ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E
POLÍTICAS PÚBLICAS: APROXIMANDO AGENDA E AGENTES
De 23 a 25 de abril de 2013, UNESP – Araraquara (SP)
Os rearranjos políticos e teóricos no pensamento de Boaventura de
Sousa Santos: uma leitura crítica de sua contribuição.
Autor: Fillipe Perantoni
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de
Serviço Social/UFJF (Mestrado)
I - Boaventura de Sousa Santos: Uma Leitura "Pós-Moderna" Sobre a
Sociedade
A nova teoria de democracia ou teoria "pós-moderna", representa uma
ruptura com a teoria democrática liberal e com a tradição marxista. Trataremos
dessa nova teoria no pensamento de um dos seus mais importantes
formuladores, o cientista político português Boaventura Sousa Santos. Santos
objetiva alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais
da interação social.
Para Santos, a tradição teórica marxista significa um pilar fundamental
das ciências sociais na modernidade, influenciando e sendo influenciada pelas
transformações das ciências sociais no decorrer dos anos. A partir de uma
análise
do
presente,
essas
transformações
devem
ser
levadas
em
consideração para avaliar os limites e as virtualidades da tradição marxista.
O autor propõe duas notas para realizar essa avaliação. A primeira
demonstra uma supervalorização às obras de Marx em relação a outros
importantes sociólogos modernos, como Weber e Durkheim, afirmando que
Marx foi objeto de "canonização e ortodoxia". A segunda nota refere-se à
afirmação que Weber e Durkheim não se preocuparam em fazer previsões ou
apontar direções de transformação social. A diferença aparece no momento em
que eles apontam previsões dentro do capitalismo, enquanto Marx se propõe a
superá-lo. Em suas análises, o autor afirma que Marx errou estrondosamente
em suas previsões, apresentando uma das últimas utopias da modernidade. A
partir disso, Santos se propõe a repensar as utopias, e ainda, verificar se o
marxismo ainda é valido nos dias de hoje.
Afirma a existência de uma crise de paradigmas e defende a ideia da
necessidade de um novo paradigma, entendido hoje como pós-modernidade.
Para defender essa ideia o autor se refere a dois "sintomas". O primeiro, traz
que a "conversão do progresso em acumulação capitalista transformou a
natureza em mera condição de produção". Essa transformação torna-se cada
vez mais evidente, principalmente nos perigos ecológicos. Em contrapartida,
nas crises do capitalismo, ele se estende a mercadorização da vida social,
gerando novos bens e novas relações sociais, atingindo locais até então não
integrados na economia mundial. Santos reconhece que o processo de
expansão do capitalismo parece atingir um limite inultrapassável.
Sobre esse momento, é pensado como o marxismo proporia uma
superação. O autor afirma que apesar da genialidade da teoria marxista e sua
importância na modernidade, essa crise da modernidade também representa
uma crise da teoria marxista, sem eficácia teórica para questões como a
exposta acima.
Uma crítica do autor estaria no caráter economicista das análises de
Marx. Criticando o reducionismo econômico, Santos explicita em suas análises
que não pretende afirmar que a estrutura econômica não seja relevante, mas
que esse valor não pode ser considerado o central.
Nos estudos de Marx, homens e mulheres, enquanto classe operária,
tem a capacidade de transformar por inteiro a sociedade capitalista através da
ação revolucionária. Constituída dentro das relações sociais de produção, as
classes e suas lutas, além de explicar a sociedade capitalista, primam pela
transformação desta.
Santos aponta, contrariando a teoria de Marx, que a classe operária nos
países centrais tornou-se heterogênea, e não diferente ocorreu com a
burguesia, que nessa mesma lógica sucedeu diversas classes médias, o que
segundo o autor, representou diversos tipos de opressão, e esses, não se
relacionam diretamente à questão de classe. Essa heterogeneidade de classes
tornou as relações sociais capitalistas menos opressivas, com afirmações de
opressões tão importantes quanto às de classe, como a dominação presente
na raça, etnia, religião e sexo.
Isso justifica para Santos, o não protagonismo operário nas recentes
lutas mais importantes, protagonizadas por grupos sociais congregados por
identidades não diretamente classistas, como estudantes, mulheres, grupos
étnicos e religiosos, grupos pacifistas, grupos ecológicos, entre outros.
