O LADO CERTO DA VIDA ERRADA: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império Maria Elisa da Silva Pimentel Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Orientador: Giuseppe Mario Cocco Professor Titular da Escola de Serviço Social, UFRJ Rio de Janeiro Agosto, 2007 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. O LADO CERTO DA VIDA ERRADA: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império Maria Elisa da Silva Pimentel Orientador Professor Doutor Giuseppe Mario Cocco Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Giuseppe Mario Cocco _______________________________ Prof. Adriano Pilatti _______________________________ Prof. Gerardo Silva _______________________________ Prof. Marildo Menegat _______________________________ Profª. Vera Malaguti Batista Rio de Janeiro Agosto, 2007 FICHA CATALOGRÁFICA Pimentel, Maria Elisa da Silva. O lado certo da vida errada: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império. Maria Elisa da Silva Pimentel - Rio de Janeiro: UFRJ/ ESS, 2007. xi, 260f.: il.; 31 cm. Orientador: Giuseppe Mario Cocco. Tese (doutorado) – UFRJ/ ESS/ Programa de Pós-graduação em Serviço Social, 2007. Referências Bibliográficas: 1. tráfico de drogas 2. Guerra imperial. I. Pimentel, Maria Elisa da Silva. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. III. Título. O LADO CERTO DA VIDA ERRADA: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império. Nome do Autor: Maria Elisa da Silva Pimentel Orientador: Giuseppe Mario Cocco Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social Estuda-se nessa tese o espaço da venda de drogas ilícitas no varejo nas favelas cariocas, a partir de uma matriz teórica que permite inserir o fenômeno nas novas referências do capitalismo contemporâneo. As novas figuras produtivas que emergem no Império sob a dinâmica do capitalismo cognitivo deslocam as redes de produção industrial para territórios produtivos que se constituem sem passar pela disciplinarização do trabalhado manual e nem mesmo pelo tempo restrito de trabalho. São agora as externalidades e a sociabilidade que se constituem em vetores de produção – são as habilidades intelectuais dos trabalhadores, costuradas pela cooperação, colaboração e comunicação, que produzem riqueza. Correspondentemente, é a capacidade para enfrentar ativamente o mundo e criar a vida social produzidas pelo trabalho (vivo) imaterial que valoriza a dinâmica capitalista, mas que também produz resistência. Assim, as favelas aparecem como novos territórios produtivos e os jovens integrantes do tráfico como figuras produtivas. Ao corpo político global do capital se sobrepõe agora a multidão, corpo democrático que produz no comum e que por isso mesmo não pode mais ser capturado pelos instrumentos forjados na modernidade. O tráfico de drogas se afirma então na sua dimensão de captura, mas também de resistência. São os jovens pobres moradores das favelas que vão enfrentar o poder de domínio do Império em toda sua violência e letalidade. Palavras-chave: Tráfico de Drogas; biopoder; império; guerra imperial; capitalismo cognitivo; reservatórios de mobilização produtiva Rio de Janeiro Agosto, 2007 THE WRIGHT SIDE OF THE WRONG LIFE: a study on the market place for illicit trading of drugs in the slums (favelas) controled by the Empire Author: Maria Elisa da Silva Pimentel Oriented by: Giuseppe Mario Cocco Abstract This thesis deals with the market place for illicit trading in the slums (favelas) of Rio de Janeiro, departing from a theoretical basis that allows the insertion of the phenomenon into new references of contemporary Capitalism. The new productive agents that emerge in the Empire under the dynamics of cognitive Capitalism displace the nets of industrial production to producive territories formed without the discipline of craft-work and are not limited by restricitive working hours. Only now the externalities and sociability become vectors of production: the workers' know-how, sewed through cooperation, collaboration and communication, becomes a factor of production. It corresponds to actively face the world and creates social life made by live non-material work that evaluates the Capitalist dynamics, and engenders resistances as well. Thus, the favelas surge as new output territories and the young traffickers their agents of production. Over the global and political capital body is now placed the multitude, a democratic response that cannot be apprhended by the instruments forged by Modernity. Drug trafficking is then reaffirmed on its dimension of capture, but also of resistance. It is up to the young people of the favelas to challenge the Empire's dominant power in its entire violence and death. Key-words: drug-trafficking, bio-power, empire, imperial war, cogniscent (or cognitive) Capitalism, reservoirs of producive mobilisation. Rio de Janeiro Agosto, 2007 Aos jovens pobres das favelas que lutam cotidianamente pelo direito de viver. Agradecimentos Aos moradores das favelas, por partilharem suas vidas. A Inaldo F. Pontes, pelos percursos que dividimos pelas favelas, pela assessoria no trabalho de pesquisa, pelas sugestões a esse trabalho de tese e, sobretudo, pelos nossos sonhos. Aos meus alunos de pesquisa que tornaram a experiência vivenciada tão especial Daniel Calfa, Douglas Habibe, Gisele Carpin, João Carlos Junior, Nadilson do Nascimento, Tiziana Zeloni e Vilson Machado. À professora Vera Malaguti Batista, pelas críticas (delicadas) que ajudaram a embasar esse estudo. Ao Giuseppe Cocco, pelo privilégio que tive de ter sua orientação intelectual – na sua precisão e requinte –, mas sobretudo pela possibilidade de reconstruir os caminhos da luta. À Caia, pela leitura, pelo carinho e por abrir o caminho para aprendermos a exercitar a nossa voz de multidão. Ao Lima, com todo amor que houver nessa vida. À minha mãe pela paciência e conforto e à minha irmã, por isso e mais as ajudas inestimáveis. Aos amigos que se dispuseram a partilhar idéias e me ajudaram a fazer frutificar o debate e a todos aqueles que estiveram na torcida, nas suas mais diferentes formas. “Se os caixões fossem transparentes, os túmulos translúcidos, as gavetas dos institutos médico-legais abertas e ao ar livre, não teríamos como ignorar a forma humana da morte. Se as vítimas da guerra ficassem lado a lado, seriam centenas de quilômetros de corpos estendidos que deveriam estar vivos, de pé. E se empilhados, a montanha da morte teria uma base e uma altura de muitas centenas de metros” (Mir, 2004:22). SUMÁRIO INTRODUÇÃO: AQUI O CRIME COMPENSA? ................................................................................... 13 CAPÍTULO I: DESCONSTRUINDO OS DISCURSOS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS: drogas, tráfico e economia mundial ........................................................................... 21 Introdução ............................................................................................................................................. 21 I.1) Buscando um ponto de partida para pensar o tráfico de drogas........................................... 26 I.2) Narcofavela: encontro entre o local e o global....................................................................... 31 I.3) Drogas e tráfico: desconstruindo o discurso dominante ........................................................ 35 I.4) A criminologia crítica como ponto de partida ......................................................................... 38 I.5) Criminalização da Pobreza: papel do Estado e os modelos jurídicos de controle social ................................................................................. 43 CAPÍTULO II: AS FAVELAS COMO NOVOS TERRITÓRIOS PRODUTIVOS, ESPAÇO DE CONSTITUIÇÃO DA RESISTÊNCIA E DE PRODUÇÃO DE UM NOVO SABER ....................................................................................................... 50 Introdução ............................................................................................................................................. 50 PARTE I: A relação entre a constituição do território urbano e os fatores econômicos da globalização ........................................................................ 55 II.1.1) Fordismo e pós-fordismo ............................................................................................... 55 II.1.2) Teoria do valor, afirmação e negação ........................................................................... 58 II.1.3) A negação da subsunção real ....................................................................................... 61 PARTE II: Trabalho imaterial, consumo e externalidades: as novas relações constitutivas do capitalismo cognitivo ........................................................................ 68 Introdução..................................................................................................................................... 68 II.2.1) O Consumo na Pós-Modernidade ................................................................................. 71 PARTE III: As favelas como território de mobilização produtiva.................................................. 83 III.1) O Trabalho Imaterial e os Espaços das Favelas............................................................. 83 CAPÍTULO III: CONTRA-INSURGÊNCIA E RESISTÊNCIA............................................................. 101 Introdução ........................................................................................................................................... 101 III.1) A Questão étnica na conformação do capitalismo no Brasil e o Estado como agente de controle......................................................................................... 104 III.2) AS NOVAS FIGURAS PRODUTIVAS.................................................................................... 112 III.3) Contra-Insurgência: a guerra como biopoder......................................................................... 117 III.4) A FORÇA DO APARATO POLICIAL...................................................................................... 128 CASOS ........................................................................................................................................... 130 CASO UM................................................................................................................................... 130 CASO DOIS................................................................................................................................ 132 CASO TRÊS............................................................................................................................... 134 III.5) O LADO ERRADO DA VIDA ERRADA .................................................................................. 137 III.6) A Guerra do Império ............................................................................................................... 141 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 146 Para a pesquisa futura.................................................................................................................... 152 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 154 __________________________________________________ 13 INTRODUÇÃO: AQUI O CRIME COMPENSA? O objetivo desse estudo é entender como a inserção dos jovens pobres moradores das favelas no tráfico de drogas ilícitas pode se apresentar como uma dinâmica do capital para capturá-los, mas também (e, sobretudo) como uma forma de resistência: como uma luta contra o império. Para apanhá-los nessa perspectiva – e resistência (mas também na de captura) – é preciso fazer passar por eles o conceito de trabalho. É o conceito de trabalho que desvenda as linhas da dominação imperial com que esse comércio se inscreve, expressão das novas formas de controle que as relações produtivas do pós-fordismo exigem. A primeira direção dos nossos estudos toma assim o trabalho na dimensão que aparece em Marx, como trabalho vivo. Só ao recuperar a premissa de que é o trabalho vivo o principal elemento produtor das relações sociais e portanto da possibilidade de valorização do capital (e não o trabalho morto, como julgam alguns marxistas ortodoxos) que Negri pode encontrar o novo trabalho produtivo: o trabalho imaterial. O sentido do trabalho como instituição do mundo e do sujeito que produz esse mundo, se reafirma aqui, permitindo a Negri pensar a história na perspectiva de quem a produz. É aqui a perspectiva marxista que prevalece: o sujeito revolucionário é necessariamente o sujeito que produz o mundo. Assim que, para qualificar essa resistência, é preciso apanhar esse jovens como trabalhadores e afirmá-los como figuras produtivas. Esse desafio nos obriga assim a lançar mão de um corpo teórico que consiga atualizar o modo de funcionamento da dinâmica capitalista deslocando o eixo estrutural do marxismo para que se abram frentes para entender-se o que sejam essas novas relações sociais produtivas no capitalismo cognitivo. Há aqui uma inversão de método, pois para Negri são as lutas que têm a primazia na construção da história. O novo estatuto do trabalho imaterial contém assim as histórias das lutas dos trabalhadores. O trabalho imaterial transcende o trabalho manual fordista, pois contém as lutas de libertação dos trabalhadores contra o trabalho disciplinador e massificante do processo industrial. É necessário portanto – e é sobretudo revolucionário – perguntar-se agora como se produz a riqueza. A nova configuração do capitalismo se move numa perspectiva totalmente diferente do capitalismo industrial moderno (ainda que também o contenha) e produz uma 14 dinâmica valorativa que depende da circulação da informação e do conhecimento. A invenção é, assim, o dinamizador de toda a criação, de todo valor que se processa nos ciclos de produção imaterial. E é essa inovação que valoriza, inova o capital. O conhecimento comum é igual a tecnologia – e Lazzarato contrapõe a idéia comum à genialidade. A criatividade, a inventividade, a afetividade se transformaram em produtos e aqueles que os consomem se transformam em produtores, pois ajudam a valorizar o capital ao fazer circular a mercadoria imaterial (o saber comum) da multidão. Ao transformar a subjetividade em produção, a ideologia ganha definitivamente o reino da estrutura econômica. Produzir as subjetividades se transformou na principal demanda ao/do capital; assim, são as redes imateriais (bacias produtivas imateriais) que precisam funcionar para que o capital se valorize. Para entender o novo estatuto do trabalho e sobretudo o novo estatuto da dinâmica capitalista é que, no capítulo II, a partir das referências da escola operaísta, tento configurar o que seja o capitalismo cognitivo, tentando achar os elementos da expressão das lutas que refizeram a natureza do trabalho. Afirmo, portanto, que o trabalho ganhou um novo estatuto; e que, a partir disso, todas as relações sociais de produção refizeram-se. Considerado o novo trabalho e demarcado um novo ciclo produtivo, pode-se ver o morador da favela como figura produtiva. Dessa forma, tento, na segunda parte do capítulo II, refazer a síntese entre trabalho e território: deslocando o território de produção dos espaços, da fábrica para os espaços da cidade; dos espaços internos ao capital, para os espaços externos; do tempo de trabalho, para o tempo de vida; das relações subordinadas à máquina, ao trabalho criativo e emancipado dos novos sujeitos produtivos. O pobre emerge então como a nova figura produtiva, e as favelas como bacias produtivas imateriais. No capítulo III posso então chegar ao nome comum do pobre na dimensão fantástica que Negri o faz florescer. O pobre como potência: criação e resistência. Quando ser produtivo é também, necessariamente, produzir o novo, a invenção, a negação da ordem capitalista, é que, da figura produtiva do pobre, podemos chegar a multidão, como o faz Lazzarato, em vários trabalhos. Isso porque, se a invenção é sempre uma colaboração, uma cooperação, um co-funcionamento, é também uma ação que suspende dentro do indivíduo ou dentro da sociedade aquilo que já está constituído, individuado, que já se tornou habitual. A invenção é um processo de criação de diferença que coloca em xeque, a cada vez, o ser em sua individuação. Toda invenção é ruptura das normas, regras 15 e hábitos que definem o indivíduo e a sociedade. A invenção é um ato que transporta aquilo que foi efetuado fora do tempo histórico, reintroduzindo-a na temporalidade do acontecimento (Lazzarato, 2006:46). Aqui é onde podemos perceber como os jovens das favelas se transformam em figuras produtivas, pois que vivem uma materialidade que lhes impõe tantos limites, que precisam potencializar todas as suas forças pra não se deixar superar pelas adversidades. Assim é que a favela se transforma em território produtivo, porque a produção da vida nas favelas passa pela produção do comum. São as suas existências que produzem uma constante inovação. O novo ciclo produtivo é, assim, rizomático. Ao contrário da mercadoria industrial, nas sociedades cognitivas o que valoriza o capital é o compartilhamento. Assim, falamos de uma mercadoria que, quanto mais potência de negação da ordem capitalista tiver, mais produtiva se torna. O conceito de produção que lastreia essa afirmação não considera mais a fábrica ou a empresa como modelo. A produção nas sociedades contemporâneas pressupõe, como nos diz Lazzarato: “a articulação das relações de poderes múltiplos e heterogêneos (noopolítica, biopolítica e disciplina). E não podemos tampouco apreender os ‘sujeitos’ desta produção a partir do trabalho (seja cognitivo ou imaterial) Devemos, ao contrário, compreender os agenciamentos dos consumidores, das populações e dos trabalhadores” (Lazzarato, 2006:128). Lazzarato rompe a dimensão reguladora que existe na obra de Marx, mas rompe sobretudo com a experiência política do movimento operário do período fordista. É assim, sobretudo, que o sentido que Lazzarato dá ao conceito de trabalho permite-me sugerir que os jovens pobres que vivem em favelas tornam-se figuras produtivas; ao mesmo tempo que nos permite ver que, por isso, eles podem vir a constituir-se em figuras revolucionárias da pósmodernidade. Para que esses jovens possam ser entendidos como figura produtiva, foi preciso reconstruir toda a base de explicação da dinâmica capitalista pós-moderna; além disso, foi preciso que o trabalho, que já havia adquirido um novo estatuto em Negri – que propôs o conceito de “trabalho imaterial” – alcançasse o significado de “não-trabalho”. Ou, nas palavras do autor: “Se, como dissemos, as instituições não são a fonte das relações de poder, mas delas emanam, então não é mais das instituições que devemos partir para poder descrever a cooperação entre cérebros (...). Se, por outro lado, o trabalho não é o que constitui o mundo, mas é um modo de captura da cooperação entre os cérebros, não é mais do trabalho, nem de sua exploração, que devemos partir para compreender o capitalismo” (Lazzarato, 2006:98). 16 A dimensão que queremos resgatar é aquela que nós coloca Negri: “O segundo, e conseqüente, projeto de pesquisa desenvolvido por essa escola consiste na análise da dimensão imediatamente social e comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista contemporânea, e com isso propõe insistentemente o problema das novas configurações de subjetividade, em seu potencial de exploração e de revolução” (Negri, 2001:48). Há um intrincado fluxo de novas formas de práticas e relações sociais sendo movido e movendo esta rede que efetiva o comércio ilícito de drogas e que desfaz o sentido da produção de valor na pós-modernidade, afirmando o tráfico como um fenômeno situado na borda da modernidade e da pós-modernidade. Portanto, muito mais do que sua aparência inicial pressupõe, o fenômeno do tráfico de drogas fala também de um novo sujeito social que nasce atrelado às novas organizações sociais advindas da globalização. Mas será principalmente quando Negri apresenta as novas formas de dominação política desse modelo imperial, explicitando-as a partir do conceito de guerra imperial, é que a caracterização do que seja o espaço das vendas de drogas ilegais pode ganhar um novo sentido que o insere nas condições históricas assentadas pelo nosso modelo particular de desenvolvimento capitalista e as novas formas de produção, organização e reprodução das sociedades contemporâneas globalizadas. O capital vê-se numa cilada; e ele precisa capturar a vida e tudo o que diz respeito à subjetividade. Como capturar o que não tem forma e, ao mesmo tempo, pode assumir todas as formas? Como pegar o que não está, o que é devir e potência? Essa dinâmica também aparece como resistência, como a forma com que essa rede cria a desmedida, a potência (conceito de multidão de Negri, e que “nos permite também”, dirá Negri, “fundar uma teoria dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e independentes intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e independentes” (Negri, 2001:39). Assim é a saída possível para o capital passa a ser capturar a subjetividade, mediante a guerra. Nesse estudo, queremos resgatar a dimensão que Negri postula: “a dimensão imediatamente social e comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista contemporânea, e com(o) isso propõe insistentemente o problema das novas configurações de subjetividade, em seu potencial de exploração e de revolução” (Negri, 2001: 48). Essa guerra, contudo, não são as guerra de instituição das soberanias modernas, mediante as quais se construía o sentido de nação (do que é próprio para o outro, o externo). A guerra que subjuga as subjetividades tem de interpor-se no processo da vida das figuras produtivas; só assim se lhes pode impor limites, sugar-lhe a inovação. A guerra transforma- 17 se em biopoder; e os traficantes transformam-se, de pobres, em multidão – idéia que desenvolvo no capítulo III. E é quando a produção da subjetividade se transforma em produção econômica, que o tráfico transforma-se em espaço produtivo. O tráfico é uma das expressões biopolítica da resistência dessa população. Não há separação entre narcofavela (O número de jovens que passam pelo tráfico!) e os moradores das favelas. O tráfico é a expressão das possibilidades de resistência que essas populações vão produzindo ao longo de sua existência, mas sobretudo ao longo dos enfrentamentos violentos com que se vêm tendo de ater-se há séculos. E as favelas aparecem afinal em toda a sua força produtiva e de resistência, abrindo espaço para que os jovens do tráfico também possam emergir no seu potencial de resistência. Podem-se portanto identificar os diferentes modos mediante os quais esses espaços do tráfico apanham esses meninos, mas também os modos mediante os quais esses meninos apanham o tráfico e resistem através dele. O tráfico resiste porque enfrenta e faz a guerra em campo aberto. Os conflitos permanentes que obrigam esses jovens a estar alerta dia e noite transforma-se, assim, numa forma de vida no seu estado extremo de sobrevida e resistência. Essas formas de vida produzem uma estética: suas maneiras de ver sua vida, de protestar sua vida, que é capitalizado pelo capital. E se, por um lado, essa criação pode assim ser apropriada, ao mesmo tempo essa estética tem nela incorporada as referências da favela e de suas lutas. É aqui, afinal, o campo no qual esses jovens resistem; e dessas formas de vida também nasce uma força: potência da resistência. O tráfico incorpora e dissemina assim uma estética revolucionária, porque fala da resistência, fala das lutas cotidianas com que essa população enfrenta o Estado na sua ‘negatividade’ – porque são os jovens que enfrentam efetivamente esse Estado na sua faceta mais violenta. E aqui aparecem meus heróis, quixoteanos, que brigam contra moinhos de vento; brigam na verdade para conseguirem ser incorporados ao sistema. A forma como se dá essa incorporação ao sistema (pelo trabalho e pelo consumo) traduz-se tanto no lugar de exploração extrema no qual se encontram esses meninos (todas as formas de exploração se conjugam no espaço de trabalho do tráfico), como – e sobretudo – é o ápice daquilo que a pós-modernidade traz, de subjugar toda a potência de vida possível para esses jovens, que o tráfico lhes permite ter. Ao levá-los ao limite, a dinâmica capitalista provoca uma desmedida, que será capturada pelo sistema comercial e que, ao mesmo tempo, abre fissuras na ordenação da sociedade. Aos pobres, resta a possibilidade do porvir; mas aos pobres que precisam defender a existência empunhando armas, nem isso resta. 18 Esse estudo tem assim o objetivo de apreender o momento em que esses jovens viram quimera, o animal que não tem forma, tantas são as formas que pode assumir ou, na definição do dicionário Houaiss, “qualquer representação de animal fantástico, composto de partes de animais diferentes, sejam eles reais ou imaginários.1” Em termos generalizados, pode-se dizer que, dentre todas as estratégias que essas populações têm de produzir para a sobrevivência, o narcotráfico é a estratégia que mais rapidamente as levam para o limite. Os jovens das favelas pegam em armas na continuidade e no acirramento de um processo que os obrigaram durante anos, décadas e séculos a se protegerem contra a violência do Estado e que hoje se transformou na violência do Império. No capítulo I desenvolve-se a discussão que se faz no campo da criminologia crítica. Para subsidiar essa discussão tomo como primeira referência os pensamentos de Michel Foucault. É em Foucault que encontro a relação entre o poder, as regras de direito e os discursos de verdade. Para buscar essa relação, inicio o capítulo I com uma reconstituição da história do processo penal – uma genealogia que vai me permitir, mais adiante, construir uma crítica do discurso de combate às drogas ilícitas, considerando que “apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas (no nosso caso as práticas penais) tiveram como objetivo mascarar” (Foucault, 11:1999) pois, para Foucault, não há exercício do poder sem uma certa “economia dos discursos da verdade que funcionam nesse poder” (Foucault: 1999:28). Com isso, viso a resgatar a sociologia dos sistemas penais vistos como sistemas de punição concretos e práticas penais específicas e a despir a “pena”, instituição social, de um seu viés ideológico incorporado ao seu escopo jurídico. Ou, dito de outra forma, essas referências teóricas trazem ao debate o modo como se produzem os discursos de dominação (“mecanismos de produção da verdade”) sobre os jovens das favelas a partir do tráfico de drogas ilícitas, capazes de produzir práticas de dominação cujos efeitos são sempre muito potentes. Após percorrer essa investigação teórica sobre a penalização, incluímos aqui os estudos de Loïc Wacquant sobre a passagem da rede de segurança do Estado-provedor para a constituição de uma rede disciplinar do Estado, através do que o próprio autor chama de uma “política estatal de criminalização das conseqüências da miséria”. Pode-se dizer que essa equação resume esse debate hoje, em termos de “desaparecimento do Estado 1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em http://biblioteca.uol.com.br/. 19 econômico, diminuição do Estado social e glorificação do Estado penal” (Wacquant, 2003:147). Em seguida, introduzo a discussão específica sobre o tráfico de drogas, como um elemento fundamental de legitimação dos discursos subjacentes às práticas de repressão contra os setores empobrecidos das sociedades; especificamente no caso do Brasil, onde o combate ao tráfico de drogas vem-se constituindo como a forma mais efetiva de produção de um discurso de justificativa para a contenção repressiva dos jovens pobres favelados, com encarceramento maciço ou mesmo com execuções. O terceiro momento do Capítulo I terá, como principal referência, Rosa Del Olmo. No seu livro A face Oculta das Drogas, Del Olmo expõe o problema das drogas sob uma abordagem social e econômica, traçando as transformações que a política criminal das drogas sofreu em nosso continente dos anos 40/50 até a década de 80. Para a autora, os discursos em torno das drogas vêm sendo simbolizados nas sociedades contemporâneas mediante muitos preconceitos moralistas e dados falsos e sensacionalistas. Após essa historização, em que acompanhamos Del Olmo, encontramos afinal a ponte que leva esses estudos até a realidade brasileira, mediante o trabalho de Vera Malaguti Batista. A partir de estudos feitos na 2ª Vara da Infância e da Juventude e no Juizado de Menores do Rio de Janeiro, que demonstram que a droga é o principal fator de criminalização da juventude, e que a maioria desses jovens vêm das favelas e bairros pobres, Malaguti pode concluir que “o mercado de drogas ilícitas propiciou uma concentração de investimentos no sistema penal, uma concentração dos lucros decorrentes do tráfico e, principalmente, argumentos para uma política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos contra as classes sociais vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos, sejam integrantes indesejáveis no Hemisfério Norte” (Malaguti, 2003:135). Volto assim ao objetivo central dos meus estudos: comprovar a premissa de que o tráfico de drogas tem servido para uma política permanente de controle social e dominação política das camadas sociais empobrecidas. Essas são as formulações da escola da criminologia crítica que me possibilitam uma nova síntese entre criminalidade e pobreza, que explica a política de combate às drogas como uma política que se inscreve nas formas de dominação e controle social. Parto afinal dessa formulação – a política de combate às drogas como argumento que faz emergir um potente discurso que amplia e mantém a segregação econômica e social nas sociedades contemporâneas – para, no capítulo III, achar a interseção entre o debate teórico mais amplo e as formas mediante as quais o tráfico vem sendo combatido pelo Estado brasileiro, na perspectiva da guerra como biopoder, mostrando como esses 20 discursos, que justificam o combate às drogas, produzem formas e práticas de controle violentas para ampliar e manter a segregação dos espaços das favelas e, sobretudo, para manter dominados os jovens negros e pobres. 21 CAPÍTULO I DESCONSTRUINDO OS DISCURSOS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS: drogas, tráfico e economia mundial Introdução O ponto de partida do debate que pretendo desenvolver nesse trabalho é o de que o narcotráfico, para se efetivar, reconhece e utiliza os mesmos canais por onde se estabelecem as dinâmicas de produção econômica, integrando-se nesse sistema global. Dessa hipótese decorre outra, que afina ainda mais nosso campo de estudo: apostamos em que a configuração com que essa comercialização ilegal toma nas favelas do Rio de Janeiro corresponde não só aos mecanismos de produção mundial, mas, principalmente, revela características da dominação posta nas novas bases de organização global marcada pelo pós-fordismo. Ao partir dessa premissa incorporamos portanto uma outra preocupação à nossa discussão: o debate sobre o que seja essa nova dinâmica de produção econômica atual. Preliminarmente, caracterizamos essa dinâmica como resultante das mudanças que se vêm construindo nas últimas décadas e que dizem respeito a um novo padrão cultural. Esse padrão emerge de uma nova constituição subjetiva que não pode ser pensada sem referência às mudanças que têm seu cerne no mundo do trabalho. A pós-modernidade nos impõe novos conflitos, frutos de diferentes ciclos de luta que incidem na década de 60 e continuam até os encontros do Fórum Social Mundial; da aceleração tecnológica com a disseminação de objetos técnicos cada vez mais presentes no nosso cotidiano; da intensificação dos ritmos e de uma instantaneização generalizada que institui uma nova relação tempo-espaço, pela qual o global passa a caber no local. Buscamos, dessa forma, inserir o estudo do tráfico de drogas ilícitas numa perspectiva que permita observar as interações entre várias flagrantes formas de exploração e as mais contemporâneas formas de circulação, informação e comunicação, que dão suporte à lógica imperial hoje dominante. A primeira hipótese desse trabalho é, assim, a de que o narcotráfico se explica a partir da relação que estabelece com a dinâmica de produção econômica, e que repete a lógica de dominação e subordinação mundial capitalista. 22 Mas a escolha de partir das referencias contemporâneas de explicação do mundo se justifica, sobretudo, quando privilegiamos tratar o tema do narcotráfico através do estudo do fenômeno específico com que esse se faz no momento da sua venda no varejo dentro das favelas do Rio de Janeiro. O encontro com os dados da realidade nos abre a possibilidade de identificar como essas formas se compuseram: a materialidade cotidiana desses jovens conjuga-se a um mercado mundializado que tende a desenhar seus contornos geográficos a partir dos interesses econômicos. Assim, esses países periféricos só podem se conectar a partir das suas vulnerabilidades históricas, oferecendo ao sistema um contingente de jovens, pobres, estigmatizados, mas que, ao mesmo tempo, também se inscrevem no público consumidor dos ‘mundos’2 produzidos na pós-modernidade. O fator renovado que persiste aqui é o sentido de “vazar de volta”, de fazer com que – ao jogar suas vidas ao limite – esses jovens tornem-se produtivos. O tráfico é ao mesmo tempo criação e subjugação, vida e morte. Essa conjugação de realidades sempre em conflito é o campo de explicação do narcofavela3. Um contingente de jovens pobres, com baixa escolaridade e desqualificados profissionalmente, aos quais o tráfico faz ascender a um lugar diferente daqueles aos quais poderiam jamais ascender, consideradas as suas possibilidades ordinárias. O tráfico de drogas – ao menos momentaneamente – lhes dá status, força, poder... Tudo que aqueles jovens querem. O narcofavela se transforma em um espaço produtivo não só porque conecta esses jovens à rede do comércio internacional de drogas, mas também porque acaba por instituir um simbólico que remete às formas extremas do tráfico: força e poder. O seu estilo de vida produz novos simbolismos, além daqueles que o jovem deseja ostentar com as marcas que usa. O tráfico tem uma linguagem própria, tem um mundo próprio, e a partir daqui valorizam-se todas as conexões que passam por ele. O tráfico de drogas vende filmes, programas de televisão, livros, pesquisas. 2 Para Lazzarato, “No capitalismo contemporâneo, a empresa não existe fora do produtor e do consumidor que a representam. O mundo da empresa, sua subjetividade sua realidade confunde-se com as relações que a empresa, os trabalhadores e os consumidores mantêm entre si”(Lazzarato, 2006 :99). 3 Ver adiante, sobre o termo “narcofavela”. Mas o termo já é necessário aqui, para diferençar o comércio global mediante o qual o narcotráfico se efetiva, da expressão que designa a venda de drogas ilícitas nas favelas cariocas. 23 Mas o narcofavela também aparece como o lugar onde o biopoder se revela, emergindo como a expressão mais particular das formas com que a pressão secular se exerce sobre uma determinada população e, mais especificamente, se exerce sobre seu segmento mais jovem. O narcofavela será o espaço onde se evidencia a interseção dos mundos pré e pósmoderno. O narcotráfico é uma possibilidade de esses jovens transitarem entre diferentes identidades, quando lhes abre o acesso ao consumo e os torna figuras produtivas. Mas o narcotráfico também explica a guerra que se move contra as populações empobrecidas. Assim, o narcofavela é “a contradição última, com seu conteúdo particular ou exclusivo, do funcionamento dinâmico global” (Zizek, 2003:54). É aqui também que o capital expõe sua contradição, pois o que capital tem de negar a essas populações é ao mesmo tempo aquilo de que o capital precisa hoje para se valorizar. Assim é que esse espaço aparece como explicitação das contradições mais atualizadas do sistema: do desenvolvimento tecnológico à reestruturação das relações salariais; da exclusão social à democratização das informações. Ao mesmo tempo em que também é a explicitação da forma mais atualizada com que a política aparece hoje, como biopolítica, como dominação de toda a vida. Assim é que é a guerra ocupa todos os lugares. Uma guerra particular, que se move por dentro do cotidiano dessas populações e lhes condiciona as formas de vida, num cenário onde o projeto de dominação impõe-se na sua forma mais violenta. Numa recente pesquisa realizada sobre juventude e narcotráfico, o autor aponta para o fato de que os índices de violência dos últimos anos no Rio de Janeiro podem ser considerados equivalentes aos que se encontram em situações de violência extrema. Segundo dados publicados em Dowdney (2003), as causas externas foram responsáveis por 54% de todas as mortes de menores de 18 anos na cidade do Rio de Janeiro em 2000, sendo que 57% dessas causas externas foram ferimentos provocados por balas. “Mais chocante ainda é o fato de o número de mortes de menores de 18 anos provocadas por armas de fogo no estado do Rio de Janeiro ser pior do que em algumas regiões do mundo que satisfazem a definição tradicional de ‘conflito armado ‘ou ‘guerra’”(Dowdney, 2003:175). Segundo esse estudo, que incluiu exércitos e grupos insurgentes que recrutam “criançassoldados”5, de dezembro de 1987 a novembro de 2001, 467 crianças e adolescentes 5 A classificação de crianças e jovens em situação de conflitos como “criançassoldados”será posteriormente refutada pelo próprio Dowdney (2006) a partir de uma pesquisa em onze países que estudou a participação de crianças em situações de risco e 24 morreram no conflito do Oriente Médio; e, no mesmo período, morreram 3.937 crianças e adolescentes, por armas de fogo, na área do Grande Rio de Janeiro. Na mesma publicação, fica demonstrado que há relação direta entre essas mortes e a ação policial de repressão ao tráfico de drogas, como nos diz o autor: “acompanhando o envolvimento crescente nos combates armados entre facções e com a polícia, crianças e adolescentes também se tornaram alvos legitimizados de execuções policiais, sendo alvejados abertamente durante os confrontos”(Dowdney, 2003:175). Realizei, dessa forma, um percurso que buscou, inicialmente, distinguir essa análise que aqui se constrói, entre outras análises que culpabilizam os jovens pobres integrantes do tráfico pelo nível de violência que esse comércio tem produzido nos últimos anos, principalmente no Rio de Janeiro. O que vimos e as estatísticas revelam é que, ainda que sejam protagonistas, as maiores vítimas do tráfico de drogas ilícitas são os mesmos jovens que acabam por ser protagonistas, sim, mas só da própria morte. Esses jovens são atingidos por uma violência policial ostensiva, que acaba por resultar no afloramento de algum tipo de resistência. O risco de morte a que estão necessariamente submetidos, por ocuparem o lugar que ocupam na dinâmica social, e participem ou não participem do tráfico, levam os jovens a buscar construir formas de defesa. Para Peralva, um inevitável risco de morte ligado à violência urbana em geral, e intensificado nas experiências de vida dos jovens favelados, os levaria a procurar alguma espécie de “experiência controlada de risco”. O fundamento que a autora atribui à necessidade de uma ‘experiência do risco’ seria, sobretudo, o de uma contraposição ao sentimento do risco de morte produzido pela intervenção arbitrária e violenta da polícia nos morros. Assim define a autora: “Estamos profundamente convencidos de que essa forma de intervenção policial violenta ao extremo, e também de uma enorme ambivalência, posto que sua outra face é a corrupção, constitui um elemento fundamental na formação do sentimento de risco de morte que afeta de forma constante todo jovem favelado. Ora, uma das modalidades possíveis de responder individualmente a esse risco é justamente o engajamento no narcotráfico (Peralva, 2000:133). fixou-se a sigla COAV. “COAV é a sigla em inglês, de Crianças e Jovens em Situação de Violência Armada Organizada’, termo que identifica crianças e jovens empregados ou participantes de grupos organizados que praticam violência armada fora das situações tradicionalmente reconhecidas como guerras e conflitos, mas com elementos de estrutura de comando e exercendo alguma forma de poder sobre território, população local ou recursos”(www.coav.org.br), quadro que corresponde ao do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. 25 O que interessa a esse estudo é identificar os meios pelos quais o narcotráfico ganha forma na realidade particular brasileira: mediante extermínio atroz dos nossos adolescentes e jovens pobres e negros, deixando-os encurralados frente à vida sem alternativas que lhes cabe como única vida possível. A questão que se coloca portanto não é “por que uns jovens das favelas entram no tráfico e outros não?”. A questão que se coloca é procurar e achar os elementos que explicam o aparecimento do narcofavela como fenômeno urbano atual e como se entremeiam, por dentro dele, vetores de dominação ao mesmo tempo global e local. O que esperamos com esse trabalho é deslocar o olhar que atinge esses jovens, e os condenam aos algozes da violência, para um outro que desvele os elementos que constituem as entranhas desse fenômeno, na sua força de opressão profunda, com que marca o desenvolvimento dos países da América do sul, nas marcas de um projeto de dominação marcado pela exclusão, atualizado na passagem do fordismo para o pósfordismo. Para isso a análise se situa, num primeiro momento, no marco do modelo de acumulação capitalista, mas numa perspectiva de entender como se dão as novas formas de produção do mundo, tendo o conceito de trabalho imaterial e as formas com que os sujeitos sociais vão se constituir nesse processo como uma premissa fundamental da discussão. Nossa perspectiva é a de que, ao desvendar essas novas formas de dominação, nas quais essa ordenação mundial se afirma, possamos inscrever a discussão em referenciais teóricos que partam do princípio de que as novas formas de produção imaterial originadas no período pós-industrial acarretam, necessariamente, novos processos de subjetivação no sujeito social que as vivenciam. Mas, ao mesmo tempo, buscamos identificar nessa dinâmica também as particularidades que levam os jovens a fazerem dessa atividade sua forma de vida, onde é preciso seguir também um caminho que possa elucidar a constituição dessas manifestações do tráfico por dentro das favelas. Tentamos diferenciar a discussão em dois aspectos: a rede mundial de produção e comercialização de drogas ilícitas, de um lado e, a forma com que esse comércio se manifesta nas favelas do Rio de Janeiro, na sua venda a varejo, por outro. Só após o desenvolvimento das questões gerais é que arriscaremos, ainda que de forma preliminar, um olhar que nos leve para a realidade particular das favelas, primeiro buscando identificar as formas com que essa atividade, da venda ilegal de drogas dentro das favelas, interage 26 na produção das estratégias de sobrevivência de seus moradores, interferindo nas suas práticas políticas e nas experiências de organização comunitária, na relação com o poder público e em todas as manifestações culturais produzidas dentro das favelas. Posteriormente, visando identificar até que ponto os jovens que integram o tráfico assumem os interesses coletivos, que se gesta no cotidiano das favelas, para além do interesse imediato com o seu lucro (do tráfico). Nesse momento é que vamos incorporar, de forma mais direta, nossa vivência profissional. O interesse pelo narcotráfico surge a partir da experiência profissional vivida, durante quase dez anos, nas principais favelas do Rio de Janeiro. A possibilidade de entrar em contato com essas populações - partilhando um cotidiano moldado em múltiplos processos de construção das suas vidas, referências plurais, nas quais tecem suas estratégias de sobrevivência em percursos singulares mas também marcados pelo repertório das favelas, de imensa densidade cultural - tornou-se uma experiência definitiva na minha vida profissional e, nesse cenário, a dinâmica das relações do narcotráfico com os processos de produção dos espaços coletivos das favelas marca, de forma ainda mais contundente, esse encontro. As questões que foram aparecendo para mim ao longo do trabalho junto a essas populações teve continuidade através do desenvolvimento de uma pesquisa de campo realizada na comunidade do Tuiuti, em São Cristóvão Os resultados advindos tanto das investigações informais produzidas no contato com os moradores das favelas, como daquelas decorrentes da realização da pesquisa, serão usados para o desenvolvimento do trabalho. I.1) Buscando um ponto de partida para pensar o tráfico de drogas Ao surgimento, consolidação e expansão do comércio ilegal das drogas e, sobretudo, diante da forma específica com que uma faceta desse comércio irá se conformar: na composição de pequenos grupos de jovens armados dentro das favelas e as conseqüências disso na cidade, faz com que esse fenômeno se torne objeto de estudo de várias áreas do conhecimento. O narcotráfico pode, assim, ser identificado como um fenômeno atual (ainda que se pareça como conseqüência de uma história da criminalidade que deita raízes em meados do século passado6) que adquire relevância e conformação de fenômeno violento, da forma extremada como o vemos hoje, a partir da década de 80. 