III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
PROCESSO DE FEMINILIZAÇÃO E A BUSCA PELA “BELEZA”
Marina Cápua Nunes1
RESUMO
Dentro do grande tema gênero e sexualidade, neste trabalho, pretende-se estudar a construção da
feminilidade a partir narrativas de vida de três pessoas, conforme elas mesmas se designam, trata-se
de uma travesti, uma transexual e de uma mulher transexual, pode-se dizer que são pessoas
assignadas como nascidas do sexo masculino e que se constroem naquilo que consideram feminino.
Entender-se-á como operam marcadores sociais da diferença causando entraves nesse processo de
construção da feminilidade. Utilizou-se da perspectiva da teoria performativa do gênero (BUTLER,
2003). Foi possível observar, ao longo da pesquisa que esses atores/informantes, associam os seus
“processos de feminilização” (VALE, 2005) pessoais à busca por beleza de uma maneira subjetiva
que reflete à busca de feminilidade que por sua vez não é padronizada ou estanque.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero, sexualidade, história de vida
1
Aluna da graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista do projeto “Os usos das
justiças do diálogo e a “produção de justiça”: uma análise da administração de conflitos de gênero e geração”
financiado pela FAPEMIG e orientado pela Profª Marcella Beraldo de Oliveira; [email protected]
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Introdução
Dentro do grande tema gênero e sexualidade, neste trabalho, pretendo estudar a construção
da feminilidade a partir narrativas de vida de três pessoas, conforme elas mesmas se designam,
trata-se de uma travesti, uma transexual e de uma mulher transexual, pode-se dizer que são pessoas
assignadas como nascidas do sexo masculino e que se constroem naquilo que consideram feminino.
Mais especificamente, por meio de entrevistas em profundidade e convivência com esses
informantes, que residem na cidade de Juiz de Fora-MG, nessas trajetórias de vida, busco
compreender não só o significado para esses atores da construção de seus corpos em busca da
feminilidade, mas também, como se dá essa construção, além de propor uma análise sobre como,
nesse processo de construção, marcadores sociais da diferença, como classe, raça e idade, operam
contextual e relacionalmente na produção de hierarquias.
Nesse trabalho não se pretende discutir as categorias acionadas por cada um desses atores
quando se designam, mas torna-se pertinente observar que fazem uso dessas designações por
considerarem, dentre outras coisas, que em suas trajetórias de vida houve um processo de
transformação de seus corpos por uma busca de feminilidade, seja pela ingestão de hormônios, seja
pela aplicação de silicone, seja pelo modo de se vestir, seja pelo uso de adereços como bijuterias ou
pela maquiagem, seja pela depilação ou por descolorir os pelos.
Por isso mesmo, para abranger essa experiência que todas as três têm em comum, fiz uso de
um termo, “pessoas assignadas como nascidas do sexo masculino e que se constroem naquilo que
consideram feminino”, que foi apropriado de Barbosa (2010) quando disserta, a partir de uma
etnografia das “Terças Trans” no Centro em Referência da Diversidade na cidade de São Paulo,
sobre “os usos das categorias transexuais e travestis”. Do mesmo modo, tal construção para o
feminino aqui chamarei de “processo de feminilização” de Vale (2005) por elementos considerados
femininos nas narrativas de “travestis e transgêneros” pesquisados por ele serem compatíveis aos
das pessoas do meu trabalho.
A abordagem que faço uso para o entendimento da feminilidade é aquela em que se constitui
como paródia sem um original e que demonstra a contingência da construção do gênero e, portanto,
seu caráter mutável e performático (BUTLER, 2003). Neste sentido foram estas as principais
questões que orientaram essa redação: Como essas pessoas pesquisadas representam seu processo
de construção e transformação para o que consideram feminino? Como esse feminino é praticado
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em atos e em experiências vividas por esses atores objeto de minha pesquisa, em outras palavras,
como representam o feminino na busca da feminilidade para a “estilização de seus corpos”
(BUTLER, 2003)? Destacar e entender os entraves nesse processo de construção da feminilidade
durante suas trajetórias de vida.
Foi possível observar, ao longo da pesquisa das histórias de vida desses atores/informantes
selecionados, que eles associam os seus “processos de feminilização” (VALE, 2005) pessoais à
busca por beleza de uma maneira subjetiva que reflete à busca de feminilidade que por sua vez não
é padronizada ou estanque. Indicam também que o acesso a esse processo fica cada vez mais
restrito quando a classe a que se pertence é baixa, também quando se é negra ou ainda quando
pertence a uma faixa etária mais elevada.