Assim, Santos considera que as classes são um importante elemento na
explicação dos fenômenos sociais, mas tal importância só é compatível em
análises concretas e não necessita, para se sustentar, da estipulação abstrata
da primazia explicativa. Reforçando esse pensamento, afirma que é errôneo
reduzir a identificação, formação e estruturação das classes à estrutura
econômica da sociedade, pois as classes representam uma forma de poder, e
todo poder é político. "O valor explicativo das classes depende das
constelações de diferentes formas de poder nas práticas sociais concretas"
(SANTOS, 1997:42).
II - A Cidadania Sob a Lógica "Pós-moderna"
O conceito de subjetividade é muito mais amplo que o princípio de
cidadania. A teoria liberal teoriza que pelo fato de não participar da atividade
política do Estado, muitos dos indivíduos livres não são considerados cidadãos.
As sociedades liberais só podem ser consideradas democráticas depois de
terem adotado princípios universalistas, o que só aconteceu no século XX.
O princípio da cidadania abrange apenas cidadania civil e política no
exercício exclusivo do voto, quaisquer outras formas de participação política
são excluídas. Essa restrição da participação política exclusiva no voto abre
uma discussão sobre as representações, consequentemente problemática, pois
o interesse geral não pode coincidir, quase que por definição, com o interesse
de todos.
Uma outra característica da teoria liberal é que ela concebe a sociedade
civil como monolítica. A sociedade civil representa o espaço do associativismo
voluntário, sendo o espaço para representação do exercício da liberdade, da
autonomia e representação de interesses.
Boaventura Sousa Santos (1997) conclui afirmando que
"[...] a sociedade liberal é caracterizada por uma tensão
entre a subjetividade individual dos agentes na sociedade
civil e a subjetividade monumental do Estado. O mecanismo
regulador dessa tensão é o princípio da cidadania que, por
um lado, limita os poderes do Estado e, por outro,
universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de
modo a facilitar o controle social das suas atividades e,
consequentemente, a regulação social" (SANTOS,
1997:240).
Na radical contraposição marxista à democracia liberal, a classe
operaria é uma subjetividade coletiva, capaz da autoconsciência (a classe para
si), que abrange as várias subjetividades individuais dos produtores diretos. A
classe operária é em Marx a classe universal e a autoconsciência da
emancipação socialista. Porém, "a subjetividade coletiva da classe tende
igualmente a reduzir a equivalência e à indiferença as especificidades e as
diferenças que fundam a personalidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos
individuais" (SANTOS, 1997:242).
Para Santos, a irredutibilidade da subjetividade individual à subjetividade
coletiva, é uma lacuna na teoria marxista, que não consegue estabelecer a
mediação entre ambas. Justificando essa idéia, ele afirma que "se a
subjetividade coletiva da classe tendeu a destruir a subjetividade individual dos
seus membros, a titularidade política do partido, nos termos em que foi
formulada, tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania".
(SANTOS, 1997:242). Assim, a tensão afirmada anteriormente, entre
subjetividade individual e cidadania, se resolveu pela falsa destruição de
ambas.
Santos admite que a crítica de Marx a democracia liberal está correta,
porém discorda da alternativa proposta. O autor traz elementos da
transformação da cidadania cívica e política para "cidadania social", ou seja,
essa foi à incorporação de conquistas de direitos sociais importantes por parte
das classes trabalhadoras.
Marshall, sobre essa afirmativa, analisa a articulação que opera entre
cidadania e classe social e as conseqüências que dela retira para caracterizar
as relações de pressão entre cidadania e capitalismo. Essa articulação significa
que, no capitalismo liberal a cidadania civil e política, além de colidir com o
princípio de mercado, possibilitou o desenvolvimento hipertrofiado deste. Já no
capitalismo organizado, a cidadania social, através de acordos com a classe
trabalhadora, equilibrou-se entre o princípio do Estado e o princípio do
mercado, produzindo uma relação equilibrada, e assim sendo, uma nova
estrutura de exploração capitalista, ou seja, o capitalismo organizado.