6 Ver a esse respeito Cidade Partida de Zuenir Ventura. 27 Dessa forma, inicio o trabalho com um resgate inicial da produção sobre o tema nos últimos anos, onde já prevalece um notável avanço nos estudos, mas ainda transparece seus limites. Essas dificuldades se originam na dificuldade de entrar em contato com dados empíricos confiáveis, tanto quando se trata da liberação de dados pelos órgãos oficiais do governo, cujo acesso é controlado e limitado, quanto pela dificuldade de coletar dados nas fontes primárias - que requer o contato direto com o universo do crime - empreitada que necessariamente apresenta inexatidões e riscos inevitáveis para seus pesquisadores. A tendência da maioria dos pesquisadores de generalizar fatos e deduções que são de uma realidade particular, como características do narcotráfico em geral e, a acentuada compartimentalização das abordagens e visões teóricas sobre o tema, muitas vezes descaracterizando a complexidade no qual o mesmo está submergido, também aparecem como limites nos estudos que vêem se produzindo. E, por fim, a especulação generalizada, sobretudo depois que esse passa a se constituir como assunto predominante da grande imprensa (jornais, telejornais, revistas), dificulta uma triagem mais rigorosa sobre a veracidade do conteúdo das informações.7 Também entre as pesquisas desenvolvidas sobre a economia das drogas há muita discrepância em relação a números e resultados, na maior parte das vezes havendo contradições entre as quantidade de drogas que aparecem estando referidas a produção e ao consumo e mesmo em relação às cifras que esse mercado movimenta. Entre esses estudos cito Kopp (Kopp: 1998), cujo maior qualidade é a de conseguir analisar os fatores 7 Para Kopp, a ilegalidade na qual as mercadorias circulam acarreta numerosas dificuldades metodológicas (Kopp, 1998:15). Mesmo quando se trata de dados sobre a economia das drogas, vários limites vão aparecer. Para o autor “A comparação entre as cifras de consumo e de produção é perturbadora. A produção mundial de drogas é muito claramente superior ao consumo. No caso da cocaína em 1990, a primeira cifra é o dobro da segunda. Já no da heroína, 400 toneladas seriam produzidas a cada ano e apenas 20 toneladas consumida apenas nos Estados Unidos, sem que sejam conhecidos outros países capazes de absorver o resto de toda essa heroína (Kopp, 1998:16). Dessa forma, explica o autor, após descontar a quantidade consumida na europa e nos estados unidos, restariam cerca de 300 a 400 toneladas de heroína ‘cujo destino permanece misterioso.’(20) Kopp parece concordar com os estudos de Labrouse (Labrousse, Alain. Géopolitique de la drogue. Les contradictions des politiques de guerre à la drogue. Futuribles, n. 185, pp. 9-23, mars 1994) que aponta para que esse consumo esteja acontecendo nos paises de terceiro mundo, sobretudo o Paquistão, onde se calcularia um número de um milhão e meio de consumidores. Contudo, para o autor pode estar acontecendo uma superestimativa das cifras do NCIS (International Narcotic Control Strategy Report) sobre a produção das drogas. Segundo Kopp, a má qualidade dessas estatísticas relativas às drogas tem a ver com o descrédito do NCIS, onde “...as grandes diretrizes da política externa são tomadas sem que o NCIS seja consultado (Kopp, 1998:20). 28 que dificultam mapear com precisão o mercado das drogas no mundo hoje, contestando, inclusive, algumas das constatações mais homogênea que aparecem nesses estudos, como por exemplo que a produção das drogas só se realiza (ou de forma preponderante ) na América Latina, colocando os Estados Unidos como o terceiro maior produtor de maconha do mundo. Assim o autor assiná-la entre outras dificuldades a de se computar os mercados in-doors (dentro de casa) como os existentes na Holanda, a produção residual de cocaína de pequenos países, além dos limites de se aferir as transações de matériasprimas pelos canais ilícitos. Em que pese esses limites, vários estudos irão identificar a importância do surgimento desse fenômeno nos grandes centros urbanos e suas conseqüências sociais e várias abordagens teóricas diferentes irão se construir na busca de explicá-lo. Dada a completude do trabalho realizado por Lima; Misse e Miranda (2000), sobre a questão da violência e criminalidade dentro do campo das ciências sociais, escolhemos partir desta fonte para empreender nossa revisão bibliográfica. Os autores identificam que as primeiras pesquisas publicadas que inauguram o campo temático no Brasil ocorrem na 1ª metade dos anos 70, e nos seus estudos irão classificar as principais produções de todo o período até 2000, em áreas e subáreas temáticas, a partir de uma abordagem sistemática que considerou variáveis seletivas como autores mais citados nas resenhas e as relações bibliográficas e indicações de novas bibliografias por estes autores. Excluem-se deste apanhado trabalhos não acadêmicos e trabalhos de outras áreas de conhecimento que não as ciências sociais. A pesquisa que resultou na classificação exposta a seguir foi feita nos principais programas de pós-graduação que incluem linhas de pesquisa sobre o tema e junto ao Urbandata (Universidade Candido Mendes). Classificação da temática em áreas e subáreas, segundo os autores: A Temática da Delinqüência e da Criminalidade Violenta 1.a) delinqüência infanto-juvenil e a categoria de ‘menor’ 1.b) aumento da criminalidade urbana, mudanças de padrão e perfil social dos acusados e seus efeitos de violência 1.c) a questão do crime organizado e do tráfico de drogas A Temática da Polícia e do Sistema de Justiça Criminal A Temática das Políticas de Segurança A Temática da Violência Urbana (Imagens, Práticas e Discursos). 29 Podemos, a partir desta classificação, fundar várias relações com os assuntos propostos pelos autores e a nossa temática específica, tendo em vista que o tráfico de drogas guarda uma interseção com todas estas subáreas, como nos diz o autor: “a grande maioria dos estudos (...) tende a confirmar e deslindar um complexo dispositivo de produção da violência nas grandes cidades brasileiras, envolvendo delinqüência convencional, tráfico de drogas, grupos de extermínio, corrupção policial e de agentes penitenciários, arbitrariedade e violência da polícia e práticas de justiçamento em acertos de conta entre traficantes, de traficantes com informantes da polícia ou com delinqüentes convencionais ou traficantes” (idem, 50). As perspectivas de abordagem do tráfico podem passar por diferentes campos de estudo, mas como já assinalado, não nos interessa abordar esse fenômeno nem numa perspectiva que abra mão das questões particulares, nem tão pouco uma que prescinda dos aspectos gerais. Aqui, mesmo considerando apenas a subárea da “a questão do crime organizado e do tráfico de drogas”, já percebemos o quão extensa torna-se a subárea, ao incorporar todos os seus possíveis vieses. A vasta área de interlocução do tráfico com os aspectos da questão social e da relação de poder, inclusive na sua dimensão institucional, implica que direcionemos ainda mais a dimensão do que podemos trazer nessa revisão, buscando o sentido dela. Fato é que o olhar que debrucei por sobre vários estudos, nas mais diferentes abordagens sobre o tráfico de drogas, pouco me ajudaram a construir o percurso que pretendo nesse trabalho, haja vista a direção teórica que escolhi trilhar. O que não significa desconsiderar o papel que esses precursores tiveram na construção do debate no Brasil. Michel Misse é um dos precursores da discussão da criminalidade no Brasil, mantendo sua produção sobre o tema até hoje, passando por um enfoque sociológico que aborda desde o perfil social dos infratores (Misse et alii, 1973) até a abordagem da mudança de padrão na criminalidade urbana (Misse, 1997). Na sua abordagem sociológica Misse enfatiza a dimensão mais abrangente da violência nas desigualdades sociais do Brasil, o que o autor vai chamar da acumulação social da violência (Misse, 1999, 2003). Além disso, os estudos de Misse alcançam análises de outros autores do campo da violência e criminalidade, nos oferecendo um panorama, em sua maioria crítico, da produção temática no Brasil nos últimos anos (Misse, 1995 1995a, 1996), além das discussões específicas sobre o tráfico de drogas (1997, 2003 a). Mas a pesquisa pioneira que marca o estudo da organização social do tráfico nas favelas e morros cariocas encontra-se, contudo, em Alba Zaluar, realizada na Cidade de Deus, em 30 1985. É na tentativa de buscar o contexto social específico onde à venda no varejo das drogas ilícitas se desenvolvem, a partir de uma abordagem antropológica que Alba Zaluar (1995, 1994, 1997, 1999) desnuda o universo destas relações. Contudo, se hoje os estudos sobre o narcotráfico já se tornaram campo consolidado de pesquisa, esses ainda tendem a assumir ambigüidades suficientes a ponto de não ajudar a consolidar um campo de atuação, para além das tenções explícitas do confronto aberto que se produz nas favelas, que possa instituir novas correlações de força mais favoráveis a esses jovens. Dentre as matrizes teóricas sob as quais esses estudos vão se produzir podemos distinguir, ainda que inicialmente, pelo menos quatro vertentes. Uma dessas vertentes é o campo que busca inserir essa discussão na estrutura mais geral da lógica capitalista, associando diretamente esse modelo de acumulação à possibilidade do surgimento e consolidação do narcotráfico. Dentro desse campo destacam-se as análises de matrizes marxistas e estruturalistas, incluindo as que irão enfocar o narcotráfico pelo viés econômico, buscando a configuração geopolítica desse comércio e valendo-se das cifras de produção, comercialização e rotas do tráfico em nível mundial, associada àquelas elaborações que entendem a participação desses jovens moradores das favelas nesse comércio ilegal como resultado direto das desigualdades sociais, sendo vista como uma alternativa à exclusão quase absoluta a que esses estarão submetidos. Inclui ainda os estudos que buscam traçar uma relação entre a produção das drogas ilícitas e o processo de exploração e violência dos trabalhadores do campo. O segundo campo refere-se à discussão do narcotráfico conjugada à discussão da criminalidade brasileira, inserida nas teorias sociológicas em geral, passando pelo surgimento e pela história das principais organizações do crime. Alguns desses estudos têm como pressuposto as “teorias da criminalidade”, cujas formulações, sobretudo européias e norte-americanas, datam do início do século XX e trazem um vasto leque sociológico e antropológico para descrever e explicar o crime e a criminalidade. No Brasil, essa produção da criminalidade se torna relevante apenas a partir da década de 70, adquirindo por isso, matizes mais progressistas postas pela influência nesse período das formulações críticas sobre as teorias existentes, a partir das elaborações de Michel Foucault. Na terceira distinção, ainda fundamentada na discussão da estrutura socioeconômica, identificamos aqueles autores que vão trabalhar o tráfico de drogas na sua relação mais específica com o Estado. Essa composição ganha contornos não só como expressão da lógica do tráfico como comércio ilegal e todas as implicações disso, como essa composição 31 também engloba a discussão sobre política nacional antidrogas e sobre política de segurança pública. O quarto e último campo refere-se àqueles estudos que buscam a conformação singular que o tráfico de drogas ganha nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos. Esse campo incorpora fundamentalmente as análises de matrizes antropológicas, definindo o narcotráfico como uma complexa conjunção de diversos fatores, especialmente a expressão mais particular e múltipla dos espaços das favelas e periferias. Dessa forma, o tráfico adquire contornos desse quotidiano particular: espaço da privação e ao mesmo tempo de uma multiculturalidade, de relações coercitivas, mas também de estratégias e acordos de sobrevivência. Podemos incluir nesse campo tanto as discussões que incorporam o debate sobre as possibilidades de organização política e social das populações de baixa renda nos centros urbanos e as conseqüências da interferência do tráfico nessas práticas, como também o estudo mais contemporâneo sobre a juventude, os processos de construção de identidade e das questões simbólicas, que apontam para uma legitimação, nas suas construções, das ações do tráfico e da violência em geral. Há ainda outras abordagens que aparecem na discussão do tema, como aquelas que se referem às descrições da estrutura organizativa do tráfico, à realização de pesquisas empíricas com o levantamento de dados sobre mortalidade de jovens; e as que exprimem a relação direta com o Estado, ditada pela política nacional antidrogas (de caráter proeminente repressivo e seus efeitos) e, também, na relação com as políticas sociais em geral. De forma menos predominante podemos encontrar ainda discussões específicas, como: interseções do tráfico e educação, interseções do tráfico com a cultura popular, interseções do tráfico com análises psicológicas e, por fim, os estudos de caso. Os estudos sobre o tráfico de drogas se intensificam nos últimos cinco anos, impulsionados pela necessidade que emerge, sobretudo no Rio de Janeiro, de atender a um crescente grau de violência associado ao comércio ilegal das drogas. Essa profusão de pesquisas e publicações sobre o tema chega mesmo, em alguns momentos, a parecer excessiva, mas, ainda assim, se vêm mostrando ineficazes na capacidade de subsidiar propostas que ajudem a enfrentar o problema. I.2) Narcofavela: encontro entre o local e o global O que é central nesse percurso, para sairmos do campo das especulações e entrar no âmbito da constituição subjetiva, é a tentativa de dar maior exatidão ao termo narcotráfico. 32 O principal problema que vimos identificando no uso do termo é a tendência a considerar-se toda a grande teia e extensão desse comércio ilegal, a partir de apenas uma de suas manifestações, como se a cadeia do narcotráfico iniciasse e terminasse dentro das favelas. Esse enfoque reduz a totalidade da realidade a uma de suas expressões particular, o que induz todos a desassociar as formas distintas pelas quais esse comércio das drogas se efetiva. Para usar com mais precisão o termo narcotráfico, é necessário perceber o conceito dentro de rede produtiva global, como espaço de trabalho (valoriza o capital), mas também de vida e de luta. Ou seja o termo narcotráfico deve ser usado, necessariamente, de modo que inclua (não que apague ou tente apagar) a relação indissociável que há entre esse comércio ilegal e a lógica de produção global capitalista, com todas as implicações advindas dessa relação. O termo narcotráfico aparece então numa perspectiva que permite abordar o fenômeno na sua totalidade: uma intrincada teia que se emaranha no ciclo de produção global, mas sem que isso oculte as particularidades e de modo que permita estabelecer uma diferenciação nominal entre o que estaremos chamando “narcotráfico” e o que se entenderá, aqui, como uma das expressões – particular e conjuntural – desse fenômeno: o modo como o comércio de drogas ilegais se faz no varejo da venda das drogas nas favelas do Rio de Janeiro, tendo como protagonistas os seus jovens pobres, alvo prioritário da política pública de repressão às drogas. A manifestação particular do tráfico de drogas ilícitas, como a vemos hoje nas favelas, tem assim o cerne da sua explicação numa dinâmica produtiva que exclui esses jovens da possibilidade de compartilhar de forma efetiva a produção coletiva material e espiritual realizada globalmente e, por outro, a possibilidade de incorporá-los ao sistema integrandoos, subordinadamente, nessa rede, mas impondo-lhes, mais uma vez o custo dessa dinâmica. Historicamente, a possibilidade de continuidade do sistema capitalista monta-se num decurso que se efetiva na combinação produtiva dos meios de produção (capital fixo) e da força de trabalho. Relação esta que permite de forma concomitante à criação de riquezas a concentração dessa pelas classes detentoras do poder econômico e político, retroalimentando a lógica capitalista. Mas também esse sistema apresenta pontos de esgotamento que têm sido respondidos e superados nesse um século e meio de capitalismo, engendrando diferentes manifestações dessa dinâmica. Formas cada vez mais complexas, à medida que causas e conseqüências ascendem em formas novas e indistinguíveis. Nesse momento de transição, vivemos mudanças paradigmáticas e conceituais que incidem de forma arrasadora na lógica anterior, admitindo formas inéditas 33 de valorização do capital, mas que, por sua vez, não acabam com a relação de subordinação ao capital de grande parcela da população mundial. O conceito de globalização interfere definitivamente na forma como dá-se essa subordinação, fazendo emergir contextos inusitados na possibilidade da interação do global com o local. Assim, essa manifestação mais evidente (e estereotipada) do narcotráfico se combina com a nova dinâmica produtiva global, para gerar novas estruturas, objetos e prática, e que têm por isso elementos que vão para além ou aquém de uma ou de outra realidade separadamente. Na tentativa de não desconsiderar nem essa especificidade nem a complexidade que emana dela como uma cultura híbrida que conjuga características díspares da realidade, cunhamos uma nova expressão para designar o fenômeno encontrado nas favelas, diferenciando-o do narcotráfico em geral (ainda que como vimos esse só adquira sentido a partir dele); esse termo é narcofavela8. Parece válido supor que o narcofavela – como fenômeno social datado no tempo e inserido numa história – é uma manifestação importante que decorre dos processos de apropriação e expropriação da riqueza material e imaterial, ao longo de desenvolvimento dessas nações, como se sucedeu no Brasil, ainda mais quando identificamos hoje vários fenômenos como esse, ao redor do mundo, com características semelhantes, tanto na composição das populações protagonistas do processo, como na reação do Estado frente a essas “composições de jovens armados” (COAV), como veremos adiante. A escolha desse termo posta-se, assim, no desafio de conseguir imprimir uma conceituação que o tome na forma com que o geral se manifesta no específico, sem colocá-los necessariamente em oposição. É preciso inscrever o narcofavela a partir de uma rede de produção que se estende e se articula mundialmente, amparada em estados-nação cada vez mais rasos nas suas construções e funções, ao mesmo tempo corroídos pela corrupção e incapacidade de gestar um modelo participativo de representação política. O que buscamos é exatamente a possibilidade de interseção – que não é justaposta nem dialética – desse global com o local, 8 Também não ignoramos aqui as considerações que alguns autores fazem sobre a inadequação do termo narco, como nos coloca Vilela: “ Existe também uma confusão em relação às palavras “narcótico”, “entorpecente”, “estupefaciente” e “tóxico” utilizadas para se referir às drogas proibidas. Narcótico, estupefaciente e entorpecente são sinônimos, termos genéricos para substâncias que produzem torpor, estupor ou letargia, e que também podem ser usadas como analgésico. No entanto, a cocaína, que produz uma sensação de euforia, que é exatamente oposta ao torpor, também é chamada de entorpecente, conforme uma linguagem imprecisa usada popular e oficialmente. Já o álcool, que pode levar ao sono comatoso, jamais foi chamado de narcótico, pois é uma das drogas sacramentadas pela civilização judaico-cristã ocidental. “(.”Vilela,Jaime. COCA, NARCOTRÁFICO E RECOLONIZAÇÃO. In: MARXISMO VIVO 6 - DEZEMBRO DE 2002) 34 do universal com o particular, do tráfico como um comércio capitalista mundial com a realidade singular das favelas. Santos, por exemplo, propõe duas categorias para entender o que ele denomina “processo de globalização hegemônica”: as categorias de localismo globalizado e de globalismo localizado (Santos, 1995). Sob o conceito de “localismo globalizado” Santos reúne as características abstratas de certas sociedades, em particular a européia e a norte-americana, que se estendem ao longo do globo terrestre: “Aí é possível identificar uma série de características que parecem estar presentes globalmente: a prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado; a financeirização da economia mundial; a total subordinação dos interesses do trabalho aos interesses do capital; o protagonismo incondicional das empresas multinacionais” (Santos, 2001:55). Por outro lado, nos dirá Avritzer, referindo-se à Boaventura Santos: “os localismos globalizados, isso é, os abstratos oriundos da categoria mercado que se internacionalizam não vigoram de modo homogêneo ao longo do planeta e se combinam tanto no campo do mercado quanto no campo do Estado, com certos concretos, que Boaventura denomina “processo de localização dos globalismos”, dentre os quais caberia destacar: a trajetória histórica do capitalismo nacional; a estrutura de classes; o nível de desenvolvimento tecnológico; o grau de institucionalização dos conflitos sociais. Ou seja, ele procura mostrar que a globalização é um processo abstrato que se encontra com processos concretos, em três níveis principais, o da economia, o da política e o da cultura” (Avritzer, 2002:13). O narcotráfico aparece assim pela homogeneização e pela universalidade da organização da economia; e o narcofavela aparece como continuidade de elementos específicos de assimilação do global pelo local, inclusive na sua relação com o Estado. Para Negri, não há, assim, como negar a existência de um desenvolvimento capitalista subordinado, mas essa relação de subordinação não se dá mais pela dinâmica do imperialismo, o que não quer dizer que não exista uma “tentativa do centro capitalista, e em particular das monarquias estadunienses, de submeter as multidões chinesas, indianas e latino-americanas ao projeto imperial” (Negri, A.; Cocco, G. 2005:37). Negri, no entanto, ressalva que muitas vezes esses elementos que aparecem como antimodernos são também referências importantes para a resistência ao domínio capitalista. A favela se reveste de suas expressões de enfrentamentos de classe, como espaço de uma “cidadania incompleta” ao constituir o cenário onde a política de repressão ao tráfico será efetivada. 35 I.3) Drogas e tráfico: desconstruindo o discurso dominante A tentativa trazer o conceito de droga para o debate, acaba por tornar visível o modo com esse conceito vem sendo construído a partir de indefinições que ajudam a amoldá-lo aos interesses particulares de segmentos sociais e seus projetos de dominação, legitimando ações violentas contra as populações vulneráveis, que se ocultam sob o discurso da droga. A própria definição do que seja droga, segundo a Organização Mundial da Saúde, aparece de forma imprecisa, dado que se classificam como “droga” toda uma série de substâncias muito distintas entre si, dificultando a conceituação e implicando que, para ser considerada “droga proibida”, baste que a substância figure numa lista editada mediante ato administrativo da autoridade sanitária que complementa a norma penal. Como nos dirá Batista, “a lista [tem a] função de complementar concretamente a norma penal (que criminaliza, de modo genérico, o comércio e o uso de algo tão vago quanto “substância entorpecente”, “substância que determina dependência física ou psíquica” etc.) (Batista, Nilo. In: Del Olmo, 1990: 9). Constata-se assim, logo de início, que para o fim a que nossos estudos visam, pouco ou nenhum sentido fará aprofundar-nos ou estender-nos sobre as classificações das drogas, suas composições ou mesmo seus efeitos para o organismo.9 Não nos interessa aqui, portanto, um estudo sobre os efeitos físicos ou psíquicos das drogas. O que nos interessa é entender como a obscuridade que há no próprio conceito de “droga” contribui para que se produza um discurso difuso e moralizado, sobre tudo o que dela decorre. Trata-se aqui de entender por quê, como nos dirá Del Olmo (1986), “a palavra droga funciona mais como estereótipo do que como conceito, como crença do que conhecimento, onde o negócio das drogas tem uma face oculta que o transforma em mito” (Del Olmo, 1986: 22). O que almejamos, portanto, é desvelar os diferentes discursos que se constroem sobre as drogas. Tenciono assim abordar o fenômeno no plano de consistência das suas multiplicidades, mapeando as diversas articulaçőes que perpassam os diferentes interesses e atores do contexto macro no qual os discursos sobre as drogas se produzem. Desfaz-se aqui a idéia, como nos coloca Del Olmo, de quę a situação de cada país e de cada droga sejam semelhantes, como se os condicionantes estruturais e as formações sociais nada tivessem a ver com o tema, como se, sobre o comércio e uso das drogas (de qualquer droga) 9 A classificação mais usual considera droga toda substância que tem efeito psicoativo, isto é, capaz de provocar algum tipo de transtorno no sistema nervoso central que altere o estado de consciência. As drogas classificam-se a partir dessa definiçăo, em diversas categorias: os entorpecentes, como o ópio e seus derivados; os alucinógenos, como a maconha e o LSD ou os estimulantes, como a cocaína e a anfetamina. 36 recorressem sempre as mesmas conseqüências para todas as formas de seus envolvimentos. Buscamos desfazer o caráter dissimulador que fundamenta as políticas de combate às drogas e sua execução, desfiando um novo discurso sobre o tema. Partimos assim do pressuposto de que os discursos que se vêm construindo sobre as drogas são discursos genéricos, que se pretendem universais, atemporais e a-históricos. Um discurso inespecífico e estereotipado que acaba encobrindo as relaçőes socioeconômicas e políticas que se articulam ao problema. A droga aparece assim como um mal em si, em definições muitas vezes incoerentes, com indicações fragmentadas e contraditórias. O que almejamos é ao desvelar os diferentes discursos que se constroem sobre as drogas para esconder as práticas de dominação que se instalam a partir deles, buscando entender as relações que se vão construir entre estes discursos e os interesses econômicos e políticos. Partimos do pressuposto então que este discurso da droga foi sendo articulado, ao longo da história, a interesses dominantes. Queremos assim entender como esses discursos – que aparecem de forma estereotipada e emocional – na verdade se articulam às políticas criminais que tratam a questão das drogas, tentando explicitar os objetivos dessa política ao identificar o caráter dos discursos que as fundamentaram. Para Rosa Del Olmo, droga “[é] uma palavra sem definição, imprecisa e de uma excessiva generalização, porque em sua caracterização não se conseguiu diferenciar os fatos das opiniões nem dos sentimentos. Criam-se diversos discursos contraditórios que contribuem para distorcer e ocultar a realidade social da ‘droga’, mas que se apresentam como modelos explicativos universais” (Del Olmo, 1990:22). Dessa forma esses discursos só ganham sentido quando inseridos no contexto macro onde se produzem, possibilitando a visibilidade dos diferentes interesses e atores que os articulam, superando o caráter fragmentado e contraditório que esses trazem. Estes discursos não são em si, portanto, suficientes para se entender a importância do caráter de ilegalidade das drogas, haja vista que estes também se modificam a partir de várias variantes. Na primeira impressão a ilegalidade das drogas não interessa nem ao Estado nem a sociedade, vide o enorme montante de recursos que deixam de ser pago aos governos em impostos e as vultosas somas gastas na repressão ao tráfico. Contudo, se a ilegalidade não interessa ao Estado no seu caráter geral, interessa a vários segmentos desse estado que ganham dinheiro com esta ilegalidade, possibilitando engendrar um mercado de movimentos financeiros fomentado na alta lucratividade de uma 37 mercadoria ilícita (relação de oferta e procura), assim como em todo o mercado paralelo que se cria no em torno por conta de sua ilegalidade. O cunho da ilegalidade dá, portanto, características especiais a esta mercadoria drogas no mercado. A partir dessa premissa pelo menos duas questões se colocam aos nossos estudos. A primeira é entender qual é a natureza econômica da mercadoria ilegal. Para Kopp essa repressão provocaria uma alta nos preços. Na primeira vertente, ainda que reconhecendo os limites do seu tratamento, teríamos então que entender como variam as demandas a partir da criminalização e quais suas conseqüências, ou de forma mais específica: “E, mais ainda, mercadorias que circulam em mercados ilegais. Ora, o caráter clandestino da distribuição da droga dá origem a mercados paralelos nos quais os comportamentos econômicos de fornecedores e compradores são determinados por modalidades específicas de funcionamento do mercado.”(KOPP, 1998: 8) Esse percurso nos permite identificar que diversas mercadorias desempenham historicamente este mesmo papel, sempre ligadas de uma maneira ou de outra aos pólos mais avançados do capitalismo, “o que sugere hipóteses sobre a função da criminalização e penalização de certas mercadorias a serviço da solução das crises periódicas de acumulação do capital” (Del Olmo, 1990:18), reflete Del Olmo, acrescentando: “...vinculando uma periodicização das crises de acumulação à sua própria periodização do discurso e da penalização da cocaína e da maconha” (idem). Na segunda vertente vamos buscar revelar a face oculta dos discursos criminológicos que legitimam as práticas penais. Como, a partir deste discurso sobre as drogas, nascem os discursos sobre os traficantes e sobre os consumidores, que implica sempre em focalizar de forma diferenciada os mecanismos punitivos do Estado. Quais são os discursos no Brasil que legitimam as práticas penais e o extermínio dos traficantes? Para Del Olmo os estereótipos que se criam em torno da droga servem para organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes. Em suas palavras: “Estes discursos ajudam a estabelecer a polaridade entre o bem e o mal, que o sistema social necessita para criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação. Por sua vez, desenvolvem-se novas formas de controle social, que ocultam outros problemas muito mais profundos e preocupantes” (Del Olmo: 1986:23). O desmonte de qualquer discurso se faz na prática: por forças sociais coletivas que questionem ativamente a carga moral e legal atribuída a uma relação (todos os movimentos 38 de denúncia contra a opressão policial e contra o desrespeito aos direitos humanos dos segmentos empobrecidos pelo Estado: torturas, execução, cerceamento da liberdade, expropriação de bens, etc.); por rupturas históricas que revertam o sentido dessas cargas. O debate sobre as drogas vai estar assim encoberto por uma classificação preconceituosa e estigmatizada que justifica o tratamento de exceção que são direcionados para esses jovens. Seja quando aparece efetivado pelo Estado formal, que vai se amparar na excepcionalidade que encontra base na sociedade para legitimar as violentas execuções das quais esses jovens vão ser vítimas. O que podemos observar é assim que, ao mesmo tempo que tem crescido de forma bastante significativa o numero de pesquisas, assim como a complexidade dos estudos e a amplitude dos enfoques em relação a questão das drogas e principalmente sobre o tráfico de drogas, esses estudos tem servido, no mais das vezes, apenas como uma nova base de parâmetro acadêmico, pouco tendo ajudado a refletir avanços nas políticas públicas e no debate sobre a criminalização, ou não, das drogas. Principalmente esses estudos pouco têm contribuído para a realização de mudanças na realidade de vida desses jovens que vivem do comércio das drogas ilícitas (assim como de outros segmentos que são afetados diretamente por esse comércio: índios colombianos, os peruanos cultivadores da coca, os pequenos produtores brasileiros, etc.) Ao contrário, o que temos visto surgir como decorrência desses pesquisas e estudos, muitas vezes só afirmam os padrões ideoculturais que mencionamos anteriormente. Essa afirmação torna a análise de Del Olmo imprescindível e bastante atual. Pois, se ela guarda os limites da escassez de produções sobre o tema em sua época, ela ganha por ter conseguido mostrar o quanto o discurso que se produz de forma majoritária (seja pelos meios de comunicação, pelo Estado, seja pelas concepções e debates em torno da segurança pública, violência e drogas) estão ceifados de interesses particulares e de classe. Dessa forma, considerando principalmente o trabalho de Del Olmo é que vamos buscar identificar no próximo item a forma com que esses discursos vêm-se construindo desde a década de 50 até hoje. I.4) A criminologia crítica como ponto de partida Para apreender a questão do narcofavela sob uma leitura totalizante, precisamos buscar a forma na qual o consumo e a comercialização das drogas vão-se inserir num contexto macro, onde referências socioeconômicas e políticas devam ser relacionadas. 39 Para isso vamos buscar, principalmente nos trabalhos de Rosa Del Olmo, uma análise que traga “as transformações que a política criminal das drogas sofreu em nosso continente, dos anos 50 – quando o problema era circunscrito à perspectiva da subcultura – até hoje – quando se enfrenta um problema econômico transnacional; acrescido e complexificado por novas questőes emergidas dos fenômenos atuais ligados ao tráfico de drogas que se produzem nas cidades contemporâneas: hiper-urbanizadas, hipermodernas, globalizadas e ligadas em redes, dominadas por uma nova forma de poder global (o império) e os modelos e estereótipos construídos em função de tais transformações” (Batista, 1990:9). A construção dos estereótipos da droga está relacionada com a sua periodização e nos ajudam, ainda que de forma sintética, a identificar os discursos preponderantes que a questão ganha ao longo da história, hegemonizados pelas políticas implantadas pelos Estados Unidos e seus desdobramentos na América Latina. Segundo Gonzáles (1983), são três os tipos de estereótipos historicamente construídos em torno das drogas: o médico, o cultural e o moral. O primeiro remete à questão da dependência e torna o problema das drogas uma questão de saúde pública. O estereótipo cultural liga as drogas invariavelmente à juventude e ao sentido de drogado, sendo reforçado neste aspecto pelo discurso moral. Para Del Olmo, então, estes três estereótipos se reforçam com a narrativa jurídica que vai produzir um discurso de ilegalidade das drogas “não por suas qualidades farmacológicas, mas porque se percebe como ameaça socioética, apesar de no fundo a razão de sua ilegalidade ser econômica” (Del Olmo, 1990:24). Essas construções substanciam e desembocam no quarto tipo de estereótipo, agora definido por Del Olmo, o estereótipo criminoso. Esses estereótipos serviriam assim “para organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes; por isso, no caso das drogas se oculta o político e econômico, dissolvendo–o no psiquiátrico e individual” (idem, 25). Colocar as drogas na concretude do contexto material é, assim, a forma possível de desvelar o caráter demoníaco consensual que esta foi adquirindo, e resgatar os interesses econômicos e políticos que se subsumem na discussão. Por muito tempo o consumo de drogas estará restrito aos guetos e subculturas, não aparecendo, por isso, como problema, ainda que seu uso já trouxesse uma forte carga negativa que o associava aos segmentos empobrecidos e marginalizados ligados à criminalidade e à delinqüência, mas, ainda assim, vistos como possíveis de serem controlados e que coexistiram socialmente. 40 Com a saída do consumo dos grupos marginalizados e dos guetos e sua ampliação para a sociedade em geral, atingindo os jovens brancos de classe média, a questão das drogas começa a ganhar amplitude. A mudança dos protagonistas, sobretudo o uso coletivizado da maconha associado aos movimentos contraculturais (movimentos hippies, Woodstock etc.) que se opunham ao sistema americano, coloca as drogas como problema nacional. Ao mesmo tempo, será justamente a ampliação do consumo que fará emergir a necessidade de uma nova moldagem na qual se possa enquadrar este consumidor de classe média. Se até a década de 50 prevalece o estereótipo moral, a década de 60 marca um duplo discurso em relação às drogas: a difusão do modelo médico-sanitário, onde o consumidor translada do papel de delinqüente para o de doente. Assim, à afirmação do estereótipo moral que criminaliza os empobrecidos (de frágil cidadania e poucos recursos jurídicos) de fácil identificação, se agrega e fortalece o estereótipo da dependência, aplicável no caso do jovem branco de classe média. Esta distinção não repercute, contudo, da mesma forma nos países dependentes, que não possuem a estrutura de serviços de tratamento, o que acaba por significar na prática que esta diferença entre o consumidor e o traficante ou entre o doente e o delinqüente acaba por tornar ainda mais arbitrárias as medidas do sistema. Assim nos dirá Del Olmo: “o consumidor era privado de liberdade e da capacidade de escolha ou vontade, e portanto sujeito a um controle muito mais forte. Outra alternativa era, como ocorreu por exemplo com a reforma do artigo 367 do Código Penal Venezuelano em 1965, a falta de precisão na definição entre posse e consumo, que deu lugar a múltiplas sentenças condenatórias à prisão de possíveis consumidores” (idem, 38). Assim, ainda que o próprio contexto da veiculação e do uso da droga se faça de forma diferenciada (não havendo, por exemplo, no contexto da América Latina uma vinculação tão estreita do uso da maconha e os movimentos contraculturais), a ofensiva do discurso antidrogas dos Estados Unidos e sua conformação jurídica vão influenciar bastante estes países. Mas será, segundo a autora, principalmente com o aumento do uso da heroína nos EUA e suas nefastas decorrências, que incluem inclusive um expressivo crescimento da criminalidade, que se consolidará um padrão mundial de combate às drogas e seu necessário aporte ideológico. Será na era Nixon que “começa a se exportar a aplicação da lei em matéria de drogas, isto é, a legitimar o discurso jurídico-político e o estereótipo político-criminoso das drogas além das fronteiras dos Estados Unidos” (idem: 44). Estão dadas as bases para a construção de um discurso político que qualifica a droga como o inimigo público e ameaça à ordem, e que nas décadas subseqüentes irá justificar muitas das intervenções americanas nos países da América Latina, ou sobretudo, como vimos, a 41 adequação por parte destes estados de uma política antidrogas ligada aos interesses específicos dos seus projetos dominantes. Podemos assim resumir da seguinte forma os discursos produzidos sobre a droga: nos anos 50 esse consumo ainda aparece ligado a um universo misterioso, próprio de grupos marginais, aristocratas ou guetos que consumiam heroína ou maconha, produzindo um estereótipo moral de um modelo religioso e ético-jurídico. Na década de 60 o que o modelo médico-sanitário (dependência) de tratamento e punição pressupõe é uma luta entre o bem e o mal. A droga é vista como um vírus contagioso, que diferencia no entanto, o consumidor, igual a doente, e o traficante, igual a criminoso. Quando começa a cair a produção de heroína e crescer a de cocaína, na metade da década de 70, se cria, inicialmente, um estereótipo cultural positivo, onde o consumo da cocaína não é considerado problema, mas droga social e recreativa. Na década de 80, acontece uma mudança na imagem e nos padrões de consumo (de 1-4g/mês para 1-3g/semana) e uso misturado a maconha (policonsumo) seguido de um aumento generalizado por todos os grupos sociais. Em 1974 existem 5 milhões de consumidores de cocaína no mundo e em 1982 esse número já atinge a cifra de 21 milhões de consumidores. O que vai possibilitar a mudança no padrão de criminalidade ligada ao tráfico de cocaína e reestruturação do discurso para guerra contra as drogas e instituição do inimigo externo, onde as vítimas aparecem como aqueles países cuja população consomem cocaína (por exemplo, os EUA) e os agressores aparecem como aqueles países cujos camponeses cultivam a coca como estratégia de sobrevivência, realidade encontrada na América Latina, já que a cocaína é produzida exclusivamente nesta região. Esse percurso é o que possibilita que na entrada dos anos 90 a questão das drogas se assente num discurso político-jurídico transnacional que cumpre a função ideológica de encobrir o impacto econômico-social que a cocaína produz nas relações internacionais de poder (império). Podemos identificar, ao trazer as drogas por esse viés, que diversas mercadorias desempenham historicamente este mesmo papel, sugerindo novas formulações sobre a função da criminalização e penalização de certas mercadorias a serviço da solução das crises do capital. Dessa forma é que, as hipóteses que Rosa Del Olmo formula, vinculam uma periodicização das crises de acumulação à periodização do discurso e da penalização da cocaína e da maconha, em modelos que serão universalizados pelos principais organismos internacionais, entre eles a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU). 