ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: APROXIMANDO AGENDA E AGENTES De 23 a 25 de abril de 2013, UNESP – Araraquara (SP) Os rearranjos políticos e teóricos no pensamento de Boaventura de Sousa Santos: uma leitura crítica de sua contribuição. Autor: Fillipe Perantoni Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social/UFJF (Mestrado) I - Boaventura de Sousa Santos: Uma Leitura "Pós-Moderna" Sobre a Sociedade A nova teoria de democracia ou teoria "pós-moderna", representa uma ruptura com a teoria democrática liberal e com a tradição marxista. Trataremos dessa nova teoria no pensamento de um dos seus mais importantes formuladores, o cientista político português Boaventura Sousa Santos. Santos objetiva alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da interação social. Para Santos, a tradição teórica marxista significa um pilar fundamental das ciências sociais na modernidade, influenciando e sendo influenciada pelas transformações das ciências sociais no decorrer dos anos. A partir de uma análise do presente, essas transformações devem ser levadas em consideração para avaliar os limites e as virtualidades da tradição marxista. O autor propõe duas notas para realizar essa avaliação. A primeira demonstra uma supervalorização às obras de Marx em relação a outros importantes sociólogos modernos, como Weber e Durkheim, afirmando que Marx foi objeto de "canonização e ortodoxia". A segunda nota refere-se à afirmação que Weber e Durkheim não se preocuparam em fazer previsões ou apontar direções de transformação social. A diferença aparece no momento em que eles apontam previsões dentro do capitalismo, enquanto Marx se propõe a superá-lo. Em suas análises, o autor afirma que Marx errou estrondosamente em suas previsões, apresentando uma das últimas utopias da modernidade. A partir disso, Santos se propõe a repensar as utopias, e ainda, verificar se o marxismo ainda é valido nos dias de hoje. Afirma a existência de uma crise de paradigmas e defende a ideia da necessidade de um novo paradigma, entendido hoje como pós-modernidade. Para defender essa ideia o autor se refere a dois "sintomas". O primeiro, traz que a "conversão do progresso em acumulação capitalista transformou a natureza em mera condição de produção". Essa transformação torna-se cada vez mais evidente, principalmente nos perigos ecológicos. Em contrapartida, nas crises do capitalismo, ele se estende a mercadorização da vida social, gerando novos bens e novas relações sociais, atingindo locais até então não integrados na economia mundial. Santos reconhece que o processo de expansão do capitalismo parece atingir um limite inultrapassável. Sobre esse momento, é pensado como o marxismo proporia uma superação. O autor afirma que apesar da genialidade da teoria marxista e sua importância na modernidade, essa crise da modernidade também representa uma crise da teoria marxista, sem eficácia teórica para questões como a exposta acima. Uma crítica do autor estaria no caráter economicista das análises de Marx. Criticando o reducionismo econômico, Santos explicita em suas análises que não pretende afirmar que a estrutura econômica não seja relevante, mas que esse valor não pode ser considerado o central. Nos estudos de Marx, homens e mulheres, enquanto classe operária, tem a capacidade de transformar por inteiro a sociedade capitalista através da ação revolucionária. Constituída dentro das relações sociais de produção, as classes e suas lutas, além de explicar a sociedade capitalista, primam pela transformação desta. Santos aponta, contrariando a teoria de Marx, que a classe operária nos países centrais tornou-se heterogênea, e não diferente ocorreu com a burguesia, que nessa mesma lógica sucedeu diversas classes médias, o que segundo o autor, representou diversos tipos de opressão, e esses, não se relacionam diretamente à questão de classe. Essa heterogeneidade de classes tornou as relações sociais capitalistas menos opressivas, com afirmações de opressões tão importantes quanto às de classe, como a dominação presente na raça, etnia, religião e sexo. Isso justifica para Santos, o não protagonismo operário nas recentes lutas mais importantes, protagonizadas por grupos sociais congregados por identidades não diretamente classistas, como estudantes, mulheres, grupos étnicos e religiosos, grupos pacifistas, grupos ecológicos, entre outros. Assim, Santos considera que as classes são um importante elemento na explicação dos fenômenos sociais, mas