A Louça de Barro do Córrego de Areia: corpo e memória Francisca R. N. Mendes Profa Adjunta do Instituto de Cultura e Arte - ICA Universidade Federal do Ceará - UFC APROXIMANDO-SE DO “MUNDO DO BARRO” As sociedades contemporâneas são marcadas por diferentes modos de produção, trabalho e sociabilidade, inseridos no âmbito das economias globalizadas. Contudo, o tecido social de vários contextos históricos é também constituído por sistemas simbólicos, que promovem o intercruzamento de saberes tradicionais e modernos. Nesse sentido, o artesanato pode ser pensado como algo privilegiado para se entender uma determinada coletividade, uma vez que materializa experiências vividas no cotidiano de muitas localidades . No Ceará é uma fonte de renda para muitas famílias1 e sinônimo de variedade de tipologias. Do bordado aos objetos feitos de barro, passando pelo couro, trançados de palha, madeira, labirinto, rendas e xilogravura, os saberes, fazeres, significados e vivências são transmitidos de geração a geração. No dia-a-dia, tais peças podem adquirir funções utilitárias, decorativas, lúdicas ou religiosas. O presente artigo é sobre a produção do artesanato feito no Córrego de Areia, localizado na zona rural do município de Limoeiro do Norte, a seis quilômetros da sede da cidade, que por sua vez, fica a duzentos da capital, Fortaleza.2 Abordarei a 1 O Sindicato dos Artesãos do Estado do Ceará estima que cerca de cem mil pessoas sobrevivam da produção de itens artesanais no Estado. Só na CEART, ligada à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), são 34.450 profissionais cadastrados (Dados de 26/09/2006). 2 O município de Limoeiro do Norte está situado no vale do Jaguaribe, mais precisamente na região do baixo rio Jaguaribe. Do ponto de vista histórico, a ocupação do espaço se deu por meio da pecuária e os municípios2 que hoje compõem essa microrregião tiveram origem a partir dos povoados fundados por imigrantes do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, que travaram muitos conflitos com povos indígenas locais. A fixação ocorreu por volta do século XVII, na planície que acompanha o leito do rio Jaguaribe, sendo possível em razão da existência de solos férteis, que possibilitaram o desenvolvimento da pecuária e a produção de gêneros alimentícios (Soares, 1999; Lima, 1997). estreita relação entre o saber-fazer e a memória corporal que as louceiras adquirem, uma vez que ela é imprescindível para a materialização das peças. Fazer louça de barro não é uma atividade que possa ser entendida apenas do ponto de vista comercial. Um olhar mais atento sobre o cotidiano da produção revela as visões de mundo, o imaginário, os arranjos sociais, enfim, a arte de quem a faz. Enquanto modelam seus objetos, os artesãos moldam as próprias vidas, numa constante criação e recriação de seu universo cultural particular. As mulheres dominam todas as etapas da produção, desde a retirada do barro do barreiro até a queima, parte final do processo de feitura de louça. A venda é feita de forma individual e cabe aos homens apenas a construção dos fornos, salvo alguns poucos que ainda fazem louça, mas em número pouco expressivo. A memória das louceiras revela, entretanto, que o artesanato já foi ocupação também, no passado, dos homens do Córrego de Areia, em virtude da grande saída que os objetos de barro tinham, a mão-de-obra masculina era utilizada de forma equivalente à feminina. Hoje, os homens têm outras ocupações, pois estão na agricultura, na pecuária, são pedreiros ou moto-taxistas. Doze famílias - que apresentam sempre algum grau de parentesco ainda vivem da produção de louça e apenas dois homens estão envolvidos na modelagem, sendo que um deles não participa do acabamento das peças. Para ter acesso a tais vivências, apropriar-se das memórias e narrativas das louceiras foi imprescindível. Partindo das trajetórias