Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-graduação em História Social Dissertação de Mestrado MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez (1663-1666) Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho ORIENTADOR: Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki Rio de Janeiro 2009 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez (1663-1666) Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História. ORIENTADOR: Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki Rio de Janeiro 2009 CARVALHO, Daniel Pimenta Oliveira de. Mais na opinião que nas forças: Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez/ Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009. Orientador: Carlos Ziller Camenietzki Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de PósGraduação em História Social, 2009. Referências Bibliográficas: pp. 181-189 1. Mercurio Portuguez. 2. Política – História – Portugal – Século XVII. 3. Imprensa – Discurso político. MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez (1663-1666) Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho Orientador: Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Aprovada por: ______________________________ Presidente, Prof. ______________________________ Prof. ______________________________ Prof. Rio de Janeiro Maio de 2009 Para Mariana, minha esposa, companheira destes meus anos de estudo e trabalho, e de todos os mais que virão. AGRADECIMENTOS Ao término deste nem tão longo, mas certamente atribulado período de estudos em que foi produzida esta dissertação, é necessário agradecer a todos aqueles que contribuíram, das mais diversas formas, para que eu o pudesse atravessar. Agradeço em primeiro lugar à orientação, dedicação e companheirismo que pude encontrar, desde o tempo da graduação, em Carlos Ziller Camenietzki, professor que não só acompanhou meu desenvolvimento acadêmico, como também, e principalmente, me fez entender a importância e a necessidade do estudo da História. A João Luis Ribeiro Fragoso, que esteve presente em minha banca de qualificação, devo também, além dos preciosos questionamentos postos na ocasião ao meu trabalho, importantes aprendizados sobre a História Moderna. A Rodrigo Bentes Monteiro, que esteve na mesma ocasião, agradeço o cuidado com que leu meu trabalho, as sugestões que me ajudaram a melhor encaminhá-lo, e a disposição em participar agora também da banca de defesa desta dissertação. A Norma Côrtes, agradeço por ter aceitado participar também desta última banca, e contribuir assim para este novo começo em minha trajetória de estudos. Não posso deixar também de referir aqui o apoio dos amigos, muitos dos quais conheci justamente por me emaranhar nos estudos da História. A eles, agradeço por todas as conversas, trocas, dicas e debates, travados nos laboratórios, salas de aula, e outros ambientes menos acadêmicos. À minha família, agradeço, mais uma vez, pela justa medida entre educação e liberdade, e por me ensinar desde cedo os valores que espero nunca conseguir abandonar. À minha esposa, Mariana, com quem vou construir de hoje em diante minha própria família, agradeço o cuidado, o carinho, e a paciência. RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise do Mercurio Portuguez, publicação mensal escrita por Antonio de Sousa de Macedo, um dos principais personagens da política portuguesa do século XVII, àquela altura secretário de Estado no conturbado reinado de D. Afonso VI em Portugal. Publicado por Macedo entre 1663 e 1666, Mercurio voltava-se para a divulgação das notícias do reino, principalmente relativas à guerra da Restauração, e para a afirmação do novo governo. Através do levantamento das principais questões e posições trazidas pelo periódico, esta análise pretende evidenciar o discurso e as práticas políticas do seu autor e do grupo ao qual se associou, e que marcou de forma tão acentuada este período final da Restauração portuguesa. ABSTRACT The aim of this work is to present an analysis of “Mercurio Portuguez”, a monthly publication written by Antonio de Sousa de Macedo, one of the main characters of the Portuguese politics in the 17th century, at that time the Secretary of State of the troubled reign of D. Afonso VI in Portugal. Published by Macedo between 1663 and 1666, Mercurio´s purpose was to publicize the news of the reign, especially those related to the Restoration’s War, and to the establishment of the new government. Throughout the research of the main questions and positions brought by the periodical, the analysis intends to evidence the speech and political practices of the author and of the group to which he was associated with which marked in such an accentuated way the final period of the Portuguese Restoration. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 10 2 AS PRIMEIRAS BATALHAS DO MERCURIO PORTUGUEZ 34 2.1 EXPECTATIVAS DE PAZ, EM TEMPOS DE CONJURAÇÕES 42 2.2 A PRESSÃO DESDE A FRONTEIRA: DOS RUMORES AOS TUMULTOS 56 2.2.1 Os impactos da perda de Évora 60 3 OS FERVORES DE MARTE, SOB A PENA DO MERCURIO 68 3.1 DISCURSOS SOBRE A GUERRA COTIDIANA 70 3.1.1 Nem tão menores: a valorização dos feitos militares de pequeno porte 71 3.1.2 Uma guerra vil e covarde: a depreciação das investidas inimigas e a transformação do discurso sobre saques e razias 80 3.2 DO DESENROLAR DA GUERRA, E SUAS MAIS VULTOSAS NOTÍCIAS 92 3.2.1 Após a queda de Évora, a bravura e a superação portuguesas 92 3.2.2 Da superação à superioridade: a defesa da guerra ofensiva e o discurso sobre o recuo castelhano de 1664 100 3.2.3 A última ameaça: a detração sistemática do empenho inimigo 110 3.3 AS NARRATIVAS DA BATALHA DE MONTES CLAROS, E A VALORIZAÇÃO DE UMA ÉPOCA 115 4 AS NOVAS DO DISCURSO POLÍTICO 123 4.1 O GOVERNO DA GUERRA 133 4.1.1 A nova forma de provimento: guerra, finanças e governo 136 4.1.2 Os prognósticos do bom governo 145 4.2 ESTADO E DISCURSO, POLÍTICA E TIPOGRAFIAS 155 5 CONCLUSÃO 176 6 REFERÊNCIAS 181 1 INTRODUÇÃO Enfim, senhor, eu tomara ver este discurso de V. S.ª impresso com letras de ouro, e que falaram pelo estilo dele os do nosso desgraçado Mercúrio, tão pouco ponderado no que diz, como no que não diz.1 Antonio Vieira, carta a D. Rodrigo de Meneses, 26 de maio de 1664. As cartas escritas pelo padre Antonio Vieira constituem, de fato, um inestimável painel da história portuguesa do Seiscentos, através do qual se divisa todas as principais questões debatidas e vividas em seu tempo. Ainda hoje, passados já quatro séculos do nascimento do insigne jesuíta, e as milhares de obras que buscaram desde então exaltá-lo, combatê-lo, ou interpretá-lo, surpreende a infinidade de assuntos trazidos à tona pela leitura de sua correspondência, índice da intensa participação de seu autor nas mais diversas conjunturas históricas, todas determinantes para a construção do Portugal e do Brasil da era moderna. De tal modo que, qualquer estudo que pretenda debruçar-se sobre o período marcado por sua trajetória, corre o risco de tomá-la como horizonte ou ponto de partida de sua investigação. O segundo caso, como se nota, é o deste que agora se inicia. Tamanha era a contumácia de Antonio Vieira em participar e intervir diretamente nos meandros da política de seu tempo, que mesmo desterrado da corte, vivendo entre achaques e sangrias, e já em meio ao processo inquisitório que em breve o trancaria nos cárceres do Santo Ofício de Coimbra2, não se eximia de comentar os principais acontecimentos, celestes e terrenos, futuros e presentes, pelos quais o destino de Portugal e seu império lhe parecia condicionado. Em seu epistolário de setembro de 1662 ao mesmo mês de 1665, Vieira informava seus destinatários sobre o andamento de seus escritos proféticos, discutia os mais recentes prognósticos astrológicos, inquiria e aconselhava a respeito das estratégias militares adotadas pelo exército português na guerra travada contra Castela, e, eivado da dissimulação peculiar ao exercício da política seiscentista3, articulava os métodos e expectativas da 1 VIEIRA, António. Cartas. org. de João Lúcio de Azevedo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. v. 2, p. 57. 2 Para a trajetória de Vieira, seguimos, principalmente: AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. 3ª ed. Lisboa: Clássica Editora, 1992. 2 vols. 3 A prática da dissimulação era tema corrente nos escritos sobre política do século XVII, elemento crucial do debate acerca da Razão de Estado. Justo Lipsio, por exemplo, incorpora a dissimulação como uma prática 11 oposição política de que fazia parte; seus correspondentes, alguns desterrados como ele, eram todos opositores, mais ou menos declarados, do governo de D. Afonso VI, iniciado pelo golpe palaciano que, em junho de 1662, pôs fim à regência de D. Luísa de Gusmão. Já passadas mais de duas décadas desde o levante restauracionista que separou Portugal da Coroa de Castela, a guerra entre as duas monarquias chegava à sua etapa mais intensa, e decisiva. Durante a regência de sua mãe, a conduta e as amizades do rei Afonso causavam preocupação na corte, onde circulavam já rumores sobre sua incapacidade física e mental para o exercício do governo, e seu desleixo para com as atividades que em breve deveria desenvolver. Naquele junho de 1662, enquanto na fronteira do reino as tropas sob comando de D. Juan José de Áustria, filho ilegítimo do rei castelhano, consolidavam vitórias como a conquista da praça de Arronches, a viúva do monarca restaurador D. João IV instituía casa própria ao infante D. Pedro, irmão caçula de Afonso, nomeando para sua corte membros destacados do governo, da nobreza e do clero portugueses – entre eles, como confessor do infante, Antonio Vieira – e anunciava para breve a convocação das Cortes que lhe jurariam herdeiro da coroa no caso de D. Afonso não deixar sucessão. À murmuração que se seguiu a tais medidas, D. Luisa respondeu rapidamente, declarando a intenção de passar o governo ao rei no agosto seguinte, quando completaria D. Afonso 19 anos. Antes disso, porém, o governo da rainha tomou resolução mais dura, e, no dia 17 de junho, convocou uma assembléia onde, na presença de representantes dos tribunais do Estado, dos conselhos, e da Casa dos Vinte e Quatro, além dos principais fidalgos e dignitários, foi lida uma reprimenda aos procedimentos do jovem rei, que o aconselhava a se corrigir, e se distanciar dos indivíduos de baixa extração com quem vinha se relacionando, e causando escândalo no reino pelas arruaças em que se envolvia nas madrugadas de Lisboa. O papel ali lido, dizia-se então, seria da autoria do mesmo Antonio Vieira. Enquanto estava entretido Afonso em tal reunião, eram presos e degredados estes seus associados, entre os quais se destacavam, por àquela altura já haverem recebido cargos, rendas e tenças, os irmãos Conti, Antonio e João, tendo o primeiro cativado as graças do rei a partir da tenda que possuía no moralmente aceitável, dentro de seu conceito de prudência mista. Já Torquato Acceto ressaltava também a honestidade da dissimulação, enquanto arte de ocultar uma verdade, oposto à condenada simulação, que consistiria na afirmação de mentiras. Neste sentido, a dissimulação era prática não só aceita, como plenamente utilizada no exercício da política seiscentista. Cf. LIPSIO, Justo. Políticas. Madrid: Tecnos, 1997; ACCETO, Torquato. Da dissimulação honesta. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Sobre o debate em torno da dissimulação no período, e sua recorrência nas práticas políticas, ver: VILLARI, Rosario. Elogio della dissimulazione: la lotta politica nel seicento. Roma: Laterza, 1993; CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Dissimulações honestas e cultura científica na Idade Barroca. In: Sigila. Paris, v. 8, pp. 81-91, 2001; BAKOS, Adrianna E. “Qui nescit dissimulare, nescit regnare”: Louis XI and Raison d’état during the Reign of Louis XIII. In: Journal of the History of Ideas. Philadelphia: Temple University, v. 52, n. 3, jul-set. 1991. 12 pátio da Capela Real, onde vendia rendas, fitas e outros adornos. Esta simultânea repreensão ao rei e prisão de seus apaniguados foi, em todas as histórias que se escreveram do sucedido, interpretada ou como uma tentativa última da rainha de emendar o filho a quem em meses encarregaria o governo de Portugal, ou como parte de um estratagema que buscava destituir a sua autoridade perante os representantes ali reunidos, isolá-lo dos seus favorecidos, e em breve declarar sua incapacidade para a direção do reino, passando-a ao infante seu irmão; com o que, diga-se de passagem, por este possuir ainda 14 anos, se estenderia a regência por alguns mais. Este duplo significado foi também objeto das discussões à época, e D. Afonso, visto de tal forma acuado, valeu-se da segunda interpretação; a ela e a ele associou-se o também jovem 3º conde de Castelo Melhor, Luis de Vasconcellos e Souza, visto desde então como o principal artífice do golpe efetuado dias depois. Acompanhados de D. Jerônimo Luís de Ataíde, conde de Atouguia, há pouco destituído do governo das armas do Alentejo, principal foco da guerra travada contra Castela, pela perda de Arronches, e que havia já indicado sua oposição ao governo da regente ao declinar de integrar a casa do infante, o rei e Castelo Melhor deslocaram-se para a quinta de Alcântara, para onde se convocou também Sebastião César de Meneses, que voltara recentemente da prisão por oito anos em que fora colocado por crime de inconfidência, Henrique Henriques de Miranda, importante aliado de Castelo Melhor, e logo o visconde de Vila Nova de Cerveira, D. Diogo de Lima, que havia sido afastado do Paço pela regente logo após a reprimenda a D. Afonso, a quem procurou acalmar, e se aproximar logo que soube da prisão dos Conti. De Alcântara, foram chamados outros titulares e fidalgos a se juntarem a seu rei, e intimada a regente a entregar o governo em definitivo a seu filho, o que, não sem resistência, ocorreu a 23 de junho. O governo recém-instaurado caracterizou-se desde cedo pela substituição de ocupantes dos principais conselhos, como o de Estado, o da Guerra e o da Fazenda, e pela nomeação dos fidalgos e letrados associados ao rei aos mais altos cargos de comando e influência da corte. Identificado posteriormente como um triunvirato por seus opositores, devido à proeminência inicial de Castelo Melhor, que assumiu a função, desocupada desde o reinado de D. Sebastião, de escrivão da puridade, Atouguia, nomeado para o conselho de Estado, e Sebastião César, que recebeu o arcebispado de Lisboa e meses depois o cargo de Inquisidor-Geral, o governo foi ainda composto por Vila Nova de Cerveira, também do conselho de Estado, e estribeiromor do rei, Henrique Henriques, nomeado tenente general da artilharia, entre outros membros dos conselhos. A eles se uniu no início de agosto Antonio de Sousa de Macedo, ocupando a 13 secretaria de Estado em substituição ao desterrado Pedro Vieira da Silva, que o havia possuído desde a queda de Francisco de Lucena nos primeiros anos da Restauração. Não foram poucos os que, neste processo de consolidação da manobra política iniciada em Alcântara, foram presos ou desterrados pelos novos governantes. Entre eles estava o duque de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, figura de crescente prestígio durante a regência de D. Luisa, e o jesuíta Antonio Vieira, um dos primeiros a ser mandado para 50 léguas da corte. Para Vieira, a mudança de governo não significou apenas o início de um exílio, mas a perda do apoio que até então sustentava a exclusividade e o poder político da missão jesuítica no Maranhão, e obstruía o intento do Santo Ofício de iniciar seu processo inquisitório. Sua correspondência a partir daí, como se dizia há pouco, demonstra seu desterro não ter sido apenas um ato de puro valor simbólico contra o suposto autor do papel de reprimenda ao rei. Vez por outra em suas cartas, principalmente quando tratava dos mais recentes eventos da guerra da Restauração, esta que se travava contra Castela desde 1641, Vieira faz comentários, sempre mordazes, ao periódico mensal intitulado Mercurio Portuguez, segundo periódico impresso no reino4, saído desde o início de 1663 da pena do secretário de Estado Antonio de Sousa de Macedo, impresso pela oficina de Henrique Valente de Oliveira, impressor régio desde o final da década de 1650. A primeira delas, ao término da escrita a D. João da Silva, 2º marquês de Gouveia, a 2 de janeiro de 1664: Muito alentados nos deixa a nova da prevenção e superioridade com que nessa província estão os nossos generais e Exército. Quererá Nosso Senhor dar-lhe o bom sucesso que prometem, para que Mercúrio tenha larga matéria para espraiar a eloqüência, e nos dar neste Janeiro bons princípios de ano novo, que eu torno a desejar a V. Ex.ª com os maiores aumentos da vida e felicidades.5 Esta dita eloqüência do periódico era sempre alvo da zombaria de Vieira. Duas semanas depois desta, as notícias recebidas por ele do mesmo marquês sobre as armas da província da Beira não pareciam boas, “e as que V. Ex.ª remete ao Mercúrio haverão mister toda a sua eloqüência para que não façam o Janeiro funesto”. Costumava ser assim: trocando com seus correspondentes informações sobre o estado da guerra nas fronteiras, que nunca eram as melhores, o jesuíta contestava ironicamente o modo como o periódico do governo buscava estimular a confiança de seus leitores mesmo vivendo Portugal circunstâncias tão periclitantes. Um discurso nada surpreendente vindo de quem, nesta mesma carta de 16 de janeiro de 1664, parabenizava o marquês de Gouveia por estar para completar um ano de 4 O primeiro periódico português, a Gazeta, foi publicado já nos primeiros anos da Restauração, irregular e atribuladamente entre 1641 e 1647. 5 VIEIRA, A.. op. cit. p. 24. 14 desterro, argumentando que “melhor é ver os touros, ainda que seja de mau palanque, que ter parte nos riscos deles” 6. Mais de um ano depois, ao comentar sobre prognósticos astrológicos feitos a partir do cometa presente no céu desde dezembro de 1664, e o fato de que se dizia que em tudo ele era igual ao que significara a sujeição portuguesa a Castela no tempo de D. Sebastião, outra vez Vieira desafiava o otimismo publicado pelo secretário de Estado: “Mas o nosso Mercúrio nos segura de todos estes temores com o pouco medo que tem às prevenções de Castela. Quererá Deus que assim seja”7. Sempre que podia, o escritor jesuíta escarnecia do estilo do redator do periódico. Em outra carta a Gouveia, de 8 de dezembro de 1664, após comentar a difícil situação da Índia portuguesa perante as ambições e as vitórias dos holandeses nos últimos anos, antes de fechar a epístola Vieira acrescenta: “A oração de Mercúrio também deve de sair este mês: temos muito e bom latim para os estudantes das classes menores”8. Mas é certamente na carta de 26 de maio de 1664, a D. Rodrigo de Meneses, que Antonio Vieira mais se inflama contra o periódico, e em que se percebe de forma mais patente a sua oposição ao que ele representava naquele momento em Portugal. D. Rodrigo, outro importante correspondente de Vieira, gentil-homem da câmara do infante D. Pedro, irmão e genro do marquês de Marialva, enviara-lhe uma carta dias antes, em que afirmava haver defendido que o exército português não saísse em campanha naquele ano, mas que adotasse apenas uma postura defensiva, aproveitando que estava pela primeira vez numericamente superior ao de Castela. O jesuíta então responde congratulando-o por sua proposta: Que maior crédito pode desejar Portugal que dizer-se nas nações estrangeiras que, tendo Castela ajuntado e unido todo o seu poder, foi tão superior o nosso que se não atreveu a sair em campanha? E que maior utilidade e felicidade para o público e particular do Reino que conservá-lo em tais circunstâncias, sem perder um homem nem um cavalo, nem derramar uma gota de sangue, que sempre na casa onde falta faz triste a vitória, por mui vantajosa que seja? E que maior ventura nem vitória que conseguir os efeitos dela, sem os riscos de uma batalha nem os danos da guerra?9 Porém, o Mercurio Portuguez não veiculava em suas páginas a mesma concepção, e em vista disso Vieira continua sua missiva com o comentário posto como epígrafe do presente trabalho. Bom seria, diz o jesuíta, se se encontrasse no periódico tal discurso, tal prudência; mas o desgraçado Mercurio, tão pouco ponderado no que dizia, como no que não dizia, divulgava a opinião de que tal superioridade do exército português deveria ser utilizada “e pudera considerar, como tão lido nos exemplos de Fábio Máximo, que há ocasiões em que no 6 Ibid. p. 28. Ibid. p. 128. Carta a D. Rodrigo de Meneses, de 23 de fevereiro de 1665. 8 Ibid. p. 104. 9 Ibid. pp. 56-57. 7 15 não fazer consiste tudo; e que os conselhos dos grandes generais se não desprezem, e que os rumores do vulgo nem são grandes nem são conselhos”10. O padre Antonio Vieira, portanto, criticava não só o imponderado otimismo e a débil eloqüência do Mercurio Portuguez, mas acusava-o de omissão, falsidade, e de incentivar com sua publicação a aceitação de uma estratégia militar nefasta para o destino de Portugal, o qual ele se via tão envolvido em prognosticar. Em tom agressivo, o jesuíta considerava que o discurso do periódico do governo, com tal postura, atendia mais à opinião inconseqüente do populacho do que à experiência e prudência do conselho dos militares, do passado e do presente. Não o faria com tamanho empenho, pode-se supor, se considerasse irrelevante aquela publicação para o desenvolvimento do cenário político português de então. É certamente a influência dos escritos do secretário de Estado que Vieira debate com seus aliados, é com ela que ele se debate desde o claustro forçado que o governo e a Inquisição lhe impunham. Além do mais, tratava-se o seu autor de um antigo desafeto do jesuíta. Nem dois anos mais velho que Vieira, Antonio de Sousa de Macedo nascera no Porto a 15 de dezembro de 1606, iniciou seus estudos no Colégio jesuíta de Santo Antão, e passou à Universidade de Coimbra, onde alcançou o grau de doutor em Direito Civil. Era filho de Margarida Moreira e Gonçalo de Sousa de Macedo, fidalgo da Casa Real formado em Cânones, que ocupou cargos de magistratura como os de desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, juiz dos feitos da Coroa e da fazenda, deputado da Junta das Contas do Reino e da Casa, ou de contador-mor do Reino e da Casa. Com atividades ligadas às da casa de Bragança, Gonçalo de Macedo foi ainda nomeado, em 1627, testamenteiro de D. Duarte de Bragança, tio de D. João, em breve o quarto rei deste nome em Portugal. O filho, portanto, parecia seguir os passos da carreira do pai, e na altura do golpe da Restauração ocupava já o Desembargo do Porto. Com uma substancial diferença, porém: desde a juventude dedicado aos estudos dos clássicos, principalmente latinos, Antonio de Sousa de Macedo voltou-se também desde cedo à publicação de seus próprios escritos, iniciada com a Solemnia Parnassi Philippo IV Hispaniorum Regi pro recuperata salute solteria11, composta de poesias em latim, castelhano e português, impressa já em 1624, durante acompanhamento que fez à 10 Ibid. p. 57. MACEDO, Antonio de Sousa de. Solemnia Parnassi Philippo IV Hispaniorum Regi pro recuperata salute solteria. Madrid: 1624. 11 16 estadia do pai em Madrid, em que suas precoces qualidades de orador e escritor teriam chamado a atenção dos ministros do Conselho de Portugal12. Mas foi nos últimos anos de estudo em Coimbra, na década de 1630, que Macedo escreveu seus primeiros tratados, e publicou o Flores de España, Excelencias de Portugal, que assombra pela erudição de tão jovem autor. Literatura de firme propósito polemista, o Flores de España se incumbe da valorização do reino português, numa descrição glorificadora da história e dos valores pátrios, quase não dissimulando a crítica ao estado em que se encontrava o reino anexado à monarquia hispânica. Não cabendo aqui a análise deste seu primeiro tratado, vale apenas relembrar como o concluiu, após os diversos capítulos de elogios às características portuguesas, de sua geografia, sua história e seus costumes, em que a comparação com a excelência menor de Castela fez-se muitas vezes presente: Algunos dirán, que no viene a buen tiempo este tratado de excelencias de Portugal, pues segun los infortunios presentes, mejor pudieramos tratar de sus miserias: pero yo respondo que todo lo que hemos visto en el discurso deste libro tiene tambien oy Portugal, y tendrá siẽpre por mas q la fortuna pretenda otra cosa (...). Verdad es que oy no resplandecen tanto estas excelencias en Portugal, como en otro tiempo, pero no es porque no las aya, sino porque estan escondidas, y suspensas, no se si diga por falta de premio, y favor, que segun Ciceron son los que crian, y dan calor a las artes, y todo lo bueno”13 Por tal obra, Antonio de Sousa de Macedo foi incluído com destaque pelo professor Hernani Cidade entre os autores do que considerou a literatura autonomista do Portugal filipino14, e deve ter sido ela também justificadora de sua eleição, nos primeiros meses da Restauração, para integrar a embaixada de D. Antão de Almada e Francisco Rodrigues Leitão à Inglaterra. Atuando como secretário da embaixada até a conclusão do tratado comercial de 1642, com que Almada retornou a Portugal e Leitão foi enviado a Haia, Macedo ainda permaneceu em Londres como residente até abril de 1646. Suas cartas deste período constituem um curioso documento da tumultuada conjuntura política daqueles anos na Inglaterra, da delicada posição nela ocupada pela diplomacia portuguesa, e do posicionamento aguerrido do residente, não só na defesa do apoio português à monarquia britânica, como também em relação aos mais diversos problemas, diplomáticos e bélicos, enfrentados por Portugal nos primeiros anos da Restauração. Destaque-se ai seu discurso sempre contrário à entrega de qualquer território do Brasil como parte das negociações de paz com os 12 Sobre a juventude de Macedo, a biografia mais detalhada encontra-se no prefácio de Pedro da Costa de Sousa de Macedo à edição recente de MACEDO, A. S. Flores de España, Excelencias de Portugal. Lisboa: Alcala Editores, 2003. (Ed. Fac Símile da primeira, de 1631, impressa por Jorge Rodrigues) pp. IX-XXVI. 13 Ibid. fols. 149v-150r. 14 CIDADE, Hernani. A Literatura Autonomista sob os Filipes. Lisboa: Sá da Costa, 1948. pp. 126-142. Cf. também SILVA, Cristina Nogueira da. A identidade portuguesa. In: Memória de Portugal: o milénio português. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001. pp. 350-351. 17 holandeses, seu contentamento expresso a cada vez que lhe chegavam notícias sobre sucessos da resistência à presença destes no nordeste brasileiro, e sua defesa veemente da tomada de uma postura ofensiva por Portugal na guerra contra Castela15; com efeito, Macedo esteve sempre em posição diametralmente oposta àquela que Antonio Vieira representava em Lisboa. Durante a estadia em Londres, Macedo se destacou ainda como um dos principais escritores dedicados à justificação da recente separação de Castela, e da aclamação de D. João IV, pois pôde publicar importantes textos neste sentido, entre os quais se destaca o Lusitania Liberata ab injusto Castellanorum dominio16, vultosa obra de síntese de seus argumentos jurídicos e genealógicos em favor da monarquia portuguesa restaurada, destinada à divulgação nos diversos centros políticos europeus da época. De volta a Lisboa, quando o governo parlamentar inglês descobriu, através da captura da correspondência de Carlos I subseqüente à vitória sobre as forças realistas em Naseby, a atuação de Macedo como intermediário na compra em Amsterdã de material bélico destinado ao partido monárquico, e sua presença em Londres tornou-se insustentável17, o jurista atuou durante três anos como desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, não se afastando porém do publicismo que já o caracterizava, havendo impresso o Panegyrico sobre o milagroso sucesso com que Deos livrou el Rey Nosso Senhor, da sacrílega treição dos Castelhanos já em setembro de 164718, na seqüência da tentativa de assassinato do monarca durante os festejos de Corpus Christi. Em julho de 1650, foi enviado às Províncias Unidas como embaixador, com a espinhosa tarefa de dar continuidade às negociações de paz com aqueles Estados, em um período em que a tensão com Portugal crescia ao máximo, devido ao recrudescimento dos 15 Algumas destas cartas, que se encontram em sua totalidade na Biblioteca Pública de Évora, foram publicadas, em: PRESTAGE, Edgar. Duas Cartas do Dr. Antonio de Sousa de Macedo: escritas de Inglaterra a El-Rei D. João IV. In: Separata do Boletim da Segunda Classe. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1916. v. 10; e AMSALAK, Moses Bensabat. Uma carta do doutor António de Sousa de Macedo ao rei d. João IV. Lisboa: s/n, 1930. A análise desta correspondência e da atuação de Macedo foi realizada pelo historiador lusófilo Edgar Prestage em extenso artigo publicado também como separata do mesmo Boletim de 1916: PRESTAGE, E. O Dr. António de Sousa de Macedo, residente de Portugal em Londres, 1642-1646. In: Separata do Boletim da Segunda Classe. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1916. v. 10. Para o conhecimento mais abrangente das opiniões veiculadas pelo residente no período, deve-se também destacar a proficuidade do livro de PENA JÚNIOR, Afonso. A arte de furtar e seu autor. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. 2 vols. 2ª ed., que no esforço de atribuição da autoria da Arte de Furtar a Antonio de Sousa de Macedo, hoje já praticamente descartada, transcreve várias destas cartas na íntegra, além de inúmeros trechos delas e de outras suas obras. 16 MACEDO, A. S. Lusitania liberata ab injusto Castellanorum dominio restituta legitimo Principi, Serenissimo Joanni IV Lusitaniae Regi Potentíssimo. Londres: Richard Hearn, 1945. 17 PRESTAGE, E. op. cit. p. 135 et seq. 18 MACEDO, A. S. Panegyrico sobre o milagroso sucesso com que Deos livrou el Rey Nosso Senhor, da sacrílega treição dos Castelhanos. Lisboa: Oficina de Paulo Craesbeeck, 1647. 18 confrontos armados no além-mar, e a importantes vitórias portuguesas em Angola e no Brasil. Havendo sempre Macedo sido um opositor declarado da entrega de Pernambuco aos holandeses, sua missão em Haia fora uma estranha e arriscada cartada do governo português: parecia atender aos críticos da proposta da cessão dos territórios conquistados no Brasil, enviando um de seus mais ativos representantes para representar o reino, mas buscava ao mesmo tempo enfraquecer tal oposição, pois as credenciais do diplomata o autorizavam a demitir terras e praças do Brasil, e determinavam que acordasse inclusive sobre a restituição do território recentemente recuperado pelos levantados de Pernambuco. Segundo interpretação de Evaldo Cabral de Mello, a “nomeação de Sousa de Macedo era um desses atos de malabarismo que consistem em fazer executar uma política por alguém que lhe é contrário, no propósito de dividir a oposição que se lhe move”19. O que as suas credenciais lhe autorizavam a fazer, porém, o embaixador não chegou a propor, pois novas instruções, que demonstravam que os conselhos de D. João IV punham-se contra a entrega do território americano, mandavam-no apenas oferecer a compra de Pernambuco, a liberação do comércio com a América portuguesa, o monopólio do sal de Setúbal, satisfação de dívidas, e uma doação 400.000 cruzados para os órfãos da Zelândia, um dos investidores da Companhia de Comércio das Índias Ocidentais. Com sua proposta rejeitada, e sua presença rechaçada, a curta e tumultuada estadia de Macedo em Haia serviu para prorrogar a trégua com as Províncias Unidas, até que o advento da guerra angloneerlandesa (1652-1654) abriu espaço para a restauração do Recife pelos portugueses. Descartava-se assim, de modo definitivo, o projeto de entrega de Pernambuco, cujo símbolo máximo será sempre o chamado Papel Forte do jesuíta Antonio Vieira20. Antonio de Sousa de Macedo, durante aquela sua segunda e última viagem diplomática, publicou, além de um Discurso e Pratica que fez aos Estados Geraes das Provincias unidas21, seu principal tratado político, o Armonia política dos documentos divinos 19 MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, s/d. p. 161. Interessado neste livro na atuação diplomática portuguesa em relação a Pernambuco, o historiador faz importantes comentários, como o citado, sobre a embaixada holandesa de Antonio de Sousa de Macedo. Sobre ela, também, em uma análise mais geral, e clássica, cf.: PRESTAGE, E. As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668. Coimbra: Imprensa da Univerisade, 1928. pp. 233-236. 20 VIEIRA, Pe. Antônio. Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses. In: ____. Escritos Históricos e Políticos. org. por Alcir Pécora. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 309-368. Sobre o lugar ocupado pelo Papel Forte na trajetória política de Vieira, cf.: AZEVEDO, J. L. op. cit. v. 1, pp. 124-130. 21 MACEDO, A. S. Discurso e Pratica que fez aos Estados Geraes das Provincias unidas estando todos juntos em Cortes por morte do Principe de Orange sobre a Paz com Portugal por cuja negociação era Embaxador a 6 de Maio de 1651. Haia: 1651. 19 com as conveniencias d'Estado22, dedicado ao príncipe herdeiro D. Teodósio. A partir de agosto de 1651, de volta a Lisboa, Macedo passou a exercer as funções de conselheiro da Fazenda, onde mais uma vez atuou no campo oposto ao da política avançada por Antonio Vieira em Portugal. Respondendo a duas consultas feitas ao Conselho pelo governo, a primeira em março de 1655 e a segunda em dezembro de 1656, já portanto após a morte de D. João IV, Macedo teve a oportunidade de demonstrar sua oposição ao alvará régio de 2 fevereiro de 1649, que impedia a Inquisição de concretizar o confisco dos bens dos acusados em seu Tribunal, cujo decreto havia sido uma importante vitória de Vieira23. Em 1655, o conselheiro tentou impugnar a resolução de D. João IV de passar ao próprio conselho da Fazenda a administração dos bens confiscados aos réus do Santo Ofício, utilizando seu parecer como um verdadeiro manifesto contra o alvará de 1649. Talvez por isso, Antonio de Sousa de Macedo recebeu em outubro de 1655 a carta de familiar do Santo Ofício. Já durante o governo da regente, fez-se consulta ao conselho sobre a possibilidade de utilização das rendas do confisco no socorro ao Estado da Índia, ao que Macedo mais uma vez aproveitou para censurar a existência do alvará que impedia tal utilização. Um dia após a resposta do conselho o governo tomava aos depositários 120.000 cruzados; um mês depois, a 2 de fevereiro de 1657, revogava definitivamente o polêmico alvará24. Além de conselheiro da Fazenda, Macedo exerceu outros cargos a serviço do Estado, como o de provedor da Alfândega e Casa da Índia, reformador dos Regimentos da Casa da Índia, da Feitoria dos Linhos, dos Estanhos e das Ferrarias e da Junta Geral do Comércio do Brasil, e o de redator das Instruções aos embaixadores enviados aos países do norte europeu, com os quais mantinha correspondência, preservando aí seu contato com as atividades diplomáticas. Serviu também, pela antiguidade, como Juiz das Justificações, e foi nomeado para o conselho do rei ainda pela regente D. Luísa de Gusmão. Fez o discurso no auto de juramento de D. Afonso VI, em 1656, que imprimiu em Lisboa no mesmo ano, pela oficina de Henrique Valente de Oliveira25, por onde imprimiu também, em 1662, a sua Relación de las fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de Portugal, celebrando, como não podia deixar de fazer quem defendeu enquanto diplomata o 22 Id. Armonia política dos documentos divinos com as conveniencias d'Estado: exemplar de principes no governo dos gloriosissimos reys de Portugal ao serenissimo principe Dom Theodosio. Haya do Conde: na officina de Samuel Broun impressor ingrez, 1651. 23 Sobre o modo como foi decretado o alvará, e a defesa dele por Vieira, mesmo no púlpito, cf. AZEVEDO, J. L. op. cit. v. 1, pp. 131-137. 24 Cf. PENA JÚNIOR, A. op. cit. pp. 204-215. 25 MACEDO, A. S. Falla que fez o D. Antonio de Sousa de Macedo, do Conselho da Fazenda de Sua Magestade, no Juramento de Rey do muito Alto, e muito Poderoso Dom Affonso VI. nosso Senhor. Lisboa: Na Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1656. 20 apoio, mesmo que subterrâneo, à causa dos Stuart, a aliança anglo-portuguesa efetivada com o casamento de D. Catarina de Bragança e Carlos II26. Quando, em 1662, o rei assume o poder, a influência de Antonio de Sousa de Macedo é reconhecida na nomeação ao cargo de secretário de Estado, cujas funções são colocadas em estreita sintonia com as do escrivão da puridade – cujo regimento, inclusive, é escrito pelo próprio Macedo. O jurista vivia então o auge de sua ascensão na arena política portuguesa, situado mais uma vez no lado oposto daquele em que lutava o padre Antonio Vieira, que começava a experimentar os primeiros revezes de sua decadência. Em 1667, a manobra política que afastou D. Afonso VI do trono começou por derrubar o secretário de Estado, tendo sido exilado para 30 léguas da Corte. Chegou a passar à Inglaterra, mas voltou a Lisboa em 1669, onde morreria no primeiro dia de novembro de 1682, conseguindo antes publicar livros dos mais significativos de sua extensa obra, como o Eva, e Ave ou Maria triumphante. Theatro da erudiçam, e da philosophia chrystam27 e o Dominio sobre a fortuna, e tribunal da razão28, mas nunca a autorização para voltar ao Paço da Ribeira e beijar a mão do regente D. Pedro, pelo que instava através dos ofícios do marquês de Fronteira – o conde da Torre de seus tempos de secretário de Estado. Na mesma época, também, podia ser visto entre os que iam a Sintra, acenar e enviar mensagens para D. Afonso, que vivia então enclausurado no Paço daquela cidade, segundo afirma a tradição, e registrou no século XIX o abade de Castro29. Escrever e publicar, entre janeiro de 1663 e dezembro de 166630, o Mercurio Portuguez, foi, certamente, das mais importantes atribuições de Macedo a serviço do governo de Afonso VI. Se ao longo de sua produção intelectual ele havia se dedicado tanto à publicação de volumosos tratados em latim, português e castelhano, mas também à de 26 Relación de las fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de Portugal Doña Catalina (ya Reiyna de la Gran Bretaña) con el Serenissimo Rey de la Gran Bretaña Carlos segundo deste nombre. Y todo lo que sucedió hasta embarcarse para Inglatierra Lisboa: En la Officina de Henrique Valente de Oliveira Impressor delRey N. S., 1662. 27 Eva, e Ave ou Maria triumphante. Theatro da erudiçam, e da philosophia chrystam. Em que se representam os dous estados do mundo: cahido em Eva, e levantado em Ave. Lisboa: na officina de Miguel Deslandes, 1676. 28 Dominio sobre a fortuna, e tribunal da razaõ: em que se examinam as felicidades, & se beatifica a vida no patrocinio da Virgem mãy da graça, horoscopo da constellaçaõ melhor afortunada. Lisboa: na officina de Miguel Deslandes, 1682. 29 “Todo o ladrilho se vê ainda hoje gasto, onde triste e silencioso D. Affonso 6.º passeava, em direitura á janella, afim de ver o Conde de Castello Melhor, e ao seu antigo amigo Antonio de Souza Macedo, que fora seu Secretario d’Estado”: SOUSA, Antonio Damaso de Castro e. Descripção do Palacio Real da Villa de Cintra, que ali teem os Senhores Reis de Portugal. Lisboa: Typographia de A. S. Coelho, 1838. p. 21. 30 Há ainda outros sete números do Mercurio, entre janeiro e julho de 1667, que porém não eram mais escritos por Antonio de Sousa de Macedo. Este período de publicação não será porém analisado por este estudo, pois traz diferenças em relação à escrita e ao discurso de Antonio de Sousa de Macedo, e a definição destas diferenças alargaria por demais o presente trabalho, sem talvez acrescentar dados significativos em relação às suas principais proposições. 21 impressos de menor vulto, porém com vistas a públicos socialmente mais abrangentes, naqueles anos voltar-se-ia exclusivamente para este segundo tipo de intervenção escrita. Mas agora, publicando regular e mensalmente relações com as notícias sobre a guerra e a política que conduziam os rumos de Portugal, e fazendo-o desde a posição de secretário de Estado, Macedo poderia melhor compreender e manipular o discurso político e a singular forma de atuação política que a publicação destes impressos ligeiros continha. Os cinqüenta e cinco números que integram a coleção completa do Mercurio Portuguez, aos quais se somam ainda mais dois suplementos, constituem uma documentação valiosa para o historiador que pretende se debruçar sobre este conturbado período da formação do Estado português; não, obviamente, por sua atenção à veracidade dos fatos ali narrados, mas por ser produto e instrumento da ação política daquele governo, portanto objeto de fundamental interesse para a compreensão das idéias e do exercício político dos homens que o ocuparam a partir da subida de D. Afonso VI ao governo. Tal compreensão, necessariamente, deve passar pela percepção do espaço e dos meios de atuação que aqueles políticos viam diante de si, e para tal, o periódico difundido pela secretaria de Estado, da autoria de um dos principais nomes do pensamento e da ação política do Portugal seiscentista, configura-se material indispensável, ainda não satisfatoriamente aproveitado pela historiografia. Importante marco da história de Portugal, a Restauração de 1640 foi tema recorrente e fundamental na sua historiografia. Já em 1679, D. Luis de Meneses, o 3º conde da Ericeira, dedicava ao príncipe regente D. Pedro a sua Historia de Portugal Restaurado, obra que fundamentou em grande parte a visão que se teve nos séculos seguintes sobre o desenrolar dos acontecimentos durante o período restauracionista31. A extensa crônica de Ericeira, desta forma, consolidou na posteridade seu enfoque sobre os movimentos da guerra, da diplomacia, e da política portuguesa da Restauração, esta última sempre restrita ao ambiente cortesão, estendendo-se no máximo aos conselhos militares, e sempre determinada pela intensidade dos afetos e das intrigas vividas no interior dos palácios. Além de pouquíssimas vezes referir alguma decisão política do período que não as voltadas para a definição das estratégias militares ou as diplomáticas, Ericeira não faz qualquer menção ao grande volume de impressos que circulou em Portugal em diferentes 31 ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado, Parte I, Lisboa, Na Officina de João Galrão, 1679; Parte II, Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, 1698; a edição consultada por este trabalho é, no entanto, a mais recente: ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 1945-46. 