1 Referencial teórico metodológico
A abordagem para essas questões é qualitativa com base etnográfica. O recurso à história de
vida (BOURDIEU, 1996) pareceu-me o mais pertinente dado à possibilidade de conhecer as
atitudes dessas pessoas em seu passado referentes ao “processo de feminilização”, como a aplicação
do silicone. Recorri ainda à descrição densa (GEERTZ, 1978) para observá-las diretamente, a fim
de entender a continuidade desse mesmo processo em suas vidas e seus significados. Como
também, para entender a feminilidade como contingente, utilizo a perspectiva teoria performativa
do gênero (BUTLER, 2003).
Utilizei o recurso da história de vida inspirado em Bourdieu (1996, p. 183) para quem “Falar
em história de vida é pelo menos pressupor que a vida é uma história e que [...] uma vida é
inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma
história e o relato dessa história.” Por isso mesmo as entrevistas semi-estruturadas contemplaram
relatos de vida, mas sem perder de vista a observação de práticas cotidianas justamente por que
Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no
espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da
estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no
campo considerado. [...] O que equivale a dizer que não podemos compreender
uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos
do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas
que uniram o agente considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no
mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.2
2
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta M.; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. p. 190
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Portanto, não por acaso, na seleção dos agentes aqui estudados preconizei o envolvimento
deles com o contexto LGBT de Juiz de Fora. Bem como meu contato com Valéria e Beatriz fora
intermediado pelo grupo de pesquisa do qual faço parte, sendo que alcancei Brigite por meio de
Valéria, pois se conhecem de longa data. Convém destacar que Valéria e Beatriz têm uma relação
recente e fazem parte de um grupo de discussões do departamento de psicologia sobre a causa “T”.
Na análise do trabalho de campo, aproximei-me da corrente interpretativa da antropologia, em
especial do método etnográfico proposto por Geertz (1978) justamente porque conforme suas
palavras:
O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como já disse, auxiliar-nos
a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de
forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles.3
Logo o que será resultado dessa análise que proponho, não será mais que uma interpretação
de segunda mão, que oferecerá não uma conclusão ou uma verdade sobre o processo de construção
de identidade desses agentes analisados, mas uma contribuição ao entendimento da alteridade.
Quanto à abordagem de gênero recorro a Butler (2003) por compreender as categorias ou
condições acionadas por meus agentes não como um molde estanque, que substancia uma
identidade fechada, ou melhor, que fornece um sujeito pronto, porque se entende que “o gênero é
um “ato”, por assim dizer, que está aberto a cisões, sujeitos a paródia de si mesmo, a auto-críticas e
àquelas exibições hiperbólicas do “natural” que em seu exagero, revelam seu status meramente
fantasístico”. Assim o gênero é concebido como temporalidade social constituída, donde a
aparência de substância, ou melhor, a „ilusão de um eu‟ refere-se a “uma realização performativa
em que os próprios atores passam a acreditar, exercendo-a sobre a forma de uma crença”
(BUTLER, 2003, p.200) e que, portanto, não seria significado por um pré-discursivo corpo
sexuado.
Inclusive a própria noção de feminilidade “verdadeira ou permanente”; a que supostamente
as pessoas aqui observadas buscam, por meio das mudanças corporais, na verdade é „fantasística‟ e
colabora com uma estratégia para ocultar “o caráter performativo do gênero e as possibilidades
performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas
masculinista e da heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2003, p.200).
2 A pesquisa de campo: Valéria, Beatriz e Brigite
3
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.17
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As pessoas que pesquiso residem na cidade de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, cujo
calendário de eventos contempla, desde 1973 o concurso de beleza “Miss Brasil Gay” que premia o
candidato que mais surpreende os jurados na montagem de sua performance feminina. Com a
criação do Rainbow Fest, há quinze anos, por um casal de homens que dois anos depois fundaria o
Movimento Gay de Minas (MGM), o concurso passou a compor esse festival, realização LGBT
reconhecida nacionalmente.
Desde setembro de 2011 me dedico ao trabalho de campo, primeiro com um caráter
exploratório para selecionar as pessoas que eu pretendia estudar e, posteriormente, a partir de
novembro de 2011, com as reuniões e orientações do projeto de pesquisa do qual sou bolsista, fui
estabelecendo como foco da pesquisa de campo, a realização de entrevistas semi-estruturadas a
observação de práticas cotidianas, de caráter etnográfico com essas três pessoas selecionadas cujas
apresentações faço a seguir por nomes fictícios.