42 Vemos assim como esses discursos servem principalmente para justificar as políticas de ocupação aos países da América Latina, consolidando a política de guerra fria implementada pelos Estados Unidos simbolizada na figura do inimigo externo, abrindo espaço para a consolidação do estereótipo político–criminoso, mas também para toda uma normativa jurídica internacional. Em 1971, a Organização das Nações Unidas vai aprovar um Convênio sobre substâncias Psicotrópicas e em 1972 a aprovação do Protocolo que modifica a Convenção Única sobre estupefacientes (1961) para incluir na lista outras substâncias, ratificado por 104 países, abrindo espaço para que os EUA comece a intervir em outros países para combater a droga. Ressurgem o discurso médico e o discurso jurídico que leva a reformular a legislação na América Latina sobre a cocaína. Cria-se o estereótipo da cocaína e uma cooperação internacional contra o tráfico de cocaína que inclui a Bolívia (1976) e o Peru (1978). Os EUA criam um discurso de sanar o problema antes de chegar aos consumidores americanos (inimigo externo). Na síntese de Del Olmo: “Nos últimos anos vários discursos foram tecidos em torno das drogas, muitas vezes contraditórios entre si, mas que servem para criar uma série de estereótipos cuja principal finalidade é dramatizar e demonizar o problema. Com isto se escondem o alcance e suas repercussões econômicas e políticas atrás de um discurso único de caráter universal, atemporal e a-histórico que só contribui para a consolidação do poder das transnacionais que manejam o negócio.” Os EUA é o ator principal no cenário internacional no trato da questão das drogas. Desde 1906, quando promove a I Conferência Internacional sobre o Ópio, na China até 1988, com a Convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas em Viena, na Áustria. Neste ínterim, os EUA promoveram várias conferências, convênios e tratados sobre as drogas. Nos últimos 25 anos, a atenção mundial sobre o fenômeno das drogas tem estado voltada para a América Latina e Caribe – onde se produz a cocaína que é transferida para os países desenvolvidos e sobretudo os EUA. O balanço da política de repressão as drogas não é boa, pois apesar dos esforços, os negócios das drogas se consolidou e diversificou. Multiplicou várias vezes a quantidade produzida no mundo de cocaína e maconha e as organizações do tráfico cresceram e se modernizaram, assim como a corrupção entre as autoridades policiais e judiciais, com substâncias cada vez mais potentes e mais baratas. Tudo parece indicar que para uma possível compreensão e posterior solução se faz necessário realizar uma análise mais profunda que coloque o fenômeno dentro do complexo e contraditório cenário geopolítico que apresenta o continente americano, detectando seus 43 principais determinantes na relação entre crise econômica, guerra contra revolucionária e a consolidação da democracia e guerra contra as drogas. Cabe, por fim, destacar como a constante da crise econômica permite explicar de maneira realista o desenvolvimento e a consolidação da indústria das drogas no continente sul americano na década de 80 e, em especial, o fato de que amplos setores da população tenham tido que se dedicar a atividades produtora, exportadora e de manutenção e apoio logístico a esse negócio. Essa análise relaciona assim a relação de dependência dos países da América Latina, crise da década de 80, as condições de vida (subemprego e desemprego) e o aumento do mercado das drogas, onde, camponeses empobrecidos e trabalhadores agrícolas sem emprego optam pelo cultivo das drogas ilícitas. I.5) Criminalização da Pobreza: papel do Estado e os modelos jurídicos de controle social A questão das drogas ilícitas e do seu comércio varejista nas favelas cariocas exige, portanto, uma análise transdisciplinar que possa desatar os nós dessa problemática por vários dos fios que incidem na sua composição. Um desses olhares encontra-se no âmbito da criminologia crítica. Para isso vamos recorrer às análises construídas por Loïc Wacquant e Vera Malaguti Batista. Para Wacquant (2003), a crise referente ao modelo fordista e suas conseqüências assinala a crise do modelo de Estado social que irá conformar-se na década de 90, nos EUA, selada em 1996 com a efetivação da reforma da assistência social. Assim, ao mesmo tempo em que a crise econômica aumenta as questões sociais, vai haver gradativamente um deslocamento do modelo de Estado social - restringindo cada vez mais a extensão dos cidadãos elegíveis para os serviços e a durabilidade dos mesmos - para o modelo de Estado penal. A principal afirmação na análise do autor é a de que: “na medida em que se desfaz a rede de segurança (safety net) no Estado caritativo, vai se tecendo a malha do Estado disciplinar (dragnet) chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço americano” (Wacquant, 2003:27). A afirmação deste modelo de Estado disciplinar se manifesta quando se triplica o número de detentos nos principais estados americanos nas últimas décadas do século passado, tanto como no significativo investimento público estatal no sistema penitenciário, após se conhecer praticamente uma estabilidade nos índices de detenções que previa, inclusive, a paralisação da ampliação do sistema para os dez anos subseqüentes. 44 Para Wacquant, o desdobramento desta política estatal de criminalização das conseqüências da miséria estaria se efetuando de duas formas: a primeira transformando os serviços sociais em instrumentos de vigilância e de controle das novas ‘classes perigosas’; e a segunda seria exatamente esse recurso ao encarceramento. Mas o que é, para nós, especialmente interessante observar no estudo do autor é a análise do cruzamento dessa política com a questão das drogas ilícitas. Para ele: “A causa-mestra deste crescimento astronômico da população carcerária é a política de guerra à droga, política que desmerece o próprio nome, pois designa na verdade uma guerrilha de perseguição penal aos vendedores de rua, dirigida contra a juventude dos guetos para quem o comércio a varejo é a fonte de emprego mais diretamente acessível. É uma guerra que não teria razão de ser, visto que o uso de estupefacientes está em descenso desde o final dos anos 70 e que era perfeitamente previsível que se abateria de maneira desproporcional sobre os bairros deserdados: neles a presença policial é particularmente densa, o tráfico ilícito é facilmente identificado e a impotência dos habitantes permite à ação repressiva toda a liberdade” (Idem, 29). As análises e os dados apresentados por essa linha de investigação ajudam, assim, a desvelar um discurso hegemônico. Esse consenso tenta encobrir a brutalidade do sistema, fomentado sobre um discurso jurídico que criminaliza esses jovens e os coloca como algozes de uma violência que na verdade se produz pelas dinâmicas próprias às sociedades capitalistas, e que têm feições muito semelhantes em todo ocidente, como fica ainda mais acentuado na passagem a seguir: “... foi essa política que entupiu as celas e “escureceu”seus ocupantes. Em 1979, um preso federal em cada quatro tinha sido detido por violação da legislação sobre os estupefacientes; em 1991, esta taxa ultrapassava 56%. A diferença entre as taxas de detenção de negros e brancos por delitos de crimes ligados à droga era de dois contra um em 1970 e de cinco contra um em 1991. Em relação aos objetivos financeiros fixados por seus estrategistas a “guerra às drogas”foi um fracasso retumbante: o preço de revenda de cocaína não parou de cair, as quantidades em circulação não pararam de aumentar e o número de pessoas encarceradas não parou de inchar – ou seria essa uma de suas missões não confessadas?” (Idem, 30). O discurso sobre o uso e a comercialização destas substâncias têm sido incorporados ao longo da história como pretexto para consolidar procedimentos arbitrários e repressivos direcionados a determinados segmentos sociais. É inegável a relação das políticas contra as drogas e dos mecanismos de dominação fomentados pelos estados-nação. Mas, se o autor pode falar, ao tomar como base os Estados Unidos, do deslocamento de um modelo de estado caritativo e de seguridade social para outro, que tem a penalização 45 como principal recurso de enfrentamento às questões sociais, no Brasil a questão aparece de forma ainda mais complexa. Primeiro por que afirmamos a ausência de consolidação de uma rede de seguridade social no Brasil, pelo menos de forma extensa e ou contínua que lhe forneça um caráter universal. O que é central para a nossa análise é entender que a consolidação desses estados provedores nos países centrais hierarquizou-se em função da relação salarial. Pertencer a ela era a condição de ter ‘direito aos direitos’, mais do que um princípio geral de acesso universal a um determinado sistema de bens e serviços. O Welfare-States teve assim, como fator decisivo, a emergência de uma dinâmica virtuosa, alimentada pelos modos de repartição dos ganhos de produtividade, entre acumulação e salários reais, na análise de Cocco (2001). A relação salarial fordista tornou-se a base objetiva da constituição material do intervencionismo estatal, isto é, da constituição trabalhista desses estados’. Contudo, se nos países centrais, ainda que em processos distintos, esse acesso à cidadania real foi fortemente subordinado à integração na relação salarial, no Brasil, o modelo de substituição de importação que, de um lado, permitiu a construção do maior parque industrial da América Latina, por outro, nunca chegou a constituir-se num verdadeiro mercado interno, ou seja, a determinar um ciclo virtuoso de consumo, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Ao contrário, o crescimento industrial do Brasil, que se dará de forma rápida e intensa entre as décadas de 40 à 70 não vêm acompanhados de uma redistribuição de renda ou social, deixando como conseqüência um imenso contingente de segregados. Esse processo nos obriga a buscar entender o modelo de Estado de Bem Estar Social que irá se caracterizar na América Latina em geral e, sobretudo, no Brasil, inserindo-o na marca dessa dicotomia do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento social. Neste quadro, os limites dos WS são reais, principalmente se esse modelo for visto sob a perspectiva de ser um mecanismo que opera como barreira ao mercado, inibindo seu curso desenfreado, mas não absolutos, se o mesmo for entendido como um processo engendrado por múltiplas determinações e que se constrói em embates e correlações de força. Vários autores analisaram a forma da constituição dos modelos de WS na AL e no Brasil. Draibe (1989), por exemplo, designa, ao definir o modelo conservador ou meritocrático particularista, dois conjuntos principais de motivos pelos quais as estruturas básicas desses WS se construíram deformadamente, os estruturais e os institucionais. Além do mais, as contradições do Estado de Bem Estar se manifestam em todas as suas institucionalidades. E, dessa forma, o narcotráfico não se desenvolve por fora dos 46 interesses do Estado ou de suas instituições. Ao contrário, o estado é uma estufa para as necessidades do tráfico: corrupção, tráfico de influência, ineficiências e falta de legitimação. No Brasil, o caráter de controle dos aparatos jurídicos do Estado vai aparecer conjugado à ausência de políticas públicas e às teias de corrupção e repressão do Estado, alimentadas pelos mais de vinte anos de ditadura militar. A predominância absoluta da manifestação do Estado que chega até essas populações é a violência. Um estudo embora superficial do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a investigar o avanço e a impunidade do tráfico, bem como as outras atividades ilícitas e lucrativas, nos mostra a grande ocorrência – quase de forma sistemática – da circulação das drogas por um trânsito que passa por dentro das teias do estado. Segundo pesquisa (Dowdney, 2005) “Em todos os países onde os grupos armados foram investigados, o Estado tem um papel direto ou indireto na atividade dos grupos. Envolvimento indireto é entendido aqui como a corrupção de alguns representantes do Estado, como policiais ou funcionários de governo de baixo escalão. Envolvimento direto é considerado como sendo o estado trabalhando diretamente com um grupo armado ou apoiando indiretamente suas atividades (Dowdney, 2005:46). Assim, se o discurso do ‘bem contra o mal’ que subjaz às práticas de extermínio que se abatem cotidianamente sobre as populações afrodescendentes e moradora das favelas tem ambigüidades, essas não são suficientes para que essas práticas possam abrir fissuras definitivas no discurso do uso legítimo da força pelo Estado. A violência silenciada é imposta a esses jovens; nas palavras de Chaui: “Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da nãoviolência” (Entrevista concedida ao portal do PT, www.pt.org.br). Assim é que, de forma congruente, passamos dos estudos de Wacquant cuja referencia são os EUA, para os da socióloga Vera Malaguti Batista, cuja referência é o Brasil. Batista (2003) também irá trabalhar essa dimensão disciplinar e de controle social que se esconde por trás do discurso estatal de combate as drogas. Os diferentes discursos de criminalização justificam, em diferentes períodos históricos brasileiros, um ataque 47 sistemático a determinados segmentos sociais que se estendem dos ex-escravos aos atuais jovens moradores das favelas. Para a autora: “Esses setores vulneráveis, ontem escravos, hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo seu avesso, na ‘trincheira auto-defensiva’ da opressão dos organismos do sistema penal” (Malaguti, 2003:57). A cidadania é vivenciada apenas através da faceta coercitiva do Estado. Sob a expressão ‘atitude suspeita’, justificam-se as medidas punitivas de segurança voltadas para esses segmentos. Assim, dirá a autora: “Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a ‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do aterro, na Pedra do Leme ou reunidos num campo de futebol” (idem, 103). Este fenômeno, de uma tensão permanente entre os jovens pobres das favelas e a policia, faz saltar aos olhos as faces mais antagônicas das institucionalidades estatais. O Estado se revela para estes jovens apenas nas suas experiências de cidadania negativa (Nilo Batista, 1997). Não há, por isso, nem a necessidade de destruir referências anteriores do Estado como provedor, protetor ou promotor da justiça, porque, para essas populações, ele nunca o foi. A evidencia da predominância de relações repressivas com estes segmentos revela os limites deste Estado. Esses limites denunciam não só o caráter do Estado brasileiro, mas este fenômeno denuncia o limite da própria configuração do modelo de estado-nação, nos colocando frente à frente com a necessidade de avaliar os processos históricos de construção destes estados (nação) na América Latina. Nas palavras de Cocco, esse debate aparece atualizado. “Nos motins dos jovens franceses encontramos muitos elementos que caracterizam, há muito tempo, as periferias metropolitanas brasileiras. A exclusão sistemática de gerações inteiras de adolescentes “estacionados” em zonas de “trânsito sem saídas” (bairros degradados, escolas de baixa qualidade, altíssimas taxas de desemprego, exposição aos abusos sistemáticos por parte das forças de polícia) produz um estigma, uma identidade completamente negativa que lhes cola à pele e atualiza tristemente a noção de campo. As vidas das nações que mantêm uma forma de apartheid interno se organizam em resposta à contínua revolta contra aquela exclusão e aquela divisão: os campos desempenham um papel central nessa ordem incapaz de encontrar suas bases de legitimação. Depredando e queimando o sistema de objetos que designam o campo da exclusão, os jovens na realidade se insurgem contra as cercas do campo, contra essa identidade negativa que a ordem do mercado e do Estado gravou, como uma hedionda tatuagem de triste memória, 48 em suas peles. Com efeito, os jovens sabem o que não querem, mas ainda não sabem o que querem. Mas, na insurreição das periferias francesas - ou brasileiras, a fuga do campo já desenha horizontes radicalmente abertos e novos: as insurreições das periferias nos mostram que os habitantes dos campos são a matéria viva, a carne da multidão de que é feito o mundo globalizado (Negri, Antonio; Cocco, Giuseppe. A insurreição das periferias, Valor Opinião 23-25/12/2005). O fenômeno narcotráfico nas favelas cariocas salienta assim a forma preponderante de interlocução dos segmentos empobrecidos com o Estado brasileiro. A viabilidade de esses segmentos armarem-se, mas também a necessidade que sentem de armarem-se, reflete a tolerância das suas teias de corrupção. É essa teia que faz com que estes armamentos se desloquem das esferas oficiais para a mão destes jovens, como também possibilita o surgimento de uma política predominante de ataque arbitrário a estas populações, surgindo daí a necessidade de se protegerem de um Estado que historicamente os agride reiteradamente. Para esses segmentos sé se asseguram vivências e práticas que afirmam a concepção de cidadania negativa, em cujo contexto esses segmentos “só conhecem o avesso da cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos do sistema penal” (Batista, 1997:133). Portanto, de forma arraigada na estrutura que conforma o modelo de desenvolvimento brasileiro, à questão social no Brasil correspondem formas jurídicas de disciplinarização e controle, tendo a questão das drogas também servido como aporte justificador para a intervenção violenta do Estado. Também no Brasil a droga é um dos principais fatores de criminalização da juventude pobre. Cerca de 50% dos adolescentes que entram no sistema estão envolvidos com drogas. Este campo de estudo abre, assim, a possibilidade de evidenciar este embate, um jogo no qual o discurso consensual de combate às drogas justifica a força repressiva do aparato penal para o enquadramento das classes sociais vulneráveis, ou nas palavras de Malaguti, no seu âmbito específico o mercado de drogas revelaria assim: “(...) argumentos para uma política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos contra as classes sociais vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos, sejam imigrantes indesejáveis no Hemisfério Norte” (Malaguti, 2003:135). 49 Ao privilegiar o enfoque da criminologia crítica, busco suporte para anunciar o tipo de abordagem que aqui se adota e que visa a desmascarar o embate social que se esconde por detrás da discussão das drogas e, sobretudo, que quer desvelar o lugar e a condição destes jovens que vão integrar as fileiras do tráfico. 50 CAPÍTULO II AS FAVELAS COMO NOVOS TERRITÓRIOS PRODUTIVOS, ESPAÇO DE CONSTITUIÇÃO DA RESISTÊNCIA E DE PRODUÇÃO DE UM NOVO SABER Introdução A favela não é um tema novo e se constitui há muito tempo em objeto de reflexão de vários campos de conhecimento, sobretudo das ciências sociais. A partir da bibliografia analítica realizada por Valladares (2003) podemos identificar que no início do século já aparecem os primeiros trabalhos que vão caracterizar a descoberta das favelas como tema de estudo, ou o ‘período da gênese’, que vai até o final dos anos 1940. Esses estudos influenciam os futuros debates sobre as favelas, nascendo dele, inclusive, a noção da dualidade favelacidade. Para Valladares, nesse ciclo, os autores estariam, assim: “Adotando um recorte racionalista/higienista/sanitário, propõem (propondo) uma visão moralista desses aglomerados, acompanhada de propostas de caráter político-administrativo, assistencialista e educativo. A dualidade favela-cidade tem aqui o seu ponto de partida (Valladares, 2003:10). A década de 50 marca um novo período para os estudos e o entendimento das favelas brasileiras. “O Recenseamento Geral de 1950, fornecendo dados sobre as características socioeconômicas da população favelada, passou a evidenciar uma realidade social e urbana bem mais complexa do que se imaginava, dirá Valladares” (Valladares, 2003:11). Essa virada ascende/eleva a discussão das favelas ao plano do debate sobre a mudança social e a teoria do subdesenvolvimento, e inaugura os estudos de campo de forma mais sistematizada e de maior duração. De forma resumida, posso dizer que Valladares apresenta três marcos distintos de investida das ciências sociais nesse segundo ciclo de estudos, pós 1950. Assim, o ano de 1969 simboliza a consolidação do tema pelas ciências sociais, o segundo momento se caracteriza pela fase das remoções (expressando as mudanças instadas pelo cenário 51 político da época), com ênfase nas experiências de urbanização das favelas e sobre os conjuntos habitacionais e, o último momento, correspondendo à década de 90, se caracteriza por uma explosão de estudos nos mais diferentes aspectos. Para a autora, esses estudos estão relacionados às intervenções promovidas pelo poder público e pelas Ongs e à percepção da violência urbana nas favelas do Rio de Janeiro. Para Valladares, “Transformadas em lócus da pobreza, [as favelas] se tornaram locais privilegiados de estudos referentes não só à habitação popular, mas à pobreza urbana em suas várias dimensões, às desigualdades e à exclusão social, temas que as ciências sociais integraram e passaram a valorizar. Tornaram-se também cenário ou palco onde o estudante ou o pesquisador passou a investigar questões de interesse próprio ou de interesse direto dos órgãos públicos e das Ongs que os financiaram” (Valladares, 2003:12, apud Valladares 1999). O mais importante no trabalho realizado por Valladares é a possibilidade que esse abre de identificar o que é que se tem estudado sobre as favelas nos últimos cem anos. A autora começa por destacar a grande quantidade de campos diferentes de saberes que se interessam pelo tema (ainda que, talvez por isso mesmo, apenas um número reduzido tenha as favelas como tema de estudo de forma contínua). As áreas predominantes ainda são a sociologia e a antropologia urbana, seguida do planejamento urbano e da arquitetura e, ainda, da geografia urbana, do serviço social, da ciência política, da medicina social, do jornalismo, da história urbana e outras menos significativas. Mas essa fragmentação é ainda maior quando tomamos os trabalhos pelos assuntos, sendo interessante observar que a maior parte desses estudos se concentra sobre as experiências institucionais de intervenção nas favelas (favela-bairro), e reúnem, além desses, estudos na área do associativismo, cidadania, participação popular, habitação e mercado imobiliário, aspectos simbólicos, manifestações culturais, aspectos históricos das favelas, além daqueles relacionados à violência, criminalidade e segurança pública. 52 Para Valladares, isso revela que: “(...) considerando-se a totalidade de assuntos presentes em cada uma das publicações, nota-se que essa literatura é extremamente diversificada. O índice de Assuntos (com seus 173 assuntos!) permite supor, inclusive, que as favelas vêm sendo tomadas muito mais como cenário de processos sociais, do que propriamente enquanto objeto de análise em si. O pesquisador a elas se dirigem pra estudar de tudo um pouco: a incidência de várias doenças e epidemias, a gravidez na adolescência, o desajustamento familiar, o trabalho infantil, a formação de galeras, a opção pelo mundo do crime e pelo narcotráfico, o trabalho das creches, as escolas e os CIEPS etc, acabando as favelas por se constituir uma espécie de síntese de todos os problemas sociais” (Valladares, 2003:20). A necessidade de trazer a favela para nossa discussão aparece assim inicialmente nessa perspectiva apontada por Valladares, ou seja, como cenário de processos sociais (no caso, o narcotráfico), mas ganha um sentido muito mais conceitual na medida em que o trabalho se desenvolve. A favela vai deixando de ser apenas o cenário onde a venda do comércio das drogas ilícitas se realiza, para se transformar em elemento que constitui e explica essa realidade. Dessa forma, ainda que o meu objetivo nesse capítulo II seja o de estudar as favelas, adoto aqui uma perspectiva mais ampla do que aquela que se constitui pelas suas dimensões históricas e sociais. O que intento é entender as favelas entremeadas das relações de poder que deram ao espaço a sua configuração e, portanto, necessariamente também entremeadas das clivagens econômicas (as formas de os homens se organizarem para produzir e se reproduzir). Nessa perspectiva é que não faz, portanto, nenhum sentido privilegiarmos o resgate histórico da constituição das favelas, ainda que não desprezemos a idéia de as favelas serem vistas como resultado do modelo concentrador e antidemocrático do desenvolvimento brasileiro. O que pretendo, contudo, é perceber como os elementos de força se arrumam e se deslocam através do desenvolvimento das dinâmicas capitalistas e 53 de afirmação de modelos de controle social. A favela aparece aqui como elemento de disputa e de resistência da classe que vive do trabalho e vai, por isso, ganhar um sentido muito mais amplo do que apenas o de e ser o espaço de exclusão social. Se as favelas, assim, por um lado, se afirmam historicamente no cenário da cidade enquanto positividade desse modelo de acumulação movidas pela necessidade de resolver os problemas de reprodução da força de trabalho (custo com o qual o capital não arca, no modelo de industrialização brasileiro), por outro lado o caráter ambíguo, de funcionalidade e desfuncionalidade, já estará presente na origem desse fenômeno e, será ainda mais acentuado nas sociedades contemporâneas. Entender a especificidade da constituição das favelas como fenômeno atual exige, portanto, trazer o próprio entendimento da constituição das cidades como uma expressão da pósmodernidade. Para que a favela ganhe, então, um sentido para além daquele identificado por Valladares – de cenário onde se manifestam os objeto de estudo – é preciso incorporála como manifestação das novas formas de organização pós-fordistas e entendê-la na sua expressão concreta. Assim se, por um lado, o desenvolvimento urbano e o ordenamento físico das cidades brasileiras não podem ser vistos separados dos elementos históricos onde se inscreve a segregação espacial no Brasil – nos marcos da conformação do nosso modelo de desenvolvimento econômico10 –, por outro lado, para buscar reconhecer alguns dos aspectos dos novos elementos centrais que vão aparecer nos territórios urbanos (incluindo aqui o narcotráfico) é preciso buscar também construir uma explicação sobre os mecanismos da globalização e os novos conflitos do capital globalizado. Reconhecer a existência de mudanças estruturais no capitalismo contemporâneo é, portanto, o ponto de partida para inscrever o entendimento das favelas por sob essa nova perspectiva. Perspectiva que aparece marcada pelo papel que as cidades vão ganhar nas 10 Para Cassab (2001) a característica mais saliente da urbanização brasileira é seu caráter de não incorporação da pobreza urbana. Os pobres estiveram, durante todo esse processo, segregados nas dinâmicas espaciais constituintes do espaço da cidade, expressando-se também nelas as características mais marcantes do desenvolvimento do capitalismo no país (Cassab, 2001:98). 54 sociedades contemporâneas. A ordenação, ou a desordenação, desses espaços reflete, assim, as características de uma dada sociedade em seu tempo histórico, considerando-se a premissa de que a cidade se constitui como expressão das relações sociais, existindo uma vinculação entre os estágios de acumulação do capital e a forma com que esses territórios se constroem. Esses territórios expressam assim os dispositivos de poder que circulam por um conjunto de mecanismos e de procedimentos que se instalam nas cidades. Dessa forma, desenvolvemos neste capítulo II uma discussão que visa a reconstruir teoricamente os espaços das favelas (não só como uma construção da segregação espacial que reflete o modelo de conformação do capitalismo brasileiro, mas) principalmente como um espaço que se refaz na perspectiva das novas relações globais de produção, a partir de um breve resgate da passagem do fordismo para o pós fordismo, explicando as ordenações das cidades por essa clivagem da produção e de suas ordenações políticas. A partir desse trajeto, pois, que pretendo capturar a favela naquilo que ela guarda de novo, buscando entender como essas mudanças exprimem e interagem com o fenômeno do tráfico de drogas, afirmando que também as favelas só podem ser explicadas se vistas a partir da forma com que essa ocupação do espaço urbano responde as novas necessidades do capital globalizado – “onde as cidades se reorganizam para formar sistemas transnacionais, onde os fatores financeiros de localização das novas atividades e as questões de custo global vão-se tornar cada vez mais importantes” (Boutang, Caderno Lugar Comum, p. 31). A primazia, na nossa análise, da explicação das favelas (e das cidades) a partir das transformações situadas nessa esfera econômica se justifica, portanto, somente porque entendemos que essa dinâmica, como veremos, repercute cada vez mais em toda organização social, acabando por se constituir no principal vetor da passagem de um modelo para outro. 55 PARTE I A RELAÇÃO ENTRE A CONSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO URBANO E OS FATORES ECONÔMICOS DA GLOBALIZAÇÃO II.1.1) Fordismo e pós-fordismo A referência teórica que nos possibilita reconstituir a relação entre a constituição dos territórios urbanos e o momento histórico, ainda em curso, do surgimento de um novo paradigma de produção e constituição societária será aquela que começa por apanhar o fordismo como um modelo onde a dinâmica acumulativa do capital faz do conflito (capital versus trabalho) o vetor de sua sustentabilidade. A possibilidade da instituição de uma dinâmica de integração do conflito faz do fordismo o momento de maior êxito da lógica capitalista, marcando o ápice da maturidade do capital: de exercer sua exploração e ao mesmo tempo não impedir os avanços em relação aos chamados direitos sociais dos trabalhadores. O fordismo se constitui assim pela articulação de um regime de acumulação taylorista de alta produtividade e da regulação da repartição desses ganhos a partir de um estado intervencionista que se afirma como o dispositivo de integração do conflito social. Dessa forma a dinâmica de incorporação da tensão inerente as relações capitalistas faz funcionar um sistema de acesso a ‘cidadania’ através da relação salarial, garantindo um nível de distribuição de renda pela manutenção de ganhos reais de salário e também pela garantia dos direitos sociais. O fordismo se regula na integração da crise, mediado por um Estado intervencionista cuja principal característica é a de conseguir integrar esse conflito reconhecendo-o e transformando-o no próprio vetor de crescimento econômico (ver a esse respeito Cocco, 2001) Caracterizar o fordismo sem mascarar a natureza de sua dinâmica capitalista (marcada pelo caráter antagonista da relação capital versus trabalho), implica assim em abrir a possibilidade de fazer emergir, na análise desse período, também os elementos da exploração e da dominação implicados nesse processo. No fordismo, como em qualquer 56 outra dinâmica de produção capitalista, o capital para produzir precisa estabelecer uma relação com a força de trabalho, relação esta que necessariamente adquire (para que o capital realize seu lucro) um caráter de dominação/subordinação. Incluir a dominação como elemento fundamental para entender o fordismo não é assim incompatível com o reconhecimento de sua extensa política de direitos. Ao contrário, a disciplinarização, como forma prática dessa dominação da força de trabalho é, no período industrial, condição sine qua non de sua produtividade (condição necessária aos altos lucros do fordismo). A importância de reconhecer os elementos com que essa dominação se exerce, partindo de uma análise que incorpora o caráter disciplinarizador requerido na relação, possibilita enunciar a subjugação do trabalho (e do trabalhador) em todos os seus aspectos, abrindo a possibilidade de reconhecer também como produção deste período, ainda que na sua antítese, o caráter de emancipação instituído pelas lutas contra essa disciplinarização. Assim, se podemos reconhecer um avanço nas condições necessárias para a democratização da sociedade pela efetivação dos direitos do trabalho, por outro, reconhecemos nesse período também o auge do processo de subjugação do trabalhador. Para que a sociedade funcione, na perspectiva dos interesses do capital, é preciso que se exerça uma constante vigilância corporal, moral e estética desses trabalhadores, práticas que se inscrevem por sob a matriz disciplinarizadora da modernidade. A subjugação do trabalhador começa no processo de produção e se estende para todos os outros aspectos da sua vida. É o seu corpo que é subjugado continuamente. Nessa perspectiva é que Walter Benjamim (1984) afirma que “a construção da cidade moderna, que começa no século XIX, vai cumprir principalmente duas funções: atender ao capital financeiro pelo florescimento da especulação imobiliária, e controlar a emergente classe operária urbana, não só em seu tempo destinado à produção, mas também em seu tempo livre, em suas moradias. Esse controle tem em vista dois objetivos principais: o primeiro é seu disciplinamento como trabalhador, através da regularização de seu modo de 57 vida; o segundo, tão relevante como o primeiro, é que em seu tempo livre o trabalhador se torne um consumidor” (Benjamim apud Cassab, 2001:114). Mas será Foucault, melhor que qualquer outro quem irá deslindar os meandros desse paradigma da disciplinarização, debulhando as relações sociais até achar nela as formas de poder, destrinchando os campos institucionais até encontrar neles os ritos e exercícios dessa subjugação ao capital, descobrindo que todas as instituições que nascem desse modelo industrial se parecem com a fábrica. A escola se parece com a fábrica, o quartel se parece com a fábrica, a família se parece com a fábrica, dirá Foucault. Todas as instituições11 e os modelos que vão nascer desse paradigma têm dentro deles, embutida, a questão da disciplinarização e, portanto, a subjugação desse trabalhador pela máquina ou a subjugação do homem pelo capital. Para Pelbart, aludindo aos estudos de Foucault, o fazer viver característico desse período se faz principalmente numa disciplina corporal que está “Baseada no adestramento do corpo, na otimização de suas forças, na sua integração em sistemas de controle, as disciplinas o concebem como uma máquina (o corpo-máquina), sujeito assim a uma anátomo-política” (Pelbart, 2003:57). Essa forma de constituição da vida, característica desse período, irá resultar no que Foucault se refere como a docilização e disciplinarização do corpo. Escolher ler esse período a partir dessas referências é, assim, abrir frentes para entender o surgimento do pós-fordismo não só pelo viés do capital e das saídas que esse vai buscar, como a flexibilização e o neoliberalismo, mas principalmente entender o esgotamento desse modelo como resultado das lutas sociais que vão se constituir nesse período, marcadas na 11 O próprio movimento sindical, que aparece de forma fundamental no processo de garantias (de afirmação e ampliação) dos direitos, também aparece assim, ao mesmo tempo, como produto desse paradigma, resultante das condicionantes que essa subjugação impôs ao trabalhador e a sociedade, fazendo com que Boaventura de Souza Santos, aponte para a perda do caráter emancipador desses movimentos, que estariam submersos a dimensão de regulação dessas instituições que nascem do auge desse processo de industrialização do mundo. 58 luta contra o trabalho e também nas lutas contra esse paradigma disciplinar opressor fordista que se reflete nas relações que se constroem a partir e para além do trabalho. Ao buscar a passagem do fordismo para o pós-fordismo pelo viés econômico busco, assim, afirmar, primeiro, que o principal trabalho que valoriza o capital no ciclo produtivo atual não está subordinado à máquina, estando, portanto, a força de trabalho cada vez menos subordinada ao capital e, segundo, que esse trabalho requer cada vez menos as habilidades manuais que eram postas pra produzir no fordismo e se objetiva pelas qualidades imateriais do trabalhador. Assim, se podemos identificar no pós-fordismo elementos que falam das estratégias do capital na sua necessária busca pelo lucro, encontramos também elementos que dizem dos enfrentamentos para superação da forma com que essa relação capital versus trabalho se institui. Essa inversão de perspectiva permite voltar o olhar ao que de fato importa, reinstituindo as lutas no processo de constituição da história. O que está sendo colocado em evidência aqui é a forma com que a força de trabalho constrói o mundo, tanto na sua dimensão subordinada, de valorização do capital, como na sua dimensão criativa transformadora. II.1.2) Teoria do valor, afirmação e negação Dessa forma é que a categoria clássica do trabalho aparece como o eixo que estrutura o nosso debate. Para Marx o trabalho aparece como a força motriz em todas as formas de organização construídas na história, nos indicando (sob o viés dessa análise marxiana), que essa tendência também se afirme no ciclo produtivo atual. A teoria do valor, na dimensão primeira do seu conceito12 não perde sua validade, ao contrário, o estágio de acumulação 12 A teoria de valor enquanto categoria teórica está presente já nos economistas clássicos – Benjamim Franklin reconhece a verdadeira natureza do valor em seu primeiro ensaio de 1729 –, mas é na obra de Marx que essa concepção aparece como uma força capaz de refazer todo o sistema interpretativo de produção da realidade. Para Marx, é a potência da atividade humana que cria valor e determina, no seu processo produtivo, toda a 59 atual afirma cada vez mais essa teoria através da acentuada relevância do trabalho vivo nessa produção global. A atualização da teoria do valor (a partir do trabalho imaterial)l não pressupõe, portanto, um enfrentamento com a dimensão fundante do trabalho na obra de Marx. Ao contrário, para Negri, a idéia da abstração real13 é um dos elementos primordiais do método marxiano. Para o autor o trabalho (sua potência) continua sendo (e o é cada vez com mais intensidade) a origem de todo o valor e de toda a riqueza. Ou seja, para o autor “o trabalho efetivamente continua a ser a fonte essencial de valor na produção capitalista, isto não muda, mas precisamos investigar que tipo de trabalho estamos tratando e quais são as suas temporalidades” (Negri, 2005:193 ). Assim, se Negri reafirma com vigor o sentido da imanência no entendimento da construção da história, é com o mesmo vigor (e com os mesmos elementos) que também afirma o esgotamento da teoria de valor como medida válida de enunciação da exploração do capital. A relação, possível até aqui, entre o trabalho e o valor em termos quantitativos, (onde) “uma certa quantidade de tempo de trabalho abstrato equivale a uma quantidade de valor”(Negri, página 193, multidão) não mais se realiza nas sociedades pós-industriais “A unidade temporal de trabalho como medida básica de valor não faz (mais) sentido hoje em dia14 (Negri, 2005:193) exatamente porque falamos de um tipo de trabalho onde a quantidade de organização social que o sustenta, incluindo aqui a própria dimensão ontológica que emerge dessa construção social. 13 A idéia que está presente aqui não é a idéia do trabalho na sua dimensão individual, mas daquilo que os diferentes tipos de trabalho têm em comum; um trabalho independente da sua forma física. Falamos do trabalho abstrato, ou nas palavras de Negri: “Esse trabalho abstrato, explica Marx, é fundamental para entender o conceito capitalista de valor. Se, como dissemos, na sociedade capitalista o trabalho é a fonte de toda riqueza, o trabalho abstrato deve ser a fonte do trabalho em geral” (Negri, 2005:193). 14 Em Marx veremos que, ‘uma mercadoria tem um valor por ser uma cristalização de um trabalho social. A grandeza de seu valor, ou seu valor relativo, depende da maior ou menor quantidade dessa substância social que ela encerra, quer dizer, da quantidade relativa de trabalho necessário à sua produção. Portanto, os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas 60 tempo necessário para exercê-lo deixa de ser um elemento significativo da sua realização e produtividade. A possibilidade de uma relação direta entre tempo e valor, quando a valorização da mercadoria se faz a partir de habilidades cada vez mais subjetivas dos trabalhadores, apresenta um limite muito maior do que quando essa relação se efetiva no processo de produção clássica do capitalismo.15 Isso se dá porque no período do capitalismo industrial a valorização do trabalho se processa por atividades autônomas e repetitivas, onde o trabalhador precisa passar por cima de sua subjetividade para executar seu trabalho. Portanto, ao precisar apenas de uma força de trabalho adestrada para se valorizar é possível, ao capital, submeter essa força em quase toda sua potencialidade, sobretudo através do tempo em que a coloca para produzir. Contudo, sob um ciclo produtivo cuja principal forma de valorização é um tipo de trabalho que nega essa dimensão instrumental (o trabalho manual e autônomo do operário fabril), ou seja, que nega a dimensão mesma subordinada do trabalho e afirma, cada vez mais, a natureza de um trabalho criativo e emancipado do capital, fica cada vez mais difícil capturar essa potência valorizadora, ainda mais se tivermos como medida principal o tempo em que se coloca essa força de trabalho para produzir. plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no emso tempo de trabalho são iguais (Marx, “Salário, preço e lucro”. O capital, p. 75). 15 No período industrial a quantidade do tempo de trabalho é a medida mesmo da quantidade de valor médio que o trabalho pode gerar. O conceito de mais valia absoluta aparece como a expressão mais clara dessa relação direta entre tempo de trabalho e produção de valor. Contudo, essa relação se torna possível por se tratar de um período onde a força de trabalho está quase que totalmente subordinada ao capital. Se, o processo produtivo depende da força de trabalho, essa também depende do capital para se efetivar. Não à toa, Marx identifica a contradição fundamental das relações capitalistas nessa polaridade, entre a produção social e a apropriação privada, decorrência de uma transmissão histórica que deixa aos primeiros apenas sua força de trabalho e aos segundo os meios de produção. No pressuposto dessa possibilidade de medição da força de trabalho o que se encontra é a possibilidade do capital de disciplinar esses trabalhadores por sob um paradigma que vai se sustentar historicamente no modelo regulador do Welfare State, mas também no modelo, tão regulador quanto, de organização sindical que vai emergir nesse período. A organização técnico-científica do trabalho (OCT) seria a outra ponta de sustentação desse modelo produtivo. 61 Ao desenvolver um debate que recoloca a teoria do valor, primeiro na perspectiva de sua afirmação, onde a força de trabalho resplandece em toda a sua dimensão de construção da história, segunda na sua negação, invalidando o tempo (e a subordinação/disicplinarização da força de trabalho a esse tempo) como elemento capaz de garantir a produtividade do capital, sedimento o caminho para o entendimento das características do novo ciclo de produção imaterial, que passa pela negação da subsunção real e pela necessidade, por isso, do surgimento de novas formas de controle social, achando o gancho para entender as dimensões de poder presentes na construção dos espaços das favelas e do narcotráfico. II.1.3) A negação da subsunção real A assertiva que chegamos, a de que não é mais o tempo de trabalho a medida da exploração nos estágios de acumulação flexível pós-industriais, abre nossa discussão para uma segunda superação em relação ao entendimento das formas de re-produção das sociedades industriais, o pressuposto de que o trabalho que valoriza o capital na atualidade não está subordinado à máquina, estando, portanto, a força de trabalho cada vez menos subordinada ao capital. A tentativa de distinguir as características fundamentais nas transformações das sociedades contemporâneas pós-modernas não passa, assim, pela discussão da centralidade, ou não, do trabalho na produção, mas sim da natureza desse trabalho, de sua nova constituição e da constituição de um novo território produtivo. Negri institui aqui uma inversão em relação ao campo de análise marxista ortodoxo. Para esses autores as mudanças no mundo do trabalho se explicam pela subjugação cada vez maior da força de trabalho ao capital. O eixo central de explicação dessas mudanças é assim a substituição da força de trabalho (trabalho vivo) pela máquina (trabalho morto). A explicação da realidade cunhada por esse campo limita-se, necessariamente, a um entendimento de mundo por sob o ponto de vista do capital, destituindo a possibilidade de 62 entender a globalização também como resultado de um processo de lutas contra a automação do trabalho e sua subordinação à máquina16. Para Negri, ao contrário, são essas lutas que acabam por provocar mudanças na natureza desse trabalho. A nova síntese que aparece aqui entre o capital e o trabalho é, assim, bastante diferente do que a síntese de subordinação apontada pelos marxistas ortodoxos. Abre se aqui a enunciação de uma nova contradição que supera, na sua própria natureza, o caráter dialético da contradição anterior que coloca em oposição unicausal os conceitos de capital e o de trabalho, gerada nas sociedades industriais. Quando a relação social capitalista só acontece pela associação dos meios de produção e da força de trabalho; estão, pois, ambos condicionados (e condicionantes) a uma determinada formação social. Aqui o capital e o trabalho formam uma unidade necessária. O conceito de trabalho incorre assim na probabilidade de apresentar-se apenas na sua face subordinada, de trabalho instrumental que tende a subordinar-se cada vez mais as máquinas e se diluir no processo de produção e constituição do mundo. Para sair desse viés analítico voltamos, assim, à afirmação marxista de que é o trabalho vivo (e não o trabalho morto) que impõe a dinâmica de desenvolvimento da história. Pois é essa a única perspectiva que nos possibilita chegar ao primordialmente novo nas relações contemporâneas: a forma como um novo tipo de trabalho emerge e transforma as relações sociais de produção e toda a vida societária que se ergue dessas relações. Será assim que Negri, ao achar o trabalho vivo como elemento essencial da dinâmica atual de acumulação capitalista, consegue também retomar a acepção do trabalho como fundação ontológica dos sujeitos. 