4 v. 22 momentos daquelas décadas, nem à existência dos dois periódicos que foram então produzidos, e certamente debatidos pelos personagens retratados em sua narrativa. A parte de sua crônica acerca do governo de D. Afonso VI, afinal, sedimentou a visão da ascensão espúria de um rei demente, e de um ministro ambicioso, que teria maculado a política portuguesa com ações indignas e indecorosas, além de a marcado com truculência e arbitrariedade. Inimigo declarado de Antonio de Sousa de Macedo, e também dos seus métodos políticos, o conde Luis de Meneses calou sobre a publicação e o impacto do Mercurio Portuguez naqueles vexatórios anos de sua impressão, tentando, e logrando grande sucesso, diminuir o significado do periódico no contexto histórico sobre o qual desenvolveu sua pregnante interpretação. A publicação de sua História, de fato, fez parte de um movimento muito mais amplo de debate sobre os significados da tumultuada conjuntura que culminara com a deposição do monarca, e a entrega do governo e da rainha a seu irmão32, porém o passar dos anos fez com que sua narrativa se destacasse daquela conjuntura de debates e se alçasse à condição de versão oficial, e mais apropriada, do período, pelo que fezse necessário seu comentário aqui, e em vários pontos adiante a discussão e a problematização de seus pontos de vista, inserindo-os de volta no contexto político sobre o qual sua narrativa se detém. Mesmo assim, a produção historiográfica sobre a Restauração começou a se avolumar a partir da segunda metade do século XVIII. As diversas correntes ideológicas que desde então dominaram e disputaram o cenário político-intelectual do país, não se limitando a apresentar soluções para o presente e para o futuro, esforçaram-se por interpretar o passado, e o período restauracionista atraiu sempre a sua atenção, em medidas variadas. A historiografia portuguesa foi marcada incessantemente por apropriações deste tema motivadas por claras intenções de legitimação ideológica; sob a pena de vários historiadores – ideólogos pombalinos, liberais, republicanos, tradicionalistas, anti-iberistas, e outros mais – o levante de 1640 e a posterior guerra de vinte e oito anos contra Castela assumiam as feições de arquétipos fundamentadores de sua visão e propostas para a sociedade em que viviam. O resultado: a proliferação de interpretações por vezes fantasticamente distorcidas de um 32 São outras obras coetâneas sobre o mesmo período: FARIA, Leandro Dorea Caceres e. Catastrophe de Portugal na deposição d'el-rei D. Affonso o Sexto e subrogação do principe D. Pedro o Unico, justificada nas calamidades publicas : escrita para justificação dos Portugueses. Lisboa: a custa de Miguel Manescal mercador de livros na Rua Nova, 1669; A anti-catastrophe: historia d'Elrei D. Affonso 6º de Portugal. Porto : Typographia da Rua Formosa, 1845; PAIXÃO, Alexandre da. Monstruosidades do Tempo e da Fortuna. ed. de Damião Peres. Porto: F. Machado, 1938. 23 importante período da história política portuguesa, por mais que esta ou aquela produção estivesse associada a um imperativo cientificista33. Durante largo período do século XX, a historiografia sobre a Restauração viu mantidas tais prerrogativas, e sua visão sobre o tema ligava-se intrinsecamente à ideologia tradicionalista e integralista que acabou por embasar a construção do Estado Novo português. Não por coincidência, é neste período que o louvor dos historiadores ao século XVII chega a seu auge, e o 1 de dezembro – data do levante de 1640 – é elevado a data festiva oficial. Em 1940, durante as comemorações dos trezentos anos da Restauração, é editado o Congresso do Mundo Português, vultosa obra que apresenta-nos um amplo painel da produção historiográfica de então, com dois dos seus volumes dedicados exclusivamente à divulgação de dezenas de artigos sobre o período restauracionista34. De enfoques variados, tais artigos, contudo, caracterizam-se por uma direção unívoca: a valorização nacionalista e ufanista da Restauração, seu desenvolvimento e seus heróis. Esta visão, que se disseminou com grande eficiência, coadunava-se perfeitamente com o discurso veiculado pelo Estado Novo, que sempre reclamou sua inspiração essencialmente portuguesa, e aí pôde encontrar um ótimo apoio ideológico em seu favor. Obviamente, porém, este período da historiografia portuguesa não pode ser considerado de nula contribuição para a compreensão da conjuntura política da Restauração, pois que, mesmo preocupados com a valorização de tais ou quais feitos e personagens da história política portuguesa, os mais competentes estudiosos do período legaram para a contemporaneidade trabalhos com um grande nível de informações, e mesmo com uma esforçada crítica de fontes. Isso sem contar o fato de que a vocação monumentalista destes historiadores produziu um incrível volume de publicações de documentação e de obras do período, sem o qual seria bastante reduzida a possibilidade de concretização de um estudo como o presente, tão distante dos arquivos lusos. Para o que interessa a este trabalho, a principal contribuição encontra-se no debate bem representado pelas obras de Antonio Álvaro Dória e Gastão de Melo de Matos sobre o conflituoso contexto político dos últimos anos da Restauração. O primeiro, além de responsável pela reedição comentada da crônica do conde da Ericeira, produziu uma biografia de Maria Francisca de Sabóia, a nobre francesa que se faria rainha de Portugal casando com D. Afonso VI, mas morreria deixando viúvo a seu irmão D. Pedro, já governando Portugal 33 Para uma concisa análise destas questões, ver TORGAL, Luis Reis. A Restauração. Breves reflexões sobre sua historiografia. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1977. n. 1, pp. 23-40. 34 Cf. Congresso do Mundo Português. Lisboa, 1940. vols. 6-7. 24 após a deposição de Afonso, e anulação de seu casamento35. Nesta obra, Dória recorre amplamente às diversas narrativas sobre o caso publicadas nas décadas subseqüentes à queda de D. Afonso, dentro e fora de Portugal, dando a dimensão da variedade de versões daquela conjuntura política, embora não se aprofunde no significado desta variedade. Antes, prefere divulgar a sua própria versão, defendendo a tomada do poder por D. Afonso em 1662, elogiando a direção política do conde de Castelo Melhor, embora reprovando seu autoritarismo, responsável que seria pela vitória na guerra e pela manutenção da independência portuguesa, e condenando a forma como o poder régio foi passado a D. Pedro36. Antonio Dória respondia, com o conjunto de suas observações, à opinião manifestada anos antes por Gastão de Melo de Matos em um discurso, com o provocativo título de A falsa história da Restauração. O historiador, que dali em diante se destacaria por seus estudos de diversas questões da guerra da Restauração – ou das campanhas da Aclamação, como preferia chamar37 – havia proposto, entre outras revisões da interpretação herdada do pombalismo, a crítica à desmedida exaltação que se fazia da figura de Castelo Melhor, e à desvalorização do papel desempenhado por D. Pedro na conquista da paz com Castela e do reconhecimento do Vaticano da independência portuguesa. Segundo sua visão, a necessária reforma do exército português teria sido já desencadeada pelos esforços da regência de D. Luisa, que levaram a Portugal o experiente conde de Schomberg e já algumas levas de soldados estrangeiros, o elogio às medidas econômicas implementadas por Castelo Melhor não tinham qualquer base, e a tomada do poder pelo infante D. Pedro o empenhado grupo político que atuara durante o reinado de D. João IV e a regência de sua esposa pela manutenção da autonomia lusa. Desta forma, o governo de D. Afonso VI representaria um período de flutuações e dissensões nos conselhos que por pouco não conduziu ao fracasso a Restauração, e de invasão no país de uma política estrangeirada, através da influência francesa, problemas superados pelo governo de D. 35 DÓRIA, Antonio Álvaro. A Rainha D. Maria Francisca de Sabóia (1646-1683). Porto: Livraria Civilização, 1944. 36 Na biografia de D. Maria Francisca, Dória esforça-se por produzir uma abordagem mais isenta dos fatos, mesmo assim não deixando de imprimir algo de sua visão sobre o período e os personagens ali retratados. Mas esta será então mais claramente declarada em uma obra menor, de divulgação, exclusivamente sobre o golpe palaciano de 1667: Id. A deposição de D. Afonso VI (1666-1668). Braga: Livraria Editora Braga, 1947. 37 Cf. MATOS, Gastão de Melo de. Um soldado de fortuna do século XVII. Lisboa: 1939; Id. Os terços de Entre Douro e Minho nas Guerras da Aclamação. Esboço de História Orgânica. Separata de: Revista de Guimarães. Porto: Sociedade Martin Sarmento, 1940; Id. Memória sobre a organização e a táctica dos exércitos da Aclamação. Lisboa: 1947. 25 Pedro, este que por sua vez significou o “triunfo da forma política tradicional revigorada em 41, contra idéias estranhas por êle [Castelo Melhor] representadas”38. Não se pode negar que esta oposição entre Gastão de Melo Matos e Antonio Álvaro Dória, além de pôr em discussão toda a tradição historiográfica portuguesa em relação ao tema, revela-se um índice importante das questões que ainda hoje atravessam uma interpretação da história política da conturbada conjuntura da década de 1660. Mesmo que sua visão estivesse ainda tão eivada do pendor nacionalista que a historiografia atual busca evitar. O redirecionamento dos estudos sobre a história política da Restauração, após o recrudescimento desta historiografia ufanista, deve-se em grande parte ao trabalho de Luís Reis Torgal, publicado há mais de vinte anos: Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração inovava pelo esforço em interpretar os problemas ligados às concepções de Estado em debate na Restauração39. De forma geral, suas idéias sobre uma significativa produção intelectual de letrados em defesa da independência do reino evidenciam uma perspectiva em muito devedora das formulações de outro importante historiador português: José Sebastião da Silva Dias, que em seu livro Portugal e a cultura européia, de 1953, interpretava a cultura portuguesa como inserida numa lógica essencialmente contrareformista, ortodoxa, sempre fechada às “novidades” do mundo além-pirenaico. Mas se Silva Dias pôde identificar pensadores políticos portugueses como importantes críticos desta modorra cultural portuguesa40, Torgal acabou por enquadrar o pensamento político restauracionista na tradição católica ortodoxa alvejada por seu mestre, muito ligada às formulações neo-escolásticas, apenas reconhecendo seu enquadramento numa diretriz prática, ou quando muito, teórico-prática, justificado pela urgência de seus objetivos legitimadores da Restauração. Na ideologia restauracionista portuguesa, o autor não encontrou qualquer evidência de um pluralismo transformador da vida política do reino, e insistiu no domínio de um tom monocórdico, repetitivo. Em decorrência desta perspectiva, em relação à conjuntura política em que se centra o presente trabalho, Torgal apenas identifica a presença de um importante conflito político na Corte, e critica os pontos de vista do debate até então travado sobre ele, negando encontrar-se ali qualquer disputa entre diferentes orientações sóciopolíticas, mas relegando seu comentário à modesta nota de pé de página41. 38 Id. A falsa história da Restauração. Oração inaugural do ano associativo, lida em sessão de 30 de Janeiro de 1937. Lisboa: 1938. p. 16. 39 TORGAL, L. R. Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. 2 v. 40 DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura européia (sécs. XVI a XVIII). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953. pp. 299-300. 41 TORGAL, L. R. op. cit. v. 1, p. 97. 26 Voltada, da mesma forma, para a definição dos contornos da história das idéias políticas em Portugal, a produção do historiador Martim de Albuquerque também deve ser lembrada aqui. Em vários artigos e ensaios, em grande parte reunidos nos volumes Estudos de Cultura Portuguesa, além de outros livros publicados, Albuquerque se dedicou à análise exaustiva dos escritores políticos portugueses do século XVII, destacando, num trabalho de grande erudição, a influência recebida de conhecidos nomes do pensamento político da época, como Justo Lipsio, Jean Bodin e Nicolau Maquiavel, bem como de outros escritores seus contemporâneos42. Por seu lado, porém, Martim de Albuquerque criticou com grande veemência a metodologia utilizada por Luis Reis Torgal, que, segundo ele, o teria levado a não perceber o enquadramento do pensamento político português numa concepção barroca, e superdimensionado sua ligação com as questões práticas do período restauracionista43. A interpretação da política portuguesa seiscentista encontrou ainda um importante impulso nos estudos de Diogo Ramada Curto que, principalmente no seu livro O discurso político em Portugal, apresentava sua reflexão no sentido de uma caracterização do pensamento político português no século XVII, através da identificação das diversas instâncias que motivaram e modelaram a produção do discurso político naquele país entre 1600 e 1650. Funções psicológicas, instituições e práticas culturais, além das instâncias de controle discursivo, são analisadas neste livro a partir de uma documentação primária extremamente variada, deixando antever a extensão do trabalho ainda por fazer relativo ao tema. Ramada Curto esforça-se por descrever em seu livro o cenário político e social em que o pensamento e a ação política se desenvolvem, e se conformam: um Estado em construção, cuja sociedade vive o aceleramento da expansão de uma cultura letrada, da difusão de impressos panfletários, e que sente o alargamento e diversificação dos grupos sociais que se investem de ambição política, de capacidade de intervenção no processo de configuração daquele Estado44. Neste sentido, sua obra dá um importante passo em direção a uma via de análise do discurso que se distancia da tendência em que se idenficou Luis Reis Torgal e Martim de Albuquerque. Relacionando aqui o debate historiográfico acerca da política no período da Restauração portuguesa, não se pode também deixar de citar o trabalho de um importante 42 Cf. ALBUQUERQUE, Martim de. Jean Bodin na Península Ibérica. Ensaio de História das Idéias Políticas e Direito Público. Paris: Calouste Gulbenkian,1978; Id. Estudos de Cultura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983-2000; Id. Um Percurso da Construção ideológica do Estado. Lisboa: Quetzal, 2002. 43 Para a crítica a Torgal, ver, principalmente, Id. Para uma teoria política do Barroco em Portugal: a Summa Política de Sebastião César de Meneses In: Estudos de Cultura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, v. 2, pp. 355-442, 2000. 44 CURTO, Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade Aberta, 1988. 27 historiador português, Antonio Manuel Hespanha, que, não propriamente preocupado em compreender a conjuntura política restauracionista, antes a situou em um debate mais abrangente, a saber, o da definição de um Antigo Regime português, através de um enfoque sobre as instituições jurídicas definidoras das práticas políticas de então. A abordagem de Hespanha sobre a história política do Portugal seiscentista se difere muito da dos historiadores inventariados até aqui, principalmente em relação ao seu ponto de vista sobre a teoria política da época. Muito mais atento à definição dos parâmetros jurídicos da distribuição do poder neste Antigo Regime português, o autor do já clássico Às Vésperas do Leviathan se distancia da análise do pensamento político produzido então, afirmando haver nele pouca eficácia institucional, ou seja, pouca interferência, que não indireta e eventual, na organização da política45. Com esta obra, Hespanha descortinou, através de uma torrente informática de dados sobre as jurisdições e os ofícios do XVII português, um mundo até então inexplorado pela historiografia, fundamentando a visão de uma distribuição de poderes entre corpos dotados de grande autonomia, e de práticas jurídicas conduzidas por uma doutrina ainda patrimonialista do poder político, em que a monarquia ocuparia não mais do que a posição de um poder preeminente, tendo quase todos os setores de sua atuação limitada pela resistência oferecida pelos demais corpos políticos, resistência cujos principais promotores seriam os juristas portugueses, sempre diligentes e coesos em sua visão tradicionalista do poder e suas instituições. Em sua visão, portanto, o século XVII português ainda não teria assistido à construção de um Estado moderno em sentido estrito, e nenhum dos eventos políticos associados à conjuntura restauracionista parece pôr em xeque tal sistema político. O quadro apresentado por Antonio Hespanha marcou profundamente a historiografia da era moderna de Portugal a partir de então, definindo novos temas e abordagens que de várias formas passaram a fundamentar os estudos que se debruçaram sobre a história política portuguesa do século XVII46. Mesmo assim, com algum tempo a interpretação de Hespanha 45 HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal. Coimbra: Livraria Almedina, 1994 [Esta não é a primeira edição, havendo outras, da década de 1980, em espanhol e em português, como uma “Edição do autor” de 1987]. 46 Uma boa amostra desta influência pode ser analisada no volume organizado pelo próprio Hespanha dentro do projeto dirigido por José Mattoso: HESPANHA, A. M. (coord.). O Antigo Regime (1620-1807). In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, v. 4, 1998 [Há também uma edição anterior a esta, de 1993, mais luxuosa, publicada pelo Círculo de Leitores, que porém não foi a consultada por este trabalho]. Textos de Antonio Hespanha posteriores à publicação do Às vésperas do Leviathan continuaram sempre trazendo novas questões, que da mesma forma influenciaram a historiografia portuguesa no tema da Restauração. Destaque-se artigos como: HESPANHA, A. M. A “Restauração” portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641. In: Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa: Edições Cosmos, n. 9/10, pp. 2962, 1993; e Id. Les autres raisons de la politique. L’economie de la grâce. In: SCHAUB, Jean-Frederic. Recherche sur l’histoire de l’Etat dans le monde ibérique. Paris: Presses de l’Ècole normale supérieure, pp. 6786, 1993. Sua visão, esboçada nestes trabalhos, do papel desempenhado pelas Cortes e das características de uma 28 passou a ser matizada por estes novos estudos, que vêm reconsiderando o papel desempenhado pela conjuntura restauracionista em algumas transformações observadas em tal sistema político. Em primeiro lugar, destacaram-se os trabalhos do historiador Nuno Gonçalo Monteiro sobre as práticas políticas da nobreza portuguesa. Embora seu principal enfoque tenha sido as transformações de tais práticas, e do estatuto social nobiliárquico no Portugal do século XVIII47, Nuno Monteiro pôde estender suas considerações ao momento histórico antecedente, e interpretou a Restauração como um período de clivagem em relação à constituição das relações de poder no seio da nobreza, havendo conseguido o poder régio, em clara estratégia de centralização do poder, atrair o mais eminente setor da aristocracia portuguesa para a sua área de ação, reduzindo assim o peso social e político da resistência ao alargamento da intervenção régia oferecida pelas instituições de poder provinciais48. Mais recentemente, o trabalho de Ângela Barreto Xavier evidenciou a presença de debates políticos durante a Restauração, observados pela autora principalmente nas sessões das Cortes de 1668, convocadas exatamente para, entre outras atribuições, a confirmação da deposição de D. Afonso VI e a definição do estatuto político que se conferiria a D. Pedro, debates que representavam uma disputa entre diferentes ideais e projetos para a monarquia e sua relação com a sociedade portuguesa. Enunciados em Cortes, não deixaram tais discursos de obedecer às estruturas expositivas típicas dos pareceres jurídicos, mas Ângela Xavier soube demonstrar como, naquele contexto, muitas vezes inclusive os mesmos enunciados serviram para defender argumentações e propostas distintas, propostas estas que puderam ser relacionadas aos diferentes tratados políticos produzidos em Portugal no mesmo período49. E tais tomadas de posição, na ótica da historiadora, indicavam opções políticas distintas, e mostravam a emergência, com conseqüências para as práticas políticas da época, de um economia do dom, similar à diagnosticada em sociedades tribais pelo clássico trabalho do antropólogo Marcel Mauss, na definição de maiores detalhes do funcionamento da política nesta sociedade corporativa descrito pelo Às Vésperas do Leviathan, encontrou aprofundamento e defesa nas obras posteriores de Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha. Cf. CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; Id. Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII. In: Lusitania Sacra. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2ª série, tomo XI. Pp. 21-57, 1999; Id. Religião e ordem social. Em torno dos fundamentos católicos do sistema político do Antigo Regime. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Instituto de História de Teoria da Idéias, n. 22, pp. 133-174, 2001; CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas Senhoriais e Redes Clientelares. Lisboa: Editorial Estampa, 2000. 47 Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Patrimônio da Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. 48 Já havia algumas observações neste sentido no capítulo: Id. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, J. op. cit. v. 4, pp. 297-338. Mas esta interpretação tomou forma principalmente em Id. O “ethos” da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança: algumas notas sobre a Casa e o Serviço ao Rei. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Instituto de História de Teoria da Idéias, n. 19, pp. 382-402, 1998. 49 XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. 29 pensamento político mais voluntarista, e defensor da acentuada capacidade de intervenção política do poder régio. Sinais deste discurso, e deste pensamento, não por acaso, foram encontrados por exemplos em tratados de agentes políticos de relevo na conjuntura que aqui também se objetivará, como foram Sebastião César de Meneses e Antonio de Sousa de Macedo. Ultimamente, Ângela Barreto Xavier enfrentou a difícil tarefa de escrever, em conjunto com o historiador Pedro Cardim, uma biografia de D. Afonso VI, e o resultado é bastante representativo das mudanças que já se pode observar nesta historiografia do Antigo Regime em Portugal, mais de vinte anos passados da publicação do livro de Antonio Hespanha, principalmente quando se depara com aspectos mais conjunturais da política portuguesa seiscentista. Diante do desafio de reconstituir a vida, e talvez os pensamentos, de um personagem que pouquíssimas vezes deixou algo escrito de sua própria pena, mas que foi caracterizado e julgado por diversas obras, conflitantes discursos que, em diferentes arenas políticas e culturais, debateram o legado de seu reinado para a constituição de Portugal, Cardim e Xavier tentaram, com variado êxito, desvincular-se de tais discursos, e produziram um narrativa que acima de tudo indica a relevância das tensões políticas em que se situou a vida do monarca, antes, durante e depois de sua ocupação do trono português50. Seguindo a tendência observada no livro de Ângela Xavier, ali são expostos, além da complexidade dos partidarismos que convulsionaram a Corte portuguesa nas décadas de 1660 e 1670, os conflitos ideológicos que muitas vezes, embora jamais de forma estanque, permearam as disputas políticas do tempo, consolidando-se ainda com mais força a necessidade da análise da produção intelectual coeva para a compreensão da política portuguesa do XVII. Além disso, em alguns momentos são verificados eventos que apontam para o fato de que tais disputas não se limitavam a um ambiente cortesão, tal qual tradicionalmente se o descreve, mas que também se transformava a configuração das instituições políticas portuguesas, bem como das forças sociais que delas participavam, e inclusive do entendimento político acerca destas. Este ponto será decerto mais detidamente analisado adiante neste trabalho, e espera-se aqui poder contribuir para tal debate com a análise das páginas do Mercurio Portuguez, e com o questionamento do lugar ocupado pela publicação naquela conjuntura política. Neste ínterim, outras obras foram produzidas que trataram de aspectos fortemente relacionados como o objeto de estudo do presente trabalho. Neste sentido, é necessário destacar a produção daqueles autores que se dedicaram a estudar, de maneira geral, a história 50 CARDIM, P. e XAVIER, A. B. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. 30 da imprensa periódica portuguesa. Nenhum deles tendo exatamente centrado suas atenções no Mercurio Portuguez, debruçados bem mais sobre o desenvolvimento dos periódicos portugueses a partir do século XVIII, autores como Rocha Martins, Alfredo da Cunha, e um pouco mais recentemente José Tengarrinha, apenas destacaram, com maior ou menor ênfase, as suas intenções políticas, de incitamento aos combatentes e à população portuguesa a favor da guerra, intenções essas responsáveis por uma adulteração propositada das notícias ali divulgadas. Além disso, são também unânimes em relacionar sua publicação com a proliferação de periódicos que Antonio de Sousa de Macedo observava na Europa, principalmente na França, Inglaterra e nos Países Baixos51. Foi o historiador Rui Bebiano, dedicado a empreender, na esteira de alguns estudiosos ingleses e franceses, uma reaproximação entre a historiografia portuguesa e os temas militares, quem procurou de forma mais atenta destacar o papel da impressão do Mercurio Portuguez. Em seu livro A Pena de Marte, Bebiano contextualiza o XVII português no processo moderno de laicização e institucionalização da guerra52. Tal processo, segundo ele, deveria ser valorizado enquanto constituinte da formação do Estado moderno, tanto quanto o esforço pela direção dos mecanismos do sistema econômicos, pela ampliação da máquina administrativa, ou pela direção da cultura, fatores até então mais bem trabalhados pela historiografia. Para Portugal, Bebiano identifica a importância do período restauracionista, em que o esforço centralizador, muito ligado à conjuntura de guerra, teria ganhado grande impulso. Neste período, além disso, a necessária e constante busca pela sedimentação de apoios à causa restauracionista, tanto interna quanto externamente, contribuíram para a materialização de formas diversas pelas quais o poder régio se imbuiu de atribuir um sentido e criar as condições para a imposição de sua política. Diversas destas atitudes se concretizariam no domínio da escrita, tendentes à construção de um sistema de comunicação organizado e ritualizado, em que se destaca o surgimento da imprensa periódica portuguesa, representado pela Gazeta e pelo Mercúrio Portuguez. Neste sentido, Rui Bebiano pôde destacar, numa via de análise que deverá ser problematizada pelo presente trabalho, o propósito de orientação da opinião contido nestes periódicos, não só em nome da mobilização plena dos entusiasmos e vontades portuguesas, mas também de um consciente esforço de contra-informação, diante da 51 Nas obras: TENGARRINHA, José. A História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa: Portvgalia Editora, 1965; MARTINS, Rocha. Pequena História da Imprensa Portuguesa. Lisboa: Editorial "Inquérito", 1941; e CUNHA, Alfredo da. Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa (1641-1821). Lisboa: 1941. 52 BEBIANO, Rui. A Pena de Marte. Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra: Edições Minerva, 2000. 31 constante e perigosa ação do boato ou da iniciativa propagandística lançada pelo inimigo, interno ou externo. Além disso, outros dois livros recentes devem ser comentados aqui, pois se dedicaram exclusivamente à análise da direção política do governo liderado pelo conde de Castelo Melhor, com especial ênfase à sua atuação pessoal. O primeiro deles é o Um Escrivão da Puridade no Poder, de Maria Luísa de Bivar Black. Em um enfoque bastante evocativo da tradição ufanista comentada páginas acima, sua interpretação pretende evidenciar o conde como um político que assume o poder, sem hesitações, e desenvolve um trabalho político de grande eficiência, responsável pela manutenção da separação entre Portugal e Castela, pela centralização política que seria necessária à vitória na guerra: o trabalho, enfim, de um “patriota”. Para tal, Black utiliza com freqüência referências ao Mercurio Portuguez, que em sua obra funciona como um quadro cronológico básico em que a historiadora se apóia para distinguir etapas da atuação de Castelo Melhor à frente do governo. Afora tal caráter instrumental, a autora define constantemente o Mercurio como o primeiro porta-voz oficial do Estado português, defensor da posição da soberania, do poder absoluto do rei, e orientado sobretudo pelos valores pátrios, no sentido de insuflar o ódio ao castelhano e coragem às hostes nacionais perante o inimigo53. Tais conclusões acerca do processo político do período, bem como sobre o caráter e intenções da publicação de Antonio de Sousa de Macedo, poderão ser redimensionadas por alguns aspectos a ser trabalhados no presente estudo. O segundo livro foi o publicado por Francisco da Silveira de Vasconcellos e Souza, descendente do conde de Castelo Melhor, e proprietário de um acervo particular de documentos e cartas respeitantes à sua trajetória. Sua análise propriamente dita do período e da atuação política de Castelo Melhor, também voltada para o reconhecimento do patriotismo, da inteligência, e até do pioneirismo da visão política do conde, é no entanto bastante imprecisa, e fragmentada. Mesmo assim, seu livro traz uma grande quantidade de informações nem sempre encontradas juntas em outras obras sobre o período, embora nem sempre Vasconcellos e Souza fundamente-as suficientemente para que possam ser reafirmadas sem risco54. Apesar destes problemas, porém, ambos os livros possuem o mérito – que também favorece o vínculo com uma historiografia ufanista e monumentalizadora – de trazer em apêndices um conjunto razoavelmente farto de cartas, pareceres, e outros documentos, que significativamente contribuem para o estudo desta última e polêmica fase da Restauração 53 BLACK. Maria Luísa de Bivar. Um Escrivão da Puridade no Poder: o Conde de Castelo Melhor. Lisboa: SPB Editores e Livreiros, 1995. 54 SOUZA, Francisco da Silveira de Vasconcellos e Souza. O Ministro de D. Afonso VI. Luís de Vasconcellos e Souza 3º Conde de Castello Melhor. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2001. 32 portuguesa. Além disso, os dois trabalhos permitem também entrever a variedade de questões que pelas quais se pode adentrar no estudo deste período. A escolha feita aqui é a de começar pelo periódico publicado entre 1663 e 1666 pelo secretário de Estado do governo de D. Afonso VI, e tal escolha não é fortuita. Além do estranhamento causado pela rara referência a uma publicação mensal de notícias na historiografia sobre o período, mesmo nas abordagens tradicionais sobre a história da guerra da Restauração, pesou ainda mais que a impressão do Mercurio poucas vezes tenha sido considerada enquanto elemento significativo da política realizada por aquele governo. Quando o foi, tratou-se apenas de comentários esparsos, ou por demais genéricos, sem prévia análise do conteúdo de suas edições. Porém, tanto os comentários de Antonio Vieira em suas cartas, quanto os aspectos conturbados e movediços da conjuntura política em que ele era lido, constituem já indícios de que o papel desempenhado pelo Mercurio nos enfrentamentos políticos da época não pode ser subestimado, ou compreendido sem o devido exame de seus exemplares. Além do mais, tais simples indícios de que, em meio a tais conflitos políticos, posicionava-se um periódico mensal escrito pelo secretário de Estado, revelam já tratar-se aí de um sinal das transformações dos espaços de atuação política em curso durante a era moderna. Para pôr à prova tais suspeitas, e caracterizar alguns traços específicos da atuação política representada pelo Mercurio Portuguez, faz-se necessário uma leitura detida das principais questões enfocadas pela sorte de imagens, narrativas, e de discursos veiculados em suas páginas, leitura que aqui se realizará, na pretensão ao menos de possibilitar e estimular que novas análises sejam feitas, que possam corrigir as falhas e acrescentar outros elementos e pontos de vista não contemplados pelo presente trabalho. Neste sentido, as próximas páginas serão dedicadas à interpretação das notícias publicadas que indicam, desde suas primeiras edições, alguns dos principais problemas que Antonio de Sousa de Macedo procurava enfrentar com a impressão do Mercurio. Em seguida, serão descritas e contrastadas as formas discursivas com que o periódico tratava dos eventos militares daquele último período da guerra da Restauração, em que se consumiam a maior parte de suas páginas e exemplares. Por fim, tal interpretação se debruçará sobre as notícias em que Macedo divulgava e defendia as medidas políticas de seu governo, principalmente as que interferiam nos rumos daquela guerra, por cujo resultado seria, afinal, definido o destino da monarquia e do reino de Portugal. Uma interpretação que pretende permanecer atenta à inserção do Mercurio Portuguez nas disputas e debates políticos de seu tempo, e voltada em última instância para identificar a 33 posição ocupada por tais impressos nestas disputas. E sempre atenta, seguindo o conselho do padre Antonio Vieira, ao que o Mercurio diz, mas também ao que ele não diz. 34 2 AS PRIMEIRAS BATALHAS DO MERCURIO PORTUGUEZ Foi certamente em uma das primeiras semanas de fevereiro de 1663 que saiu da oficina do impressor régio Henrique Valente de Oliveira o primeiro número do Mercurio Portuguez, com as novas da Guerra entre Portugal, & Castela. Tratava-se de um opúsculo com um total de 8 páginas, incluídos a capa e seu verso, que podia ser comprado por 10 réis, em livrarias, confeitarias, e outros pontos comerciais de Lisboa, e provavelmente em outras cidades importantes do reino. O frontispício deste primeiro número trazia um subtítulo, “Começa no principio do anno de 1663”, a indicação de seu autor, as informações sobre o impressor e a cidade, além da simples referência de que o texto possuía “todas as licenças necessarias” freqüente em publicações de pequeno volume. Na primeira página de texto, um título interno anunciava que ali se encontrariam as novas do mês de janeiro de 1663; mas não era com notícias que o periódico desenvolvia suas primeiras linhas, e sim com uma justificação de sua presença diante dos olhos dos seus leitores: Saber os successos de outros Reynos, & Provincias, naõ he sò curiosidade, mas necessidade aos Politicos; porque de mais do que se aprende pelo exẽplos (que sendo do mesmo tẽpo, saõ os melhores Mestres) o estado em que se achaõ os outros, principalmente se saõ vesinhos, ou interessados, he medida per que se regulão, & encaminhaõ os meios da conservação, & utilidade propria.55 Era para suprir tal necessidade ao exercício da política que o Mercurio Portuguez declarava ter sido impresso, oferecendo exemplos do presente que servissem como medida aos políticos também do presente, que os ajudassem na busca dos meios para sua própria conservação. Tal serviço, até então, vinha sendo realizado pelos castelhanos com maior aplicação do que pelos portugueses, mais interessados estes em obrar do que em escrever. Mas os castelhanos, rivais de uma guerra iniciada 22 anos antes, “ou pouco informados, ou muito ligeiros, ou com demasiada paixaõ”, faltavam com a verdade em seus escritos, fazendo deles lições prejudiciais a quem lhes dava crédito, “& o peor he, que não sei por que fatalidade, o tem com os estrangeiros taõ grande, que na opiniaõ mais que nas forças os atemorìsa Castella”56. 55 Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castela. Novas do mez de janeiro de 1663. Lisboa: na Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fol. 2r. – O título dos diferentes números do periódico variou, porém começava sempre com Mercurio Portuguez, que é a forma como será referido adiante, destacando-se apenas o mês sobre o qual cada edição trata. É importante também advertir que as edições de 1666 são já compostas por outro impressor, chamado Domingos Carneyro, sediado também na cidade de Lisboa. 56 Ibid. loc. cit. 35 De fato, desde a tomada pelos castelhanos da cidade de Olivença em 1657, dezenas de relações, gazetas, e outras espécies de escritos foram publicados em Madrid, mas também em outras cidades como Sevilha, Granada, Valencia e Salamanca, trazendo notícias sobre os avanços do exército da monarquia católica sobre o reino rebelde de Portugal57, e o ano anterior ao do início da publicação do periódico português foi o em que sua incidência cresceu mais. O discurso inicial redigido por Antonio de Sousa de Macedo, portanto, apontava para o efeito nefasto das publicações castelhanas na opinião que se difundia sobre os rumos da guerra luso-castelhana por toda a Europa. Fazia-se necessário empreender não só a guerra que se desenvolvia nos campos de batalha oferecidos pelo território fronteiriço com o inimigo, mas também nesta guerra de informação em que venciam com folga os castelhanos. Através do primeiro Mercurio Portuguez, o governo anunciava ter se apercebido desta necessidade, ao mesmo tempo em que apresentava sua mais nova arma, destinada a interferir, como faziam então os castelhanos, mais na opinião que nas forças, nos rumos do debate internacional sobre a guerra da Restauração. Que o seu alvo era a opinião estrangeira, era o que o secretário de Estado fazia questão de frisar: “Para servir ao bem publico da Europa com novas certas da guerra entre Portugueses, & Castelhanos (unica hoje entre Christaõs) se dispoem Mercurio”58. Estes inimigos, os perniciosos escritores castelhanos, e este objetivo, transformar a opinião estrangeira, serão sempre os mais declarados pelo periódico, mas não serão jamais os únicos, nem os mais relevantes. Sobreditas a sua utilidade, e a sua função, o periódico passa então a firmar um compromisso com a veracidade dos fatos que de ali em diante seriam narrados, mês a mês. Não seria pelo fato de ser português, que os relatos do Mercurio deveriam ser desacreditados, “antes o receo desta sospeita o fará mais acautelado, para q, seguindo a natureza do seu Planeta, senaõ desvie dos rayos do sol da verdade”. E anuncia ainda que, afora sua periodicidade mensal, sempre que houvesse algo digno de se saber antes, “naõ tardará; porque a velocidade incansavel de suas azas naõ repara em fazer por todo o mundo quantas jornadas forem convenientes”59. Obviamente, este juramento de fidelidade à verdade não era exclusividade do periódico, mas um exórdio costumeiro das relações e gazetas do período. Tome-se como exemplo a dedicatória ao rei Felipe IV da obra Campaña de Portugal por la 57 Ver uma lista destas publicações, em ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Papeles, batallas y público barroco. La guerra y la restauração portuguesas en la publicística española de 1640 a 1668. Disponível em: <http://www.fronteira-alorna.pt/Textos/papelesbatallas.htm> Acesso em: 1 de dezembro de 2008. 58 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fols. 2r-2v. 59 Ibid. fol. 2v. 36 parte de Estremadura el año de 1662, de D. Jerônimo Mascarenhas, português que havia ficado por Castela desde os idos do golpe da Restauração de 1640, e tornou-se um dos principais escritores a serviço da propaganda dos Áustrias e da recuperação de Portugal, além de bispo eleito de Leiria60, que merece aqui tal destaque por ter sido um freqüente alvo das invectivas e das zombarias do Mercurio Portuguez, e designado pelo periódico como o cronista de D. Juan de Áustria: Ni el ser esta empressa tan propria de V. M. ni el verla executada por un Hijo suyo, pudieron apartarme de la puntualidad de los acontecimientos; porque siendo mi fin escribir solamente el hecho de lo sucedido à las Reales Armas de V. M. en sus Catholicas Empressas, no me toca mas que referirlos como passaron en verdad, sean unos, ò otros poço favorables, ò muy gloriosos à la notoria justicia, con que V. M. las empreende. Los que de esta Campaña que publico, aunque fueron grandes en el efecto, son mayores por el fin à que miraron; pues en el dictamen de todos los que discurren sin passion, y con noticias, no se pudieron elegir puestos, que mas miren al todo de aquella Conquista, que los que con tanta reputacion han ocupado en la Provincia de Alentejo las Reales Armas de V. M.61 Mas não é pela guerra, no entanto, que se iniciam as notícias do primeiro Mercurio Portuguez, mas por uma descrição “do Estado em que se acha o governo de Portugal”62. Sua justificativa é que, esclarecendo-se já neste primeiro número como estava funcionando o governo, notícias posteriores seriam compreendidas melhor pelos leitores. Mais do que isso, porém, estava em jogo, logo após uma defesa dos procedimentos e da utilidade do periódico recém-lançado, associar a ela uma defesa do governo recém-instaurado. Não por acaso, Antonio de Sousa de Macedo começa sua descrição pelo dia do início do governo, atribuindo ao evento uma naturalidade certamente incondizente com a memória recente que se tinha dele: Em vinte & tres dias de Junho proximo passado do anno de mil & seiscentos & sessenta & dous, achandose o Serenissmo Rey Dom Affonso VI com idade competente, a Rainha Regente sua Mãy, presentes os Tribunaes, Titulos, & Fidalgos da Corte, lhe entregou solẽnemẽte o governo do Reyno, que avia governado seis annos, sete mezes e dezaseis dias com grande amor, prudencia e fortaleza varonil. Ficou S. Magestade no mesmo seu quarto do Paço, em que ainda estâ, tratando da fundação de hũ Cõvẽto de Religiosas, a q sempre determinou retirarse, tanto q a idade, & necessidade de seu filho o permitisse.63 Bastante sucinta, não se pode sequer chamar de narrativa esta referência do Mercurio ao golpe do ano anterior. Estava o rei com idade competente, e o governo lhe foi entregue 60 Bispado que, com o fracasso da recuperação de Portugal, nunca chegaria a ocupar. Sobre a trajetória de D. Jerônimo Mascarenhas há importantes informações em ÁLVAREZ, F. B. Portugal no tempo dos Filipes. Política, cultura, representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000. pp. 282-289. 