir outras com as quais se identifique, construindo valores que lhes servirão
na velhice; não consegue lutar por causas comunitárias que possa melhora
suas condições de vida, não acredita em si na sua capacidade de trabalho, na
sua auto-estima, não consegue ser aceito socialmente.
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“... Esta fragmentando as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais. Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados.
Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada
algumas vezes de deslocamento ou descentramento do
sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos
indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos – constitui uma crise de
identidade...” (Hall, 2005 p. 9).
E por isso, o individuo desterritorializado sem estabilidade material e
psíquica, segue ordens e vive o processo sem nenhuma reflexão, distanciandose cada vez mais do seu pertencimento a si mesmo.
Na obra analisada, a alegoria desse distanciamento do sujeito de si
mesmo é vista por um processo de metamorfose. A personagem é destituída
de suas características físicas e de sua essência, convertendo-se em espectro.
Segundo Fernandes (1992, p. 307), quando a mudança do individuo
é profunda e representa um estado de completa alienação e, em conseqüência,
implica a perda de essência, pode-se dizer que ela atingiu dois processos
distintos; um referente ao caráter social do individuo e outro a conjuntura
metafísica. Segundo ele, perder a identidade social implica anomalias que
contrariam o estatuto social, como determinados comportamentos que lhes são
pertinentes; (transformar-se em boi é fugir aos padrões comuns de
comportamento estabelecido pelo grupo). Por outro lado, a metamorfose
metafísica representa uma transformação desde dentro, não só na aparência
como também na conduta do ser, na sua essência (o Matador começa a não
compreender os movimentos que acontecem a sua volta, se torna alheio ao
mundo dos humanos). Vejamos:
“... Quando foi dar a noticia ao pai este não disse nada.
Enrolado na rede, só os bicos das botinas de fora, olhou
para o filho como se não entendesse... até o banho
semanal abandonou, acabando por impregnar a sala com
um cheiro forte de animal suado” (BCP, p. 354).
Essas transformações ocorrem também, aos poucos, com o filho do
matador, neste ainda na infância, pois, foi obrigado a assumir o lugar do pai no
matadouro. “O filho não tinha idade, era franzino, jamais daria um bom
matador... tão miúdo mal se agüentando nas pernas como um terneirinho”
(BCP). E a sua vida vai se moldando às exigências da sociedade capitalista, de
forma que sua existência se coisifique em prol da produção como a de seu pai
“... o menino foi crescendo, desenvolvendo a custa do trabalho, fazendo-se
forte e ganhando prestigio no matadouro” (BCP).
“Decerto, não se pode traçar uma divisão tão simples
entre as pessoas em si e seus chamados papéis sociais.
Estes
penetram
profundamente
nas
próprias
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características das pessoas, em sua constituição mais
intima” (Adorno, 2002, p. 104).
Adorno afirma que alguns papéis que a sociedade distribui aos
indivíduos distanciam os daquilo que eles são verdadeiramente, daquilo que
eles poderiam ser em si mesmos.
“O individuo ingressa na fabrica... Da noite para o dia ele
se torna um complemento da maquina. Uma coisa que
deve obedecer ao ritmo da produção e não importam
quais sejam seus motivos para obedecer. As pessoas de
outra classe desconhecem, a não ser em momento de
desagregação e doença, essa vertigem que o aprendiz
experimenta de não mais existir” (Bosi, 2002, p. 21).
No entanto, alguns indivíduos vivem esses processos de alienação
passivamente, sem reivindicar ou questionar a sua condição.
Ao filho do Matador o futuro guardava um fim igual ao de seu pai, a
zoomorfização4 não só na aparência como na essência, e por fim a vida
ceifada em nome do lucro. “... aproximou-se do marido que bufava num
canto,... atou lhe uma corda no pescoço e conduziu-o carinhosamente ao
matadouro, onde vendeu por um bom preço aquele boi forte, malhado...”
(BCP).
Percebemos nesta citação o distanciamento da afetividade humana,
a mulher do Matador fez a transação sem nenhum remorso e com parte do
dinheiro ganho na venda do marido, comprou um pedaço de corda, esperando
a vez do filho.
“A expansão do modo de produção capitalista absorve
as sociedades pré-capitalistas, que transformam seus
recursos naturais e humanos em mercadoria” (Bosi,
2002, p. 24).