16 Diferentemente, inclusive, do que vão constatar os marxistas ortodoxos, de que as sociedades pós-industriais teriam no seu processo produtivo cada vez mais a subjugação da força de trabalho às máquinas, Negri afirma a relevância cada vez maior do trabalho vivo no atual processo de acumulação global Pouco importa, assim, se esses marxistas ortodoxos afirmem a centralidade do trabalho, se não conseguem vê-lo senão na sua dimensão subordinada, ou seja, a centralidade, para esses autores, na verdade está no trabalho morto, daí as análises que explicam a constituição da história sempre pela determinação do capital. Para esses autores ortodoxos, o enunciado de todo um corpo social se limita as explicações particulares das novas formas do trabalho se organizar. 63 Assim nós dirá Negri, que “O conceito de trabalho vivo é a chave, seja para analisar e compreender a produção, seja para apreender o sujeito revolucionário. O mesmo conceito mantém juntos trabalho e ação. A lógica materialista da exposição científica representa, ao mesmo tempo, a solução do problema da constituição do sujeito que se emancipa” (Negri e Lazzarato, 2001:76). Estamos, portanto, como dizíamos, em face da abertura da enunciação de uma nova contradição que supera o caráter dialético da contradição anterior e recoloca a dimensão do sujeito no processo de constituição da história. A superação teórico-conceitual, da impossibilidade da força de trabalho se efetivar a não ser pela sua junção subordinada ao capital, só pode aflorar nos enunciados da escola operaísta quando está, também sendo gestada na realidade. Quando emerge nas sociedades pósmodernas um tipo de trabalho que, quanto menos subordinado ao capital mais produtivo se torna, a negação conceitual da subsunção real afirma a perspectiva marxiana da teoria como uma construção circunscrita num tempo determinado refletindo a materialidade histórica. Ao negar algumas das proposições de Marx, o que o campo teórico da escola operaísta faz é atualizar o entendimento das formas com que os enfrentamentos entre o capital e o trabalho se colocam hoje, ou seja, atualizar (diferentemente dos marxistas ortodoxos) justamente o potencial crítico e revolucionário da obra de Marx, devolvendo o sujeito pra história. Assim é que “a teoria social deve ser modelada segundo os contornos da realidade social”, dirá Negri. Dessa forma também é que seguir o método de Marx pode significar portanto “nos afastar das teorias de Marx, na medida em que o objeto da sua crítica, a produção capitalista e a sociedade capitalista como um todo mudou. Em termos simplificados, para seguir os passos de Marx temos realmente de ultrapassa-lo, desenvolvendo com base em seu método um novo aparato teórico adequado a nossa atual situação (Negri, 2003:189). 64 Será, portanto, a constituição material efetivada pelo trabalho vivo que nos revela a possibilidade de sair desse antagonismo dialético em que a modernidade se amarrou. Serão assim as lutas sociais que se defrontaram com a disciplinarização do trabalho e da vida, entre as décadas de 60 a 70 17 que fazem emergir novas relações sociais de produção sintetizadas num novo tipo de trabalho que tem como principal natureza não mais precisar, para se realizar enquanto valor, (imanência do ato em si da vida, efetivação da construção material do mundo) passar pelo capital (pelo trabalho morto, pelas máquinas, pelo capital). É o trabalho vivo que protagoniza a história. Dessa forma é que Negri precisou sair da armadilha em que se meteram muitos marxistas ortodoxos, de acreditar que o trabalho subordinou e, subordina-se cada vez mais as máquinas, para encontrar nesse processo o que de fato se constituía como vitalidade histórica, o trabalho vivo, ou mais especificamente um trabalho vivo que se qualifica pela sua condição de produzir mercadorias imateriais, com o uso de qualidades imateriais, como o intelecto, a afetividade e a criatividade. O que Negri faz, assim, é levar ao limite histórico possível a afirmação marxiana de uma síntese nova que não é mais a de subordinação do trabalho ao capital (ainda que falemos cada vez mais de um biopoder). A identificação que o desenvolvimento das forças produtivas apontariam para o favorecimento de relações produtivas de nova ordem, a partir da criação das condições que admitissem novas relações entre o trabalho e o capital, está presente em Marx: “Uma vez conseguida, a separação entre o trabalhador e seus meios de trabalho subsiste e prossegue a uma escala sempre crescente, até que uma nova revolução, que agite o sistema de produção de um extremo ao outro, restaure a unidade primitiva sob uma forma histórica nova” (Marx, Salário, Preço e Lucro, p. 55). 17 Para Pelbart a “recusa do trabalho industrial que se manifestou através das lutas operárias dos anos 60-70 suscitou o desenvolvimento de um noo-trabalho, o trabalho mental.”(Pelbart, 2003:94) 65 O que Negri identifica são as formas e as possibilidades de estar sendo gestadas as condições para que o trabalho aconteça de forma autônoma ao capital, ou, como coloca Marx, que essa unidade primitiva entre trabalho e capital adquira uma nova forma. A superação dessa relação capitalista se manifesta assim quando olhamos para o espaço da construção material e identificamos um novo tipo de trabalho (que tende a hegemonizar todos os outros e, assim, subordinar toda a lógica de acumulação capitalista) cuja principal característica consiste em ser um trabalho que, quanto mais livre estiver do espaço e do tempo disciplinado da produção fabril, mais produtivo se tornará, um trabalho que se constitui por fora (a margem) do processo produtivo e por isso tem características que o transcende. Um ciclo produtivo que praticamente prescinde do capital não precisa (nem pode) mais, portanto, impor uma disciplina subordinante à força de trabalho. Ao contrário, dirá Negri: “A época em que o controle de todos os elementos da produção dependia da vontade e da capacidade do capitalista é superada: é o trabalho que, cada vez mais, define o capitalista, e não o contrário” (Lazzarato e Negri, 2001:31-2). Na direção inversa da força de trabalho no fordismo que, quanto mais agregada ao capital mais produtiva se tornaria, a dinâmica valorativa do capital assume aqui uma nova configuração. Estamos em face da revolução, que nós fala Marx. A possibilidade do trabalho imaterial se efetivar por fora do capital vem junto com um processo que também lhe confere novas exigências e qualificações. O que emerge hoje é, assim, a natureza de um trabalho que tende e precisa ser cada vez mais cooperado e subjetivo para ser produtivo. É, pois, ao encontrar o trabalho vivo no processo produtivo atual que a escola operaísta pode distingui-lo na sua indeterminação, como elemento do novo, de criação e de transformação do mundo. A lógica da dialética anterior é quebrada quando a superação do conflito capital versus trabalho não se encontra mais nessa antinomia que se abre apenas para um antagonismo 66 irresolúvel, mas como uma alternativa que passa por fora dessa relação e esvazia o sentido histórico (de subordinação) da mesma. A superação do conceito marxiano de subsunção real desloca, assim, necessariamente, todo o eixo marxista de explicação da realidade. Assim, é exatamente por que as condições do desenvolvimento das forças produtivas (possibilitadas pela inovação que surge desse encontro da força de trabalho e da máquina) permitiram, é que se pode abrir a possibilidade para novas relações sociais. Ou seja, é exatamente como fruto do processo de construção do mundo pelo trabalho, açambarcado na sua dimensão subordinada, mas principalmente na sua dimensão criativa (trabalho vivo) que devemos buscar entender as relações sociais atuais. Quando a materialidade histórica nega a subsunção real e, a força de trabalho não mais precisa para produzir e se reproduzir subjugar-se à máquina, é o capital que precisa descobrir novas formas de subordinar esse trabalho, pois é justamente a subjetividade do trabalhador (aquilo que extrapola, que vaza da máquina) que se torna produtivo. É justamente a dimensão transformadora e revolucionária da força de trabalho que explode na atualidade. Encontramos aqui o conceito de multidão na sua dimensão de classe: abrangendo todos aqueles que brigam contra a exploração dominante, emergida da dinâmica constitutiva da materialidade. Dessa forma é que podemos entender a afirmação de Negri de que: “A particularidade do método marxiano consiste no fato de que suas categorias apreendem, ao mesmo tempo, a objetividade da produção e a subjetividade dos agentes da transformação, consentindo uma tradução em ambos os sentidos, entre estrutura e sujeito” (Lazzarato e Negri, 2001:76). A polarização entre capital e trabalho implicou, na modernidade, também uma subsunção necessária do sujeito à estrutura. Na concepção moderna de soberania, a dialética entre capital e trabalho se refaz também na relação sujeito versus sociedade. 67 Essa conformação implica na emergência de um sujeito que é também fruto dessa negação (dialética) e, portanto, um sujeito que limita sua existência a essa antítese, levando ao estrangulamento o projeto de emancipação nos marcos regulatórios instados pela modernidade. A dialética sujeito e estrutura impossibilita o surgimento de um sujeito, a não ser subordinado a essa ordem (ainda que na sua negação). A possibilidade de romper com a dialética clássica entre capital e trabalho abre assim a possibilidade, de também, nas sociedades pós modernas, se refazer a dialética entre sujeito e estrutura. O surgimento, na pós-modernidade, da multidão é a possibilidade dessa superação.18 É, pois, quando Negri identifica que, para se valorizar o uso atual da força de trabalho precisa ser cada vez mais imaterial, cooperado e socializado é que ele pode também afirmar a constituição de uma nova eticidade advinda desse trabalho vivo na sua dimensão de construção do mundo presente. Assim é que, a partir de Negri, reafirmamos o marxismo e podemos trazer de volta a história para o plano das lutas, pois é, nas sociedades contemporâneas, mais do que nunca, que coincidem o tempo de produção com o tempo de vida e o tempo de luta. São os enfrentamentos que permitem aos trabalhadores experimentarem novas práticas sociais do comum; novas formas de produção de vida. Formas que configuram os territórios urbanos das sociedades contemporâneas, e falam de um novo tempo, de uma nova forma de fazer e de conceber o mundo. 18 Negri traz para esse debate um novo conceito de síntese, a multidão. “(...) uma das verdades recorrentes da filosofia política é que só aquilo que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou o indivíduo; sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos não podem governar, devendo pelo contrário ser governados. (...) para Negri, no entanto, o conceito de multidão desafia esta verdade consagrada da soberania. a multidão, embora se mantenha múltipla e internamente diferente, é capaz de agir em comum, e portanto de se governar. Em vez de um corpo político com uma parte que comanda e outras que obedecem, a multidão é carne viva que governa a si mesma (Negri, 2001:140-1). 68 Tempo e espaço ganham novas dimensões, não mais do chão fabril, mas principalmente não mais daquele tempo fabril: seriado, ritmado, disciplinado. Falamos assim de um tempo que é o tempo da vida: das possibilidades de socializar, interagir. Falamos de um tempo que é o da circulação, da rede. Falamos de um novo tempo e de um novo espaço. PARTE II Trabalho imaterial, consumo e externalidades: as novas relações constitutivas do capitalismo cognitivo Introdução O propósito de entender a configuração dos territórios urbanos na possibilidade de identificar os vetores de dominação -mas principalmente de resistência- que os tecem, foi o que abriu a exigência de um referencial teórico que atualizasse as contradições do capitalismo para suas expressões contemporâneas, me levando (ao querer partir das mudanças societárias para explicar as favelas) a abarcar esse universo através de categorias que pudessem imprimir sentido a essa nova organização global. Pensar as favelas como expressão do atual modo de produção exige, assim, que partamos de (novas) categorias que se inscrevem a partir do pressuposto inicial de que a hegemonia do trabalho imaterial reestruturou toda a base material de produção, fazendo com que dentro das cidades as favelas apareçam como uma complexa expressão do rompimento com esse modelo industrial, onde, desde a sua origem, as favelas se instituíram (também) no avesso da dinâmica constitutiva/afirmativa desse sistema disciplinar, na medida em que nascem como território ilegal, informal e ilegítimo. Quando afirmo a hegemonia do trabalho imaterial e busco a nova ‘natureza’ desse trabalho me reporto assim a um processo que nasce como fruto da negação do trabalho fabril e se afirma como expressão de um período de lutas que tem sua démarche ‘por fora’ do processo de transformação material da mercadoria, até chegar a ponto de subordiná-lo, onde esse fora passa a estar dentro, ou melhor, já não há um fora.19 19 Para Negri, a própria concepção do que é fora (exterior) e o que é dentro (interior) aparece como característica do pensamento moderno visto sob diferentes discursos; que podem ser identificados a partir da noção de soberania, da noção do consciente e 69 A tentativa de olhar as favelas por sob esse viés econômico é alçá-las a essa mesma demarche; se antes as favelas apareciam como um território por fora da constituição dos espaços da produção e, portanto, por fora da constituição formal das cidades e suas funcionalidades, hoje ela aparece por dentro dessa produção. O território pós-moderno expressa, assim, a necessidade da incorporação dos espaços da sociabilidade humana como condição da valorização do capital, causando o que Cocco vai chamar da ‘desarticulação das dimensões espaço temporais do fordismo’ pois, diferente da disciplinarização, que tornava no fordismo o trabalhador produtivo, nas sociedades pósindustriais o que se torna produtivo é a sociabilidade e suas externalidades. É assim que a emergência desse novo ciclo produtivo produz, conseqüentemente, uma nova configuração do espaço: nova síntese entre trabalho e território. Na continuidade do debate o que pretendo agora é mostrar como, quando o trabalho imaterial se torna central na produção e na acumulação capitalista, e opera um deslocamento territorial que traz a vida (e sua constituição) para o centro da produção, o espaço da favela também ganha novos contornos e sentidos. Assim é que, para perceber porque no capitalismo cognitivo são as externalidades que se tornam produtivas é necessário, portanto, perceber a nova forma de organização da produção em sua totalidade, partindo de um novo entendimento do trabalho (agora transformado em trabalho imaterial), mas também partindo de um novo entendimento das inconsciente e da noção da natureza como algo externo e independente do processo civilizatório. Para Negri assim, a soberania moderna sempre se concebe a partir dos territórios “Os primeiros teóricos sociais modernos, por exemplo, de Hobbes a Rosseau, entenderam a ordem civil como um espaço limitado e interior, oposto à ordem externa da natureza ou em contraste com ela. O espaço confinado da ordem civil, seu lugar, é definido pela separação dos espaços externos da natureza” (Negri, 2001:207). O que vivemos hoje é asssim a internalização do fora ao ‘civilizarmos’ a natureza, ou ainda nas palavras de Negri “Certamente continuamos a ter florestas e grilos e tempestades em nosso mundo, e continuaremos a julgar que nossas psiques são movidas por instintos e paixões naturais;mas não temos natureza no sentido de que essas forças e esses fenomenos já não são entendidos como exteriores, isto é, eles não são vistos como originais independentes do artifio da ordem civil. Num mundo pós-moderno todos os fenômenos e forças são artificiais, ou, como diriam alguns, parte da história. A moderna dialética do dentro e do fora foi substituida por um jogo de graus e intensidades, de hibridismo e artificialidade (Idem, 207). 70 relações que circundam esse trabalho, até chegar ao ponto de poder afirmar que subordinar a força de trabalho a um espaço ou a um tempo produtivo restrito não garante mais ao capital a sua valorização, pois, para produzir o capital precisa agora subjugar toda a vida do trabalhador, todos os seus modos de existência, ele precisa interferir em tudo, ele precisa incorporar para dentro de si o fora, e tornar tudo dentro. Quando nos direcionamos para uma sociedade cuja reprodução exige mecanismos de comando cada vez mais imanentes ao campo social, numa dinâmica onde “O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistema de comunicações, redes de informações etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade” (Negri, 2001:42) é que novas manifestações no território urbano emergirão. As cidades passam assim a ser a expressão de relações e formas de produzir cujo paradigma societário se afirma no controle, muito mais do que na disciplina. A função mais elevada desse poder é envolver a vida totalmente, e sua tarefa primordial é administrá-la. São portanto agora os espaços da vida que são chamados a intervir. O ordenamento físico das cidades não pode, assim, ser visto separado da funcionalidade que essas adquirem em cada modelo econômico, sobretudo em um momento em que “as grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações sociais, corpos e mente - ou seja produzem produtores (Idem, p. 51). O fluxo desse novo ciclo produtivo efetiva múltiplas conexões de ordem diversas. Ao se constituírem, essas conexões deslocam os espaços das cidades de suas funções e ou de suas forças, nova síntese de espaço e tempo que reconstrói o sentido de territorialização, fazendo com que os espaços de produção se desloquem ainda mais para os centros metropolitanos (espaço da sociabilidade), cuja capacidade de fluxo é uma das suas principais características. 71 Dessa forma dirá Negri: “...quando o poder se torna inteiramente biopolítico, todo o corpo social é abarcado pela máquina do poder e desenvolvido em suas virtualidades. Essa relação é aberta, qualitativa e expressiva. A sociedade, agrupada dentro de um poder que vai até os gânglios da estrutura social e seus processos de desenvolvimento, reage como um corpo só. O poder é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas profundezas da consciência e dos corpos da população e ao mesmo tempo da totalidade das relações sociais (Negri, 2001:44-45). Assim é que a mudança que incide sobre a produção sintetiza o deslocamento que vai se constituir como base dessa nova organização, revelando a dimensão onde a favela pode se tornar produtiva: enquanto conhecimento coletivo e cooperado. Dessa forma é que precisamos, para afirmar o que aponto como um fenômeno que permite colocar os espaços de reprodução20 da vida social no centro da produção, obter uma totalização do atual ciclo produtivo, abrindo com isso para a possibilidade de capturar as relações de dominação que emergem dessa nova dinâmica, buscando entender como as favelas (e o narcofavela) sobressaem numa perspectiva de resistência e de luta, pois, apenas a partir dessa atualização é que posso conformar as favelas como espaço produtivo e mostrar como o tráfico de drogas interfere nessa rede de produção imaterial subjetiva. Aqui se abre a nossa primeira perspectiva teórica, a nova forma com que o sentido do consumo vai aparecer nas sociedades pós-modernas, mas que já tem sua base conceitual de explicação na teoria marxista. II.2.1) O Consumo na Pós-Modernidade O consumo como categoria econômica está presente nas formulações de Marx (portanto no período da modernidade) já numa perspectiva bastante ampliada do seu entendimento na relação produção-consumo-distribuição. Nos seus estudos sobre economia política, Marx 20 Em Lazarato podemos encontrar o novo sentido da dinâmica produtiva e reprodutiva atual do capital, assim: “A economia capitalista contemporânea segue à risca o ciclo de valorização descrito por Tarde: a invenção, enquanto criação de possíveis e atualização destes possíveis nas almas (dos consumidotres e dos trabalhadores), é a verdadeira 72 parte da distinção desses momentos, a partir das categorias de mercadoria e seus decorrentes, que explicam o processo de produção e através dele, explicam o caráter próprio e irrefutável do modo de produção capitalista. Aqui o entendimento de consumo já está clivado por vários sentidos e não apenas como o uso do produto em si. Em seus estudos do livro II do Capital Marx vai acentuar inicialmente, a inflexão produtiva do consumo, o consumo produtivo. Para Marx: “Primeiro do ponto de vista subjetivo o indivíduo ao produzir consome-se, gasta suas próprias faculdades para efetivar o ato de produzir. Segundo, ao produzir ele gasta os meios de produção utilizados no processo que, em parte, transferem-se para o novo produto. “O próprio ato de produção é, pois, em todos os seus sentidos, também ato de consumo” (Marx, 1978:108), e que será denominado de consumo produtivo.. Assim, “a produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo” (idem, ibidem). Para o autor assim se a produção em si é necessariamente consumo, o consumo é necessariamente produção. Assim é que o consumo já aparece como uma das etapas necessárias para a realização da mercadoria. Na fórmula básica D-M >M’-D’ Marx apresenta um ciclo de produção industrial que não se completa enquanto a mercadoria não chega ao seu consumidor e o dinheiro não retorna às mãos do produtor. “A importância e influência desses movimentos no processo de acumulação – tanto intra quanto interfirmas – está devidamente registrada em Marx (sobretudo no livro II de O capital), que não os confunde com a transformação material em si. São processos distintos, mesmo quando realizados no local da fábrica, causando pois efeitos diversos e até contraditório na valorização capitalista” (Dantas, 1999:223). Assim dirá Marx: “o produto só estará pronto para o consumo assim que tiver completado o movimento entre as suas várias fases de transformação, e entre a fábrica e o mercado (Marx, 1983:II, apud Dantas, 1999: 233). produção, ao passo que aquilo que Marx e os economistas chamam de produção é, na 73 Assim é que, no processo de produção clássica do capitalismo industrial, ainda que o ciclo total da mercadoria só se efetive com o consumo, ainda podemos distinguir seus momentos. A produção da mercadoria incorpora o consumo, mas não se mistura a ele. Na pós-modernidade é justamente (ou só) no momento do consumo que o valor de uso (e conseqüentemente a possibilidade de se efetivar o valor de troca) se faz, tornando, portanto, não distinguível o momento da produção do momento de consumo. O que é importante observar nessa discussão é que como categoria econômica o consumo já aparece na obra de Marx (não só como uma das etapas do processo produtivo da mercadoria, mas já) transparecendo o sentido com que vai emergir, quase um século depois, nas sociedades pós-industriais. Assim é que o sentido que quero depreender do consumo já vai estar presente no pensamento de Marx. Para o autor, além de o consumo impulsionar uma nova produção, criando e reproduzindo a necessidade, o produto só se torna produto efetivo senão no seu consumo. Nas suas palavras: “De fato, cada um não é apenas imediatamente o outro, nem apenas intermediário do outro; cada um, ao realizar-se cria o outro. É o consumo que realiza plenamente o ato da produção ao dar ao produto seu caráter acabado de produto, ao dissolvê-lo consumindo a forma de coisa independente que ele reveste, ao elevar à destreza pela necessidade de repetição, a disposição desenvolvida no primeiro ato da produção; ele não é somente o ato último pelo qual o produto se torna produto, mas também o ato pelo qual o produto se torna produtor” (Marx, 1978:111). É esse o entendimento que irá se acentuar como condição histórica e como categoria teórica de explicação da realidade nas sociedades pós-fordistas, pois, essa afirmação conceitual marxiana só ganha visibilidade quando o esgotamento da espiral produtiva de produção em massa e do consumo em massa obriga o capital à estratégias que se direcionam cada vez mais para fora desse processo de produção material. (privilegiando a venda e a relação com o consumidor). verdade, reprodução (Lazzarato, 2006:108). 74 Assim Negri, referindo-se ao processo produtivo pós-fordista, dirá: “um produto, antes de ser fabricado, deve ser vendido (também na indústria pesada, como aquela de automóvel, em que um veículo é colocado em produção só depois que a rede de venda encomenda). Esta estratégia se baseia sobre a produção e o consumo de informação. Ela mobiliza importantes estratégias de comunicação e de marketing para reaprender a informação (conhecer a tendência do mercado) e fazê-la circular (construir um mercado)” (Lazzarato e Negri, 2001:43-4). É esse o processo histórico que obriga o capital a deslocar seu aparato produtivo para fora da produção, deslocando-se da produção em massa para uma produção direcionada. O capital só vai produzir agora o que já estiver previamente vendido, até chegar ao ponto em que toda a sua base vai sofrer um deslocamento significativo que vai arrastar a dinâmica produtiva do espaço da produção material para um novo processo cuja intenção é a de captar o consumo/consumidor, causando um redirecionamento (e uma transformação) nas forças produtivas, para produzir o próprio mercado (do que vai ser consumido). A reportagem publicada no Jornal “O Globo”, no encarte da Revista de Domingo, sob o título “Eles são você amanhã”, de Bruno Natal, dá bem a dimensão de como são agora os espaços da vida que se tornam produtivos. A reportagem nos possibilita, ainda que de forma parcial, o entendimento da constituição dessa rede produtiva ao mostrar quem são aqueles profissionais que identificam a tendência do mercado. “Ele agora ganha dinheiro para descobrir –antes mesmo de você- o que você vai falar, o que você vai comprar e, principalmente, o que você vai ser amanhã” (O Globo, Revista de Domingo, 1/4/2007, p. 18). Para isso “As grandes marcas acabaram percebendo que estar misturado ao público-alvo é a maneira mais prática de identificá-lo. É a forma mais confiável de acertá-lo” (idem, p. 20). A dimensão imaterial desse processo aparece já na estrutura organizativa do trabalho. Uma agencia de pesquisa, como por exemplo, a BOX 1824 que tem entre clientes a UNILEVER (em 20 países incluindo os Estados Unidos, a Inglaterra e o México) a Nokia (no Brasil, na 75 Índia, na China e na Tailândia) e a Nike (em toda a América Latina), não tem sede nem nenhuma estrutura física e os funcionários só se comunicam virtualmente. O importante nesse caso é a possibilidade de capturar a vida para o processo produtivo, como aparece abaixo: “Caçadores de tendências é a tradução para coll hunters, expressão criada em 1997 pela revista americana New Yorker e usada, inicialmente, para designar profissionais que trabalham com moda. O conceito evoluiu. Os caçadores de tendências saíram das bordas das passarelas e montaram seus próprios negócios. Como Rony. Eles trabalham também, com observadores contratados, pessoas antenadas que podem estar na praia, nos botequins, nos pagodes, nas festas, nos escritórios, comprando alimentos orgânicos na feira, dançando nas boates moderninhas ou coçando o dedão do pé e vendo televisão em casa, o importante é que personifiquem um segmento” (idem, ibidem). Mas, o que de mais importante se pode observar nesse processo produtivo atual é que, mais do que esse trabalho imaterial que envolve o ciclo produtivo, é o fato de que todos nós hoje somos chamados a produzir. Assim, ainda segundo a reportagem – traduzindo os resultados das pesquisas e estudos oriundos dessas empresas – as pessoas (consumidores) poderiam ser divididas em dois segmentos: “Alfa seriam aquelas inovadoras, com comportamento totalmente individual em relação a determinado produto ou serviço. Beta são os disseminadores, aqueles que percebem logo a inovação, mastigam e acabam fazendo com que ela chegue ao restante da população” (idem, 21). Voltando as nossas incursões teórica, podemos perceber assim como o desenvolvimento das forças produtivas torna o trabalho cada vez mais uma atividade de ‘supervisão das máquinas’ e a atividade produtiva como um todo uma atividade de informação e comunicação. Ao olharmos as dinâmicas produtivas atuais podemos identificar, portanto, como o capitalismo veio concentrando o trabalho vivo “nas atividades de processamento da informação enquanto a transformação material passa a depender fundamentalmente do 76 trabalho mecânico”, nos sinaliza Dantas (Lastres, Helena (org.) Informação e Globalização na era do conhecimento,1999:227), sendo essa a tendência que já aparece nos Grundrisse, onde Marx antevê que “o trabalho se torne cada vez mais imaterial, isto é, dependa fundamentalmente das energias intelectuais e científicas que o constituem”. O trabalho que alcançou a qualidade imaterial e é organizado por energias intelectuais e científicas torna, segundo Marx, inessenciais e não-efetivas, isto é, destrói as condições reais nas quais a acumulação anteriormente se desenvolvia (Negri, 2003:92). Nesse sentido é que para desvelar do consumo a sua nova forma precisamos distinguir a própria natureza da mercadoria que se produz; pois só posso entender a verdadeira dimensão que o consumo ganha ao entender que o que está a se produzir nas sociedades contemporâneas são as formas de vida, sendo, portanto, no ato de consumo (de vida) que se afirma o caráter do ciclo produtivo pós-moderno: a produção das relações sociais e da própria subjetividade do consumidor (a nova mercadoria). Para garantir a acumulação capitalista (e toda uma organização societária subordinada a esses interesses) num ciclo onde o que se está a produzir são mercadorias intangíveis serviços, conhecimentos, informações e tecnologia - é que o trabalho manual e mecânico se torna cada vez mais inócuo. Assim é que voltamos aqui à questão do uso da força de trabalho, pois para produzir a subjetividade (e garantir a dinâmica capitalista) o trabalho manual (e adestrado) tem cada vez menos funcionalidade, como nos diz Negri: “.... cada aumento da produção nasce da expressão de atividades intelectuais, da força produtiva da descoberta científica e sobretudo da estreita aplicação da ciência e da tecnologia à elaboração da atividade de transformação da matéria “ (Negri, 2003:92-3). Dessa forma, quando se considera o conjunto da produção da sociedade capitalista, o tempo de trabalho torna-se não essencial, afirma Negri. Mas, se não se trata mais da aplicação de uma força de trabalho objetiva (da versação de um tempo de trabalho objetivo) ainda se trata, no entanto, da aplicação de uma força de trabalho, só que agora requerida toda naquilo que ela tem de subjetividade: sua 77 intelectualidade, sua criatividade e suas emoções são qualidades essenciais para que a nova mercadoria imaterial se efetive, como nos coloca Perbalt: “E quando dizemos que eles exigem de quem os produz sua subjetividade, queremos dizer que eles requisitam sua forma de pensar, imaginar, viver isto é, suas formas de vida. “O que caracteriza o trabalho imaterial, tendencialmente predominante no capitalismo de hoje, é que por um lado, para ser produzido ele exige a subjetividade, sobretudo a subjetividade de quem o produz, no limite até os seus sonhos e crises são postos para trabalhar, e por outro que os fluxos que ele produz, de informação, de imagem, de serviço, afetam e formatam sobretudo a subjetividade de quem os consome” (Pelbart, 2003:147). Dessa forma é que também o próprio tempo de trabalho vai se tornar não essencial, pois agora, mais do que nunca, o que conta para o processo produtivo (adquirir o uso da força de trabalho na sua forma mais lucrativa) são os espaços onde circulam o conhecimento; o que importa para o ciclo produtivo atual é, assim, o tempo onde as relações sociais se processam, o tempo onde a vida se constitui nas suas relações subjetivas. São agora os espaços onde circulam os afetos, onde se instituem comportamentos, linguagens, enfim, o espaço-tempo onde o cotidiano se constitui e produz suas manifestações é que se torna o espaço fundamental da produção no capitalismo cognitivo. Chegamos ao ponto onde é o consumo que precisa ser produzido, e onde é esta produção que se torna o principal dinamizador desse processo produtivo. A necessidade e a continuidade da produção de bens materiais estará, portanto, subsumida/hegemonizada pela dinâmica da produção das mercadorias imateriais. Como aparece ainda na reportagem citada: “O mercado entendeu a necessidade de se tentar antecipar os movimentos culturais e descobrir, através de uma verbalização ou de uma experiência de consumo, uma idéia que sirva para criar um novo produto ou serviço, explica Rony (idem, ibidem). Também nas palavras de Lazzarato o mesmo entendimento vai aparecer. Para esse autor: “O serviço não satisfaz uma demanda prévia, mas deve antecipá-la, ou melhor, fazê-la acontecer. Essa antecipação se faz inteiramente no campo 78 virtual, mobilizando os recursos da linguagem, da comunicação, dos enunciados, das imagens” (Lazzarato, 2006:111). Ou ainda: “O mercado, tal qual entende a economia política não existe: aquilo que chamamos de mercado é, na verdade, a constituição/captação da clientela. Dois elementos são essenciais nessa estratégia: a fidelização da clientela e a capacidade de renovar a oferta através da inovação. Captura e fidelização de clientes significa, sobretudo, capturar a atenção e a memória, capturar os cérebros; constituição e captura de desejos e crenças, constituição e captura de redes: “O mercado desaparece, o público se afirma“ (Lazzarato, 2006:110). Resgatamos, dessa forma, a trajetória do deslocamento que a passagem do fordismo para o pós-fordismo produz. Quando as lutas sociais conseguem finalmente romper com as amarras que prendem os trabalhadores as máquinas (e torna seu trabalho produtivo) o capital precisa se apropriar exatamente do novo que essa resistência produz: um novo tipo de trabalho (de uso da força de trabalho) que não passa mais pela máquina, mas que está articulado em redes que conectam um conhecimento e um tipo de comunicação de forma cada vez mais global. Ao pegar o ciclo de produção imaterial na sua globalidade vemos então, que esse, para se valorizar, afirma a constituição de uma dinâmica produtiva que permite captar, pelo processo de trabalho, os elementos inovadores da vida social que produzem valor, incorporando ao produto uma inovação constante o suficiente para garantir sua comercialização. Dessa forma é que “Nesta época cognitiva a produção de valor depende sempre mais de uma atividade intelectual criadora que não só se situa além da acumulação de massa, de fábrica etc. A originalidade do capital cognitivo consiste em captar, em uma atividade social generalizada, os elementos inovadores que produzem valor” (Negri, 2001:95). “A inovação não é mais, dirá Negri, subordinada somente à racionalização do trabalho, mas também aos imperativos comerciais. Parece então que a mercadoria pós-industrial é o resultado de um processo de criação que envolve tanto o produtor quanto o consumidor. “A ativação seja da 79 cooperação produtiva, seja da relação social com o consumidor, é materializada dentro e através do processo comunicativo” (Lazzarato e Negri. 2001:44). Aqui, a comunicação aparece como elemento que garante o gerenciamento da informação necessária para garantir a produção material, mas, sobretudo, aparece como elemento que institui o caráter comum da mercadoria. A comunicação aparece como elemento que permite que a subjetividade se expresse mas, sobretudo, se transforme em mercadoria pela integração em tempo real dos comportamentos de consumo ou quando os consumidores são integrados na produção enquanto figura produtiva. Assim o consumo ultrapassa completamente o sentido moderno, onde o valor da mercadoria considera ainda a escassez e o desgaste (que justifica a apropriação privada) e aparece, nas sociedades pós-modernas, como uma mercadoria que, não só não se desgasta ao ser consumida, mas que, ao contrário, se afirma, se valoriza objetivamente com o consumo. Essa nova ‘natureza comunicativa’ das forças produtivas e do trabalho exige, necessariamente, novas competências no ciclo econômico. Para fazer funcionar um sistema tão particular como esse é que: “As novas competências no pós-fordismo devem ser capazes de propor inovações técnicas e soluções comunicacionais adequadas a uma organização do trabalho cuja mecânica implica níveis cada vez mais importantes de cooperação e de subjetividade nos locais de produção, mas sobretudo entre esse locais e as redes de comunicação e consumo que estruturam os territórios metropolitanos” (Cocco, 199:273). Quando a comunicação se torna o elemento novo, hegemônico e ativador do processo produtivo, ela exige relações sociais diferenciadas, sustentadas na cooperação, pois como nos mostrou a reportem é o lugar do convívio, do comum, que cada vez mais se torna produtivo. 80 O que valoriza o capital hoje (possibilita o seu lucro e a sua efetivação enquanto fluxo) é assim essa atividade comunicacional que vai (precisar, historicamente) emergir para garantir a interação entre o processo produtivo e a vida (ou seja, entre o que vai ser produzido e o que vai ser vendido, entre a produção e o consumo). Assim que, quanto mais conectada, quanto mais aberta, mais fluida estiver essa ‘força de trabalho comunicativa’ mais produtiva ela será, quanto mais ela se sociabilizar, incorporar esse conhecimento geral que circula numa rede mundial, mais produtiva essa força de trabalho se tornará, onde as relações de produção passam cada vez mais por fora do capital. Esse trabalho comunicativo, ainda que não seja condição exclusiva do ciclo produtivo atual, pois que já está presente no processo de industrialização, se sobrepõe agora qualitativamente sobre o trabalho manual. Assim, continua Cocco: “Emerge um tipo de trabalho, fruto da recomposição do trabalho intelectual e manual e, ao mesmo tempo, da superação desses dois termos. Suas competências não levam apenas em conta a reorganização dos processos de trabalho. Elas viabilizam também a integração produtiva, a montante, nos territórios e nas redes sociais que os desenham, dos comportamento de consumo (Cocco, 1999:21). Dessa forma é que, nas sociedades pós-industriais o momento do consumo e o momento da produção passam a ser um só, da mesma forma que não se distingue mais o momento do trabalho do momento da vida, onde o “produto serviço torna-se uma construção e um processo social de concepção e inovação (Lazzarato e Negri, 2001:44) . Essa singularidade é o que nos permite afirmar que hoje os consumidores (ou o ato de consumir) se transformaram em figuras produtivas (em produção). E será a emergência dessa característica na economia pós- moderna o que me apresenta a possibilidade de achar a clivagem com as favelas. Falamos de novas figuras produtivas que participam da produção quando instituem, no feito mesmo de criação das suas vidas, atos criativos, lingüísticos, comunicativos. 81 O que aparece aqui é o conceito de Integração Produtiva do Consumo, e é Cocco que com as suas palavras apresenta o debate de forma elucidativa. Para Cocco o novo ciclo econômico qualifica-se pela integração produtiva dos consumidores, assim: “Eles participam da produção desde o momento de sua concepção, em dois níveis: pela integração em tempo real dos comportamentos de consumo; e pela proliferação disseminada dos atos criativos, lingüísticos e comunicativos. Duas são as maiores conseqüências desse deslocamento. Por um lado, os consumidores são integrados na produção não enquanto tais, mas enquanto novas figuras produtivas. Portanto, contrariamente às teorias pós-modernas, esse tipo de hibridação das figuras sociais do consumidor e do produtor não se traduz no desaparecimento do trabalho, mas em sua difusão social. Ao mesmo tempo que ele se torna imaterial, o trabalho penetra de maneira pervasiva todos os espaços e os tempos de vida. Por outro lado, a disciplina fabril entra em crise e a valorização do capital deve encontrar novas combinações produtivas, novos instrumentos de controle” (Cocco, 1999:24). A natureza de um ciclo produtivo que intensifica sua valorização ao incorporar os momentos de vida ao processo produtivo, até o seu limite, faz com que o ato mesmo do consumo -de serviços, informações, - se torne um ato também de produção, pois é só no ato de consumo que a mercadoria também se consuma: ganha forma, se conecta a uma produção comum e cooperada que produz uma determinada materialidade, (uma subjetividade). A dinâmica capitalista se transforma, dessa forma, numa dinâmica (ciclo produtivo imaterial) cuja direção é a produção das relações sociais. Assim que produção significa cada vez mais produzir a própria vida, significa produzir as formas com que os sujeitos vão estar no mundo, onde esse ‘estar no mundo’ aparece mediado, necessariamente, pelo o que esse sujeito vai consumir ao longo da sua existência. O consumo aqui é a interface do processo, é ele que materializa o produto e dinamiza a relação capitalista. Se, já não fazia nenhum sentido, mesmo no processo de produção 82 industrial, prescindir do consumo (para que produzir mercadorias se essas não forem vendidas?) ainda assim esses momentos se distinguiam. Hoje a mercadoria imaterial comunicativa que é produzida só se consuma no ato em si do consumo. Dessa forma é que “No ato de consumo, enquanto o suporte material da mercadoria é destruído, seu conteúdo informacional e comunicacional participa tanto da produção do ambiente ideológico e cultural do consumidor quanto da reprodução das condições de produção. Uma dinâmica que submete tanto os produtos tangíveis como os produtos intangíveis” (Cocco, 2001:107). A indústria de produção de bens intangíveis e de serviços não distingue mais os seus espaços e tempos de produção. (como no modelo industrial onde no espaço de transformação material a mercadoria estava sendo produzida e no espaço da reprodução da vida a mercadoria estava sendo consumida.). O tempo e o espaço de produção se fundiram na atualidade no momento do consumo. O que identificamos aqui é a forma como a produção da subjetividade sai da esfera da superestrutura e ganha a estrutura econômica criando uma nova síntese entre estrutura econômica e superestrutura; entre tempo de trabalho e tempo de vida e entre produção e consumo. Ou, como nos diz Negri: “Na esfera biopolítica, a vida é levada a trabalhar para a produção e a produção é levada a trabalhar para a vida. É uma grande colméia na qual a abelha rainha supervisiona continuamente produção e reprodução. Quanto mais profunda a análise, mais ela descobre, em níveis crescentes de intensidade, a construção interligada de relações interativas (Negri e Hardt, 2001:51). Ou ainda: “É, portanto, tanto produção como reprodução, tanto estrutura como superestrutura, porque é vida no sentido mais pleno e política no sentido mais próprio” (Negri e Hardt, 2001:49). Essa nova dimensão que a produção social adquire, numa inseparabilidade da produção e da reprodução, do tempo de trabalho e do tempo livre - na expressão mais efetiva da biopolítica foucaultiana – expressa sobretudo uma “nova configuração da autoprodução do capital, da produção da mais-valia capitalista. Estamos, nos dirá Lazzarato, ‘em face de 83 uma reviravolta e um deslocamento da dialética produção/consumo, assim como descrita por Marx nos Grundisse de 1857: “A necessidade de consumir, a capacidade de consumir, a pulsão a consumir não são mais produzidas indiretamente pelo objeto (produto), mas diretamente por dispositivos específicos que tendem a identificar-se com o processo de constituição da comunicação social. A publicidade e a produção da “capacidade de consumir, do impulso ao consumo, da necessidade de consumir, transformaram-se num “processo de trabalho. O trabalho imaterial produz acima da tudo uma relação social (uma relação de inovação, de produção, de consumo) e somente na presença desta reprodução a sua atividade tem um valor econômico. Esta atividade mostra imediatamente aquilo que a produção material ‘escondia’ – vale dizer que o trabalho não produz somente mercadorias, mas acima de tudo a relação de capital (apud Negri e Lazzarato, 2001:43l). Quando afirmamos que o processo de constituição das favelas se liga diretamente à questão econômica, não estamos, portanto, reduzindo as suas determinações. Ao contrário, ao associar o território urbano das favelas (e, dentro dela, as atividades do comércio no varejo da venda de drogas ilícitas) ao ciclo produtivo global estamos tomando essa relação pelo ponto mais complexo desse processo: a forma como essa produção econômica se instituiu hoje como relação social, pressupondo assim que, cada vez mais, essa produção econômica é hoje produção de produtos imateriais, ou ainda, produção de subjetividade. A subjetividade adquire aqui, assim, necessariamente sua dimensão social e comunicativa, onde buscamos visualizar também os potenciais de exploração e de revolução que essa dinâmica adquire nas favelas e no tráfico de drogas. PARTE III: AS FAVELAS COMO TERRITÓRIO DE MOBILIZAÇÃO PRODUTIVA III.1) O Trabalho Imaterial e os Espaços das Favelas Para conseguir fazer as clivagens entre as formas atuais de produção com a emergência das favelas como bacias produtivas imateriais foi necessário distender os sentidos que carregam os termos força produtiva e tecnologia, circunscrito ao modelo industrial clássico, 84 reconhecendo que, quando os enfrentamentos históricos produzem um estágio de acumulação cuja valorização passa pela incorporação dos momentos da reprodução da vida ao processo produtivo, toda a base estrutural dessa economia está mudada. Na impossibilidade de obter uma definição melhor desse ciclo capitalista, poderia sintetizálo,então, como um novo paradigma que diz respeito à constituição de uma sociedade ‘que se assenta numa forma desmaterializada de produzir mercadorias e de construir o mundo’ (Negri, 2003:91). A tendência da produção a assumir a forma imaterial (seja no uso da força de trabalho, seja no seu produto) recoloca sob novas bases toda a configuração histórica de organização societária, criando as bases para emergência do capitalismo cognitivo21. Assim é que o período atual de acumulação capitalista tende a afirmar o conhecimento e a informação como condições cada vez mais necessárias para a produção, ou como nos diz Gorz, “Isso porque as profundas alterações no capitalismo, a partir de meados do séc. XX, elevaram a ciência e o conhecimento tecnológico à condição de forças produtiva direta...