61 MASCARENHAS, Jerônimo. Campaña de Portugal por la parte de Estremadura el año de 1662. Madrid: En la Imprenta de Francisco Xavier Garcia, 1762. fols. 2v-3r. A primeira edição saiu também em Madrid, no ano de 1663. 62 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. loc. cit. Repare-se no gracejo com que a palavra estado é aí iniciada com letra maiúscula... 63 Ibid. fols. 2v-3r. 37 com toda a solenidade devida. Um discurso seco, de quem dissimula a existência de uma grande polêmica na sociedade portuguesa sobre o modo como o governo fora instaurado, e inclusive sobre a dita competência do rei para conduzi-lo. A ênfase na situação da rainha regente dá indícios do problema. Macedo elogia seu governo, sua postura, como toda a tradição portuguesa o faria daí em diante, mas não deixa de relembrar o tempo de duração da regência, em anos, meses e dias, como quem diz que já fora mais do que o suficiente. Estava agora a viúva do Restaurador no mesmo quarto de sempre, o que refutaria quaisquer comentários sobre maus tratos e desrespeitos para com a Majestade. Para tal servia também deixar claro que a decisão de se retirar para um convento era dela própria, e anterior às novas condições políticas. Escreveria o conde da Ericeira anos depois, logo após tratar da tomada do governo pelo rei D. Afonso VI, e referir sua reincidência em ações indecorosas: Entre tantas aflições se dedicava a maior lástima à indecência com que a rainha era tratada, porque, além de lhe tirarem toda a comunicação dos negócios do reino, lhe dificultavam a assistência das pessoas que, por obrigação e por afecto, desejavam não faltar da sua ante-câmara (...). E depois de apurados extraordinários dissabores, chegou o desacato a tão subido ponto que, não valendo à rainha o sagrado oratório onde se recolhia, foram profanadas com pedras, as vidraças das janelas, que caíam para o eirado. E porque não ficasse duvidoso o sacrilégio e o desatino oculto, feriam o ar indecentíssimas vozes, que se deixavam rasgar da mágoa de ouvir que era castigada a inocência e a grandeza abatida.64 Este pesaroso discurso do conde seria, provavelmente, um eco das críticas que se fazia ao isolamento em que, à época narrada, o novo governo procurava manter a regente deposta. E se, de seu lado, o governo procurava afirmar que nada de impróprio vinha sucedendo com D. Luisa, e fica evidenciado como o Mercurio Portuguez era utilizado para tal propósito, os seus opositores por sua parte procuravam talvez se beneficiar deste discurso para reivindicar o acesso à rainha, tentando manter aí um centro de atração para os descontentes em relação a D. Afonso e seus ministros. A condição política da rainha era, portanto, uma questão mais delicada do que aparece à primeira vista, e cabia ao periódico tangenciá-lo da melhor forma possível. Neste sentido, divulgar que aquele isolamento era decorrente de uma opção da própria D. Luísa pareceu uma boa solução ao seu redator. De qualquer forma, seria na descrição propriamente do modo como se estava a governar Portugal que o secretário de Estado procuraria apoiar melhor o seu discurso. Em primeiro lugar, Macedo afirma a boa assessoria alcançada por D. Afonso com a eleição, primeira ação de seu governo, de seis conselheiros de Estado, que desde então lhe prestavam contínua assistência, e através dos quais “por annos, erudição, manejo de negocios, 64 ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 194546. v. 4, p. 81. 38 & vista de terras estrangeiras, se achaõ todas as noticias do militar, & politico, no secular, & no Ecclesiastico”65. De acordo com um manuscrito de autoria de uma testemunha dos acontecimentos, tal conselho foi formado de fato nos primeiros momentos do governo de D. Afonso, e composto, além do visconde de Vila Nova de Cerveira e do conde de Atouguia, pelo marquês de Cascais D. Luís Álvares de Castro, pelo conde de Óbidos D. Vasco Mascarenhas, o conde dos Arcos D. Tomás de Noronha, e pelo presidente da Mesa de Consciência e Ordens Antonio de Mendonça66. Sem precisar os componentes do conselho, porém, o redator do Mercurio frisa apenas ter sido a sua eleição ponderada pela experiência e conhecimento adquiridos durante os últimos anos no trato com as diversas áreas em que o governo atuava; Portugal e seu monarca, era o seu discurso, estavam em boas mãos, na assistência contínua de tal conjunto de sábios. Era justamente neste conselho que havia se operado uma radical substituição dos nomes que antes assessoravam a regente, e cabia ao periódico, mesmo depois de alguns meses, defender o critério utilizado para tal mudança política. Até aí, tratando do modo como o poder havia sido tomado, do que se fizera com a rainha deposta, e da imediata e justa eleição de um novo grupo de conselheiros, Macedo havia sido bastante sintético, buscando imprimir ao seu texto naturalidade, e contornando problemas mais delicados. A principal força deste discurso inaugural do periódico, porém, ele deixaria para a descrição propriamente do funcionamento do governo: As cousas maiores se vem & se propõem a elRey em Conselho de Estado pleno, quando se offerecẽ: o despacho ordinário de consultas & petiçoẽs faz elRey cõ seis dos mesmos Conselheiros de Estado deputados para isto, & com os dous Secretarios, a q repartidamente tocaõ as materias, todos os dias q naõ saõ santos à tarde, assistindo pelo menos hora & meia por relogio de area; com o Secretario de Estado, nas segundas, quartas, & sestas feiras; com o do Expediẽte & Merces, nas terças, quintas e sabbados, sendo as quintas feiras destinadas particularmente para merces em recompensa de serviços; mas nestas assistem de presentes sò dous dos ditos Conselheiros. Todas as noites, ainda que sejaõ de dias santos, assina elRey os papeis que deve assinar; no que, por serem muitos, gasta horas inteiras; & dizendoselhe que para escusar este grande trabalho podia usar de caixilho, como costumaõ os outros Reys, respondeo, que o faria quando se achasse cançado, & assina tudo de maõ propria. Alem destas horas de occupação ordinaria, em todas as do dia & da noite, sendo necessario, acode e despacha extraordinariamente, ou com os Secretarios, ou com quem convem, os negocios occurrentes q naõ sofrem dilaçaõ: Dá audiencias geraes todas as quartas, & sestas feiras pela manhãa, & aos fidalgos aos sabbados às mesmas horas; & outras audiencias particulares sem dia, nem hora certa.67 65 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 3r. D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 41-42. Este manuscrito, presente no acervo da Biblioteca da Ajuda e publicado pelo historiador Eduardo Brazão, e a discussão sobre sua autoria, serão comentados adiante. 67 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fols. 3r-3v. 66 39 Realmente, o texto publicado pelo secretário de Estado está muito distante daquilo que convencionalmente se espera de uma representação do poder monárquico. O que é ressaltado aí é uma rotina incessante de trabalho, através da qual o leitor ficava conhecendo a divisão nos dias da semana dos despachos do rei, seus conselheiros e secretários. E o quadro era de um trabalho árduo, em que a majestade via-se ocupada noite e dia, quase todos os dias, com horários fixos e contados no relógio! Macedo trazia ainda a informação de que havia um dia voltado apenas para o direcionamento das mercês em recompensa de serviços; o governo buscava nitidamente atrair tais serviços, garantindo não só que seriam recompensados, mas dizendo o dia e hora em que eles seriam avaliados. Além disso, o periódico informava ao público os turnos de atendimento do monarca, das audiências gerais e das específicas aos fidalgos, tudo funcionando em uma rotina previamente determinada, organizada e previsível. Na construção do discurso apresentado pelo Mercurio Portuguez em sua primeira edição, portanto, Antonio de Sousa de Macedo opta por tangenciar aqueles temas mais polêmicos do momento, como o golpe do ano anterior e a situação da rainha, e investe na valorização da política levada a cabo pelo novo governo, que além de composto por um grupo de experientes conselheiros, é apresentado com um regular e organizado funcionamento cotidiano. Em meio a tal descrição, surge a imagem de um rei da mesma forma dedicado ao trabalho, que mesmo quando lhe é sugerida uma forma de agilizar o seu serviço, utilizando um caixilho para substituir a assinatura de próprio punho, recusa-se a acompanhar o que já seria uma tendência em outros governantes. Um monarca diferente, portanto, cujo valor se observava na aplicação às funções governativas. Sua rotina, continua o Mercurio, ficava então repartida entre estas atividades, as missas de todas as manhãs, e os jantares com que sempre Afonso se apresentava às vistas de seus vassalos, para alegrá-los. Até esta prática, tradicionalmente vinculada a uma representação cortesã de poder soberano, é veiculada pelo discurso do Mercurio como parte da rotina de trabalho e da disponibilidade do rei. Desta forma, ficavam tomadas todas as horas do seu dia: “se deixa ver, que poucas ficaõ para se entreter retirado; sẽdo admiravel em hũ Rey moço taõ repẽtina mudãça a tãto trabalho, & aplicaçaõ, do ocio, & passatẽpos em q os Príncipes costumaõ ser criados”68. Macedo pretendia ressaltar a mudança de comportamento do jovem Afonso, e ao mesmo tempo naturalizar o seu comportamento anterior à posse do governo. Além de contrariar os rumores sobre a devassidão em que D. Afonso manteria sua rotina, tal descrição do cotidiano de trabalho e decisão do governo tinha também como 68 Ibid. fol. 3v. 40 importante efeito mitigar a opinião de que o conde de Castelo Melhor viria impondo seu arbítrio a todas as searas da política portuguesa. A posição ocupada por Luis de Vasconcelos e Sousa no governo seria sempre um tema polêmico naqueles anos, e o debate sobre ele se estenderia até as reuniões das Cortes de 1668, mostrando-se um ponto crucial da disputa entre modelos políticos para a monarquia portuguesa69. Desde cedo objeto de críticas de diversos setores, que corriam em rumores, cartas e papéis de Lisboa, os poderes atribuídos ao conde pelo cargo de escrivão da puridade teriam de ser defendidos não só pela publicação no início de 1663 do Regimento70 do cargo, da responsabilidade do próprio secretário de Estado, como pela obra Epítome Unico da Dignidade de Grande e Mayor Ministro da Puridade, do carmelita descalço Francisco do Santíssimo Sacramento, esta já de 166671. Enquanto o Regimento trouxe a investidura jurídica e uma descrição sumária dos requisitos e das amplas atribuições do escrivão, o livro do frade de três anos depois investiu largamente na justificação histórica da presença de um principal conselheiro ao lado do monarca, que se assentava em desde exemplos bíblicos até os da tradição medieval ibérica72. Como, portanto, não pudesse deixar de tratar mais diretamente da presença do conde na política portuguesa de então, Macedo deixa para o final de sua descrição do “Estado do governo” naquele Mercurio, saído ainda antes do Regimento que seria publicado em março de 1663, um comentário sobre o cargo de escrivão da puridade, não por acaso retornando ao tom mais sintético com que tratara do início do governo: Dos Conselheiros de Estado escolheo hum para escrivão da puridade; officio que costumarão ter os Reys Portugueses; pessoa das maiores do Reyno, de juizo, valor, expediente, & fidelidade digna de tão grande lugar; com quem, como com primeiro Ministro, possa tratar as materias mais particulares; & por quem os Vassalos, sem o temor reverencial que causa a Real presença, possaõ a todo o tempo com mais liberdade, & facilidade advertilo, & representarlhe suas queixas, & tudo o que for necessario.73 69 Cf. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. pp. 142-150. 70 O Regimento do Escrivão da Puridade encontra-se publicado em algumas coletâneas de documentos portugueses. A transcrição mais visitada é a de SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronológica da Legislação Portugueza (1657-1674). Lisboa: Imprensa de J.J. A. Silva, 1854-1859. pp. 83-85. Mas encontra-se também entre os documentos presentes nos anexos de BLACK, Maria Luisa de Bivar. Um Escrivão da Puridade no Poder: o Conde de Castelo Melhor. 1662-1667. Lisboa: SBP Editores e Livreiros, 1995. pp. 139-143. 71 SANTÍSSIMO SACRAMENTO, Francisco do. Epítome Unico da Dignidade de Grande e Mayor Ministro da Puridade, e de Sua Muita Antiguidade, e Excellencia. Lisboa: Oficina de João da Costa, 1666. Sobre o autor, ou melhor, sobre a falta de dados sobre ele, cf. TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. v. 2, pp. 298-299. 72 Uma análise mais detida dos dois textos, bem como informações sobre as críticas contrárias ao poder cedido ao cargo, pode encontrar-se em CARDIM, Pedro, e XAVIER, Ângela Barreto. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. pp. 138-141. Exclusivamente sobre o livro de Santíssimo Sacramento, ver TORGAL, Luis Reis. Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. v. 2, pp. 132-133. 73 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. loc. cit. 41 De forma bem diferente do que apareceria meses depois no Regimento, em que ficava explícito que absolutamente “tudo o que pertencer ao Estado desta Corôa, se expedirá por sua ordem e ofício”74, o discurso do primeiro Mercurio Portuguez afirma também a antigüidade do ofício, mas divulga se tratar de nada mais do que um escolhido entre os outros conselheiros, por sua condição e qualidades, para assistir mais particularmente ao trabalho do monarca, e principalmente atuar como um intermediário entre o rei e os vassalos, com quem estes poderiam expor suas queixas com mais tranqüilidade, sem o temor causado pela vista de D. Afonso. Parece que então já se fazia a crítica de que Castelo Melhor vinha impedindo ao máximo o acesso direto ao rei, e impossibilitando totalmente audiências sem a sua presença; esta sim, portanto, é que trazia temor a alguns vassalos, e em vista disso o comentário do Mercurio não deixa de se revestir de algum cinismo. Importante é perceber também que, apesar do que escreveria anos depois D. Luis de Meneses, não havia qualquer constrangimento por parte do governo de identificar o restaurado ofício de escrivão da puridade com o de um primeiro ministro75. O principal objetivo do comentário do periódico do secretário de Estado não fora este, mas o de considerar as funções do cargo dentro do funcionamento do governo caracterizado até ali, em que se proclamava sua regularidade, seu empenho, sua eficiência e sabedoria, e principalmente seu direcionamento para o mais aberto possível relacionamento com os vassalos e atenção aos seus interesses e demandas. No discurso do Mercurio Portuguez, importava divulgar o escrivão da puridade como mais uma engrenagem da incessante máquina administrativa que operava em torno do jovem, mas surpreendentemente dedicado, rei D. Afonso VI. Este modo como o periódico procura divulgar o funcionamento regular e acessível do novo governo, bem como a aplicação do jovem rei aos trabalhos cotidianos que este funcionamento lhe impunha, ou mesmo rebater as críticas à posição ocupada pelo conde de Castelo Melhor, já na mesma primeira edição em que o propósito de interferir na opinião dos estrangeiros sobre a guerra ibérica foi declarado, cabe notar, parece de alguma forma desmentir a realidade deste propósito. Não se pode imaginar de fato que fosse do interesse dos políticos franceses, ingleses ou holandeses conhecer a rotina de trabalho do monarca e seus ministros, os horários de suas audiências, ou o modo como eram divididos os despachos régios pelos dias da semana. Da mesma forma, não era aos estrangeiros que se devia explicar 74 BLACK, M. L. B. op. cit. p. 141. “E porque poderia parecer odioso o título de primeiro-ministro, conseguiu o conde o de escrivão da Puridade”: ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, p. 79. 75 42 o papel desempenhado pelo escrivão da puridade. Com efeito, embora Antonio de Sousa de Macedo tivesse o costume de enviar o Mercurio Portuguez para os diplomatas portugueses sediados em outros centros políticos europeus76, e que sua narrativa de feitos bélicos provavelmente servia como base para publicações nestes centros de textos responsáveis por divulgar a versão portuguesa dos fatos, já se pode desconfiar, pela primeira edição do periódico, que a motivação principal de sua publicação pela oficina de Henrique Valente de Oliveira não era esta. Até porque não era o impacto do Mercurio em terras estrangeiras que incomodava ao seu mais insigne opositor, o padre Antonio Vieira. Parece já, portanto, que proclamar que o periódico era uma arma do novo governo, criada para reconquistar alguma credibilidade portuguesa perdida em terras estrangeiras, era apenas mais uma das novas trazidas por aquele seu primeiro número, com que talvez se procurava dissimular outras mais urgentes, e próximas, causas que motivaram sua publicação. Para se conhecer melhor tais causas, e tais motivações, é preciso se debruçar sobre suas próximas edições, e buscar identificar quais foram as primeiras batalhas enfrentadas pelo Mercurio Portuguez. 2.1 EXPECTATIVAS DE PAZ, EM TEMPO DE CONJURAÇÕES De uma leitura geral do Mercurio Portuguez, sobressai o grande predomínio das notícias de guerra. Com efeito, como se perceberá em mais detalhes no próximo capítulo, são raras as edições que não relatem algum feito militar, e são muitos os exemplos das que tratam quase exclusivamente do desenrolar do conflito com o exército castelhano. Mas alguns primeiros aspectos do discurso do periódico sobre eventos militares importarão ser analisados já aqui, pois trazem indícios das primeiras batalhas travadas por Antonio de Sousa de Macedo, indícios dos problemas, sempre internos ao reino, a que o secretário de Estado procurou responder, mais ou menos dissimuladamente, e que moldaram os primeiros contornos de seu discurso, com conseqüências significativas para todas as suas edições a partir de então. Na introdução às novas do mês de fevereiro de 1663, com efeito, assim como se fizera na edição de janeiro em relação ao governo, é abordado rapidamente o estado mais geral da guerra da Restauração àquela altura: “basta dizer, q trabalhando as Armas Portuguesas, & 76 Através de sua correspondência com o marquês de Sande, embaixador na Inglaterra, que será comentada adiante, se terá um exemplo desta prática. 43 Castelhanas ha mais de 22 annos, estão hoje tão furiosas, como se este fora o primeiro”77. A total concentração dos esforços de guerra castelhanos contra Portugal, três anos depois de firmada a paz com a França, ainda não havia sido suficiente para derrotar os lusitanos. Ao contrário, argumenta o Mercurio, padeciam naqueles anos os castelhanos ainda mais do que os portugueses, principalmente por duas razões: He hũa, bater Castella certa moeda de cóbre, em q ao valor intrinseco acrescẽtou sete partes de valor extrinseco, para a fazenda Real, sem reparar em que se destrue o Reyno, & os Vassalos com a muita desta moeda que metem os estrãgeiros, pelo ganho excessivo. Outra he que, por Castella estar despovoada de gẽte, forma seus exercitos pella maior parte de Estrangeiros; os quaes, álẽ das grãdes despezas com q são conduzidos, fazẽ guerra a Portugal sò tres mezes da Primavera (q he só o tẽpo capaz de campear) & os outros nove mezes do ano a fazẽ aos Castelhanos cõ seus alojamẽtos tão rigurosos q não se cõtẽtando cõ occupar as casas, obrigão os donos a q lhes dẽ de comer cõ regalos; cõ o q os naturaes as deixão, & se despovoão lugares inteiros.78 De acordo com o raciocínio exposto ao leitor, Antonio de Sousa de Macedo relembrava os idos de 1660, quando se blasonava em Castela que o tratado de paz com a França anunciava o fim próximo da rebeldia portuguesa, para então traçar um quadro da conjuntura coeva, suficiente para contrariar aquelas arrogantes expectativas castelhanas. Introduzindo no Mercurio as primeiras reflexões sobre a situação da guerra já vivida há mais de duas décadas, Macedo mostra sua preocupação primeira em desmentir a superioridade militar do inimigo, elemento presente no imaginário e nos comentários castelhanos, europeus, e certamente também nos portugueses, sobre o conflito desde seus primeiros movimentos79. Inserindo Castela no padecimento de problemas típicos das guerras daquele tempo, como a valorização artificial da moeda, coerção das tropas sobre a população nas fronteiras, e conseqüentes miséria e despovoamento, o periódico pretende apontar para uma igualdade de perdas e danos entre as forças rivais, ao que se segue a afirmação de que “de ambas as partes se deseja igualmente a paz”80. Tal declaração é o ensejo para a primeira notícia daquela edição, sobre uma prática que vinha sendo realizada na fronteira de Entre-Douro-e-Minho com a Galícia, com o intuito de organizar uma conferência, em que, mediados pelo rei da Grã-Bretanha, alguns fidalgos dos mais proeminentes dos dois reinos negociariam os termos de um tratado de paz. Desnecessário pode ser lembrar que, tratando-se de uma guerra iniciada por um golpe voltado para a conquista da independência do reino português frente à monarquia de Castela, o 77 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1663. fol. 2r. Ibid. fols. 2r-2v. 79 Cf. COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. pp. 2325. 80 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1663. fol. 2v. 78 44 estabelecimento da paz firmaria, ao menos em primeira análise, a vitória dos insubordinados de 1640. O responsável pelo início das negociações teria sido João Nunes da Cunha, “fidalgo bem conhecido neste Reyno”81, que iniciou o contato com D. Luís de Menezes, marquês de Penalva, nobre próximo ao duque de Medina de las Torres, eminente político castelhano daquele tempo. No momento da publicação do periódico, já estariam designados os comissários de ambos os lados que participariam da dita conferência: Portugal seria representado pelos governadores das armas das províncias de Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes, respectivamente o conde de Prado e o conde de São João, além do próprio João Nunes da Cunha, e Castela pelo marquês de Penalva, pelo governador da Galícia D. Balthazar de Rojas Pantoja, e pelo arcebispo de S. Tiago. Não por acaso, Antonio de Sousa de Macedo destaca nesta notícia, acima de tudo, como os artigos preliminares que informavam a organização da conferência estabeleciam a igualdade de tratamento entre as partes, pois não só o lugar da conferência deveria ser eqüidistante de uma das praças que cada rei possuísse naquela fronteira, como as plenipotências dos comissários deveriam ser passadas na mesma forma, iniciadas por “Eu elRey”, e mais nenhum título. Mostrava assim o periódico que parecia resolvido ao menos o ponto que parecia mais difícil: “estando os animos taõ encontrados, & fica aberta a porta para se tornar a tratar quando Deos seja servido de dar paz a estas duas Coroas”82. O tom deste segundo Mercurio Portuguez é, portanto, de concórdia, e se não chega a difundir total confiança na resolução da conferência de paz, pretende certamente incitar os leitores a acompanhar com boas expectativas o seu desfecho. Porém, na edição seguinte, sobre o mês de março daquele ano, Antonio de Sousa de Macedo faz uma menção rápida, apenas em seu último parágrafo, à conferência sobre o tratado de paz anunciada no número anterior, notando que ainda não se iniciara pela ausência na raia do Minho do conde de São João. De forma bem mais seca do que no mês anterior, conclui-se o texto com a afirmação de que o conde “hoje deve ser chegado àquella parte, & veremos os termos em que se poem este negocio”83. Durante o resto do ano, e dos próximos, o periódico do secretário de Estado não traria mais nenhuma notícia sobre o desenvolvimento das negociações. Porém, outros documentos do período trazem dados inquietantes em relação à construção do discurso do Mercurio sobre o tema. De acordo com o historiador espanhol 81 Ibid. loc. cit. Ibid. fol. 3v. 83 Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 4r. 82 45 Rafael Valladares, um conjunto de manuscritos encontrados Arquivo Histórico Nacional de Madrid dão notícia de que João Nunes da Cunha negociava no Minho não em nome do rei, mas de sua mãe D. Luísa, e propunha o abandono do trono por um D. Afonso incapaz, em troca de que o rei Felipe IV instituísse uma casa de lustre para seu irmão D. Pedro, “a semejanza de las que fundaron el emperador y otros reyes, como la de Florencia”84. O governo castelhano já teria inclusive chegado a aceitar a proposta, mas a negociação desbaratou-se quando seu sentido foi descoberto pelos próprios parciais de D. Pedro, e por influência do embaixador inglês. Tal documentação referia ainda, como conseqüência desta descoberta, o afastamento e a posterior reclusão da rainha em um convento, a declaração da maioridade de D. Afonso e os desterros do marquês de Ferreira e do marquês de Gouveia, entre outros partidários de Cunha. Neste ponto se observam algumas incongruências desta informação, já que o afastamento da rainha e a maioridade de Afonso sucederam ainda em meados de 1662, assim como o desterro do marquês de Ferreira, se se considerar tratar-se de D. Nuno Álvares Pereira de Melo, 4º marquês de Ferreira, mas já duque de Cadaval desde 1648. Destas ditas conseqüências da descoberta da conjura, em 1663 deram-se apenas a reclusão de D. Luísa ao convento, em março, e a saída de Lisboa do marquês de Gouveia, este que Vieira parabenizaria em carta de 16 de janeiro de 1664 por se aproximar o primeiro aniversário de desterro. Para Valladares, que não comentou tal problema, o caso servia para explicar porque, quase três anos depois, o embaixador português na Inglaterra Francisco de Melo, marquês de Sande, tentava fazer crer ao chanceler inglês Lord Clarendon que naquelas práticas do Minho haviam sido discutidos apenas aqueles capítulos preliminares noticiados pelo Mercurio, que determinavam “la mediación de Su Majestad Británica, una breve tregua y un modo de tratar indiferente”85, e que não se buscara então uma paz verdadeira, mas apenas uma concórdia aparente. De fato, não só o marquês de Sande não comentaria em 1665 com Clarendon o suposto golpe contra D. Afonso, que, de acordo com a documentação castelhana João Nunes da Cunha articulava em 1663, como também não trata dele Antonio de Sousa de Macedo, nem no Mercurio Portuguez, e tampouco nas cartas enviadas ao mesmo embaixador português no primeiro semestre daquele ano. Como um dos principais correspondentes de Sande, Macedo 84 VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640~1680. Guerra, conflicto y poderes en la monaqrquía hispânica. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1998. p. 202. 85 Biblioteca Nacional de Lisboa, Pombalina, ms. 548, fol. 49, D. Francisco de Melo ao Senhor Chanceller [Lord Clarendon]. Oxford: 6/11/1665, apud: VALLADARES, R. loc. cit. 46 em várias cartas lhe enviava as últimas novidades sobre as práticas desenvolvidas por Cunha na fronteira com a Galícia. Assim faria, por exemplo, em carta de 20 de fevereiro de 1663: João Nunes da Cunha he partido para Entre Douro e Minho; o Conde de São João, que he outro comissario para o tratado chegou aqui há três dias, voltará logo; o Conde de Prado que he o terçeiro lá está a pé quedo. Na gaseta deste mez de Fevereiro se deve meter, o que toca a tal tratado.86 Há poucos dias, portanto, de escrever a citada edição do Mercurio sobre fevereiro de 1663, o secretário de Estado trata das negociações do Minho no mesmo pé em que faria no periódico, com a única diferença de que informa a Sande que o conde de São João estava em Lisboa, e não na fronteira. Em outra carta ao embaixador, de 29 de março daquele ano, diz apenas que da “conferençia do Minho não temos ainda novas, porque o Conde de São João há poucos dias que chegou lá”87: a mesma justificativa, portanto, que encontra-se no Mercurio de março, que de acordo com a própria carta, àquela altura ainda estava já para ser impresso88. A última referência de Macedo ao assunto com o marquês de Sande seria em carta de 20 de maio, mas já sem qualquer esperança: As conferençias das pazes no Minho se não começarão ainda, porque ouve huma defferença nas prempotençias conferindo-sse primeiro só por João Nunes da Cunha com Dom Luis de Menezes, agora vão emendadas, mas não he isto couza de que se possa esperar bom suççesso, tudo são cavilações castelhanas, mas aqui pareçe que se não rompa o tratado pela nossa parte.89 Talvez respondendo a um questionamento do próprio embaixador sobre o desenrolar das negociações de paz, a única coisa informada por Macedo é que teria havido alguma “diferença” nas plenipotências, ou seja, naquela fórmula inicial da transmissão de poderes aos comissários, conferidas em um primeiro momento apenas a João Nunes da Cunha e ao marquês de Penalva. Paira a dúvida, portanto, ao leitor atual da carta, se Macedo dava a entender ao marquês de Sande apenas a ausência das plenipotências dos outros quatro comissários previamente designados, ou se ficava claro que a diferença em questão era a não inclusão da fórmula “Eu elRey” que garantiria a igualdade entre os dois lados da contenda. De qualquer forma, é nítido que, se houve alguma maquinação por parte de Cunha para derrubar o monarca português, o secretário de Estado o dissimula, e atribui toda a culpa do insucesso das negociações aos ardis dos castelhanos. A acusação fazia sentido, inclusive, porque na 86 RAU, Virginia (ed.). Livro de Cartas que Escreverão ao Ilustrissimo senhor Francisco de Mello, Marquês de Sande, sendo Embaixador Extraordinário em Inglaterra, e França, em os Annos de 658 athe 665. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1969. p. 127. 87 Ibid. p. 145. 88 “a gaseta de Março ainda não está impressa; nella não há novidade se não que vespora de Ramos se passou a Rainha nossa senhora para a quinta, acompanhando-a El Rei, nosso senhor, e o Senhor Infante com toda a Corte”: Ibid. p. 144. 89 Ibid. p. 151. 47 mesma carta Macedo já enviava notícias a Sande sobre o assédio do exército castelhano contra a cidade portuguesa de Évora. Quase três anos depois, na edição do Mercurio Portuguez sobre fevereiro de 1666, quando novas negociações de paz seriam noticiadas, o periódico apresentaria uma postura bastante diferente da de três anos antes: o rei inglês, “desejoso do sossego destas duas Coroas, & de que cessem as morte, & danos que ha vinte & sinco annos se experimentão em guerra tão porfiada”90, teria enviado dois membros de seu conselho de Estado, Richard Fanshaw e Robert Southwell, para, respectivamente em Castela e Portugal, promover acertos de paz entre os reinos. Essa seria, segundo a introdução deste Mercurio, a “nova principal que os zelosos, & curiosos esperão na Relação presente”91, e isso no mês em que a maioria das suas páginas estava dedicada à descrição do funeral da rainha D. Luisa, que vivera reclusa em convento desde março de 1663 até então. A ironia de Antonio de Sousa de Macedo em relação aos “curiosos” leitores interpreta-se melhor com a leitura dos seus comentários à chegada do embaixador inglês: Mercurio ainda que pellos antigos foi tido por fallador, está muito emendado depois que se naturalizou Portuguez; & assi não conta mais particularidades. Sòmente diz, & affirma, que a resposta que sua Magestade mãdou dar, foi muito valerosa, muito arrezoada, & muito agradecida a este bõ officio de elRey da Gram Bretanha, a quem verdadeiramente deve muito este Reyno por muitas vias. Antes de se dar a resposta se considerou muito profundamente a materia cõ todas as circunstancias que ha de presente, & poderaõ succeder no futuro, acerca do estado das cousas de Portugal, de Castella, & de toda Europa; pello que os amigos pódem estar seguros, & os inimigos desenganados de que nada passou sem se advirtir.92 Repare-se: o raciocínio que proclamava as conseqüências nefastas da guerra, as mortes e danos incessantes, o desassossego dos dois reinos envolvidos, reaparece, mas agora é atribuído exclusivamente ao juízo de Carlos II, cujas boas intenções são devidamente reconhecidas e louvadas. A postura da política portuguesa e do redator do Mercurio, porém, representada pela resposta “valorosa” e “arrazoada” de D. Afonso, é agora, no mínimo, mais cética. E quando o seu discurso volta-se para tranqüilizar amigos e desenganar inimigos, assegurando a ponderação e a justeza da resposta portuguesa, fica claro que a expectativa de tais inimigos deveria girar em torno de uma aceitação afobada do governo de D. Afonso em relação às negociações de paz. Dos inimigos, e também dos mais curiosos, a quem o periódico, já não mais o falador de outrora, frustra com a atitude prudente de não descrever os detalhes da resposta a Southwell. Mesmo assim, a opinião que Macedo procura difundir neste momento explicita-se mais logo adiante, quando declara: 90 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fols. 1r-1v. Ibid. fol. 1r. 92 Ibid. fols. 1v-2r. 91 48 Se Castella naõ vier no que he justo, serà demonstraçaõ de que Deos a quer acabar de todo, & ainda que pella guerra puderamos esperar grandes ventagens, com tudo o que Portugal mais deseja, he hũa boa paz, como a melhor de todas as cousas, & recomendada por Deos; & para a conseguir, conforme aquela excellente sentença: Qui vult pacem praeparat bellum; mandou sua Magestade aprestar com toda a pressa os seus exercitos, principalmente o de Alen-Tejo, que serà luzidissimo.93 Qui vult pacem praeparat bellum: a alusão à famosa sentença de Flávio Vegécio94, referência primeira dos escritos de arte militar daquele período, marca bem a significativa mudança do discurso do Mercurio Portuguez, que três anos antes enchia o seu leitor de esperanças quanto à conclusão positiva da conferência de paz na raia norte do reino. Portugal, ainda agora, tudo o que quer é uma “boa paz”, mas não em termos injustos, e não sem ponderar, com uma confiança que não se proclamava em fevereiro de 1663, que a continuidade da guerra tendia a trazer vantagens para os portugueses. E, sobretudo, não deixando crer que as movimentações diplomáticas pudessem interferir, ou amainar a disposição do exército lusitano para a campanha que se aproximava. Quem quer a paz, afinal, prepara a guerra, e enquanto “se tratava de acordos, foraõ chamados por sua Magestade a Salvaterra os Védores gérais do exercito, & artilheria de aquella Provincia; & ambos se expediraõ logo com tudo o necessario”95. Efetivamente, ali se pretendia passar aos leitores a idéia de que o governo já não mais aceitaria em quaisquer termos a paz com Castela, e que era nos campos de batalha que se definiriam os contornos da solução diplomática. Tamanho é o contraste entre as duas abordagens do Mercurio, que, nesta de 1666, da notícia sobre negociações de paz se chega ao mote dos relatos de guerra do mês, que começam narrando a entrada em território inimigo de Pedro Jacques de Magalhães, governador das armas do partido de Riba Côa, província da Beira, com quinhentos cavalos96 e mil infantes. As tropas teriam saqueado mais de seiscentas cabeças de gado vacum, mais de duas mil ovelhas, cem cavalgaduras e muitos porcos, chegando para tal a três léguas da praça castelhana de Ciudad Rodrigo, sem que saísse dela a sua cavalaria para combatê-las, o que, de acordo com o periódico, era a intenção de fundo da ação portuguesa. Era grande o medo sentido pelos soldados da cavalaria da praça, comenta Antonio de Sousa de Macedo. Voltando já dos arredores de Ciudad Rodrigo, Pedro Jacques teria ainda queimado uma atalaia inimiga, cujos prisioneiros questionaram o ataque, argumentando ser público em Castela que já estavam feitas as pazes entre os dois reinos. A postura do governador diante da estupefação 93 Ibid. fol. 2r. Citando de cor, Antonio de Sousa de Macedo altera o primeiro verbo da oração “qui desiderat pacem praeparat bellum”, de VEGÉCIO, Epitoma Rei Militaris, Prologus, 3. 95 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. loc cit. 96 Note-se que, quando o Mercurio Portuguez fala em cavalos, na linguagem militar do tempo, refere-se ao animal e seu cavaleiro. “Cavalo”, portanto, é cada um dos integrantes da cavalaria. 94 49 dos prisioneiros retoma e arremata a discussão sobre as negociações de paz, quando ele os responde dizendo “q esta pratica de pazes poderia ser tal como outra com que ha tres annos os Castelhanos quizeram entreter pella parte do Minho; & que assi pelejassem, ou tivessem paciencia, em quanto não estivessem solemnemente celebradas”97. Só então chega o periódico a relembrar a conferência de paz de 1663, e é interessante perceber como se conduziu até aí o fio de seu discurso. Da ironia diante da curiosidade que se disseminava em torno dos rumos da negociação de paz, e também em torno de como eles seriam relatados pelo Mercurio, e da declarada prudência em não divulgar todos os detalhes da negociação, passou Macedo a demonstrar a força e o preparo do exército português, e ao mesmo tempo indicar que derivava da confiança em tal força uma postura firme e madura do governo diante da bem intencionada missão dos enviados ingleses. Adentrando neste tom na narração dos feitos bélicos do mês, delega somente à fala de Pedro Jacques a incumbência de relembrar ao leitor a prática de 1663, denunciá-la como farsa castelhana, e incutir a constatação de que os tempos de então já eram outros, e outra era a atitude e a posição do exército português. De fato, como se detalhará no próximo capítulo, os rumos da guerra muito haviam mudado naqueles três anos, tanto como o discurso do Mercurio Portuguez sobre ela. Desde a rápida menção feita na edição de março de 1663, esta, posta na boca de Pedro Jacques de Magalhães, seria a primeira referência do Mercurio às conferências do Minho, e a interpretação de que elas não passaram de maquinação castelhana seria a mesma da última carta ao marquês de Sande sobre o assunto. Mais uma vez, se houvera qualquer segunda intenção por parte dos próprios portugueses envolvidos, Antonio de Sousa de Macedo fazia questão de nada comentar. Mas a referência a curiosos e inimigos – provavelmente os mesmos – que esperavam que outra vez o Mercurio Portuguez trouxesse detalhes da reunião com o embaixador inglês, tal como o periódico, ainda falador, fizera três anos antes, deixa entrever a tensão interna gerada em torno de negociações daquele tipo. Provavelmente, a crer na documentação apresentada recentemente por Rafael Valladares, uma herança dos conflitos subterrâneos vividos em 1663. Outras narrativas, posteriormente publicadas, sobre o período de governo de D. Afonso VI, o confirmam, e, ainda mais, demonstram não terem sido eles tão subterrâneos assim. Na já comentada História do Portugal Restaurado, a crônica do conde da Ericeira Luis de Meneses sequer menciona as negociações de paz de 1663. Porém, logo após narrar, em tom repleto do lamento fidalgo que lhe convinha para relembrar tal ocasião, a partida de D. 97 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fol. 2v. O itálico é da própria impressão do Mercurio, pois tratava-se de uma reprodução, embora parafraseada, da fala do general da Beira. 50 Luísa de Gusmão a 17 de março para o convento de agostinhas descalças em que encerraria seus dias, Ericeira passa a tratar de algumas dissensões que aconteceram entre o conde de Atouguia e o conde de Castelo Melhor antes que rainha entrasse em reclusão. De acordo com a visão que pretendia passar duas décadas após o ocorrido, a desunião entre os condes era fomentada sub-repticiamente por Sebastião César de Meneses, o outro membro do triunvirato, como o designara o próprio Ericeira, que ocupara o governo em junho de 1662, e uma boa ocasião lhe teria sido dada com a partida do rei para Salvaterra98, a que Atouguia não pôde acompanhar, “obrigado de alguns inconvenientes domésticos”99. Durante a estadia de Afonso VI em Salvaterra, portanto, é que teria se dado o problema desta forma narrado pelo conde da Ericeira: Neste tempo adoeceu D. Luis de Meneses, a quem el-rei havia nomeado general da artilharia da província de Alentejo; e a respeito do seu achaque se juntavam em casa de seu irmão o conde D. Fernando, onde ele assistia, o conde de Atouguia, Luis de Sousa, que naquele tempo era governador da Relação do Porto, agora meretíssimo cardeal arcebispo de Lisboa e capelão-mor de el-rei, o visconde de Vila Nova, Manuel de Saldanha, depois bispo de Viseu, e João Nunes da Cunha, também depois conde de São Vicente. E não havendo na conversação mais assunto que o divertimento, se tomou motivo desta acidental sociedade, para se supor que mais alto fim era ocasião desta junta. E passando-se do discurso à prática, se deu notícia ao conde de Castelo Melhor, que com celeridade deu conta a el-rei, e sem preceder exame mais jurídico, se passou ordem para que Luís de Sousa fosse desterrado para Abrantes, João Nunes da Cunha para o Porto e António Sousa Tavares mandou elrei prender na fortaleza de Outão, supondo-o também unido a esta parcialidade. Com os mais não se fez demonstração alguma, o que manifestou a desigualdade desta resolução; porque, sendo a culpa igual, era justo que fosse igual o castigo.100 Portanto, enquanto parte dos integrantes da Corte acompanhavam o rei nas caçadas de Salvaterra, alguns se reuniram na residência do conde da Ericeira, D. Fernando de Meneses em que estava adoecido o seu irmão D. Luis, com nenhuma finalidade que não a do divertimento, segundo o próprio, já quando titular da casa e autor daquela História. Interessante perceber que Ericeira, consciente de para que realidade escrevia, não deixa de destacar neste ponto, como pouquíssimas vezes faria ao longo do livro, os altos cargos eclesiásticos e o titulo que seriam alcançados por seus acompanhantes anos depois, não por acaso durante a regência de D. Pedro. Nada tramavam, porém, aquelas futuras eminências que então se reuniram em torno de si, tendo sido alguns desterrados sem qualquer exame jurídico de sua culpa. Entre eles estava João Nunes da Cunha, naquele momento o principal responsável pelas negociações de paz na raia norte do reino, evento que o cronista se furta a 98 A jornada anual a Salvaterra teria saído no dia 19 de janeiro, de acordo com a notícia do Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 3v. 99 ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, p. 182. 