Nesse processo de conquistas da classe operária, os sindicatos e
partidos tiveram um papel central na configuração desse compromisso,
conhecido também por compromisso social-democrático. Marca-se então, o
processo de integração social, em processos lentos de desradicalização das
reivindicações da classe operária, através de muita participação, participação
nas políticas de rendimentos e preços e até na gestão das empresas, o que
ficou conhecido como neocorporativismo. A cidadania social entra em crise
fundamentalmente pela crise do Estado-Providência1.
Segundo Santos, na crise do regime fordista, a dimensão político cultural
teve um reflexo bastante relevante nesse contexto. Acostumados com o
compromisso social-democrático, as rotinas de produção e consumo não
deixaram espaço para o exercício da autonomia e da criatividade. O que de
mais sério nessa crise ficou, foi que a representação democrática perdeu o
contato com os anseios e necessidades da população representada, e as fez
refém de interesses corporativos poderosos. Assim, os cidadãos se afastaram
do processo de representação política sem ter definido novas formas de
participação.
O movimento estudantil grandioso da década de sessenta foi,
segundo Boaventura Sousa Santos, o grande articulador da crise político
cultural do fordismo. Isso devido a: oposição ao produtivismo e ao
consumismo, com uma ideologia antiprodutivista e pós-materialista; a
identificação das múltiplas opressões, tanto no nível do trabalho, como no da
família e cotidiano, e as proposições de a criação de novas formas de
participação política, declarando o fim da hegemonia operária nas lutas pela
emancipação social e a protagonização de novos sujeitos sociais de base
policlassitas.
No entanto, o autor afirma que esses motivos culminaram na negligência
da democracia liberal, e os reflexos da cultura política instituída com o
movimento estudantil da década de sessenta, refletiram nos movimentos
sociais dos anos posteriores; "a partir daí os partidos e os sindicatos tiveram de
confrontar-se permanentemente com as formas organizativas dos novos
movimentos sociais" (SANTOS, 1997:250).
Para Boaventura Sousa Santos, o capitalismo não é criticado por não
ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático. Sempre que os
1A crise do Estado-Providência representa a crise do regime de acumulação consolidado no
pós-guerra, ou "regime fordista". Esse regime de caracteriza por uma organização taylorista,
combinada com um aumento de salários e ganhos de produtividade, visando a inserção dos
trabalhadores a sociedade de consumo. Os ganhos por produtividade seriam via aumento
salarial, e ainda por concessão de benefícios sociais, ou cidadania social, ou mais ainda,
Estado-Providência.
princípios de mercado e Estado se encontram na democracia representativa,
significa uma conquista das classes trabalhadoras, mesmo que apresentadas
como concessões das classes dominantes. Para ele, a democracia
representativa é uma positividade, e assim sendo, deve ser apropriada pelo
campo social da emancipação. Para ele, a renovação da teoria democrática
representa um critério democrático de participação política que não se resume
ao ato de votar. Implica uma articulação entre democracia representativa e
democracia participativa. Para isso, o campo político precisa ser radicalmente
redefinido e ampliado. A nova teoria democrática deverá buscar a repolitização
global da prática social e o imenso campo político que disso irá resultar, o que
permitirá desocultar formas novas de opressões e de dominação, ao mesmo
tempo em que criará novas oportunidades para o exercício de novas formas de
democracia e cidadania.
Santos distingue ainda, quatro espaços políticos estruturais: o espaço da
cidadania, ou espaço político; o espaço doméstico; o espaço da produção; e o
espaço mundial. Cada um deles representa um espaço político específico, com
lutas específicas e mudanças próprias.
O espaço doméstico representa um espaço privilegiado na reprodução
social e a forma de poder que nele domina é o patriarcado. O movimento
feminista tem papel fundamental na politização do espaço doméstico e na
desocultação do despotismo e da discriminação sexual. Assim, a politização do
espaço doméstico, e consequentemente a intervenção do movimento feminista,
representa um elemento fundamental para a nova teoria de democracia.
O espaço da produção é o espaço das relações de produção e sua
forma de própria de exploração (mais-valia), segundo Santos, perdeu o
protagonismo social e cultural, e os sujeitos sociais nele constituídos,
principalmente o operariado, perdeu seu peso político. Dessa forma, se a
transformação social não pode ser feita só com o operariado, ela não pode ser
feita também sem ele, ou contra ele.