2.1 Valéria
O meu primeiro contato com Valéria foi num evento da universidade no qual ela participava
como militante em uma mesa redonda. Soube que ela viria por informações do meu grupo de
pesquisa, já estava pensando em entrevistá-la. Alta, pele negra, vestia um conjunto social preto com
calça comprida. Tem os olhos castanhos claros que combinam com o tom do cabelo negro e ao
natural e muito bem cortados. Toda vez me recepcionava com um espontâneo sorriso. Numa das
vezes que fui a sua casa vestia um macacão de malha azul que realçava suas longas pernas e sua
cintura, seios avantajados e quadril largo. Num de nossos primeiros contatos se designou como
“mulher transexual” e sempre se diz “negra”, tem 33 anos, desde seus 17 faz uso de hormônios
femininos. Reside em casa própria num conjunto habitacional popular, num dos bairros periféricos
da cidade. Atualmente faz parte da diretoria do MGM.
2.2 Beatriz
Conheci Beatriz no mesmo evento da universidade que conheci Valéria. Chamara minha
atenção pelo rosto esbranquiçado pelo pó de arroz usado para disfarçar a barba. Cabelos curtos,
brincos na orelha e um conjunto róseo de saia e blazer e uma sandália de tiras. Quando fui a sua
casa pela primeira vez parecia cansada, era de manhã, depois me confessou que não gosta de
acordar cedo. Sempre com uma voz leve de tom agudo, - cheguei a confundir com a voz de sua mãe
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por telefone uma vez - tive a impressão de estar triste aquele dia. Mas essa impressão foi
desfazendo-se ao longo do trabalho de campo, principalmente em um dia que fomos a um show de
samba em que ela dançou muito com seu short jeans e regata listrada de azul, em que despontavam,
pelo uso de hormônios, seus seios discretos. Ela se diz “transexual”, tem 30 anos, reside com os
pais e não exerce atividade remunerada, disse-me que parou de estudar por conta da perseguição
que sofria na escola. Desde o ano de 2007, é contemplada por um projeto na área médica de
urologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e aguarda na fila pela cirurgia de
transgenitalização que é oferecida gratuitamente pela instituição.
2.3 Brigite
Quando fui à casa de Brigite e a vi pessoalmente destacou-se a sua altura - quase uns dois
metros, só não me chamou mais a atenção que seus longos cabelos castanhos escuros. Estava à
vontade, era um domingo ensolarado, vestia um short estampado e uma blusa amarela que usava
sem sutiã que realçava toda a fartura de seus seios. Pele branca, mas morena pelo sol que, aliás,
pega de rotina à beira da piscina, quando também descolore os pelos das longas e definidas pernas.
Tem os olhos pequenos, nariz empinado por plástica. Assiduamente vai a academia de ginástica e
está de dieta, práticas que a fizeram perder cerca de dez quilos em um ano. Ela tem uma melhor
condição financeira que as demais, hoje conta com 45 anos, e se diz “travesti”. Desde 2006 compõe
a comissão de organização do “Miss Brasil Gay” e sua função é representar o evento nacional nos
níveis locais bem como realizar as contratações de shows. Também como Valéria, ela viveu na
Itália onde se prostituía.
3 Processo de feminilização e a busca pela “beleza”
Nas três narrativas de história de vida coletadas, “ser mulher”, apesar de a princípio indicar
um devir, também toma característica de essência. Brigite disse-me “eu me identificava mais com a
mulher sempre me vi como mulher e questionava isso para minha mãe”, ela sempre quis ter um
nome [de mulher] diferente e aos nove anos de idade resolveu copiar o nome da cachorrinha da tia.
Valéria, disse que quando se é criança não existe a preocupação de ser menino ou menina,
porque não somos cobrados. Comentou que “por volta dos 12, 13 anos, quando começa a
constituição como adulto, isso começa a doer”. Segundo ela era “afunilar”, era uma “lapidação”
esse momento. Mas sempre mencionava não ter “sido homem”, ser mulher para ela era “natural”,
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contou que quando tinha por volta dos seis anos: “um amiguinho veio me contando que tinha
descoberto uma coisa, e queria me mostrar. Daí ele chamou uma coleguinha e encostou o
„trequinho‟ na „coisinha‟ dela, então pensei na hora: Ah é assim, então onde eu estou nessa
história?”
Beatriz contou-me: “Fui me ver como mulher na puberdade. Quando criança era um
menino tímido, nasci no nordeste. Tinha vergonha do meu corpo com meninos, com meninas não.”
Narrou que num banho de mangueira durante a pré-escola, ao ter que trocar a “sunguinha” e
“biquininho” na frente de todos, ficou desnorteada em despir-se diante deles, disse-me depois de ter
contado o episódio: “Já estava aqui dentro!”
Na fala das três o termo “processo de feminilização” (VALE, 2005) não é acionado, não
existia da parte delas correspondente a ele, quando eu as interpelava referia-me por “processo de
transformação corporal” e elas me vinham contando sobre a prática de tomar hormônios, no caso
de Beatriz também o inibidor de testosterona, e Brigite e Valéria sobre a aplicação de silicone. Por
isso aqui tomei esse termo de Vale (p. 158, 2005) para quem: “Uma vez que o “processo de
feminilização”, via hormônio, silicone, e prótese, passa a ter lugar, um longo aprendizado de si tem
início”. Portanto, a apropriação do termo foi pertinente, por que os elementos como o silicone e o
uso de hormônios são equivalentes nas experiências de vida, tanto da minha pesquisa quanto na de
Vale (2005).