100 Ibid. p. 183. 51 relatar, e que, pelo que traz a documentação encontrada por Rafael Valladares, parece estar diretamente relacionada ao seu desterro. Seguindo o fio de sua narrativa, Ericeira comenta apenas, como sempre muito apegado a causas de sentimento e parentesco, que o conde de Atouguia, por ser João Nunes da Cunha seu primo co-irmão, e Luís de Sousa primo co-irmão de sua mulher, agastou-se com o conde de Castelo Melhor, foi a Alcântara, para onde já havia voltado D. Afonso, falou a ele, em público, que os desterrados mereciam grande estimação, e saiu da presença real sem esperar resposta, voltando imediatamente a Lisboa para acompanhar seus parentes até algumas léguas fora da cidade. Desta forma, o ocorrido serve em sua narrativa apenas para destacar a suposta causa do início de um conflito entre os dois primeiros motores do golpe de 1662: “Este desabrimento foi o princípio de outros, que sucessivamente aconteceram entre o conde de Atouguia e o de Castelo Melhor, com que quase totalmente ficou entre eles separada a comunicação”101. Outro partícipe da política daquele tempo, porém, narrou tais acontecimentos ainda de maneira diferente, e sua leitura ajuda a redimensioná-los. Trata-se ao autor do manuscrito encontrado na Biblioteca da Ajuda e publicado em 1940 pelo historiador Eduardo Brazão. Como a folha de rosto do documento atribuía o texto a Antonio de Sousa de Macedo, Brazão também o fez, mas em pouco tempo tal autoria foi contestada. O manuscrito traz uma narrativa, construída aparentemente a partir de anotações diárias, dos principais eventos entre meados de 1662 e de 1664, com especial atenção em relação às disputas políticas da Corte lisboeta. Atualmente, não há ainda uma resposta definitiva em relação a quem o escreveu, mas o mais provável é que tenha sido Gaspar de Faria Severim, secretário de Mercês e Expediente desde o reinado de D. João IV, ou ainda Pedro Severim de Noronha, seu filho, que ocupou o cargo do pai desde o final de 1662, e morreu assassinado em 1664. A segunda opção é ainda mais verossímil, pois Pedro estava então mais próximo dos acontecimentos descritos, e sua morte seria uma explicação também para a interrupção abrupta da narrativa em agosto de 1664102. De acordo com o conde da Ericeira, a morte de Pedro Severim de Noronha foi a mais lastimosa ação executada pelas chamadas “patrulha alta” e “baixa”, grupo de facínoras com que o rei D. Afonso VI saía do Paço de noite a cometer os seus “excessos”103. 101 Ibid. loc. cit. Sobre o texto e sua autoria, ver: BRAZÃO, Eduardo. Introdução. In: D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 9-24; PENA JÚNIOR, Afonso. Crítica de atribuição de um manuscrito da Biblioteca da Ajuda – estudo crítico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943; DÓRIA, Antonio Álvaro. A Rainha D. Maria Francisca de Sabóia (1646-1683). Porto: Livraria Civilização, 1944. pp. 407-408; XAVIER, A. B. op. cit. p. 150. 103 Cf. ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, pp. 183-184. 102 52 Quem quer que o tenha escrito, o manuscrito traz muito mais detalhes sobre a conjuntura política das semanas do desterro de João Nunes da Cunha do que Ericeira faria anos depois. Segundo o autor, teriam seguido o rei a Salvaterra no dia 19 de janeiro, além do infante D. Pedro, do conde de Castelo Melhor, e de Henrique Henriques de Miranda, nobres como o conde de Unhão, o conde de Aveiras, o de Sarzedas e o de Serem, entre outros políticos, funcionários e criados da Corte. E ainda além destes, fizeram-se presentes também o marquês de Fontes D. Francisco de Sá de Menezes, o conde de Mesquitela D. Noutel de Castro, e o próprio Pedro Severim de Noronha, pois os três se envolveram em uma pendência, pelo que foram presos. Já o marquês de Gouveia D. João da Silva, que é tido pela documentação apresentada por Rafael Valladares como desterrado por ser partidário de Cunha, teria saído de Lisboa já no dia 25 de janeiro, havendo recebido dias antes a permissão que pedira, por considerar quebradas as isenções e regalias de seu posto de mordomo-mor do rei, para se afastar da Corte. A licença lhe teria sido enviada pelo secretário de Estado Antonio de Sousa de Macedo, mas com o acréscimo de que só poderia voltar a Lisboa com ordem expressa de Sua Majestade104. Dias depois, a 6 de fevereiro, regressava a comitiva real das coutadas de Salvaterra, no mesmo dia sendo soltos Pedro Severim de Noronha e o conde de Mesquitela, tendo sido já o marquês de Fontes no dia anterior. Na segunda-feira do dia 12 de fevereiro, de acordo com o autor do manuscrito, é que se faria a prisão de Antonio de Sousa Tavares, pelo corregedor do crime Miguel Juzarte de Azevedo, e que Antonio de Sousa de Macedo enviaria a Luis de Sousa a ordem do rei de que se retirasse para Abrantes, de onde não devia sair sem nova ordem105. Quanto a João Nunes da Cunha, a tensão com o governo iniciara no dia anterior: No Domingo antecedente havia também o mesmo Secretr.º escrito a João Nunes da Cunha Gentil homem da Camara do Infante D. P.º e q o fora do Principe D. Theodosio, e m.to bem visto de El Rey D. João o 4º e era Deputado da junta dos Tres Estados: q por sua Mag.de o haver nomeado Plenipotenciario na paz com Castella era servido que elle se fosse logo à Prov.ª do Minho a tratar este negocio. Respondeo João Nunes que estava prompto p.ª obedecer mas q nem instroçoẽs nem papeis se lhe tinhão entregues e q tambem havendo feito tres vezes aquella jornada sobre o mesmo neg.º com grandes despezas esperava q S. Mag.de lhe deferise pr.º a seus requerim.tos. Na seg.da fr. Teve a reposta deste escrito com outro, em q o Secretr.º lhe avizava havia S. Mag.de por bem q logo athe o outro dia se partisse: porq não o fazendo se haveria S. Mag.de por desservido delle.106 Segundo o que se retira do texto desta narrativa, portanto, o governo pressionava a que o plenipotenciário se dirigisse à raia do Minho com presteza, enquanto este interpunha à sua ida o recebimento e instruções, e principalmente o atendimento de seus pedidos, que dizia 104 D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 85-88. Ibid. pp. 89-90. 106 Ibid. p. 91. 105 53 fundamentarem-se nas despesas que a função lhe trazia. À sua insistência, o governo respondeu com um ultimato. Porém, ainda de acordo com o autor, João Nunes simplesmente enviou este último escrito de Antonio de Sousa de Macedo, juntamente com o enviado a Luís de Sousa, ao conde de Atouguia, a quem os ligavam laços de parentesco e amizade, “e ainda a mais reciproca correspondencia, q os fizera m.to familiares”107. E, da forma como o descreveria Ericeira, Atouguia respondeu imediatamente, pedindo audiência com o rei, com poucas palavras ressentindo-se do agravo que se lhe havia feito, voltando logo de Alcântara para acompanhar a saída dos desterrados. O que este texto acrescenta à informação publicada por Ericeira são os outros que os acompanharam no cortejo: o visconde de Vila Nova de Cerveira, o bispo de Targa D. Francisco de Sotto Mayor, e o conde da Ericeira D. Fernando de Meneses. E, além de relacionar o desterro de João Nunes da Cunha ao exercício de sua função na negociação de paz com Castela, o autor ainda apresenta o que, de acordo com ele, se falava sobre o caso nas ruas de Lisboa: A occazião que o povo da e todos confirmão p.ª estes desterros era haverem conjurado elles privarem por algũ tempo a El Rey do governo do Rn.º entregandoo outra vez a R.ª o que se forjava soicedeçe em o dia em q Ella quizesse retirar como sintentava e q nessa occasião com o impulso do povo abonarião melhor seu desígnio correndo com o trato Antonio de Sousa Tavares de q.m se fiavão por ser o unico Ministro q sem nota entrava a falar a S. Mag.de. Fazião do mesmo rancho ao Conde de Atouguia; e inferiãono da conjectura de não haver querido hir a Salvaterra logo q nos dias antecedentes a jornada chegou a Lix. Seu primo João Nunes da Cunha (q canonizavão pr.º mutor do intento) sendo assim q o conde tinha assentado com o de Castello melhor q hiria, e se esperava por elle naquellas coutadas. Acrescentandosse fora descuberta a conjuração (q este nome lhe puzerão m.tas) por certos fidalgos q forão convidados para entrar nella.108 Logo, seria este o “mais alto fim” que se acusou como objetivo da “acidental sociedade” que se reunia na casa do conde da Ericeira depois da partida do rei para Salvaterra, e este o “inconveniente doméstico” que impedira a presença do conde de Atouguia nas caçadas daquele ano: uma conjuração montada para devolver o governo de Portugal a D. Luísa, que se aproveitaria do momento do seu deslocamento para o convento. Esta acusação feita pelo autor, convenientemente designada como um rumor do povo, coincide, em alguma parte, com a documentação espanhola sobre as negociações de paz daqueles meses. Por sua ótica, Antonio de Sousa de Tavares era uma peça-chave dentro dos planos da conjura, mas seu idealizador principal seria João Nunes da Cunha. Talvez justamente por seu contato com o marquês de Penalva em Castela, com quem, de acordo com Rafael Valladares, Cunha já negociava em nome da rainha. Por outro lado, a suspeita levantada pelo autor do manuscrito 107 108 Ibid. loc. cit. Ibid. pp. 92-93. 54 não chega a mencionar qualquer traição que envolvesse tratos com castelhanos, o que era sempre uma acusação utilizada à época. Na identificação da causa da frustração dos planos, fossem quais fossem, também há disparidades. Para o autor português, alguns fidalgos foram convidados a participar da conjuração, e delataram seu intento. Um deles teria sido o conde de Sabugal, alguns dias depois nomeado para o conselho de guerra, “murmurando o vulgo com bastante fundam.to que (...) fora provido deste lugar por descobrir a chamada conjuração do Conde de Atouguia, João Nunes da Cunha, Luis de Sousa &c.ª por ser presuadido a ela por via do Duque de Cadaval”109. Embora esta última referência à participação do duque o coloque, assim como a documentação espanhola, entre os partidários de João Nunes da Cunha, ainda permanece contrastante a informação colhida por Valladares de que a conjura teria sido descoberta pelos parciais de D. Pedro. Levando em consideração que o próprio Cunha era homem da câmara do infante, e que alguns de seus partidários estariam associados, como Ericeira fará questão de destacar, ao posterior governo de D. Pedro enquanto regente após a deposição de D. Afonso, fica difícil conjecturar quem seriam os indivíduos contrários ao intento que pudessem ser identificados como aliados do infante. A não ser que, assim como o historiador espanhol deixou passar despercebida a incongruência que havia em afirmar que à descoberta desta conjura estava associada a declaração de maioridade de D. Afonso, tal afirmação seja também um equívoco que Rafael Valladares incorporou, sem exame mais detido, à sua versão do ocorrido. Nesta confusa nebulosa criada a partir de diferentes versões e enfoques das disputas cortesãs travadas em Lisboa nos primeiros meses de 1663, vislumbram-se apenas os contornos desta que se pode considerar a primeira grande crise política do governo integrado pelo secretário de Estado Antonio de Sousa de Macedo. Grande pela sorte de atores políticos que nela se envolveram, pelo nível das acusações que correram a respeito das intenções dos supostos conjurados, mas principalmente pelo re-ordenamento dos grupos políticos que foi sua principal conseqüência. Assim como Ericeira, o autor do manuscrito a que se recorreu até aqui conclui identificando como resultado final daqueles eventos o afastamento do conde de Atouguia dos principais círculos de decisão política do governo: O Conde ficou continuando nos cargos q tinha sem alteração algũa; so por si se absteve de hir as juntas nem tornou a ligar com o Castello Melhor desmanchandosse a pr.ª triania do governo novo; e em seu lugar entrou nella (seg.do os contemplativos) o Marques de Marialva pr.º grande opposto ao tal governo.110 109 110 Ibid. p. 96. Ibid. p. 93. 55 Com tais desterros, afastamentos e aproximações, deslocavam-se as forças em disputa naqueles últimos anos do Portugal Restaurado. Foi, portanto, a um ambiente ainda assomado por tais conflitos que Sousa de Macedo dirigiu aquela segunda edição do seu periódico, em que trazia as boas novas das negociações de paz lideradas pelo “fidalgo bem conhecido” João Nunes da Cunha. É provável que, de fato, após ter sido desmantelada qualquer possibilidade de sucesso dos intentos daquela sociedade em que esteve envolvido, Cunha tenha sido enviado de volta ao Minho, inclusive porque, a crer no que relata o autor do manuscrito, no prosseguimento da devassa do caso as coisas se acalmaram: Fesse depois delig.ça por retificar as testemunhas da acuzação: as quais se contão: se desdisserão; afirmando: não haverem sabido nada deste cazo, e as q mais queriam comprazer aos Authores do desterro: convinham em q não sabiam couza que podesse fazer merecedores do castigo q padecião; os condenados.111 Desarticulada a ação que vinha sendo planejada por seus opositores, o governo então possivelmente reconduziu seu principal organizador de volta para a fronteira do reino, como dias depois Macedo informaria ao marquês de Sande. Porém, na carta de 20 de maio, em que o secretário de Estado voltou a falar da conferência de paz, explicando que seu atraso se devia apenas a uma “diferença” nas plenipotências, o remetente não deixaria de referir logo em seguida, como quem falava exclusivamente das notícias enviadas sobre o cerco à Évora, que “o sobredito he a pura verdade, tudo o mais que espalharem os castelhanos será mentira”112. Àquela altura, certamente os embaixadores castelhanos faziam correr em Inglaterra a versão encontrada por Rafael Valladares. Mesmo assim, pelo que foi dito, é difícil acreditar que Macedo e o governo que representava alimentassem, mesmo em finais de fevereiro, o otimismo que seria divulgado a respeito das negociações de paz no Mercurio Portuguez sobre aquele mês. Em última análise, como certamente João Nunes da Cunha tornara-se ainda mais “conhecido no Reino” depois dos acontecimentos que culminaram com seu desterro, a principal intenção do discurso otimista do periódico devia ser desvincular o envolvimento de Cunha com uma facção rival ao governo de sua atuação na organização da conferência do Minho. Se foi assim, a ironia do comentário de três anos depois, de que o Mercurio não era mais o mesmo falador de antes, não passou também de nova dissimulação, que servia acima de tudo como justificativa para não entrar em detalhes publicamente em relação a resposta do governo à proposta de paz trazida pelos diplomatas ingleses, que, de acordo com alguns testemunhos do período, foi 111 112 Ibid. loc. cit. RAU, V. loc. cit. 56 peremptória e negativa113. Ao escrever e ao publicar as notícias do mês de fevereiro de 1663, Macedo sabia que as expectativas que lançava sobre o bom andamento das negociações paz no Minho eram falsas, assim como o devia saber alguma parte de seus leitores. Se dizia demais, portanto, o fazia propositadamente, escondendo aquilo sobre o que não dizia, os meandros da crise política enfrentada pelo governo naquela quaresma. Não dizia, mas foi justamente o impacto daquela abafada convulsão interna na opinião de seus leitores que o Mercurio Portuguez teve que combater mais diretamente. 2.2 A PRESSÃO DESDE A FRONTEIRA: DOS RUMORES AOS TUMULTOS Na organização da edição de março de 1663, como já foi citado, Macedo reservou apenas as últimas linhas do Mercurio Portuguez para uma rápida e bem pouco estimulante referência ao atraso da conferência de paz do Minho. Além disso, como indicara em missiva ao marquês de Sande, tratar-se-ia ali também, enfim, da reclusão de D. Luísa de Gusmão ao convento de agostinhas descalças que para tal se fundou nas cercanias de Xábregas, a um quarto de légua de Lisboa. Como parte das movimentações da oposição ao governo realizarase em torno de sua presença no Paço da Ribeira, a notícia de um pacífico e regular traslado da rainha fazia-se conveniente, como mais um incremento ao esforço em aplacar os ânimos exaltados desde o mês anterior: ElRey N. Senhor, o Serenissimo senhor Infante, & toda a Corte, acompanháraõ a Sua Magestade cõ aquella demonstraçaõ que por tantas razoens lhe era devida. ElRey N. Senhor lhe concedeo que hũa tença de tres mil cruzados cada anno que tinha para outra vida, ficasse juro perpetuo para este Convento; principio da grandeza q se espera terà como fundaçaõ de hũa Princesa taõ generosa.114 Assim ficou, curta e elogiosa, a lembrança do Mercurio do recolhimento da rainha ao convento, bem diferente do modo detalhado e invectivo – não em relação à rainha, mas à postura do rei diante de sua mãe naquele momento – como escreveriam os cronistas posteriores detratores daquele governo115. Entre ela e a última referência à não conclusão das negociações de paz, a edição de março noticia apenas três “facçoens de Marte, neste mez em 113 Cf. CARDIM, P., e XAVIER, A B. op. cit. pp. 151-155. Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3r. 115 Cf. ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, pp. 178-182; e também: FARIA, Leandro Dorea Caceres e. Catastrophe de Portugal, na deposição d’el rei D. Affonso o Sexto, & subrogação do Principe D. Pedro o Unico, justificada nas calamidades publicas : escrita para justificação dos Portugueses. Lisboa: A custa de Miguel Manescal, mercador de livros da Rua Nova, 1669. pp. 98-104. 114 57 que elle especialmente reyna”116, que trazem indícios de quais seriam as próximas batalhas enfrentadas pelo periódico do secretário de Estado. Na primeira delas, em que o já citado Pedro Jacques de Magalhães, pela província da Beira, entra em Castela para enfrentar as tropas alojadas na vila de Sarça, e estas vêm ao seu encontro, “os nossos as invistiraõ com tal resoluçaõ, que às cutiladas as fizeraõ recolher pellas portas dẽtro, tomandolhes alguns cavallos, & trazẽdo todo o gado que se achou naquelles campos, sem perda algũa nossa”117. Já em Entre-Douro-e-Minho, foram os castelhanos que atacaram, com trezentos infantes e duas tropas de cavalos, uma aldeia de Vila Nova, e o Mercurio narra a ação da tropa capitaneada por D. João de Sousa, filho do conde de Prado governador das armas da província: pelejousse valerosamente, com muito sangue de parte a parte, ficando hum Cabo Portuguez com hũa perna passada de duas balas, outro com duas cutiladas na cabeça. Morreo hum Tenente Gallego, & alguns soldados da parte de Castella; mas finalmente o inimigo naõ entrou na aldea, & se retirou fogindo vergonhosamente de numero taõ piqueno dos nossos, que o foraõ seguindo até junto do dito Forte de S. Luís, trazẽdo alguns prisioneiros.118 Sobressaem, na narração destes feitos, a determinação, a coragem e a força das tropas portuguesas. No primeiro, ressalta-se a perfeição da ação militar, pela eficiência no combate, pelo grande proveito do saque auferido, e pela ausência de qualquer perda de soldados. Já na defesa da aldeia, embora se comente a violência do confronto e o ferimento de dois portugueses, ao cabo da narrativa do ocorrido predomina a visão da imponência da vitória de alguns bravos combatentes contra um número bem superior de inimigos, e a desonra da fuga das tropas castelhanas. Na narrativa das batalhas do mês de março, é clara a intenção não de difundir a expectativa da paz, mas sim a proficuidade da guerra. A outra nova militar do mês traz de forma ainda mais marcante este tom de menosprezo observado em relação ao inimigo. Pela província do Alentejo, o governador das armas conde de Vila-Flor envia as tropas da cavalaria de Elvas, sob o comando do tenente general D. João da Silva, para refrear a ousadia da cavalaria de Arronches, praça tomada aos portugueses em 1661; em ataque a cinco esquadrões inimigos, que comboiavam um grande número de cavalgaduras que saía a forragear, os portugueses terminam por tomar-lhes sessenta cavalos e setenta das cavalgaduras, enquanto os perseguia até entrarem na praça. Quando o Conde Governador das armas deu aquella ordem se achava Dom Manoel de Atayde, tambem Thenente General da cavalaria, muito doente sangrado dez vezes, de que no dia antecedente tinha sido a ultima; porém seu brio naõ sofreo ver ir os cõpanheiros, & ficar elle; & assi animadas as forças corporaes só de seu 116 Mercurio Portuguez. Março de 1663. loc. cit. Ibid. loc. cit. 118 Ibid. fols. 3v-4r. 117 58 espirito, os acompanhou; em a peleja se houve com tanto valor, que mostrou bem que pode dar dez sangrias de barato aos Castelhanos.119 O tratamento do periódico sobre o feito, além de enaltecer a inteligência de D. João da Silva e a bravura de D. Manoel de Ataíde, conclui-se depreciando a inteligência e a bravura dos castelhanos, e agora de um modo carregado de humor, de sarcasmo. Não foi apenas o brio individual do tenente general que tornou possível seu bom desempenho na contenda mesmo após passar por dez sangrias, mas também a fraqueza e a pusilanimidade do oponente. Vinha fazendo parte, portanto, do discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo, um enaltecimento que buscava difundir confiança nas forças portuguesas, fundado também no menoscabo, com inclusive toques de humor, em relação aos castelhanos. O que o periódico não diz, porém, é que as populações alentejanas não estiveram bem-humoradas no decorrer daquele mês. Em carta de 3 de março daquele ano, o conde de Vila-Flor, governador das armas do Alentejo, instado a informar o governo sobre o estado em que se achavam as vilas de Monforte e Alter do Chão, e arredores, deixa bem claro como estava a região sujeita à ação do inimigo, que inclusive vinha ameaçando os moradores, “dizendolhe que não contribuiçem com tributo algum aos officiaes desta Coroa”120. Havendo recebido informação de que aquelas vilas se recusavam, por tal constrangimento, a pagar impostos pertencentes à sua fazenda, Sua Majestade solicitava de Vila-Flor seu parecer, e soluções, a que o conde respondeu: ao que procurarei reduzilos será que recolham seus Gados, moveis, Molheres, as cabeças das Comarcas, ou pela terra dentro, donde cada hum tiver melhor conviniencia visto estar o tempo tão entrado e os exercitos para sair em campanha, porque não hé possível divirtirce o exercito em guarnecer aqueles lugares por não ter nenhum deles genero algum de fortificaçam e que os velhos e mininos sigam os mesmo caminho com aqueles que precisamente não puderam largar suas cazas, e que os homens que puderem tomar armas se emcorporem com o exercito ou se metão de Guarnição na praça mais sircumvezinha e que, passada a Campanha para os livrar dos males que o inimigo lhe poderia fazer tornandoce para suas cazas com suas molheres, e bens os mandará Vossa Magestade reparar, e fortificar na melhor forma que for possivel fortificandoce principalmente Monforte e a Asumar, que sam os lugares mais vezinhos Arronches.121 Portanto, a notícia que chegava ao governo, e que provavelmente alcançava também alguma parcela de leitores do Mercurio, era de que a região no entorno de Arronches, desde que esta praça havia sido tomada pelos castelhanos em 1661, estava a cada dia mais vulnerável, e trazendo cada vez mais preocupações, estratégicas e financeiras, para a Coroa. O 119 Ibid. fol. 3v. COELHO, Possidónio M. Laranjo [org.]. Cartas dos Governadores da província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1940. v. 3, p. 271. 121 Ibid. p. 272. 120 59 conde de Vila-Flor, na mesma missiva, não conclui sem ponderar a possibilidade de os moradores não aceitarem suas sugestões, nem as garantias que daria em nome do rei, e já adianta que, se assim fosse, seria a favor de que se investisse contra os mesmos, argumentando que “o inimigo se hade valer de tudo o que eles tiverem asy de carruagens como de mantimentos, e provavelmente os obrigará a tomar as armas contra nós e será mais comviniente que os imposibilitemos para que nos não fasam estes danos”122. O pragmatismo da solução última proposta pelo governador, expressivo documento da política e da ação militar do período, revela a dimensão do problema enfrentado naquela zona de combate, e a conseqüente apreensão que devia disseminar no reino, principalmente em Lisboa, para onde certamente convergiam os rumores sobre o avanço castelhano, e das dificuldades que havia para contê-lo. Fica patente a necessidade, sentida pelo redator do Mercurio Portuguez, de se dirigir contra tal apreensão. A notícia de uma vitória portuguesa contra a cavalaria sediada em Arronches, portanto, vinha a calhar, tanto para o conde de Vila-Flor, que a enviou por carta datada de 21 daquele mês, e precisava demonstrar que tomava providências para minorar o problema na região, quanto para Antonio de Sousa de Macedo, que, diante do exposto, interessava-se em divulgar novas alentadoras sobre o desenvolvimento do confronto no Alentejo. É significativo, neste sentido, que a notícia sobre o feito português iniciasse apenas com a consideração de que “se licenciava tanto a cavalaria que o inimigo tem em Arronches”123, dissimulando com ares de desdém a interferência e a preocupação que os castelhanos causavam na província. Na carta em que enviou a mesma notícia para o rei, VilaFlor não precisara ser tão discreto, pois era de seu interesse enfatizar a utilidade de seu comando: Andava tão livre a cavallaria de Arronches pella nossa campanha, e estava tão costumada a correr as partidas, que nem se lhe dificultava o andar por ella, nem havia partida que não temese muito o ir tomar lingoa aquella praça pello que me resolvi a mandarlhe armar asim para a derotar, como tambem para desatemorizar a nosa gente, e confiar as nosas partidas.124 No mais, é pertinente notar como, fora esta diferença inicial, a abordagem do Mercurio sobre o acontecimento é quase uma transcrição da carta do governador, o que mais uma vez confirma como se ajustaram naquele momento os objetivos deste e os do secretário de Estado. As únicas alterações na informação promovidas pelo periódico foram pequenos ajustes nos números do feito. Vila-Flor havia escrito que foram capturados, além das setenta 122 Ibid. loc. cit. Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3r. 124 COELHO, P. M. L. op. cit. v. 3, p. 273. 123 60 cavalgaduras, muitos cavalos, sendo que não mais de quarenta foram trazidos para a partilha, e outros deveriam ter sido escondidos pelos soldados; Macedo, então, informou a captura de sessenta cavalos. Já quanto à atuação de D. Manoel de Ataíde, o periódico arredondou para baixo o número de sangrias sofridas pelo tenente general, que de acordo com a carta do governador da província haviam sido doze, e não dez: “estando convalecendo de hũa grande doensa que padeceo de que o sangrarão doze vezes lhe não sofreo o seu zelo ver ir os companheiros a ocazião sem os acompanhar nella em que procedeo como se podia esperar de sua callidade”125. Esta diferença nos números, portanto, é praticamente irrelevante, diante da alteração que Macedo operou no deslocamento da narrativa da carta para a de seu periódico, trocando “zelo” por “brio”, e enaltecendo com outra ênfase a ação do último personagem, dizendo que a força com que acompanhou os seus, as buscou em seu espírito, e que lutou “com tanto valor, que mostrou bem que pode dar dez sangrias de barato aos Castelhanos”126. Como se pode aferir da comparação entre a notícia veiculada pelo Mercurio e o modo com ela havia sido descrita ao rei pelo governador das armas do Alentejo, não está na deturpação da informação a característica mais marcante da distinção entre os dois discursos sobre o evento. Ao contrário, Antonio de Sousa de Macedo evidentemente utilizou à larga aquela carta como base para sua escrita, inclusive reproduzindo de forma bem aproximada os dados numéricos lá pontuados. Mais revelador da função política representada pelo periódico, portanto, é destacar como os distúrbios causados na região pela cavalaria inimiga são apenas referidos superficialmente no periódico, e como é na valorização do feito, pela via da ênfase na inteligência e na bravura do soldado português, tanto quanto pela do sarcasmo e do deboche em relação às tropas castelhanas, que a sua abordagem se distingue mais da encontrada na missiva do conde de Vila-Flor. Direcionando a narrativa do feito bélico para um outro público, mais vasto do que o que teve contato com a carta, Macedo aposta na introdução destes elementos para combater alguma inquietação que poderia estar se desenvolvendo em relação ao estado da guerra na principal fronteira do reino, e para difundir maior confiança no desempenho militar português. 2.2.1 Os impactos da perda de Évora Porém, quando saiu da oficina do impressor real Henrique Valente de Oliveira o Mercurio Portuguez com as novas de mayo de 1663, a principal nova do mês já era sabida por 125 126 Ibid. p. 274. Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3v. 61 todos: Évora, até os dias atuais uma das mais importantes cidades de Portugal, havia sido tomada pelo exército castelhano, liderado por D. Juan de Áustria, filho do monarca Felipe IV. A chegada da má notícia, causou grande tumulto em Lisboa, registrado na memória historiográfica portuguesa, como aliás muitos outros exemplos, pela crônica publicada duas décadas depois pelo conde da Ericeira, em que aparece inclusive o redator do Mercurio, como o causador do estopim do rompante popular tomou a cidade e chegou a invadir e roubar as casas de Sebastião César de Meneses, recentemente nomeado inquisidor geral do reino, de Luis Mendes de Elvas, conselheiro da fazenda do rei, e do marquês de Marialva, governador das armas da província da Estremadura: irritado o povo desta desgraça e incitado do indiscreto zelo com que o secretário de Estado António de Sousa de Macedo (desejando que se acrescentasse o número da gente que se preparava para socorrer o exército) mandou lançar uma linha no meio do Terreiro do Paço, fazendo publicar que todos aqueles que, valorosos, a passassem para a parte do Paço, seriam escolhidos no socorro do exército para a liberdade da pátria, e concorrendo inumerável povo a tão desusada novidade, sem mais discurso que a ferocidade natural com que costuma precipitar todas as suas acções, ocuparam o ar desordenadas vozes, trocando-se o impulso da defesa do reino em insulto violento e insolentes operações, porque, passando do Terreiro do Paço ao dos Arcebispos, em que vivia Sebastião César, à casa do marquês de Marialva e à de Luís Mendes de Elvas, rompendo as portas, assaltando as janelas, desbarataram a maior parte do precioso que havia dentro, sem causar horror o espetáculo da multidão dos amotinados mortos da hidropisia de sua própria ambição, e de todo se destruíram as casas referidas e outras muitas que a barbaridade do povo ameaçava127 Quando se buscou há pouco explicar a emergência de um tom confiante e sarcástico no Mercurio Portuguez de março daquele ano, obteve-se como provável influência em sua escrita a difusão de alguma apreensão quanto à ação castelhana no Alentejo. No presente caso, em que a informação da capitulação de Évora deu origem a uma pequena revolta na Corte, dirigida, a crer no testemunho de Ericeira, contra políticos de destaque do governo de Afonso VI, a dimensão, inclusive política, desta apreensão parece já incontornável. Como porta-voz do governo, o periódico assinado pelo secretário de Estado devia comentar e se posicionar sobre o ocorrido, tanto em Évora como em Lisboa. O subtítulo da relação de maio, neste sentido, já indicava o assunto indispensável do mês: “Satisfazendo Mercurio Portuguez à sua natureza, & á sua promessa de fallar a verdade, ainda que fosse com successos contrarios, refere os do Mez de Mayo na forma seguinte”128. Como se fosse possível contornar o tema, o Mercurio aproveita para associar seu enfoque sobre a perda de Évora com a promessa de atenção à verdade feita no primeiro de seus números. Inicia-se então o periódico noticiando a saída do exército castelhano da cidade de Badajoz no dia 6 de maio, com entre seis e sete mil cavalos, e doze mil infantes, sendo destes 127 128 ERICEIRA, L. M. conde da. op.cit. v. 4, pp. 116-117. Mercurio Portuguez. Maio de 1663. fol. 1r. 62 a maior parte – acrescenta, como que buscando diminuir o impacto de tal número – composta por estrangeiros, alemães e italianos, vinte peças de artilharia, e um excessivo número de carruagem. Já as forças portuguesas, por não se saber por onde atacariam os castelhanos, encontravam-se divididas pelas várias praças; “pensão da guerra defensiva”129, era preciso esperar o arbítrio do inimigo, para que se formasse um exército de socorro a partir das guarnições ociosas das praças não atacadas. Repare-se aqui como o Mercurio esforça-se em explicar o ocorrido, divulgando as causas da queda de Évora como fatores inevitáveis, e lógicos do ponto de vista da estratégia militar. Soma-se então, a estes elementos, a covardia do exército invasor, que foi deixando para trás todas as praças em que supôs havia resistência, empenhando-se apenas em destruir e abrasar os campos por que passava. Évora, escolhida então como seu alvo, por estar catorze léguas dentro do território português, disporia de pouquíssima capacidade de resistência, sem fortificação, nem artilharia alguma, se não tivesse conseguido o governador do Alentejo enviar-lhe, junto com reforço de mil e duzentos infantes e quatrocentos cavalos, quatro peças de campanha, mas com insuficiente munição. A tomada da cidade era fatal, não sendo suficiente neste caso a pertinácia dos seus defensores, que afinal fizeram de tudo para evitá-la: Investio o Inimigo com muitas avançadas, & sendo de todas rechaçado valerosamente cõ grande perda, poz baterias de Artelharia ás muralhas velhas, que brevemente abrírão brecha, & achandose doente o Governador da Praça, se entregàrão os sitiados a partido no fim de seis dias, não tẽdo já ballas meudas, que até ali avião suprido com quãto chumbo avia na Cidade, até com o que achàrão nos orgaõs das Igrejas.130 Évora foi tomada, segundo o Mercurio, no momento em que já marchava para socorrê-la o exército português, composto por entre dez e onze mil infantes, e perto de quatro mil cavalos; sabendo, porém, de sua entrega, as tropas se dispuseram tentando evitar a chegada de comboios que levassem mantimentos ou reforços ao inimigo, para assim forçar a sua retirada da cidade, e provocar o confronto em campo, “pois não era factivel ir peleijar com elle dentro da Cidade, como pedia a impaciencia dos soldados”131. As últimas linhas desta notícia davam ainda conta de que os castelhanos investiam em fortificar a praça tomada, e corriam por pequenas vilas e lugares da região em busca de mantimentos, que já lhes faltavam, e muito pouco encontravam. Quando mandavam boletins exigindo a capitulação de praças maiores, como à vila de Évora-Monte ou à cidade de Beja, estas lhes respondiam “como merecia a soberba de quem os mandava”132. 129 Ibid. fol. 1v. Ibid. fol. 2r. 131 Ibid. loc. cit. 132 Ibid. loc. cit. 130 63 É realmente notável o modo como, ao longo do relato – cujas informações mais gerais, pode-se supor, já eram públicas à época da circulação do periódico –, Antonio de Sousa de Macedo dissemina uma série de comentários tendentes a atenuar a dimensão calamitosa da queda de Évora ao poder inimigo, difundir alguma confiança na capacidade militar portuguesa, certamente abalada na opinião de boa parte de seus leitores, e por fim criar nela alguma expectativa quanto à retomada breve da cidade. Informar que o exército inimigo era composto boa parte por mercenários, mostrava que os castelhanos não possuíam capacidade para adentrar sozinhos em Portugal, e que, ademais, não podiam contar em absoluto com a fidelidade de suas tropas. Dizer que o critério de escolha dos mesmos sobre que alvo atacar era o da menor resistência, e que a opção por Évora os havia levado a ilhar-se em uma praça a catorze léguas da fronteira, no mesmo sentido, buscava sinalizar a fraqueza do seu exército e a estupidez dos seus comandantes. Ao associar a incapacidade de defesa da cidade a características inerentes ao tipo de guerra que se travava, mas também à mesma covardia estulta que escolheu assaltar uma cidade protegida apenas por velhas e frágeis muralhas, Macedo tentava também apresentar algum lenitivo para a derrota sofrida; e ainda, demonstrando a persistência daqueles que utilizaram até mesmo parte de órgãos das igrejas da cidade como balas contra os invasores, bem como a gana pelo combate dos soldados que vieram em seu socorro após a rendição, procurava com outro recurso eximir de culpa o exército português, e quiçá resgatar alguma fé em seu valor. Finalmente, o redator do periódico pretendia fazer crer aos seus leitores que o exército inimigo não vinha podendo mais do que assaltar pequenas vilas e lugares abertos em busca de seu sustento, já que não infundia qualquer temor em localidades de maior vulto, possuindo então capacidade insuficiente para se socorrer durante muito mais tempo, encarcerado que estava pela ação de isolamento levada a cabo pelo exército português. A má notícia, sob a pena do Mercurio, não deixava de falar a língua do bom prognóstico. Novamente, o confronto da narrativa dos eventos de guerra do Mercurio Portuguez com cartas assinadas pelo conde de Vila-Flor durante o mês da tomada da cidade ajuda a compreender a operação discursiva engendrada no periódico. Várias das informações divulgadas pelo periódico são encontradas nesta correspondência, como os números de infantes e cavalos de que dispunha o exército castelhano, a guarnição e os reforços enviados a Évora, e as tropas portuguesas que marcharam para socorrê-la, a dificuldade causada à direção militar lusitana pelo desconhecimento do intuito inimigo, e a estratégia assumida de posicionar o exército português no sentido de impedir a chegada de comboios que prolongassem o sustento dos castelhanos em território alentejano. Até mesmo a confiança 64 nesta estratégia é argumentada ali de modo similar ao que o faz Antonio de Sousa de Macedo em seu relato133. Mais uma vez, é na interpretação destes dados, e na habilidade, descrita acima, em utilizá-los em favor da difusão de algum sentimento de esperança na resolução positiva do conflito, que se mostra residir a particularidade do discurso do seu periódico. Urgia, como a ocorrência de tumultos e roubos em Lisboa no dia da chegada da nova da perda de Évora já deixou óbvio, através da versão do Mercurio sobre o insucesso, divulgar um quadro mais otimista do momento vivido em Portugal. E a forma como, na mesma relação dos eventos do mês de maio, Macedo descreve o desenrolar da desordem naquele dia, acusa ainda mais a extensão desta urgência: Em 24 deste Mez de Mayo á tarde chegou a esta Corte de Lisboa a nova da entrega de Evora, & divulgandose no dia de 25. pola manhãa, foi tal o fervor do Povo para a defensa de sua Patria, que concorreo tumultuozamente ao Terreiro do Paço clamando todos que queriaõ ir peleijar com o Castelhano. Sahio elRey nosso Senhor a hũa janella, & se esforçâraõ os vivas & acclamaçoẽs a sua Real Pessoa; mas como sempre na Respublicas ha maos que se approveitaõ de semelhantes concursos de gente, para vinganças & para latrocinios, ouve vozes desconhecidas que levàraõ o mais vil do Povo a roubar (entre os vivas delRey) tres Casas onde entendèraõ que havia cabedal; & passariaõ a outras, se os naõ impedira a authoridade de fidalgos que acodíraõ, & principalmente o respeito das procissoẽs com que saìraõ os Religiosos de algũs Conventos; & no fim de duas ou tres horas ficou tudo sossegado.134 A versão da História de Portugal Restaurado sobre o mesmo acontecimento foi publicada mais de quinze anos depois, em um momento em que os homens que ocuparam os principais cargos no governo efetivo de D. Afonso VI já tinham sido derrotados na arena política, havendo D. Luis de Meneses, o 3º conde da Ericeira, assumido posição eminente exatamente a partir desta derrota. Mesmo com motivos para difamar o grupo político que antecedeu ao que compunha, porém, é quase indiretamente que ali acusa o “indiscreto zelo” de Antonio de Sousa de Macedo como a causa da transformação do impulso patriótico do povo de Lisboa em fúria violenta e insolente. O próprio secretário de Estado, porém, publicando na mesma Lisboa, no início do mês de junho de 1663, suas considerações sobre o ocorrido, não chega a comentar a sua presença e atitudes na data, e sequer identifica no povo que se dirigia ao paço qualquer irritação oriunda da notícia da capitulação de Évora. Nem seria necessário, porém, confrontar o Mercurio Portuguez com a citada passagem da obra de Ericeira, para que se verificasse a dissimulação de que Macedo se valeu na operação de tocar em tema tão delicado àquela altura. Nitidamente tratava-se de tentar diminuir, na medida do possível, o impacto que o tumulto em Lisboa provavelmente causara na opinião circulante sobre o apoio da população ao governo de D. Afonso VI. Por isso a 133 134 Cf. COELHO, P. M. L. op. cit. vol. 3, pp. 280-292. Mercurio Portuguez. Maio de 1663. fol. 2v. 65 arriscada manobra de identificar como intenção primeira, e majoritária, das pessoas que concorreram ao palácio do governo, a de se apresentar para combater os castelhanos em Évora; por isso chegar a interpretar o clamor das mesmas como nada mais do que uma entoada de aclamações ao monarca, e assim, depreciar o assalto às casas de políticos de vulto como obra de uns poucos arruaceiros, de vil condição, atribuindo-lhes inclusive como único critério e interesse o subtrair os bens alheios. Mas a duração da desordem nas ruas de Lisboa, de quase três horas, que ele não escapa de comentar, deixa entrever que não se tratara de um pequeno incidente, incitado por “vozes desconhecidas” que se aproveitaram da ocasião dada por vivas ao rei. Cabia ao secretário de Estado mitigar, através da publicação de seu periódico, o efeito negativo causado na corte, e em outras partes do reino, pela queda de Évora e pela agitação que acometeu Lisboa dias depois. Assim ele precisou fazê-lo já no Mercurio sobre o mês de maio, anunciando a breve retomada da cidade tomada pelo inimigo, e tentando dissimular a dimensão política do tumulto ocorrido diante do paço monárquico. Antes de concluir a edição de maio, também por isso, era pertinente apresentar algumas novas ainda mais positivas e alentadoras para os seus leitores. Logo na seqüência da passagem citada acima, Macedo emenda: “As noticias da entrega de Evora, & do tumulto de Lisboa, espalhadas pelo Reyno, excitâraõ briosamente tal amor nos Portugueses, que como por emulaçaõ se offereciaõ por soldados nas companhias que se levantavaõ”135. Realmente espalhava-se por Portugal, adianta o periódico, a notícia dos eventos que havia há pouco descrito, porém não se espalhava o mesmo tumulto que acometera a corte. Em Coimbra, todo o povo se pôs de prontidão para formar tropas e ir socorrer Évora, propósito firme de que foi dissuadido pelo governador da Universidade Rodrigo de Miranda Henriques; agradecido de tamanho empenho, o rei então concedeu, notificando por carta à câmara, uma mercê há muito desejada, “de que o Juiz do Povo daquella Cidade pudesse trazer vara vermelha como o de Lisboa”136. Com o mesmo fervor se apresentaram gente e cavalaria de vários lugares, com que já se formavam tropas a ser conduzidas pelo marquês de Marialva, bem conhecido pelos castelhanos pela derrota que lhes impingiu na “illustre batalha das linhas de Elvas”137. Em poucas linhas, como se percebe, o Mercurio Portuguez dá conta de noticiar que por todo o reino a reação à perda de Évora havia sido pacífica e patriótica, reação esta apontada com alguma ironia como emulação à população de Lisboa, mostrar os benefícios que se prometiam para as comunidades que assim o faziam, e dar nova prova de que a força 135 Ibid. fol. 2v. Ibid. fol. 3r. 137 Ibid. loc. cit. 136 66 portuguesa que se reunia seria suficiente para derrotar o invasor, aproveitando para granjear crédito para o governador das armas da Estremadura, o dono de uma das casas invadidas pela plebe lisboeta. As várias circunstâncias apresentadas até então, “prometem ás Armas Portuguezas” e assim o prometia o Mercurio, “um successo taõ gloriozo, como para elles [os castelhanos] merecido, & lamentavel”138. A última notícia do mês de maio, embora em uma primeira leitura pareça mais destoante dentro do propósito daquela edição, é também significativa do quanto influenciou em sua escrita o impacto da perda de Évora na cidade de Lisboa. Segundo o redator, o governador das armas de Entre-Douro-e-Minho, o conde de Prado D. Francisco de Sousa, informou já no dia 23 que a comarca da cidade de Orense, na Galícia, ficava com as Armas nas maõs, levantada pellas tiranias que padecia nos alojamentos; & que ja avia mortes neste levantamento; & o exercito Inimigo que se ajuntava naquella fronteira, fora acodir àquella parte; & o Conde de Prado avia escrito aos de Orense, offerecendolhes socorro de Infanteria & cavallaria & dinheiro, com que estava prestes para partir tanto que o avisassem. Não se sabe atègora se isto foi por diante, mas podese ter por certo que muitas terras de Castella se irão levantando, pelas opressoẽs que padecem, assi nos alojamentos, como nas contribuições para a guerra, não reparando aquelle Rey & seus Ministros, em destruir o proprio por usurpar o alheio.139 Em primeiro lugar, note-se que anunciar o levantamento em armas da cidade de Orense poderia servir para aplacar alguma expectativa reinante de que forças castelhanas se preparavam para atacar Portugal também por sua fronteira norte, expectativa a que o Mercurio dá sentido, mas busca dissipar, quando informa que o exército inimigo que se juntava teve que abafar a revolta interna. A mesma notícia, porém, adaptava-se também a um segundo intento: se em Lisboa a população tinha dado, após a tomada de Évora, mostras violentas de sua indignação com a direção e o rumo da guerra travada, o periódico, ao aludir à existência em território castelhano de causas e revoluções mais graves, claramente opõe à preocupação que se disseminava em Portugal a severidade das queixas dos galegos, e a justiça de sua causa e de sua luta. Além disso, o Mercurio não deixa de estar rebatendo as críticas feitas ao governo de D. Afonso VI quando aponta para a opressão provocada pela cobiça de rei e ministros castelhanos contra a sua própria população. Desde a edição de março de 1663, como foi visto, Antonio de Sousa de Macedo, não apostou na estratégia de difundir alguma confiança nas forças portuguesas que combatiam as tropas castelhanas presentes no Alentejo, e para tal parece ter exercido uma considerável influência a pressão militar e política causada pela ação inimiga no entorno de Arronches. Os 138 139 Ibid. loc. cit. Ibid. fols. 3r-3v. 67 eventos de maio, portanto, evidenciaram de forma ainda mais pungente que a função do Mercurio Portuguez deveria ser reagir contra algum pessimismo que se desenvolvia dentro do reino, e diretamente contra as conseqüências políticas deste sentimento, que não podiam ser menosprezadas em uma conjuntura política marcada por disputas e conjuras. Daí em diante, a tessitura do discurso do periódico sobre a guerra da Restauração, e seus movimentos, será em grande parte resultado dos desdobramentos desta função, e investirá na exploração e no aprimoramento de vários elementos já utilizados nos primeiros meses da publicação, além de outros engendrados nos relatos das próximas batalhas, razias, recontros e escaramuças. 