particulares, pude perceber como o saber artesanal é transmitido de uma geração a outra, levando em conta as referências do passado. Desse modo, as redes de sociabilidade e de circulação das peças produzidas no Córrego vão sendo constituídas e reconstituídas com o passar dos anos. Afinal, conforme lembra Ecléa Bosi (1994) “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado”. Os dados agora apresentados são frutos de algumas idas e vindas ao Córrego, iniciadas em 1997, durante a minha graduação, que se prolongaram, alternadamente, até setembro de 2008, quando conclui o trabalho de campo para o doutorado3. Nesses 3 Para saber mais sobre os referidos trabalhos, ver MENDES, Francisca R. N. Mendes. Remodelando Tradições: os processos criativos e os significados do trabalho artesanal entre as louceiras do Córrego de Areia. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Sociologia. Universidade Federal do Ceará – UFC, 2004. E ainda: MENDES, Francisca R. N. A Louça de Barro do Córrego de Areia: tradição, sentidos e itinerários. Tese. Programa de Pós-graduação em Sociologia. Universidade Federal do Ceará – UFC, 2009. períodos, segui semanalmente as louceiras, no desenrolar do seu dia-a-dia, nos afazeres domésticos, nas retiradas do barro e queima da louça, nas idas à casa de irmãos, à feira ou à bodega4, enquanto buscavam as crianças na escola ou modelavam algumas peças. Aproveitava esse convívio para conversar a respeito de vários assuntos5 – umas vezes gravava, em outras anotava - afinal, tais mulheres não são apenas louceiras, são também mães, esposas e donas de casa. Acompanhei ainda, as várias etapas do fazer, de várias artesãs e mediante a observação das fotografias tiradas nesses momentos pude ter uma compreensão mais ampla das ações e gestos empreendidos. Para Mattos (2001), os registros fotográficos permitem o prolongamento do contato com a realidade, após o trabalho de campo. O processo de feitura da louça de barro se inicia com a retirada do barro. Munidas de uma enxada pequena e de cabo curto, que serve para escavar até encontrar o barro adequado, elas vão ao barreiro, geralmente, uma vez por semana6, por volta de seis ou sete horas da manhã, para evitar exposição ao sol nos horários em que ele está mais quente. Levam para casa a quantidade de barro necessária para fazer as encomendas, denominada de caminho de barro, transportado de bicicleta, em baldes ou em carros de mão, por elas próprias. Se elas retirarem, porém, porção que represente um aumento no peso, recebem a ajuda dos filhos ou do marido para levá-lo até em casa. É importante atentar para o fato de que, aos olhos das louceiras, o barreiro é muito mais do que uma extensão de terra cheia de escavações, como possa parecer. Ele revela “o rastro” de quem esteve antes lá, que quantidade de barro levou e quanto tempo faz, com base nos sinais deixados pelos buracos feitos. Quando encontram uma boa jazida de barro, algumas louceiras chegam a “esconder” o lugar com galhos e plantas rasteiras, para que as outras não saibam que ali tem um barro de boa qualidade; ou esperam que as outras saiam para que ela possa escavar, a fim de que ninguém veja o lugar de onde ela retirou um “bom barro”. 4 No zona rural e nas cidades do interior e do litoral nordestino,é comum essa denominação para pequenas vendas ou mercearias onde se encontra uma infinidade de produtos, desde mantimentos até remédios para pessoas e animais. 