Para a nova teoria democrática, a tarefa central seria a politização do
espaço da produção. Isso seria a compreensão da fábrica como um microEstado,
heterogêneo,
com
relações
de
produção
relativamente
horizontalizadas, numa convivência entre capital e trabalho muito mais
relacionados ao princípio de comunidade do que do mercado.
O espaço mundial é o conjunto de impactos em cada formação social
concreta, decorrentes da posição que ela ocupa no sistema mundial.
Representa um sistema de trocas desiguais entre países, condicionadas as
relações econômicas. Para entender essa situação, destaca-se os imperativos
econômicos impostos pelas empresas multinacionais no processo de
transnacionalização da produção. Neste campo, a prática transformadora
assentará
na
criação
de
obrigações
políticas
horizontais
de
âmbito
transnacional, entre cidadãos e grupos sociais das diferentes regiões do
mundo.
Em suas análises, o autor afirma que após a crise comunista ocorrida no
Leste Europeu, pelo menos aparentemente, o capitalismo demonstra ser
revalidado como modelo de desenvolvimento econômico e social, e ainda
afirmado como único modelo viável de modernidade.
Santos considera que as lutas pela cidadania social apontavam para
uma partilha nos ganhos de produtividade, sendo que os salários indiretos e o
Estado-Providência garantiriam a reprodução social, ou seja, alimentação,
habitação, saúde, lazer, segurança social, transporte... . Isso possibilitou aos
trabalhadores durante certo tempo planejar suas vida e da suas famílias em
liberdade e segurança, sem os riscos das crises econômicas. Porém, o teórico
português afirma que essas "largas" conquistas obtidas pela classe
trabalhadora foram duramente contestadas pelo movimento estudantil dos anos
sessenta, entendendo que "longe de criar autêntica autonomia e liberdade,
criou dependência em relação ao Estado burocrático e às rotinas do consumo"
(SANTOS, 1997:252).
O isolamento político das classes trabalhadoras na produção, refere-se
às considerações referidas acima, que contribuíram para a transformação do
operariado em mera força de trabalho. A precarização do trabalho gerou uma
síndrome entre as famílias trabalhadoras e a concorrência criada entre elas
tornou-se um poderoso instrumento de neutralização política do movimento
operário.
As relações salariais e a segmentação dos mercados de trabalho
criaram uma fragmentação e heterogeneização do operariado, tornando mais
difícil à macro-negociação coletiva, causando um enfraquecimento estrutural
dos sindicatos, refletido nas baixas taxas de sindicalização em quase todos os
países. Políticas de premiação, qualificação e prêmios de produtividade retiram
o sentido da unidade entre os trabalhadores, e promovem a integração
individual dos trabalhadores com a empresa. Isso ocorreu paralelamente à
desintegração política do movimento operário, entendida pelo autor dessa
forma: "Isolados, os trabalhadores não são classe operária, são força de
trabalho. Talvez isso explique em parte a pouca resistência ou a pouca eficácia
da resistência das organizações sindicais perante o processo de degradação
da relação salarial" (SANTOS, 1997:254).
Na compreensão acerca dos novos movimentos sociais, Santos afirma
que embora em determinada época o excesso de regulação social tenha
convivido com movimentos emancipatórios poderosos, novos protagonistas
emergiram, num renovado panorama de inovação e transformação social. O
autor afirma ainda que "[...] a hegemonia do mercado e seus atributos e
exigências atingiu um nível tal de naturalização social que, embora o cotidiano
seja impensável sem ele, não se lhe deve, por isso mesmo, qualquer lealdade
cultural específica" (SANTOS, 1997:256). Assim ele entende que é possível
viver sem duplicidade e com igual intensidade a hegemonia do mercado e a
luta contra ela. Dessa forma é entendido como que a difusão social contribuiu
para o desocultar novas formas de opressão, e ainda, como que com o
isolamento do movimento operário, novos sujeitos emergiram, da mesma forma
que também emergiram novas práticas de mobilização social.
Para este teórico português, a novidade maior dos novos movimentos
sociais reside em que constituem tanto uma crítica da regulação social
capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista tal como ela foi
definida pelo marxismo. Entendendo que emergiram novas formas de opressão
que ultrapassam as relações de produção, como a guerra, a poluição, o
machismo, o racismo ou o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma
social menos assente na riqueza e no bem-estar material do que na cultura e
na qualidade de vida, os novos movimentos sociais denunciam os excessos da
modernidade.