tal importância só é compatível em análises concretas e não necessita, para se sustentar, da estipulação abstrata da primazia explicativa. Reforçando esse pensamento, afirma que é errôneo reduzir a identificação, formação e estruturação das classes à estrutura econômica da sociedade, pois as classes representam uma forma de poder, e todo poder é político. "O valor explicativo das classes depende das constelações de diferentes formas de poder nas práticas sociais concretas" (SANTOS, 1997:42). II - A Cidadania Sob a Lógica "Pós-moderna" O conceito de subjetividade é muito mais amplo que o princípio de cidadania. A teoria liberal teoriza que pelo fato de não participar da atividade política do Estado, muitos dos indivíduos livres não são considerados cidadãos. As sociedades liberais só podem ser consideradas democráticas depois de terem adotado princípios universalistas, o que só aconteceu no século XX. O princípio da cidadania abrange apenas cidadania civil e política no exercício exclusivo do voto, quaisquer outras formas de participação política são excluídas. Essa restrição da participação política exclusiva no voto abre uma discussão sobre as representações, consequentemente problemática, pois o interesse geral não pode coincidir, quase que por definição, com o interesse de todos. Uma outra característica da teoria liberal é que ela concebe a sociedade civil como monolítica. A sociedade civil representa o espaço do associativismo voluntário, sendo o espaço para representação do exercício da liberdade, da autonomia e representação de interesses. Boaventura Sousa Santos (1997) conclui afirmando que "[...] a sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre a subjetividade individual dos agentes na sociedade civil e a subjetividade monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é o princípio da cidadania que, por um lado, limita os poderes do Estado e, por outro, universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de modo a facilitar o controle social das suas atividades e, consequentemente, a regulação social" (SANTOS, 1997:240). Na radical contraposição marxista à democracia liberal, a classe operaria é uma subjetividade coletiva, capaz da autoconsciência (a classe para si), que abrange as várias subjetividades individuais dos produtores diretos. A classe operária é em Marx a classe universal e a autoconsciência da emancipação socialista. Porém, "a subjetividade coletiva da classe tende igualmente a reduzir a equivalência e à indiferença as especificidades e as diferenças que fundam a personalidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos individuais" (SANTOS, 1997:242). Para Santos, a irredutibilidade da subjetividade individual à subjetividade coletiva, é uma lacuna na teoria marxista, que não consegue estabelecer a mediação entre ambas. Justificando essa idéia, ele afirma que "se a subjetividade coletiva da classe tendeu a destruir a subjetividade individual dos seus membros, a titularidade política do partido, nos termos em que foi formulada, tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania". (SANTOS, 1997:242). Assim, a tensão afirmada anteriormente, entre subjetividade individual e cidadania, se resolveu pela falsa destruição de ambas. Santos admite que a crítica de Marx a democracia liberal está correta, porém discorda da alternativa proposta. O autor traz elementos da transformação da cidadania cívica e política para "cidadania social", ou seja, essa foi à incorporação de conquistas de direitos sociais importantes por parte das classes trabalhadoras. Marshall, sobre essa afirmativa, analisa a articulação que opera entre cidadania e classe social e as conseqüências que dela retira para caracterizar as relações de pressão entre cidadania e capitalismo. Essa articulação significa que, no capitalismo liberal a cidadania civil e política, além de colidir com o princípio de mercado, possibilitou o desenvolvimento hipertrofiado deste. Já no capitalismo organizado, a cidadania social, através de acordos com a classe trabalhadora, equilibrou-se entre o princípio do Estado e o princípio do mercado, produzindo uma relação equilibrada, e assim sendo, uma nova estrutura de exploração capitalista, ou seja, o capitalismo organizado. Nesse processo de conquistas da classe operária, os sindicatos e partidos tiveram um papel central na configuração desse compromisso, conhecido também por compromisso social-democrático. Marca-se então, o processo de integração social, em