5 As entrevistas realizadas eram semiestruturadas, possibilitando ser flexível, deixando que as pessoas falavam a respeito do assunto que lhes conviesse, ao mesmo tempo em que esclareciam aspectos sobre o trabalho e as relações sociais que ainda não estavam claros para mim. 6 A maioria vai, às segundas-feiras, buscar a quantidade necessária para o trabalho da semana inteira. Vê-se, então, que não é qualquer barro que serve para fazer louça. O teste se dá ao esfregar o barro entre os dedos polegar e indicador, para sentir a textura e a liga, além da observação de aspectos como o tom (Lima, 2006). Ao chegar ao barreiro, a louceira faz uma seleção do lugar a ser escavado e do barro que será retirado, revelando que o aprendizado e a experiência vivida emergem no momento de realizar tal escolha. Nem presta o de cima, nem presta o de baixo. Tira o de cima pra depois tirar só o do meio. Cava assim uns dois palmos [mostra a medida com as duas mãos]. Tem loiceira aí que ainda não conhece não, mas eu conheço. Tem deles que tem bolão duro no meio, tem deles que é areiento, meio vermelho, aí num presta não. [...] toda loiceira conhece. Você tira o de cima, que é a sujeira, aí tira o do meio. Toda loiceira sabe. Tem vez que tira tudim de um canto só, aí qdo aquele ali já ta ruim a gente passa pra outro. (Antônia Ribeiro, maio de 2007) A gente conhece, eu pelo meno quando vou pro barreiro só trago barro prestando, eu abro quatro, cinco buraco pro mode arranjar o barro. (Maria Rodrigues, julho de 2008) E ainda: É quando a gente cava, a gente vê que o barro é bem maciinho, na hora que passa a enxada, a gente já sabe que o barrozim é macio, vê um barrim lisim e areiento quando a gente cava, é aspro [áspero], a enxada bate assim é que nem areia, cortando areia. E o barro é assim areiento quando a gente vê é assim mode com areia. (Lúcia Rodrigues, agostode 2008) Quando a gente cava lá, tem uns que é todo vermelho, a gente vê que num presta, o mais preto a gente vê que é melhor, mais macio, pegando logo assim [faz o gesto esfregando o barro entre os dedos] a gente sabe o que é macio e o que tem pedra, com areia. Mesmo tando [estando] seco. Pra quem faz pote, que bota areia, chega lá tira de qualquer jeito mas pra fazer essas pecinha num dá não, tem que ser barro liso, pra loiça ficar lisa. (Avelanda Braúna, julho de 2008) Depois que vem da lagoa, o barro é aguado ao chegar em casa com a finalidade de amolecer. Como geralmente é retirado no verão, está muito ressecado, e faz-se necessário receber água num alguidar7 grande, até amolecer o suficiente para poder ser amassado com os pés. Algumas louceiras preferem retirar o barro já molhado, o que exige que a escavação seja mais profunda. Essa opção, entretanto, dificulta a identificação de alguma sujeira (galhos, pedras, fragmentos de vidro) que porventura possa existir na matéria-prima. Traz o barro da lagoa e quando chega [...] no verão, aí o barro é seco, sabe? A gente traz barro em pedaço assim, seco. Aí chega a gente aguoa, bota num alguidar ou numa vasilha e molha, aí quando for no outro dia a gente bota num saco, tira, bota em cima e amassa com os pés. (Veranilde Braúna, agosto de 2007) MEMÓRIA CORPORAL DO SABER-FAZER Sentada ao chão, sobre uma das pernas e com a outra dobrada para trás, a louceira tem no alcance da sua mão o barro, os instrumentos (cuia, talo de carnaúba, pedra, água) que a auxiliam e tábuas de madeira de vários tamanhos, que servirão de base para a peça. Quase sempre as tábuas são muito antigas, herdadas das mães ou avós e bastante desgastadas8. Nunca vi tábuas com características de pouco uso. Assim como as peças feitas no Candeal (MG), descritas por Lima (2006) e as panelas de barro das Goiabeiras (ES), estudadas por Dias (2006), a modelagem da louça no Córrego de Areia é iniciada com uma “bola” de barro, colocada sobre a tábua, cujo tamanho vai variar de acordo com a dimensão da peça a ser modelada, que recebe um “soco” para fazer o fundo da vasilha. Em seguida, ela recebe a forma que a louceira preferir lhe dar e é alisada por dentro com uma pedra enquanto espera secar para que possa ser rapada. Vale lembrar qu, no caso de peças maiores e bojudas, como os potes e quartinhas, geralmente são 7 8 Semelhante a uma bacia, feita de barro. Maria de Zé Pequeno orgulha-se de uma tábua que