68 3 OS FERVORES DE MARTE, SOB A PENA DO MERCURIO Como já foi dito, a guerra é o principal foco direto das notícias divulgadas pelo Mercurio Portuguez. Mesmo que em alguns números ela apareça em segundo plano, apenas em notícias de menor impacto, na maioria deles as lutas travadas em defesa da independência do reino são os personagens principais do periódico, os que mais chamam a atenção em uma primeira leitura. Já naquele seu número inaugural, apesar do inverno de janeiro, em que “a inclemencia do tempo naõ permite grandes facções militares”140, surgia a possibilidade de referir as façanhas das tropas do tenente general da cavalaria do Alentejo Pedro César de Meneses, como a captura de trinta cavalos inimigos ou o ataque bem-sucedido contra seis barcas castelhanas que percorriam o rio Guadiana para prover a praça de Juromenha, e de comentar a precisão da investida contra alojamentos castelhanos liderada pelo conde de São João, governador das armas da província de Trás-os-Montes. Neste último caso, a névoa invernal apenas teria impedido que fosse maior o dano impingido aos inimigos, quase todos mortos no assalto. Relatados estes eventos, Antonio de Sousa de Macedo pôde concluir seu primeiro Mercurio, e reafirmar seu compromisso: Neste mez de Janeiro naõ ouve outra facçaõ, ou recontro, & porque naõ pareça que sò se ham de referir os de ventagem para Portugal, promete Mercurio debaixo da verdade, que tem protestado, que sempre irâ referindo todos os que forem de consideração, posto que algum (o que Deos naõ permita) succeda contrario; & com esta promessa, pede que se naõ dè credito aos que elle naõ relatar, como a supostos, & inventados.141 O discurso de atenção à verdade, exposto, como já foi visto, nos primeiros parágrafos do periódico, retorna em tom conclusivo, e revela assim o seu objeto principal: a narração da guerra. É no âmbito da descrição dos movimentos da guerra da Restauração, percebe-se agora, que o Mercurio anuncia a primazia de seu embate contra os escritores castelhanos, pois é distorcendo os fatos bélicos que eles estariam convencendo os estrangeiros de sua força. Anunciada dentro desta lógica a tarefa do novo periódico, o enfoque sobre o desenvolvimento da guerra mostra-se crucial para o seu intento. Partindo deste ponto, a predominância das notícias de guerra nas páginas do Mercurio pode ser explicada com mais acuidade: o destaque maior de tal ou qual assunto na imprensa periódica, moderna ou contemporânea, não pode ser 140 141 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 2v. Ibid. fol. 4v. 69 compreendido como reflexo direto da importância real deste tema ou evento no mundo, mas sim associado aos objetivos políticos que conduzem a sua veiculação. Partindo desta premissa, não é cabido esperar que aqui se proceda a verificação da autenticidade das notícias relatadas pelo Mercurio Portuguez, como se importasse avaliar o grau de sua confiabilidade como fonte para o leitor da época, ou pior, para o historiador do presente. Se, por outro lado, o que se objetiva é compreender o lugar deste periódico enquanto instrumento político, a destacada centralidade da narração de feitos bélicos em suas edições indica que os próximos passos de sua análise devem acompanhar exatamente a construção do discurso de Antonio de Sousa de Macedo sobre a guerra luso-castelhana que vivia em 1663 já a sua última fase. É de grande interesse acompanhar como a leitura do Mercurio deixa entrever a dinâmica da guerra, seus movimentos, sua periodicidade. A época de maior movimentação bélica situava-se entre os meses de maio e novembro, portanto do fim da primavera até o outono, com auge no verão, quando os rivais encontravam condições climáticas para reunir seus exércitos, e direcioná-los a batalhas de grande proporção, tomadas de praças militares, e outros feitos de maior vulto. Nestes meses, da mesma forma, é quando o periódico narra as principais notícias sobre o desenvolvimento da luta contra Castela, as mais decisivas batalhas da guerra da Restauração. Nos meses de dezembro a abril, as novas do periódico ligadas a eventos de guerra mostram apenas feitos de menor porte, representando este período uma baixa temporada militar imposta pelos rigores do inverno na região. A ocorrência deste abrandamento da guerra, inclusive, dava azo a que o Mercurio elaborasse uma recapitulação dos principais feitos do ano que terminava, bem como um prognóstico do que se iniciava, respectivamente nos números de dezembro e janeiro. A edição sobre janeiro de 1665, ao pôr em evidência as chuvas e o frio daquele inverno, dando justificativa à impossibilidade de seqüência da guerra durante a estação, comenta: Na provincia da Beira foi tal o frio, que na praça de Almeida morrêraõ delle dous soldados estando de centinella nas guaritas da muralha. E deixandose de noite â janella vasos cõ vinho, se achou pella manhãa feito caramello; o que raras vezes se vio em Portugal. E dentro das estrebarias se entortaraõ as maõs a alguns cavallos com frio, de q pereceraõ.142 Em praticamente todos os meses de sua publicação, porém, sua narrativa é pontuada por estes pequenos recontros entre tropas, escaramuças, ou saques a pequenas vilas e lugares com roubo de gado, alimento, bebida, e mesmo vestes para os soldados. Feitos militares 142 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1665. fols. 5v-6r. 70 certamente de menor influência no desenvolvimento global do conflito entre Portugal e Castela, mas que apresentam detalhes bem relevantes sobre as características da guerra travada entre os dois reinos, e também elementos significativos do discurso elaborado por Antonio de Sousa de Macedo sobre ela. 3.1 DISCURSOS SOBRE A GUERRA COTIDIANA Durante os vinte e oito anos da guerra da Restauração, foram relativamente poucos os combates entre exércitos de grande porte; os que houve, foram certamente decisivos em seus respectivos períodos, mas resumir-se a analisar aquele conflito pontuando grandes batalhas e grandes generais, como por muito tempo fez a historiografia política e militar tradicional portuguesa, implica normalmente no afastamento em relação a um dimensionamento mais seguro das condições que influenciaram o desenvolvimento e o desfecho da guerra, bem como na impossibilidade de compreensão do seu papel na sociedade ibérica daquele tempo143. O historiador espanhol Fernando Cortés Cortés é sem sombra de dúvida um dos exemplos mais marcantes na península da contestação de uma história da guerra apoiada apenas na valorização do significado dos feitos de maior vulto, e principalmente um dos mais importantes estudiosos do impacto da guerra no cotidiano e na economia das regiões de fronteira. Havendo iniciado seus estudos sobre o tema analisando, entre outras questões, a depredação e o despovoamento causados pela guerra da Restauração na Extremadura espanhola, tanto pela ação do exército português como pela das próprias forças castelhanas alojadas na região144, Cortés passou também a buscar referências de mesmo cariz na documentação referente às terras de fronteira portuguesas, encontrando aí condições semelhantes que comprovam a devastação da zona de combate e o assolamento da população, por exemplo, alentejana, beirã e algarvia, casos enfocados mais detidamente no livro Guerra e pressão militar nas terras de fronteira. 143 Este enfoque mais tradicionalista da história militar portuguesa, preocupado com a análise tática de batalhas e uma descrição das hierarquias e funções da organização dos exércitos se mantém ainda hoje. Porém, algumas obras destacam-se por, mesmo mantendo tais ênfases, procurarem trabalhar a partir delas elementos suscitados por outros enfoques, de história política e social, dos temas militares: Cf., entre os que tratam do exército e das batalhas da guerra da Restauração: NUNES, António Pires. Quadros da vida militar – das Ordenações sebásticas às invasões francesas. In: BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir.). Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, v. 5, pp. 45-98, 2004; e ESPÍRITO SANTO, Gabriel do. Batalhas da História de Portugal. Restauração 1640-1668. Lisboa: QuidNovi, 2006. 144 Cf. CORTÉS, Fernando Cortés. El Real Ejército de Extremadura en la guerra de la Restauración de Portugal (1640-1668). Cáceres: Ediciones de la Universidad de Extremadura, 1985. 71 Nesta obra, por seu objetivo, afinal, de apontar para o drama vivido pelos habitantes da fronteira hispano-portuguesa em decorrência de uma guerra prolongada, foi importante justamente destacar sua característica de violência cotidiana, baseada na ação mais corriqueira de pequenos destacamentos, ocupados apenas em devastar propriedades, arrasar colheitas, e saquear tudo o que encontravam. Raramente verificou-se a ocupação do solo inimigo, o que parecia pouco interessar, de acordo com o autor, aos contendores. Os objetivos destas formas de luta seriam debilitar o inimigo, econômica e psicologicamente, arruinar e dificultar atividades agro-pecuárias e comerciais; em suma, desarticular a economia e pressionar duramente os habitantes, fazendo-os optar por abandonar, e assim desamparar, o território inimigo. A explicação deste estilo de ação militar, assim sendo, teria duas faces: de um lado estaria a impossibilidade de ambos os lados para derrotar totalmente o inimigo, e do outro o excelente negócio e os elevados benefícios que a busca por presas trazia a todos os militares, e mesmo ao Estado, por seu direito à arrecadação da quinta parte dos despojos alcançados145. A documentação arrolada e citada pelo historiador para comprovar sua interpretação, porém, deixa margem para que se questione sua intuição de que havia todo este planejamento a priori organizando a sucessão de razias que constituiu a maior parte dos movimentos militares ao longo dos mais de vinte anos de conflito, e de que era possível encontrar, entre os exércitos em contenda, tamanha consciência de suas reais capacidades de ação, e dano. Por ora, porém, basta a consideração deste estilo de guerra como um dado importante para a compreensão desta e de outras guerras européias daquela época, e dos fatores de pressão militar caracterizados acima, para que se dê a devida importância aos feitos militares de menor vulto no contexto da guerra da Restauração, e para que aqui se analise o modo como o Mercurio Portuguez tratou dos mesmos. 3.1.1 Nem tão menores: a valorização dos feitos militares de pequeno porte Preocupado, como foi visto, em interferir na opinião que se desenvolvia sobre a guerra contra Castela, Antonio de Sousa de Macedo de alguma forma percebia a importância de narrar, e comentar, os pequenos sucessos de guerra que marcavam a vida da população e dos soldados nas terras de fronteira. Se ele tinha razão em afirmar, na segunda edição de seu periódico, que a guerra estava àquela altura mais intensa do que nos últimos vinte e dois anos, 145 CORTÉS, Fernando Cortés. Guerra e pressão militar nas terras de fronteira. (1640-1668). Lisboa: Livros Horizonte, 1990. pp. 40-43. 72 e a historiografia atual tem mantido e aprofundado esta visão146, e se nesta fase se realizou a maioria das suas maiores e mais decisivas batalhas, nem por isso o Mercurio deixa de abordar esta guerra de recontros, escaramuças e, principalmente, de saques e razias, e de elaborar a partir deste enfoque elementos cruciais da construção de seu discurso. Em momentos distintos, o periódico narra com estilos distintos estes feitos de guerra. Em várias ocasiões, como no exemplar sobre setembro de 1663, ele os aborda apenas sinteticamente, como que atualizando o leitor das últimas novas, e reafirmando seu discurso de atenção à verdade, que não permitiria que se deixasse pelo menos de pontuar qualquer evento relacionado à guerra: Aos oito se tomàraõ entre Olivença & e Jerumenha, vinte cavallos, que o inimigo trazia de guarda naquella cãpanha. Alguns dias depois tomamos outros sincoenta cavallos pella parte de Elvas. Em dezanove, ou vinte, Pedro Jacques de Magalhaẽs, Mestre de Campo general da Provincia da Beira, entrou nos campos de Cidade Rodrigo, & trouxe trezentos boys, recolhendose sem perda algũa; & se o inimigo não tivera noticia da entrada antecipadamente, se fizera hũa preza mais consideravel. Estes bons sucessos tiverão o desconto de que na mesma Provincia da beira, no partido de Penamacor, nos derrotou o inimigo duas companhias de cavallos, que cahirão em hũa emboscada, & nos levou della cousa de trinta cavallos, & os dous Capitaẽs.147 Já em outros casos, sua narrativa se detém mais sobre os feitos, como no caso já citado de março de 1663, em que na ocasião de um embate contra o inimigo o periódico aproveita para defender a eficiência dos portugueses, e a frouxidão dos adversários, além de enaltecer o desempenho dos heróis do dia. Na edição sobre abril de 1664, o Mercurio desenvolve uma aproximação semelhante, ao noticiar o combate travado por seis tropas de cavalos portuguesas recém-recrutadas em Entre-Douro-e-Minho, contra três tropas e um terço de infantaria enviados pelo governador das armas da Galícia. Por duas vezes ao longo do dia o inimigo atacou as sentinelas da praça da Conceição, para com isso atrair à peleja as tropas portuguesas. Na ocasião, a narrativa do periódico busca evidenciar a emoção da luta, além de demonstrar o preparo com que o exército português defende suas praças e seu território, não deixando de destacar os principais nomes envolvidos no feito: Tornou à tarde a buscar as cẽtinellas com maior grosso; nós as socorremos; elles engrossarão mais, nós fizemos o mesmo, & assim se travou uma escaramuça bem atacada, vindose por vezes ás mãos. Pello q o Mestre de campo João Rebello Leite Governador da praça lançou fòra o resto da sua cavallaria, & algũa mosquetaria junto do fosso. Então rebentou o inimigo das emboscadas, mas sendo batido da 146 Cf. COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração.1640-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. pp. 81102, e também os dados recolhidos sobre a distribuição geográfica e temporal das tropas portuguesas em FREITAS, Jorge Penim. O combatente durante a guerra da Restauração. Vivência e comportamentos dos militares ao serviço da coroa portuguesa, 1640-1668. Lisboa: Prefácio, 2007. pp. 133-151. Para a visão da historiografia militar tradicional portuguesa, são exemplos paradigmáticos, pois representam épocas distintas: CHAGAS, Manuel Pinheiro. A Guerra da Restauração. Lisboa: Lucas & Filho – Editores, 1875; SELVAGEM, Carlos. Portugal Militar. Compêndio de História Militar e Naval de Portugal. Desde as origens do eatado portucalense até o fim da dinastia de Bragança. Lisboa: Imprensa Nacional, 1926. 147 Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 3r. 73 nossa artilharia, & mosquetaria, & vẽdo q não podia cortar a nossa gẽte, se retirou cõ muita perda; (...) Tãbẽ se assinalou Agostinho de Araujo, que era o cabo da guarda; governava as tropas o Tenente Victoriano de Sousa, que se ouve cõ acerto, e bizarria; e do mesmo modo Frãcisco de Abreu, que governava a tropa do Capitaõ Nicolao Ribeiro Picado; & todos os soldados em cõpetẽcia satisfizeraõ a sua obrigaçaõ. Dos nossos ficâraõ feridos de espada quatro soldados; & hum de hũa bala em hũa perna; mataraõnos dous cavallos, & algũs ficaraõ feridos.148 A este evento, portanto, o Mercurio dedica mais sua atenção, e assim pede o mesmo de seu leitor, colocando-o no centro dos acontecimentos, de cada movimento do combate; mesmo que assim evidencie a violência cotidiana da guerra, o periódico intenciona passar ao leitor alguma segurança, difundindo confiança na força e na perícia militar portuguesa, nos heróis que defendem cotidianamente o seu território, perdendo sangue por ele. Além disso, Macedo nitidamente procura promover laços de identificação com os soldados, por exemplo designando-os como “nossa gente”, ou ao narrar suas ações inserindo nelas a participação do leitor, e assim, de toda a população do reino: “nós fizemos o mesmo”. O discurso sobre a guerra no periódico se dedica com grande freqüência a estes pequenos enfrentamentos, onde de forma geral sempre se destaca a porfia das tropas portuguesas, e também sua apurada técnica militar, mesmo em momentos de grande desvantagem. Em maio de 1666, quando trinta soldados desarmados tiveram que se defender de uma partida de cavalos inimiga, “os poucos que levavaõ só espadas, com ellas obrárão de maneira, que nenhum cavallo pode chegar, & só de fòra davão cargas, que os nossos esperavaõ constantemente, sem embargo de verem o Sargento, & outros quatro, ou sinco feridos”149. Frieza, técnica, coragem: estas notícias de escaramuças e recontros entre portugueses e castelhanos, pontuadas ao longo de todo o período de publicação do Mercurio, funcionavam bem em sua lógica discursiva como um microcosmo do embate entre os dois reinos, dando na maior parte das vezes ocasião a que se demonstrasse a superioridade portuguesa em cada detalhe narrado do conflito, e que se buscasse transmitir a tão necessária confiança no desfecho favorável da guerra. Da mesma forma, é interessante perceber como a violência inerente a esta guerra de rápidas entradas em território inimigo é abordada pelo Mercurio. Se, como bem destacou Cortés Cortés esta atividade bélica de menor vulto, porém intensa, e contínua, é justamente a que assola e pressiona com mais assiduidade a vida dos moradores das regiões de fronteira, e se, como já foi evidenciado, as conseqüências políticas nefastas desta pressão influenciaram decisivamente o discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo nos primeiros meses 148 149 Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fols. 3r-3v. Mercurio Portuguez. Maio de 1666. fol. 5v. 74 de seu periódico, é de grande valia acompanhar a sua postura diante dos eventos de guerra em que se punha mais em causa o impacto do conflito sobre a população: as pilhagens que se efetuavam, praticamente em todos os meses desta fase da guerra acompanhada pelo Mercurio, tanto em terreno castelhano como no lado português da fronteira. A edição de novembro de 1663 é exemplar quanto ao cenário de violência em vários momentos visualizado através do periódico. Em outubro, já se havia noticiado entradas castelhanas na Beira, com roubo de cavalos, gado, e degolas de portugueses. Já em novembro, começa a narração de saques orquestrados por Pedro Jacques de Magalhães, governador do partido de Riba Côa, distrito norte da província Beira, “em vingança das entradas que no mez passado referimos haverem feito os Castelhanos”. No primeiro dia do mês, o mestre de campo Manoel Ferreira Rebelo é enviado ao lugar chamado Redonda, “que he de setenta vizinhos, o qual saqueou, & queimou com morte de alguns Castelhanos, & proveito dos nossos soldados”. Uma semana depois, Pedro Jacques manda outros sessenta cavalos à Vila de Pastores, que “foraõ á porta do forte q tem ao redor da Igreja, & tocando a degolar, indo os moradores fugindo pera elle, degolâraõ oito, feriraõ muitos, entrâraõ o forte, saqueáraõ a Villa, queimàraõ as casas, & se recolhêraõ sem perda”150. Ainda mais feroz é a entrada ordenada por Afonso Furtado de Castro do Rio e Mendonça, recém-chegado para governar as armas do partido do sul da Beira, Penamacor, no dia dezesseis do mesmo mês. Como resposta à ação inimiga de queimar algumas casas do lugar de Meimoa, “não tardou o nosso Governador com a vingança”, e enviou seu filho, o comissário geral da cavalaria Jorge Furtado de Mendonça com cento e trinta cavalos e duzentos soldados auxiliares “sòbre a Villa de Trebeja seis legoas da de Penamacor, na fralda da serra de Gata, cujo aspero sitio a tinha livrado atégora de padecer ruìna”, enquanto o próprio governador seu pai, com artilharia e outros duzentos infantes auxiliares, dava cobertura à ação três léguas adiante. Sem pudores quaisquer, incentivado por este clima de vingança que pretendia difundir com o seu periódico, o Mercurio narra o desfecho do feito deixando bem às claras o quão indefesa se encontrava a vila atacada, e seus moradores: As duas horas depois da meia noite, sem haver chegado a cavallaria pello intratavel do caminho, deu o Comissario Jorge Furtado com a infanteria na Villa descuidada, & a saqueou, e queimou, morrendo alguns miseraveis abrazados nas camas em que se haviaõ deitado para descançar.151 Assim como ao narrar recontros e escaramuças nos campos e praças das fronteiras do reino, quando o Mercurio trata dos saques às vilas, dos ataques cruéis aos moradores da 150 151 Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fols. 5r-5v. Ibid. fol. 5v. 75 região, se mantém nele a operação de inserir o leitor no ambiente mais enérgico, mais movimentado do conflito, e demonstrar a perseverança, e neste caso até a impiedade dos soldados e generais envolvidos cotidianamente com a defesa do território, e também com a ofensa ao inimigo. Quando se tratou de noticiar entradas portuguesas, e respectivos saques em vilas e lugares castelhanos, muitas vezes, como estas acima, a ferocidade da ação militar foi descrita. O Mercurio, porém, não escapava à tarefa de justificar a agressão aos lugares em território inimigo. Nesta edição de novembro de 1663, como se percebeu, a principal razão apontada é a vingança, indicando que se tratava de responder à crueldade e insolência dos castelhanos. Mais uma vez, a intenção de Antonio de Sousa de Macedo parece ser a de passar alguma confiança para o leitor, e ainda a de aplacar qualquer temor vinculado às últimas entradas efetuadas pelo inimigo. Outro elemento, porém, também importante justificativa do ataque a lugares desprotegidos, já aparece aí, indicado como o “proveito” obtido pelos soldados na ação: o saque. Em vários números do periódico os saques portugueses são abordados, e muitas vezes percebe-se tal valorização dos despojos alcançados, descritos em alguns momentos com cifras bem elevadas. Nos últimos meses de 1664, o Mercurio narra uma série de entradas arrasadoras efetuadas pelo governador das armas de Trás-os-Montes, o já citado conde de São João, e a quantidade de animais capturados, além de outros bens, é sempre impressionante. Em outubro, o conde teria repartido suas tropas e enviado para assolar várias localidades em uma região da Galícia, de acordo com Macedo, nunca antes alcançada pelo exército português: Saquearaõse todas aquellas Freguesias, de que se tirâraõ oito mil cabeças de gado meudo, oitocentos bois, grande quantidades de patacas, & dobroẽs, muitas fazendas, em tam grande numero, que sendo grande o desejo em todos os nossos soldados, achàraõ todos remédio commum, porque ainda que a repartiçaõ, que fez a sorte, não foi igual, todos vierão contentes.152 Mais algumas entradas arrasadoras por Trás-os-Montes são descritas neste número, e a conclusão do Mercurio anuncia, fazendo relembrar o levantamento da cidade de Orense em maio de 1663, que alguns lugares da região vinham oferecendo obediência ao rei português, como Mandin, e mais quatro outros que mostravam intenções de fazer o mesmo. Tais acontecimentos, explica Macedo, teriam origem nas “notaveis perdas” que Castela, e principalmente a Galícia, vinha recebendo, e padecendo quase sem resistência. “Os clamores dos povos saõ iguais” arremata com precisão, “& o Rey sẽse dobrar a tantos gemidos, posto q 152 Mercurio Portuguez. Outubro de 1664. fol. 4r. 76 sem esperãça de remedio”153. Se por um lado, portanto, mostrava-se útil demonstrar a grandeza dos despojos conseguidos nas entradas na Galícia, parecia ainda argumento mais definitivo traçar como conseqüência da destemida ação portuguesa a desolação da região atacada, e o sofrimento dos galegos, que porém não eram ouvidos por seu rei, o que os levava a recorrer à proteção das armas portuguesas que os atacavam. No mês seguinte, novembro de 1664, o Mercurio volta a tratar das investidas do conde de São João, que “tem sido hum terribel flagello a Galliza, & a Castella a Velha por aquella parte”, que torna por sua vez a saquear lugares “a que a fúria dos nossos soldados nunca tinha chegado”, tirando deles cerca de trezentos bois, mil porcos, mil cabeças de gado miúdo, e outra grande quantidade de fazenda. O resultado destas subseqüentes e bem-sucedidas entradas portuguesas é logo anunciado: Andaõ os inimigos por aquella parte taõ medrosos, que dous ou tres dias antes, vindo cem cavallos a hum lugarejo nosso, bastou a resistencia de dez lavradores (que só o defendiaõ) para lhes impedir a entrada, & matarlhes alguns cavallos, & obrigallos a que, com passo mais que ordinario, se retirassem vergonhosamente.154 Narrar os saques portugueses, bem se nota quando se acompanha as notícias das entradas das tropas trasmontanas do conde de São João, além de servir para demonstrar, aos olhos talvez de um leitor preocupado com o impacto das entradas castelhanas em território português, como o desenrolar cotidiano da guerra vinha trazendo riquezas para Portugal, e tristezas para Castela, implica também na afirmação deste tipo de feito como parte de uma estratégia militar eficaz, no sentido inclusive da redução do poderio e até da coragem do inimigo. Um ano antes, em novembro de 1663, ao focar o Mercurio a atuação das forças dirigidas pelo conde de Schomberg, governador das armas dos estrangeiros e mestre de campo general da província do Alentejo, esta estratégia, militar e discursiva, já se mostrava em pauta. Ordenou ele que algumas tropas saíssem a buscar presas nos campos dos arredores de Brozas, e que outras, lideradas pelo sargento-mor de batalha João da Silva de Sousa, atacassem o lugar de Ferregüela, e os soldados tiveram um ótimo dia: A preza do gado foi grandissima, porèm os que a tomarão, desencaminhárão a maior parte, como he ordinario. Acharaõse setecentos bois, seis mil ovelhas, tres mil cabras, mil & quinhentos porcos, trezentas cavalgaduras. A cavallaria do inimigo com o aviso de que os nossos entravão, abalou de todas as partes, & se ajuntou em Albuquerque, mas pondose em marcha para Valença, soube que as nossas tropas estavaõ já encorporadas com o Conde de Schomberg, & com a diligencia que os Castelhanos tinhão feito para chegarem depressa, deixáraõ pello caminho mais de cento & sincoenta cavallos mortos de cançasso.155 153 Ibid. fol. 4v. Mercurio Portuguez. Novembro de 1664. fol. 5v. 155 Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fols. 6r-6v. 154 77 Repare-se que, nesta notícia, por todos os lados se demonstra a eficácia dos saques efetuados, desde o tamanho da presa até a rapidez com que os destacamentos portugueses conseguiram frustrar a tentativa dos castelhanos de retaliar sua entrada, e assim lhes impingir mais um dano, que foi a perda de mais de uma centena de cavalos. Até o fato de que os soldados portugueses costumavam desviar boa parte dos despojos conseguidos nestas entradas, hábito denunciado pelo conde de Vila Flor na carta já citada de março do mesmo ano e não comentado pelo Mercurio daquele mês, é utilizado agora por Antonio de Sousa de Macedo como recurso para fazer supor ao leitor que o saque havia sido maior, e maior, portanto, o prejuízo dos inimigos, do que os dados ali expostos revelavam156. E o tamanho desta pequena vitória, no principal palco de operações da guerra da Restauração que era fronteira do Alentejo com a Extremadura, é ainda mais acentuado pela pena do Mercurio, ao continuar comentando a atuação de Schomberg, que vinha governando a província na ausência do Conde de Vila Flor: Deixou o Cõde de Schõberg as Villas de Mõforte, Alter, Veiros, & Frõteira com fortificaçoẽs capazes de recolherem algũas tropas que incomodem o inimigo, especialmente nos comboys para Arronches. Jà lhe tomàraõ hũ, & trinta & seis cavallos; & entre outras cartas q depois se houverão de dous soldados de cavallo que as levavaõ, & foraõ tomados; vimos por hũa de Dom Diogo Cavallero seu General da cavallaria para Dom Alvaro de Luna Governador de Arronches, o muito que sentem aquele estorvo, que obrigará (diz elle) a se fazer qualquer comboiy com grande numero de cavallos, que pereceràõ nestas jornadas; & sem um exercito não será possível desalojaremnos de alli.157 Pela carta do governador das armas do Alentejo de 3 de março, foi visto como a presença dos castelhanos em Arronches vinha causando graves transtornos na região, gerando inclusive o descontentamento e o temor da população, que já se recusava a pagar impostos da Coroa, afirmando estar sendo ameaçada pelo inimigo. E o Mercurio sobre o mesmo mês de março, se não se permitiu comentar esta situação calamitosa, fez apenas referência indireta, ao introduzir a boa notícia de uma vitória contra a cavalaria inimiga sediada naquela praça. Já na edição que ora se analisa, de novembro do mesmo ano, percebe-se como Macedo mantém seu discurso afinado com a intenção de diminuir a apreensão reinante em relação à ameaça representada por Arronches. Neste caso, o Mercurio narra primeiro um conjunto de saques bem-sucedidos efetuados por tropas portuguesas na região, ressaltando o valor dos despojos, o proveito dos soldados, e a inépcia do inimigo em se defender. Em seguida é que a narrativa do 156 É de se notar, a título de curiosidade, a presença de D. João da Silva de Sousa nos dois eventos em que há a referência, na carta de Vila-Flor e no Mercurio, ao desvio de parte dos saques auferidos por entradas portuguesas. Este interessante personagem da guerra da Restauração é utilizado pelo historiador Jorge Penim de Freitas ao traçar um perfil do oficial pilhante, ou seja, daquele que busca sobretudo, com sua participação no conflito, obter lucros pessoais através da pilhagem. Cf. FREITAS, J. P. op. cit. pp. 273-276. 157 Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fol. 6v. 78 periódico insere aqueles saques em uma perspectiva maior de estratégia militar, dando a nova de que já estavam fortificadas algumas praças nas proximidades de Arronches – relembre-se que na dita carta Vila-Flor recomendava que se fortificasse Monforte e Assumar – e que elas já abrigavam destacamentos voltados para estorvar a presença inimiga na praça, através de ataques aos seus cavalos, inibindo desta forma a sua ação ofensiva na região, bem como através de saques a comboios que para lá se dirigissem, o que faria com que os castelhanos precisassem redobrar seu investimento militar se quisessem manter aquela posição conquistada anos antes. E o sucesso da estratégia de Schomberg, a confirmação de que a pilhagem portuguesa fazia parte de um movimento maior de alívio da pressão exercida pelo inimigo na região, vem inclusive através da referência a uma carta encontrada enviada pelo governador de Arronches, mais um importante despojo dos afortunados saques na região. Também em novembro, mas já de 1665, outra nova trazida pelo periódico reafirma, com ainda outros elementos, a utilidade da pilhagem e da devastação do território inimigo para o desenvolvimento global da guerra. Logo nas primeiras páginas da edição, são narradas as façanhas do exército unido sob o comando do Conde de Prado, o já referido governador de Entre-Douro-e-Minho, no reino da Galícia, que teria arrasado todos os lugares dos vales de Minhoz, Fragoso e Rosal, “que saõ muitos, & outros de fóra delles naquelle circuito padecéraõ a mesma fortuna”. Entre tantos, destaca a destruição e incêndio de Bouzas, “o ninho dos armadores da pirataria, Villa de setecentos vizinhos, & riquíssima; em q arderão armarzens de muitas fazendas, & assucares”. Neste momento chegam notícias de que o vicerei da Galícia, D. Luis Poderico, aguardava os portugueses com quarenta companhias de cavalos e cinco mil infantes em uma portela chamada San Colmado, inevitável passagem para o exército de Prado. Os soldados portugueses, segundo o periódico, quiseram seguir para logo enfrentar o inimigo, mas este, “não se fiãdo na ventagem q tinha de sitio, se assegurou na distancia, & marchando a Redondella, passou da outra parte da ponte de Sam Payo”158. Ocupando então, após a frustração de não enfrentar oponente, posição em San Colmado, o exército português envia uma partida para queimar a vila de Porrinho, localidade de grande valor para o inimigo, por possuir ali as principais fábricas de suas feitorias: Executouse com notavel perda sua, arruinandose as moendas (como tambem se fez em outras partes) rompendose as ditas fabricas, quebrandose os instrumentos que não se puderão trazer, & tomandose outros, & todos os aprestos; alem dos muitos mantimentos que havia, com o que terá o inimigo grandissima difficuldade em sustentar, não sò exercito, mas gente consideravel naquella fronteira.159 158 159 Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fols. 1r-1v. Ibid. fol. 1v. 79 Nesta abordagem, portanto, Antonio de Sousa de Macedo inclui como fatores benéficos destas entradas não só o arrasamento e saques imediatos dos lugares e dos bens encontrados em território castelhano, mas também a destruição de sua capacidade econômica, da produção em médio prazo dos mantimentos necessários ao sustento do exército, e inclusive da população da região assolada. Associado a um discurso que proclama o vigor da ação militar portuguesa, que inclusive amedronta as forças inimigas, há a afirmação simultânea da inteligência e da eficácia estratégica da sucessão de pilhagens por ela desencadeada. A conclusão da notícia sobre estes feitos resume o impacto geral da entrada na Galícia, reafirmando esta simultaneidade entre a utilidade do ganho português e a da perda castelhana: Os ditos quatro valles de Rozal, Minhoz, Fragoso, & Porrinho, abundantissimos, & os melhores de toda Galliza, & suas muitas, & nobres povoaçoẽs, ficáraõ destruidos, queimados, & arrazados, cõ perda que sempre serà lamentavel a seus naturaes, que em muitos annos se naõ poderâõ aproveitar delles; & ficou dando o inimigo a cada soldado só hũa quarta de milho, que comiaõ pisado. Os despojos que os nossos trouxeraõ, saõ increiveis, porque não estavaõ retirados, naõ se imaginado, q entrariamos tanto dẽtro. Couberaõ a muitos soldados ordinarios peças de prata, & ouro de bom valor, & muito dinheiro; tal houve, q alcãçou seis mil cruzados em dobroens dobrados; desmentiose a opinião q havia do pouco cabedal dos Gallegos; mas a assistencia dos soldados, & exercito, lho acrecentou ha annos, trazẽdo para alli muito dinheiro de elRey, & dos particulares, para as despezas ordinarias.160 A segurança, portanto, que o Mercurio pretendia passar aos seus leitores através do acompanhamento da pilhagem e de outros pequenos feitos militares portugueses, passava pelo reconhecimento das forças pontuais do seu exército espalhadas pelas diversas fronteiras entre os dois reinos, e também pela consideração dos ganhos auferidos pelos soldados nos campos de batalha, o que, inclusive, deveria atuar também como importante móbil para a obtenção de novos combatentes para o front em Lisboa e outras cidades. O historiador Jorge Penim de Freitas, na obra O combatente durante a guerra da Restauração, demonstrou com grande propriedade, e fartura de documentação, as dificuldades que se impunham ao recrutamento de soldados na guerra da Restauração, e como a pilhagem parecia ser a principal, praticamente a única, motivação daqueles que se dispunham a alistar-se nos terços de infantaria e, especialmente nas companhias de cavalo do exército português161. O Mercurio Portuguez, neste contexto, quando relatava a suntuosidade dos saques efetuados, incentivava o alistamento, mesmo que indiretamente, de novas levas para compor as forças militares do reino. Mais do que isto, porém, como se percebe pelas notícias dos saques partidos de Trásos-Montes em 1664, da pilhagem orientada pelo Conde de Schomberg no Alentejo em fins de 160 161 Ibid. fols. 1v-2r. Cf. FREITAS, J. P. op. cit. principalmente pp. 32-43 e pp. 259-278. 