processos lentos de desradicalização das reivindicações da classe operária, através de muita participação, participação nas políticas de rendimentos e preços e até na gestão das empresas, o que ficou conhecido como neocorporativismo. A cidadania social entra em crise fundamentalmente pela crise do Estado-Providência1. Segundo Santos, na crise do regime fordista, a dimensão político cultural teve um reflexo bastante relevante nesse contexto. Acostumados com o compromisso social-democrático, as rotinas de produção e consumo não deixaram espaço para o exercício da autonomia e da criatividade. O que de mais sério nessa crise ficou, foi que a representação democrática perdeu o contato com os anseios e necessidades da população representada, e as fez refém de interesses corporativos poderosos. Assim, os cidadãos se afastaram do processo de representação política sem ter definido novas formas de participação. O movimento estudantil grandioso da década de sessenta foi, segundo Boaventura Sousa Santos, o grande articulador da crise político cultural do fordismo. Isso devido a: oposição ao produtivismo e ao consumismo, com uma ideologia antiprodutivista e pós-materialista; a identificação das múltiplas opressões, tanto no nível do trabalho, como no da família e cotidiano, e as proposições de a criação de novas formas de participação política, declarando o fim da hegemonia operária nas lutas pela emancipação social e a protagonização de novos sujeitos sociais de base policlassitas. No entanto, o autor afirma que esses motivos culminaram na negligência da democracia liberal, e os reflexos da cultura política instituída com o movimento estudantil da década de sessenta, refletiram nos movimentos sociais dos anos posteriores; "a partir daí os partidos e os sindicatos tiveram de confrontar-se permanentemente com as formas organizativas dos novos movimentos sociais" (SANTOS, 1997:250). Para Boaventura Sousa Santos, o capitalismo não é criticado por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático. Sempre que os 1A crise do Estado-Providência representa a crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra, ou "regime fordista". Esse regime de caracteriza por uma organização taylorista, combinada com um aumento de salários e ganhos de produtividade, visando a inserção dos trabalhadores a sociedade de consumo. Os ganhos por produtividade seriam via aumento salarial, e ainda por concessão de benefícios sociais, ou cidadania social, ou mais ainda, Estado-Providência. princípios de mercado e Estado se encontram na democracia representativa, significa uma conquista das classes trabalhadoras, mesmo que apresentadas como concessões das classes dominantes. Para ele, a democracia representativa é uma positividade, e assim sendo, deve ser apropriada pelo campo social da emancipação. Para ele, a renovação da teoria democrática representa um critério democrático de participação política que não se resume ao ato de votar. Implica uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa. Para isso, o campo político precisa ser radicalmente redefinido e ampliado. A nova teoria democrática deverá buscar a repolitização global da prática social e o imenso campo político que disso irá resultar, o que permitirá desocultar formas novas de opressões e de dominação, ao mesmo tempo em que criará novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e cidadania. Santos distingue ainda, quatro espaços políticos estruturais: o espaço da cidadania, ou espaço político; o espaço doméstico; o espaço da produção; e o espaço mundial. Cada um deles representa um espaço político específico, com lutas específicas e mudanças próprias. O espaço doméstico representa um espaço privilegiado na reprodução social e a forma de poder que nele domina é o patriarcado. O movimento feminista tem papel fundamental na politização do espaço doméstico e na desocultação do despotismo e da discriminação sexual. Assim, a politização do espaço doméstico, e consequentemente a intervenção do movimento feminista, representa um elemento fundamental para a nova teoria de democracia. O espaço da produção é o espaço das relações de produção e sua forma de própria de exploração (mais-valia), segundo Santos, perdeu o protagonismo social e cultural, e os sujeitos sociais nele constituídos, principalmente o operariado, perdeu seu peso político. Dessa forma, se a transformação social não pode ser feita só com o operariado, ela não pode ser feita também sem ele, ou contra