Os excessos não atingem somente as relações sociais, as opressões
não atingem apenas uma classe social, mas grupos sociais transclassistas ou
mesmo a sociedade como um todo. Assim, Boaventura de Sousa Santos
entende que
"[...] as denúncias de novas formas de opressão implica a
denúncia das teorias e dos movimentos emancipatórios que
as passaram em claro, que as negligenciaram, quando na
pactuaram mesmo com elas. Implica, pois, a crítica ao
marxismo e do movimento operário tradicional, bem como a
crítica ao chamado "socialismo real" (SANTOS, 1997:258).
Ressalta ainda que mesmo as novas opressões não devam esquecer as
velhas opressões, a luta não pode ser feita em nome de um futuro melhor
numa sociedade a ser construída. Para Santos, a emancipação por que se luta
visa transformar o cotidiano das vítimas em opressão aqui e agora e não num
futuro longínquo. A mobilização ou começa agora, ou não começa nunca.
Na relação entre cidadania e subjetividade, o autor aponta que para os
novos movimentos sociais, a emancipação por que lutam não é política, mas
pessoal, social e cultural. Os protagonistas dessas lutas não são mais as
classes sociais, mas os grupos sociais, menores ou maiores que classes, com
interesses coletivos muitas vezes localizados, mas com potencialidades
universalizantes. As formas de expressão e exclusão com as quais luta não
podem ser combatidas apenas com concessão de direitos, como é típico da
cidadania, mas
"[...] exigem uma reconversão global dos processos de
socialização e de inculcação cultural e dos modelos de
desenvolvimento,
exigem
transformações
concretas
imediatas e locais [...], exigências que, em ambos os casos,
extravasam da mera concessão de direitos abstratos e
universais" (SANTOS, 1997:261)
Dessa forma, os novos movimentos sociais ocorrem na sociedade civil,
mantendo determinada distância tanto do Estado, quanto dos partidos e
sindicatos tradicionais. A distância entre os novos movimentos sociais e o
Estado é muito mais aparente do que a realidade, pois suas reivindicações
acabam sempre a exigir do Estado, o que, de acordo com sua contingência
política, pode ser atendido ou não. De fato os novos movimentos sociais jogam
o jogo da democracia representativa, fazendo alianças com sindicatos ou
partido, quando não acabam por se transformar em um.
O teórico português considera que os novos movimentos sociais não
fazem uma recusa da política, pelo contrário, ampliam a política para além do
marco liberal e da distinção entre Estado e sociedade civil, assim, explica que
"[...] os novos movimentos sociais partem do pressuposto de
que as contradições e as oscilações periódicas entre o
princípio do Estado e o princípio do mercado são mais
aparentes do que reais, na medida em que o trânsito
histórico do capitalismo é feito de uma interpenetração
sempre crescente entre os dois princípios, uma
interpenetração que subverte e oculta a exterioridade formal
do Estado e da política perante as relações sociais de
produção. Nestas condições, invocar o princípio do Estado
contra o princípio do mercado é cair na armadilha da
radicalidade fácil de transformar o que existe no que já
existe, como é próprio do discurso político oficial" (SANTOS,
1997:263).
Politizar o social, o cultural e até mesmo o pessoal representa um
exercício imenso para a cidadania, facilitando a evidência das lacunas da
cidadania liberal, e ainda da cidadania social. Os novos exercícios de cidadania
compreendem, portanto, incentivar autonomia e combater a dependência
burocrática, personalizar e localizar as competências interpessoais e coletivas
ao invés de se sujeitá-las a padrões abstratos e atender as novas formas de
exclusão social baseadas no sexo, na raça, na perda de qualidade de vida, no
consumo, na guerra, que "ora ocultam ou legitimam, ora complementam e
aprofundam a exclusão baseada na classe social" (SANTOS, 1997:264).
Assim, os novos movimentos sociais são sinais de transformações
globais no contexto político, social e cultural da nossa contemporaneidade e,
por isso, os seus objetivos serão parte permanente da agenda política dos
próximos anos, independentemente do sucesso, necessariamente diverso, dos
diferentes movimentos concretos.