(Gorz, apud Amadeu, 2005:9). Dessa forma é que, só é possível entender esse deslocamento das favelas para o espaço da produção e a transformação dos seus moradores em figuras produtivas, a não ser entendendo que falamos de uma nova economia. Essa economia ainda pressupõe a transformação e a criação de mercadorias tangíveis, mas se dinamiza e se valoriza pela produção de mercadorias não tangíveis. É a produção de bens imateriais, que se constroem a partir da circulação da informação e do conhecimento, que definem a produção e a reprodução social. 21 Alguns autores vão problematizar o termo capitalismo cognitivo, haja vista, segundo por exemplo Dantas, que o caráter cognitivo sempre esteve presente no capitalismo industrial, preferindo por isso o uso do termo capitalismo da informação. Contudo optamos em manter o termo cognitivo pois na mesma linha de raciocínio a informação e a comunicação também foram elementos importantes do capitalismo industrial. Assim, recorrendo a Dantas é que encontramos a afirmação de Marx: ”Existem, porém, ramos autonomos da industria. nos quais o processo de produção não é um novo produto material, não é uma mercadoria. Entre eles, economicamente importante é apenas a indústria da comunicação, seja ela 85 Dessa forma é que o trabalho imaterial remete ao debate da teoria do valor: afirmação do conceito marxiano de abstração e negação do conceito marxiano de subsunção real, situado historicamente na passagem do fordismo para o pós-fordismo. As externalidades se tornam fundamentais na produção, o espaço externo à produção: o espaço das cidades; os espaços onde as relações sociais de reprodução acontecem. Quando incorporamos o termo Bacias Produtivas Imateriais estamos fazendo referencia, assim, as elaborações de Cocco, que se aproxima do entendimento das cidade no pósfordismo a partir dos conceitos de general intellect e de trabalho imaterial, numa perspectiva que não desconsidera a relação entre globalização e redes produtivas locais. Assim para Cocco “Ao mesmo tempo não seria possível limitar a análise do papel econômico do território no pós-fordismo às suas dimensões logísticas. Se trata de um território humano, lugar de desenvolvimento dos recursos produtivos sociais, ou seja, das formas de vida dos trabalhadores imateriais ‘produtores-consumidores-usuários. Ora por definição, o território humano mais intenso e portanto o lugar com maior produtividade social, de expressão e de acumulação de formas de vida é a cidade” (Cocco, 1995:13). A integração das favelas no (des)ordenamento físico das cidades expressa assim a importância dessa população na rede de consumo-produção, ou seja, expressa principalmente a forma com que as formas de vida produzidas nesses espaços se transformam em matéria prima do ciclo produtivo global imaterial, considerando que a produção nas sociedades pós-industriais consiste justamente em captar os elementos inovadores da vida social que produzem valor. É portanto no espaço da vida (e, em especial, da vida precária) que se potencializa a inovação e, é também no espaço da vida onde se garante a difusão dos comportamentos de consumo. O processo produtivo atual aparece como um processo difuso que consegue transformar parte das energias intelectuais, afetivas e criativas que são despendidas pelos moradores indústria de transformação de mercadoria e pessoas propriamento dita, seja ela apenas de transmissão de informações, envio de cartas, telegramas etc. (Marx, 1983:II,42). 86 das favela no equacionamento de suas vidas, sejam apreendidas e valorizadas sob a perspectiva da dinâmica capitalista. Pois a possibilidade que tenho de relacionar as favelas como expressão de um novo paradigma produtivo é entendendo que, o que se está a produzir hoje são as formas como os homens vão interagir, conviver, e transitar num universo -cuja dinâmica principal é a comunicação- onde as próprias formas de vida se tornam produtivas. Cocco vai apontar assim como a reterritorialização do pós fordismo se alimenta ‘seguindo os eixos de desenvolvimento das redes ao longo das quais se afirmam as novas formas de cooperação criativa e produtiva’. Assim para o autor: “A passagem ao pós-fordismo é de certa forma o resultado de transformações na natureza da produção industrial devido ao fato que o local de produção é cada vez menos capaz de concentrar o conjunto das funções complexas de um processo de concepção-inovação-criação amplamente socializado. É portanto o paradigma da socialização do processo de produção que é necessário estudar para compreender as transformações do pós-fordismo” (Cocco, 1995:6) O que tem de novo, portanto, nessa clivagem entre a produção econômica e a constituição do território das favelas é que, o que está em jogo aqui é a produção da vida social. A produção econômica se torna, assim, sob muitos aspectos, ao mesmo tempo cultural e política e o trabalho imaterial expande seu hemisfério produtivo para todas as facetas da organização da vida. Assim nos fala Cocco: “No cruzamento da nova relação que liga a produção e o consumo, o trabalho imaterial pode ser justamente definido como a interface que torna ativa e organiza a relação criativa produção-consumo inovando continuamente as condições de comunicação” (Cocco, 1995:11). A construção da vida, em especial, nas favelas, demanda práticas sociais que exigem, permanentemente, o uso de estratégias que desenvolvem uma multiplicidade de habilidades. Assim que essas formas de vida produzem novas formas de ‘estar no mundo’, inovações que valorizam o capital. 87 Mas, se essa afirmação (que as favelas são espaços produtivos porque a produção hoje aparece como produção das relações sociais) sedimenta uma premissa importante para o nosso debate, ela também nos abre o desafio de identificar à materialidade dessa afirmação, desvelando a forma com que as favelas vão aparecer nesse processo. Desnecessário lembrar aqui que falamos de uma mercadoria intangível cuja propriedade se define apenas ao ser efetivada na relação de consumo. Se entendo o consumo-produção como uma produção de subjetividade entendo que essa mercadoria-produção precisa ser fluída, imaterial e intangível. Mas, não viso querer encontrar nas favelas os ‘centros físicos da produção imaterial’: industrias fonográficas, cinematográficas, editoriais, etc. O que preciso é comprovar como a produtividade desse ciclo de produção pós-industrial passa pela potência de vida. Os conflitos permanentes que obrigam esses jovens a estarem alertas dia e noite transforma-se, assim, numa forma de vida ‘no seu estado extremo de sobrevida e resistência’. Essas formas de vida produzem uma estética: ‘suas maneiras de ver sua vida, de protestar sua vida’, que é capitalizado pelo capital. Mas, se por um lado, essa criação pode assim ser apropriada, ao mesmo tempo essa estética tem nela incorporada as referencias da favela e de suas lutas. Assim que dessas formas de vida também nasce uma força: potência da resistência. O tráfico incorpora e dissemina assim uma estética revolucionária, por que fala da resistência, fala das lutas cotidianas com que essa população enfrenta o Estado na sua ‘negatividade’. Assim que são os jovens que enfrentam efetivamente esse Estado na sua faceta mais violenta. Falamos da produção de uma mercadoria imaterial que ao mesmo tempo que é produzida é consumida (ou que só se produz no momento de consumo) O processo de acumulação é definido por essa circulação da informação/conhecimento; assim que quanto mais é consumido mais valorizada essa mercadoria se torna. Valorização que se dá em diáspora, 88 que abre para a possibilidade da inovação, da criação, daquilo mesmo que foge, vaza de qualquer possibilidade de valorização (da potência do ser como aparece em Spinoza). Dessa forma é que ao se constituir como território produtivo as favelas adquirem uma nova forma de ocupar o espaço (das cidades), forma que é mais do que uma nova configuração espacial (urbanização, integração à malha urbana etc.) é a forma com a qual as expressões das favelas matizam o território urbano na sua correlação de forças. Assim nos dirá Cassab: “Do mesmo modo os sujeitos interferem no desenho das cidades impondo sua presença. A ocupação do espaço urbano pelos assim chamados excluídos desenha na cidade feições que estão fora das demarcações de territórios feitas na cartografia dominante” (Cassab, 2001:34-5). Continuando nessa linha a autora afirma ainda: “Através da noção de negociação podemos ver como os sujeitos utilizam-se de variados recursos na tentativa de impor seus interesses nas lutas sociais. Na negociação cotidiana de seu espaço no tecido da cidade, esses segmentos adquirem certa visibilidade e tramam uma determinada cultura, presente nos circuitos de uma outra, tida como oficial e veiculada, por exemplo, através dos meio de comunicação de massa. Nesse sentido pode-se falar em uma negociação entre elas” (Cassab, 2001:35). Mas o caráter de disputa, negociação e mesmo de ubigüidade ganha um novo sentido quando deslocamos esse entendimento – da nova forma como esses segmentos redesenham os espaços das cidades por uma intervenção política e cultural – para o de que, essa intervenção se faz agora no espaço da produção. O que tem de novo nessa disputa assim é que são agora esses os territórios que valorizam a dinâmica do capital. Assim, mesmo os meios de comunicação precisam se curvar a uma estética nova que encontra passagem e conexão através de meios de comunicação mais interativos e mais socializados(internet). A negociação é agora um desafio que se abre ao capital para que possa capturar essas forças. Pois ao serem difundidas, essas formas de vida amparadas na pobreza, faz com que a estética (a produção do mundo) das favelas se torne uma referencia entre os jovens de 89 todas as classes sociais e, mais ainda, se torne interesse de toda a sociedade, produzindo um deslocamento das forças. Partilha-se, de alguma forma, desse universo, ao consumi-lo. Assim também que esse movimento obriga que esses segmentos façam parte da mesma rede. Ao se tornarem consumidores esses se tornam necessariamente produtores. Quando um determinado segmento social consegue desnaturalizar a forma com que seus espaços foram sendo representados ao longo de séculos, enunciando os sentidos de dominação que reside nas relações sociais, esses segmentos estão difundindo uma nova estética, uma estética revolucionária. A estética da multidão se faz imperiosa. Encontramos aqui a relação apontada por Pelbart (2003) entre as formas de vida e as formas de valorização da dinâmica capitalista, ou especificamente entre o que o autor vai chamar de ‘vida precária’ e ‘prática estética’. Para o autor: “Um grupo de presidiários compõe e grava sua música: o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de ‘morar’ na prisão, de gesticular, de protestar sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é isso que eles capitalizam e que assim se autovaloriza e produz valor” (Pelbart, 2003:146). Quando alçamos as favelas a espaço produtivo, falamos, assim, da importância que suas formas de vida passam a ter para o resto da sociedade. Ainda que capturadas (ressignificada pelo capital, ou seja, transformada em mercadoria) essas mercadorias são incorporadas (consumidas) pela sociedade. Assim é que o processo de construção da subjetividade expressa, na era pós-fordista, por um lado, o limite máximo da capacidade de subjugação do capital, pois, afinal, agora, é a própria vida que é posta a produzir. Mas, exatamente por isso, quando toda a vida (e não apenas sua parte adestrada, manual, instrumental, aquela que está amarrada à máquina) está submersa no processo produtivo, ou seja, justamente quando o capital consegue integrar a produção de subjetividade no 90 processo de construção material (a superestrutura submerge na estrutura econômica) é que, também, a desmedida aparece. A dimensão que queremos resgatar com esse debate é a “dimensão imediatamente social e comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista contemporânea, e como isso propõe insistentemente o problema das novas configurações de subjetividade, em seu potencial de exploração e de revolução” (Negri, 2001:48). Como controlar esse trabalho sem esvaziá-lo da sua dinâmica valorativa? E, ao mesmo tempo como capturá-lo, na perspectiva da valorização do capital, e não afirmá-lo hegemonicamente? O capital ao construir uma subordinação -não mais do tempo da força de trabalho- mas de sua afetividade, de sua criatividade, de sua intelectualidade ( da estética que advém dessas habilidades) o capital se abre um novo limite, pois se a estética é hoje um vetor de produtividade, ela só se torna objetivamente valorizável para o capital ao ser difundida. Ou seja, para que o produto se valorize ele precisa necessariamente ser consumido, já que aqui o consumo tem o sentido inverso daquele que teve na modernidade, pois “Ocorre que as características essenciais dos bens intangíveis são a ausência de escassez e de desgaste no uso, dirá Amadeu. Aqui é o consumo que agrega valor ao mesmo, que traz a inovação (e, portanto, a valorização) para o produto ao torná-lo comum (consumido por muitos). O fator que destacamos é a necessidade premente que as condições de vida das favelas implica aos seus moradores, e as formas com que esses coletivizam e produzem inovações ao lidar com essas precariedades. Assim é que algumas condições aparecem associadas a essa necessidade da mercadoria de se tornar comum (de circular e de se comunicar), como o trabalho cooperado. Como posso desenvolver a linguagem, a comunicação ou mesmo a informação a não ser colocando-as em cooperação, em conexão, instituindo-as numa rede que se irradia em todas as direções e sentidos e que, quanto mais usufruímos (consumo) mais ela se alimenta (produção)? 91 Temos, assim, um trabalho que se efetiva, necessariamente, na cooperação. A qualidade aqui é marcada pela sociabilidade, pela possibilidade de agregar o maior numero possível de idéias, de pensamentos que se debruçam (ao consumir) sobre aquele código (seja ele de fonte binária, seja artística, seja estética). Assim a arte aparece como a instalação - a intervenção de muitos signos, de muitas referencias que ganham uma nova perspectiva a partir de um novo local. A tecnologia é cada vez mais a cooperação entre os cérebros, portanto tecnologia viva (arte), que o capital não pode apreender, pelo menos não na sua dimensão criadora, apenas como resultado dela e, assim mesmo sob um custo de, toda vez que essa potência produtiva é apreendida cessa, automaticamente, seu valor criador. O que se coloca na antítese marxiana da relação capital trabalho agora é a trabalho cooperado, de um lado e a propriedade intelectual, de outro. Para Amadeu então: “é nesse momento, exatamente ao desmaterializar o capital mercadoria que o capitalismo vai permitir que a eficiência econômica seja cada vez maior no interior das redes colaborativas baseadas no compartilhamento do conhecimento. O ótimo de Pareto, expressão máxima do conceito de eficiência no capitalismo industrial, torna-se um equívoco em uma sociedade de bens imateriais...bens imateriais e conhecimento não sofrem escassez, nem desgaste, sendo reprodutíveis ao infinito” (Amadeu, 200622). O que o capital precisa capturar/apreender/ordenar agora são os espaços da vida e o capital faz isso ao produzir os padrões de consumo desse sujeito. Para produzir o padrão de consumo a industria de produção imaterial (editorial, cinematográfica, fonográfica, televisiva etc.) determina o que esse sujeito vai ler, vai ouvir, etc. mas também que tipo de mundo esses sujeitos vão partilhar. Para esse ciclo funcionar o capital precisa tirar da vida os elementos inovadores, ou seja, o capital precisa estar conectado na experiência e mais inovadora com que esse sujeito vai consumir o produto. É exatamente o ato de consumo (a 22 Em texto de palestra, enviado pelo autor por mensagem de e-mail. 92 forma que ele consome) que atribui um novo sentido aquela mercadoria e, por conseqüente, também um novo valor é agregado a ela. Como dinamizar o atual ciclo produtivo sem incorporar a ele justamente os espaços da vida, onde esses sujeitos estabelecem essa linguagem, essa comunicação, onde esses sujeitos consomem e ao mesmo tempo se tornam produtores ao fortalecerem a rede de comunicação. Aqui o consumo adquire seu caráter ‘positivo’. É o ato de consumo que difunde e, ao mesmo tempo, possibilita - ao comungar o produto- que alguma inovação se faça. Assim é que para Amadeu (2006): “Quanto mais se compartilha o conhecimento mais ele cresce. Por dois motivos: porque a base do conhecimento é comum e a comunidade científica ao trabalhar colaborativamente um problema agrega mais inteligência em sua solução. O capitalismo em sua fase informacional vive o conflito e enfrentamento de forças poderosas. De um lado, temos a velha, mas ainda gigantesca indústria construída no capitalismo industrial tentando conter as possibilidades tecnológicas da comunicação imaterial em redes distribuídas. Querendo ampliar o universo de escassez induzida dos bens imateriais para sobre eles exercer sua propriedade e manter seus fluxos de riqueza. No lado oposto, temos as diversas forças que exploram as características inerentes à rede e aos bens imateriais para crescer”. Os mercados mais lucrativos da economia (internet-Bill Gates; setor de entretenimento: indústria fonográfica, cinematográfica e televisiva; setor financeiro, etc.) o que deve ser desprendido não são rituais mecânicos comandados por uma máquina e sim o momento de criação. O que o capital não pode evitar, assim é que a estética que nasce das favelas e toma a sociedade, é a estética da luta. O processo de gênese das favelas se identifica com o próprio sentido da luta pois na sua possibilidade de existência, as favelas já nascem sob o signo da resistência, visto que a sua própria constituição pressupõe algum nível de embate 93 e enfrentamento.23 Esses enfrentamentos instituem novas práticas, novas formas de estar no mundo que, exatamente pelo seu caráter de precariedade, de sobrevivência, de vida nua, vão se tornar rentáveis para o sistema capitalista que para isso precisa se apropriar desses signos de forma a torná-los lucrativos. Não é só o comércio das drogas que se tornou rentável, mas todo o mercado que se constrói dele. Assim como na contradição clássica do capital, onde esse engendra sua própria destruição, no capitalismo cognitivo também ‘não resta saída’ e o capital se vê novamente face a face com seu limite. A principal contradição que se abre agora para o capital é que, para se tornar produtivo ele precisa de algo que, cada vez mais, foge a ele, se institui independente dele. Assim, “a contradição mais aparente, as possibilidades de compartilhamento do conhecimento versus a crescente restrição de acesso aos conteúdos e instrumentos do conhecimento. quanto mais amplas e distribuídas são as redes que viabilizam os fluxos de capital...mais permitem as práticas colaborativas, de expansão de uma riqueza não capitalista e do ativismo sociocultural compartilhado (Amadeu, 2006). Ao consumir-produzir esses jovens estão colocando na rede a sua forma de construir e estar no mundo. Em ultima instancia, o que esses jovens estão ‘fazendo circular é o seu conhecimento. Assim que esse conhecimento aparece como criação e, na mesma medida, como espaços de resistência. Há uma relação direta e antagônica entre as formas de resistir e a valorização comercial. Ao resistir essa população inventa formas de vida que trazem uma inovação que rapidamente pode ser capturada pelo capital, mas também institui a afirmação ética presente nas estratégias coletivizada de sobrevivência que culturalmente vão se instituindo nos espaços das favelas. 23 A característica principal da favela é a da invasão e subversão da propriedade (privada). A ocupação das áreas que vão se constituir em favelas ja carregam, assim, processos coletivizados (organização e movimento sociais) de resistência no seu cotidiano, inclusive para fazer valer a maior parte dos serviços que necessita, precisa percorrer um percurso avesso àquele que define a sociedade democrática e o Estado de direito. 94 A constituição dos campos da sociedade passam por um domínio de forças que não se inscreve apenas nos aspectos econômicos e políticos, mas também na perspectiva estética. O que esse novo capitalismo faz é colocar a estética como vetor de produtividade. “As novas possibilidades de vida entram em choque com os poderes organizados e constituídos, mas também com aquilo que estes mesmos poderes tentam organizar a partir da abertura constituinte (Lazzarato, 2006:13). A estética da precariedade, da resistência e da luta, rapidamente é assim ressignificada, esvaziada de seu sentido de conflito e permeada por um sentido de mercado. Mas, ainda que essas ‘formas de partilhar a estética’ que advém dessas formas de vida gere, nada mais do que outros atos de consumo, o consumo aqui se vitaliza nesse compartilhamento (nesse uso da mercadoria). O trabalho imaterial é assim também um ato de consumo, de compartilhamento (no valor de uso) de colaboração entre os cérebros. A favela inventa assim um sentido de coletivização necessário a sua sobrevivência, mas que realimenta a manifestação de práticas permeadas por esse sentido comum. Brotam, assim, experiências de solidariedade, de compartilhamentos, de socialização etc., que frutificam um novo sentido humano. E que nós permite também, dirá Negri: “fundar uma teoria dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e independentes intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e independentes” (Lazzarato, p. 39 Trabalho Imaterial). Ou seja quando as forças produtivas se tornam cada vez mais imateriais e dependem cada vez mais de um saber geral, essas forças também aparecem, historicamente, na sua forma mais comum: ‘o excedente imediato e contínuo do saber’. Ao construir as relações sociais a multidão a constrói por sob a perspectiva da resistência (quem produz luta necessariamente- contra o capital). Se o nome comum é, como vimos, evento da multidão, então o comum é produzido pela multidão. Mas só quando a pobreza se coloca como topos (lugar e motor) do abrir-se da 95 multidão no processo teleológico do ser comum, é que qualquer tautologia (pós-moderna) do comum é eliminada. Dessa maneira, o fazer comum da multidão dos pobres introduz, necessariamente, na desmedida do eterno, a figura do comum, e a imprime neste desmedirse. Nesse sentido, o pobre é o comum do comum” (Negri, 2003:121). A construção dessa resistência, mais do que nunca, se expressa no território da vida (cada vez mais o espaço de trabalho coincide com o espaço da luta). Ao alinhavar a relação do trabalho imaterial e multidão é que posso entender como o trabalho imaterial se alimenta (e alimenta) as formas de vida. Como aparece em Negri: “Quando estamos diante da reatividade dos sujeitos implicados na exploração, então o método deve nos permitir estar dentro da totalidade do processo. Em particular, deve integrar determinações cooperativas e, ao mesmo tempo, conseguir colher o excedente imediato e contínuo do saber (que, provavelmente, mas isso veremos mais tarde, chama-se também ‘resistência’)” (Negri, 2003:101). É, assim, só ao apreender o consumo nessa perspectiva pós-moderna que o encontro da favela com o processo produtivo pós industrial pode emergir inteiro, no seu sentido de captura mas também de revolução, no seu sentido de afirmação da ordem mas também no sentido daquele que causa rupturas, possibilidades de fugas, desmanchamentos. É só a partir do entendimento do consumo enquanto produção que posso criar o sentido que faz as favelas aparecerem como espaços de produção e também de resistência. Aqui se efetiva o sentido negriano de convergência entre o espaço de(re)produção (produção da vida) e a luta. A favela inventa assim um sentido de coletivização necessário a sua sobrevivência, mas que realimenta a manifestação de práticas permeadas por esse sentido comum. Brotam, assim, experiências de solidariedade, de compartilhamentos, de socialização etc., que frutificam um novo sentido humano. E que nós permite também, dirá Negri: “fundar uma teoria dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e 96 independentes intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e independentes” (Lazzarato, 2003:39). Quando a favela institui relações sociais, essas relações são agora estritamente produtivas e, ao mesmo tempo, no processo de instituir esse mundo pela criação se institui também um movimento de resistência. Resistência que aflora quando faz valer o lugar de classe de onde essa narrativa se constrói: o comum que nasce das experiências de resistências e lutas. Encontramos uma das possíveis clivagens, entre o novo paradigma produtivo e as favelas; que é quando a natureza desse novo trabalho que estamos investigando se constitui na sua verdadeira novidade. O que essa dinâmica capitalista precisa para se valorizar é de uma inovação que se constitui entre os cérebros. Inferimos a idéia de que os moradores das favelas são figuras produtivas pois que - para torná-los consumidores, a industria precisa construir seus comportamentos de consumo a partir das suas realidades equivalentes. Quando o ato de consumir se transforma também em ato de produção, precisa construir suas vidas, ao mesmo tempo em que as torna produtiva. Pois o que valoriza o capital hoje é a inovação que nasce das relações afetivas, intelectuais, e criativas exigidas no ato de produzir a vida. É, pois, só ao conceber esse terreno das relações sociais como a expressão mais viva do trabalho imaterial que posso, também, encontrar as favelas como espaços de produção. Mas é principalmente quando Lazzarato produz um deslocamento no que nos referimos até então como produção de riqueza, ou ainda do próprio conceito de valor cunhado por Marx que, de fato, as favelas emergem como território produtivo. Para Lazzarato: “A constituição dos valores não se explica, como faz a teoria econômica, pela classe, ou como em Marx, através do trabalho e da produção, mas pelo agenciamento da invenção e da imitação, pela criação e efetuação de possíveis” (Lazzarato, 2006:44). Essa afirmação é assim o que faltava para constituir as favelas em territórios produtivos. 97 Ao afirmar que as novas bacias de produção imaterial se estenderam o suficiente a ponto de incorporarem esse espaço (das favelas) ao seu ciclo produtivo, o faço, portanto, na perspectiva da sua virtualidade, e não numa perspectiva material, ainda que a criação dessa virtualidade seja o verdadeiro processo produtivo. Ao trazer as favelas como redes de serviços, de informação e de comunicação reencontramos o sentido do conceito de Cocco de Bacia Produtiva Imaterial: “Esse espaço é aquele da Bacia de Trabalho Imaterial (BTI), ou seja, a dimensão espacial e concreta do trabalho imaterial, espaço de redes estruturadas pelos fluxos comunicacionais. Neste sentido, a cidade é implicada duplamente na organização pós-fordista da produção: por um lado, ela participa à reestruturação-transformação do BTI; por outro, é sempre na cidade que as formas de vida se constituem e se transformam. O BTI contém as PME, as escolas e outras instituições de formação, as agencias de publicidade, os escritórios de estilo, isto é o conjunto de nos que estruturam o espaço produtivo pós-fordista que produzem as trocas informacionais e comunicacionais que nutrem o trabalho imaterial. Lugar de crescimento de relações, de atividades de trabalho e culturais, o BTI é a metrópole enquanto sistema informacional, expressão da subjetividade e das formas de vida dos trabalhadores imateriais (Cocco, 1995:14). Assim é que a dinâmica inerente à produção do trabalho e da vida dos moradores da favela necessita da circulação de informação, se constituindo “num imenso território de assimilação, gerenciamento e de criação de conhecimento’, as favelas também vão se constituir em “fontes de poder político, econômico, e cultural, como nos coloca Amadeu. (Amadeu, tese doutorado, página 09). Há um deslocamento de forças, por exemplo, quando os moradores das favelas fazem chegar, de forma pirateada e, portanto, barateada, os serviços de comunicação, como as tvs a cabo. Assim, que a potência democratizadora de um ciclo produtivo que tem como base o trabalho comum, possibilita que esses segmentos partilhem dessa rede - mesmo que nem sempre ou quase nunca acessem a internet - ao partilharem o que circula nessa 98 rede, ou ao fazerem parte da produção dessa circulação: a estética da internet está presente também na vida desses jovens. O hibridismo que marca essa inovação é assim resultado de campos de força que não se anulam, ao mesmo tempo que imprime uma nova configuração a ideologia dominante quando esse segmento interfere no padrão de consumo vigente e faz emergir outros. Os desmanchamentos que efetuo para poder identificar o trabalho como trabalho imaterial esgarça-o o suficiente para fazer caber nele o novo sentido que as reflexões de Lazzarato carregam. Essa afirmação de Lazzarato afirma as favelas como espaço de produção. Identifico como a profusão da invenções (e a rápida imitação do novo) aparece necessariamente na constituição das vidas precárias: marcadas cotidianamente pela ‘criação e efetuação de possíveis’ inscrevendo definitivamente, com essa abordagem, as favelas como manifestação/ expressão da fase atual pós-moderna. O último ponto de relevância, quando trago as favelas para compor o campo de explicação do narcotráfico, é entender em que perspectiva me inclino a apanhá-la, quando se trata dessa universalidade abstrata em que (a favela) se transformou. Como trazer as favelas para essa discussão sem incorrer em reducionismos que a relação criminalidade e pobreza ensejam, seja quando subordina a criminalidade à pobreza, seja quando distancia uma da outra à ponto de apagar os elementos de dominação, como vimos no capitulo i, que vão servir para lançar mão das práticas repressivas em nome do combate à criminalidade em geral e ao tráfico de drogas em especifico, para justificar o controle e a repressão sobre as demandas (a potência) das camadas empobrecidas da sociedade. Como barrar a potência que eclode desse território (que produz uma comunicação em rede e coletiviza (comum) o cotidiano das práticas pela sobrevivência; práticas que incluem formas de luta nas suas mais diversificadas expressões e das quais emerge a potência da multidão. 99 Assim para Lazzarato “A constituição do mundo é pensada como produção, como fazer, como exteriorização do sujeito no objeto, como transformação e dominação da natureza e do outro pela objetivação das relações subjetivas (Lazzarato, 2006:15). O espaço da vida se torna concretamente o espaço de luta e advinda dessas experiências que o ser Spinozista aparece. Essas práticas de sobrevivência com que os moradores efetivam as suas vidas são aquelas, muitas vezes, que joga continuamente suas vidas ao limite, assim essas também aparecem revestidas de seu reverso, de sua potência. “Exposta, em sua nudez, à desmedida, a pobreza rompe a aporia pós-moderna da produção e dá sentido à teleologia materialista do comum. De fato, a pobreza não pode girar no vazio: só pode caminhar para frente, e andar para frente de modo comum. Se não nos movêssemos a partir da pobreza, não nos moveríamos completamente, ou seja, a produção de ser poderia existir ou não, pois a força que a rege e promove não seria definível como necessária. E, portanto, o processo teleológico não se daria (e, em espécie, nem a teleologia do comum) se a pobreza não o colocasse, pois pobreza age, necessariamente, a desmedida do produzir ao longo da flecha do tempo, um instante depois do outro (ali onde Káirós é experimentação biopolítica.) Portanto, se não houvesse essa potência de pobreza, a teleologia do ser material não se daria, tampouco o ser eterno se produziria” (Negri, 2003:120-121). A nova síntese que quero buscar entre a favela como espaço da pobreza e da criminalidade é, assim, atualizada. Uma síntese que não incida em nenhuma dessas polaridades (relação de subordinação ou inexistência de relação), mas que possa revelar por onde passa as relações de poder que vai, no Brasil, estar inscrita na relação que se estabelece entre a pobreza e a criminalidade. Assim é que o tráfico também resiste, porque ressignifica a vida (irrompe o limite em que a vida se expõe:surge novos comportamentos, novas afetividades, novas sexualidades; uma outra estética). A estética das favelas, das vidas precárias, improvisadas, desmedidas. O tráfico assim também vai além, transcende, é desmedida. 100 Aparecendo como a condensação daquilo que se torna produtivo na vida das favelas. É o tráfico que vende filmes, notícias, livros, pesquisas, conceitos, pois é a sua forma de vida, colocada no limite que justamente, vira produto, inova o capital. Será o tráfico uma das mais importantes conexões que a favela institui com o processo produtivo global, como veremos no próximo capítulo. 101 CAPÍTULO III: CONTRA-INSURGÊNCIA E RESISTÊNCIA INTRODUÇÃO Meu objetivo neste capítulo III é trazer os dados de realidade para compor a nossa análise. Pretendo assim voltar o olhar para o narcofavela a partir das perspectivas que foram se construindo ao longo desse trabalho, mas também propor que a essas questões se enrede ainda outra, fundamental: a questão étnica24 como elemento que renova o sentido de opressão presente nestes espaços. A perspectiva que vamos adotar passa então pela afirmação do caráter étnico da dominação que recai sobre as favelas. 24 Não existe base científica para afirmar uma diferenciação na espécie humana que justifique o termo ‘raça’, conforme comprovado pelo Projeto Genoma Humano, assim a perspectiva da étnia aqui considerada não pretende renovar esse sentido e deve ser entendida na perspectiva construída por Marilena Chauí: “Os antigos gregos falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação; e essas três palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa haras para se referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à palavra raça. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a partir do século XV, razza, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente, estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão limpeza de sangue, significando a conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico. É interessante observar, porém, que a palavra racial surge apenas no século XIX, particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin, introduziu formalmente o termo raça para combater todas formas de miscigenação, estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra racismo, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas, como a separação ou o apartamento total - o apartheid - e a destruição física do genos, isto é, o genocídio. Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais, isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade (Chauí, s/d, entrevista concedida por Marilena Chauí e publicada no Portal do PT, em www.pt.org.br). 102 A trajetória que permite essa afirmação aparece a partir de uma leitura que vê o processo civilizatório como a supremacia de uma única etnia em regiões multiétnicas. Esse processo passa a ser, então, a trajetória de uma civilização vitoriosa sobre as outras e, a história, uma narrativa construída sob o ponto de vista da etnia civilizadora, que mascara os bárbaros custos que a humanidade pagou em nome dessa supremacia. O processo civilizatório se realiza com o emprego sistemático da força. Para que a favela tome o sentido de resistência é necessário entender o que foram os processos civilizatórios que se deram na América Latina e no Brasil, em especial, e as formas de dominação que esses trouxeram. Nas palavras de Mir: “O Brasil é uma criação colonial recente, com tudo o que isso pode representar de herança conflitiva e memória histórica trágica. Começamos com o genocídio dos índios, evoluímos para o massacre e exploração escravocrata, ascendemos ao republicanismo com segregação territorial e econômica e alcançamos o extremismo étnico e o apartheid com a modernidade. Uma estrada de horrores. E nos tornamos incompatíveis, ou seja, as diferenças étnicas e sociais impediram, afastaram, negaram qualquer coexistência de população que estão lado a lado, desde séculos” (Mir, 2004:33). Mir constrói assim uma base explicativa para desenvolver uma análise da civilização moderna que interroga justamente a maneira com o as elites intelectuais se tornariam o guia da nova nação. Para o autor: “Essa ordem legítima do passado se tornou durável e presente no processo de institucionalização e desenvolvimento do país. A escravidão, enquanto modelo social e econômico, formou um núcleo de país, de identidade, de opressão e humilhação, que está ainda muito ativo na composição nuclear da sociedade brasileira. Introjetamos a formação e vocação escravocrata como modelo econômico, domínio social e sistema político” (Idem, 38). Quando vista na composição da história, a dominação étnica não só aparece na sua faceta a mais destrutiva, como emerge de forma inquestionável. Só ao considerarmos o viés étnico presente na dominação brasileira que podemos de fato entender por onde se constroem as teias de domínio e as formas de sua atualização. Se são múltiplas e complexas as formas com que as dimensões econômicas, sociais, étnicas e religiosas se compuseram para legitimar o poder (de uma só etnia, de uma só religião, de uma só história), na América Latina, naturalizando e universalizando as práticas de dominação exercidas há séculos por uma mesma elite, o resultado dessa dominação é bastante claro: “Trata-se, de fato, da única região do mundo que, no decorrer de todo o 103 século XX não conseguiu diminuir a desigualdade e manteve-se sempre como o continente mais desigual do mundo” (Cocco e Negri, 2006:19). O conceito étnico ascende aqui na complexidade com que Mir o apresenta. Pois, se podemos falar que esses (conflitos étnicos) prevaleceram em toda a trajetória civilizadora que se institui na América Latina, também falamos nas possibilidades de hibridações que a esses vetores étnicos se promoveram. A instituição de um poder que se faz sobre a cor se exacerba justamente quando não precisa mais desse elemento para exercer suas práticas opressoras. A questão étnica aparece como um elemento de poder que já não pode mais ser definido em si mesmo, e ganha sentido a partir dos arranjos com que costura as teias do seu domínio. A questão étnica ganha, assim, particularidades a partir da forma como esses processos se inserem nos espaços e nos tempos, mas aparecem de forma quase homogênea se vistos ao longo da história. Assim que o domínio étnico ganha sua expressão transpassado pela exclusão econômica e pela opressão cultural. Assim que: “A autoridade de etnia substitui a de raça, como coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida na língua, religião e modo de agir (Mir, 2004:18). O que caracteriza a identidade étnica é a emergência de uma potência que nasce das lutas seculares que se levantam contra a opressão de um domínio segregador, dizimador, bárbaro. São gerações e gerações que vão se constituindo, como um corpo sem órgão, nas adversidades com que esse domínio se impõe. Assim essa ‘identidade’ étnica não se expressa na cor da pele. O que importa é estar submetido as mesmas condições impingidas as etnias afrodescendentes historicamente. Nas favelas são todos negros porque são todos filhos da opressão cotidiana que se abate sobre essas populações há séculos. Para Mir: “Dentro da balcanização brasileira há múltiplos vetores atuando isoladamente ou em conjunto. Temos o separatismo étnico e socioeconômico imposto aos afro-brasileiros e os separatismos não étnicos e exclusivamente econômicos, - tão ou mais insidiosos e mais perturbantes para a ordenação social-, penalizando grandes massas urbanas isoladas e confinadas em espaços urbanos infra-humanos. Como autodefesa, a réplica dos segregados e marginalizados é um separatismo de raiz étnico-religiosa (Mir, 2004:43). O desenvolvimento do capitalismo no Brasil se marca por uma dominação que se, por um lado, se distancia cada vez mais do vetor cor de pele, nem por isso desmonta as práticas de dominação que se assenta por sob esse viés étnico-religioso. Dessa forma vamos buscar 104 entender, no próximo item, como a questão étnica funciona como prática de controle, presente nos antigos modelos de dominação, mas também nos recentes (Mir, 2004:25) III.1) A questão étnica na conformação do capitalismo no Brasil e o Estado como agente de controle As elites brasileiras vão conseguir conjugar (e atualizar continuamente) vários vetores de dominação contra as populações produtivas ao longo do desenvolvimento do país. O sentido de nação aparece aqui como elemento de homogeneização e universalização dos interesses específicos dos grupos étnica e economicamente dominantes. Assim podemos identificar que a origem da formação social brasileira se insere no quadro de desenvolvimento do modo de produção mundial, numa articulação entre os interesses internos e externos, onde o modelo de desenvolvimento dependente que se institui não é apenas fruto de uma submissão, mas fruto do amadurecimento de uma dinâmica que conjuga os interesses universais do capitalismo a um modelo nacional desenvolvimentista que sustenta seu crescimento na exclusão/segregação econômica, social e política da maior parte da população trabalhadora, onde a iniqüidade atravessa todas as fases dos diferentes planos econômicos adotados no Brasil, perpetuando e naturalizando as desigualdades. São as palavras de Cocco que melhor sisitematiza o que foram os processos de desenvolvimento do capitalismo na América do Sul e analisa as expressões da soberania nacional que desses emergiram. “A construção do Estado na periferia tem trabalhado, na realidade, através de processos de hibridação entre formas de autoridade política e/ou de soberania colonial de um poder patriarcal e/ou oligárquico-escravista e formas desenvolvimentistas de um poder 25 Cocco atualiza essa discussão ao analisar a oposição de setores da sociedade aos programas de cota que ampliam a entrada dos segmentos carentes e dos negros nas universidades. Segundo Cocco as oposições, sejam de esquerda, sejam de direita, ganham o mesmo sentido conservar e antidemocrático, em suas palavras: “O segundo (e bem mais importante) bloco, o “liberal”, mobiliza uma retórica “meritocrática”e, invocando supostos critérios de eficiência, opõe-se à democracia. Para essa tipologia de “liberais”, o mérito é um ponto de partida (que necessariamente reproduz o violento status quo) e não aquele resultado que somente a excelência democrática permite alcançar. Direita e “esquerda”neoarcaicas e corporativas se juntam em um único bloco conservador. O velho medo aristocrático transforma a democracia em monstro. Não é por acaso que os supostos liberais e a suposta “esquerda”condenam as cotas anti-racistas: é contra os movimentos dos que estão de fora das universidades por causa de sua renda e portanto de sua cor e, vice-versa, por causa de sua cor e, pois, por causa de sua renda que as elites neoescravocrata e corporativo-tecnocrática se reproduzem” (Cocco, Giuseppe. Bloco conservador. O Globo, RJ, 28/6/2007). 