É preciso mencionar que se essa transformação corporal, quando passa a ter lugar na vida
dessas pessoas, corresponde ao início de um aprendizado de si, percebe-se que por Brigite e Valéria
terem começado a fazer uso de hormônio por volta dos 17 anos por conta própria, e logo depois
terem colocado silicone e prótese, elas já possuem mais conhecimento de si, cada uma
respectivamente com 45 e 33 anos de idade, se comparado à Beatriz. Porque, Beatriz, atualmente
com 30 anos de idade, só começou a tomar o hormônio conjugado ao inibidor de testosterona aos 26
anos, quando entrou no programa da UERJ, e, portanto, está no começo desse longo aprendizado de
si.
Devido a isso observei que enquanto as duas primeiras não se punham em dúvida quanto à
“sentirem-se mulher”, Beatriz além de grande parte de sua vida viver, como disse, “andrógena”, não
se considerava “normal”: “Meu corpo tá beleza... mas meu rosto (referindo-se à presença da
barba)... as pessoas me confundem como homem!”. Disse com relação ao mercado de trabalho que
não se encaixa nos padrões, deu o exemplo da oferta de emprego no Shopping: “Ou são meninas
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lindas ou homossexuais “estilosos”! Pessoas normais! Não estou me diminuindo, mas eu não sou!
Eu sei que eu não sou!”. Retomou logo em seguida a fala e posicionamento de sua psicóloga:
“Bruna você é uma mulher, se ame se permita viver como mulher, você pode namorar, ter amigos!”
A tendência de “ser mulher” o “processo de feminilização” ou “processo de transformação
corporal” aqui se trata da “estilização do corpo” tratada “como forma corriqueira pela qual os
gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu
permanentemente marcado pelo gênero” Butler (2003, p. 201) de forma que
Embora os significados de gênero assumidos nesses estilos parodísticos sejam
claramente parte da cultura hegemônica misógina, são todavia desnaturalizados
e mobilizados por meio daquilo que Butler denomina de “recontextualização
parodística”. De fato, se a feminilidade não deve ser necessariamente e
naturalmente a construção de um corpo feminino e se masculinidade não deve
ser necessariamente e naturalmente a construção cultural de um corpo
masculino é porque o sexo não limita o gênero e o gênero pode exceder os
limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Assim, longe de se limitar
a uma “pálida” ou “extravagante” imitação da “verdadeira mulher” ou da
“verdadeira feminilidade”, a experiência transgênero revela o modo de
produção do gênero, que é também aquele da feminilidade heterossexual. Todo
gênero, inclusive a masculinidade heterossexual, é uma performance de gênero,
ou seja, uma paródia sem original. É isso que nos diz “La Agrado”4, “uma
[pessoa] é tanto mais autêntica quanto mais se pareça com o que sonhou para
si5.
A “recontextualização parodística” ou “reaproriação parodística” para Butler (apud VALE,
2005) representa mais essa reinvindicação de um “ser mulher” do que “uma apropriação
colonizadora do feminino” dado também que
Masculinidade e feminilidade, longe de serem evidências da reação ao mundo,
são objetos de uma produção permanente de si pelo uso apropriado de
determinados signos: técnicas corporais, expressões de sentimentos, produção
simbólica do corpo, conformação a uma sensibilidade compatível... Essa
produção permanente de si supõe uma “leitura” mais positiva dessa
feminilidade detectada ou presumida. Para travestis e transgênero, o processo de
4
“La Agrado” é uma personagem do filme “Tudo sobre minha mãe” do cineasta espanhol Pedro Almodóvar.