diz ter cerca de noventa anos. feitos por etapas. À medida que a parte inferior está seca o suficiente para suportar o peso, o bojo é colocado. Durante esse processo, algumas louceiras pitam cachimbos ou um fino cigarro de fumo, enrolado por elas próprias num fino e delicado papel chamado de papelim. Apenas com a mão, que é áspera e tem a pele grossa de tanto mexer com o barro, a louceira vai modelando aquela matéria que até então era disforme. Aos poucos, ela vai girando a tábua, com a mão esquerda, enquanto a direita vai “levantando” o barro; assim ela trabalha em todos os lados da peça. A técnica e a habilidade impressionam; é um trabalho de muita maestria. Não há tornos giratórios ou qualquer outro instrumento utilizado em trabalhos com barro para facilitar ou aumentar a produção, sendo essa sua principal especificidade. É nesse momento que as ideias afloram, a criatividade é aguçada e o intelecto é posto em funcionamento. Entremeado por técnicas e saberes culturalmente apreendidos, ao longo dos anos, o modo de fazer é executado com tanto esmero, afinco e cuidado, que chega a produzir desconfiança em quem não o conhece. A mão é a principal fôrma. As vezes as pessoas na feira me dizem que ainda vão ao Córrego de Areia ver a fôrma. Eu digo: não precisa não, tá aqui a fôrma, aí mostro a mão. (Antônia Ribeiro, Outubro de 2006) Enquanto a mão e o barro vão sendo umedecidos, os dedos mais parecem espátulas que “abrem” os torrões de barro e os transformam em potes, panelas, jarros, abajures, cinzeiros. Portanto, a mão é a extensão desse corpo treinado. Nesse processo, as mãos merecem atenção especial, pois elas não apenas executam as idéias, como também são, sobretudo, instrumentos essenciais para a ação humana (Hertz 1980). Muito já foi escrito a respeito do poder que nossas mãos carregam em si. Desde a adoção da revolucionária postura bípede adotada pelo Homo sapiens, o uso das mãos tem sido uma constante para fins sagrados, terapêuticos, para comunicar algo sobre nós ou para fazer a ligação com o cérebro. Para Leloup (1998), ao ocuparmos as mãos em um trabalho manual, acalmamos o nosso mental e a nossa psique. Bachelard (1991), por sua vez, vê a mão como uma trabalhadora, que cresce à medida que se envolve com aquilo que produz, pois não está apenas reproduzindo, imitando ou contemplando algo já feito. Ao contrário, está manifestando seu caráter inovador, seu poder de criação. Raimunda (à esquerda) e Maria (à direita) trabalhando o barro. Fonte: Francisca Mendes. Acervo pessoal. 2006. A tábua é à base da modelagem. Com um talo de carnaúba, chamado por elas de tala, é feita a raspagem para que a peça fique o mais fina possível. Com um pedaço de cabaça é feita a palheta, que, segundo elas, é usada para alisar a parte interior da peça. Também de talo é feita a faca, usada para cortar o excesso. Para alisar, são usados uma pedra e restos de um pente fino. Já para obter um aspecto liso das bordas, é usado um pedaço de tecido, chamado de couro9. 9 Tábua – fragmento de madeira onde o barro é modelado; base. Palheta – pedaço de cabaça, fruto da cabaceira, que é cortado de forma oval e usado para alisar as peças já prontas. Couro – segundo as próprias louceiras, antes o couro de animais como cabras, carneiros e até bois, era utilizado para deixar as bordas das peças o mais fina possível; mas o passar dos anos, o preço do couro ficou muito alto e diminuíram também as criações domésticas desses animais, dificultando a retirada do couro. Então, elas passaram a usar tecido; o objeto mudou, mas o nome permaneceu, em razão da predominância da pecuária no vale do Jaguaribe e por Limoeiro do Norte ter sido uma das cidades por onde passavam as boiadas, vindas de Aracati, com destino a Icó, nos conhecidos “caminhos do gado”. É a paêta pra dá o acabamento por dentro, a tala para dá o acabamento por fora, a pedra é pra