105 tecnocrático-corporativo, que se atribuíam os títulos de moderno e nacional. Vale dizer que, na passagem de uma para outra dessas formas, dentro das mil modulações dos processos de hibridação, a figura dessa continuidade é uma mistura de alianças e de interpretações propriamente ditas que dão lugar a uma espécie de oligarquia composta (fundiária e tecnocrática), de um lado, e a estratificações socioeconômicas de tipo neo-escravista de outro” (Cocco e Negri, 2006:47). O Estado brasileiro pode ser visto como uma grande logística cujo principal (ou único) objetivo é o de sustentar a dominação econômica de uma camada minoritária da sociedade. O preço da exclusão da maioria se assenta assim na necessidade de um estado extremamente violento capaz de sufocar qualquer resistência. O que queremos subtrair desse Estado, ao trazê-lo para esse estudo, são as práticas com as quais esse exerce seu domínio sobre esses segmentos, demonstrando a universalidade contida nessas formas, que pendulam desde a colonialização até os projetos desenvolvimentistas calcados na exclusão quase absoluta de grande parte da população brasileira. Mas o que vem subjacente a essa exclusão é ainda pior, um discurso de naturalização que se perpetua o suficiente para, ainda hoje, justificar o extermínio que se pratica nas favelas cariocas, naturalizando e o tornando invisível. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil esteve condicionado a uma feroz apropriação do Estado brasileiro, sobretudo nas suas funções político-ideológicas, por composições que correspondiam apenas aos interesses das forças dominantes presentes nos modelos econômicos vigentes, servindo como principal mecanismo de consolidação dos diferentes segmentos da burguesia. O resultado disso é a pobreza endêmica que permeia a vida dessas populações. Como afirma Cocco: “Ora, se podemos entrever nesta generalidade latino-americana um paradigma da desigualdade que se reproduz no tempo atravessando todos os ciclos econômicos e políticos, a particularidade brasileira nos leva ao coração desse paradigma. Se o continente latino-americano é o mais desigual do mundo, o Brasil é o país mais desigual da América latina e manteve-se nessa triste posição ao longo de todo o século XX, embora seu crescimento econômico tenha sido, no mesmo período, um dos mais elevados do mundo. (Negri, Cocco, 2005:19). O Estado brasileiro amolda-se a esse jogo, transformando-se cada vez mais num aparato de onde reflui o jogo de dominação, criando para isso uma governabilidade que garante a perpetuação daqueles que já ai se instalaram e excluem as grandes parcelas às quais os seus serviços deveriam incidir. 106 O Estado passa a ser o espaço privilegiado de disputa e afirmação dos interesses de diferentes segmentos dominantes. Assim, à governabilidade do Estado, perpassam níveis diretos e indiretos de corrupção que, no seu limite, expressam uma redistribuição de rendas as avessas, pois é o Estado o principal mecanismo de sustentação do enriquecimento das camadas dominantes do país. Claro há que, nesse cenário, as políticas sociais não podem chegar até a sua população destinatária, prefigurando, historicamente, um Estado que nunca atendeu as demandas dos segmentos empobrecidos. Assim que, para essas populações, freqüentar os serviços públicos significa decifrar uma infinidade de formalidades, mas sobretudo decifrar códigos que se produzem sob a justificativa do caráter seletivo e restritivo dessas políticas. O que vai se caracterizando, dessa forma, é o caráter de controle com que essas políticas vão incidir sobre a população usuária, fomentando a base de constituição de um projeto de poder calcado num estado repressor e paternalista. Os códigos que emergem desses programas (e precisam ser acatados pela população usuária caso queiram usufruir daquele serviço) vem camuflado de critério de universalidade, mas objetiva, sobretudo, normatizar as condutas de comportamento e pensamento dessas populações. Serão os estudos de Malaguti (2003) que vão demonstrar que o caráter repressor das políticas sociais serve para legitimar um discurso que sustenta também a parcialidade dos aparatos de justiça do Estado frente as populações usuárias dessas políticas. Malaguti busca base de sustentação no trabalho de Wacquant, que fará um esforço de demonstrar justamente essa passagem da rede de segurança para a rede disciplinar do Estado americano, como observa a autora: “O ineditismo na obra de Wacquant é a demonstração da passagem da rede de segurança do Estado caritativo para a montagem da rede disciplinar do Estado numa “política estatal de criminalização das conseqüências da miséria do Estado”. Os serviços sociais vão sendo transformados em instrumentos de vigilância e controle das novas ‘classes perigosas’ (Prefácio de Malaguti para Wacquant, 2003:10).26 As práticas de dominação que se construíram ao longo do último século no Brasil assumem, assim, várias facetas diferentes, desde a perspectiva apontada por Malaguti, efetivada nessa forma seletiva, clientelista e restritiva com que as políticas sociais sempre se efetivaram até hoje no Brasil (NOTA governo Lula) e pode chegar a forma extremamente 26 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000; Revan, 2003. 107 violenta com que as forças militares tem se abatido sobre as populações faveladas nos últimos anos. A violência instalada hoje nas favelas cariocas é síntese das inúmeras variantes que foram se conjugando no processo de constituição da sociedade brasileira, com matizes atuais que associa elementos oriundos da recente globalização econômica e política. Agora são as palavras de Wacquant que resumem, fazendo referencia aos estudos de Malaguti, a relação de subordinação histórica presente no fenômeno do tráfico de drogas: “Os vinte anos de criminalização de jovens pobres no Rio por tráficos de drogas no varejo são ao mesmo tempo uma história recente e uma história antiga. Como história antiga começa com a abolição da escravidão e com o processo de urbanização, quando as cidades ganham um novo perfil, com a remoção dos bairros pobres do centro para a periferia. As grandes obras de modernização assumiram o significado de operações de higiene social, exprimindo bem o ‘medo branco’ e o projeto de exclusão e de marginalização dos libertos, a representação burguesa do que seria a cidadania negativa das classes subalternas” (Prefácio de Wacquant para Malaguti, 2003:21). A segregação espacial que se constrói no processo de constituição das cidades brasileiras é, assim, reminiscência de um processo de exclusão generalizado, onde a violência é um elemento constitutivo marcado pelo fenômeno da escravidão. ‘O sentido histórico da crueldade’ 27 vai persistir se atualizando em sucessivas novas práticas de violência e massacres étnicos. Malaguti assim visualiza uma relação entre as práticas que instituíram o regime escravocrata, expressas em ações cotidianas que confirmam um poder cuja principal justificativa é a diferença étnica e as práticas que se instituem recentemente na relação do Estado e das populações moradoras das favelas. Analisar os acontecimentos que a venda de drogas ilícitas nas favelas promove, se transforma também num exercício de análise dos discursos que se associam as práticas repressivas que a sociedade impõe a esses jovens pobres. Através de uma perspectiva 27 Ver a esse respeito as formulações de Roberto Shcwarz como aparece em Malaguti. Para a autora: “O fenômeno da escravidão desenvolve uma realidade social absolutamente violenta. Ou melhor, a violência é elemento constitutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do negro soma-se a despersonalização legal do escravo: o escravo era mercadoria, não era sujeito. Temos aqui o que Roberto Shcwarz chama de ‘sentido histórico da crueldade’ (Malaguti, 2003:38). 108 Foucaultiana, a formação dos discursos e a genealogia do saber devem, assim, ser analisadas a partir das táticas e estratégias de poder. Nos valemos dessa forma dos estudos de Malaguti (2003) para entender como tenderam os aparatos legislativos do estado brasileiro no que tange a se posicionar a favor da manutenção da ordem e da garantia dos interesses das camadas dominantes que se alteraram (mas sempre se sucederam) ao longo do nosso processo de industrialização. Nas palavras de Foucault: “Em suma tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos de intervenção penal; e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status ‘científico.28 A partir da investigação de processos que transitaram no Juizado de Menores do Rio de Janeiro entre os anos de 68-8829, Malaguti observa a recorrência com que a expressão elemento suspeito aparece nos processos pela fala dos policiais, mas sobretudo identifica que não são suspeitos aqueles que praticam algum ato suspeito, mas sim aqueles que se identifiquem num determinado segmento social. Assim, a forma como essa dominação étnica vai se constituindo através dos instrumentos do estado que faccionam a sociedade numa segregação econômica e social - que recai historicamente sobre as populações das favelas - ganha sentido no trabalho de Vera Malaguti. Em suas palavras: “(...) Referimos-nos anteriormente às medidas de segurança, que na virada do século XIX foram criadas para impor ao sistema jurídico-penal medidas que punissem independente da prática de crime. O artifício da atitude suspeita faz parte do universo dessas medidas. Se estas medidas apontam para a contenção de uma periculosidade difusa, a atitude suspeita 28 Foucault, M. Vigiar e Punir, Petrópolis: Ed. Vozes, 1977, pp. 26 e 27. 29 A autora analisou 180 processos do arquivo do Juizado de Menores, entre os anos de 1968 até 1988, em suas palavras: “Trabalhamos com cento e oitenta fichas elaboradas a partir de processos do juizado de menores entre 1968 e 1988. Esses processos, escolhidos por intervalos aleatórios e recorrentes, foram distribuídos entre o começo, o meio e o fim de cada ano. A partir desses dados e com a amostragem aleatória que tínhamos, desenvolvemos estatísticas que utilizaremos durante a descrição do período e que se encontram entre os anexos do trabalho. 109 aponta para a seletividade nas práticas da implementação dessas medidas” (Malaguti, 2003:102). A base moral que sustenta a legitimidade da ‘atitude suspeita’ aparece no capítulo I, quando resgatamos os discursos que se construíram sobre as drogas no século passado. A possibilidade de associar essas populações à questão da criminalidade tem assim um sentido econômico-político que se esconde por sob o discurso moral e demoníaco com que as drogas são representadas nas sociedades modernas. (ou ao menos na ambigüidade e obscuridade com que ainda são tratadas até hoje).30 A droga aparece como um elemento extremamente funcional (constituída por entre os discursos moral e médico) para a criminalização dessas populações. Se constituindo como um vetor ainda mais eficiente quando se trata da população jovem e adolescente, oferecendo ao sistema condição de uma maior seletividade e um foco quase preciso na aplicação do seu caráter punitivo, a partir de políticas de controle bastante focadas, numa relação que tem as drogas como o pretexto mais legitimo para se conter essas populações jovens e pobres. Assim é que, para a autora: “Se o Código Penal não previa pena para a posse com finalidade de uso, o Código de Menores utiliza ‘medidas’ que impõem, na prática, aos adolescentes aquilo que o Código Penal não impunha aos maiores de idade. Assim, temos que, em doze processos (sem que haja reincidência) os meninos são encaminhados para internações no sistema (Malaguti, 2003:86-7).31 30 Segundo Vilela, assim: Alguns pesquisadores consideram todos esses termos mencionados acima inadequados por insuficiência conceitual, assim como o termo droga não seria tecnicamente apropriado. Sugerem a utilização do termo psicotrópico - uma substância ou produto que age sobre o cérebro, modificando suas reações psicológicas - como designação técnica específica. Quem sabe uma das soluções para começar a resolver efetivamente o “problema das drogas” não estaria em passar a usar esse termo e aposentar a palavra droga. A adoção de um outro significante poderia servir como o começo de um processo de educação pública, despindo o significado da palavra droga de toda a equivocada carga semântica geradora de medo, de aversão e de pânico. Sem essa compreensão do engodo da palavra “droga”, os trabalhos de educação, de prevenção, de tratamento de dependências, assim como as pesquisas nesse universo, continuarão a produzir resultados insuficientes e controversos. Um novo significante acabaria com o equívoco da separação das drogas em permitidas e proibidas (Vilela, Jaime. Coca, narcotráfico e recolonização. In: marxismo vivo 6, dez. 2002). 31 É o casa de P.C.A.C., pardo, 15 anos, morador da Favela do Cantagalo, detido em 25/06/68 com dez cigarros de maconha. Ele é internado no instituto Padre Severino em junho de 1968, onde ficará até novembro de 1969”(Malaguti, 2003: 86). Há ainda aquelas situações onde a cidadania negativa a que esses jovens estão submetidos fica ainda mais evidenciado, como aparece no relato abaixo: N.C.S., uma menina de 15 anos, detida após ronda na quadra de ensaios da Mangueira em 3/3/68 (“ao submetê-la a uma revista, foi encontrado no interior do sutien(?) um vidro pequeno, contendo substância nociva à saúde, conhecida por cheirinho da loló) foi internada no Instituto Coração de Maria em 06/03/68, onde ficou até comunicação de sua fuga, um ano e meio depois!” (Malaguti, 2003:86-7). 110 Assim que ser negro, jovem e pobre coloca automaticamente essa população como suspeita. Transitar pela cidade se transforma em ato de subversão, rapidamente punida. Dessa forma que esses jovens são identificados pela sociedade como em ‘atitudes suspeitas’ quando transitam pelas vias públicas, passeiam pelos parques ou estão nas praias. Em seus estudos Cassab (2001) também identifica o que chama das ‘forma de vigilância’ que incide a partir de certos estereótipos, revelando os limites impostos para os jovens (pobres e negros) ao transitarem nas cidades. Os relatos que aparecem no trabalho de Cassab revelam assim como os percursos da cidade vão sendo construídos a partir das relações de domínio e arbitrariedade a que estarão submetidos esses segmentos. Como aparece a seguir: “(...) Igual outro dia na Central. Eu desço do ônibus, ai o cara (um policial) chega no meu ouvido, ei, tem alguma coisa aí - não senhor - então vamos sentar ali nós dois, você vai mostrando seus documento devagarinho,(...) aí, pum, tinha um dinheiro dentro da carteira. Ai ele - está vindo de roubo, né - não senhor- tá vindo de roubo, oh, vamos fazer um negócio, para eu não te levar pra dura você me dá seu relógio, seu dinheiro e vai embora - que que é isso, eu não tô vindo do roubo, to vindo do trabalho - pra cima de mim - ai, pum, pegou meu relógio, meu dinheiro, me mandou embora” (Cassab, 2001:44). Assim é que este Estado sai do abstrato e aparece na sua concretude. Concretude que nos mostra que, em suas dinâmicas ele não interage da mesma forma com todos os segmentos da sociedade e, se aparece para as classes dominantes como fonte de privilégios, aparece para os segmentos empobrecido nas experiências de ‘cidadania negativa’ onde o Estado se revela sobretudo na sua faceta coercitiva. Como nos diz Batista, onde estes setores, principalmente os jovens e negros: “só conhecem o avesso da cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos do sistema penal” (Batista, 1997:133). As favelas se transformam em grandes senzalas, guetos onde os negros se escondem do aparato repressivo de um Estado Étnico, seja enquanto escravos ou enquanto jovens urbanos. O sentido étnico se eleva, dessa forma, em sua dimensão de biopoder, traduzido pela questão do racismo, como explica Pelbart: “Pois se o racismo existia muito antes do surgimento do biopoder, foi este o responsável pela introdução do racismo nos mecanismo de Estado. Focault chega a dizer que isso que faz com que quase não haja funcionamento moderno do estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo. Basta evocar algumas características do racismo: um corte entre o que 111 deve viver e o que deve morrer, a consigna de que para viver é preciso fazer morrer, mas o que era uma injunção guerreira, torna-se biológica (a morte do outro, da raça ruim, inferior, degenerada, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia, mais pura); trata-se de eliminar, não os adversários, mas os perigos, em relação à população e para a população” (Pelbart, 2003:59). Mas, se a favela pode ser vista como um espaço de segregação onde segmentos são entrincheirados a partir das violências que sobre eles se abatem, também aparece como espaço onde se tecem novas resistências a essa opressão. A favela é o espaço onde as redes de solidariedade funcionam, condicionadas por uma necessidade muitas vezes vital. As práticas sociais revelam assim a flexibilidade necessária para lidar com o imprevisível, a criatividade para lidar com a escassez e as habilidades para superar as adversidades. Mas é exatamente quando emerge na sua vitalidade que a favela vai também se revelando, paulatinamente, como o espaço privilegiado onde o embate direto contra essas populações pode acontecer e que não deixa dúvida dos rastros ancestrais que essa violência carrega. “São práticas de extermínio que integram um projeto de sociedade baseado na exclusão econômica e social e, no limite, na própria exclusão da vida” (Verani, Sergio. Discursos Sediciosos nº e página 133). Assim podemos colher todo o sentido de opressão com que a supremacia étnica se impõe na história. A partir da experiência da dor tantas vezes repetidas nos grandes genocídios que a história conheceu é que se constitui o elemento comum que ajuda, no trabalho realizado por Mir, a desenhar uma linha que vai de Auschwitz as favelas cariocas. Assim nos fala o autor: “A favela-campo de concentração é um espaço sem tempo. O momento humano dos favelados, em sua dimensão biográfica e histórica, é literalmente abolido. Não existe nem passado nem futuro, somente um presente contínuo de sofrimento crescente. Parece que ai não só se assassina de forma brutal, mas, definitivamente, o humanismo clássico que configurou o homem como um animal racional, político ou lingüístico foi destruído. É como se as grandes conquistas que propiciaram a civilização ocidental - a liberdade e o indivíduo - deixassem de ser valores eternos. Nesse recinto só vive um animal, um não homem, um espectro sem rosto encerrado em pesadelos e delírios atrozes, um corpo vazio ao que finalmente lhe furtam até a aptidão de padecer humanamente (Mir, 2004:28). A possibilidade de avançar no debate sobre o narcotráfico implica portanto em perfilar elementos que possam distinguir a grande rede do comércio global do tráfico de drogas no mundo, de sua expressão particular que o transforma em ‘narcofavela’; para assim 112 conseguir desfiar a teia histórica que levou esses jovens a virarem protagonistas dessa violenta realidade. Dessa forma é que posso inscrever o narcofavela nas raízes da segregação econômica e social -com que as dinâmicas de desenvolvimento capitalista se implementaram na América Latina-, achando nesses fenômenos um viés étnico de dominação presente até hoje. Justificando a dinâmica repressiva às favelas e aos seus moradores o tráfico aparece como a expressão mais contundente da continuidade desse domínio, mas também se revela - a partir dos novos elementos presentes na economia pós-fordista- como espaço de resistência e de luta, como veremos a seguir. III.2) AS NOVAS FIGURAS PRODUTIVAS Nos capítulos que antecederam tentei mostrar como as favelas adquirem um sentido novo nas sociedades pós-modernas, quer porque, ao se socializar, o capital se expande para a vida e o que era periférico se torna central, quer porque nas sociedades pós-moderna o sujeito revolucionário pode ascender como multidão. Os moradores das favelas se tornam, portanto, novas figuras produtivas quando o que se está a produzir são as relações sociais, é o mundo. Nas favelas a produção é, ao mesmo tempo, vida e resistência. Essa é a síntese das favelas. Quando o que está submetido a dinâmica capitalista é a própria vida, o capital abre sua última contradição. O espaço de produção se torna externo ao capital, a re-produção não precisa mais passar por dentro do capital. O capital precisa criar novas estratégias para acumular. Nas sociedades pós-modernas o eixo de sustentação do capitalismo moderno se desloca da propriedade privada dos meios de produção para a propriedade intelectual. É, pois, quando o capital consegue subjugar toda a vida que ele também se vê capturado, ao precisar do próprio veneno para se alimentar. Pois agora o capital se alimenta do que vaza em forma de vida, da inovação, ou seja, o capital se alimenta daquilo que se faz resistência. Assim é que a lucidez revolucionária de Negri permite apanhar o pobre naquilo que ele tem de revolucionário (de comum, de criação vital). A multidão é, ao mesmo tempo, o que valoriza o capital e o que produz a desmedida, o comum. O pobre é visto assim pelo autor como a condição de toda produção. Ou seja: “Aqui, dentro deste reino de produção global, o pobre já não se distingue apenas por sua capacidade profética mas também por sua presença indispensável na produção de riqueza comum, sempre mais explorado e sempre mais estreitamente indexado ao salários do mando. O pobre é, em si mesmo, poder. Existe 113 uma pobreza mundial, mas existe acima de tudo um possibilidade mundial, e só o pobre é capaz disso” (Negri, 2000:175). Aqui é onde a dimensão marxiana na obra de Negri se impõe. O sujeito revolucionário, está, antes de mais nada, inserido na produção social da vida e é figura fundamental desse processo. Se antes o sujeito revolucionário - proletariado- precisa dividir o cenário com o capital, já que sua própria constituição está ligada a existência desse: capital e trabalho aparecem como uma unidade dialética; agora o trabalho se libertou e se tornou pobre! Dessa forma é que posso trazer aqui o nome comum de pobre como ele aparece em Negri e Hardt. Para o autor, historicamente livres da servidão e dos meios de produção, ‘o proletariado foi obrigado a tornar-se pura possibilidade de riqueza’. Mas, diferente do pobre, o proletariado guarda ainda a disciplina da fábrica e a disciplina necessária para a construção do socialismo. Será apenas na pós-modernidade que esse proletariado se transforma em pobre, porque na pós-modernidade o subjugado absorveu o explorado. Ou pelo próprio autor: “Em outras palavras, o pobre, cada pessoa pobre, a multidão de pobres, comeu e digeriu a multidão de proletários. Só por esse fato os pobres já se tornaram produtivos. Mesmo o corpo prostituído, a pessoa indigente, a fome da multidão – todas as formas do pobre se tornaram produtivas. E os pobres tornaram-se, portanto, cada vez mais importantes: a vida do pobre cobre o planeta e o envolve com seu desejo de criatividade e liberdade” (Negri, 2000:176). É a concretude material apresentada para o pobre que lhe exige uma potência sempre renovada, assim o pobre é a desmedida, o futuro. Assim dirá Negri, quem senão o pobre para constituir o comum. O pobre nessa medida (na sua desmedida) é o comum dos comuns. Dessa idéia aflui a imagem da primeira vez que parei na entrada da Rocinha 32 e vi a multidão de pessoas num movimento de ir e vir, de entrada e saída da favela. 32 A Rocinha é a maior favela do Rio de Janeiro contando com cerca de 56.000 habitantes, embora algumas fontes afirmem que há bem mais. Com o intuito de regular o seu crescimento desordenado, a prefeitura da cidade implantou em 2001 um projecto urbanístico, designado Eco-limites, que delimitou a zona onde é permitida a construção com estacas de ferro unidas por cabos. Actualmente a Rocinha continua com forte crescimento devido ao forte influxo de migrantes de outros estados, tradicionalmente da Região Nordeste do Brasil mas cada vez mais do interior do estado. Atualmente conta com um grande aparato comercial instalado na própria favela, como redes de Fast-food, Lan Houses, bancos e empresas que levam os turistas para um tour pela favela. A favela, que atualmente possui status de bairro, está localizada entre os bairros da Gávea e São Conrado, dois dos bairros com IPTU mais alto do Rio de Janeiro. A proximidade entre as 114 Ao longe parecia um corpo pulsando, boca escancarada do monstro, com dentes e garras a vista. Multidão de gente comum, produzindo suas vidas na precariedade. O corpo sem órgãos33 aparece assim na plenitude da multiplicidade com que se constitui a movimentação da escassez: conexão de esforços, criatividades, habilidades, linguagem e corpos! As práticas cotidianas revelam a potência desse organismo que prolifera na pobreza: são as necessidades e carências urgentes que mobilizam esforços e transforma o privado em comum. Nas favelas a produção do comum é atualizada cotidianamente. A favela é assim o lugar da potência que emerge da pobreza, do pobre. Assim, nos dirá Negri: “finalmente hoje, nos regimes biopolíticos de produção e nos processos de pós-modernização, o pobre é uma figura subjugada e explorada, mas apesar disso uma figura de produção. (....) Mas quem é o sujeito que produz ‘transversalmente’, que dá um significado criativo à linguagem – quem senão os pobres, que são subjugados e ávidos, empobrecidos e poderosos, sempre mais poderosos?”(Negri, 2000:175). Dessa forma os pobres reinventam a realidade em práticas de vida que, se refletem suas carências materiais, também as superam, as reinventam. É na impossibilidade que se constrói o cotidiano das favelas. Quando os segmentos que foram acuados (nos diferentes processos de massacres de etnia inteiras) se tornam figuras produtivas fundamentais para a economia capitalista, a potência da multidão falou mais alto do que seu silenciamento histórico. E, é agora o capital que precisa se interrogar das possíveis formas de continuar comandando os corpos e residências de classe alta desses dois bairros com a Rocinha cria um profundo contraste urbano na paisagem da região. Vale destacar o Largo do Boiadeiro, feira dominical com produtos Nordestinos na beira do asfalto e a bem sucedida ação do banco popular que empresta dinheiro de ONGs em baixas quantias (até mil reais) a pequenos comerciantes e ambulantes, com uma baixíssima taxa de inadimplência. A comunidade também conta com 4 linhas de ônibus, cooperativas de vans, serviços de moto-táxi, um posto de saúde, uma agência dos correios, duas agencias bancárias, serviços de internet, TV a cabo, rádios comunitárias, uma casa de show, três escolas públicas e várias creches comunitárias (Wikipédia, a enciclopédia livre. www.wikipédia.com.br). 33 Nas palavras de Deleuze corpo sem órgão aparece como: “É uma multiplicidade - mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuido, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maquínico é direcionado para os retratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuivel a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a- significantes, intensidades puras, e não pára de atribuirse os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de intensidade (Deleuze, 2000:12). 115 controlando as mentes, quando as amarras foram desfeitas e o trabalho emerge no seu sentido mais pleno. A produção da subjetividade engoliu todo o ciclo econômico e refez as bases da produção. A natureza do trabalho mudou tanto quanto a natureza do seu produto. Dessa forma falamos de uma riqueza que já não se mede pelos mecanismos clássicos do tempo de trabalho, da mais -valia. A externalização do sujeito no objeto permite a materialização da subjetividade. A mercadoria não se assenta mais na escassez e no desgaste do uso. Ao contrário, a comunicação valoriza a mercadoria, produz valor. É a sociabilidade de um trabalho comum que produz riqueza. A riqueza adquire um novo significado: “Interrogar sobre a nova natureza da riqueza é um ato político, uma vez que, como dizia Marx, se trata de ‘despi-la de sua forma burguesa’, ou seja, reconhecer que não é fundada unicamente no ‘trabalho produtivo’ (no trabalho subordinado que produz o capital), mas também na atividade qualquer, na ação livre; significa dizer que a riqueza não tem a ver somente com atividade, mas que também diz respeito à capacidade de se subtrair (o tempo vazio, o ócio de Paul Lafargue); que pressupõe não apenas a subjetivação, mas também a ação da dessubjetivação, a fuga dos papéis e das funções predefinidas e dadas (Lazzarato, 2006:140). Lazzarato tira, assim, definitivamente, o trabalho de dentro da fábrica e da sua formatação disciplinada e o faz se expandir na sua dimensão criativa. Ontologicamente o homem continua subordinado ao trabalho, só que a (rel)ação que antes oprimia, agora, potencialmente liberta. Na verdade Lazzarato desloca todo o sentido de trabalho e traz as referencias Leibnsiniana, seguido de Tardin, para pensar que a produção da riqueza não deriva mais da conversão de uma atividade subordinada, como o trabalho aparece na perspectiva marxista do século XX, rompendo definitivamente com essa perspectiva.Não é preciso mais olhar a filosofia do sujeito por sob à luz da economia política. Como aparece em suas palavras: “Não se trata aqui de negar a pertinência da análise marxiana da relação capital trabalho, mas muito mais sua pretensão de reduzir a sociedade e a multiplicidade de relações de poder que a constituem em termos das relações de comando e obediência que se exercem no interior da fábrica ou na economia. As relações econômicas, devem, ao contrário, ser integradas a um quadro mais amplo, o das sociedades disciplinares e sua dupla técnica de poder: a disciplina e o biopoder” (Lazzarato, 2006:63-4). 116 Aqui o nosso circulo se fecha, pois a natureza produtiva da multidão tem, ao mesmo tempo, o sentido de captura e de fuga, de valorização e de resistência, de biopoder e de biopolítica. É, assim, a partir de um novo entendimento do que passam a ser as atividades produtivas, rompendo inclusive com o conceito marxiano de trabalho, que Lazzarato traduz, com precisão, o que podem ser as dimensões produtivas das favelas. Lazzarato supera o conceito do trabalho e compreende o ciclo produtivo como atividades de invenção e difusão. Será esse o conceito que nos permite visualizar as novas figuras produtivas no pósfordismo. Assim que as infinitas e contínuas conexões dos moradores são a imanência de onde vão emergir inúmera invenções, mas sobretudo onde a difusão se produz em rede, nos permitindo visualizar as favelas como espaço de produção. Para Lazzarato: “Dito de outra maneira, na cooperação dos ‘cérebros reunidos’, a invenção não é obra de grandes homens, e não é representada exclusivamente pelas grandes idéias; é sobretudo o resultado de uma colaboração e da coordenação de uma infinidade de agentes, ao mesmo tempo sociais e infinitesimais, e de suas idéias ‘raramente geniais, em geral anônimas, ‘que muitas vezes aparecem como pequenas idéias de pequenos homens, inovações infinitesimais que cada um aporta à obra comum’ (Lazzarato, 2006:145-146). O comum é vigorosamente atualizado no dia a dia das favelas. Assim as favelas se constituem em mananciais de produção. Bacia produtiva imaterial: rizomas de subjetividades quaisquer postas a favor da vida (do equacionamento e da produção da vida). A favela se torna então uma rede contínua de difusão das inovações que emergem na produção de vidas potencializadas pela precariedade. Mas, quando a produção social se torna uma atividade da invenção (ao invés da subjugação do tempo de trabalho) e da difusão (o compartilhamento valoriza a mercadoria) as formas clássicas de seu aprisionamento também se esfacelaram. O processo agora é completamente imprevisível, dirá Lazzarato, por que ‘não se pode comandar a invenção nem sua difusão social’ (Lazzarato, 2006:46).34 Assim que a mudança paradigmática recente não nos permite mais apreender a sociedade a partir do conceito de trabalho ou da práxis, pois esse conceito não dá mais conta do que o trabalho se tornou (não-trabalho) na sua efetivação e constituição de mundo. 34 Para o autor: “Os efeitos da invenção e da criação, diferentemente dos efeitos do trabalho, são infinitos. A invenção pode se efetuar nos agenciamentos espaço-temporais, mas sua efetuação não a esgota. A invenção insiste, pela eternidade. Ela pode sempre participar de novas combinações, de novos agenciamentos, agora e para sempre. Infinita no tempo, ela é também infinita no espaço. Ela se derrama até os pontos mais distantes, seguindo a distribuição das subjetividades quaisquer” (Lazzarato, 2006:47). 117 Ao romper com a dimensão disciplinadora do trabalho que existe na obra de Marx, Lazzarato rompe sobretudo com o caráter regulador que a experiência política do movimento operário do período fordista, e amplia os eixos de identificação dos conflitos e resistências para além dessa relação capital e trabalho, entendendo assim que, quando a ‘potência de criação das multiplicidade é a fonte de constituição do real’ (Lazzarato, 2006:259) também as formas de controle e capturação dessa riqueza se modificam, como veremos no próximo item. III.3) Contra-Insurgência: a guerra como biopoder Como paralisar a multidão que caminha potente por sobre o chão da história? Vida que persiste por sob as adversidades, que abre caminho, que inventa possibilidade, que inventa o impossível. Como controlar um corpo que não se amolda mais as máquinas, que não se submete mais aos ritmos ou aos tempos marcados pela produção. Como capturar o corpo do comum: rizoma que se regenera em qualquer uma das suas partes? Assim que à disciplina se sobrepõe o controle e, por sobre esse, a guerra. É a guerra que aparece então como forma de manter a ordem social. Nas palavras de Negri: ‘Em outras palavras, a guerra transforma-se na matriz geral de todas as relações de poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de sangue. A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer uma forma de governo destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos da vida social. Essa guerra traz morte mas também, paradoxalmente, deve produzir vida. Isto não significa que a guerra foi domesticada ou que sua violência tenha sido atenuada, e sim que a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder passaram a ser permeados pela ameaça da violência da guerra (Negri, 2001:34). Para que a guerra se torne de fato um elemento que perpasse os funcionamentos da vida – ‘controle que invade a profundidade das consciências e dos corpos da população, atravessando as relações sociais e as integralizando’ (Pelbart, 2003:83) –, ela precisa traduzir-se numa ação contínua e invasiva no cotidiano dessas populações. A guerra precisa ser uma ameaça que ronda continuamente sua existência, lhes impondo limites e regras. Será assim a existência de um comércio de drogas ilícitas, tomado na forma de jovens armados, submergidos num contexto de conflitos que geram diferentes formas de violência, a melhor justificativa para o estado de exceção permanente que recai sobre as favelas hoje. Negri encontra a interseção entre o discurso que justifica a guerra imperial e o discurso de combate as drogas, que ajuda a construir o sentido de exceção. Em suas palavras, assim 118 “(...) esses discursos de guerra servem para mobilizar todas as forças sociais e suspender ou limitar as trocas políticas normais” (Negri, 2005:35). Ao reconhecimento de que os instrumentos de soberania interna, eficazes até então, já não dão mais conta de controlar a dinâmica capitalista, pois essa invadiu todos os espaços, novas dinâmicas se impõem. Dessa forma dirá Negri: “O Império está surgindo hoje como o centro que sustenta a globalização de malhas de produção e atira sua rede de amplo alcance para tentar resolver todas as relações de poder dentro de uma ordem mundial - e ao mesmo tempo exibe uma poderosa função policial contra novos bárbaros e escravos rebeldes que ameaçam sua ordem” (Negri, 2003:37-8). O narcofavela aqui é apanhado, a partir dessa perspectiva conceitual, pelo sentido do biopoder, ou seja, a guerra que se trava contra os traficantes é também uma guerra contra essas populações (novos bárbaros). Por isso essa guerra é uma guerra interna que visa conformar as populações. Falamos de uma guerra que intercepta essa população no instante mesmo em que essa está a produzir sua existência comum. Pois é justamente no momento da reprodução da vida (que é agora produção), onde esses se tornam figuras produtivas que precisam ser capturados. A guerra aparece assim como uma modalidade de controle ainda mais sofisticada, que, se tem dentro de si a disciplina e o controle, vai para além deles. Ou seja, à potência desmedida da multidão precisa corresponder uma necessária antipotência. É a desmedida que precisa ser capturada, abafada, controlada. E, só a guerra, agora, pode lhe dar medida, por que só um poder que se interponha junto a vida pode deter, de alguma forma, a força dessa multidão que foi se conformando nas periferias das cidades fordistas (longe dos bairros projetados para serem continuidade da fábrica.) A favela é a antítese de todo a disicplinarização que o fordismo impôs as sociedades, se constituindo no espaço da informalidade, da improvisação, da descontinuidade, da fuga (suas ruelas e becos dão em qualquer e toda parte). Mas se o espaço da favela é descontínuo e fugidio é, ao mesmo tempo, comum. Há, nas favelas, um partilhamento do espaço que se constitui no comum. É o comum que pulsa na vida das favelas, fazendo com que o viver da favela esteja carregado de arte. Para Lazzarato, assim: “Se o poder de totalização do processo econômico, se a unidade do regime político, se o único mundo possível da economia e do político são cotidianamente minados pela proliferação de mundos possíveis, o estado de exceção é a única maneira de controlar a fuga, a experimentação, a criação conflitual de individualidades e movimentos políticos pós-socialistas” (Lazzarato, 2006:260). 119 Se a justificativa da guerra se explica, inicialmente, no combate ao tráfico de drogas, a partir disso ela se enraíza na vida dos moradores. Ao elemento suspeito, que vai do traficante ao suposto traficante, se agrega o ‘acobertar’ ou ‘auxiliar’ como justificativa recorrente para que o aparato estatal se sinta legitimado a invadir casas ou agredir os moradores. Assim todos são suspeitos, os jovens podem ser mortos ou agredidos por que são traficantes, se não, suspeitos. Os moradores coniventes ou apoiadores do tráfico de drogas. Justificado pelo discurso das drogas o Estado pode exercer o controle contínuo dessas populações. São muitos os relatos que denunciam a atuação violenta dos policiais nas favelas cariocas. Mas também são muitos os mecanismos de silenciamento, desqualificação e deslegitimação com que a sociedade recebe essas denuncias, sobretudo se partem dos próprios moradores e, poucos são os mecanismos oficiais pelos quais essas populações podem se valer para disputar os canais formais da democracia brasileira. Numa entrevista concedida a Revista ‘Isto É’ o Presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí denuncia a forma violenta de atuação da polícia nas favelas. Após a pergunta do repórter, de como seria a atuação da polícia no morro, segue a resposta: – Eles chegam, batem e espancam. Não percebem que estão criando um clima desfavorável. Uma criança de sete anos que ver uma pessoa ser espancada – sendo ou não do tráfico – jamais vai achar que a polícia está certa. Afinal, quem vive o dia-a-dia com ele dentro da favela é o cara que está apanhando. Isso vai formando a mentalidade da criança. No morro, a polícia não respeita nem um milímetro da Constituição. Se os policiais entram na casa de um morador e encontram um vídeo, sempre acham que foi conseguido através do tráfico. Entram nas casas sem pedir licença. Gostaria que um burguês saísse de seu meio para viver no morro do Andaraí por um dia. Então veria o tipo de tratamento que se dá aos favelados (Filho, Francisco Alves. Revista Isto é nº 1.426, 29/01/97). Dessa forma é que, por sobre os discursos que se constroem amparados na existência de uma violência generalizada, começam a passar elementos que transformam essa universalidade numa violência focada, produzida por dentro do Estado e que recai sobre um determinado segmento social, ressaltando a idéia de que a violência produzida nessa ‘guerra’, que se institui amparada pelo combate ao tráfico de drogas, representa a forma hegemônica das práticas de poder que há muito se instalaram no Brasil e se atualizam nesses confrontos. 120 O combate ao tráfico aparece como a principal forma de domínio do Estado à essas populações pobres e, por isso mesmo, potencialmente revolucionárias. Essas práticas de domínio imperial deixam centenas, e até milhares de mortos todo ano no Brasil. Mas a afirmação de que o controle do tráfico de drogas se transformou na forma de controle social pós-moderno se confirma assim quando identificamos que não é toda a sociedade que está submetida aos óbitos dessas incursões policiais. Como se poderia explicar - em condições que não a da excepcionalidade - os números de homicídios em decorrência das operações policiais? Como justificar que no Brasil, por exemplo, no ano de 2003, 1195 civis foram mortos em decorrência das ações policiais (agravado pelo fato de que 50% dos mortos em decorrência das ações policiais terem sofrido execuções sumárias35) a não ser inscrevendo essas ações como expressão do biopoder? Segundo o Escritório Regional do UNODC no Brasil36, nas duas décadas entre 1980 e 2000, 2,07 milhões de brasileiros morreram de causas não-naturais. Dentre essas causas, os homicídios lideram as estatísticas. Em 1980, estima-se a ocorrência de 13.910 homicídios. Os homicídios aumentaram para 31.989 em 1990 e alcançaram 45.343 em 2000. Segundo Dowdney (2005) a partir de uma comparação internacional em taxa de homicídios, o Brasil só aparece atrás de Colômbia, El Salvador e Rússia, aparecendo portanto como um das mais altas taxas de homicídio do mundo. Mas a relação de domínio que os altos índices de homicídios no Brasil revelam só se configura, contudo, se a ele se agregam novos indicadores, como: causa da morte, tipo das áreas mais atingidas, idade, gênero e etnia. Identificamos, dessa forma, que a concentração desses homicÍdios ocorrem nas cidades com uma maior densidade demográfica. Segundo o DATASUS assim, menos de 1% dos municípios brasileiros concentram 50% dos homicídios e 25% da população nacional em 2000.37 35 Vale ressaltar que um estudo realizado por Ignácio Cano sobre a letalidade da polícia indicou que em aproximadamente 50% dos casos por ele pesquisado, as vítimas apresentavam quatro ou mais perfurações à bala, com tiros pelas costas ou na cabeça, indicando claramente execuções sumárias.In Cano, Ignacio: Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro, ISER, 1997, Rio de Janeiro. 36 Nações Unidas Escritório Contra Drogas e Crimes - Relatório Perfil do País - Brasil 2005, (www.unodc.org.br) 37 Vale aqui acentuar que as favelas, entre todos os espaços das metrópoles, é o que possui a maior densidade demográfica, registrando-se em algumas favelas brasileiras um dos mais altos índices populacionais do mundo. 