Estamos em um mundo em que o consumismo cada vez mais se
exacerba; “Os valores antigos, religiosos, artísticos, morais... que o capitalismo
encontra, são consumidos ate o osso e transformados em mercadorias” (Bosi,
2001, p. 24).
As relações de poder são cada vez mais atrozes de estruturas
esmagadoras que vilipendia a subjetividade do individuo. Canclini (2006) disse
que as lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável mostram
outro modo de estabelecer as identidades e construir nossas diferenças.
“Vamos afastando-nos da época em que as identidades
se definiam por essências a - históricas; atualmente
configuram-se no consumismo, dependem daquilo que se
possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir (p.30)”.
4
Crença popular de que os homens podem transformar-se em animais (Houaiss, 2001, p.24).
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A versão política de estar contente com o que se tem que foi o
nacionalismo dos anos 60-70, é vista hoje como uma “ultima tentativa de conter
dentro das vacilantes fronteiras nacionais a explosão globalizada das
identidades e dos bens de consumo que as diferenciavam” (Canclini, 2006,
p.31). Não existe hoje um limite, uma cultura definida, o mercado ultrapassa
fronteiras, é possível acompanhar o mundo de qualquer parte que se encontrar.
“Com os meios de comunicação imediata, não há
transição: a partida é uma chegada. Mas essa evasão
se paga com a desintegração do mundo, uma
decolagem’ fora do solo’, posto que tudo esta presente
em qualquer parte, nada esta em lugar algum”
(Blanquart, 1985, op cit Chesneaux, 1995).
A televisão é um dos meios de comunicação que mais veicula o
intercambio de idéias, produtos e cultura; sabemos que ela é militante,
conquistadora e age sobre seus telespectadores por meios autoritários, por
pressões morais e pelo jogo dos mecanismos econômicos. Chesneaux (1995,
p. 128) cita um texto retirado do jornal Le Monde, 15 de janeiro de 1982, de
Federico Felline:
“A televisão mutilou nossa capacidade de solidão, violou
nossa dimensão mais intima, mais privada, mais secreta.
Acorrentados por um ritual invasor, fixamos um quadro
luminoso que vomita milhares de coisa que se anulam
mutuamente, numa vertiginosa espiral. A paz só vem
quando se desliga. Às onze horas, à meia-noite, pesa
sobre nossos ombros um grande e obrigatório cansaço.
Vamos para nosso leito carregados de uma vaga má
consciência e, no escuro, os olhos fechados, tentamos
restabelecer o vinculo, como um fio rompido, do silencio
interior que nos pertenciam...”.
E ao pensarmos a mulher do Matador, como alguém que se
encontrava insegura na perspectiva de sobrevivência – a maior angustia
demonstrada pela esposa foi o fato do matador não estar comparecendo ao
emprego, o que poderia afetar a despesa no final do mês; procurou por todos
os meios convencer o marido a voltar a trabalhar, como foi inútil às tentativas,
apelou para o filho ainda criança. – Eclea Bosi (2001), nos da uma explicação
para essa angustia, ao relatar o depoimento de uma senhora que veio da roça
e seu esposo foi empregado em uma fábrica. Vejamos:
“... Mas acho que o pessoal da roça devia poder voltar
para o seu lugar. Uma coisa que ninguém sabe é que a
gente da roça quando chega aqui tem um medo maior
que todos; o medo de passar fome. Sim, porque
acostumada a plantar para comer, não vendo nem um
pedaço de chão, sem terra nenhuma, a gente se
preocupa – como vou comer?” (p.18).
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O homem torna-se vulnerável no lugar desconhecido, susceptível à
alienação, ou seja, a imposições e caminhos apontados por um ‘outro’.
Nessa perspectiva, a mulher do matador ao comprar uma televisão,
estava levando para sua casa o meio que lhe condicionaria a uma alienação
passiva, a qual age sobre nos por meio das imagens, impondo o que devemos
ser e o que devemos ter. Pois na televisão “As pessoas não vêem o que
preferem, mas preferem o que lhes oferecem” (Canclini, 2006, p.167).