80 1663, tanto como da efetuada pelo exército do Conde de Prado na Galícia em novembro de 1665, o Mercurio construía através delas o discurso de que tais feitos faziam parte de uma estratégia mais abrangente, e ademais vitoriosa, de minar as forças inimigas, revertendo e contradizendo o assolamento que os ataques castelhanos estariam trazendo ao território português e a seus moradores. Imaginar, partindo de tal discurso, que havia por detrás das razias praticadas pelo exército português a intenção de, através da violência sobre as populações da fronteira, sabotar suas atividades econômicas e por esta via enfrentar o esforço de guerra inimigo, confirmando o pressuposto aventado por Fernando Cortés Cortés, talvez seja ainda arriscado, incluindo-se aqui a precaução de que não se pode tomar as informações presentes no Mercurio como dados reais, ali verificáveis. Como já foi arrazoado, não faz parte dos propósitos deste trabalho constatar ou contestar a veracidade dos fatos narrados por Antonio de Sousa de Macedo. Mais seguro, portanto, e útil, ao intento de caracterizar a função política da publicação de seu periódico, é perceber que se disseminava, e se reconhecia no seu discurso sobre a guerra, o impacto das entradas e saques em território castelhano sobre a sua população, e também sobre os rumos da guerra, se não como objetivo, ao menos como resultado deste estilo de ação militar, e que esta constatação é inserida nos comentários de Macedo sobre estes pequenos feitos, com a finalidade evidente de valorizar tais práticas, e a talvez menos evidente de combater, no terreno da opinião, o efeito político exercido pela pressão militar inimiga sobre a população portuguesa. Para isso, porém, além de narrar pequenas e decisivas vitórias dos destacamentos lusitanos, fazia-se necessário também abordar, e comentar, as entradas e os estragos efetuados pelo inimigo em território português. 3.1.2 Uma guerra vil e covarde: a depreciação das investidas inimigas e a transformação do discurso sobre saques e razias Nos primeiros meses de publicação do Mercurio Portuguez, alguns sucessos contrários foram noticiados, sendo o principal deles a tomada da cidade de Évora, em maio de 1663. Analisando o modo como o evento foi abordado, foi aqui percebido a contento como Antonio de Sousa de Macedo procurou, relatando tão má notícia, mitigar através de vários elementos a apreensão que ela já havia gerado no reino, principalmente em Lisboa. Não seria diferente, em linhas gerais, sua postura diante de outras investidas castelhanas de bem menor porte, como os saques e escaramuças que em vários momentos são mencionados ao longo das edições do periódico compostas pelo secretário de Estado. A cada vez que narrava um sucesso das armas castelhanas, Macedo reafirmava a intenção de não deixar escapar qualquer notícia 81 daquela guerra, mesmo se fosse contrária aos portugueses, e ao mesmo tempo utilizava vários recursos para minorar o seu impacto na opinião de seus leitores. Na edição de fevereiro de 1664, a descrição da entrada das tropas sob o comando do general inimigo duque de Osuna é um bom exemplar das estratégias discursivas do Mercurio: Pella parte de Almeida, na Provincia da Beira, andáraõ [os castelhanos] nos primeiros dias deste mez muito soltos com o poder que juntàraõ de Estremadura, correndo a campanha, por naõ haver com que se lhes fizesse resistencia; porem havendo o Governador das Armas Pero Jacquez de Magalhaens feito recolher os gados ao interior da Provincia, & o fato ás Praças, se empregáraõ em destruir alguns lugares da raya, & por ultima raiva em derrubar duas pontes. Ufano destas facçoẽs (que o pobre se alegra com pouco) espalhou o Duque de Ossuna papeis, convidando meo mundo á obediencia de seu Rey; & a elles se lhes respondeo de Portugal com outros semelhantes, & de zombaria, & finalmente, deixando o seu novo forte guarnecido, em sinco deste mez se retirou a Ciudad Rodrigo, mas não sem perda, porq pela parte da nossa praça de Alfaiates, o Capitão de couraças Antonio Ferrão de Castello Branco lhe tomou hũ comboy de 24 carretas, & algũas cavalgaduras carregadas. De hũa tapada jũto ao forte lhe tomáraõ uns Portugueses de Almofala quarenta boys, e da mesma sua Aldea do Bispo lhe tiràraõ muitos.162 Com algum humor, Macedo inicia a notícia dizendo que estavam os inimigos “muito soltos” no território português, e explica que o faziam em decorrência da ausência de resistência possível à sua ação na fronteira da província. O que poderia implicar na consideração de uma falha da organização militar portuguesa, desta forma, é utilizado como subterfúgio para acusar a covardia dos castelhanos, que não percorreriam a região se estivesse protegida. Além disso, ainda no intuito de contornar a falta de guarnição que propiciou tal liberdade ao inimigo, o narrador inclui a informação de que todo o gado e o fato daquela raia, objetos de cobiça das tropas de Osuna, havia sido recolhido para o interior do território, dando prova da prevenção com que atuava o governador Pedro Jacques de Magalhães, e minorando a dimensão do dano causado pela entrada em Portugal. Afinal, a ação militar castelhana, de destruição de “vários” lugares e derrubada de duas pontes, é descrita como de somenos importância, e motivada exclusivamente pela raiva do inimigo, frustrado em suas primeiras intenções de pilhagem. O duque de Osuna, porém, não considerou pequeno o seu feito, e espalhou papéis exigindo a rendição dos portugueses, atitude ridicularizada pela pena afiada do Mercurio. Ainda procurando desacreditar o impacto da entrada castelhana, Macedo contrapõe a ela algumas notícias de saques portugueses bem-sucedidos na mesma região do conflito. Estes elementos detrativos da ação militar empreendida pelo inimigo estão presentes na maior parte das vezes em que o Mercurio Portuguez enfoca os saques e razias que assolavam o território português nesta última fase da guerra. Um deles é o tratamento irônico 162 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1664. fols. 2r-2v. 82 dispensado a tais feitos, menosprezo tão bem expresso na consideração de que “o pobre se alegra com pouco”. Sua intenção mais óbvia, portanto, é exatamente fazer pouco dos ataques castelhanos, neste específico caso os das tropas de Osuna. As próximas linhas da mesma edição do periódico, porém, deixam entrever que a destruição causada por tais ataques não foi assim tão desprezível: “Recolhido o inimigo, começou Pero Jacquez de Magalhaẽs a refazer as pontes, & veo chegando a gente q lhe faltava”163. Era imperioso, bem se vê, consertar o estrago causado por Osuna na região, assim como incrementar a defesa do território que havia ficado tão desprotegido. No mês seguinte, uma nova ofensiva do duque na Beira: Pedro Jacques de Magalhães, reedificando uma das pontes arruinadas, sobre o rio Côa, havia levantado perto dela uma atalaia, e a guarneceu com vinte mosqueteiros, que agora seria novo alvo dos castelhanos: Em vinte deste mez de madrugada foi o Duque de Ossuna cõ seiscentos cavallos, & mil infantes para derrubar a atalaya. Sahio da praça de Almeida Pedro Jacques, & mandou occupar os altos de hũa, & outra parte do rio com mangas de mosquetaria; pelejou a infantaria com armas de fogo, & travouse escaramuça com os batalhoens de sua vãguarda; em fim foi o inimigo rechaçado com algũa perda.164 Efetivamente não se tratou a derrubada das pontes de uma ação militar fortuita, inspirada pela raiva de não se haver encontrado gado para o saque planejado. Tendo andado livremente pelo território português, destruído vários lugares e derrubado duas pontes, o duque de Osuna talvez tivesse boas razões para se sentir vitorioso. Uma das pontes, inclusive, só um mês depois o prudente Mercurio informa, postava-se sobre o rio Côa, que atravessava, de sul a norte, os dois partidos militares em que foi dividida a Beira a partir de 1647165, Riba Côa e Penamacor. A crer pelos esforços empreendidos pelo governador Pedro Jacques em sua reconstrução, com instalação de uma atalaia, e pela defesa contra uma tentativa de Osuna de impedi-la, torna-se patente que a ponte não era um elemento prescindível naquele cenário de guerra, devendo se tratar de uma importante via de comunicação entre o interior da Beira e suas terras de fronteira. Antonio de Sousa de Macedo, portanto, tinha também as suas razões para debochar da investida pontual do inimigo, assim disfarçando seu caráter objetivo, e estratégico. O assédio das tropas do duque de Osuna na Beira, porém, não param com a tentativa de coibir a reconstrução da ponte, demonstrando que suas intenções na região não eram 163 Ibid. fol. 2v. Mercurio Portuguez. Março de 1664. fol. 1v. 165 Segundo Jorge Penim de Freitas, a divisão da província fora solicitada em Cortes, e teve como ponto de referência a Vila de Alfaiates: “A partir daquela localidade para norte, até ao rio Douro, estendia-se o partido de Riba Côa, também designado como partido de Almeida; e de Alfaiates para sul, até ao rio Tejo, tomava forma o partido de Penamacor, também referido como o de Castelo Branco”: FREITAS, J. P. op. cit. pp. 143-144. 164 83 casuais, e assim também continua o Mercurio, ao narrar cada sua investida, desenvolvendo seu peculiar humor diante das incursões inimigas. Em junho do mesmo ano, já portanto em plena campanha de 1664, Osuna adentra em território português, de acordo com o periódico, com três mil infantes, mil cavalos, sete peças de artilharia, e muitos carros. Mordaz, o Mercurio comenta a serventia de tamanho poderio: Parou todo este estrondo em derrubar algũas atalayas que o Governador das armas Pedro Jacques de Magalhaẽs avia mandado despejar por não terem defensa; & em fazer guerra vil aos paẽs que segou meos verdes, de que levou muitas carradas. Por cartas que se lhe tomâraõ em hum Corrêo para sua mulher, & para o Conde de Graxal, assistente em Salamanca, blasonava muito destas façanhas, avaliando cada atalaya por hũa Rochela, & cada espiga por cabeça de hum gigante. O Governador Pedro Jacques, que não se achava com seu poder junto, ainda assi em varios recontros lhe matou gente, & tomou trinta & tres cavallos, & lhe matou outros, & da nossa parte se perderaõ só tres cavallos, & houve hum soldado ferido.166 “Todo este estrondo”, escarnece Macedo, mobilizado apenas para derrubar umas atalaias e fazer “guerra vil” aos pães, ou seja, devastar as plantações de trigo da região, neste caso recolhendo-o e levando para o território castelhano. O humor do Mercurio Portuguez opera aqui uma caricatura da ação militar chefiada pelo duque de Osuna, com óbvias intenções políticas. Sem força, ou melhor, sem coragem para enfrentar o exército português, Osuna se contenta com fazer guerra aos pães, e ataca apenas alguns postos de observação portugueses, e ainda envia cartas vangloriando-se do feito, para o seu assistente em Salamanca e para sua mulher. O sarcasmo do periódico chega ao auge, imprimindo à sua caracterização do inimigo delírios verdadeiramente quixotescos, e terminando de menosprezar seu feito mostrando como Osuna o utilizava para fazer pose de guerreiro vitorioso diante da mulher, e dos seus subordinados. Um ponto, porém, parece incontornável, mesmo à engenhosa pena do Mercurio: ao denunciar a vileza do ataque às plantações da Beira, pretende-se com certeza desvalorizar tal ação militar, destacando a sua covardia, mas neste caso a covardia relaciona-se não só com o medo, mas também com a crueldade de quem a engendrou; se se reconhece a crueldade do feito, reconhece-se o seu resultado assolador, o seu impacto na vida dos moradores e na organização do exército lusitano na região. O mesmo intento, portanto, de desarticular a economia do inimigo, que Macedo procurou elogiar nos saques portugueses, pode-se encontrar no tipo de entrada operada pelos castelhanos em casos como o destacado acima, e é este intento, e seu sucesso, que se procura agora envolver no manto do escárnio e do amesquinhamento. Não por acaso, portanto, logo após narrar o recolhimento das tropas de Osuna, o Mercurio traz notícias da resposta de Pedro Jacques de Magalhães aos seus ataques. Em 166 Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 13v. 84 primeiro lugar, organizou uma investida sobre a vila de Sobradillo, “hũa boa povoação, & rica”, com quatrocentos cavalos e dois mil e quinhentos infantes, força que ali entrou sem grande resistência dos moradores, que logo se refugiaram em um castelo próximo. O governador então “mandou saquear a villa, o que se fez com muito vagar; & depois a mandou queimar”. De acordo com o periódico, a fúria de Pedro Jacques só não investiu contra o tal castelo em que estavam os moradores porque começou uma forte chuva que engrossou o rio Águeda e impediu que suas tropas o atravessassem com “os petardos, lanças de fogo, & granadas, que para isto levávão”. Obrigado pelo mau tempo a se recolher, ainda “mandou Pedro Jacques dizer ao duque que em saquear, & queimar villas se vingava, & vingaria de lhe segar paẽs, & derrubar atalayas”167. Antes de terminar a mesma edição, Macedo traz ainda, como última nova, que o governador da Beira continuava a sua “vingança dos paẽs cortados”: sabendo da chegada de um comboio de carretas e cavalgaduras em direção ao Forte de Fiel, saiu com trezentos cavalos de Almeida, e já perto do dito forte o atacou com quarenta cavalos, tomando sessenta carretas e quarentas cavalgaduras, e atraindo a guarnição do forte para o combate: saindo o inimigo a socorrellas, o mandou carregar pello Tenente general da cavalleria Dom Antonio Maldonado, & fazendoo com menor numero, obrou elle, & os que com elle hiaõ de maneira, que às cutiladas, metèraõ os batalhoẽs inimigos pella porta do Forte, & chegáraõ atè á estacada com grande bizarria, matando, & ferindo muitos soldados, tomando quinze cavallos, & quarenta prisioneiros.168 Bem se nota a relevância, tanto na guerra quanto na opinião, da derrubada de atalaias e do ataque a plantações de trigo orientados pelo duque de Osuna, se originou estas ações de retaliação, e se no periódico do secretário de Estado se designou a sua vingança como mote e justificativa para as entradas em território inimigo. Logo nas primeiras linhas da edição de dois meses depois, sobre agosto de 1664, ainda se recorria à memória da guerra aos pães para arrazoar os saques de Pedro Jacques, que no dia três saíra “com dous mil infantes, & setecentos cavallos pagos, & auxiliares, a fazer em Castella algũa presa, que continuasse a vingança dos trigos que o Duque de Ossuna havia cortado com a guerra vil que jà vimos”169. A vingança, portanto, continua, e o leitor do Mercurio acompanha uma série de incursões dirigidas pelo governador português, representando sempre eficientes tomadas de cavalos e gado. Como se percebeu, ao tratar das entradas inimigas, sempre buscando reduzir o impacto destas novas na opinião dos leitores, Macedo opera no sentido inverso do enfoque de 167 Ibid. fol. 14r. Ibid. fol. 16r. 169 Mercurio Portuguez. Agosto de 1664. fol. 1r. 168 85 exaltação dos pequenos feitos portugueses, e acusa a mediocridade, a covardia e, como pano de fundo, a ausência de qualquer pensamento estratégico por detrás dos ataques inimigos a pequenas localidades, pastos e plantações. Porém, quanto mais, ao longo de suas edições, este tipo de recurso é utilizado, quanto mais se acusava a covardia dos castelhanos, mais se tornava necessário incluir a valentia como móbil e justificação dos saques portugueses. Isso porque, a cada notícia sobre os danos trazidos pelos castelhanos ao território português, mais se destacava no Mercurio a ausência por parte do inimigo de qualquer intenção de combate direto. Já em julho de 1664 encontra-se um dos primeiros exemplos desta postura. Comenta Macedo em certa altura que os castelhanos entraram por Trás-os-Montes com dezesseis tropas de cavalos, um terço pago de infantaria, e mais alguns milicianos, indo sobre pequenos lugares como Lama de Arcos, Vila Meã e Vilarinho, entre outros, e “não levou delles cousa de sustancia, se bem nas sementeiras fez perda”. Mais um caso, portanto, de ataque direto à produção agrícola das terras de fronteira. Macedo não deixa, como nota-se em seu discurso, de subestimar a perda decorrente da entrada, mas faz mais: diz que a província portuguesa se encontrava com apenas seis tropas, com duzentos e cinqüenta cavalos, trezentos infantes pagos e alguns terços auxiliares, que comandados pelo mestre de campo Diogo de Brito Coutinho estiveram buscando o inimigo; porém este, durante toda a ação, “andou como fugindo; porq tẽdo tanto maior numero de cavalleria, & infanteria paga, se retirava logo, que imaginava q os nossos hiaõ socorrer; atè q, avẽdo feito guerra mais de salteador, que de conquistador, se recolheo a Monte Rey”170. À desvalorização da dimensão das razias e saques inimigos, se soma a acusação de que as tropas que os efetuavam fugiam de possíveis recontros com as forças portuguesas, mesmo quando estas apresentassem franca desvantagem numérica. Em meio ao discurso de menosprezo das intenções bélicas castelhanas, vai se definindo uma oposição nítida entre a covardia inerente a um estilo de guerra mais afeito aos saques, e o valor e a bravura daquele que procura promover confrontos diretos entre os exércitos em contenda. A partir dos últimos meses de 1665, e durante praticamente todas as edições do Mercurio Portuguez em 1666, período em que de maneira geral reduz-se a dimensão e a proporção dos feitos bélicos da guerra da Restauração, este discurso avoluma-se e se consolida no olhar do periódico sobre a guerra. Em outubro de 1665, comenta a entrada e saque das tropas do marquês de Caracena, general do exército castelhano desde o início do 170 Mercurio Portuguez. Julho de 1664. fol. 8v. 86 ano, nos lugares abertos de Veirós e Fronteira, de onde levou presas e prisioneiros. Quando começava a queimar as casas de Fronteira, porém, ficou sabendo que o mestre de campo general e general da cavalaria do Alentejo, Diniz de Melo de Castro, vinha a seu encontro, e, como quem “entràra em Portugal com preposito de naõ receber visitas, subitamente levantou maõ do q fazia, & de hum tiro andou sete legoas por se emboscar em Castella; o temor, disse o Poeta, acrecẽta azas”171. A estratégia do Mercurio é a de menosprezar o ataque castelhano, mas não exatamente por não haver trazido dano a Portugal, e sim acusando sua covardia em não esperar as forças portuguesas e enfrentá-las. O sarcasmo do periódico, que aqui ridiculariza a rapidez da fuga inimiga, se dirige então a inferiorizar a própria tática militar do saque e destruição dos lugares de fronteira. No número sobre os eventos de novembro de 1665, o mesmo em que já se havia narrado a entrada arrasadora do conde de Prado na Galícia, as notícias sobre a província do Alentejo enfocam a entrada do mesmo Caracena, com toda a cavalaria castelhana, dividida em dois troços de mil e quinhentos cavalos cada. O primeiro teria apenas queimado quatro casas nos arredores de Santa Eulália, não conseguindo entrar no lugar por rechaço dos moradores e alguns soldados que lá se encontravam, e se retirou por Juromenha sem que fizesse outro dano, “nem levou preza algũa, porque os gados se haviaõ retirado por aviso que tiverão”. Já o segundo troço não parecia tão fracassado, pois queimara as aldeias e casas no caminho de Monsaraz, e “se retirava com hũa grandissima preza de gado”172, até que ficou sabendo que vinham no seu encalço o tenente general D. Luis da Costa com sete companhias de cavalo e também, com reforços, o mesmo Diniz de Melo de Castro: bastou isto para tocar logo a recolher, &, de retirada apressada, passou a fugida vergonhosa, largando cõ o medo toda a preza (exceptas poucas rezes, & porcos que tinha mandado muito adiante) correndo para o porto do Tarrasal. E tocandolhe poucos cavallos nossos de noite arma pellos lados, & na retraguarda, se meteo em tal confusaõ que, tocando as trombetas, perdeo o caminho, & setenta cavallos, e nos deixou alguns Oficiais prisioneiros, & foi pelo Roncão passar o porto do Zebro, sem parar senão depois de correr sinco legoas, em que se arruìnou grande parte da cavallaria.173 Repare-se como aqui se dedica o Mercurio a narrar em tons de comédia a saída do inimigo do território português, a caracterizá-lo medroso e atrapalhado, deixando para trás a grande presa que levaria para Castela, e ainda causando a perda dos seus próprios cavalos na confusão de sua fuga intempestiva. Fuga vergonhosa, e não retirada apressada, indica Macedo, ironizando o eufemismo próprio da linguagem militar. Para completar a cena cômica 171 Mercurio Portuguez. Outubro de 1665. fol. 3v. Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fol. 6r. 173 Ibid. fol. 6v. 172 87 pintada acima, o periódico informa ainda que a causa maior do temor do marquês inimigo, os reforços que trazia Diniz de Melo de Castro, não se concretizou, pois o general da cavalaria do Alentejo não chegara a conseguir reunir, como pretendia, as tropas de Vila Viçosa com as de Elvas: Fugit impius nemine persequente; o ímpio foge sem que ninguém o persiga, arremata recorrendo ao provérbio salomônico174, encaminhando o leitor da comédia à censura moral dos opositores de Portugal, e passando então a apontar como sua ação covarde fazia parte de um novo estilo de guerra levado a cabo por Castela, sinal de sua decadência e de sua inépcia militar: Tem feito Caracena estes tempos as entradas que vimos, porque (segundo os avisos que recebemos de Madrid) o novo governo da Rainha tem resoluto seguir outro estylo de guerra, naõ tratando de batalhas (& faz bem) mas molestando com entradas a pilhar. Se isto he generoso, & meo de cõquistar, elles o saberaõ, & se he tambem ordẽ Real, que fujaõ os intrantes tanto que sospeitarem que os nossos os querem buscar, elles a executaõ pontual, & obedientissimamente.175 Desta forma, o Mercurio Portuguez definitivamente denuncia a indignidade deste estilo de guerra que privilegia os saques e foge das batalhas, e demonstra assim como este tipo de ação indica a falência do inimigo, sua incapacidade bélica, e sua covardia inveterada. Nas edições seguintes à citada, multiplicam-se os exemplos desta abordagem do periódico em relação às entradas inimigas. Ainda em dezembro de 1665, comenta que trinta cavalos inimigos que entraram em Portugal, e já levavam presa dos campos de Moura, quando foram vistos por dez ou doze caçadores, eles, “fazendose lebres, deixaraõ logo a preza, & se puzeraõ em salvo”176; em março de 1666, faz rápida menção a duas entradas inimigas pelo partido de Penamacor, diz que uma levou quinhentas ovelhas, e a outra nada, e que como o inimigo “logo se costuma recolher, com o que acha, ou sem nada, & como naõ espera, naõ ha peleja que referir das suas entradas”177; dois meses depois, na edição de maio, noticia o saque de duzentos castelhanos sobre Vilar de Margo, que perseguidos por duas companhias de infantaria portuguesas perderam seis homens, e vários foram presos, “e os mais se puzerão em fugida, largãdo as armas, & o que levavão”178. Em julho de 1666, no auge da campanha militar daquele ano, logo após acompanhar a prevenção com que Diniz de Melo de Castro surpreendeu um troço de cavalaria inimiga e o perseguiu por quatro léguas lhe tomando duzentos cavalos, e logo antes de narrar a entrada do inimigo pelo termo de Mértola com mil e trezentos cavalos e seiscentos infantes, que ao saberem que os buscava o governador de 174 Vulgata, Provérbios, 28, 1. Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fol. 7r. 176 Mercurio Portuguez. Dezembro de 1665. fol. 2v. 177 Mercurio Portuguez. Março de 1666. fol. 2v. 178 Mercurio Portuguez. Maio de 1666. fol. 4v. 175 88 Beja Diogo Gomes de Figueiredo, com mil cavalos, fugiram direto para Castela, contentandose apenas em queimar três ou quatro palheiros, Macedo coroa o argumento construído nos últimos meses: Que pelejando aja bons, ou maos successos, he muito ordinario; mas que de tempos a esta parte nam queiram ja os castelhanos pelejar, sô busquem o que nam tenha opposiçam, & achandoa, nam ousem ver nossa cara, como vimos em tantos successos desta relaçam, he muito pera reparar; vejase como ham de ser conquistadores.179 É, portanto, através deste discurso tecido mês após mês, que o Mercurio reorganiza, principalmente durante 1666, sua lógica de detração das investidas castelhanas de pequeno porte. Como se evidenciou aqui, ao longo das sucessivas publicações Antonio de Sousa de Macedo vai definindo suas estratégias discursivas, se esforçando no princípio em desmentir a função estratégica da ação castelhana, de modo inverso ao que fazia quando abordava um saque ou uma razia portuguesa; mais adiante, porém, concentra-se na acusação da covardia inerente a este estilo de guerra, e na associação dos saques castelhanos com uma incapacidade de empreender a guerra mais honrada, e eficiente, que seria o combate direto com as forças militares portuguesas. Assim, na edição de agosto de 1666, introduzindo sua narração sobre os saques efetuados pelo marquês de Caracena em Veirós e vários lugares vizinhos, além da invasão bem-sucedida sobre um pequeno castelo em Cabeça de Vide, o periódico pôde menosprezar o feito, comentando que “Caracena, como ferido, andou mais prudente, porque obrou o que pode sem chegar a pelejar”180. Sob este novo prisma, colocado diante das notícias dos feitos castelhanos de menor vulto em território luso, construiu-se uma distinção moral entre o saque e a peleja, que passou a atuar no discurso detrator da ação militar castelhana com mais veemência do que os anteriores recursos destinados a subestimar a dimensão dos danos por ela impingidos a Portugal. Como não podia deixar de ser, o domínio deste prisma nas edições de 1666 implicou também em mudanças substanciais no modo como Macedo passava a descrever os saques e razias dirigidos pelo exército português contra o território castelhano. Caso exemplar desta mudança pode ser observado em outra notícia do, citado há pouco, Mercurio de março de 1666. Logo após o passo, já referido, de anunciar a perda de quinhentas ovelhas, criticando como os entrantes logo se recolheram, sem deixar oportunidades para pelejas, o periódico passa a noticiar as entradas em território castelhano organizadas por Antonio Soares da Costa, general da artilharia da Beira, que então governava o partido de Penamacor, de onde haviam sido retiradas as tais ovelhas. Tendo saído com duzentos cavalos em busca de cinco tropas 179 180 Mercurio Portuguez. Julho de 1666. fol. 7v. Mercurio Portuguez. Agosto de 1666. fol. 17v. 89 inimigas que entendeu estavam em Saclavim, não as encontrou, mas apenas outros trinta e seis cavalos, contando com cinco tenentes e um capitão, dos quais tomou trinta e cinco; no mesmo dia, foi para as proximidades de Silheiros, para atrair sua tropa, mas esta “naõ quiz sair; trouxeraõ os nossos muitas ovelhas, & cavalgaduras, de cujo numero naõ chegou a Mercurio certeza”181. No mesmo mês, portanto, subentende-se que houve saques realizados pelos dois lados na raia da região sul da Beira. Ambos os lados, portanto, reconheciam a utilidade, quiçá a necessidade, de tais pilhagens no cotidiano da guerra; mas o Mercurio, empreendendo já outra guerra, em outra arena, faz questão de dizer que os castelhanos buscavam apenas o saque, e fugiam de confrontos diretos, enquanto os portugueses cruzavam a fronteira no intuito de provocar batalhas, e quando não as concretizavam, o que afinal dependia da recíproca coragem dos inimigos, é que se dedicavam ao saque. Repare-se que, a esta altura, mesmo o ataque de tropas portuguesas contra castelhanos em franca desvantagem era justificado pela intenção anterior de um combate mais igual, e mais valoroso. Ao longo deste último ano escrevendo o Mercurio Portuguez, Macedo narra outros vários pequenos feitos conduzidos por Pedro Jacques de Magalhães, ainda governador do partido de Riba Côa, e o modo como Macedo aborda tais feitos, bem diferente daqueles descritos como vingança contra a guerra aos pães empreendida pelo duque de Osuna, mostra ainda com mais nitidez a significativa alteração do discurso do periódico sobre os pequenos sucessos de guerra. Se durante a campanha de 1664 bastava a menção à necessária desforra em relação aos danos impostos por Osuna para justificar os saques portugueses naquela fronteira, já em 1666 sempre o periódico procurará atribuir ao exército português objetivos mais honrados do que a simples depredação e saque nas possessões inimigas. Na edição sobre o mês de fevereiro, sua primeira entrada já foi comentada neste trabalho, pois veio em seguida aos seus comentários à prática de pazes negociada pelos emissários ingleses: um belo e portentoso saque, que teve como motivação de fundo atrair à peleja as tropas de Ciudad Rodrigo, que porém “naõ ousaraõ a passar de hũ alto junto da Cidade, donde foraõ testemunhas da marcha com que Pedro Jacquez se retirou”. Mas as investidas do destemido governador não haviam parado por aí: dias depois, entrou e saqueou a vila de Retortillo, a cinco léguas de Ciudad Rodrigo, lá se alojou com seus seiscentos infantes e oitocentos cavalos, despedindo na manhã seguinte duas partidas de cavalos a saquear vários lugares, chegando uma delas até a cinco léguas de Salamanca, pelo que trouxeram despojos consideráveis, desde gado até peças de ouro e prata; a conclusão da notícia, porém, não deixa 181 Mercurio Portuguez. Março de 1666. fol. 3r. 90 de lembrar porque não havia narrado batalhas naquela região: “se recolheo o nosso Governador das armas sem que Dom Joam Salamanques General da artilheria, que governa as de Ciudad Rodrigo, & de aquelle Partido, saisse nem a ver a nossa marcha”182. Houve que se justificar, portanto, a entrada e os saques efetuados em território inimigo, pois eles não deviam ser interpretados, como o Mercurio pedia em relação aos saques castelhanos, como ações covardes de um exército indisposto a batalhas e recontros com seu opositor. Durante o ano de 1666, em algumas outras edições são narradas entradas orientadas por Pedro Jacques que efetuam saques nas redondezas de Ciudad Rodrigo, sempre com o frustrado propósito de provocar um combate direto com a guarnição daquela praça. A última delas, porém, noticiada no número sobre outubro, é a que merece maior destaque. Mais uma vez, saía o exército português com o fim de “armar à cavalaria de Ciudad Rodrigo”: Emboscouse aonde chamão Val dos Canhos, pouco mais de tiro de peça da praça; & despedio em partidas 130 cavallos a pilhar os campos, os quaes chegàram a Tamames, sete legoas alem daquella Cidade, passando por muitos lugares, & villas, sem acharem nelas resistencia, mas sô desconsolaçam, & clamores de se verem sem defensa. Em tanto foi Pedro Jacquez de Magalhaens sentido na emboscada, pello que se descobrio aos tres; sahio a cavallaria da praça, mas nam apartou as ancas da muralha; o que vendo Pedro Jacquez mandou saquear algumas herdades, & que os soldados vindimassem as vinhas, o que fizeram muito a seu gosto com grande vagar. Chegàram as nossas partidas bem carregadas, as grupas de fato, & trazendo 700 rezes vacũas, & muitas cavalgaduras, & deixando talada a campanha, & muitas casas queimadas; o nosso Governador das armas se pos em marcha, vindo jũtamente caçando às perdizes como por sua casa.183 A serenidade da ação militar portuguesa chega a ser anedótica. Investira o Mercurio ao longo do ano, em várias ocasiões, no discurso de que as tropas da Beira repetidamente tentavam atrair as de Ciudad Rodrigo, mas estas não as enfrentavam, explicando assim a ocorrência de uma série de pilhagens realizadas por Pedro Jacques na região. Agora, nesta edição de outubro, o periódico incrementa tal discurso descrevendo com tom jocoso as ações que se tornaram possíveis pela covardia dos castelhanos: os saques efetuados já sete léguas depois da cidade inimiga, a sossegada colheita das uvas a poucos metros da mesma, e a tranqüilidade com que as tropas puderam retornar a Portugal, permitindo inclusive o requinte de uma caça a perdizes durante o percurso. Assim, Antonio de Sousa de Macedo conduz ao paroxismo sua oposição entre as entradas e saques castelhanos e o mesmo tipo de investida operada pelos portugueses, construída desde fins de 1665: se nas entradas inimigas verificavase a disposição das tropas lusitanas para sua retaliação, e apenas a covardia castelhana impossibilitava o confronto direto entre as forças militares dos dois reinos, o exército português, por sua vez, ao adentrar em território inimigo fazia questão de executar sem pressa 182 183 Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fols. 2v-3r. Mercurio Portuguez. Outubro de 1666. fols. 9r-9v. 91 seus saques, no intuito de enfrentar em batalhas campais a cavalaria castelhana, e mais uma vez é o temor dos inimigos que as impede. Neste último caso, porém, Macedo traz ainda outro dado, que reforça o seu propósito, observado desde os idos de 1663, ao procurar cunhar tal diferenciação entre as pequenas ações militares de ambos os lados da contenda: se Pedro Jacques não encontrou, nos lugares saqueados, qualquer resistência, notou porém como aí se disseminava o desconsolo da população estremenha, que se percebia desamparada pelas forças que a deveriam proteger. Se o cotidiano de rápidas entradas, saques e razias, de acordo com a historiografia atual sobre a guerra da Restauração, era o elemento que mais debilitava e assolava a vida dos moradores das áreas atingidas pelo conflito, ao descrevê-las o redator do Mercurio Portuguez utilizou, como foi visto, uma série de recursos para valorizar e justificar as ações portuguesas, e menosprezar as investidas castelhanas. Com isso, se pretendeu sempre abrandar o impacto que o inevitável assolamento da zona de guerra poderia causar no terreno da opinião, impacto de inequívoca dimensão política, sentida com bastante força entre março e maio de 1663, período inicial certamente marcante para a definição das estratégias discursivas do Mercurio, observadas até aqui no que tange à narrativa dos pequenos eventos militares. A transformação dos recursos discursivos do periódico, que passou, durante sua publicação, da valorização da utilidade estratégica das razias à depreciação moral de sua utilização, serviu sempre, de uma forma ou de outra, à afirmação da superioridade militar portuguesa, à divulgação de conseqüências nefastas do desenrolar da guerra no território castelhano, como a pauperização da população e das forças militares inimigas, e à simultânea mitigação na opinião das mesmas conseqüências em Portugal, mas acompanhou também as alterações vividas nos rumos da guerra da Restauração. De fato, é bastante significativo que, ao longo da publicação do Mercurio Portuguez, o simples ganho material dos saques ou a efetivação de uma vingança contra ações covardes inimigas tenham deixado de ser justificativa bastante para o anúncio de entradas em território castelhano. Se, como foi argumentado até aqui, Antonio de Sousa de Macedo pode ter sentido a necessidade de divulgar razões mais nobres, e valorosas, pelo incremento em seu próprio discurso da censura moral à pratica de saques e razias, estas duas simultâneas alterações em seu discurso demonstram um novo posicionamento do redator em relação à posição ocupada por Portugal naquela guerra. Provavelmente, aliás, correspondiam a uma percepção de que a própria opinião dos leitores já via o reino em melhores condições diante do inimigo de mais de duas décadas; ou antes, de que, por sua interferência, este novo olhar podia ser estimulado, e melhor aproveitado. 92 Em vista destas questões, e considerados até os principais elementos da abordagem do Mercurio sobre o cotidiano de recontros, saques e razias, que marcou a guerra da Restauração em sua totalidade, importa agora enquadrar tais aspectos, até para melhor responder aos problemas suscitados por sua interpretação, em uma compreensão mais geral de seu discurso sobre aqueles últimos anos do conflito, seu desenvolvimento global e seus principais eventos. 3.2 DO DESENROLAR DA GUERRA, E SUAS MAIS VULTOSAS NOTÍCIAS O primeiro ano de publicação do Mercurio Portuguez iniciou-se conturbado, tanto no cenário de guerra como no terreno da política. A denúncia dos planos de um golpe que colocaria a rainha deposta de volta no trono português, por uma conjuração que envolveu membros de destaque do novo governo, a não conclusão das negociações de paz que vinham sendo lideradas pelo suposto mentor da traição, o assolamento da população no entorno de Arronches, a tomada de Évora e os tumultos de Lisboa, delinearam nos primeiros meses de 1663 um painel adverso, com conseqüências preocupantes para o reino, e principalmente para o governo de D. Afonso VI. O periódico do secretário de Estado, como foi visto no capítulo anterior, buscou responder a tamanha pressão política traçando um discurso, principalmente na edição em que comentava a queda de Évora, afirmativo da capacidade de superação das forças portuguesas, do apoio dado pela população do reino, revestido em recrutamentos, mas também denunciador da pressão que Castela impunha sobre a sua própria população em função do seu esforço de guerra. Esta postura, além de influenciar decisivamente a abordagem do Mercurio sobre os feitos bélicos de menor vulto, apresentou também desdobramentos no modo como o periódico elaborou, a partir daí, sua visão sobre o desenrolar da guerra como um todo, e sobre os seus sucessos de maior dimensão. 3.2.1 Após a queda de Évora, a bravura e a superação portuguesa Neste sentido, a edição subseqüente à da queda de Évora não poderia ser mais afortunada, e anunciava em sua capa que junho fora o mês “em que se alcançou a vitoria da Batalha que se deu no CANAL, e em que foy restaurada a Cidade de EVORA pelos Portugueses”184. Antes de narrar propriamente os eventos do mês, o Mercurio relembra onde havia parado de noticiar a conjuntura militar do Alentejo no mês de maio: “deixamos a Dom 184 Mercurio Portuguez. Junho de 1663. fol. 1r. 93 João de Austria entrado em a Cidade de Evora, mandando bolatins a algũs lugares fracos; & o nosso exercito impedindolhe os combois, & communicação com Castella, entre esperanças de o reduzir a hũa extrema necessidade”185. Daí em diante, quase a totalidade de suas páginas é voltada para tratar dos feitos que culminaram com a capitulação das forças castelhanas que estavam na cidade. No primeiro momento, aproxima-se de Évora o conde de Vila-Flor com o exército, e aquartela-se junto ao rio Degebe, onde recebeu o primeiro ataque da artilharia castelhana, que atingira somente dois cavalos portugueses em uma noite inteira de disparos. Na manhã do dia seguinte, D. Juan José de Áustria lança seus homens “animosamente sobre a ribeira, que dividia os exercitos”, e o português “peleijou sobre elle porfiadamente, atê q o inimigo se retirou descõposto para a Cidade cõ grãde perda de mortos, & feridos (...) & na retirada foi sempre recebendo danno da nossa artilheria, que da outra parte da ribeira o seguio por sitios que elle não podia evitar”186. Dos portugueses, neste primeiro confronto, teriam morrido apenas dois ou três, e tal sucesso contrário desanimou os inimigos de modo, que na tarde do mesmo dia determinou Dom João retirarse a Castella (dizia elle, que a buscar os socorros, que em Badajoz estavão juntos) deixando Evora guarnecida com quasi tres mil infantes, seiscentos cavalos, quatro meos canhões, & outras sete peças de artilheria, alem de trabucos & petardos, com munições, & mantimentos bastantes. Aquartelouse naõ longe dos nossos aquella noite, & no escuro silencio della começou a fugir, & quando os nossos o sentìraõ tinha já marchado muito caminho.187 À batalha que então se deu entre os dois exércitos, no terreno chamado de Ameixal, a uma légua de Estremoz, o Mercurio dá como causa a fuga sorrateira dos castelhanos, e a ação decisiva das forças portuguesas de lhes cortar o passo. De acordo com o periódico, ali se enfrentaram dez mil infantes portugueses e pouco mais de três mil cavalos, contra uma infantaria castelhana um pouco menor, mas com seis mil cavalos, “excesso que parecia invencivel, & muito mais estando em hum sitio muito superior, chamado o Canal, alojado em cabeças de montes, que formavaõ fortalezas inexpugnaveis”188. O confronto, propriamente, não é narrado por Antonio de Sousa de Macedo, que se explica: Da disposiçaõ, & particularidades da batalha se imprimio relaçaõ, que escuza repetir o que jà está dito; nesta sò affirmamos com toda a verdade, que foi a victoria muito maior do que naquella relaçaõ se disse, porque se fez com brevidade pellos desejozos, que a pediaõ, & estas cousas se vaõ descobrindo com o tempo, averiguandose as pessoas que faltaõ, por serem mortas, apparecendo o numero & calidade dos prisioneiros, & sabendose as circunstancias dos successos. Aqui basta dizer, que se peleijou sette horas, desde as tres da tarde até as dez da noite, sem cessar hum momento, e sem haver reserva, ou pessoa que deixasse de peleijar.189 185 Ibid. fol. 2r. Ibid. fols. 2v-3r. 187 Ibid. fols. 3r-3v. 188 Ibid. fol. 3v. 189 Ibid. fols. 3v-4r. 186 94 A relação a que ele alude parece ser a Relación de la famosa, y memorable vitória que el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de Villa-Flor, alcançó del exercito del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Austria, saída assim em castelhano, mas pelo mesmo impressor do rei português, Henrique Valente de Oliveira, então responsável pela publicação do Mercurio. O principal elemento que o acusa é o fato de em sua narração ainda não constar a retomada de Évora, mas apenas a sua conquista pelos castelhanos, e a sucessão dos eventos até o desfecho da batalha do Ameixal. A comparação entre as duas narrativas dos mesmos eventos mostra com clareza o estilo mais sintético da abordagem do periódico, que culmina com a referência superficial à batalha do Ameixal, que na Relación é narrada nos seus pormenores, desde a formação das linhas portuguesas, seus terços e seus comandantes, até as consecutivas investidas e movimentos que definiram a vitória de seu exército190. Diante, portanto, de já haver circulado uma versão detalhada do feito lusitano, Antonio de Sousa de Macedo opta por construir no periódico um discurso que resume o sucesso militar, evitando arroubos de emoção ou posturas anedóticas, e o Mercurio assume a posição daquele que corrobora com a descrição anterior e a oficializa, com a vantagem, porém, de poder, pelo tempo passado, dimensionar melhor a importância e a notabilidade da vitória militar ali alcançada. É interessante notar inclusive, como Macedo comenta com propriedade as causas do caráter ainda parcial das informações trazidas pela relação, dando a entender tratar-se de texto, ainda que publicado anônimo, também de sua autoria. Com este discurso, o periódico passa a comentar o número de mortos de ambos os lados, trezentos portugueses contra quatro mil e quinhentos castelhanos, enumerar entre os prisioneiros figuras de relevo do exército e da nobreza castelhana, e referir os bens que foram tomados dos inimigos, desde a secretaria de D. Juan de Áustria, até a grande quantidade de cavalos, bois e mulas que levavam, passando por todas as suas peças de artilharia, angariados principalmente na perseguição às tropas que fugiam para Arronches, com o que “todos nossos soldados ficáraõ ricos, & muitos Officiaes com muitos mil cruzados em dinheiro, dos muitos 190 Como exemplo tenha-se as passagens: “Dióse pues principio al combate (después de jugar el artilleria con poco efecto) sacando el Conde de Villaflor de la línea de la vanguardia el tercio de Juan Furtado de Mendoza, y uno de Ingleses sustenidos por algunos esquadrones de caballería, y mandó ganar los puestos, conservando esta gente con la misma batalla, que marchaba. (...) Y viendo entonces que el enemigo intentava retirarse, resolvió el Conde que los Generales de la caballería Diniz de Melo de Castro, y Manuel Freire de Andrada invistiesen la retaguarda, y que las líneas del ejército diesen favor a la caballería según la ocasión (...). Comenzóse una furiosa pelea, recibiendose reciprocamente tan vivas, y porfiadas cargas, que parecía hundirse las esferas”: Relación de la famosa, y memorable vitória que el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de Villa-Flor, alcanço del exercito del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Áustria. Lisboa: En la Officina de Enrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fols. 4v-5r. 95 despojos, & saco que se deu”191. São destacados, portanto, elementos que anunciam a grandeza e os benefícios trazidos pela vitória dos portugueses na batalha do Ameixal: à vantagem inicial castelhana na cavalaria e no terreno, evidência da valentia e da qualidade do exército português, somam-se a disparidade absoluta nos números de mortos e a excelência do saque auferido com o desfecho do confronto. Ao narrar a efetiva retomada de Évora, feito não descrito na Relación, nem por isso o Mercurio abandona seu tom sintético, enfatizando apenas os dados mais sobrelevantes da ação militar portuguesa. Após comentar a incorporação ao exército das forças, anunciadas no mês anterior, que o marquês de Marialva conduzia desde Aldeia Galega, e destacar que o inimigo, durante a permanência na cidade, tratou de se dedicar a incrementar sua fortificação, assim Macedo chega à sua rendição: Com tudo, havendoa os Portugueses defendido sete dias, quando naõ tinha artilheria, nem fortificaçaõ algũa; os Castelhanos a naõ defenderaõ mais que quatro dias, estando a praça em taõ differente estado. Todavia nos custou a vida de mais de cẽ homens, & 500 ou 600 feridos; mas vẽdose em fim o inimigo apertado de tres ataques, que com extraordinario valor se chegàraõ em tão pouco tempo a tiro de pistola, & com duas brechas, se renderaõ dia de S. Joaõ, capitulando que sahiriaõ pella brecha, & os Officiaes iriaõ para Castella com duas peças de artilheria, ficando os mais prisioneiros de guerra atè o fim de Outubro.192 Enxugando de tal forma a sua narrativa, apenas demonstrando como as vantagens possuídas pelos castelhanos foram, em todos os momentos, superadas pela porfia do exército português, Macedo direciona o seu discurso para dissipar quaisquer apreensões que haviam se disseminado na opinião de seus leitores nos meses anteriores. Como não podia deixar de ser, este Mercurio relata também a chegada da notícia da vitória na batalha do Ameixal “à Corte de Lisboa, cuja alegria se deixa considerar, & a de todo o Reyno por onde logo voou”, e refere que houve procissão “de todos os Religiosos com o Senado da Camera, da Capella Real à Sé”, antecedida por um sermão na dita Capela, e acompanhada pelo rei e pelo infante. Nos dias seguintes, além de novas procissões organizadas separadamente pelas várias ordens religiosas, houve “tres noites luminarias, & salvas de artilheria na Cidade”193. Nitidamente, o secretário de Estado faz questão de demonstrar como, em contraponto com o tumulto que se abateu sobre Lisboa por ocasião da perda de Évora, desta vez difundira-se apenas alegria pelas ruas da cidade. Repare-se que, ainda neste caso, a abordagem do periódico manteve-se sintética, apenas enunciando as diferentes manifestações, calmas e religiosas, de regozijo pela vitória no Canal, organizadas pelas instituições religiosas e políticas sediadas na corte. 