121 Mas sobretudo o que para nós interessa observar é a forma absurdamente discrepante com que esses homicídios se dividem entre os espaços das cidades, como aparece abaixo: “O crime não afeta todas as pessoas da mesma maneira. O risco de se tornar uma vítima é influenciado pela idade, pelo gênero, pela renda e pelo local de residência. Por exemplo, em áreas turísticas do Rio de Janeiro (como Copacabana e Ipanema), a taxa de homicídios é de cinco para cada grupo de 100 mil pessoas, semelhante à registrada nas cidades mais seguras da Europa. Nas favelas, situadas a apenas dois ou três quilômetros dessas áreas turísticas, a taxa de homicídios chega a 150 para cada 100 mil pessoas. A incidência de furtos, roubos em lojas e contravenções é maior em áreas de renda alta, como ocorre em países desenvolvidos. (RELATÓRIO PERFIL DO PAÍS - BRASIL 2005, p. 5, Nações Unidas - escritório contra drogas e crime (www.unodc.org.br). Vale ainda observar que nesses homicídios há um alto percentual de ocorrências envolvendo o uso de arma de fogo. Segundo o DATASUS, em 1998, mais de 60% dos homicídios que ocorreram no Brasil foram efetuados por armas de fogo. Além disso os números também nos revelam uma acentuada concentração em relação às vitimas de homicídio na Brasil entre as pessoas com idade entre 17 e 23 anos, como também o fato que os homens são muito mais vitimados que as mulheres. Os números revelam assim a acentuada desproporção no número de homicídios entre a população total e entre os jovens e, sobretudo, entre os jovens do sexo masculino.Assim que “De 1993 a 2002, o número de jovens entre 15 e 24 anos assassinados no Brasil cresceu 88,6%. Na população geral, o crescimento foi de 62,3%, índice mais de quatro vezes maior que o aumento da população no mesmo período.”38 Assim que os jovens do sexo masculino entre as idades de 15 e 29 anos são o grupo mais afetado da população. Dos homicídios registrados em 2000, mais de 16.000 afetaram jovens do sexo masculino - 75% dos quais vítimas de armas de fogo. A pesquisa conduzida por Dowdney (2005) pode concluir assim que, “O Brasil é o 3° país onde mais jovens morrem por armas de fogo, atrás de Venezuela e Porto Rico (57 países foram analisados na pesquisa).”Assim, em 2002, 39,1% dos adolescentes que morreram no Brasil foram vítimas de arma de fogo (Datasus). 38 Brasil: Taxa de homicídios entre jovens quase dobrou nos anos 90. Redação COAV. 39 No período entre 1979 e 2003 segundo a UNESCO (2003) foram assim os regsitros do número de mortes por armas de fogo no Brasil entre 1979 e 2003: morreram no Brasil mais 550 mil pessoas vítimas de arma de fogo. Deste total, 205.722 tinham entre 15 e 24 anos. Em 1979: 2.208 jovens foram mortos com armas de fogo. Em 2003: 16.345 jovens foram mortos com armas de fogo. 122 Se, a evidência de que estamos falando de uma violência que se exerce por sob o domínio do império, aparece quando juntamos às estatísticas gerais esses indicadores específicos, essa fica ainda mais acentuada se sobrepomos aos números também a questão étnica. Identificamos que a taxa de homicídios de afrodescendentes é de 68,4 mortos por 100 mil habitantes, 74% maior do que a média de brancos da mesma idade, de 39,3 (Dowdney, COAV). Assim que ao mensurar a guerra, mas principalmente ao identificar quem são os seus mortos, o caráter étnico dominador desse Estado explode, respingando para todos os lados. Quando revelam o caráter étnico dessa ‘matança’ os números fissuram o âmago de um discurso que apresenta a violência no seu caráter universalizante: como se estivéssemos todos sujeitos a mesma violência e, como se ela atingisse a todos os segmentos da mesma forma. A impropriedade desse discurso que generaliza a violência no Brasil aparece também quando analisamos a situação específica da cidade de Niterói, município do Rio de Janeiro. Niterói apresenta um alto índice de desenvolvimento humano, IDH (maior que 0,80), além de ostentar o 51º lugar em violência, ao ser comparada as outras cidades brasileiras, enquanto a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, aparece em segundo lugar. Contudo, ao focar o olhar nos índices de mortalidade decorrentes dos confrontos entre policia militar e população civil (pegando o número de mortos em confrontos com a polícia no ano de 2004) teríamos no Rio de Janeiro uma relação de 0,98 para cada cem mil habitantes, enquanto em Niterói essa relação sobe para quase três vezes esse número. Segundo reportagem publicada no Jornal ‘O Globo” (Lima, Ludmila, em 8 /01/2006) usando como fonte o Instituto de Segurança Pública (ISP), Niterói, assim, apresenta uma das maiores proporção de mortes em confronto com a Policia Militar. A aparente contradição entre o baixo índice de violência e o alto índice de mortos em confrontos policiais se explicaria, segundo o Coronel Marcus Jardim, comandante do 12º Batalhão da Polícia Militar, pela existência do que ele mesmo denomina ‘ áreas de conflito na região’, que segundo estimativas do 12º BPM seriam 78, todas situadas nos morros e periferias da cidade. Essas áreas de conflito se caracterizariam pela presença do tráfico de drogas. Ainda segundo o Coronel “as principais facções do tráfico de drogas do Rio de Janeiro estão presentes também em Niterói. A presença de grupos armados é especialmente marcante nos morros do Caramujo, Nova Brasília e Vila Ipiranga, todos localizados na Zona Norte e dominados pelo Comando Vermelho, que está presente também nas comunidades da Região Oceânica (Itaipu, Pendotiba e Piratininga). O grupo 123 rival, Terceiro Comando, controla a venda de drogas no Morro do Estado, no Centro. Assim que, para o Coronel, devido a justificativa do tráfico de drogas, segundo suas palavras: “Temos que combater o crime todos os dias nesses lugares.” Isso explica o fato do 12º Batalhão Polícia Militar (Niterói e Maricá) registrar a mais alta taxa de homicídios no Estado. “Nós somos a polícia que mais matou marginais no estado. No mês passado foram 13 bandidos mortos”, dirá o Coronel responsável pelo comando do Batalhão. O professor Roberto Kant, coordenador do Núcleo da Universidade Federal Fluminense, avaliando esses dados, dirá: “A tradição da polícia brasileira, tanto a militar como a civil, é a manutenção da ordem por meio da suspensão dos conflitos e da punição – extra-oficial – dos envolvidos. (...) Daí decorre que a polícia brasileira ainda está marcada pela idéia de que somos uma sociedade composta de grupos e indivíduos dotados de direitos desiguais, em que a tarefa de manter a ordem é a manutenção dos privilégios (...) Quanto mais aumenta a aparente qualidade de vida da cidade, quer dizer, quanto mais visível fica a sua camada privilegiada, mais invisível se torna a sua camada desprivilegiada e mais repressão se aplica para a manutenção do status quo” (O Globo, Niterói, 8/1/2006). O discurso que se institui na cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 90 sobre ‘violência’ traz - de forma hegemônica pelos meios de comunicação e autoridades públicasa premissa de que esta decorreria da disputa entre as diferentes facções do tráfico de drogas ilícitas, associada a idéia de um tráfico fortemente armado - com armas cada vez mais modernas e letais - como justificativa principal das causas da mortalidade dessa guerra. Pelo discurso do senso comum, quem aparece sitiada assim não é a favela e, sim, a cidade. Novos hábitos vão sendo adquiridos também pela população que vive nas cidades, fora das favelas, redesenhando seus contornos a partir de uma geografia do medo. Esse discurso que se constrói em cima do medo40 é um dos principais elementos de solidificação da legitimidade do Estado de Exceção. 40 Em entrevista concedida ao Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (publicação mensal do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a historiadora e socióloga Vera Malaguti Batista resume a trajetória dos seus estudos que a levaram a concluir que o medo é um dos principais elementos de manutenção da ordem social, construindo uma mentalidade de criminalização da pobreza que justifica as ações conservadoras sobre os segmentos populares, como também sobre os movimentos sociais e suas demandas legitimas. Segundo a autora: “Por tudo isso o medo é um instrumento fundamental para se manter a hierarquia da sociedade. No século 19, não existia nada mais legítimo do que a rebelião escrava, dada a condição que estas pessoas viviam. No entanto, a imprensa naquela época se referia aos quilombos da mesma forma com que hoje os meios de comunicação mostram a favela, o baile funk, o comércio de drogas, os camelôs. Os grandes nós que existem na sociedade brasileira, como o acesso à terra e à educação, tem sua 124 Uma análise dos principais jornais dos últimos anos, sobretudo os do Rio de Janeiro, revela a forma com que esses jovens vão sendo personificados pela imprensa. Além do caráter de sanguinários cruéis o tráfico aparece como uma rede bem organizada, com um exército bem armado, chegando a se constituir, não só para a imprensa mas também para alguns teóricos como ‘um poder paralelo’, quase tão forte como o Estado. Dessa forma é que esses personagens vão se transformando na encarnação do mal, permitindo que todos os atos de violência contra essa população possam ser justificados, até os mais injustificáveis. A imprensa vai definindo uma nova moralidade que se conforma de modo tão funcional ao interesses do império, (inclusive economicamente) que se produz/adere n/aos discursos da classe média e alta. Esse discurso é o que permite a imprensa vender (e lucrar) jornais com noticias diárias dessa guerra, da sua brutalidade e covardia, sem causar nenhum movimento de adesão social favorável as suas vítimas. Ao contrário, a legitimação do discurso é tão acentuada que pode conseguir, inclusive, produzir um retrocesso significativo nos poucos avanços que se conseguiu na área dos direitos humanos para essas populações41 (como, por exemplo, conseguir a aprovação da diminuição da maioridade penal). origem na maneira com que o Brasil se construiu: excluindo seu povo das riquezas. O medo é uma ferramenta fundamental para manter este mecanismo porque ele é paralisante e torna a sociedade conservadora. Uma população que teme a favela vai querer que se extermine seus moradores. Por isso, a morte diária dos jovens de lá é vista como algo natural. Da mesma forma com que no século 19, os capoeiras eram exterminados porque representavam uma ameaça à sociedade escravocrata. Quando olhamos para a realidade atual, percebemos que as questões do século 19 permanecem” (Entrevista concedida ao Jornal dos Trabalhadores Rurais). 41 A reprodução dos comentários emitidos na seção de cartas de um jornal de grande circulação nacional explicita a opinião hegemônica desses setores sobre a questão do tráfico associada diretamente a pobreza e as favelas, como aparece a seguir nos textos publicados na seção do jornal O Globo (19/07/2005). “Até quando assistiremos aos marginais fechando ruas, transformando ônibus em barricadas e jogando granadas nos nossos veículos? Por que a polícia não conseguiu interceptar os comboios se tinha informação sobre a festa na Rocinha? Onde está a tropa federal treinada que deveria ter aproveitado esta manifestação de poder dos traficantes? (Ricardo Egypto, por e-mail Globo Online, 18/7/2005, Rio de Janeiro). E ainda “A remoção das favelas próximas às principais rodovias do Rio é inevitável. Os confrontos armados, traficantes x traficantes e traficantes x polícia, nas proximidades dessas vias, vêm expondo cada vez mais a vida dos moradores dessas comunidades e a dos motoristas e passageiros. Há quem seja contra essa proposta, alegando as falhas ocorridas no passado, quando foram adotadas no então Estado da Guanabara. Para tanto, basta evitar que os erros se repitam. Outra providência vital é aumentar o efetivo das forças federais - Polícia Federal e Forças Armadas - visando à repressão inteligente à entrada de 125 O poderio paralelo do tráfico, que justifica essa guerra, no entanto, está muito longe de se constituir na forma com que a imprensa e o discurso hegemônico o produziram. O discurso recorrente -nos meios de comunicação, pelas autoridades públicas e na sociedade em geral- de que se trata de jovens fortemente armados e extremamente violentos, como aparece abaixo na Reportagem da Revista Isto É, serve de base para a legitimação de um intervenção sustentada na idéia do Estado de Exceção. “Em muitas execuções os governantes da bandidagem não se contentam em usar as armas pesadas de seu poder bélico, que na avaliação do superintendente da Polícia Federal no Rio, Marcelo Itagiba, chegaria a três mil peças. As mais comuns são os fuzis AR-15, Ak-47, Fal e Rugger, além de granadas, morteiros, lança-rojões e bazucas. Segundo a PF, há pontos de tóxicos de morros cariocas com 300 fuzis, ou seja: um poder de fogo superior ao de duas companhias de fuzileiros de um batalhão de infantaria do Exército. É esse arsenal, sobre o qual as Forças Armadas e a Polícia Federal não têm nenhum controle, que torna o tráfico do Rio peculiar e mais assustador do que o de qualquer outra grande cidade no mundo (Revista Isto É n. 1.426, 29/01/97). É Mir (2005) quem ajuda a desmontar a associação utilizada freqüentemente para vincular o binário drogas/armas pesadas com o grau de letalidade da violência. Dessa forma o autor refuta, ao mesmo tempo, tanto as associações que colocam armas e drogas como resultantes e provocadoras de um mesmo mal: ‘um só produto causa um mesmo mal e dano’; quanto os discursos que afirmam estarem esses jovens armados com armas modernas e letais, de grosso calibre, que ultrapassariam, inclusive, os próprios aparatos do Estado. A primeira refutação se refere a associação das drogas e armas. Para o autor os trajetos cumpridos pelas armas e pelas drogas são bastante distintos. No primeiro caso as armas começam num mercado legal e chegam à ilegalidade na fase de comercialização, seja pelo varejo do comércio doméstico ou pela triangulação com comerciantes de países vizinhos. Essa trajetória constitui um circuito diferente do das drogas, que tem todos os seus ciclos na ilegalidade, permitindo, sobretudo na sua comercialização varejista, que a ação do estado aconteça, como coloca o autor: ‘ Já as drogas, a partir de um estudo do ISER, vêm do Norte e do Nordeste brasileiro, países andinos e amazônicos. E é nesse comércio de vidas e mortes que aparece a mão pesada do Estado permitindo e intensificando a violência. As drogas são clandestinas nas fases do drogas e de armamentos no estado (Paulo Fernandes da Silva, por e-mail, 18/7/2005, Rio de Janeiro). 126 seu ciclo (produção. comercialização e consumo); já as armas começam legais e migram para a ilegalidade durante a comercialização. O primeiro passo para o controle da oferta de morte seria a investigação dos caminhos e processos de comercialização das armas leves produzidas no Brasil (Mir, 2005:284). O mito em relação a esses jovens que vai sendo construído diariamente nas informações produzidas pelos monopólios dos meios de comunicação e da grande imprensa, são, assim, desconstruídas pela fala de Mir: “A informação de que a violência brasileira se sustenta em armas de guerra importadas é uma falácia pesada. Das armas que mataram, assaltaram e feriram dezenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro, na última década, 83% são de fabricação nacional (...) 72% das armas apreendidas no Rio de Janeiro entre 1994 e março de 1999 (total de 32.143 armas) foram produzidos por um único fabricante, a Taurus & Rossi, instalada no Rio Grande do Sul (Mir, 200:284). A refutação que pretendo fazer, portanto, não vai de encontro as afirmações de que esse comércio se enraíza pela sociedade e produz uma grande lucratividade. Ainda que não se tenham dados tão seguros e coerentes sobre a economia das drogas, é consensual entre a totalidade dos pesquisadores que este comércio ocupe uma posição importante em relação a economia contemporânea globalizada. O que busco é contudo diferenciar o papel que esses jovens vão assumir nessa rede, que está muito longe de se constituir no poderio de uma organização do crime. Ao contrário, como vimos construindo até aqui, essa conexão com o tráfico é também uma forma de capturar esses jovens e justificar uma guerra de domínio contra esses segmentos sociais. O que podemos depreender desses números é, assim, a forma com que as redes do aparato do estado se emaranham com as redes da criminalidade e conduzem essa guerra na perspectiva do controle social. Para Negri, na medida em que a autoridade dos Estadosnação vem declinando, a guerra transforma-se num fenômeno geral, global e interminável (Negri, 2001:21). O discurso das drogas é suficientemente forte – moral e universal – para legitimar a caçada a esses jovens-meninos. O Estado de exceção justifica a guerra e, a guerra justifica o Estado de exceção. Assim que – por sob a legitimação do combate ao tráfico – a guerra se torna biopoder, e pode se estender, entranhando-se e perpassando a vida e as relações sociais da favela. A população é invadida na sua privacidade, violada nos seus direitos, violentada na sua integridade. A guerra que se impetra a essas populações é, assim, uma guerra cotidiana, que entra nas suas casas, arromba suas portas, rouba suas coisas. Vários são os relatos sobre as formas com que os aparatos de repressão chegam até esses moradores. 127 Segundo reportagem de Ana Lucia Vaz (Rede Nacional de Jornalistas Populares) cerca de 300 moradores se mobilizaram em torno da Associação de Moradores da Grota a fim de denunciar a violência do BOPE, por ocasião da ocupação do morro do Alemão, deflagrado pelo assassinado do jornalista Tim Lopes, em outubro de 2005, no Rio de Janeiro, onde faixas decoravam o local: “Os moradores do Complexo do Alemão pedem respeito das autoridades policiais”. Ou pediam igualdade aos governantes, porque “o povo da favela é igual ao da Zona Sul” ou porque “na favela também pagam-se impostos”. Segundo a reportagem as denuncias feitas pelos moradores em relação as atitudes dos policiais vão desde ameaças e humilhações até agressões e furtos. O desrespeito aos direitos básicos aparece na fala desse morador, dono de um comércio no local: “Quando começou o tiroteio, tinha que fechar as portas do comércio. No momento em que eu fechei, os policiais arrombaram. E me fizeram colocar o rosto no chão, como se eu fosse um bandido, como se eu não pagasse os meus impostos. Naqueles 15 minutos eu me senti entre a vida e a morte. Eles começaram a invadir, a mexer nas coisas. E perguntaram o que tinha no terraço, e eu disse que tinha a minha cachorra. E ele disse: se você não for lá pegar ela, eu dou um tiro em você e nela. E ele me fez subir no terraço, no meio do tiroteio. Depois desceu me carregando, como se eu fosse um escudo humano. Uma senhora pediu pelo amor de Deus pra ele me deixar e eu acabei conseguindo sair e fui pra casa dela e fiquei lá até às cinco horas. Isso começou às 9 horas da manhã. Eles ficaram usando minha loja como base. Usaram a geladeira, vasculharam tudo, deixaram tudo sujo” (Renajorp, em http://www.renajorp.net/). A violência está por todo lado e atinge a todos, ainda que com letalidades diferentes, a violência cumpre sempre a mesma função de controle. É assim que a guerra do tráfico de drogas aparece como - ‘forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhandoa, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando’- na forma como é tomada por Negri. Aqui, o sentido ainda ‘externalizado’ da guerra assume sua dimensão de subjetivação, quando ‘adquire comando efetivo sobre a vida total da população” (Negri, 2001:43). A guerra, enquanto violência cotidiana que modula os corpos das populações, tudo pode. A política da guerra está em toda a parte, os grilhões são retomados. A guerra se transforma assim em função integral, vital’ que toma a vida desses jovens, mas também de toda a população. “O biopoder, portanto, se refere a uma situação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção e a reprodução da própria vida” (Negri, 2001:43). Á favela, novamente se gruda a acepção histórica produzida para os campos de concentração. A favela se torna um espaço onde a norma jurídica é suspensa e, onde essa 128 suspensão vira regra. Assim dirá Pelbart: “A questão não é como se pôde cometer crimes tão hediondos contra seres humanos, mas por quais dispositivos jurídicos e políticos seres humanos puderam ser privados de seus direitos e prerrogativas a ponto de qualquer ato cometido contra eles deixou de aparecer como delituoso” (Pelbart, 2003:64). III.4) A FORÇA DO APARATO POLICIAL Entre as pesquisas com as quais entrei em contato durante o percurso desse trabalho o Relatório RIO: Violência Policial e Insegurança Pública, produzido pelo Centro de Justiça Global (www.global.org.br) se distingui por apresentar um estudo na área da segurança pública que apanha a violência oriunda dos aparatos estatais, possibilitando uma reflexão sobre a forma como vem se definindo as estratégias na área da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro.42 Podemos perceber, por exemplo, que as ocorrências policiais que deixam os saldos de homicídios como aparece na tabela I, é resultado de forças consensuadas na sociedade que acreditam que os privilégios econômicos e políticos - e na sua antiface as desigualdades sociais- devam ser garantidos por sob qualquer forma. Assim, ainda que presumindo que as políticas de segurança pública se assentassem de fato na preocupação ao combate ao tráfico de drogas, distinguiríamos as possibilidades desse combate acontecer com um número ínfimo de mortes, haja vista serem esses pseudo exércitos de traficantes completamente vulneráveis frente às forças do aparato estatal. O primeiro ponto de relevo no estudo é, então, a identificação de uma relação direta entre a violência efetuada pela polícia e as diretrizes vigentes da Política de Segurança Pública do Estado. Dessa forma o relatório proporciona uma leitura dos diferentes posicionamentos políticos na condução da política de Segurança Pública e o número de mortos pela polícia correspondente no período, vistos também na relação com os discurso ideológico com que essas ações vão sendo justificadas e ganham legitimidade na sociedade. Segundo o relatório a aplicação de medidas institucionais como o ‘rigor nas investigações, o combate aos casos de corporativismo, a resposta imediata das autoridades quando da ocorrência de uma violação, o estudo de mecanismos de controle externo, entre outras.’(idem, 8) ou seja, 42 “A partir de um trabalho de pesquisa jurídica, acadêmica e jornalística – além de entrevistas com as vítimas e visitas in loco nas áreas atingidas pela violência do Estado - o Centro de Justiça Global obteve as fontes necessárias para a composição deste Relatório, cujo objeto refere-se justamente à crescente deterioração dos direitos humanos no Rio de Janeiro, em especial daqueles que, oriundos das camadas populares, constituem as 129 medidas que visem reverter a conduta predominante de incentivo as ações violentas (houve períodos em que se recompensava cada policial com um incremento salarial que variava de 50 a 150 % de seu salário sempre que fosse feita uma vítima letal 43) poderiam ocasionar a diminuição da letalidade policial, como a que ocorreu, por exemplo, entre os anos de 1998 para 1999, com o decréscimo de 40% no número de civis mortos pela polícia.44 Tabela 1: Número de mortos civis e policiais, em decorrência de ações policiais, por ano ANO CIVIS MORTOS POLICIAIS MORTOS45 1988 397 99 1999 289 92 2000 427 106 2001 592 91 2002 900 170 2003 1195 45 Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Instituto de Segurança Pública, ISP Mas o que por fim me permite avançar -no sentido do entendimento da criminalização da pobreza e da participação do Estado no extermínio desses segmentos- são os casos emblemáticos da violência policial coletados pelo Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança Pública.(2004)46. Ainda que, como vimos, relatos semelhantes apareçam constantemente nas narrativas dos moradores das favela47 a especificidade (extensão e principais vítimas da violência policial” (Lyra, Diogo de Azevedo et al. RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004.) 43 Soares, Luis Eduardo. Meu Casaco de General. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. Citado no Relatório. 44 “Como resultado direto deste início de reformulação, o balanço do primeiro ano foi a redução em 40% bem como a redução do número de policiais mortos, além de uma apreensão record de armas em poder dos criminosos: 9 mil. (RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro : Justiça Global, 2004, p. 9). 45 Ao número também absurdamente alto de policiais mortos deve-se, no entanto, ser considerado que “cerca de 70% desses policiais vieram a falecer fora do horário de serviço, na complementação salarial usual do segundo emprego – o bico’ ((Lyra, Diogo de Azevedo.;et al.RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004, p. 25). 46 Para um quadro completo ver os relatórios anuais do Centro de Justiça Global. Direitos Humanos no Brasil 2000; Direitos Humanos no Brasil 2002; Direitos Humanos no Brasil 2003; e o relatório temático Relatório sobre Execuções Sumárias no Brasil 97-2003, 2003. 47 Apesar do pedido de Vagner, quem participou da reunião da comunidade, sexta-feira, dia 20, sem a presença da imprensa, garante que os relatos foram mais fortes. No boca-a-boca, dia 24, muitos falavam no rapaz que foi preso dentro do caveirão, onde os policiais urinaram nele. Houve até quem falasse em tentativa de estupro. Mas, diante dos jornalistas, as 130 fragilidade) da democracia brasileira pouco tem fomentado instrumentos que permitam dar visibilidade e conseqüências a essas denúncias. Os acontecimentos escolhidos aqui para serem relatados ocorreram entre janeiro a setembro de 2004 e, quando apanhados por esse relatório, se constituem como referencia privilegiada, que munido de credibilidade, pode ajudar a desconstruir a base de sustentação social que se forjou para legitimar o uso da força pelo Estado brasileiro aos segmentos pobres da sociedade, afirmando o caráter sistemático com que tais violações se apresentam no cotidiano do Rio de Janeiro, se tornando representativos de certos padrões de ação policial. Optamos então por reproduzir na íntegra pelo menos três dos 21 processos arrolados no Relatório. A escolha de reproduzir na íntegra os relatos - em que pese a extensão disso- vem da convicção de que nenhuma análise que fizesse sobre esses substituiria a contundência que a impressionante brutalidade desses acontecimentos provocam. Segundo o Relatório Rio (2004) foram utilizados documentos e estatísticas oficiais, reportagens jornalísticas, acompanhamentos processuais, além de um farto material obtido nas entrevistas realizadas pela equipe do Centro de Justiça Global junto às vítimas, familiares e moradores das principais áreas atingidas pela violência do Estado durante o ano de 2004. CASOS CASO UM W. D. G. M., J. C. P. J., Flávio Moraes de Andrade, E. M. A. e José Manoel da Silva – Caju, Rio de Janeiro. Na noite do dia 06 de janeiro de 2004, os jovens W. D. G. M., 13 anos, J. C. P. J., 16 anos, Flávio Moraes de Andrade, 19 anos, E. M. A., 17 anos e José Manoel da Silva, 26 anos estavam reunidos jogando dominó, próximo a um mercado do Complexo do Parque da Alegria, na comunidade do Caju, Rio de Janeiro, quando dois policiais militares chegaram repentinamente atirando contra os rapazes, sem que eles pudessem reagir. Segundo informações dos familiares, as testemunhas contam que os rapazes ainda tentaram se identificar, solicitando que fossem levados até suas casas para que pudessem mostrar seus documentos, mas não foram atendidos. Indícios provam que a execução foi realizada ali mesmo, onde os rapazes estavam reunidos. denúncias foram mais leves. Apesar das denúncias, a maioria afirmava que o movimento não era contra a polícia, mas contra o “abuso de poder”.Rede Nacional de Jornalistas Populares - Renajorp - http://www.renajorp.net/ 131 Houve ainda uma sexta vítima que sobreviveu: William Borges dos Reis também foi atingido pelos disparos dos policiais, mas conseguiu fugir e ser socorrido por vizinhos. Na manhã do dia 07 de janeiro, três dos cinco corpos foram encontrados em um lamaçal que fica localizado na própria comunidade, atrás da garagem de uma empresa de ônibus. Trata-se de um local ermo, onde certamente ninguém poderia presenciar o momento em que os corpos foram deixados e, principalmente, por quem foram deixados. Os outros dois corpos foram levados ao Hospital Souza Aguiar e identificados pelos policiais como supostos traficantes que teriam morrido em troca de tiros com a polícia. Os corpos das vítimas que foram deixados no lamaçal ficaram horas expostos no local antes que fossem recolhidos ao IML – Instituto Médico Legal. Durante esse período, os familiares esperaram ao lado dos corpos dos seus filhos e presenciaram a chegada de policiais que pareciam estar ali para vigiá-los. Sem respeito à dor das famílias um dos policiais disse: “Menos um porco para a gente prender”. A ocorrência foi registrada e, segundo familiares, os policiais militares envolvidos na execução continuam trabalhando na comunidade e teriam sido apenas alocados em batalhões diferentes. De acordo com Elizabete Maria de Souza, irmã de W., onze policiais militares se envolveram na ação daquela noite no morro do Caju. Informações fornecidas, pessoalmente, em entrevista concedida ao Centro de Justiça Global em 31/05/04. Após o crime, alguns policiais militares do 4° Batalhão da Polícia Militar visitaram associação de moradores do bairro, onde Elisabete trabalhava. Antes das execuções, policiais nunca haviam visitado a associação, o que leva a crer que essa foi mais uma forma de amedrontar Elisabete para que ela desistisse de denunciar os policiais. Atualmente, ela não trabalha mais na associação, preferindo proteger seus colegas de trabalho, que justificadamente também se sentiam ameaçados pela situação. O sobrevivente William prestou depoimento logo após o ocorrido. Inicialmente ele alegou ter sido atingido por uma “bala perdida”, mas depois, a pedido das famílias das vítimas fatais, voltou à 17ª Delegacia de Polícia e contou o que realmente lhe havia acontecido, ou seja, que havia sobrevivido a uma execução realizada por policiais militares. Logo após seu segundo depoimento, Willam e toda sua família se mudaram da comunidade. Eles disseram que temiam a presença dos policiais. Na última vez que Willian foi visto, em fevereiro de 2004, foi possível notar que ele ainda mancava em função do tiro que havia levado na noite da execução. Elizabete, irmã da vítima W., conta que três meses depois do assassinato, durante uma passeata organizada pelas mães das vítimas, policiais do 4º Batalhão da Polícia Militar, onde trabalham os envolvidos na execução dos garotos, tentaram atrapalhar 132 a manifestação. Eles ameaçavam os vizinhos para que estes não aderissem à passeata e arrancavam os cartazes afixados nos postes pelos manifestantes. O inquérito policial foi iniciado na 17ª Delegacia Policial, mas foi transferido para a Delegacia de Homicídios, onde, até o fechamento do presente relatório se encontrava processo de investigação. Os familiares dos demais jovens executados continuam morando na comunidade do Caju, convivendo com os policiais militares que executaram seus filhos, sem que o Estado tenha garantido qualquer proteção às suas vidas e integridades pessoais.(páginas 38-9) CASO DOIS Nélis Nelson dos Santos - Morro da Coroa, Rio de Janeiro. No dia 16 de fevereiro de 2004, aproximadamente às 7h30, motivados pela vingança do assassinato de um policial do 1º Batalhão da Polícia Militar, um grupo de 11 policiais militares do mesmo batalhão acompanhados de um informante encapuzado, deram início a uma operação na favela Morro da Coroa, no Rio de Janeiro. Por volta das 9h30, os policiais invadiram a casa de Nélis dos Santos a fim de obter informações sobre a localização dos possíveis autores do assassinato do policial. Nélis dormia no segundo andar de sua residência, local para onde se dirigiram quatro policiais e o informante encapuzado, permanecendo o sargento Jorge e os familiares de Nelis no andar térreo, enquanto os demais policiais aguardavam do lado de fora da casa. Como Nélis era viciado em drogas, os policiais acreditavam que ele poderia fornecer as pistas que procuravam sobre a morte do colega, pois acreditavam que o policial havia sido assassinado por traficantes locais. O grupo de policiais que abordou Nélis contava então com dois oficias caracterizados um 1º tenente e um 2º tenente, um sargento, identificado por familiares como sargento Jorge P2, que permaneceu conversando com o irmão de Nélis, um outro oficial cuja patente não se pôde determinar e um homem trajando vestimenta semelhante a do exército (camuflada), que portava uma arma de grosso calibre. O informante acompanhou os policiais que dirigiram-se ao segundo andar. De acordo com o relato dos familiares, o sargento Jorge os havia tranqüilizado, afirmando que “só queriam conversar”com Nélis - inclusive surpreendendo o irmão da vítima ao demonstrar conhecer seu grau de parentesco, bem como a igreja que este freqüentava. Seguiu-se uma conversa entre o irmão de Nélis e o sargento quando, do andar de cima, ouviu-se um forte barulho seguido de gritos da vítima. Seu irmão pediu então que não o espancassem mais, pois toda a família estava presente, incluindo uma criança de cinco anos de idade. 133 O sargento subiu ao cômodo onde se encontrava Nélis e os outros quatro policiais, além do informante. Pouco tempo depois, os policiais foram descendo um a um, advertindo os familiares de que deveriam ir embora dali para não “serem prejudicados”. Por fim, desceu o 1º tenente, ofegando bastante, dirigindo-se diretamente ao irmão da vítima, pedindo “para dar um jeito”em Nélis. O irmão argumentou que estavam providenciando uma clínica de recuperação para ele, mas que Nélis não queria se internar. Diante desta resposta, retrucou dizendo que “agora ele (Nélis) vai querer ir para a clínica”. Quando os policiais se retiraram, os familiares dirigiram-se até o quarto onde ocorreu a tortura e encontraram Nélis desacordado no chão, sangrando muito, enrolado em um lençol. Ao recuperar os sentidos, contou que foi brutalmente espancado pelos policiais, tendo estes lhe pisoteado os órgãos genitais, aplicado-lhe eletrochoques, enforcamento, inserido um cabo de vassoura em seu ânus, furado sua língua, dedos e nariz com um alicate, além de desferir-lhe um golpe na cabeça com uma pesada balança de ferro. A sessão de tortura durou aproximadamente três horas e resultou, além dos ferimentos por todo o corpo, na destruição da bexiga e do canal retal de Nélis, reconstituídos posteriormente pela equipe de médicos do Hospital Miguel Couto. O Centro de Justiça Global reuniu-se com membros da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro que afirmaram sobre a suspensão das incursões policiais naquela comunidade, a transferência da investigação para a Corregedoria Interna de Polícia e a proteção da vítima e de seus familiares pela Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE). A vítima reconheceu 5 policiais envolvidos na tortura, por meio de um álbum de fotografias da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O auto de reconhecimento foi feito no hospital onde Nélis estava internado e foi anexado ao inquérito que apura a responsabilidade dos policiais agressores. Também foi anexado o depoimento da vítima, prestado no hospital, sob autorização de Nélis, onde este confirma as três horas de tortura sob o poder dos policiais do 1º Batalhão da Polícia Militar. Nélis também foi submetido a exame de corpo de delito, feito pela perita Regina D’Onofre, do Instituto de Criminalística Carlos Éboli. De acordo com o laudo da perita, ficou constatada a caracterização de maus tratos, com ferimentos compatíveis à tortura. Embora a delegada responsável pelas investigações, Valquíria Lucas, da 6ª Delegacia de Polícia, tenha solicitado a prisão preventiva dos 11 policiais, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou o pedido sob alegação de “falta de provas”, mesmo tendo o 134 Inquérito Policial Militar, instaurado por determinação do 1º BPM, concluído que os 11 policiais tiveram participação direta ou indireta na tortura de Nélis. Ainda assim, conforme notícia publicada pela imprensa, a delegada afirmou que reiterará o pedido de prisão quando tiver fatos novos a acrescentar. Segundo informações fornecidas pelo Sub-Secretário, Paulo Baia, foi decretada a Prisão Preventiva dos policiais envolvidos no fato acima narrado. Os policiais foram indiciados por crime de Tortura. Até o fechamento do presente relatório os policiais encontravam-se detidos. (página 41-2) CASO TRÊS E.A. M. e Ricardo Marques de Freitas – Manguinhos, Rio de Janeiro No dia 04 de junho de 2004, aproximadamente às 12h, E. A. M., na companhia de seu irmão, W. E. A. M., de 09 anos, alimentava seu cavalo em um campo de futebol conhecido como “Coreia”, nas proximidades de sua casa.A Sra. Ana Cristina, tia de E., que mora próximo ao campo de futebol, estava em casa quando ouviu um forte barulho de moto e saiu para ver o que estava acontecendo, uma vez que da laje da sua casa pode-se ver todo a extensão do campo de futebol. Ela relatou para a família que avistou uma moto entrando no campo em alta velocidade com dois homens, não fardados, e mais três carros da polícia, que vinham logo atrás. Um dos policiais se aproximou de E. e atirou sem que o mesmo pudesse ao menos saber o que estava acontecendo. Foram três tiros, um em cada braço e um no peito. Seu irmão, W. E. M., 09 anos, não resistiu à cena que presenciou e desmaiou, despertando somente algumas horas depois. Neste momento, Ricardo, que também estava no campo de futebol “Coreia”soltando pipa com seu irmão M. A., 08 anos, presenciou a chegada dos policiais e a execução de E.. Ele ficou assustado com a cena e correu. A partir de então foi perseguido pelos mesmos policiais à paisana que atiraram em E., que encurralaram-no em um beco. Eles ordenaram que Ricardo ficasse de joelhos. Uma moradora, que assistia a tudo da porta da sua casa, foi ameaçada para que entrasse e não contasse a ninguém o que estava presenciando. Marcos, irmão de Ricardo, que estava voltando do trabalho, assistiu a cena do seu irmão que, de joelhos e de costas para os policiais, pedia para que não o matassem. Sem dar ouvidos ao que Ricardo falava, os policiais desferiram dois tiros nas suas costas. 135 Diante do irmão da vítima, os policiais vestiram luvas cirúrgicas e colocaram uma arma na mão de Ricardo já morto, e ameaçaram Marcos dizendo que se contassem algo do que estava vendo seria o próximo da família a morrer. Depois de ouvir os tiros, a família de E. correu para ver o que tinha ocorrido. Muitas pessoas e também a mãe da vítima começaram a chamar os policiais de assassinos. Um deles se aproximou da mãe de E. colocou uma arma próxima a sua cabeça e efetuou vários disparos para o alto, tentando desta forma assustá-la. Após o tumulto, os policiais levaram os corpos para o hospital de Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro. Marcos seguiu para a 21ª Delegacia de Polícia. No caminho, ele viu o carro da polícia em que estavam os corpos, e acredita que os policiais estavam se certificando se os rapazes estavam realmente mortos, pois notou marcas no rosto do irmão, que não eram visíveis no momento dos disparos. Com medo, Marcos não se aproximou do carro, mas afirma que este ficou pelo menos 20 minutos parado na rua. Na delegacia ele contou tudo o que viu para o delegado, este tomou seu depoimento e depois o colocou em uma sala para aguardar alguns procedimentos. Nessa sala entraram dois policiais militares que o ameaçaram. Ao sair da sala, Marcos queixou-se ao delegado sobre a ameaça que havia recebido dos policiais, ao que o delegado apenas afirmou: “…É assim mesmo!” E. A.. M. e Ricardo Marques de Freitas já chegaram sem vida ao hospital. Andréa, irmã de E., conta que foi até o hospital, porque acreditava que o irmão ainda pudesse sobreviver. No hospital, ela reconheceu os policiais que haviam levado seu irmão e disse que ouviu quando eles comentaram que haviam matado a pessoa errada. Segundo Andréa, seu irmão estava usando um corte e uma cor de cabelo que muitos rapazes na comunidade também costumavam usar, fato que teria confundido os policiais, mas que certamente nunca justificaria a abordagem utilizada por eles e a execução sumária efetuada. Marcos foi até à Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE) e fez o retrato falado dos policiais. Depois de efetivar a identificação, o depoente conta que policiais que estavam presentes no dia do assassinato do seu irmão, têm ido constantemente até seu trabalho na Fundação Oswaldo Cruz, e ficam rondando o local como se o estivessem vigiando. Andréa, que trabalha no mesmo local, afirmou que também está sendo vigiada pelos policiais. E., tinha apenas 16 anos, morava com a irmã há 04 anos, havia estudado até a 1ª série do ensino médio, e fazia trabalhos informais para ajudar a família. Ricardo tinha 26 anos, trabalhava como gari comunitário, no momento em que foi executado estava uniformizado, 136 deixou dois filhos, um de 03 meses e um de 07 anos, do seu primeiro casamento. A sua atual esposa tem sustentado seu filho com o aluguel da casa em que eles moravam. A ocorrência foi registrada na 21ª Delegacia de Polícia no mesmo dia, 04 de junho de 2004, por ambas as famílias, porém, até a conclusão do presente relatório, Andréa e outras testemunhas, assim como os familiares da segunda vítima, não foram chamados a delegacia para prestar depoimento ou qualquer esclarecimento sobre a morte dos dois rapazes. Segundo informações fornecidas pelo delegado de polícia, Dr. Flávio Loureiro, existe um inquérito policial, IP n° 021/04 132/2004, em andamento e algumas pessoas já foram chamadas para prestar depoimento. Entretanto, as informações fornecidas acerca do conteúdo do inquérito policial descrevem fatos muito diversos dos que foram descritos pelos familiares das vítimas. Contrariando os depoimentos de moradores da comunidade, a linha de investigação parte da idéia de que duas pessoas teriam roubado uma moto e entrado na comunidade para matar os rapazes, não reconhecendo até o fechamento deste relatório, que estas duas pessoas na motocicleta eram policiais à paisana e estavam acompanhadas de outros policiais fardados em viaturas. (páginas 51, 52, 53) A favela é tomada pela guerra. Uma guerra cruel que assassina, por sob o olhar conivente da sociedade, centenas, e até milhares de pessoas por ano. Dessa forma nós dirá Negri, ainda buscando a relação da guerra imperial que se instala com o estado de exceção e a narrativa do combate ao tráfico que se embute como justificativa para vários desses conflitos: “(...) E no entanto essas guerras não são assim tão metafóricas, pois, como no caso da guerra tradicional, envolvem combates armados e força letal. Nessas guerras, é cada vez menor a diferença entre o exterior e o interior, entre os conflitos externos e a segurança interna. Passamos, assim, das invocações metafóricas e retóricas da guerra para guerras reais contra inimigos indefinidos e imateriais (Negri, 2001:35). O território já segregado da favela ganha formato de guerrilha, se constituindo num cenário da guerra. Ir e vir não é um exercício ordinário ou as vezes nem mesmo possível.48 Há barricadas nas ruas e vielas. Há mortos pelo chão das favelas. 48 “As pessoas perderam seu direito de ir e vir”por causa do medo imposto pelas incursões do caveirão. Jorge Ribeiro contou que já viu o blindado entrar atirando mirar no transformador de luz, deixando a comunidade sem luz. As crianças têm medo de ir ou voltar da escola, os comerciantes têm medo de abrir suas lojas. “Estamos sitiados!”,desabafou um morador.(Renajorp - http://www.renajorp.net/). Ou ainda como aparece na pesquisa divulgada pela página da Universidade Federal Fluminense.Cerca de 44% das entrevistadas revelaram já terem sido impedidas de subir o morro e quase 50% informaram já terem sido impedidas de voltarem para suas casas. 