A ideologia veiculada nos impulsiona a consumir para nos sentirmos
realizados e atualizados; e cada vez mais é formada nos indivíduos, uma outra
identidade que não a de sua raiz.
NADIFICAÇÃO DO MATADOR
Outro aspecto importante na obra é a inominação dos personagens,
fato comum na ficção contemporânea para designar o caos existencial, a perda
de identidade e indeterminação do ser; como disse Platão: “Quando não se
sabe o nome, não se sabe também o ser e a essência”. 5 “A supressão do
nome inscreve a personagem na negatividade do nada” (Fernandes, 1992, p.
29).
Citamos como exemplo a ação da personagem Joana, na obra
Perto do coração selvagem (1994, p.183), de Clarice Lispector. Joana, ao se
encontrar com o amante diz a ele que não quer saber o seu nome, pois não
pretende saber de seu passado; se ele dissesse o nome ela saberia quem ele
era.
No conto “Boi da cara preta”, a supressão do nome é entendida
como uma conseqüência da perda de identidade; o personagem perde sua
identidade individual (o Eu) e incorpora uma identidade uniformizada, ou seja, é
o que ele faz (Matador), torna se incapaz de diferenciar o que pertence ao
domínio do eu e o que está situado fora. Como foi dito, as exigências imediatas
da vida moderna faz o sujeito aderir, passivamente aos valores das máquinas e
de um outro. “Assim, encerrados nos controles e proibições, a vida moderna
perde o contato com o real” (Chesneaux, 1995, p. 48).
O Matador e sua família já não sabiam quem e o que eles
realmente eram. Os fundamentos de suas raízes, onde eles podiam afirmar sua
identidade através do grupo ao qual tinham consciência de pertencer, foi
extinto. Estavam eles, em uma sociedade que identifica os indivíduos, pela sua
rentabilidade, pela sua capacidade de saber “vender-se”, um mundo fora de
seu mundo.
Assim não conseguiram encontrar-se, determinar-se. “Pelo vasto
mundo, as pessoas agitadas pela modernidade estão à procura de si mesmas”
(Chesneaux, 1995, p.60), porém, nos personagens de BCP não existe esta
busca, antes sentimos uma certa conformação com o destino proposto por
seus superiores.
Este processo de passividade também é uma alegoria à nossa
sociedade, aceitamos por não haver outra escolha.
Chesneaux (1995) contestou dizendo de que adiantava a pretensão
da modernidade em nos oferecer conforto material e moral de uma Atenas sem
escravos, se na verdade a sociedade caminha para o lado oposto, para um
5
PLATÃO. Dialogo. Tradução de Carlos Alberto Nunes, coleção Amazônia. Serie Farias Brito, s/d.
9
mundo de escravos dóceis, onde se inverte a relação que desde as origens se
estabeleceu: homem sujeito ativo e as máquinas objetos domináveis.
Nesse “Matadouro Moderno” o que prevalece é à força do capital, e
os menos favorecidos, aprisionados às restrições e contingências de uma
minoria, vão aceitando condições contratuais cada vez piores para escapar à
perspectiva sombria do desemprego.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Observamos que o conto estudado retrata um dos aspectos do
drama social a que o homem rural foi submetido, com a chegada do capital e,
conseqüentemente, da modernidade no campo. Compreendemos que o
processo impôs as transformações de forma rápida e agressiva e os habitantes
nativos não tinham consciência da situação em que viviam. Não podiam decidir
e nem contar a própria história, o que justifica a predominância da terceira
pessoa como foco de narração, pois, acreditamos que, na obra literária nada é
por acaso, e que embora ela permita a criação de novos universos, esses são
sempre inspirados, na realidade da qual o escritor participa.
A esse respeito, Candido (1972, p.805) dizia que, as fantasias
expressas, pela literatura têm sempre sua base na realidade, nunca são puras.
E por esse motivo ela atua como função formadora do homem, como
instrumento de educação, uma vez que exprime realidades que a ideologia
dominante procura esconder.
Na obra em questão o recurso utilizado pelo escritor foi a alegoria,
Carvalho teceu tão cuidadosamente as palavras, de forma que lemos as letras
e visualizamos o que há por trás delas
Ainda nas palavras de Candido, a literatura não corrompe nem
edifica, mas humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (op. cit. p.806).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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