II – Um olhar crítico às análises pós-modernas: apontamentos para uma
conclusão
Diante da argumentação exposta, partiremos para uma argumentação
crítica as ideias pós-modernas apresentadas, corroborando com as análises
de Wood (2003), em que nos esclarece a filiação de alguns autores ao
pensamento pós-moderno. Para a autora, os pensadores pós-modernos
defendem que as mudanças ocorridas na sociedade moderna, como "a
fragmentação crescente, diversificação de relações e experiências sociais,
pluralidade de estilos de vida e multiplicação de identidades pessoais"
(WOOD, 2003: 220), caracteriza um mundo Pós-moderno, onde antigas
certezas já não mais existem, sendo substituídas por diversidades.
Conceitos como os de classe foram substituídos por "movimentos sociais
baseados em outras identidades e contra outras opressões, movimentos
relacionados à raça, ao gênero, à etnicidade, à sexualidade, etc" (WOOD,
2003: 220).
O conceito de identidade parece como uma forma de abranger todas as
formas de opressão, desde as de classe e gênero, ou etnia e preferência
sexual. Esse conceito seria capaz de superar o reducionismo analítico das
teorias que discutem somente a classe.
Percebe-se que dentro de uma sociedade capitalista, as diversidades
não podem ser entendidas fora do contexto da contradição de classe.
Desigualdades sexual e racial, não necessariamente são incompatíveis com o
capitalismo, diferentemente do antagonismo classista, que para sua superação
pressupõe a derrocada do sistema capitalista.
[...] embora a exploração de classe seja um componente do
capitalismo, de uma forma que não se aplica às diferenças
sexual e racial, o capitalismo submete todas as relações
sociais às suas necessidades. Ele tem condições de cooptar
e reforçar desigualdades e opressões que não criou e
adaptá-las aos interesses da exploração de classe (WOOD,
2003: 221).
É uma característica do sistema capitalista essa possibilidade de
articulação universal das diferentes formas de opressão sem tocar nas relações
de classe.
[...] o sistema capitalista, sua unidade totalizadora, foi
conceitualmente suprimido pelas concepções difusas de
sociedade civil e pela submersão da classe em categorias
abrangentes como "identidades" que desagregam o mundo
social em realidades particulares e separadas (WOOD,
2003: 222).
A partir de uma negação da lógica totalizadora do capitalismo,
reforça-se a diversidade e a fragmentação "pós-moderna", que nada mais é
senão uma faceta do capitalismo contemporâneo, vista sobre uma
deformação ideológica brutal. Eis aí o "fetichismo do produto", o triunfo da
"sociedade de consumo", marcado pela quantidade de mercadoria e padrões
variados de consumo, mascarando os imperativos que criam a diversidade
enquanto impõem uma homogeneidade maior e mais global. O que de mais
preocupante se revela nessa análise é que o capitalismo, como forma social
específica, desaparece, devido a infinidade de fragmentos e "diferenças".
Nessa indefinição do capitalismo, o socialismo torna-se algo confuso,
uma vez que o socialismo é a alternativa específica do capitalismo, sem o
capitalismo não precisamos de socialismo, o que gera uma abertura para
conceitos heterogêneos de democracia. Os conceitos de democracia não
significam oposição ao sistema, na verdade, muitas vezes, nem reconhecem o
sistema.
A
luta
se
concentra
fragmentada
em
opressões
e
lutas
emancipatórias. Ao invés de almejar um projeto socialista num embate direto
entre classes, ocorre uma "pluralidade de lutas particulares isoladas que
terminam na submissão ao capitalismo". (WOOD, 2003: 223).
Num projeto socialista, os "novos movimentos sociais" têm um papel
importante, porém necessitam de que sejam afastados dessas teorias que
desintegram a resistência ao capitalismo. Não devemos confundir respeito pela
pluralidade das experiências humanas e das lutas sociais com a dissolução
completa da causalidade histórica, em que nada existe além de diversidade,
diferença e contingência, nenhuma estrutura unificadora, nenhuma lógica de
processo, em que não existe o capitalismo e, portanto, nem a sua negação,
nenhum projeto de emancipação humana. (WOOD, 2003: 225).