Maluf (2002) diz que é um personagem que vai à “contramão” de outros filmes, que trazem a temática de pessoas que
constroem o seu próprio corpo, em uma “tensão: ou se é homem ou se é mulher, e a prova dos nove é o corpo
anatômico”. Assim nesta sua análise a autora expõe: “Ao contrário de grande parte desses personagens travestis
clássicos, a principal personagem travesti de Tudo sobre minha mãe, Agrado, não busca o ocultamento. Ela não faz de
conta que é mulher e que sempre foi. Sua afirmação pública é feita pelo que ele é: um corpo transformado, fabricado,
que se afirma como fabricado, não um corpo substantivo, objetificado, mas corporalidade, veículo e sentido da
experiência. A autenticidade desse corpo, segundo o próprio discurso de Agrado, sua “natureza” estaria no processo que
o fabricou. Ao dizer que o que tem de mais autêntico é o silicone, Agrado está revelando que o “autêntico” nela é
justamente produto de se sua criação, da intervenção de seu desejo, de uma agência própria.” (MALUF, p.145-146,
2002)
5
VALE, Alexandre Fleming Câmara. O vôo da beleza: travestilidade e devir minoritário. 2005. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós- Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2005, p.186
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feminilização implica numa identidade mais positiva de si que depois vem se
tornar um objeto de orgulho e, em alguns casos, de um devir.6
E justamente essa produção permanente de si que causa o orgulho e a autenticidade que faz
das três pessoas aqui estudadas portadoras de “beleza”, enfim quanto mais se aproximam do que
consideram feminino na transformação de seus corpos e em suas práticas mais se sentem bem
consigo mesmas e mais belas, quanto mais parecem com aquilo que sonharam para si. Isso é notado
nas experiências de cada uma.
Quando Beatriz ainda em sua “fase andrógena” fora convidada para uma festa de formatura
disse que não se sentia “adequada visualmente” (“ser mulher”) para ir de vestido como as amigas
então viu-se obrigada a ir de terno. Mencionou que achava a gravata um “símbolo fálico”, e que
vestir terno era o “ápice do masculino”. Ao provar o traje suas amigas disseram que ficara muito
bem e comentaram “que se era pra eu desmunhecar que eu desmunhecasse entre quatro paredes”.
Revelou que “a festa foi linda, mas me senti como um espantalho, horrível!”. Resolveu então a
partir dali usar definitivamente roupas andrógenas, comprou um tênis plataforma da Sandy e a usar
uma calça pantalona “que sentia que era uma saia, sempre fui romântica”. Passado um tempo
Beatriz buscou a possibilidade de submeter-se à cirurgia de transgenitalização e depois de muito
procurar alcançou o projeto da UERJ, o que a deixou desolada foi saber que o projeto não lhe
contemplaria com o laser para barba, mas passados cerca de cinco anos no processo da cirurgia,
hoje por meio da defensoria pública é a primeira transexual brasileira a conseguir a depilação facial
pelo SUS.
Valéria mencionou que quem lhe dera a coragem para “se assumir” foi uma colega do
colégio, que acabou tendo um fim trágico: “Ela foi assassinada quando tinha 16 anos, levou uma
facada de um cara na festa, porque ele descobriu que ela era trans”. Achava-a “linda”, quando
vinha caminhando “com o cabelo todo soltinho, como é que ela podia e eu não?”. Valéria contou
que definira sua “sexualidade" aos 14 anos, mas para “assumir” demorou mais uns quatro anos.
Contou que morava num morro, bairro de classe média de Juiz de Fora, e ao pé do morro havia uma
praça: “vesti uma blusinha uma minissaia, glitter dourado. Tinha meu cabelo raspado, coloquei
uns brincos de argola e desci morro. O povo da rua quando me viu batia palmas, gritava: „Eh! Isso
aí se assumiu! O Valério virou Valéria!‟. Quando cheguei na esquina, apesar de cantarem uma
música totalmente homofóbica (Um, dois, três: Viado não tem vez...), foi muito bom aquela
sensação deles estarem de mãos dadas com transexual numa roda.” Depois disso começou a usar o
6
Idem, p. 164
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hormônio e falou sobre como foi a aplicação de silicone em seu corpo: Daquele jeito todo errado!
Fundo de quintal da vizinha! Foi bombadeira mesmo! Mas hoje tá tudo direitinho... pelo menos
num deu problema não! Perlutan e eu temos um caso de afinidade de mais de quinze anos, todo dia
quinze do mês! O resultado é essa desgraça que você tá vendo! Mas pra mim tá bom! Eu mesmo
aplico direitinho! Porque quando fui ao médico ele quis me readequar, uma mulher, bonitinha,
limpinha, purinha!
Brigite como uma das organizadoras do Miss Brasil Gay me confirmou que uma regra
fundamental do evento que consistia em que somente poderiam concorrer rapazes transformistas
homossexuais, e estes rapazes não poderiam ter silicone, é questão de manter uma tradição do
concurso não ter peito o transformista. Comentou que “o peito o hormônio, prótese, isso indica
uma beleza que sobressai a outra” e completou: “A beleza do concurso é essa um rapaz com desejo
homossexual que se monta de menina”. Brigite não chegou à concorrer no Miss, porque se autodefinia como “travesti”, não “transformista”, apesar de ser grande vontade sua, quando “teve
condições” de disputar, no sentido do glamour e status, ela já havia feito mudanças, tomado
hormônio e aplicado silicone. Ainda manifestando-se sobre si, comentou sobre a cirurgia de
transgenitalização: “A operação não traria mudança na minha vida. É uma coisa muito pessoal...
mudar a genética, não cabe na minha cabeça. Pra mim o sentimento de homem e mulher tá na
cabeça de cada um. Aceito que vim dessa maneira, não é como fazer um peito, fazer um nariz.”