ele. Para a nova teoria democrática, a tarefa central seria a politização do espaço da produção. Isso seria a compreensão da fábrica como um microEstado, heterogêneo, com relações de produção relativamente horizontalizadas, numa convivência entre capital e trabalho muito mais relacionados ao princípio de comunidade do que do mercado. O espaço mundial é o conjunto de impactos em cada formação social concreta, decorrentes da posição que ela ocupa no sistema mundial. Representa um sistema de trocas desiguais entre países, condicionadas as relações econômicas. Para entender essa situação, destaca-se os imperativos econômicos impostos pelas empresas multinacionais no processo de transnacionalização da produção. Neste campo, a prática transformadora assentará na criação de obrigações políticas horizontais de âmbito transnacional, entre cidadãos e grupos sociais das diferentes regiões do mundo. Em suas análises, o autor afirma que após a crise comunista ocorrida no Leste Europeu, pelo menos aparentemente, o capitalismo demonstra ser revalidado como modelo de desenvolvimento econômico e social, e ainda afirmado como único modelo viável de modernidade. Santos considera que as lutas pela cidadania social apontavam para uma partilha nos ganhos de produtividade, sendo que os salários indiretos e o Estado-Providência garantiriam a reprodução social, ou seja, alimentação, habitação, saúde, lazer, segurança social, transporte... . Isso possibilitou aos trabalhadores durante certo tempo planejar suas vida e da suas famílias em liberdade e segurança, sem os riscos das crises econômicas. Porém, o teórico português afirma que essas "largas" conquistas obtidas pela classe trabalhadora foram duramente contestadas pelo movimento estudantil dos anos sessenta, entendendo que "longe de criar autêntica autonomia e liberdade, criou dependência em relação ao Estado burocrático e às rotinas do consumo" (SANTOS, 1997:252). O isolamento político das classes trabalhadoras na produção, refere-se às considerações referidas acima, que contribuíram para a transformação do operariado em mera força de trabalho. A precarização do trabalho gerou uma síndrome entre as famílias trabalhadoras e a concorrência criada entre elas tornou-se um poderoso instrumento de neutralização política do movimento operário. As relações salariais e a segmentação dos mercados de trabalho criaram uma fragmentação e heterogeneização do operariado, tornando mais difícil à macro-negociação coletiva, causando um enfraquecimento estrutural dos sindicatos, refletido nas baixas taxas de sindicalização em quase todos os países. Políticas de premiação, qualificação e prêmios de produtividade retiram o sentido da unidade entre os trabalhadores, e promovem a integração individual dos trabalhadores com a empresa. Isso ocorreu paralelamente à desintegração política do movimento operário, entendida pelo autor dessa forma: "Isolados, os trabalhadores não são classe operária, são força de trabalho. Talvez isso explique em parte a pouca resistência ou a pouca eficácia da resistência das organizações sindicais perante o processo de degradação da relação salarial" (SANTOS, 1997:254). Na compreensão acerca dos novos movimentos sociais, Santos afirma que embora em determinada época o excesso de regulação social tenha convivido com movimentos emancipatórios poderosos, novos protagonistas emergiram, num renovado panorama de inovação e transformação social. O autor afirma ainda que "[...] a hegemonia do mercado e seus atributos e exigências atingiu um nível tal de naturalização social que, embora o cotidiano seja impensável sem ele, não se lhe deve, por isso mesmo, qualquer lealdade cultural específica" (SANTOS, 1997:256). Assim ele entende que é possível viver sem duplicidade e com igual intensidade a hegemonia do mercado e a luta contra ela. Dessa forma é entendido como que a difusão social contribuiu para o desocultar novas formas de opressão, e ainda, como que com o isolamento do movimento operário, novos sujeitos emergiram, da mesma forma que também emergiram novas práticas de mobilização social. Para este teórico português, a novidade maior dos novos movimentos sociais reside em que constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista tal como ela foi definida pelo marxismo. Entendendo que emergiram novas formas de opressão que ultrapassam as relações de produção, como a guerra, a poluição, o machismo, o racismo ou o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os