P2 • Sexta-feira 23 Outubro 2009 • 13 a Mau m Medíocre mm Razoável mmm Bom mmmm Muito Bom mmmmm Excelente Crítica de Música Agradáveis surpresas do património musical português La Zaira mmm n De Marcos Portugal Coro e Orquestra Gulbenkian Jorge Matta (direcção). Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian, dia 17, às 20h. L’Angelica mmmmn De João de Sousa Carvalho Concerto Campestre e Quarteto Arabesco. Pedro Castro (direcção) Lisboa, Escola Superior de Música, dia 21, às 15h (repete hoje, às 21h30, na Igreja Matriz de Loulé). Num curto espaço de tempo, duas importantes obras do património musical foram objecto de primeiras audições modernas: a ópera La Zaira, de Marcos Portugal (17621830), realizada em versão de concerto na Gulbenkian, e a serenata L’Angelica, de João de Sousa Carvalho (1745-1798), estreada no Auditório da Escola Superior de Música de Lisboa. Foram apostas ganhas, que recordam a urgência de reabilitar o nosso imenso repertório. Marcos Portugal foi aluno de Sousa Carvalho e ambos professores de música da família real e compositores da Real Câmara, mas as obras representam também contextos e estéticas diferentes. La Zaira (1802) foi composta para o Teatro de S. Carlos depois de Marcos Portugal ter feito uma notável carreira internacional, enquanto L’Angelica foi destinada a uma celebração cortesã no Palácio da Ajuda em 1778, constituindo uma cantata dramática originalmente apresentada sem encenação. Inspirada na peça homónima de Voltaire, La Zaira acompanha as tendências das óperas prérossinianas e recorre por vezes a uma ambiência orientalista (o estilo conhecido como turquerie, patente no exotismo idealizado das percussões). As intervenções para coro masculino (cantadas com verve pelo coro), a profusão de conjuntos vocais e o colorido da orquestração contribuem para uma música exuberante, por vezes com um brilho teatral algo superficial, mas que se mostra a par das correntes da época e que ganharia com uma versão encenada. Dedicado à lendária Angelica Catalani, o papel titular é de um enorme virtuosismo, que a soprano espanhola María José Moreno superou com brio. O outro grande cantor da noite foi Aldo Caputo como Orosmane. Ângelo Scardina (Nerestano) tem um timbre metálico e pareceu preocupar-se mais com o exibicionismo vocal do que com a dramaturgia. Houve boas intervenções dos restantes (Rui Baeta, Joana Nascimento, Manuel Rebelo) e o público acolheu a obra com entusiasmo, mas no geral ficou-se à margem de uma visão mais reflectida e equilibrada no plano estilístico. Há porém que ter em conta que Jorge Matta substituiu à última hora o maestro Claudio Scimone. A abordagem de L’Angelica, com libreto de Metastasio, num projecto conjunto do Quarteto Arabesco e do Concerto Campestre, dirigido pelo oboísta Pedro Castro, foi bem diferente. Tanto os instrumentistas como os cantores (na sua maioria jovens) possuem experiência nas práticas de execução da música antiga e usaram instrumentos de época. Mostraram uma reveladora compreensão do idioma musical de Sousa Carvalho — a meio caminho entre a exuberância dos affetti barrocos e uma delicadeza anunciadora do estilo clássico — mesmo havendo ainda pormenores a aperfeiçoar. Entre os cantores destaca-se o elevado nível de Joana Seara (Angélica) e Lidia Curtis (Medoro) — o seu dueto Ah, non dirmi foi um belo momento, assim como as respectivas árias a solo — e Fernando Guimarães na tempestuosa intervenção final de Orlando. Mas seria injusto não referir também Luísa Tavares e Alexandra Moura. A inspirada veia melódica e variedade expressiva das árias e a insuspeitada riqueza dramática dos recitativos acompanhados de L’Angelica foi uma agradável surpresa. Espera-se que alcance um lugar no repertório e desperte a curiosidade pelas restantes serenatas da época, ainda inéditas. Cristina Fernandes