191 Mercurio Portuguez. Junho de 1663. fol. 5r. Ibid. fols. 6r-6v. 193 Ibid. fol. 5v. 192 96 Na mesma Relación comentada acima, também sua descrição da repercussão em Lisboa do triunfo das armas portuguesas havia sido mais retumbante, e detalhada. Tendo a notícia chegado à cidade durante a noite, o seu autor comenta que tais foram os festejos que “la noche se ha hecho día”. Ao contrário do que se encontraria semanas depois na edição do Mercurio daquele mês, a relação inclui a população lisboeta em sua narrativa, especialmente quando chega ao seguinte passo: Al Pueblo que corrió al Palacio con aclamaciones de vivas, echó de un balcón el Arzobispo Sebastián César de Meneses del Consejo de Estado de ElRey, nombrado Inquisidor General, dos mil ducados, diciendo: tomad allá lo que me habeis dejado; y lo decía porque el día del tumulto, que arriba dijimos, entró la plebe en su casa, y le llevó lo que tenía; y otros señores y cavalleros hicieron demonstraciones semejantes.194 Bem se percebe, com este exemplo, que as diferenças narrativas entre a Relación e o Mercurio Portuguez sobre os eventos de junho de 1663, textos talvez saídos da mesma pena, não se subscrevem apenas a uma questão de estilo. Se diante dos feitos de guerra já se destacou a postura mais oficial que o periódico assumiu, através de uma descrição concisa, e seca, dos confrontos, agora o contraste entre as duas narrativas dos festejos de Lisboa evidencia o diferente uso político que cada discurso encerra. No primeiro caso, o texto, impresso ainda antes da retomada de Évora, pretendia aproveitar o calor da notícia sobre o sucesso no Ameixal, e trazer a emoção do campo de batalha, nomear seus heróis; ao relatar a alegria que se espalhou em Lisboa com tal notícia, da mesma forma, a relação apostou em imagens catárticas, que acenassem para a resolução das pendências instauradas com os tumultos do mês anterior, como a do membro do governo atirando pela janela dinheiro ao mesmo povo que havia invadido sua casa. Já o Mercurio, por sua vez, em tom sóbrio e comedido, evita colocar em sua descrição o povo mais uma vez nas ruas, mesmo que eufórico, e nem comenta ou relembra tão diretamente a desordem que havia tomado a cidade e os bens de eminentes personagens do governo. Aqui o impacto visual que se busca é reduzido, no claro intuito de, passado algum tempo dos eventos narrados, remetê-los já a uma atmosfera mais serena, e isolá-los da tensão política que envolveu os primeiros meses da publicação do periódico. Era preciso afirmar que já se vivia novos tempos, na guerra e na política, na fronteira e na corte. Sobre o desenvolvimento da guerra, os números seguintes do ano de 1663 vão manter o tom de superação das forças militares portuguesas. Já na edição de julho, o principal sucesso 194 Relación de la famosa, y memorable vitória que el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de Villa-Flor, alcanço del exercito del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Áustria. Lisboa: En la Officina de Enrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fols. 8v-9r. 97 narrado é a defesa da praça de Almeida, atacada pelo duque de Osuna com, segundo o periódico, quase cinco mil infantes, e seiscentos cavalos, aproveitando a pouca guarnição, nem mil infantes e apenas cento e cinqüenta cavalos, que lá havia por ocasião do envio de reforços para o socorro a Évora. Não havendo saído qualquer relação sobre o feito da guarnição de Almeida, o Mercurio volta a dedicar sua pena a uma descrição mais impressionante dos movimentos de guerra. Quando as atalaias da região puderam avisar a praça da chegada dos inimigos, houve pouco tempo para que Diogo Gomes de Figueiredo, governador das armas da Beira durante jornada a Évora de Pedro Jacques de Magalhães, dispusesse a organização da sua defesa, mas os portugueses a cumpriram com grande valor: Antes de romper a Alva, avãçou [o inimigo] por sinco partes, duas em que só pretendeo fazer diversaõ, e tres com todo o vigor, arrimando muitas escadas, reforçandose mais pello chafariz, & baluarte de S. Frãcisco. Subirão muitos com grande resoluçaõ em quanto a sua mosquetaria atirava chuveiros de balas, & outros metiaõ bombas, & granadas na Praça. O escuro da noite accrescentava a confuzaõ, & o perigo animava mais aos defensores a desprezalo. Todavia os inimigos insistiaõ de modo, que nenhum baixou senaõ morto, ou muito ferido. No mesmo tempo arrimáraõ hum petardo à porta que chamão do Barro, onde estava prompta a cavallaria para entrar. Quiz Deos que o petardo arrebẽtou, & fazendo pouco effeito na porta, matou & ferio muitos dos seus; com tudo era tal a pertinacia dos que queriaõ entrar, que chegâraõ algũs a meterse por hum buraco que se abrio na porta, estãdo com meio corpo dentro eraõ mortos com facilidade, & de fóra desintupindo o buraco daquelle cadaver, pretendia entrar outro barbaramente por elle mesmo, atè que o matavaõ.195 A narrativa do periódico, aqui, põe em pauta o desprezo dos portugueses pelo perigo, e sua corajosa determinação pela defesa de Almeida. Do lado oposto, a pertinácia dos castelhanos é já o ingrediente motor das cenas de uma bárbara comédia, em que um após o outro vão sendo mortos os soldados que obstinadamente tentam entrar na praça por um estreito buraco em uma de suas portas. O cenário é repleto de fogo, e sangue, mas nele a coragem portuguesa sobressai, tornando possível a vitória de poucos defensores contra a fúria de uma bem maior força de ataque; a coragem desta, porém, o seu idêntico desprezo pelo perigo, é tido por inconseqüente, estúpido, objeto do sarcasmo do Mercurio Portuguez. Às oito da manhã, continua sua narrativa, quando Osuna tentava exortar seus soldados, que já fraquejavam, uma bala de artilharia acertou o seu cavalo. Desde as muralhas de Almeida, Osuna foi visto “hir rodando embrulhado em hum capote, & chegandose todos os seus a elle, o montárão em hum cavalo de hum soldado, em que logo sẽ mais tino voltou a correr, & todos assi os do seu batalhaõ com os que peleijavam o seguiraõ a quẽ mais corria, sẽ ordem algũa”196 deixando para trás escadas, armas e munições, não retirando sequer seus mortos do campo de batalha. Após indicar a morte de quatrocentos castelhanos na investida frustrada, 195 196 Mercurio Portuguez. Julho de 1663. fol. 2r. Ibid. fol. 2v. 98 contra a de apenas três portugueses, e tecer um elogio à ação de Diogo Gomes de Figueiredo, que teria suprido a falta de gente com sua disposição, e pelo modo como acudia a todas as partes durante a defesa da praça, o Mercurio ainda informa que o duque castelhano, chegando a Ciudad Rodrigo apenas à noite, lá foi “recebido com lagrimas, clamores, & maldiçoens”197. À descrição da inépcia militar das forças castelhanas, e da fuga de seu líder, a que se seguiu a fuga descoordenada de todos os soldados, Antonio de Sousa de Macedo acrescenta o impacto negativo do insucesso em Castela. Se se tratava de demonstrar que a guerra tomava outros rumos, importava da mesma forma apontar que era já do outro lado da fronteira que se ouviam clamores e maldições, que era em Castela que os efeitos políticos das derrotas nas batalhas agora se faziam sentir. Nos outros meses de 1663, a edição em que de forma mais veemente Macedo defenderia a superioridade do exército português seria a de outubro, ao referir-se sobre os feitos capitaneados pelos dois governadores das armas do Entre-Douro-e-Minho e de Trás-osMontes, conde de Prado e conde de São João. Já foi de se reparar, como, em notícias de menor vulto, o periódico costumou enfatizar o vigor e a eficácia das ações militares portuguesas na raia norte do reino, e pode-se agora acompanhar a narrativa em que esta imagem foi mobilizada com maior força, pela primeira vez, imprimindo marcas que seriam recorrentemente utilizadas pelo discurso do periódico sobre a guerra naquela região. No primeiro dia de outubro, de acordo com o número daquele mês, saía o conde de São João da praça de Chaves com cinco mil e quinhentos infantes, mil e trezentos cavalos e oito peças de artilharia de campanha, marchando ao Vale do Salas, depois ao distrito de Lobios, voltando pelo Vale do Limia, e ainda outros vales menores, e fertilíssimos, em torno da praça fortificada inimiga de Monte Rey, onde se juntaram as tropas inimigas imaginando que o ataque iria sobre ela. No total, São João invadiu e saqueou mais de cento e setenta vilas e lugares, sem encontrar qualquer resistência que não a da forte chuva que o acompanhou durante a expedição. Tudo isso, acrescenta Macedo, foi realizado, sem que se gastasse nada “da fazenda delRey nosso Senhor, mais que o paõ de munição, & no fim da jornada se fez para ella boa quantia de dinheiro nos mantimentos que se vendèraõ dos sobejos”, lucro que também se estendeu aos soldados, que voltaram a Portugal carregados de despojos, “em que entrou bom numero de dobroens, & patacas, & outras cousas preciosas”198. Porém, mesmo afirmando, como em outras ocasiões, os benefícios dos saques para os portugueses, a ação do exército de Trás-os-Montes não se restringiu a conquistar riquezas: 197 198 Ibid. fol. 3v. Mercurio Portuguez. Outubro de 1663. fol. 3r. 99 Foi o principal intento desta guerra de Trás os Mõtes intẽtar o fazer este forte para q o inimigo acodisse cõ o seu exercito que tinha em Galliza a impedillo, ficar cõ esta diversaõ a ribeira do Minho menos defẽdida, para o Cõde de Prado a poder passar, & fortificarse em Galliza, cousa de grãdes cõsequẽcias, assi para nossos designios sobre aquelle Reyno, como a respeito das praças que o inimigo tem desta parte, a q só podiamos impedir os socorros, estando nós da outra.199 Tratava-se, então, de uma ação conjunta, idealizada no mês anterior quando da presença do conde de São João na corte, decisiva para a conquista, em mais uma frente, de uma posição estratégia favorável na guerra, e levada a cabo com total eficiência. Bem como se pretendia, D. Balthazar Pantoja, governador das armas da Galícia, move grande parte de suas forças do Minho para se opor a São João – chegou tarde, porém, para tanto – e deixa aberto o caminho para que Prado atravessasse o rio com entre quatro e cinco mil infantes, em direção ao forte de Gaião. As tropas inimigas, sentindo a passagem, correram à margem do Minho sem demora com um terço de infantaria e duas tropas de cavalos, investindo contra os portugueses que iam desembarcando, “taõ furiosamente, que alguns cavallos ficáraõ atravessados nos piques do esquadraõ, que logo pondo o pè em terra se hia formando com destreza, promptidaõ, & disciplina militar admirável; no que bem se vio a bizarria, & sciencia dos nossos soldados”200, e com um choque de cavalaria e uma carga de mosquetaria pôs o inimigo em retirada, matando-lhe vários soldados, e tomando-lhe já aí alguns cavalos e prisioneiros. Conseguido com tal empenho e destreza o desembarque no lado castelhano do Minho, a tomada do forte de Gaião, que contava com uma torre com quatro baluartes, em que havia cinco peças de artilharia, foi ainda mais difícil: “soldados Portuguezes se arrojáraõ, & lançáraõ de mais de trinta palmos de alto dẽtra do fosso; & subindo por escadas, huns com lanças de fogo, outros com chuços, houve hũa horrível e porfiada peleja, principalmente em hum parapeito que o inimigo defendia com pao apique”201. Um a um, os portugueses foram conseguindo ultrapassar, às cutiladas, a muralha, não escapando nenhum dos defensores da morte, ou da prisão. Destacam-se a eficiência, destreza e bizarria na condução e na atuação dos soldados portugueses, tão importante quanto a inteligência superior observada na organização de uma ação militar envolvendo as tropas de duas províncias. Conquistado o forte de Gaião, o conde de Prado já inicia melhorias em sua fortificação, e distribui pelos lugares do entorno um papel garantindo aos moradores que poderiam continuar a assistir em suas casas e fazendas, se oferecessem obediência às armas de D. Afonso VI, estando então livres dos tributos cobrados 199 Ibid. loc. cit. Ibid. fol. 4r. 201 Ibid. fol. 4v. 200 100 pelo “terrivel e impio dominio de Castella”202, e logo muitos dos moradores que ficaram na região foram reconhecer como senhor ao rei português. Com esta ação, e com este discurso enunciado pelo Mercurio, Portugal, durante o ano de 1663, passa de território acuado a reino conquistador, lançando-se com seu poderio e inteligência militar sobre as terras da Galícia, e não só para a glória dos portugueses, como também para alívio dos galegos, que agora podiam ver-se livres da presença assoladora do exército castelhano, mote trabalhado pelo periódico, como já foi referido, desde os primeiros meses de sua publicação. 3.2.2 Da superação à superioridade: a defesa da guerra ofensiva e o discurso sobre o recuo castelhano de 1664 Tal discurso do Mercurio Portuguez, sobre a força e a maestria do exército português, se solidifica e ganha ainda novos caracteres ao longo das publicações do ano de 1664, período em que, efetivamente, a estratégia militar do reino adotou uma postura mais ofensiva em relação ao inimigo, estratégia que, como visto na introdução deste trabalho, o padre Antonio Vieira combatia desde o exílio, e alguma parcela dos próprios integrantes do exército lusitano não recomendaram. De acordo com o historiador Fernando Dores Costa, neste ano houve uma mobilização militar sem precedentes em Portugal, e o governo divulgava ter vinte e oito mil homens no exército do Alentejo. Segundo suas conclusões, um estilo mais ofensivo teria sido forçado pelo Estado, acima de tudo por motivações “meramente” políticas, pois o conde de Castelo Melhor precisava justificar tamanho recrutamento: Numa consulta de 26 de maio de 1664 afirmou que poucos dias antes fizera votar os conselheiros de Estado e Guerra sobre uma outra proposta vinda do Alentejo e pareceres dos cabos sobre se se devia sair ou não em campanha. Considerara-se então que seria conveniente sair por duas razões: por reputação e para lograr o fruto do trabalho que se tivera em juntar um tal exército, empregando-o em coisa que sem custar dispêndio satisfizesse a despesa do exército. Estando isto disposto, fizera o rei [ou seja quem em seu nome governava] mercê mandar que se votasse sobre a mesma matéria já resolvida, pelo que tem para si que esta resolução se não compreendera no Alentejo, ou seja, não fora obedecida pelos dirigentes do exército.203 A consulta referida por Dores Costa, até por coincidência, data do mesmo dia da carta de Vieira a Rodrigo de Meneses aprovando sua defesa de que o exército sequer deveria sair em campanha. Talvez tenha sido esta a outra proposta posta em votação dias antes, e recusada pelos conselheiros de Estado e da Guerra. Seja como for, é a este debate que o historiador se remete, deixando claro haver uma disputa pela melhor estratégia a ser efetivada. A decisão 202 203 Ibid. fol. 6r. COSTA, Fernando Dores. op. cit. p. 99. 101 que partira do governo foi a utilização do exército em alguma conquista, que ao menos servisse para a reputação das armas portuguesas, e que auferisse lucros que compensassem as despesas com o maior contingente reunido até então. Na seqüência de seu texto, porém, Dores Costa comenta apenas quais eram as preocupações que regularmente inibiam a iniciativa militar portuguesa no Alentejo, relacionadas principalmente ao receio dos efeitos do estio, que fazia do verão português uma estação de altas temperaturas, e de disseminação de doenças, e conclui assim seu capítulo sobre os anos decisivos da guerra da Restauração. Desta forma, faz crer ao leitor que, tal qual parece ser o objetivo de seu livro, busca nele uma primeira introdução às principais questões suscitadas pelo estudo daquele conflito bélico, que o ano de 1664 terminou sem que o exército do Alentejo tenha cumprido a decisão tomada nos conselhos de Lisboa. Mas não foi bem assim, como a leitura das edições do Mercurio Portuguez daquela campanha pode comprovar. Realmente, como não havia feito no ano anterior, na primavera de 1664 o secretário de Estado faz questão de anunciar a reunião de forças para o exército. Na edição de abril, noticia demonstrações e exercícios militares realizados no terreiro do Paço, às vistas do rei, do terço da Armada Real e do terço da guarnição de Lisboa, enfatizando o colorido das casacas dos soldados204: “bem se deixa cõsiderar quaõ alegre seria esta diversidade de cores em tãta gẽte, como tinhão estes terços”. Em seguida, é indicada a partida do terço de Lisboa para o exército do Alentejo, unido ainda a oitocentos praças recrutados em Aldeia Galega, “& notouse ao embarcar de ambos estes terços que hião os soldados tão contẽtes, & ligeiros, como se fossẽ para hũ bãquete muito festivo; pronostico da boa fortuna q os espera cõ o favor de Deos”205. Ao final daquele Mercurio, Antonio de Sousa de Macedo retorna ao tema militar, e inicia seu último parágrafo com a frase que terá provocado a ira de Antonio Vieira: “Na provincia de AlẽTejo temos hum bisarro exercito, q muito brevemente sairà em campanha”206. Sem qualquer tergiversação, portanto, o “nosso desgraçado” Mercurio dava como certo o que ainda seria por algum tempo pauta de debate nos conselhos do governo. 204 Antonio de Sousa de Macedo enfatizava as cores das casacas procurando reforçar e multiplicar o impacto que elas possivelmente provocaram à data dos exercícios no Paço, já que a primeira experiência de uniforme no exército português teriam sido as casacas azuis das tropas comandadas por Schomberg, prática em primeiro lugar repetida pelo terço da Armada Real e pelo da guarnição de Lisboa liderado por Roque da Costa Barreto. Provavelmente Macedo estava noticiando uma das primeiras aparições públicas dos uniformes destes terços. Sobre os uniformes, ver: RODRIGUES, Manuel Ribeiro. 300 anos de uniformes militares do exército de Portugal: 1660-1960. Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1998; e também NUNES, António Pires. op. cit. p. 59. 205 Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fol. 2v. 206 Ibid. fol. 4r. 102 A leitura do número seguinte, sobre o mês de maio, alguns dias após o envio da carta a D. Rodrigo, provavelmente atiçou ainda mais a indignação do jesuíta. Nele, após comentar a chegada de infantes ingleses e franceses para integrar as forças portuguesas, o Mercurio informa mais detidamente sobre o estado do exército alentejano: Hà muitos dias q temos em Alem Tejo dezesete mil infantes pagos, quasi todos soldados velhos, seis mil e quinhẽtos auxiliares igualmẽte exercitados, & 6 mil cavallos. Entrão neste numero quasi 4 mil infantes, & mil e duzẽtos cavallos Ingrezes, Francezes, & Alemaẽs. Destes temos hum Terço que o Castelhano cõduzio de Alemanha cõ grãde despeza, & a falta de pagas os fez passar para nòs. Todos os mais saõ Portugueses muito luzidos; parece q das pedras nos nascem soldados.207 Desta forma, através do Mercurio Portuguez o secretário de Estado divulga um número ainda maior do que o referido por Dores Costa208, chegando a 29.500 os soldados presentes na província. No periódico, este número serve ainda como fonte de comparação com a situação do exército inimigo, que, desde que foi arruinado pelo insucesso em Évora, possuiria apenas sete mil infantes, todos “estrangeiros mal seguros, e milicianos violentados”, pouca artilharia, e sete mil cavalos, o “nervo de seu poder”, mas dos quais três mil seriam de pouco serviço, pela idade avançada das bestas. D. Juan de Áustria “vendose com poder inferior, & com gente intimidada pella contraria fortuna que experimẽta, naõ se atreve a sair; o que os nossos atègora esperáraõ para terem parte certa em que o buscassem, com o que se poderia dar fim a esta guerra”; assim o Mercurio justifica a postura ofensiva de Portugal na fronteira do Alentejo, pois “vendose finalmente que naõ sae, determina o nosso exercito porse em campanha aos 4 de Junho”209. No discurso do periódico, portanto, não aparece uma associação natural entre a grande mobilização para o exército e uma estratégia militar mais agressiva. Ao contrário, de acordo com seus argumentos, esperar um ataque das parcas forças castelhanas seria a melhor maneira de vencer a guerra definitivamente, e apenas a prudência, temerosa, do exército inimigo teria determinado que se realizasse alguma facção, que se desse o primeiro passo da campanha daquele ano. Como se percebe, não tratava o Mercurio Portuguez simplesmente de demonstrar aos seus leitores que o vultoso recrutamento realizado pelo governo teria serventia, mas sim de responder àqueles que, como Rodrigo de Meneses e Antonio Vieira, 207 Mercurio Portuguez. Maio de 1664. fols. 3r-3v. Fernando Dores Costa apenas refere que o governo divulgava a presença de 28 mil soldados no exército, mas não diz exatamente aonde o fazia. Certamente não no Mercurio Portuguez, que somente nesta edição de maio trouxe os seus números. Mas a diferença entre a quantia encontrada pelo historiador e a divulgada pelo periódico revelam que certamente a fonte do primeiro era anterior ao dia de 9 maio, que é quando o Mercurio diz terem chegado da Inglaterra 330 infantes, a que se teriam somado dez dias depois 800 infantes e 350 soldados para a cavalaria, enviados pelos franceses. Portanto, as últimas levas estrangeiras perfaziam 1480 homens, justamente a diferença entre o que informa o periódico e a quantia encontrada por Dores Costa. 209 Ibid. fols. 3v-4r. 208 103 defendiam que aquele grande exército não deveria ser exposto aos riscos de uma campanha, se nem os castelhanos mostravam-se dispostos a expor o seu. A edição de junho de 1664, mas uma vez afortunada, anuncia já em sua capa a vitória consumada, a principal notícia do mês: “Sitio, e tomada da importante Praça de Valença Pello Exercito delRey N. S. D. Affonso VI, De que he Capitaõ General o Marquez de Marialva”210. De fato, Macedo confirma a previsão feita anteriormente, D. Juan de Áustria “prudentemente, attendendo mais à realidade q à opiniaõ, não sahio de suas praças fortificadas; pello que o nosso exercito se resolveo a sair”211. A narrativa do feito começa então com a saída do exército da cidade de Estremoz, e com a sua descrição detalhada, abrangendo desde seus números mais gerais – dezenove terços de infantaria com 12.524 portugueses, 3.300 infantes estrangeiros em cinco terços, 4.944 cavalos sendo 1.020 franceses e ingleses, além de 15 peças de artilharia e outros apetrechos – até sua formação, informando como os batalhões de infantes e cavalos estavam dispostos nas linhas de combate, da vanguarda à retaguarda, e seus respectivos cornos esquerdos e direitos. O discurso do periódico, nesse ínterim, volta-se com nitidez para transmitir a grandiosidade do exército português: Era necessaria hũa larga, & muito elegãte discripçaõ para reprèzẽtar em algũ modo a excellẽcia, & bizarria deste exercito; porq, alẽ de ser quasi todo de hũa mesma lingoa, & nação, taõ valerosa por natureza, & taõ victoriosa por costume, cõcorre serẽ todos soldados velhos, todos de idade juvenil, & cõpetẽte para as armas, sem entrarẽ em tam grande numero (salvo em algũs Cabos) homẽs de maior idade, nẽ mininos, & todos alegres, & cõ hũ ardẽte desejo de vir às maõs cõ os cõtrarios. Os cavallos de bõ corpo, na idade mais robusta, & muito bẽ pẽsados. Ajuntase o agradavel da vista, q as cartas q delle se escrevẽ, & as pessoas q o virão, cõparão á de hũ prado florido na Primavera, pella variedade de cores de q se veste.212 A partir deste ponto, o Mercurio comenta as diferentes cores das casacas dos vários terços e companhias que compunham tal exército, aproveitando para enumerar seus principais oficiais. Pode-se perceber, portanto, como Macedo realmente investe na exaltação do exército português de maneira que ainda não havia feito. Nesta narrativa, sua habilidade e eficiência são comprovadas de antemão pela experiência e pela potência dos soldados e cavalos, e sua força é demonstrada pelo impacto visual de sua disposição e número, refletidos na grande variedade de cores que se espalha sobre o campo que ampara sua marcha. Repare-se, inclusive, como um importante fator de valorização do exército português é ser constituído basicamente por soldados portugueses, de mesma língua e nação, por um lado fazendo 210 Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 1r. Ibid. fol. 2v. 212 Ibid. fols. 3r-3v. Não se estranhe, porém, a aparente contradição na passagem “todos soldados velhos, todos de idade juvenil”: soldado velho era aquele com relevante experiência militar, em combate, e não de idade avançada. O grande problema da pouca quantidade de soldados velhos, que afligia os portugueses nos primeiros anos da Restauração, vinte anos depois estava necessariamente resolvido. 211 104 referência à predominância, em vários outros momentos comentada e criticada, de mercenários nas tropas castelhanas, mas por outro sinalizando uma via de identificação do leitor com os homens que lutavam na fronteira. Tendo buscado, até aí, difundir tal confiança no valor da organização militar portuguesa, Macedo passa a demonstrar o raciocínio estratégico que a teria direcionado sobre Valença. Tentar retomar alguma localidade perdida durante a guerra, como Olivença, Arronches ou Juromenha, seria esforço vão, explica o periódico, pelos danos que o mau clima de suas regiões, naquele período de calmas, traria para o exército que lá tentasse se fixar; mau clima que, inclusive, vinha sendo a causa de grande mortandade dos castelhanos ali alojados. Não deixando, assim, de comentar como a posse de praças portuguesas vinha contribuindo para a ruína de Castela, o periódico traz ainda o último e mais forte argumento contra a recuperação de uma delas: “sobre tudo se considerou que para esta recuperação aviamos de alojar o exercito nas nossas terras fazendolhes guerra; & se tratassemos de conquistar a faríamos, & sustentariamos á custa do inimigo”213. A inteligência, mais uma vez, coordena a ação militar lusitana, que decide por tomar Valença, escolhida entre outras praças castelhanas por não possuir aquele mesmo inconveniente do clima que se observava em Badajoz, ou a falta de água que era preocupante em Albuquerque. Tratava-se, portanto, de declarar que aquele exército grandioso era capaz de feitos como a tomada de Badajoz ou a retomada de Olivença, e que apenas o não fazia por não parecer tão vantajoso a uma visão militar mais previdente e estratégica, e assim ressaltar a exatidão das resoluções portuguesas. Ao mesmo tempo Macedo procurava causar a impressão de que o Mercurio Portuguez noticiava não só o desenvolvimento das ações militares portuguesas, como divulgava a seus leitores detalhes do debate e das razões que concluíram pela escolha daquela ação. O que ele não dizia, porém, é que o principal ponto em discussão, o debate em que a oposição ao governo aparentemente concentrou suas forças, não teria sido em torno desta decisão, mas de se alguma ação deveria ou não ser levada a cabo. Porém, se o periódico do secretário de Estado não comentou diretamente os argumentos da oposição contra a assunção de uma postura militar ofensiva, não deixaria de responder aos críticos, em primeiro lugar através do modo de disposição de sua narrativa. Após aquela longa introdução ao principal feito bélico do mês, em que de forma tão minuciosa o Mercurio descreveu o tamanho, a disposição e as cores do exército do Alentejo, reproduziu o pensamento estratégico por detrás da escolha de Valença como seu alvo, e ainda 213 Ibid. fol. 4v. 105 acompanhou todos os passos de sua marcha até o front, ao abordar propriamente o cerco à praça sua narrativa é extremamente sintética, citando apenas os principais movimentos de cada dia da batalha, entre 15 e 18 daquele mês. Tenha-se como exemplo o parágrafo mais curto, sobre o penúltimo dia do cerco: Aos 17 se defendeo a Praça com mais calor que atè aly, metẽdo algũas ballas de artilheria nos nossos quarteis, ainda que com pouco effeito. A tarde tornou a cavallaria inimiga a fazer a mesma mostra, mas sempre de muito longe, & se tornou ao alojamento passado. Neste dia chegáraõ de Castello de Vide outros dous meos canhoẽs, & duas meas colũbrinas, com que a bateria se esforçou furiosamente, & ficamos a tiro de pistolla.214 Uma narrativa mais técnica, porém, mas que nem por isso deixa de ter um resultado impactante. A pena de Antonio de Sousa de Macedo conduz o leitor por uma descrição do evento que se exime de colocá-lo no cerne da luta, mas, por outro lado, o situa como que acima do ocorrido, dando ocasião a uma análise quase fria do confronto, que, por sua vez, faz crer o exército português como um verdadeiro impassível e imbatível gigante. Isso na medida em que se dá menos ênfase na narrativa ao sangue, ao esforço, e à dureza da guerra, e se sobressalta a perícia, a estratégia militar e o cálculo racional, de um exército cuja força havia sido descrita a partir da visualização de seu tamanho e disposição. Se se deduz da referida carta de Antonio Vieira que um dos argumentos de maior pregnância levantados, e possivelmente difundidos, pelos seus opositores era o de que uma postura defensiva manteria aquele grande exército “sem perder um homem nem um cavalo, nem derramar uma gota de sangue, que sempre na casa onde falta faz triste a vitória, por mui vantajosa que seja”215, deduz-se também a conveniência de um enfoque narrativo menos atento à violência vivida na tomada de Valença. Tal efeito de grandiosidade, alcançado por uma visão mais estrutural e menos sangüínea da ação militar portuguesa, se une à atenção que é dada, logo adiante, sobre as negociações para a entrega da cidade, em que se inclui até mesmo a suposta transcrição das Capitulações concedidas pelo marquês de Marialva, a partir deste ano o general do exército português, ao governador da praça conquistada. Verídico ou não, o documento serve ali para ressaltar a superioridade, mas também a civilidade e a generosidade dos portugueses. De acordo com a transcrição, concedeu-se o prazo de quatro dias para que D. Juan de Áustria viesse em seu socorro, e que se este então desbaratasse as forças portuguesas, o governador estaria livre da entrega de Valença; não chegando tal reforço, mesmo assim, Marialva garantia a saída pacífica das tropas castelhanas da praça, bem como a da fazenda dos soldados, dos 214 215 Ibid. fol. 6v. VIEIRA, António. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. v. 2, p. 57. 106 paisanos e dos religiosos que se decidissem por partir, e prometia inclusive fornecer os carros necessários para o transporte dos enfermos. O governador estaria obrigado apenas a “entregar todos os mantimentos, & muniçoẽs que ouver na praça pertencentes à guarnição, sem que nisso haja nenhum descaminho, ou divirtimento”216. Tamanha generosidade dos portugueses, seguindo o fio da narrativa tecida por Macedo, é então reconhecida pelos moradores dos lugares do entorno da praça de Valença, que prontamente apresentam seu autos de obediência ao rei D. Afonso VI, um deles, do lugar de San Vicente, também transcrito no periódico, bem como o salvo conduto passado aos seus moradores pelo marquês de Marialva, outra prova da benignidade do exército português: Por quanto os moradores do lugar de S. Vicẽte vieraõ dar obediencia a S. Magestade que Deos guarde, se lhes concede em nome do dito Senhor que possão lograr suas fazendas, & bens livremente, trazendo seus gados na campanha, sem que as partidas deste exercito lhes fação damno algum, para cujo effeito recorréraõ ao Governador da praça de Valença, que lhes dará salvos condutos para poderem pastar seus gados seguramente, advertindo que em tudo o que se lhes encomendar do serviço de S. Magestade se haverâm com grãde zello, não tomando armas contra nós, amparando todas as partidas que por aquelle lugar passarẽ, trazendo todos os mantimentos necessarios a vẽder a este exercito, & praça de Valença, com cominação de que procedendo pello contrario em algũa maneira se usarà com elles do ultimo rigor. Dada na Campanha sobre Valença a 24 de junho de 1664.217 Se em 1663 os problemas com que se iniciou a campanha militar influenciaram no Mercurio Portuguez a elaboração de um discurso de reviravolta, de superação, que opunha à superioridade numérica castelhana a bravura e a eficácia dos combatentes portugueses, na campanha de 1664, estimulado pela maior mobilização de homens para o confronto, e principalmente pela articulação da oposição ao governo em torno da defesa da manutenção de uma estratégia de estilo defensivo, Antonio de Sousa de Macedo tece uma narrativa da guerra já bem diferente, que enfatiza a grandiosidade do exército português através de uma visualização mais técnica de sua organização, e em que se dispensa uma descrição pormenorizada do feito militar. Na tomada de Valença, basta que se poste o exército português diante da praça, basta que execute movimentos simples, para que se imponha sobre o inimigo. No ano de 1664, portanto, no discurso do periódico, a posição de Portugal na raia do Alentejo é a de “senhor da campanha”, e nesta condição, Macedo enfatiza que os portugueses atuam de forma oposta a que faziam os castelhanos na campanha de 1663. Em primeiro lugar, porque escolhem com melhor tino a facção a ser empreendida, e assim o secretário de Estado promete aos leitores que estes não acompanharão a mesma comédia de erros encenada um ano antes pelos inimigos em Évora. E em segundo lugar porque a presença 216 217 Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 8v. Ibid. 9v-10r. 107 do exército lusitano em território inimigo faz-se sentir de outra forma, rigorosa mas benevolente, conquistando o apoio da população castelhana da fronteira, sempre tão maltratada por aqueles que a deviam defender. A notícia da tomada de Valença é significativa justamente porque ali Macedo constrói sua argumentação fazendo esta ligação profícua entre o caráter mais técnico de sua narrativa e a demonstração da benignidade das tropas portuguesas, e de seus líderes. Da superioridade bélica portuguesa, que o periódico anuncia ter sido conquistada naquele ano, conduz-se à sua superioridade moral, observada na justeza de seu comportamento diante do inimigo derrotado e, principalmente, dos moradores da região conquistada. Se a motivação inicial para a construção daquele discurso foi, mais do que mascarar a intenção “meramente” política que Dores Costa identificou na proposta do governo de uma estratégia militar mais ofensiva, mas principalmente responder às questões absoluta e incontornavelmente políticas que marcaram o debate em Lisboa e no Alentejo sobre a campanha militar daquele ano, o resultado mais significativo para o seu discurso sobre a guerra foi a utilização desta ofensiva como um ingrediente fundamental para a solidificação em tal discurso da idéia não mais da superação portuguesa, mas de sua superioridade, como já dito, militar e moral. Durante os meses seguintes de 1664, não há mais nenhuma referência à conquista de uma nova praça efetuada diretamente pelo exército português, mas nem por isso deixam de haver notícias muito úteis para a continuidade do discurso do Mercurio sobre a ascendência de Portugal na guerra da Restauração. Na edição sobre agosto, comenta-se rapidamente a tomada de dez ou doze cavalos junto a Arronches, que porém não foram socorridos pela cavalaria da praça, por estarem os seus cavalos muito fracos de fome. A esta notícia, Macedo acrescentou, oportunamente, a informação de que, desde a inaugurada a presença portuguesa em Valença, e pelo simultâneo acrescentamento da cavalaria de Monforte operado pelo marquês de Marialva, as forças portuguesas no Alentejo vinham impedindo a chegada de comboios a Arronches, já por conta disso reduzida “a hum miseravel estado, com que as faltas que padece, sobre o malissimo clima de seu sitio, a fazem morada só de desesperados”218. Para demonstrar a penúria que se passava na praça, o periódico cita ainda duas cartas encontradas, de seu governador para o francês conde de Marsin, que substituía D. Juan de Áustria no comando do exército estremenho, e para o mestre de campo general D. Diego Cavallero, em que informava a falta de mantimentos e a urgência do envio de algum comboio. Na seqüência, o Mercurio narra uma tomada de seis cavalos empreendida pela cavalaria de 218 Mercurio Portuguez. Agosto de 1664. fol. 5v. 108 Elvas, com que se soube também da fome que havia em Badajoz, e outra de vinte cavalos de Olivença, porém “taõ fracos de fome q mal puderaõ chegar às nossas Praças”219. A estratégia de Antonio de Sousa era bem clara, pois proclamava a falência das forças inimigas justamente naquelas praças sobre as quais em junho havia dito que não seriam bons alvos para o exército português se dedicar. Na edição seguinte, de setembro de 1664, o título do periódico trazia a boa nova, Mercurio Portuguez, com a recuperaçam da Praça de Arronches, e os mais sucessos deste Mez de septembro do anno de 1664, e seu primeiro parágrafo reafirmava a perspicácia da tomada de Valença: Bem quizeraõ os Castelhanos, nesta campanha passada, que o nosso exercito fosse sitiar a Praça de Arronches, para que sobre ela perecesse, naõ só por causa de sua fortificação, mas principalmente pellas doẽças de seu malissimo clima no veraõ; porèm Deos, que, por sua bondade, governa nossos conselhos, ordenou (como no mez de Junho referimos) que fossemos sobre Valença de Alcantara, com a consideraçaõ de que naquella só acçaõ empreendiamos dous effeitos, que eram ganhar taõ importante Praça, & de hũa parte com ella, de outra parte com algũas nossas pequenas, que fortificassemos, impedir os mantimentos á de Arronches, com que viesse a perderse por assedio.220 Como o leitor do presente trabalho