novos movimentos sociais denunciam os excessos da modernidade. Os excessos não atingem somente as relações sociais, as opressões não atingem apenas uma classe social, mas grupos sociais transclassistas ou mesmo a sociedade como um todo. Assim, Boaventura de Sousa Santos entende que "[...] as denúncias de novas formas de opressão implica a denúncia das teorias e dos movimentos emancipatórios que as passaram em claro, que as negligenciaram, quando na pactuaram mesmo com elas. Implica, pois, a crítica ao marxismo e do movimento operário tradicional, bem como a crítica ao chamado "socialismo real" (SANTOS, 1997:258). Ressalta ainda que mesmo as novas opressões não devam esquecer as velhas opressões, a luta não pode ser feita em nome de um futuro melhor numa sociedade a ser construída. Para Santos, a emancipação por que se luta visa transformar o cotidiano das vítimas em opressão aqui e agora e não num futuro longínquo. A mobilização ou começa agora, ou não começa nunca. Na relação entre cidadania e subjetividade, o autor aponta que para os novos movimentos sociais, a emancipação por que lutam não é política, mas pessoal, social e cultural. Os protagonistas dessas lutas não são mais as classes sociais, mas os grupos sociais, menores ou maiores que classes, com interesses coletivos muitas vezes localizados, mas com potencialidades universalizantes. As formas de expressão e exclusão com as quais luta não podem ser combatidas apenas com concessão de direitos, como é típico da cidadania, mas "[...] exigem uma reconversão global dos processos de socialização e de inculcação cultural e dos modelos de desenvolvimento, exigem transformações concretas imediatas e locais [...], exigências que, em ambos os casos, extravasam da mera concessão de direitos abstratos e universais" (SANTOS, 1997:261) Dessa forma, os novos movimentos sociais ocorrem na sociedade civil, mantendo determinada distância tanto do Estado, quanto dos partidos e sindicatos tradicionais. A distância entre os novos movimentos sociais e o Estado é muito mais aparente do que a realidade, pois suas reivindicações acabam sempre a exigir do Estado, o que, de acordo com sua contingência política, pode ser atendido ou não. De fato os novos movimentos sociais jogam o jogo da democracia representativa, fazendo alianças com sindicatos ou partido, quando não acabam por se transformar em um. O teórico português considera que os novos movimentos sociais não fazem uma recusa da política, pelo contrário, ampliam a política para além do marco liberal e da distinção entre Estado e sociedade civil, assim, explica que "[...] os novos movimentos sociais partem do pressuposto de que as contradições e as oscilações periódicas entre o princípio do Estado e o princípio do mercado são mais aparentes do que reais, na medida em que o trânsito histórico do capitalismo é feito de uma interpenetração sempre crescente entre os dois princípios, uma interpenetração que subverte e oculta a exterioridade formal do Estado e da política perante as relações sociais de produção. Nestas condições, invocar o princípio do Estado contra o princípio do mercado é cair na armadilha da radicalidade fácil de transformar o que existe no que já existe, como é próprio do discurso político oficial" (SANTOS, 1997:263). Politizar o social, o cultural e até mesmo o pessoal representa um exercício imenso para a cidadania, facilitando a evidência das lacunas da cidadania liberal, e ainda da cidadania social. Os novos exercícios de cidadania compreendem, portanto, incentivar autonomia e combater a dependência burocrática, personalizar e localizar as competências interpessoais e coletivas ao invés de se sujeitá-las a padrões abstratos e atender as novas formas de exclusão social baseadas no sexo, na raça, na perda de qualidade de vida, no consumo, na guerra, que "ora ocultam ou legitimam, ora complementam e aprofundam a exclusão baseada na classe social" (SANTOS, 1997:264). Assim, os novos movimentos sociais são sinais de transformações globais no contexto político, social e cultural da nossa contemporaneidade e, por isso, os seus objetivos serão parte permanente da agenda política dos próximos anos, independentemente do sucesso, necessariamente diverso, dos diferentes movimentos concretos. II – Um olhar crítico às análises pós-modernas: apontamentos para uma conclusão Diante da argumentação exposta, partiremos para uma argumentação crítica as ideias pós-modernas apresentadas, corroborando com as análises de Wood (2003), em que nos esclarece a filiação de alguns autores ao pensamento pós-moderno. Para a autora, os pensadores pós-modernos defendem que as mudanças ocorridas na sociedade moderna, como "a fragmentação crescente, diversificação de relações e experiências sociais, pluralidade de estilos de vida e multiplicação de identidades pessoais" (WOOD, 2003: 220), caracteriza um mundo Pós-moderno, onde antigas certezas já não mais existem, sendo substituídas por diversidades. Conceitos como os de classe foram substituídos por "movimentos sociais baseados em outras identidades e contra outras opressões, movimentos relacionados à raça, ao gênero, à etnicidade, à sexualidade, etc" (WOOD, 2003: 220). O conceito de identidade parece como uma forma de abranger todas as formas de opressão, desde as de classe e gênero, ou etnia e preferência sexual. Esse conceito seria capaz de superar o reducionismo analítico das teorias que discutem somente a classe. Percebe-se que dentro de uma sociedade capitalista, as diversidades não podem ser entendidas fora do contexto da contradição de classe. Desigualdades sexual e racial, não necessariamente são incompatíveis com o capitalismo, diferentemente do antagonismo classista, que para sua superação pressupõe a derrocada do sistema capitalista. [...] embora a exploração de classe seja um componente do capitalismo, de uma forma que não se aplica às diferenças sexual e racial, o capitalismo submete todas as relações sociais às suas necessidades. Ele tem condições de cooptar e reforçar desigualdades e opressões que não criou e adaptá-las aos interesses da exploração de classe (WOOD, 2003: 221). É uma característica do sistema capitalista essa possibilidade de articulação universal das diferentes formas de opressão sem tocar nas relações de classe. [...] o sistema capitalista, sua unidade totalizadora, foi conceitualmente suprimido pelas concepções difusas de sociedade civil e pela submersão da classe em categorias abrangentes como "identidades" que desagregam o mundo social em realidades particulares e separadas (WOOD, 2003: 222). A partir de uma negação da lógica totalizadora do capitalismo, reforça-se a diversidade e a fragmentação "pós-moderna", que nada mais é senão uma faceta do capitalismo contemporâneo, vista sobre uma deformação ideológica brutal. Eis aí o "fetichismo do produto", o triunfo da "sociedade de consumo", marcado pela quantidade de mercadoria e padrões variados de consumo, mascarando os imperativos que criam a diversidade enquanto impõem uma homogeneidade maior e mais global. O que de mais preocupante se revela nessa análise é que o capitalismo, como forma social específica, desaparece, devido a infinidade de fragmentos e "diferenças". Nessa indefinição do capitalismo, o socialismo torna-se algo confuso, uma vez que o socialismo é a alternativa específica do capitalismo, sem o capitalismo não precisamos de socialismo, o que gera uma abertura para conceitos heterogêneos de democracia. Os conceitos de democracia não significam oposição ao sistema, na verdade, muitas vezes, nem reconhecem o sistema. A luta se concentra fragmentada em opressões e lutas emancipatórias. Ao invés de almejar um projeto socialista num embate direto entre classes, ocorre uma "pluralidade de lutas particulares isoladas que terminam na submissão ao capitalismo". (WOOD, 2003: 223). Num projeto socialista, os "novos movimentos sociais" têm um papel importante, porém necessitam de que sejam afastados dessas teorias que desintegram a resistência ao capitalismo. Não devemos confundir respeito pela pluralidade das experiências humanas e das lutas sociais com a dissolução completa da causalidade histórica, em que nada existe além de diversidade, diferença e contingência, nenhuma estrutura unificadora, nenhuma lógica de processo, em que não existe o capitalismo e, portanto, nem a sua negação, nenhum projeto de emancipação humana. (WOOD, 2003: 225). A partir dessas considerações, a crítica ao marxismo em geral se coloca inconsistente. O avanço do conhecimento histórico social, longe de passar pela "destruição" das pretensões totalizadoras, requer, compulsoriamente, a retomada da totalidade concreta. Por isso, "[...] estamos convencidos de que, muito diferente do "estilhaçamento" da política, o que temos é a ampliação do campo da política. Ao contrário de "novos sujeitos políticos", que substituam os "velhos" sujeitos - como, por exemplo, o proletariado-, o que temos são sujeitos políticos renovados