Assim como a personagem Agrado de Almodóvar, citada anteriormente, que descreve a
história de sua vida a partir da construção de seu corpo, que por sua vez, se deu por meio técnicas
corporais, como a plástica em seu nariz, as aplicações e próteses de silicone e as sessões de
depilação, as pessoas que pesquiso fazem sua reinvindicação de um “ser mulher” próprio e
autêntico.
A autenticidade desse corpo, segundo o próprio discurso de Agrado, sua „natureza‟
estaria no processo que o fabricou. Ao dizer que o que tem de mais autêntico é o
silicone, Agrado está revelando que o autêntico nela é justamente produto de sua
criação, da intervenção de seu desejo, de uma agência própria.7
Da mesma forma que Agrado, que se apropria de determinados signos, na ação de criação de
seu corpo, Beatriz também o faz com a sua expressão de um sentimento de “ser romântica” por seu
anseio à neovagina e a retirada da barba. O mesmo ocorre com Valéria, na sua aplicação de silicone
7
MALUF, Sônia Weider. Corporalidade e desejo: Tudo Sobre minha mãe e o gênero na margem. Revista
Estudos Feministas, 2002, ano 1, p.143-152, p.146
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realizada pela “bombadeira”, no uso contínuo do hormônio desde os 17 anos por conta própria, que
a permitiram a “estilização de seu corpo”, para a qual, segundo ela, não necessitava uma
“readequação médica” que seria à cirurgia de transgenitalização para ser “uma mulher, limpinha e
purinha”. E também acontece com Brigite, que como Valéria não vê necessidade de “mudar a
genética”, referindo-se a mesma cirurgia, e que ressalta “o sentimento de mulher está na cabeça” e
“fazer peito e fazer nariz” já a deixa satisfeita na reivindicação de “ser mulher”.
Retomando a ideia de Butler (2003) esse “processo de feminilização”, portanto, não é uma
busca de uma “feminilidade verdadeira” típica, ou essencial da “mulher” , ao contrário, tal processo
demonstra a construção mesma de feminilidade, na qual signos comuns são compartilhados como a
depilação dos pelos e outros não como a “mudança de sexo” . E é possível perceber por suas
histórias de vida a relação desta construção de feminilidade com a “beleza”, como se sentiu Beatriz
“horrível” vestida com trajes que remontavam o “ápice do masculino”, e Valéria que se encantou
pelo “cabelo todo soltinho” da amiga que lhe inspirou à decisão de tornar-se mulher transexual
como ainda Brigite que considera que o candidato do Miss Brasil Gay que tivesse silicone nos seios
se sobressairia aos demais.
4 Marcadores sociais da diferença no processo de feminilização
A personagem Agrado além de listar todas as técnicas que fez uso na transformação de seu
corpo, também mencionou quanto cada uma lhe custou, até mesmo para dar o sentido de
propriedade sobre seu corpo autêntico – e não foi barato. Uso esse exemplo para ilustrar que o
processo de feminilização depende de técnicas corporais cujo valor muitas pessoas não podem
arcar. E, ainda, o efeito dessas técnicas é mais lento quanto mais idade se tem como é o caso do uso
dos hormônios. Outro aspecto notado sobre esse processo de feminilização é que ele exige mais das
pessoas negras já que o padrão brasileiro de beleza feminina não preconiza essa raça.
O próprio silicone que modelou o corpo de Valéria foi uma aplicação de “fundo de quintal”,
pela falta de recursos mesmo de bancar uma clínica estética para fazer o procedimento. Outro ponto
é que todas convergem em relacionar os pelos corporais, seja barba ou “chuchu” para Valéria, ou
das pernas à masculinidade, portanto desfazer-se deles por procedimentos estéticos, seja por
depilação convencional ou laser, ou por “descolorir” ou pelo uso de hormônios é adquirir
feminilidade.
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Brigite diz ter parado de usar os hormônios por que já fez depilação a laser e o hormônio lhe
tira a libido, e também quando fomos à sua manicure reclamou de não ter podido “descolorir” pelos
da perna a tempo de ir para a academia de short. Valéria ao me contar que conheceu “mulheres
mesmo” que têm “chuchu” (barba) me disse que “nem ligam”, enquanto ela realiza sessões
periódicas a laser para se desfazer do seu. Ela acha “babado”, ou seja, o cúmulo do absurdo, quando
tem pelos de barba no seu rosto, ela conta os fios que nascem e quando chega ao número quinze
marca a sessão. E ainda continua a tomar hormônios para a manutenção do crescimento dos pelos.