137 É assim que a guerra contorna as formas de produção da existência. A guerra impõe uma ocupação de guerrilha que redefine as relação sociais da população e a sua relação com o espaço. O controle do espaço é fundamental em qualquer guerra. É preciso delimitá-lo, fechá-lo: sufocar o monstro que nunca se acaba. Assim que, para Negri, na medida em que a autoridade dos Estados-nação vem declinando a guerra vai se transformando num fenômeno geral, global e interminável (Negri, 2001:21). III.5) O LADO ERRADO DA VIDA ERRADA É o sentido de guerra, constituído na sua conceituação de biopoder, que se afirma aqui para explicar também a violência com que esses jovens vão produzir suas relações sociais. Não seria exagero afirmar que as gerações mais novas já nasceram e permaneceram, em todo o curso de suas vidas, sob o domínio da guerra, como aparece na fala do Presidente da Associação de Moradores: “Pergunte a qualquer criança de quatro anos que more aqui no morro se já viu alguém ser assassinado. A maioria das respostas será positiva. As crianças de nossa creche se divertem fazendo revólveres com biscoito ou então com pedaços de tijolo. Eu não posso dizer que toda a culpa por isso seja do tráfico. (Filho, Francisco Alves. Revista Isto É n. 1.426 – 29/01/97). Assim que o lado mais perverso dessa dominação é quando a guerra do império produz, entremeada à violência do Estado, uma brutalidade ainda maior com a disseminação de atos violentos entre os próprios jovens e entre esses e as populações das favelas. Não são poucos os relatos das crueldades que o tráfico de drogas infringe aos moradores, como também são conhecidas as barbaridades com que vão tratar os considerados inimigos na divisão do mercado das drogas ou mesmo para impor disciplina com corretivos impostos aos próprios integrantes, com um grande número de mortos. Segundo o Relatório da Pesquisa: “Caminhadas de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006. (Coordenação Jailson de Souza Silva - Observatório de Favelas, nov./2006) são extremamente altos os números de parentes dos adolescentes e jovens, que participaram da pesquisa, mortos (com ou sem envolvimento no tráfico) no período de decorrência da mesma. Como aparece no trecho a seguir: “Outro dado que merece destaque são as menções à morte e a prisão de diferentes membros da família. Como vimos ao longo deste relatório, Dentre as que se declararam impedidos de subir o morro, 7% foram impedidas pela polícia, 14% pelo tráfico e 79% em razão dos tiroteios. (www.UFF.gov.br. Matéria: UFF divulga pesquisa realizada no morro do Vidigal, no Rio em 6/7/2007) 138 um fator marcante na vida dos adolescentes e jovens empregados no tráfico é a proximidade com a morte em vários níveis, inclusive no âmbito familiar. (Observatório das Favelas, 2004-6:44).49 Na guerra a violência se dissemina e vira uma banalidade. Aqui a guerra como regime de biopoder atinge sua expressão máxima e se reproduz, enquanto força de extermínio, de forma veloz e indistinta. A espiral de violência perpetrada pelos traficantes demonstra também a fragilidade de recursos que esses possuem para enfrentar a guerra. O episódio narrado em Barcellos (2003)50, sobre a morte violentamente bárbara de uma jovem grávida, executada ‘por engano’ e a repercussão de outros atos de violência decorrentes disso, explicitam bem essa condição.51 Como analisar os inúmeros casos de barbaridade com que esses jovens instituem seu comércio (produção) e suas vidas, senão entendendo que falamos de uma subjetividade que se produz na guerra? 49 Assim, segundo a pesquisa, 104 parentes dos adolescentes e jovens que participaram da pesquisa foram mortos pelo tráfico, no que o autor classifica como ‘familiares mortos por envolvimento no tráfico’. Este dado vem seguido do número de familiares mortos pelo tráfico, apesar de não ter nenhum envolvimento com esta rede. Segundo o autor, então, 41 parentes dos traficantes foram mortos sem nenhum envolvimento com o tráfico. Ainda que não tenha conseguido distinguir exatamente o que poderia ser considerado como parentes com envolvimento com o tráfico e parentes sem envolvimento com o tráfico é, de qualquer forma, extremamente elevado o número total de 145 parentes dos traficantes mortos, como revela a pesquisa. 50 Considerei aqui o trabalho de reportagem investigativa realizado por Caco Barcellos durante os quatro anos em que pesquisou sobre o tráfico de drogas no Morro Santa Marta, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ainda que considerando a falta de preocupação teóricoinvestigativa nos estudos de Barcellos, cujo resultado aparece de forma romanceada no livro “Abusado. O Dono do Morro Dona Marta”. Entendi que essas referências podiam ser consideradas quando retratavam acontecimentos comprovados em outras pesquisas, podendo dessa forma ser apanhado também como fonte para o entendimento da dinâmica do tráfico de drogas na realidade das favelas cariocas. 51 “Pressionado por todos os lados, Juliano buscou uma punição simplória e, ao mesmo tempo, cruel, para marcar o seu poder: a execução das funkeiras. Da cadeia mandou avisar a Henrique, por carta, que elas teriam um prazo para se redimir, uma semana para pagar o valor da carga que venderam ou devolver os dois quilos de pó ao Turano. Caso contrário, vencido o prazo, ele mandaria da cadeia a ordem de fuzilamento, por meio de uma senha de duas palavras.”(Barcellos, 2003:546) Mas, “Quem estava na casa era Berenice, uma jovem do Turano que tinha ido visitar a irmâ funkeira. Sem saber o motivo da invasão, ela foi arrastada pelos cabelos para fora do barraco. Em seguida foi levada pelo grupo para a área do lixão, perto da Pedra do Xangô. Surrada pelo caminho pediu ajuda aos moradores do morro. (...) Grávida de cinco meses obrigada a se ajoelhar, Berenice cruzou os dois braços sobre a barriga para se proteger. (...) Depois de Faquir, quase todos dispararam suas armas e erraram muitos tiros porque Berenice lutava, se debatia. (...) Quando o frente chegou ao lixão, Berenice ainda agonizava e já estava sendo enterrada para acabar de morrer mais depressa. (...) - Mas que é isso cara. Essa mulhé não tem nada a vê com isso, porra....Ela é a mulhé do Tonhão, caralho! Caralho! Tu ficou maluco” (Barcellos, 2003:549). 139 No Império, a constituição da subjetividade - seja na produção, seja na guerra- é material (produção imaterial). É a guerra que produz essas subjetividades. A subjetividade é uma produção e também um domínio. Assim, se os jovens do tráfico de drogas passam a maior parte do seu tempo empunhando armas, tensionados pela possibilidade de um ataque da polícia ou dos grupos rivais, criando estratégias para realizar a venda das drogas, mas sobretudo se esses jovens passam a maior parte do seu tempo criando estratégias para estarem vivos, é essa materialidade que vai subjugar todas as outras. A morte assola esses jovens desde a hora que acordam até a hora que dormem e é o ingrediente predominante na forma de instituição das suas vidas. Quando o território da favela se torna um território ocupado, o que vai prevalecer nas formas com que seus moradores vão instituir suas práticas de existência, invadindo e contornando todas as formas de relacionamentos, é a política da guerra. São assim as relações violentas, mas também corruptas (e, por isso mesmo, ambíguas) que se instituem em relação ao Estado que se propagam e acabam também se impondo. A dimensão de uma ‘rede organizada’ não tem nenhum outro sentido para esses jovens do que a de estender as relações de guerra produzidas nas experiências com o Estado, no âmbito da corrupção, da extorsão e da violência. Como aparece na fala do presidente da Associação de Moradores do Andaraí sobre a ação do Estado junto a esses grupos. “– Como eu sei disso? Os policiais aqui cobram caro. Como no dia que mataram Ciro (antigo chefe do tráfico do morro do Andaraí) no início do ano passado. Depois que o prenderam, os policiais pediram dinheiro para que ele fosse solto. A turma do Ciro levou uma bolsa cheia. Segundo as pessoas que presenciaram o fato, os policiais disseram que era pouco dinheiro para uma cabeça tão importante. E acabaram matando o Ciro. Esses casos de policial pedindo dinheiro a traficante são comuns. Filho, Francisco Alves. REVISTA ISTO É Nº1426 – 29/01/97). É a necessidade de enfrentamento à repressão do Estado – quase sempre pela sua faceta corrompida que obriga esses jovens a se armarem e transformam todas as relações em relações de guerra. Como produzir práticas de sobrevivência -seja com os moradores, seja com os outros pontos de venda- que sejam de paz, em um tempo e um estado de guerra? A natureza preponderante das relações que vão ser produzidas pelo tráfico se marcam assim também no caráter de excepcionalidade. 140 A vida das favelas está pautada nessa premissa da guerra. Assim esse viés da brutalidade do tráfico não esvazia, ao contrário, fortalece as afirmações que vimos produzindo até aqui: a guerra como um regime de biopoder. A guerra imperial impõe um poder difuso e não-identificável, produzindo uma violência generalizada que incide diretamente nos corpos e nas vidas dessas populações. Da mesma forma que a própria relação com o Estado ganha matizes contraditória, que ora passa pelo papel clássico de legitimidade do uso da força, outras pelas relações corruptíveis com que esse estado se conformou, mas outras ainda se constroem nas teias de estratégias de sobrevida que esses atores produzem numa guerra particular. Logo quando chegamos ao Morro do Tuiuti (ainda que durante a aplicação dos questionários e nas entrevistas esse episódio não tenha sido relatado, assim como nenhum outro caso de violência por parte do tráfico) havia uma visível insatisfação por parte dos moradores que se traduzia em rumores que por fim nos foi relatado da seguinte forma. Cerca de três meses antes o tráfico havia executado um morador local muito bem quisto entre a população, sob a alegação de que este teria ido dedurar os traficantes para a Polícia. O mais inusitado da história, era porém, que quem havia ido contar aos traficantes que o morador os havia dedurado teria sido o próprio policial. A história terminava, assim, num reconhecimento (depois da pressão da comunidade) por parte do tráfico que havia cometido um erro e, num sentido de se redimir, jurava o policial delator de morte. A relação que se estabelece entre o tráfico e os moradores é uma relação fracionada por muitos interesses, que se rearticulam continuamente a partir do lugar com que esses atores se encontram. Quando o território da favela se torna um território ocupado, o que vai prevalecer nas formas com que seus moradores vão instituir suas práticas de existência, invadindo e contornando todas as formas de relacionamentos, é a política da guerra. Dessa forma que o narcofavela não é apenas o lugar da resistência - biopolítica-, mas também o lugar onde a guerra estrangula a possibilidade de vida, e o massacre violento ocorre em todas as formas. Aqui a violência subjaz na sua forma mais capturada. Temos a guerra imperial no seu sentido o mais restrito: guerra continua que conforma as práticas cotidianas de grandes segmentos populacionais, onde o inimigo é cada vez mais indefinido. 141 Negri desloca o sentido da guerra, como aparece na modernidade, para a guerra pósmoderna. Para o autor agora a dominação se sustenta sobretudo em ações de guerra, mas não mais contra inimigos externos nem guerras de soberania. A guerra agora é uma guerra policial que visa à disciplina e o controle. É a guerra agora que garante as hierarquias sociais, sobretudo em modelos tão esgarçados como os que vigeram todo esses séculos na América Latina. O fenômeno narcofavela conjuga fatores antimoderno e modernos na sua composição, expressão do modelo excludente de desenvolvimento econômico brasileiro submergido no processo de globalização mundial. Assim é a guerra a principal forma de manter o domínio econômico, social e político sobre essas populações. III.6) A Guerra do Império A guerra que se processa cotidianamente nas favelas cariocas não é a única expressão de como o tráfico de drogas ilícitas tem servido como justificativa para as práticas de domínio do império. O objetivo desse item é afirmar (me valendo dos resultados da pesquisa coordenada por Dowdney: 2005), que a guerra imperial se faz presente em diferentes países no mundo hoje, em fenômenos muito semelhantes a esse do narcofavela que vivenciamos no Rio de Janeiro, confirmando a hipótese de que se trata de formas com que esse encontro do local com o global vai expressar os contornos das características de dominação vivenciadas por essas regiões e das formas com que esse discurso das drogas vai ser apanhado -ainda que em circunstâncias diferentes-, mas cumprindo o mesmo papel de legitimação da opressão violenta dos Estados por sob segmentos empobrecidos, atingindo sobretudo os jovens. 53 52 Nas palavras de Negri: “O que é específico da nossa época, como indicamos anteriormente, é que a guerra deixou de ser o elemento final das sequências de poder - a força letal como último recurso- para se tornar o primeiro e fundamental elemento, constituindo a base da própria política. A soberania imperial não cria a ordem pondo fim à ‘guerra de cada um contra todos’, como pretendia Hobbes, e sim propondo um regime de administração disciplinar e controle político diretamente baseado em contínuas ações de guerra. Em outras palavra, a aplicação constante e coordenada da violencia torna-se condição necessária para o funcionamento da disciplina e do controle. Para que possa desempenhar este papel social e politico fundamental, a guerra deve ser capaz de desempenhar uma função constituinte ou reguladora: terá de tornar-se ao mesmo tempo uma atividade processual e uma atividade reguladora, de ordenação, criando e mantendo hierarquias sociais, uma forma de biopoder voltada para a promoção e a regulação da vida social (Negri, 2001:44-5). 53 Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, de 2002, demonstra que, nos últimos dez anos, jovens de 15 a 24 anos são as vítimas mais frequentes de homicídios em todo o mundo. 142 Não pretendo, nessa afirmação, dar conta da totalidade do que sejam as expressões das lutas que se travam hoje de forma contínua em todo o mundo, muito menos restringir esses conflitos as expressões particulares que esses fenômenos ligados as drogas revelam. Assim, sem nenhuma pretensão de alinhar o tráfico de drogas como fator determinante nesses processos, busco apenas identificar como esse comércio aparece no capitalismo cognitivo como elemento, ao mesmo tempo, mercantil e funcional as necessidades do Império. O inicio do estudo, realizado por Dowdney, começou com uma investigação sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro visando, inicialmente, a discutir “a história, a estrutura e a organização das facções do tráfico de drogas, baseada nas favelas do Rio de Janeiro” (Dowdney, 2005:13). A partir desse estudo preliminar é que se tenta chegar a uma categorização para as crianças e jovens envolvidos em violência armada, refutando, após algumas reflexões, tanto as aproximações que os designam como crianças-soldados, como aquelas que tentam inserir esses jovens como delinqüentes. Para o autor, “apesar de semelhança com ambas as categorias semânticas, definições como ‘ criança-soldado’ ou ‘delinqüente’ não representam corretamente o número crescente de crianças e jovens, no Rio de Janeiro e no mundo, que participam de grupos armados organizados, atuando fora de zonas de guerra tradicionalmente definidas” (Dowdney, 2005:14). Instados a encontrar uma resposta para essa problemática conceitual é que, durante o ‘Seminário sobre crianças afetadas pela violência Armada Organizada’, realizado pelo Viva Rio em 2002, ‘ os participantes internacionais concordaram sobre uma definição de trabalho para os jovens e adolescentes que trabalham nas facções do tráfico de drogas, do Rio, e para aquelas em grupos armados semelhantes de outros lugares. (idem ) Dessa forma a pesquisa consegue parametrar o tipo de fenômeno que se pretende estudar, que inclui crianças e jovens até 18 anos (excetuando aqueles que se envolveram antes) em atividades com algum tipo de remuneração ou não, e que, em função disso, faça uso de armas leve e de pequeno porte (revólveres) possibilitando com isso ‘um certo nível de dominação sobre a população (Dowdney, 2005:17) além de confrontos armados nos quais armas de fogo são disparadas. Usando a definição de trabalho com envolvimento de violência armada organizada54, o estudo fará uma comparação entre os grupos armados selecionados em diferentes países, 54 Na pesquisa aparece a sigla COAV - crianças e jovens empregados, ou participando de outra forma, em Violência Armada Organizada, em que haja elementos de uma estrutura de comando e de poder sobre território , população ou recursos lociais (Dowedney, 2005:16). 143 onde a pesquisa irá encontrar fenômenos semelhantes em pelo menos dez países. (Brasil, Colombia, Equador, El Salvador, Honduras, Jamaica Nigéria, Filipinas, África do Sul, EUA (Idem, 24-5.). O que podemos identificar de similaridade em todos esses fenômenos é a perfilação de elementos antimodernos e modernos na composição desses grupos em todo o mundo. Assim que as decorrências de processos civilizatórios excludentes e violentos aparecem como pano de fundo em todas as realidades onde a organizações armadas foram encontradas. Como aparece na análise do autor: (...) “esses grupos são específicos de certas áreas dentro de centros urbanos, de zonas socioeconomicamente marginalizadas, diferentes das cidades que as cercam, com nomes como favelas, comunas, colônias, distritos ou guetos. As populações locais das áreas de estudo em Medellín, San Salvador, Lagos, Rio de Janeiro, Guayaquil e Cidade do Cabo são originalmente compostas por uma alta porcentagem de migrantes urbanos que chegam em busca de trabalho. A migração rápida resultou em habitações não planejadas e muitas vezes provisórias, em locais que não eram legalizados e careciam de infra-estrutura e urbana suficiente. Em muitos casos, essas comunidades continuam sendo subdesenvolvidas hoje e diferenciadas dos bairros vizinhos, devido a serviços públicos inadequados. Esses enclaves de pobreza são também encontrados em Chicago, onde muitos bairros permanecem racialmente divididos e a pobreza está concentrada nos guetos afro-americanos. Em North Lawndale, por exemplo, a população é composta de 99% de afro-americanos e mais da metade das crianças da área vivem na pobreza (Dowdney, 2005:27). Mas o dado mais importante para a nossa hipótese é o de que quase a totalidade desses grupos, mesmo aqueles que inicialmente não se originaram a partir do envolvimento na criminalidade, têm hoje alguma vinculação com o tráfico de drogas, como aparece a seguir. “Em nove dos dez países envolvidos no estudo, os grupos investigados estão atualmente envolvidos no mercado ilícito do varejo de drogas nas áreas que dominam. Seis desses grupos não estavam originalmente envolvidos no tráfico de drogas. A venda de drogas ilícitas forneceu a muitos grupos a chance de se tornar autofinanciáveis. Além disso, como os jovens que constituem o grosso das gangues de rua, das maras, facções do tráfico de drogas, bandas delincuentes e area gangs possuem tipicamente pouca escolaridade e são marginalizados socioeconomicamente, eles se tornaram uma força de trabalho pronta para esse tipo de negócio “ (Dowdney, 2005:32). 144 Dessa forma que o envolvimento na criminalidade, a partir do comércio mundial de drogas ilícitas, é a forma como o império captura esses jovens, justificando a forma com que as práticas do estado, sobretudo na sua força policial, vai aparecer frente a esses fenômenos. Assim que em todos os países estudados aparece a presença do Estado. Em sete dos países onde esses grupos foram estudados o Estado tem um papel indireto nas atividades desses grupos e em três um papel direto; incluindo, na primeira situação, venda de armas, propinas e extorsões. Como aparece no relatos abaixo: “Vender de volta drogas confiscadas a membros de grupos por policiais foi relatado em três países. Em Manenberg, moradores da comunidade entrevistados contaram terem visto policiais vendendo drogas para membros de gangue. Membros de gangue em Chicago também relataram envolvimento da polícia com o mercado de drogas ilícitas (Idem, 47). Consideramos aqui como envolvimento indireto a corrupção e direto quando o estado trabalha diretamente com um grupo armado ou apoiando indiretamente suas atividades, como define o autor (Idem,46). Ainda que a presença do estado, a partir da classificação do que o autor chama de ‘confrontos armados com forças do estado’, só apareça em quatro dos países estudados, (entre eles Nigéria, Filipinas e Brasil), as conclusões do estudo apontam para: “Em todos, ou na maioria dos estudos de caso, os estados são responsáveis por tentarem lidar com grupos armados por meio principalmente de policiamento e políticas legislativas reativos e repressivos. Na pior das hipóteses, isso inclui prisão arbitrária, tortura e execuções sumárias. Os estados não podem ser considerados responsáveis pela violência que os grupos armados investigados perpetram. Entretanto, seu foco sobre a repressão vem fracassando, em muitos casos, na redução da presença dos grupos ou dos níveis de violência em que estão envolvidos. Em alguns casos, táticas repressivas pioraram consideravelmente o problema, na medida em que alguns grupos reagiram, tornando-se cada vez mais organizados, armados e dispostos a enfrentar diretamente as forças do Estado (Dowdney, 2005:69). Dessa forma é que, resguardadas as especificidades das regiões, dos processo históricos sofridos em seus desenvolvimentos, dos tipos de economia e do nível de consolidação de governos democráticos aonde esse novo vetor das drogas vai se entremear, posso afirmar que o mesmo acaba se transformando em elemento que reconfigura e aproxima todas essas manifestações. O tráfico de drogas aparece, então, como elemento de resistência, mas também como elemento que possibilita o domínio do capital, junto as populações segregadas e empobrecidas. 145 Dessa forma podemos identificar que todas as manifestações dessa violência armada estudadas pelo autor se produzem em grupos cujos processos históricos implicaram em características de vulnerabilidade social, (exclusão e subordinação econômica e política); demonstrando como esses fenômenos repetem a violência histórica e institucionalizada das relações de poder sob essas camadas populacionais. A guerra aparece como elemento da ordem imperial, interferindo de forma direta na constituição da política global. Diferente das guerras modernas - que se travavam como conflitos entre as políticas soberanas dos Estados-nação - a guerra se transforma agora num fenômeno de constituição da vida, como dirá Negri, não há como fugir do estado de guerra no interior do Império. Para Negri então: “Não se trata aqui de guerras isoladas, portanto, mas de um generalizado estado de guerra global que de tal maneira torna menos distinta a diferença entre guerra e paz que já não somos capazes de imaginar uma paz verdadeira ou de ter esperança nelas” (Negri, 2001:23). A guerra parece, então, como elemento da ordem imperial, interferindo de forma direta na constituição da política global. O saldo dessa guerra só nos revela assim o abismo social que nossa história produziu, tornando inviável qualquer possibilidade de conciliação ou reabilitação desse processo. Assim que o Brasil é hoje um país segregado, cuja segregação se abate de forma continua e constante sobre as populações afro-brasileiras através das ações de extermínio perpetradas pelos aparatos de Estado. Assim que a sociedade democrática brasileira se sustenta (e a suas regras, normas, moral, leis) por sob uma guerra desumana e cruel por sobre aqueles que são as figuras mais produtivas da nossa sociedade, o coração do monstro, a alma da multidão: os jovens, negros e pobres que vivem nas favelas. E são esses jovens que estão na linha de frente dessa resistência. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS: abrindo novas possibilidades O percurso transcorrido até aqui engloba várias experiências diferentes, seja na dimensão específica dos momentos vivenciados em campo, seja nos caminhos teóricos que fui experimentando para achar possibilidades conceituais que me ajudassem a inscrever o tráfico de drogas nas favelas cariocas por sob uma perspectiva diferente daquela que vem predominando na literatura acadêmica. O percurso, portanto não se fez, em nenhuma possibilidade, de forma linear e num crescente. Ao contrário, constrói-se a partir de muitas bifurcações e incertezas. O acúmulo dessa trajetória se produziu nas possibilidades de intersecção entre os estímulos provocados pela vivência prática e os encontros teóricos. E seria muito difícil, consideradas as exigências de metodologia, afirmar qual desses elementos predomina no resultado desses estudos que sistematizo nesta tese. A possibilidade de um convívio intenso (antes mesmo da realização da pesquisa de campo) provocado por diferentes trabalhos realizados nas favelas suscita, a priori, uma percepção do espaço da venda das drogas e, sobretudo, dos jovens traficantes que vivem desse comércio, muito diferente daquelas que aparecem nos discursos dominantes e predominantes na sociedade. Ao partilhar a vida cotidiana das favelas, as narrativas e práticas específicas que falam dos modos de funcionamento do tráfico, chegam-me pela voz daqueles que estão submetidos a essas dinâmicas, por dentro. São, assim, as vozes dos moradores que me apresentam a problemática do tráfico na concretude do que isso significa na efetivação das suas vidas. Dessa forma, essas narrativas relativizam a carga moral com que a questão da droga e de suas variantes costuma inscrever-se na história, e revelam como essas práticas estão entremeadas nas relações sociais que se produzem nas favelas. O que me levou a privilegiar este espaço como interesse de estudo é, num primeiro momento, a impressão de que ‘todas’ as relações sociais que se produzem nas favelas guardam uma conexão com o tráfico de drogas, sendo algumas dessas experiências emblemáticas nessa primeira aproximação empírica com o tema e que me induzem para esse caminho. Assim poderia citar, por exemplo, a vez que ouvi uma senhora, que reclamava de problemas com a vizinhança, compor uma narrativa que se referia ao espaço do tráfico de forma tão doméstica, que supus que ela falasse sobre o marido, quando na verdade ela 147 falava de um ex-traficante já falecido. O mesmo aconteceu em outros depoimentos, como o do rapaz que foi chamado pelo tráfico para dar explicação sobre um serviço que prestara de forma insatisfatória a um outro morador; ou quando presenciei o momento em que uma moradora dirigiu-se à associação de moradores para reclamar de que o marido a estava agredindo, na expectativa de que o tráfico pudesse intervir e ajudá-la. Assim, longe de desconsiderar o caráter autoritário que aparece em todas essas relações, o que me chama a atenção é a capilaridade com que as mesmas aparecem nesse cotidiano e, por isso mesmo, a infinidade de possibilidades que essas relações carregam. A proximidade que o espaço determina e aproxima tudo, fez-me assistir, também, a uma senhora brigando veementemente com um jovem, seu filho ou neto, enquanto o rapaz, de cabeça baixa, tentava esconder a arma. E também estava na casa de uma moradora, convidada para o almoço, quando os filhos chegaram para almoçar, cada um deles carregando o seu ‘instrumentos de trabalho’, um fuzil. Toda a precariedade dessas vidas e as transformações que o comércio de drogas ilícitas ocasiona nas muitas interesessões em que se cruzam, se conjugam em muitas facetas diferentes que cruzam e entrecruzam nas estratégias de vida dessas populações. As relações que esse espaço produz são assim tão múltiplas e contraditórias que levam muitos desses jovens traficantes – que enfrentam cotidianamente a letalidade do aparato violento do Estado que deixa milhares de vítimas por ano – a se mostrarem intimidados pelos pais, dos quais ocultam as suas atividades ilegais. Desde a primeira tentativa de aproximação teórica com esse espaço, conheci os limites do instrumental teórico com o qual teria de trabalhar. Se a teoria social marxiana me ajuda a identificar a favela como resultado do modelo excludente e segregador que se institui nos processos de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e pode justificar, inclusive, que esses jovens construam alternativas de sobrevivência e que encontrem no tráfico uma alternativa válida conformada exatamente na falta de qualquer outra possibilidade, a teoria social marxiana não consegue, por outro lado, explicar a extensão e a variedade das relações que se constroem no dia-a-dia. Por isso, já no percurso do mestrado, identifiquei uma complexidade na instituição do fenômeno do tráfico de drogas que já ali provocou um primeiro deslocamento das referências com as quais iniciei minha pesquisa. No mestrado, consegui apenas intuir caminhos novos, mas duas questões incitaram-me a buscar novos ângulos para tratar o problema e provocaram um primeiro exercício de experimentação teórica. 148 Primeiro, a exuberância de vida que, na antiface da pobreza, identifico nas favelas e discuto na dissertação de mestrado: “A possibilidade de desvelar a riqueza do universo das vidas que se produzem nas favelas; as desesperanças permeadas de ilusões, as dificuldades permeadas de potencialidades, a falta de horizonte permeada ao fluir constante das manifestações festivas, do senso-comum permeado ao bom-senso do pragmatismo no equacionamento de suas vidas. (...) Como não se contagiar com manifestações sempre tão intensas que emanam das favelas? Como entender e dar sentido a essa gama contraditória de manifestações? Como conciliar, para entender e explicar, a miserabilidade de famílias inteiras vivendo em pequenos cubículos com esgotos passando dentro de suas casas, crianças infestadas de vermes, que morrem desnutridas e que excluem de qualquer poesia essa realidade, com a exuberância de vida que (des)cobre-se nas favelas? Foram inúmeros os momentos, nas mais diferentes formas, que esse contato se fez. Permeado por trabalhos variados, que me colocava frente a essa população de forma diversa, construí anos de contato direto com as mais surpreendentes formas que a vida assume. Como ignorar a dimensão de uma construção coletiva, do estabelecimento de redes de solidariedade – necessárias à sobrevivência diária – que fazem desse espaço uma profusão de riqueza cultural construída no tecer coletivo de suas vidas. Como não instigar-se com uma forma que, na busca pela sobrevivência, insiste em renascer carregada de criatividade, de musicalidade, de profusão de gestos e de novos entendimentos do mundo?”55 A segunda das duas questões que, ainda no mestrado, incitaram-me a buscar novos ângulos para tratar o problema do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, e provocaram um primeiro exercício de experimentação teórica aparece, de modo mais específico, na identificação das formas mediante as quais o tráfico pode ir-se conectando às práticas de sobrevivência da população inseridas nesse campo cultural das favelas. Isso ficou anotado também em minha dissertação de mestrado: “Na medida em que a pesquisa avança, identifico de forma ainda mais nítida o narcotráfico como um elemento de construção importante no estabelecimento do entendimento do mundo daquelas pessoas, permeando suas escolhas, idéias, modelos. O narcotráfico se faz presente em quase todos os espaços da construção cotidiana, definindo códigos e comportamentos. Será através da questão ideológica – do exercício de poder do narcotráfico através da 55 Pimentel, Maria Elisa da Silva. Narcotráfico, cultura e produção de subjetividades nas sociedades pós-modernas. Dissertação apresentada na Faculdade de Educação da 149 legitimação e das formas com que os moradores consolidam no seu cotidiano essa relação, que irei pautar minha pesquisa e delimitar os contornos para tratá-la teoricamente. Partindo da preocupação de buscar entender como se constrói a subjetividade dos sujeitos sociais na sua realidade imediata e, nas suas singularidades, é que termino por deparar-me com autores que discutem a sociedade contemporânea. Apesar de guardar aspectos próprios, característicos de uma sociedade economicamente dependente, que demarcam grandes atrasos sociais e culturais, é na dimensão mais pós-moderna que irei encontrar os principais traços da construção subjetiva dos jovens atores sociais que compõem o narcotráfico. A mudança nessas premissas, com a incorporação de novas categorias que me levem a pensar sobre a realidade, se constituíram assim em um novo referencial teórico. E, por último, vale lembrar que, “em última instância”, essas mudanças, seja da constituição do sujeito social , seja do surgimento de uma teoria que pretenda dar conta dessa realidade, se imbricam, inevitavelmente, nas transformações concretas pela qual passa o modelo de ordenação da produção econômica no mundo, e da qual, as referências marxianas continuam sendo a base para explicação, ainda que essa afirmação me leve a um paradoxo inevitável de negação e afirmação do marxismo” (Idem, 9). O percurso do mestrado deixou-me, como saldo, o desafio de encontrar um referencial teórico que recolocasse – em bases consistentes – as problemáticas levantadas em campo, sem perder com isso a possibilidade fundamental, sempre presente, de inscrever essa realidade a partir da perspectiva de uma teoria crítica. Para isso, tive de transpor os limites impostos pelo marxismo tentando buscar um corpo teórico que desse conta de atualizar os deslocamentos que se produzem na realidade. As referências fundamentais que encontrei naquele momento se situam no campo (difuso e impreciso) da chamada pós-modernidade, a partir dos conceitos de consumo e de uma nova perspectiva na possibilidade de síntese entre a estrutura econômica e a superestrutura. O que também ficou anotado na dissertação de mestrado: “Ao prevalecerem na minha análise, não mais os conceitos citados anteriormente do marxismo gramsciano e, sim, essas novas inferências da discussão ideológica, onde a contra-ideologia de Gramsci não tem mais lugar (já que não se trata mais de entender a construção ideológica em uma fórmula onde a ideologia dominante é repassada, ainda que dialéticamente, para as classes subalternas, e sim numa tessitura de referências que chegam de toda parte, portanto de parte alguma e que, serão sempre internalizadas pelos sujeitos de forma singular, única), é Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Rio de Janeiro, 2000, p. 8. 150 que me darei conta do rompimento efetuado com o marxismo. E, principalmente quando, na discussão de fundo, essas referências negam, indubitavelmente, a premissa do determinismo econômico do marxismo, mesmo aquele apregoado através de seu autor mais dialético, e diria até relativista desse determinismo, como é Gramsci. Fala-se agora em um novo determinante cultural, que desconsidera de forma absoluta, numa sociedade que tende cada vez mais à virtualidade, à possibilidade de explicação da realidade, ainda que em “última instância” pelos fatores econômicos” (Idem, 12). Será assim, a partir de um novo percurso aberto com o doutorado, que pude encontrar uma referência que me apresenta um corpo teórico capaz de apanhar a realidade de forma totalizante e articulada, mas sobretudo que consegue atualizar a dimensão críticorevolucionária do marxismo. Coerentemente, a referência que se apresenta para mim só pode ter como origem a teoria marxiana, mas, sobretudo, emerge como nova teoria, a partir de uma revisão conceitual que se constrói por dentro das lutas sociais que demarcam a história de enfrentamentos e resistência na construção do mundo pela classe trabalhadora no último século. E encontrarei essas referências no campo de pensamento da escola operaísta, referências conceituais que me possibilitam avançar e ressignificar muitas das questões que se apresentaram insolúveis, no momento do mestrado. O primeiro e fundamental conceito que Negri me oferece para isso é o conceito de pobre e, conseqüentemente, a expressão revolucionária que esse adquire com o conceito de multidão. Contudo, como dissemos, a referência operaísta é uma referência que se constrói rompendo o corpo teórico marxiano em muitos dos seus conceitos, e preserva a capacidade de explicação da realidade a partir da elucidação da dinâmica valorativa do capital, sem perder de vista o potencial transformador daquele que é o produtor do mundo. O conceito de pobre – que por si só já re-situaria as manifestações produtivas distinguidas nas favelas – só ganha sentido quando podemos refazer toda a base de entendimento das relações produtivas do mundo e identificar o pobre como o principal sujeito produtor desse mundo: a nova figura produtiva. Para isso é preciso entender todo o deslocamento sofrido pela produção econômica da sociedade contemporânea marcada pela recusa ao trabalho com que os operários vão derrotar o modelo regulador das sociedades disciplinares industriais e que faz emergir um novo estatuto para o trabalho, o paradigma hegemônico do trabalho imaterial. Só, portanto, ao remontar a lógica do capitalismo cognitivo, é que pude entender que a 151 profusão de vida encontrada nas favelas tenha adquirido sentido ainda mais central, pois são essas as formas de vida que, hoje, produzem valor. A cultura aparece assim como um novo paradigma do trabalho e as favelas como “reservatórios de mobilização produtiva”. Dessa forma, pude também começar a olhar o espaço do tráfico de drogas na venda no varejo nas favelas como um espaço que produz novas subjetividades. De novo a referência negriana me permite superar os limites e identificar a nova síntese que o capitalismo cognitivo produz. A subjetividade deixa de ter sentido ideológico e aparece como produção material. O processo produtivo do capitalismo cognitivo baseado no trabalho imaterial se realiza pelas qualidades subjetivas do trabalhador. São agora as suas habilidades intelectuais e afetivas que efetivam o ciclo produtivo. São assim formas de vida que dinamizam a produção. Mas são sobretudo aquelas formas de vida instadas na precariedade que produzem as inovações que garantem a circulação e a valorização do capital. As práticas necessárias para o equacionamento das suas vidas, mas sobretudo aquelas demandadas pelo fato de estarem submetidos a repressão policial que se abate sobre esses jovens traficantes (mas também por sobre toda a população das favelas) – a vida no seu estado extremo de sobrevida e resistência – se torna extremamente produtiva. Dessa forma essas práticas de vida produzem uma estética – suas maneiras de ver a vida, de protestar sua vida – que é capitalizado pelo capital. Achamos aqui o espaço do tráfico de drogas como condensação dos reservatórios de mobilização produtiva existentes nas favelas. O espaço do tráfico se torna extremamente mercantilizável. As formas de vida impostas a esses jovens vendem de tudo: livros, filmes, programas de tv, documentários etc. O mundo que esses jovens produzem se torna extremamente valorativo para o capital. Mas, é aqui também que a contradição desse processo se explicita. Pois se o capital pode (até) capturar a estética que esses jovens produzem, não pode esvaziar o sentido de resistência que ela carrega, pois é justamente esse o sentido que o torna rentável. A forma de capturar esses jovens foge da dinâmica produtiva do capital, que se fazia antes por dentro do das fábricas e se irradiava no paradigma disciplinar. Quando não é mais essa a disciplina que garante a produção, também não são mais os instrumentos de controle que ela gera que garantem o domínio. A esses instrumentos devem-se incorporar novas formas de controle social. É aqui que a guerra aparece como forma de controle biopolítico. A guerra se abate sobre essas populações, mas sobretudo sobre os jovens integrantes do tráfico, 152 como a principal forma de controle da vida. Aqui outro paradoxo se abre, pois se a guerra produz a morte produz também a vida. Pois são justamente as formas de vida que emergem da necessidade desse enfrentamento que produzem a estética revolucionária do tráfico. Assim, a intuição inicial de que todas as relações sociais produzidas nas favelas guardavam uma conexão com o tráfico ganhou sentido. A rede produtiva que o tráfico dinamiza passa por toda a extensão de vida da favela, mobilizando uma rede produtiva baseada no trabalho comum: um novo saber que circula na sociabilidade. Mas também a percepção inicial da capilaridade do tráfico se explica na dimensão da guerra que se instala nesses territórios. A política da guerra que se instala nas favelas interfere também na construção das formas de vida dos seus moradores. Todos estão submetidos ao regime de controle do biopoder. Mas quem, concretamente, se coloca na linha de frente dessa resistência são esses jovens, seja na sua potência criativa, seja nos combates armados contra o poder de polícia do Império. Podemos agora, então, com embasamento suficiente, afirmar a premissa inicial com que construímos esse estudo: fazer ascender o espaço das vendas de drogas ilícitas e os seus traficantes a nova forma de luta na resistência dos trabalhadores. Para a pesquisa futura Mas se esse resultado representa, por um lado, o êxito no exercício de síntese que se vale de um referencial que permite superar alguns dos limites apresentados anteriormente na leitura do espaço do tráfico, por outro, inevitavelmente, no mesmo momento, também nos abre novas lacunas. A possibilidade de entender o tráfico como espaço de resistência precisa voltar agora como objeto de uma nova pesquisa que precise as formas mediante as quais essa produção e essa resistência se constroem no dia a dia das favelas. Mas, sobretudo, a pesquisa futura terá de conformar as possibilidades de fortalecer as lutas que realmente tornem possíveis novas vidas para esses jovens. O que queremos é desconstruir todo o discurso que sedimenta a violência da qual esses jovens são vitimados, ainda que entendendo que as possibilidades históricas que podem se construir para transformar essa realidade não se constitui apenas nos espaços de pesquisa, mas precisam ganhar a dimensão concreta das lutas cotidianas que já vem sendo travadas por essas populações. Aqui reafirmamos a necessidade da produção do conhecimento se deslocar da academia para a periferia. Novos espaços de construção do saber e da luta que (independente da nossa capacidade de sistematizá-los) já estão em curso e precisam assim ser fortalecidos. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) identificou 881 conflitos sociais na cidade entre 1993 e 2003, o que perfaz uma média de 80 conflitos por ano e mais de seis por mês. 153 De acordo com o levantamento a maior parte dos conflitos ocorreram na área de segurança. O mapeamento mostra ainda que os conflitos urbanos ocorreram principalmente em regiões de favelas ou em suas imediações. Aqui, o debate trazido pela criminologia crítica se coloca de forma fundamental, pois ajuda a produzir ações que levem a mudanças nesse enfrentamento das forças do Império. Todas as pesquisas e discussões que revelem a violência com que o aparato do Estado tem se efetuado nessas áreas ou aquelas que desmontam a concepção demonizante das drogas e possibilitam colocar em questão a sua ilegalidade, ajudam a produzir novos discursos onde a sociedade não mais culpabilize e, portanto , legitime as ações que vem sendo perpetradas a essas populações há séculos. Também aqui precisamos indicar que a ampliação das políticas sociais que apontam para a universalização dos direitos (que não passe mais pela relação salarial e sim pela renda universal) em uma proposta de democratização radical da sociedade a partir do fortalecimento do Governo popular-democrático instalado no Brasil em 2002, é fundamental para sairmos dos impasses que essa questão nos coloca. Portanto, concluímos este trabalho identificando as necessidades de enfrentamentos, seja no campo teórico, seja no campo das lutas, que essa temática ainda deixa em aberto, mas que já consegue apontar possibilidades novas nesses enfrentamentos, e concluo com as palavras de Negri: "O capitalismo mundial sabe unificar e articular seus instrumentos de domínio e de repressão: já é hora de também a multidão, ou seja, a nova figura subjetiva que o proletariado forjou para a própria expressão constituinte, dê universalidade à análise revolucionária” (Negri, 2005:17). Em nenhum momento, esse trabalho objetivou defender o tráfico de drogas, independentemente de qualquer uma das questões morais que as drogas carregam na sua definição. Ao contrário, o que busquei foi a possibilidade de anunciar esse fenômeno por um viés que abrisse chances de entendimento que ajudem a tirar da guerra esses meninos e salvem-lhes a vida. *********** 154 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Sergio. 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