pluridimensionamente. Em lugar de "novas práticas sociais" temos uma práxis social com dimensões ignoradas. E muito mais do que "novos espaços políticos", o que temos são espaços políticos esquecidos na cotidianidade e que necessitam ser conectados a totalidade concreta, para que possam ser apreendidos" (EVANGELISTA, 1992:53). A discussão acerca da cidadania democrática há algum tempo incomoda a esquerda. Existia um pensamento de que a tendência natural às igualdades formais e jurídicas do capitalismo, combinadas com as desigualdades econômicas e a ausência de liberdade, estabeleceria uma contradição tamanha, que motivaria uma transformação socialista. Porém, hoje existe uma tendência de se pensar o socialismo como uma extensão dos direitos de cidadania, ou seja, de se pensar uma "cidadania radical" substituindo o socialismo, como parece ser a defesa de Boaventura de Sousa Santos. O termo democracia passou a representar todos os bens "extra-econômicos". Para muitos, os bens "extra - econômicos", tais como; emancipação de gênero, igualdade racial, paz, saúde ecológica e cidadania democrática, tomaram uma dimensão de extrema relevância nesse processo. Sobre isso, WOOD afirma que: [...] é necessário, em primeiro lugar, não ter ilusões acerca do significado e dos efeitos da democracia no capitalismo. Isso representa não somente a compreensão dos limites da democracia capitalista, o fato de que até mesmo um Estado capitalista democrático pode ser restringido pelas exigências de acumulação do capital, e o fato de que a democracia liberal deixa essencialmente intacta a exploração capitalista, mas também, e ainda mais particularmente, a desvalorização da democracia (WOOD, 2003: 233). Essas seriam algumas das implicações da separação capitalista entre a exploração econômica e as forças e identidades "extra-econômicas". No campo ideológico, percebe-se principalmente entre os teóricos "pósmarxistas", um sentimento de que a democracia capitalista deu importantes passos na busca de todas as formas de igualdade e liberdade, que a "economia" tem importância limitada na experiência de vida das pessoas, que a abertura política e as identidades são essenciais em nosso modo de vida ocidental. Para compreender essas relações, Wood explica que: [...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e opressões "extra-econômicas". Isso quer dizer que, embora o capitalismo não seja capaz de garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça, a conquista dessa emancipação também não garante a erradicação do capitalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma indiferença pelas identidades "extra-econômicas" torna particularmente eficaz e flexível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo. Enquanto nas sociedades précapitalistas as identidades "extra-econômicas" acentuavam as relações de exploração, no capitalismo elas geralmente servem para obscurecer o principal modo de opressão que lhe é específico (WOOD, 2003: 241). Assim, buscamos analisar nesse estudo as leituras que compreendem a sociedade de hoje como um emaranhado de identidades, fragmentando o conceito de classe, substituindo-o por identidades diversas, ignorando as contradições e não mais almejando a superação do sistema capitalista. Para nós, é fundamental entender a sociedade como uma totalidade concreta, na qual devemos sempre primar pela construção de alternativas para a elevação da consciência e organização da classe trabalhadora. Somente nessa perspectiva alcançaremos uma cultura política entre os movimentos sociais que de fato se proponha a superar a relação antagônica entre as classes e, para isso, o principal paradigma analítico no entendimento das contradições da vida social deve ser situado na tradição marxista, pois ou a transformação ocorre nas relações desiguais entre as classes – dominantes/dominadas – ou de fato não se ocorre uma transformação. Bibliografia ALMEIDA, Érica Terezinha Vieira de. Modernidade e Pós-Modernidade: Crise e Conservadorismo In Libertas / Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Serviço Social, v.2, n. 2 jul/dez/2002 – v.3, n. 1 e n. 2 jan/dez/2003. Juiz de Fora: UFJF, 2003. 97 – 114. ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. O Cultural e o Político nos Movimentos Sociais Latino-Americanos In Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. Belo horizonte: UFMG, 2000. 1557. BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. 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