O MITO DA CRIANÇA NA OBRA DE DORA FERREIRA DA SILVA Gabriela Alves Silva (graduanda em letras UFU/FAPEMIG) [email protected] Resumo As obras de Dora Ferreira Da Silva são marcadas pelo uso de recursos arquetípicos, através do mito, com riqueza de simbologia e imagens. Dentre seus recursos arquetípicos, encontra-se o arquétipo da criança, que já é trabalhado nos primeiros versos de Andanças (1970) e também em sua obra Cartografia do imaginário, de 2003. Na orelha desse livro, a poeta explica o incentivo recebido de seu amigo Carlos Drummond de Andrade a desenvolver mais poemas com a temática da infância. Recorro ao poema “Descoberta de Osíris”. Para desenvolver o tema da infância na poeta paulista,terei como apoio teórico as reflexões de Gaston Bachelard, Carl Gustav Jung, Dora Ferreira Da Silva, e o estudo de Enivalda Nunes Freitas E Souza. A metodologia que será usada para execução do artigo constitui pelos embasamentos teóricos da mitocrítica. Palavras-chave: Poesia, Mito, Infância, Arquétipo, Dora Ferreira da Silva. Dora Ferreira Da Silva, conferencista, ensaísta e tradutora brasileira. Ganhou três prêmios “Jabuti” (1970, 1996 e 2004), e em 2000 recebeu o prêmio “Machado De Assis”, da Academia Brasileira de Letras, por sua obra Poesia reunida. A poeta foi esposa do Filósofo Vicente Ferreira Da Silva, com quem teve dois filhos Luiz Vicente Ribeiro Ferreira Da Silva e Inês Ferreira Da Silva Bianchi. Ao lado de seu esposo fundou – no ano de 1955 – a revista Diálogo. E após a morte de seu esposo, Dora instituiu a revista Cavalo Azul no ano de 1964 para 1965 (não há precisão de data). Como ás poesias de Dora são marcadas pelo uso de recursos arquetípicos, recorri às obras de Carl Gustav Jung O Homem e seus símbolos e Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Para Jung, arquétipo é aquilo já existente: O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta (JUNG, 2008, p. 17). Para Jung, o arquétipo está presente no nosso inconsciente, é um conjunto de imagens psíquicas que ocorrem no nosso inconsciente, e esse conjunto de imagens psíquicas dá origem ás fantasias individuais. A obra Cartografia do imaginário (2003) tem como tema central o mito da criança. Para Dora, o mito vem do que há de mais profundo da pisque, que ocorre quando dormimos e sonhamos. Segundo o estudioso Mircea Eliade (1972), o mito narra histórias sagradas, que explicam, a partir dos tempos primordiais, por que o homem se converteu no que ele é hoje. Durand, pautando-se em Eliade, define o conceito de mito: Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. (DURAND, 1997, p.62-63) Quanto ao mito da criança, Dora foi incentivada por seu grande amigo Carlos Drummond de Andrade, conforme explica na orelha de Cartografia do imaginário: Talvez a novidade mais antiga do presente livro esteja em sua parte intitulada DO OUTRO LADO DA RUA, cujo motivo é a mitologia da infância. A rua, com carrocinhas e carroções e o saudoso “carrão” vermelho e perigosíssimo não era atravessável. As mães proibiam. Tratava-se de uma espécie de rio Lete e o barqueiro era a imagem do atropelamento fatal. Do OUTRO LADO ficavam os meninos, alguns tinham nomes misteriosos como Osíris, e a labilidade com que aparecia e desaparecia a um grito da mãe, egípcia, empregada do quarto andar do arranha-céu ali defronte. Esta parte do livro é dedicada ao MENINO ANTIGO, Carlos Drummond de Andrade e a ele dedicada. Foi este grande poeta e amigo que me instigou a abordar mais longamente o tema da infância, disperso em outros livros meus. Ele pressentia que neste tema eu encontraria um tesouro. Será? (SILVA, 2003, orelha). Para melhor compreensão desse tema, recorri ao autor Gaston Bachelard, em sua obra A Poética do devaneio (1988), da qual destaco um trecho sobre o arquétipo da criança. Nos devaneios ligados á infância, nos poemas que gostaríamos de escrever parar reviver nossos sonhos primeiros, para nos devolver o universo da felicidade, a infância aparece, no próprio estilo dapsicologia das profundezas como um verdadeiro arquétipo, o arquétipo da felicidade simples(BACHELARD, 1988, p. 118.). Para esse estudioso, as fantasias criadas na infância são o motivo que realiza a unidade da poesia. O autor fala também do arquétipo da criança, como um arquétipo da felicidade simples. Esse arquétipo tem a referida ligação, pois, diferentemente de um adulto, que é egocêntrico, vaidoso, ambicioso, á criança não necessita de nada disso. A criança é inocente, tudo para ela é motivo de alegria. Coisas simples, pequenas atitudes, fazem uma criança sorrir. Em meio aos problemas, notamos que a criança está ali sorrindo, pois é inocente, e com um abraço tenta nos alegrar. É por esse motivo que o autor relaciona a infância com o arquétipo da felicidade simples. Por outro lado, a criança é sempre uma promessa a se cumprir. Em relação ao símbolo, na obra O homem e seus símbolos (2008), Carl Gustav Jung conceitua o símbolo: O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. (JUNG, s. d, p.21). Para analisar melhor sobre o