Beatriz é a mais emblemática neste aspecto disse pra mim que estava satisfeita com as
modificações de seu corpo para a forma feminina, devido ao uso do inibidor de testosterona e o
hormônio, mas revelou olhando para as pernas com um resquício de pelos e falou com uma cara de
desânimo: “Apesar de hoje eu estar um caco... minhas pernas estão com pelos e a barba tá aí! O
laser é muito caro e o programa não oferece. Ele oferece órgão sexual feminino, silicone...” e
também, conforme suas palavras, após a cirurgia a retirada do pomo de adão.
Aqui também existe uma diferença de status entre aquelas pessoas que têm acesso ao
mercado estético que as privam de características masculinas. Ao comprarmos Beatriz e Brigite, a
primeira se incomoda com sua barba e reclama não ter condições financeiras de se ver livre dela,
enquanto a outra diz que não tem como impedir a depilação facial a laser entre os candidatos ao
Miss Brasil Gay, por hoje em dia ser muito acessível.
O envelhecimento para Brigite é um entrave, a começar não quis fornecer sua idade, faz
botox a cada três quatro meses. Houve uma situação na casa de Brigite em que fui entrevistá-la e ela
também tinha marcado com amigas que vendiam roupas, se tratavam de mãe e filha, de irem levarlhe peças que podiam lhe interessar. Durante a prova das roupas as três conversaram sobre um
amigo (que em sua fala omito o nome) em comum sobre quem Brigite falou: “Cicrano? Tá
parecendo a Lecy Brandão, você conhece a Lecy Brandão?! Tá querendo ser mulher depois de
velho, depois de 40 anos. Vamô combinar há vaidades que precisa de um limite”.
Valéria contou que, “nem é beleza, é a aparência, 30% é beleza e 60% aparência”, e além
de se sobressaírem, as brancas são mais imponentes que as negras, ela falou como as “profissionais
do sexo” com que convive se referem a ela: “A única preta que a gente aceita é você Valéria,
porque é bonita!” Revelou que o lugar destinado à prostituição das negras e das feias é o Terreirão
do Samba “onde é mais escuro”.
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Como já mencionei Brigite e Valéria se sentem plenas por suas feminilidades alcançadas, e
em nossos encontros na rua era possível observar que os transeuntes tinham ao notá-las um
comportamento diferenciado com relação à Beatriz que conforme ela mesmo diz “me confundem
como homem”, e para ela uma consequência disso, desse processo de feminilização “ïncompleto”
no qual ela não se acha “adequada visualmente” é não conseguir um emprego como os atendentes
do shopping a que se refere como “Ou são meninas lindas ou homossexuais “estilosos”!”
Beatriz e Valéria chegaram a viver um conflito no grupo de discussões que faziam parte
sobre a “causa T”, foi com relação a barba da primeira. Estavam numa das reuniões em que foi
proposto um cartaz para a propaganda do “Dia da Visibilidade Trans”, a imagem era de uma mulher
com barba, prontamente Beatriz se indignou, “que coisa horrorosa” e disse que não se sentia
representada por aquela figura, porque ter barba ainda não a fazia se sentir bem. Valéria retrucou
esse posicionamento da colega dizendo que se ela quisesse já teria “dado um jeito” naquela barba,
disse para ela que a depilasse com cera, já que não tem dinheiro para o laser. Beatriz ofendida
argumentou com firmeza que tinha a pele sensível e que por isso ainda não o fizera e deixou a
entender que Valéria conseguira fazer o laser porque se prostituíra, ao que respondeu que não se
arrependera.
Brigite não se envolve com a militância, e hoje em dia considera “mais chocante para os
pais o uso de drogas que a homossexualidade ou ser travesti”. Mas tem sua participação na
organização do Miss Brasil Gay, considera ter uma “vida pública” sua tarefa no concurso é
contratar shows a preços mais acessíveis, “graças à minha amizade com muitas pessoas dado meu
carisma e o meu envolvimento com o evento de muito tempo”. Ela em um fôlego só me contou
sobre seus “procedimentos estéticos”: “A primeira coisa que eu fiz foi limpeza de pele porque eu
tinha muita espinha, depois fui pro endócrino e passei a tomar hormônios. Depois fiz aplicação de
silicone injetável o metacrilato. Daquele que é móvel que tem possibilidade de se espalhar, mas
graças a Deus eu fui num ótimo profissional e não tive problemas, eu quis até fazer de novo, mas a
médica me desaconselhou. Essa primeira vez eu fiz bunda, perna e quadril, depois que fui para
Europa voltei com condição financeira melhor e pude fazer os seios, com prótese mamária mesmo.