A partir dessas considerações, a crítica ao marxismo em geral se
coloca inconsistente. O avanço do conhecimento histórico social, longe de
passar
pela
"destruição"
das
pretensões
totalizadoras,
requer,
compulsoriamente, a retomada da totalidade concreta.
Por isso,
"[...] estamos convencidos de que, muito diferente do
"estilhaçamento" da política, o que temos é a ampliação do
campo da política. Ao contrário de "novos sujeitos políticos",
que substituam os "velhos" sujeitos - como, por exemplo, o
proletariado-, o que temos são sujeitos políticos renovados
pluridimensionamente. Em lugar de "novas práticas sociais"
temos uma práxis social com dimensões ignoradas. E muito
mais do que "novos espaços políticos", o que temos são
espaços políticos esquecidos na cotidianidade e que
necessitam ser conectados a totalidade concreta, para que
possam ser apreendidos" (EVANGELISTA, 1992:53).
A discussão acerca da cidadania democrática há algum tempo incomoda
a esquerda. Existia um pensamento de que a tendência natural às igualdades
formais e jurídicas do capitalismo, combinadas com as desigualdades
econômicas e a ausência de liberdade, estabeleceria uma contradição
tamanha, que motivaria uma transformação socialista. Porém, hoje existe uma
tendência de se pensar o socialismo como uma extensão dos direitos de
cidadania, ou seja, de se pensar uma "cidadania radical" substituindo o
socialismo, como parece ser a defesa de Boaventura de Sousa Santos. O
termo democracia passou a representar todos os bens "extra-econômicos".
Para muitos, os bens "extra - econômicos", tais como; emancipação de gênero,
igualdade racial, paz, saúde ecológica e cidadania democrática, tomaram uma
dimensão de extrema relevância nesse processo.
Sobre isso, WOOD afirma que:
[...] é necessário, em primeiro lugar, não ter ilusões acerca
do significado e dos efeitos da democracia no capitalismo.
Isso representa não somente a compreensão dos limites da
democracia capitalista, o fato de que até mesmo um Estado
capitalista democrático pode ser restringido pelas exigências
de acumulação do capital, e o fato de que a democracia
liberal deixa essencialmente intacta a exploração capitalista,
mas também, e ainda mais particularmente, a
desvalorização da democracia (WOOD, 2003: 233).
Essas seriam algumas das implicações da separação capitalista entre
a exploração econômica e as forças e identidades "extra-econômicas". No
campo ideológico, percebe-se principalmente entre os teóricos "pósmarxistas", um sentimento de que a democracia capitalista deu importantes
passos na busca de todas as formas de igualdade e liberdade, que a
"economia" tem importância limitada na experiência de vida das pessoas,
que a abertura política e as identidades são essenciais em nosso modo de
vida ocidental.
Para compreender essas relações, Wood explica que:
[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades
sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir
das desigualdades e opressões "extra-econômicas". Isso
quer dizer que, embora o capitalismo não seja capaz de
garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça, a
conquista dessa emancipação também não garante a
erradicação do capitalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma
indiferença pelas identidades "extra-econômicas" torna
particularmente eficaz e flexível o seu uso como cobertura
ideológica pelo capitalismo. Enquanto nas sociedades précapitalistas as identidades "extra-econômicas" acentuavam
as relações de exploração, no capitalismo elas geralmente
servem para obscurecer o principal modo de opressão que
lhe é específico (WOOD, 2003: 241).
Assim, buscamos analisar nesse estudo as leituras que compreendem a
sociedade de hoje como um emaranhado de identidades, fragmentando o
conceito de classe, substituindo-o por identidades diversas, ignorando as
contradições e não mais almejando a superação do sistema capitalista.
Para nós, é fundamental entender a sociedade como uma totalidade
concreta, na qual devemos sempre primar pela construção de alternativas
para a elevação da consciência e organização da classe trabalhadora.
Somente nessa perspectiva alcançaremos uma cultura política entre os
movimentos sociais que de fato se proponha a superar a relação antagônica
entre as classes e, para isso, o principal paradigma analítico no entendimento
das contradições da vida social deve ser situado na tradição marxista, pois ou a
transformação
ocorre
nas
relações
desiguais
entre
as
classes
–
dominantes/dominadas – ou de fato não se ocorre uma transformação.
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