símbolo, extrai a primeira estrofe do poema “Assim como toda menina”, do livro Cartografia do imaginário: Assim como toda Menina brinca envolta em chales de seda encontrados nos porões... Assim como toda Menina brinca rainha do seu sonho cercada de leões e pavor mas certa porém e sempre de um cavaleiro de Amor, assim brincava a Menina despertar no seu torpor o sonho dando-lhe a música do silencio ou do que for.... (SILVA: 2003, 44) Esses versos descrevem a brincadeira da menina, o lugar por sua vez é um porão. O porão é um símbolo de um lugar escuro, tenebroso, cheios de ratos, um lugar em que as pessoas guardam fotos e coisas de seus antepassados, um lugar sujo, cheios de poeiras, um lugar sombrio, e no porão é onde acontecia a brincadeira da menina. O porão é o espaço do inconsciente, que é cercado por leões. O cavaleiro do amor que ira salva- lá tirando daquele lugar e matando os leões é então a vitória do consciente sobre o inconsciente. A seguir, analiso o poema “Descoberta de Osíris” para mostrar a relevância do tema da infância na poeta, que agora o associa a um mito egípcio. Descoberta de Osíris Osíris Osíris – do alto a Mãe gritava (No horizonte o Sol desaparecia) Osíris – Menino brincando da calçada e Osíris se chamava. Amei o nome o modo diverso com que se detinha ou andava. Chutava a bola? Tinha um perfil transposto de cor tão bela, entre ouro e areia. Do quarto andar – do alto – ela o chamava como um pássaro feroz: falcão, talvez abutre. O que em mim bulia a esse novo som àquela beleza de semente aos finos cabelos, plantas aneladas de beira rio? O que em mim sabia o novo e tão distante? Ele olhava o quarto andar, o grito, eu o olhava. Mas Osíris se evolara. (SILVA: 2003, 42) O nome Osíris significa muitos olhos, representando os raios de sol. Osíris era um deus que foi morto e teve seu corpo destroçado por seu inimigo. Sua esposa Isis cuidadosamente junta cada parte que foi destroçada. No poema Descoberta de Osíris, DFS contempla o deus de renascer naquela criança que joga bola. O menino Osíris está naquele momento cumprindo as promessas de uma vida eterna que vai além da morte. No IV verso, destaca-se o nome da criança – “Amei o nome”, porque, desperta na poeta o mito, pois o nome Osíris remete ao deus egípcio. Em seguida, no VII verso, a DFS destaca o perfil da criança – um perfil, “transposto”, ou seja, a transposição do “deus do sol” para a figura do menino Osíris. Na última estrofe, a criança é arrebatada pela força do mito, lançada ao illud tempus. No artigo “A hierofania do inconsciente e o arquétipo da criança em Dora Ferreira Da Silva”, SOUZA explica sobre o illud tempus: Na ternura do quadro fora do tempo e do espaço, em que criança e poeta são lançados ao illud tempus, esta arrebatada pela força do mito e aquele pelo encanto da brincadeira, o grito da mãe, que vem do “alto” do quarto andar, desfaz a delicadeza e perenidade do instante. Mensageira do tempo profano – poeta e criança vivem o tempo sagrado– a mãe é um “pássaro feroz”, mais para a categoria dos não ascensionais – “falcão, talvez abutre.” – uma vez que o abutre, por ser ave de rapina, tem inclinação natural para os sobejos dos espaços terrenos, opondo-se à verticalização sublimadora da viagem onírica em que se lançam poeta e criança. (SOUZA: 2009,3) Quero destacar, ainda, imagens do poema. Nos primeiros versos o menino Osíris brincando ao pôr do sol. Essas imagens acentuam no poema as questões temporais e espaciais de um distante que se faz novo e presente. Já a imagem de Osíris, o deus egípcio da terra e de toda vegetação, e posteriormente senhor da vida após a morte, se relaciona aos vegetais e aos rios, pois foi entre os juncos do Nilo, que sua esposa Isis oculta seu corpo despedaçado. A criança é vista como uma força redentora e libertadora, e nos últimos versos, a imagem da semente, da planta, da água, e da criança, remete a um ciclo vital, a esperança do renascimento. Quanto ao tempo,á criança associa o passado e o presente (o “novo e o tão distante”), / o deus era um Menino//. (SILVA: 2003, 53). Finalizo retomando sobre o arquétipo da criança, que em muitos lugares é conhecido como uma força libertadora e redentora. Osíris é, no poema, uma criança que tem essa força de libertação da morte, além disso, ele cumpre a promessa de uma vida depois da morte, a vida eterna. A criança mítica no poema é uma projeção do inconsciente coletivo, ou seja, a vontade de vencer o tempo, presente no homem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva, São Paulo, 1972. JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva e Maria Luiza Appy. 6ª edição. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d SILVA, Dora Ferreira Da. Cartografia do imaginário. São Paulo: T.A.Queiroz, 2003. SOUZA, Enivalda Nunes Freitas. Flores de Perséfone: a poesia de Dora Ferreira da Silva e o sagrado. Goiânia/Belo Horizonte: Cânone/FAPEMIG, 2013. SITES CONSULTADOS http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/wpcontent/uploads/2014/04/silel2009_gt_lt10_artigo_2.pdf