alisar, o pente é pra alisar e arranhar e um pedaço de pano pra passar no beiço (Antônia Ribeiro, dezembro de 2006). Muitas louceiras consideram a modelagem como sendo “fácil” de ser executada. Para elas, o mais difícil é o acabamento, o alisamento, pois é nesse momento, parte final do processo de dar forma, que a habilidade e o saber da louceira são testados: Fazer loiça não dá trabalho não, dá trabalho é pra rapar e pra alisar. Eu pelejo pra fazer uma vasilha grossa, mas não sei fazer. (Maria Rodrigues, novembro de 2006) O acabamento é o trabaio [trabalho] num é fazer não. Leva muito mais tempo do que fazer. (Lúcia Rodrigues, agostode 2008) O artesanato é todo feito em casa, conciliado com os afazeres domésticos e aliado às funções de mãe, esposa e dona de casa, obedecendo a um ritmo próprio, conforme mencionado. Por isso as atribuições advindas desses outros papéis sociais preenchem consideravelmente o cotidiano das louceiras e as “obriga” a dar conta de outras tarefas, paralelas ao universo do barro. [...] a gente tem muito o que fazer, eu aqui vivo sozinha, Edvan [o marido] passa o dia no mundo lutando com esses bicho aí, Giliard [filho] passa o dia trabaiando, aí é varrer casa, lavar prato, cozinhar comer, encher litro pra botar na geladeira, às vez dá água a um bicho e é porque eu só lavo roupa dia de sábado e dia de domingo. (Maria Rodrigues, julho de 2008) Para Porto Alegre (1994), é essa simbiose entre trabalho e cotidiano que “atrai e fascina o observador”, pois, por meio dos objetos, são reveladas partes da “vida diária, das práticas religiosas, das crenças, das festas, das tarefas domésticas, da dura luta pela sobrevivência”. Uma parte dos instrumentos que auxiliam a mão hábil da louceira tem origem na vegetação nativa encontrada nos arredores das casas e outra é gerada do reaproveitamento de materiais como tecido, pente, faca e pedra. A maioria deles tem uma vida útil muito grande e vêm sendo passados de mãe para filha; é o caso principalmente das pedras usadas para alisar e dos talos (pecíolos) das folhas da carnaúba (Copernicia Prunífera), que servem para cortar as bordas10. O vocabulário usado para designar os instrumentos de trabalho não é muito extenso, não havendo, também, nenhuma linguagem restrita, específica do ofício. Pentes que ajudam a louceira no acabamento das peças (à esquerda) e pratos fundos, já alisados por dentro, esperando para secar e serem rapados por fora. Fonte: Francisca Mendes. Acervo pessoal. 2006. A produção da louça de barro nessa localidade não pode ser vista sem levarmos em conta a dimensão do corpo da louceira, que é também parte desse processo. Assim como Maus (2003), entendo que o corpo não pode ser pensado somente do ponto de vista biológico e que o homem produz pela interação social e na 10 Essa palmeira é muito abundante na região jaguaribana e dela podem-se aproveitar quase tudo: a lenha para forrar o teto das casas, a cera é aproveitada industrialmente, do estípite fazem-se caibros e ripas, dos talos são feitas armadilhas de pesca e as palhas cobrem as casas de taipa. imersão do campo simbólico. Em outras palavras, o corpo é um artefato cultural, pois expressa o aprendizado assimilado no meio social no qual está inserido e as atitudes corporais de cada indivíduo também são produtos sociais. Por conseguinte, não é exagero dizer que o fazer artesanal das louceiras do Córrego de Areia está contido nos seus corpos, uma vez que o manuseio magistral das mãos exige uma adaptação também do corpo, desenvolvida concomitantemente às habilidades, gestualidades e posturas, próprios à realização de tal tarefa. Barro e corpo se misturam harmonicamente, cujo fim principal é a elaboração e, consequentemente, a execução dos “seus” objetos. Enquanto molda suas peças, a louceira também modela seu corpo, pois os seus movimentos e gestos estão voltados para a sua prática. Não