A partir daí fiquei meio obcecada, né? Aí você já viu... fiz gogó e nariz, fiz os dois juntos de uma
vez e aproveitei para fazer o lábio. Levantei o lábio superior... é porque não queria injetar nada
porque fica duro. É porque aproveitei pra fazer tudo junto, por que... você tá entendendo? (com as
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pontas dos dedos puxou a pele do buço para junto do nariz demonstrando como foi o procedimento)
Ele pega aqui e traz pra junto da base do nariz”.
Não existe para elas uma diferenciação entre o processo de feminilização e o uso dos
procedimentos estéticos, justamente porque a busca por feminilidade para elas reflete uma busca
constante por “beleza”. Neste sentido, esses marcadores acabam criando hierarquias entre essas
pessoas que passam pelo processo de feminilização, porque o acesso aos procedimentos estéticos
são limitados por critérios de classe, geração e raça. E essa hierarquia, ainda que esse processo de
construção se perpetue, tem por base aquelas pessoas que já estão adequadas à transformação que
desejavam como Valéria e Brigite e aquelas que ainda aguardam como Beatriz.
Considerações finais
Interessou neste trabalho pesquisar como, Valéria, Beatriz e Brigite, “pessoas assignadas
como nascidas do sexo masculino e que se constroem naquilo que consideram feminino”,
representam seu processo de transformação. E ainda, saber como esse feminino é praticado e
representado por elas. Como também destacar e entender os entraves nesse processo de construção
de feminilidade durante suas trajetórias de vida. Foi possível observar que a representação dada por
elas a esse processo, permeia um “aprendizado de si” conforme à “estilização de seus corpos” à
maneira que sonharam para si, considerada autêntica e provida por técnicas corporais em grande
medida, as fazem se sentir mais “belas”.
O feminino é praticado e representado numa relação à busca de feminilidade, que conforme
Butler (2003) ressalta, não se trata de uma “apropriação colonizadora do feminino” é uma
“reinvidicação de um ser mulher” que se dá pelo uso de determinados signos como os seios de
silicone de Valéria e Brigite, ou à vontade pela neovagina de Beatriz e, também, desfazer-se dos
pelos corporais anseio de todas.
Os entraves desse processo de feminilização estão relacionados a critérios de raça, geração e
classe, dado que o ideal de beleza brasileiro não prioriza as negras, dessas se é maior a exigência de
uma aparência feminina que das demais; dado também que os procedimentos para a transformação
inclui a ingestão de hormônios, por exemplo, o processo é mais lento e não tão eficaz e ainda o
acesso mesmo às técnicas estéticas é restringido pelo valor de custo dos procedimentos.
Não existe para elas uma diferenciação entre o processo de feminilização e o uso dos
procedimentos estéticos, justamente porque a busca por femilinilidade para elas é uma busca
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constante por “beleza”. Neste sentido, esses marcadores acabam criando hierarquias entre essas
pessoas que passam pelo processo de feminilização, porque o acesso aos procedimentos estéticos
são limitados por critérios de classe, geração e raça. E essa hierarquia, ainda que esse processo de
construção ainda se perpetue, tem por base aquelas pessoas que já estão adequadas à transformação
que desejavam como Valéria e Brigite e aquelas que ainda aguardam como Beatriz.
A partir desta análise produzida pode-se, em futuras pesquisas, partir para outros aspectos
como, por exemplo, o estabelecimento de estigmas sociais em relação às pessoas que não puderam,
por conta dos entraves causados por esses marcadores, constituir um corpo, uma aparência que
almejavam na busca pela feminilidade, para uma constatação se o preconceito advém do fato dessas
pessoas ultrapassarem o criticado binarismo masculino/feminino, natureza/cultura, ou por suas
“transformações incompletas”.
Sem a pretensão de apontar conclusões sobre a pesquisa, gostaria de contribuir para o debate
sobre construção de identidades, afirmando-a como um processo de significação fluído e que se
perfaz na trajetória das práticas cotidianas dos sujeitos analisados. Esse processo ocorre a partir da
análise das relações sociais que vão se estabelecendo produzindo contrastes e diferenciações em
cada contexto vivido.
Referências
BARBOSA, Bruno Cesar. Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e
transexual. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós- Graduação em
Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta M.; AMADO, Janaína (Orgs.).
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. P. 183-191.
BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MALUF, Sônia Weider. Corporalidade e desejo: Tudo Sobre minha mãe e o gênero na margem.
Revista Estudos Feministas, ano 1, 2002, p.143-152.
PELÚCIO, Larissa Maués. Travestis, a (re) construção do feminino: gênero, corpo e sexualidade
em um espaço ambíguo. Revista Anthropológicas, ano 8, 2004, volume 15(1): 123-154.
VALE, Alexandre Fleming Câmara. O vôo da beleza: travestilidade e devir minoritário. 2005. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós- Graduação em Sociologia, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2005.
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