apenas porque elas literalmente se misturam com o barro enquanto fazem as peças, mas principalmente porque o corpo é moldado, adaptado, ensinado, preparado para adotar posicionamentos e formas específicas de sentar, andar e levantar que possibilitam fazer e carregar os objetos de barro. A flexibilidade corporal da louceira só encontra limite no avançar da idade, uma vez que a facilidade de sentar-se e levantar-se do chão, assim como a força para carregar e amassar o barro vai diminuindo com o passar dos anos. São recorrentes as queixas, principalmente com relação às dores na coluna, que segundo elas, resultam dos longos períodos sentadas numa mesma posição11. Quando a gente fica véi é muito diferente de quem é novo, eu fazia uns três jogo de feijoada na semana, hoje eu pelejo pra fazer um. (Maria Rodrigues, julho de 2007) E eu acho que eu vivo doente é disso. Logo trabalhei muito na roça de enxada, numa posição muito ruim, aí ia cuidar da barro, depois ia busca na cabeça os talo, aí foi que piorou. (Antônia Rodrigues, maio de 2007) 11 Dores musculares e inflamações nos tendões dos braços e pernas são os principais motivos das idas ao médico e da ingestão de medicamentos entre as louceiras. Os remédios são, quase sempre, antiinflamatórios e relaxantes musculares, que são tomados mesmo sem autorização prévia de um profissional de saúde. Se a louceira não consegue mais amassar o barro com os pés, transportá-lo ou queimar a louça, seja por doença ou pela idade avançada, ela lança mão de sobrinhos, filhos e marido para ajudá-la em tais tarefas, inclusive remunerando-os, em alguns casos. Nesse momento, a divisão da louça por gênero não é considerada. [...] quando os menino não vai buscar, Nelsim [Nelsinho, o marido] vai buscar de bicicleta (Raimunda Rodrigues, maio de 2007) Pago um sobrim [sobrinho] meu pra levar os potes pra feira. (Maria Acelina, maio de 2007) Quem pisa o barro pra mim é o menino de Lúcia (Maria Rodrigues, julho de 2008) De acordo com Mauss (2003), os gestos e movimentos corporais são “técnicas criadas pela cultura”. Em todas as sociedades, as pessoas aprendem e ensinam o que devem fazer, como adaptar o corpo a um determinado uso, enfim, adquirem um hábito que as autoriza a dizer que “sabem como fazer” algo. A modelagem do barro, pelas louceiras, demonstra muito mais do que uma simples feitura de objetos. Revela o treinamento, o aprendizado, a “técnica”, a memorização de “posturas culturalmente específicas”, transmitidas, mesmo que não sejam verbalizadas nem conscientemente ensinadas (Connerton, 1993). Por isso é comum dizerem que aprenderam sozinhas ou apenas vendo os outros fazerem. A exemplo de outras atividades artesanais, as louceiras do Córrego de Areia dominam todas as etapas de produção da louça, que se baseia no tempo do barro, não no do capital. Modelam suas peças na hora que consideram ser mais conveniente, sem a obrigação ou pressão de ter que atingir determinada meta. Também não há nenhum coordenador da atividade nem chefe imediato. Cada louceira tem a sua “especialidade”. Umas fazem potes, quartinhas, alguidares, chaminés, filtros, cavalos, cofres, bebedouros para galinha, que se diferenciam em tamanho, formatos, espessura ou pela utilização do tauá. Outras modelam jogos de feijoada, travessas, cinzeiros, jarros, petisqueiras, luminárias, que têm características próprias, ou, no dizer delas, cada qual faz uma qualidade de coisa. Nenhuma peça é igual à outra e mesmo aquelas que repetem a tipologia sempre imprimem algum detalhe que garante a unicidade do objeto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Maria Rosilene Barbosa. Artesanato, tradição e mudança social: um estudo a partir da “arte do ouro” em Juazeiro do Norte. In O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea. Textos de Berta G. Ribeiro e outros. 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