pode lembrar, em junho o periódico não fizera qualquer referência a este último intuito compondo a decisão pela tomada de Valença, e é interessante notar como o seu discurso pretendia, três meses depois, difundir uma falsa memória sobre este elemento em seus leitores. Havendo então o marquês de Marialva fortificado algumas praças no circuito de Arronches, e repartido entre elas mil e quatrocentos cavalos, que fizeram o trabalho de interceptar e afugentar a chegada de mantimentos à praça, o Mercurio segue com a notícia da resolução, nos conselhos de Madrid, a favor do seu abandono e desmantelamento. Para tal, teve de sair de Badajoz o conde de Marsin com três mil cavalos e quatro mil infantes, fingindo que fariam alguma facção, para se meter em Arronches e de lá sair com toda a artilharia e munição que puderam, e então pôr fogo nas minas dispostas para a destruição da praça: Porẽ, como não anda venturoso em acertar, forão feitas na superficie da terra, pello q só fizeraõ effeito nos lugares por onde arrebentàraõ, deixãdo em pé a maior parte das casas da Villa, & a fortificação ẽ estado, q, quãdo a queiramos reparar, se fará cõ pouca despeza. Tornou a levar as escadas sẽ intẽtar obrar cõ ellas, por medo dos nossos o seguirem, & deu graças a Deos de se retirar ẽ paz, por quãto por ser a retirada breve, & ter seguros os passos; como dissemos, se lẽbrarão os nossos do proverbio: ao inimigo q foge, põte de prata.221 Com este final toque de humor, Macedo ressalta a paz com que Portugal enfim se livrou da incômoda presença castelhana em Arronches, demonstrando a inteligência da ação 219 Ibid. fol. 7r. Mercurio Portuguez. Setembro de 1664. fol. 1r. 221 Ibid. fol. 2r. 220 109 militar portuguesa na região, e apontando para as conseqüências de uma posição de superioridade na campanha, e da utilização desta superioridade na ação ofensiva de meses atrás. Agora já os castelhanos deixam, e ainda de modo atrapalhado, não conseguindo destruir a praça abandonada, as posições alcançadas dentro do território português na época em que estavam no ataque. Mais adiante, no mesmo periódico, quando noticiava os feitos militares de Pedro Jacques de Magalhães na Beira, que empreendia sua vingança dos pães cortados pelo duque de Osuna, Macedo comenta que os despojos de um saque na região, em que entravam cartas do secretário do conselho de Guerra castelhano, e entre elas uma enviada pelo governador do forte de Vale de la Mula, onde “consta a grande necessidade que nelle se padece, por as nossas partidas andarem continuadamẽte impedindolhe os comboys”222. Desta forma, o secretário de Estado português buscava suscitar a expectativa por um novo recuo dos inimigos, por um novo indício da falência do esforço de guerra castelhano. Na edição seguinte, o Mercurio introduz-se nas novas do mês de outubro relatando mais um abandono de posição pelos inimigos, não exatamente na Beira, mas na fronteira da Extremadura com a província do Alentejo. De acordo com seu redator, após haverem deixado Arronches, pela necessidade que ali passavam, minaram também, e explodiram a sua própria praça, com medo de que fosse tomada pelos portugueses, e que a partir dela levassem mais danos ao território e ao exército castelhano, como o fizeram a partir de Valença. Anuncia-se aí o temor do inimigo diante da ofensiva portuguesa, e Macedo não perde a oportunidade de tecer seu comentário sardônico. Não poderia, afinal, conquistar “um Reyno da Terra, quem confessa, que não pòde sustentar as suas praças. Parece que o Conde Marsin (para quem apellàrão de seus maos sucessos) determina conquistarlhes o Reyno do Ceo, para o que he o melhor meyo deixar o alheo, & o proprio”223. Além de haver abandonado uma praça conquistada anos antes, os castelhanos agora, e o Mercurio lhes ironiza a abnegação, largam também as próprias possessões, tamanha é a imponência do exército português no Alentejo. No mês de novembro, é anunciado o sucesso da mesma estratégia de obstrução da chegada de comboios ao forte de Vale de la Mula, comentada na edição sobre setembro. No último dia de outubro, chegou o inimigo com segredo ao dito forte, com grande infantaria e cavalaria, e tratou de minar, derrubar e queimar sua edificação. Na madrugada, carregou-se com o que pôde, e se pôs em retirada; mais uma vez, porém, o periódico denuncia a pressa com que o fizeram, e como as minas desta vez sequer explodiram, de modo que lá as tropas portuguesas quando chegaram encontraram armas, munições, farinha, muita ferragem 222 223 Ibid. fol. 4v. Mercurio Portuguez. Outubro de 1664. fol. 1v. 110 aproveitável para a artilharia, e até bacalhau, além da fortificação em estado pouco arruinado, “que se a quizermos deffender, se repararà com quinhentos cruzados, pouco mais, ou menos”224. No comentário final a mais este recuo do exército inimigo, Macedo deixa ver com precisão como pretendeu explorar o significado destes sucessivos eventos: Este era aquelle Forte, que os Castelhanos avaliavaõ por importantissimo para esta guerra, de cuja fabrica (sendo na sua propria terra) o Duque de Osuna se jactou tanto, & seu Rey em carta de vinte & quatro de Junho do anno presente com palavras de muita honra lhe agradeceo o danno que elle avisava, que de alli fazia a nossas terras. Assi vaõ largando, & derrubando o em que trabalharaõ tanto tempo: Lapidem, quem reprobaverunt aedificantes; ou então errâraõ, ou agora; o certo he, que então erráraõ, & agora erraõ, que assi succede a quem anda desgraciado.225 “A pedra que desprezaram os edificadores, esta foi posta por cabeça de ângulo”, diz a passagem do salmo bíblico citada pelo Mercurio226. Da mesma forma, cada praça deixada para trás pelo exército castelhano, própria ou alheia, servia como pedra angular do discurso sobre a guerra da Restauração desenvolvido por Antonio de Sousa de Macedo em seu periódico durante o ano de 1664. A cada praça perdida ao longo do ano, por ataque português ou por apressado abandono, seus comentários aludem a um outro tempo da guerra, ao tempo em que os castelhanos ganharam tais posições, e que em vão se gabavam de sua superioridade na zona de combate. Agora, e isto é o que principalmente defende o Mercurio Portuguez, já eram outros tempos, em que as atitudes aturdidas dos castelhanos demonstravam o fracasso de seu esforço de guerra, e em que a vitória, depois de longos anos de guerra, se mostrava mais próxima de Portugal. Ao relembrar aos leitores do tempo em que Castela se jactava de sua dominação, inclusive, Macedo opera também a valorização não só das vitórias alcançadas desde então pelas armas portuguesas, mas anuncia também a derrota dos papéis castelhanos, inimigos declarados do seu periódico desde os seus primeiros números. Desmentia-se nos campos de batalha a propalada superioridade do exército inimigo, e o Mercurio Portuguez assumia a tarefa de difundir a boa nova, ao mesmo tempo anunciando a sua vitória contra as patranhas castelhanas. 3.2.3 A última ameaça, e a detração sistemática do empenho inimigo Se o ano de 1664 havia sido de boas notícias para Portugal, havendo o Mercurio Portuguez aproveitado para demonstrar a retração da presença castelhana na fronteira com Portugal, e assim tecer ótimas expectativas quanto ao desfecho favorável do conflito, o ano 224 Mercurio Portuguez. Novembro de 1664. fol. 5r. Ibid. fols. 5r-5v. 226 Vulgata. Salmos, 117, 22. 225 111 seguinte representou certamente o retorno de alguma apreensão no reino, estimulada principalmente pela chegada em Lisboa de um impresso com o “Voto del Marquez de Carracena”, novo general do exército castelhano, que o periódico português faz questão de comentar, e inclusive transcrever, em sua edição de março de 1665. No suposto discurso do general inimigo, este reconhece o fracasso até então do esforço militar de Castela, e a má aplicação dos recursos financeiros em uma estratégia de tomada de praças, que teria servido apenas para manter viva a resistência portuguesa, e acena com sua solução para a vitória, que seria concentrar as forças castelhanas, cerca de trinta mil homens, para chegar a Lisboa; além disso, o tom do seu autor é bastante violento, e defende o extermínio da população portuguesa como único caminho para aplacar a rebeldia lusitana, e garantir a posse castelhana daquela província perdida: “No queden en pie sus Ciudades, purifique el fuego aquella feissima mancha de la ofendida Magestad, y en las ruínas abrazadas, les quede a los futuros horrendissimo padron”227. Não se pode deixar de notar que a própria transcrição, ou invenção, de um texto como este nas páginas do periódico impresso pelo secretário de Estado de D. Afonso VI, não poderia ter outro intuito que o de estimular nos leitores seus brios contra um discurso tão odiento. Porém, é incontornável concluir que, mais uma vez, Antonio de Sousa de Macedo se esforçava por dissipar algum temor quanto à ameaça representada pelo novo governador das armas castelhanas, tivesse ou não ela circulado em Portugal em tal papel, ou apenas entre as bocas e ouvidos da população. Nas primeiras linhas do voto transcrito, seu autor anuncia que usará da pluma para contar ao rei o que fará com a espada, mas que lhe era mais pesada a pluma do que a lança, e que havia nascido mais para ser escrito, do que para escrever. Baseado nisto, o comentário de Macedo, antecedendo a transcrição do texto, anuncia que “os successos hão de ser tão vãos, como he o voto” e ameaça o marquês de ser o próximo alvo de seu periódico: “o que receo he, que as plumas que agora despreza para a mão, estimarà despois para os pés, calçando a la mode; mas prometolhe que a de Mercurio escreverà delle, para que se verifique o que diz, nací, quiçâ, mâs a ser escrito, que a escrivir, &c.”228. Com efeito, assim como fez em relação a D. Juan de Áustria, ao conde de Marsin e ao duque de Osuna, durante os dois últimos anos de sua redação do Mercurio Macedo se empenhará com grande freqüência na detração da imagem do marquês de Caracena. Na edição de maio de 1665, comenta-se a chegada do general a Badajoz, e como seu primeiro movimento uma saída com a cavalaria a apenas poucos passos de sua muralha, de onde pôde 227 228 Mercurio Portuguez. Março de 1665. fol. 4r. Ibid. fol. 1v. 112 ver, mas nada fez contra, alguns cavalos portugueses tomarem uma sentinela, pelo que “não vieraõ com muito medo do tal General”. Continua ainda o periódico informando que, depois desta ação de Caracena, a segunda foi “mandar 25 cavallos á Raya de Portugal a espalhar papeis com castelhanadas. Sahírão algũs nossos de Campo Mayor, & tomáraõ treze, o que se diz que elle sentio muito”229. Desde seus primeiros passos na fronteira, portanto, a pena do Mercurio esforça-se por tratar com humor, e difundir descrédito sobre o personagem que, afinal, representava a mais nova ameaça à integridade do reino português e seu exército. Em outubro do mesmo ano, quatro meses após a derrota castelhana na decisiva batalha de Montes Claros – cuja narrativa no Mercurio será comentada adiante – o escárnio do discurso do periódico em relação a Caracena já está bem sólido, e é desenvolvido principalmente em torno do questionamento da sua coragem, tão alardeada no voto transcrito meses antes. Neste mês, Caracena teria juntado dois mil infantes e três mil cavalos, tudo o que conseguiu na Extremadura, e entrado em Portugal na companhia de D. Diego Cavallero, seu mestre de campo general, e do príncipe de Parma, general da cavalaria estrangeira: Este aparato de Generaes, ainda que não correspondia a taõ poucos soldados, prometia hũa grande empreza, suprindo sua authoridade, & valor o numero da gente. Mas o que fizeraõ foi queimar o que acháraõ nas herdades, & montes desertos; & encontrãdo rebanhos de ovelhas, as degolláraõ a todas estes Leoens de Espanha em boa guerra. Supponho que o Marquez de Caracena he hum General discreto, & galante, que lé os Poetas como Alexandre a Homero, e assi leria no insigne Camoens aquelle verso Que he fraqueza entre ovelhas ser leão.230 Esta degola de ovelhas capitaneada pelos principais nomes do exército castelhano àquela altura, dá bem a dimensão do tipo de cena em que, durante 1665 e 1666, o Mercurio Portuguez colocará o marquês de Caracena, além de trazer um exemplo bem significativo da abordagem sarcástica com que normalmente denunciava a covardia do inimigo. Nestes anos, ao referir-se ao general castelhano, Macedo sempre, de alguma forma, remete-se ao imaginário de fúria e crueldade que parece ter se disseminado a respeito de Caracena quando de sua assunção no comando militar de Castela, e o desmente através de imagens como esta, em que mostra que a blasonada ira do marquês apenas se revelava diante de inofensivas ovelhas. Neste caso, ainda aproveita para, de modo sutil, equivaler ao que representavam os versos de Homero, no tempo de Alexandre, a poesia de Camões no seu tempo, como se se tratasse de inevitável leitura para um general castelhano de então231. Bem a seu estilo, 229 Mercurio Portuguez. Maio de 1665. fol. 3r. Mercurio Portuguez. Outubro de 1665. fol. 3r. 231 A passagem citada pelo Mercurio está, como não podia deixar de ser, em Os Lusíadas, I, 68, e é até os dias atuais um de seus mais conhecidos versos, citado, assim como o fez Macedo, como um aforismo. 230 113 Antonio de Sousa de Macedo vale-se de uma notícia de guerra para também defender a superioridade das letras portuguesas dentro da península ibérica232. Como se já pôde talvez perceber, o trecho analisado acima apresenta também consonância com aquele discurso elaborado na mesma época sobre os pequenos feitos castelhanos, que se encaminhava para a desvalorização dos saques sem intenção de batalha. De fato, são da mesma época, outubro e novembro de 1665, outras duas novas de guerra já comentadas aqui, a da entrada de Caracena em Veirós e Fronteira que durou apenas o tempo em que não chegou o socorro português, e a que fez referência ao “novo estilo” de guerra dirigido pelo marquês de Caracena, que segundo o periódico tratava apenas de molestar com saques, e fugia constantemente de confrontos diretos com as forças militares portuguesas. As primeiras linhas da edição de dezembro do mesmo ano confirmam o seu insistente investimento neste discurso: Dissemos no mez passado que por avisos de Madrid sabiamos que o novo governo tinha determinado escusar a custosa experiencia das batalhas, & fazer hostilidades com entradas repentinas a roubar, & destruir as terras abertas da fronteira; & que com esta ordem fizera o Marquez de Caracena algũas, das quaes, quando o buscavaõ, se retirára, ou fugira. Dizem os que o conhecèrão fóra de Espanha, que este modo de guerra he muito conforme seu natural, mais inclinado a tretas, que a pelejar em descuberto (ainda que affecte publicar outra cousa) & assi se acomodou facilmente a usallo, levado tambem do interesse de canonizar em Madrid um subito assalto por hũa larga campanha, & hũa aldeia queimada sem defença por uma praça fortissima conquistada com muito sangue.233 Repare-se, desta forma, como neste período de consolidação do discurso contrário a estas simples “hostilidades” cometidas por Castela na zona de combate, tal recurso constituía a base da detração operada em relação ao marquês de Caracena, e sua postura na guerra, procurando por aí Macedo também denunciar como o general viria distorcendo seus feitos perante o governo e a população castelhana, fazendo-os parecer mais importantes do que de fato eram – assim como havia feito em relação ao duque de Osuna em 1664. No mesmo número do periódico, o parágrafo citado serve de introdução a outras notícias de entradas castelhanas pelo Alentejo, em que mais uma vez se destaca a sua indisposição para enfrentar batalhas de maior porte, como em um incêndio a uma aldeia cujos moradores já haviam sido retirados pelo exército português, sobre que o redator conclui: “se isto he ser pilhante, ou conquistador, julguem os peritos na Arte. Virtus aut dolus quis in hoste requirat, só se 232 Em sua obra Flores de España, Excelencias de Portugal, impressa ainda em 1631, uma das tônicas do discurso do jovem Antonio de Sousa de Macedo já era definir a valorização de vários aspectos da cultura e da sociedade portuguesa em detrimento de elementos castelhanos correspondentes. Cf. MACEDO, Antonio de Sousa de. Flores de España, Excelencias de Portugal. Lisboa: Alcala Editores, 2003. Ed. Fac-Sim. 233 Mercurio Portuguez. Dezembro de 1665. fol. 1r. 114 entende quando o estratagema he capaz de effeito grande”234. O preceito da arte militar, retirado do poema de Virgílio235, que recomenda não se pergunte se é astúcia ou coragem o motor da ação de um inimigo, Antonio de Sousa de Macedo argumenta não se aplicar a este inimigo, cujos feitos, de pequeno efeito, seriam suficientes para revelar sua covardia. O tom mais geral do discurso do Mercurio Portuguez sobre a guerra, ao longo de 1665, pelo que foi referido, dirigiu-se exatamente a mitigar o impacto da chegada de um novo general inimigo, que representava uma nova e decisiva investida contra Portugal, e demonstrar em variadas ocasiões a falsidade das suas ameaças. Neste ínterim, a estratégia do periódico se encaminhou cada vez mais à acusação de que suas entradas não se tratavam de nada além de vãs pilhagens. Desta forma, agora se pode interpretar em mais amplo âmbito, foi esta intenção primeira, de desacreditar o perigo que se aproximava do reino com as tropas lideradas pelo marquês de Caracena, que afinal deu origem àquele discurso detrativo da pilhagem, transformador, como foi considerado aqui, da abordagem do Mercurio sobre os pequenos feitos de guerra já a partir do final de 1665, e que se consolidou na narrativa das edições do periódico de 1666. Neste último ano de redação do periódico por Antonio de Sousa de Macedo, a tônica dominante em seu discurso sobre a guerra é aquela observada em relação aos feitos menores, já analisada a contento, portanto, em seção anterior deste capítulo. Ao longo do ano, narramse apenas pequenas entradas dirigidas pelos castelhanos, inclusive pelo marquês de Caracena, em que se repete a denúncia de sua constante esquiva de batalhas, mesmo que algumas acabem acontecendo, sempre por pressão e presteza dos portugueses. Pelo lado português, os feitos de maior vulto descritos são as entradas e tomadas de algumas praças pelo seu exército na região de fronteira com a Andaluzia, narradas principalmente nas suas edições de janeiro, fevereiro, maio e junho, e basta aqui confirmar que, mesmo tratando dos lucrativos saques auferidos pelos portugueses em uma região que até então não havia sido atingida por suas tropas, o Mercurio Portuguez empenha-se em justificar tais saques relatando a ausência de socorros enviados por Castela, o que tornava impossível, como nos vários relatos de pequenos feitos portugueses naquele ano, a realização de batalhas contra o exército inimigo, que sempre primeiramente se almejava. Definitiva, porém, como já foi dito, para que se pudesse estabelecer de modo tão veemente este discurso, teria sido uma significativa alteração nas posições ocupadas por Castela e Portugal naqueles últimos anos de guerra acompanhados e narrados pelo Mercurio 234 235 Ibid. fol. 2r. Virgílio. A Eneida, 2, 390. 115 Portuguez. Alteração esta pela qual se empenharam os soldados portugueses na guerra cotidiana e nas principais batalhas daquele período mais intenso da guerra da Restauração, e a qual Antonio de Sousa de Macedo empenhou-se também para provar diante de seus leitores, e opositores. Neste sentido, ainda mais definitiva fora a batalha de Montes Claros, travada em junho de 1665, inconteste o mais decisivo evento militar desta última fase do conflito lusocastelhano, e assim também o fora a edição e o discurso do Mercurio sobre os sucessos daquele mês. 3.3 AS NARRATIVAS DA BATALHA DE MONTES CLAROS, E A VALORIZAÇÃO DE UMA ÉPOCA O Mercurio Portuguez sobre maio de 1665, após comentar, do modo que aqui já ficou referido, os primeiros passos do marquês de Caracena, anunciou a sua saída da cidade de Badajoz, com suas tropas, que teriam se alojado entre Xevora e Botova, três léguas adiante, ainda em território castelhano, de frente para a região de Arronches. Não desprovido de alguma prudência, Antonio de Sousa de Macedo se exime de dimensionar o exército inimigo: Ali está parado até o dia em q se imprime esta relação, q he em 2 de Junho. Não se sabe, com a certeza cõ q Mercurio professa escrever, o numero que traz; no mez seguinte se dirá, & o do nosso exercito (q entẽdemos q cõ o favor de Deos ha de ser melhor). Não pudemos dar agora conta de ambos, como prometemos na relação de Abril, porq o inimigo se dilatou mais do q promettia; & o nosso teve, & tẽ razoẽs para esperar que o inimigo marche, antes de totalmente se pór em cãpanha, para o que está com toda a promptidão.236 Se durante as publicações de 1664 o discurso do periódico havia justificado ações militares portuguesas mais ofensivas na fronteira do Alentejo pela ausência de investidas castelhanas, o que se refletia na acusação do desmantelamento de suas forças, já agora, no início da campanha seguinte, o Mercurio, sem subterfúgios, volta a defender as razões de uma estratégia defensiva, explicando a espera da saída das tropas portuguesas pela demora em o fazer do inimigo. Defensiva também é a estratégia discursiva de Macedo, que prefere não prever de forma veemente a vitória próxima dos portugueses, e, diante da grande expectativa que certamente reinava na Corte, diz contar com o favor de Deus para que seja o exército português maior do que o castelhano. Tal estratégia foi bem sucedida, pois na edição sobre o mês de junho o periódico pôde trazer os números de que ficara devedor com a certeza da vitória alcançada, e já bem conhecida por seus leitores. O exército castelhano, segundo sua narrativa, saíra do entorno de 236 Mercurio Portuguez. Maio de 1665. fol. 3v. 116 Xevora e Botova com entre catorze e quinze mil infantes, mais de sete mil e seiscentos cavalos, e catorze peças de artilharia, quase todas de grande porte, e lançou-se sobre Vila Viçosa, cuja tomada deveria causar grande impacto, por ter sido assento dos duques de Bragança antes de se tornarem reis, mas também pela crença de “que seria facil de render, por não ter fortificação contra exercito, por quanto era cõdemnada por sitio”237. Porém, tal facilidade não se verificou, pois que os mil e trezentos homens governados por Cristóvão de Brito Pereira a protegeriam com grande valor. Sucederam-se vários bombardeios, baterias e assaltos furiosos dos inimigos por diversas partes da praça, morrendo sempre muitos dos seus soldados, que não deram descanso algum aos sitiados; mas estes, entretanto, se defenderam com igual obstinação, e constância, tendo sido muitos os feitos heróicos ali observados, que o periódico se dispensou de relatar: Basta dizer que a praça, que se imaginava subsistiria tres ou quatro dias, se defendeo nove; e quando foi socorrida, como logo veremos, estava para se defender outros dez, ou doze. O mais que o inimigo cõseguio depois de entrar o arrabalde, foi o cõtinuar insolẽcias, de que não se isentarão os Convẽtos, q barbaramẽte forão roubados, atè os das Religiosas, padecendo mais nisto o a Esperança em que se alojárão os soldados para de alli pelejarem. O que ganhou por força foi sò hum pouco da muralha velha da Villa junto ao poço. Morrérão dos seus mais de mil & quinhentos, & teve outros tantos feridos. Dos nossos ficáraõ mortos gloriosamente cento e doze, e houve feridos quatrocentos e trinta.238 A crer nos números informados pelo periódico, restavam apenas setecentos e cinqüenta soldados em combate pela guarnição de Vila Viçosa, que dificilmente se defenderiam por mais doze dias dos mais de vinte mil inimigos que ainda se postavam diante da cidade, mesmo que até ali com poucos avanços no cerco, mas agora a vitória assegurada permitia o recurso a especulações mais otimistas. De qualquer forma, surge neste momento em sua narrativa o socorro do capitão general português, o marquês de Marialva, com dezesseis mil infantes e quase seis mil cavalos, que saiu de Estremoz com grande alegria dos soldados: “todos assi no exercito como na Corte tinhão a victoria por infallivel, & avia já dias q se destinavaõ festas para a celebrar; no que se via que impulso superior lhes dava tanta certeza”239. A inferioridade numérica das tropas portuguesas, que anunciada na edição de maio causaria talvez alguma apreensão nos leitores do Mercurio, agora podia ser descrita como fator revelador da inabalável fé do reino no sucesso de suas armas, e Macedo, afirmando tamanha certeza, simultaneamente divulgava o favorecimento divino aos portugueses e censurava aqueles que, na ocasião, por alguma razão não demonstraram confiança na vitória lusitana. 237 Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fol. 1v. Ibid. fol. 2v. 239 Ibid. fol. 4r. 238 117 A esta altura o periódico já havia nomeado os cabos maiores do exército português, e parte então para narrar sua marcha até Montes Claros, lugar com um campo pouco espaçoso, “cercado de outeiros, asperezas & vinhas”, em que foi encontrado pelas tropas castelhanas, cuja diminuição pelas perdas no cerco a Vila Viçosa fora compensada pela chegada de reforços vindos de Badajoz. Aconselhado a não sair de Vila Viçosa, por ali possuir vantagem no terreno, o marquês de Caracena teria respondido que não havia saído para tomar a cidade, mas sim conquistar Portugal vencendo uma única e rápida batalha. Sua conhecida soberba vinha acrescida com a resolução para isto que lhe tinha sido enviada de Madrid, a que comenta o Mercurio: tanta he a cegueira daquelles Ministros, que se não desenganão cõ tantas experiẽcias das que perderaõ; & o que os seus antepassados, andando mais vẽturosos, naõ puderam acabar em quinhentos annos, que foi vencer hũa sò batalha das muitas que tivemos, querem elles fazer agora em q se vem taõ mal afortunados. Mais se enganavaõ em cuidar que, ainda que vencessem muitas, conquistariaõ o Reyno; bem se vè que naõ conhecem o que emprendem, nem com quem trataõ.240 À arrogância e presunção de Caracena, que seria muitas vezes objeto da acusação do discurso sobre a guerra do periódico durante suas futuras edições, aqui Antonio de Sousa de Macedo soma a mesma petulância e estupidez por parte do governo de Castela, que não reconhecia a histórica superioridade das armas lusitanas, e a emenda com o elogio à bravura contumaz do povo português241, que mais uma vez se faria verificar no campo de batalha de Montes Claros. Encontrados os dois exércitos, a luta começava às 10 da manhã do dia 17 de junho, e merecem aqui ser citados na íntegra, com extensão maior do que o habitual, os seus dois últimos parágrafos, que representam o clímax e a conclusão do confronto, para que se dimensione o primor alcançado neste número pela narrativa do Mercurio Portuguez: Resolveose o inimigo ao ultimo intẽto; & obstinadamẽte perseverou em hũa terribel investida, oferecendo cõ desesperaçaõ os peitos dos cavallos aos botes das picas dos nossos terços, que ajudavaõ a cavallaria, para rompellos; mas elles cõ o mayor valor, & admiravel cõstancia, estiveraõ firmes, & fizeraõ grande mortandade nos que investiaõ. Caracena, de hũ alto em que estava apartado, vendo esta firmeza se deu entaõ por perdido, e disse: a infanteria do inimigo firme; a nossa cavallaria se revolve, perdida he nossa armada, & o inimigo tem um grande dia; & conheceu o acerto com q os nossos entremeteraõ aquella infanteria com os esquadroens de cavallos, & quanto lhe valera ter elle feito o mesmo; porque a nossa cavallaria entretãto degolava, rompia, & desbaratava a sua, sem embargo de que esta pelejava tambem mui esforçadamente; mas tinhaõ os nossos a ventagẽ de que confundindose por vezes cõ a furia do conflito, nelle mesmo, sem cessar, se reformavaõ, & compunhaõ os soldados quasi sem diligencia de officiaes, cousa nunca ou raramente vista em outra naçaõ, & já succedida à nossa na famosa vitória do AmeixIal, no que 240 Ibid. fol. 4v. No tratado Flores de España, Excelencias de Portugal, já citado acima, Macedo, ao discorrer sobre as excelências da fortaleza lusitana, elaborou uma longa apresentação da constante vitória dos portugueses contra os castelhanos, em que baseia-se, mais de três décadas depois, para tecer este comentário no Mercurio Portuguez. Cf. MACEDO, Antonio de Sousa de. op. cit. fols. 153v-210v. 241 118 se vê sua singular destreza na milicia. Assi se foi adiantãdo a nossa cavallaria, & aquelles terços, & outros visinhos ganhãdo a terra que o inimigo hia perdendo. No mesmo tempo fervia o Marte no outro corno da infanteria. Pelejavase cõ a mayor porfia, & cõ a mayor braveza; vindo os terços às picas, & às espadas. A ira dos nossos, por multiplicar armas, feria os inimigos até cõ as pedras de paredes q alli havia caidas; eraõ muitas estas, valados, & embaraços de vinhas, mas o valor, & o desejo de avançar tudo facilitava. As tropas de cavallos, que assistiaõ naquella parte naõ estavaõ ociosas; fizeraõ seu dever muito galhardamente.242 Nesta abordagem sobre o principal confronto daquela última fase guerra da Restauração, Antonio de Sousa de Macedo conseguiu reunir com grande habilidade dois estilos que foram utilizados na montagem de sua narrativa de guerra ao longo de toda a publicação do Mercurio: uma descrição mais técnica, com tendência à síntese, e outra mais exaltada, de linguagem imponente, evocativa de imagens fortes, arrebatadoras. Desta forma, o discurso do periódico alcança sua máxima eficiência em apregoar, através da descrição do feito, a porfia e a força inerentes aos portugueses, e ao mesmo tempo sua destreza e perícia na arte militar. Alcançava-se um amálgama mais completo entre a pujança que pedia a representação de tão intensos fervores de Marte, e a objetividade que devia servir aos sempre propalados interesses informativos daquele Mercurio. Nas primeiras linhas desta edição, o Mercurio anunciou, assim como havia feito quando do relato da retomada de Évora, que em “relações particulares, por se dever especialidade a ações tão ilustres, se contaram já os sucessos principais deste mês de Junho”, mas que desta vez, “por naõ se faltar ao fio desta narraçaõ ordinaria, se repetirá o mesmo; porèm sò na substancia (que basta para conhecimento do sucedido)”243. Tais relações, que mais uma vez Macedo comenta com a propriedade de quem as havia escrito, foram um Mercurio Portuguez Extraordinario, de como fueron assoladas la Placa de Sarça, y la villa de Ferreira en Castilla, por las Armas Portuguesas, sobre tais entradas anunciadas no título, comentadas apenas rapidamente na parte final da edição do Mercurio de junho, e a Relación verdadera, y pontual, de la gloriosíssima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal. O fato de estes textos, em que se inclui uma publicação extraordinária do Mercurio, estarem escritos também em castelhano, de terem sido ambos impressos pelo impressor do rei, bem como a semelhança do título da relação com aquela sobre a retomada de Évora, confirmam a hipótese de que, tanto em 1663 quanto em 1665, o autor do periódico era também o das relações de guerra ali referidas. A narrativa da Relación verdadera é muito mais longa do que a da edição do Mercurio Portuguez que ora se analisa, percorrendo pormenores dos confrontos em Vila Viçosa e 242 243 Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fols. 5v-6v. Ibid. fol 1r. 119 Montes Claros, nomeando vários combatentes e apontando seus feitos heróicos, e chegando ao auge do rebuscamento da linguagem com que ali se descreve os movimentos dos combates. As semelhanças, porém, são agora muitos mais visíveis do que em 1663, e a comparação do trecho abaixo com o do periódico citado logo acima permite notar os diferentes intuitos que embasaram sua confecção: Hasta que el enemigo, juntando una gran multitud, determinó esforzarse más; y con obstinación perseveró en nuevo, & terrible combate, ofreciendo desesperadamente los pechos de los caballos al bote de las picas de nuestros tercios por romperlas. Habián advertido los Maesses de Campo a los soldados, que en su firmeza estava su salud, y aunque se viesen hacer pedazos, no se moviese el resto, si queria salvar la vida. Ni tronco al viento desatado, ni roca a la mar tempestuosa, mostró estabilidad mayor, y el enemigo qual Austro, que no puede derribar el monte opuesto, gira furioso sin effecto, y como las espumosas ondas conspiran multiplicadas contra la peña, en que se quiebran, así con porfiada ira buscaba la muerte en nuestras armas. Entonces dijo Caracena, que lo miraba de alto, sin bajar a remediallo: La infantería del enemigo firme, nuestra caballeria se revuelve, perdida es nuestra armada, y el enemigo tiene un gran dia.244 Comparados os trechos dos dois escritos, percebe-se nitidamente a operação de síntese efetuada por Macedo na composição daquele Mercurio, que se atém a uma descrição mais simples, e técnica, da batalha de Montes Claros, suprimindo esta linguagem mais elaborada – que chega, como em várias outras passagens, a emular os versos homéricos – porém mantendo imagens fortes em sua narrativa, como a do choque entre os cavalos do inimigo e as picas da infantaria portuguesa. Mantém ele também esta última cena, da fala do marquês de Caracena reconhecendo sua derrota, postado de um alto a observar a batalha, posição em que o periódico ainda lhe colocaria em outras ocasiões, denunciando sua covardia e desonradez. Se na Relación verdadera Macedo buscava recursos de escrita requintados, constituindo uma peça literária mais elevada, e tencionando por esta via glorificar, e alçar à fama o feito português, ou ao menos demonstrar sua proeminência, já o Mercurio Portuguez tratava-se de uma “narração ordinária”, em que mensalmente o secretário de Estado trazia, segundo seu discurso, a totalidade dos sucessos da guerra travada contra Castela, em suas diferentes fronteiras, construindo um panorama mais abrangente do estado do conflito, importando substancialmente através dele demonstrar a solidez do exército e da causa portuguesa. Neste sentido, o relevo dos eventos do mês de junho justifica a adoção de uma narrativa igualmente altiva, mas que porém não se desvia da proposta mais geral do periódico, e o efeito discursivo alcançado por tal narrativa consolida e lança novas bases para a afirmação da superioridade 244 Relación verdadera, y pontual, de la gloriosíssima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal. Lisboa: en la Officina de Henrique Valente de Olivera, Impressor delRey nuestro Señor, 1665. fols. 17r-17v. 120 das armas portuguesas defendida, com as nuances já detectadas, na grande maioria de suas publicações. Para Antonio de Sousa de Macedo, enquanto redator do Mercurio, mais do que a exaltação de feitos heróicos, mais do que o rebuscamento da linguagem na descrição das batalhas, importava, através de suas novas, edificar um discurso político sobre a guerra que se enfrentava, acima de tudo afirmando a grandiosidade daquele momento vivido por Portugal, daquela época retratada nas páginas do seu periódico. De mais valia, e mais decisivo para a confecção de seu discurso sobre a guerra, do que narrar em detalhes seus eventos, era comentá-los, tirar deles conclusões, em que mais diretamente Macedo defendia seus argumentos. Nesta mesma e crucial edição de junho de 1665, após narrar a fuga de Caracena e seu exército, após enumerar todo o despojo conquistado com a batalha de Montes Claros, entre armas, munições, secretarias e mantimentos, e após referir o número de mortos e feridos no confronto – do lado castelhano perdera-se 3500 cavalos, mais de 4000 infantes, e de número equivalente de feridos morrera praticamente a metade, enquanto foram 2000 os portugueses feridos e apenas 700 mortos – o Mercurio Portuguez conclui, com a imponência que a ocasião merecia: Esta foi a famosa victoria de Mõtes Claros, a vigessima prima, q em batalha cãpal (de mais de outros recontros particulares) houveraõ os Portugueses dos Castelhanos, não havendo este ganhado cõtra nós nẽ hũa, desde o princípio de Portugal; cousa bẽ notavel, & cõtudo se não desenganão. E foi a quinta q em tão poucos annos de Reinado ganhárão as armas de elRey N. S. D. Affonso VI, a quẽ, cõ o favor de Deos, se dá justamẽte o titulo de Victorioso. Nella vẽcerãos os Portugueses a todas as naçoẽs de Europa, (salva a hõra q nellas reconhecemos) porq de todas trouxe o Castelhano o mais escolhido de soldados velhos, & Cabos de opinião, cõ excessivas despezas, & grãdes diligẽcias, até fazer q o Emperador, para desocupallos, acordasse paz indigna cõ o Turco. Não vẽcemos por golpe repentino de fortuna, nẽ por occasião em q o esforço ou a arte não pudesse obrar; vẽcemos em claro dia, em cãpo aberto, tendo elles o sitio superior, q escolhérão, tẽdo maior poder (pois o seu excesso de cavallos era maior q o nosso de infantes) em cõbate de oito horas cõtinuas, em q palmo & palmo fomos ganhãdo a terra que perdiaõ, havẽdo quasi hũa legoa dõde começou a batalha aõde se acabou; no q tudo se exercitou quanto ensina a arte militar, & se apurou o valor.245 Pela análise de Fernando Dores Costa, nesta última fase da guerra da Restauração, foram decisivas para a vitória portuguesa duas derrotas, totalmente inesperadas, do exército castelhano, nas batalhas do Ameixal e de Montes Claros, esta última esgotando por completo a capacidade militar de Castela. No fim das contas, de acordo com o historiador, o desfecho do conflito teria se definido por estas meras contingências246. Antonio de Sousa de Macedo, por sua vez, parece reconhecer mesmo em seu tempo a existência deste tipo de apreciação do 245 246 Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fols. 8r-8v. Cf. COSTA, Fernando Dores. op. cit. pp. 96-115. 121 desenrolar da guerra, e de suas principais batalhas, e afia o seu discurso para a contestação de argumentos que reservassem ao sopro do acaso a explicação dos triunfos portugueses. Esforço e arte, resume o Mercurio, foram os elementos que garantiram o sucesso das armas portuguesas nos campos de Montes Claros, e assim o periódico defenderia constantemente em sua abordagem sobre a maior parte das novas de guerra ali divulgadas. Neste sentido, a batalha de Montes Claros é tão definitiva para o curso da guerra da Restauração quanto para a consolidação das estratégias discursivas trabalhadas pelo secretário de Estado em sua publicação mensal, descritas e analisadas até aqui. Tamanha é a importância do feito para o Mercurio Portuguez, que seu comentário dá azo a que ele seja incluído, retomando o raciocínio exposto algumas páginas antes, no inventário das maiores vitórias alcançadas contra os castelhanos, os inimigos de sempre, desde a constituição de Portugal. Macedo, mantendo uma importante marca de sua produção intelectual, faz mais uma vez das suas letras um terreno de defesa e promoção da tradição portuguesa, da guerreira neste caso. Mas vai além, ou aquém, e situa o sucesso alcançado em Montes Claros no rol daqueles que destinam, pela primeira vez em seu periódico, o epíteto de Vitorioso ao rei D. Afonso VI, pondo claramente sob sua égide a valorização das glórias daquele tempo, de que o Mercurio vinha sendo o mais regular e autorizado divulgador. Se foi perene a intenção de, como observado aqui nos diferentes aspectos do desenvolvimento do discurso do periódico, desde a constatação da infrutuosidade, ou até do risco político envolvido nas negociações de paz de 1663, proclamar a superioridade da força militar portuguesa, e de interferir na opinião circulante acerca dos rumos da guerra travada em suas fronteiras, combatendo-se aí muitas vezes a insegurança, o descrédito, e a oposição que se desenvolviam na Corte e em outras partes do reino, este último comentário consolida uma nova e transversal luz sobre o papel político desempenhado por sua impressão. Se até aqui se pode concluir que, como linha mestra da composição das novas de guerra do Mercurio Portuguez, atuou um empenho pela afirmação da magnitude do tempo que se vivia em Portugal, e que em vários momentos seu discurso se dirigia para combater ou dissimular as críticas avançadas no campo da oposição política ao governo por ele representado, torna-se ainda mais significativo que em um momento tão crucial daquela publicação seu redator tenha feito questão de associar a tal magnitude o reinado de D. Afonso, formulando talvez o epíteto que afinal a tradição reservou ao polêmico monarca. Em vista disso, torna-se agora necessário, para que se aproxime com mais acuidade da compreensão deste papel político, o exame do discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo no periódico, certamente de forma menos recorrente, mas talvez mais explícita, sobre este rei, e 122 mais propriamente sobre a ação de seu governo na direção do esforço de guerra português, qual será o objetivo das próximas linhas. 123 4 AS NOVAS DO DISCURSO POLÍTICO Depois de travado algum contato com a historiografia européia sobre a guerra na Era Moderna é que se tem a dimensão exata da importância seminal da aula inaugural proferida em Belfast pelo professor Michael Roberts, em 1955, e publicada no ano seguinte sob o título de The Military Revolution, 1560-1660247. Até então, os historiadores de temas militares não atribuíam qualquer relevo aos eventos bélicos do século XVI na constituição de suas interpretações acerca da história da guerra no Ocidente. Roberts, por sua vez, introduziu a interpretação de que a centúria entre 1560 e 1660 havia acompanhado uma revolução no modo de se fazer guerra na Europa ocidental, e de que esta podia ser observada em quatro áreas distintas. Em primeiro lugar, destacou as inovações táticas introduzidas por Maurício de Nassau, enquanto capitão-general do exército das Províncias Unidas em fins do século XVI, e incrementadas na geração seguinte por Gustavo Adolfo no exército da Suécia, em torno da substituição dos enormes esquadrões de piqueiros por formações lineares e menores na infantaria, bem como da introdução das armas de fogo na cavalaria, e do subseqüente aprimoramento das manobras militares para o seu melhor aproveitamento. Estas transformações táticas, segundo Roberts, teriam atuado como causa eficiente do processo mais abrangente daquela revolução militar, pois requereram maior treinamento e disciplina das tropas, o que por sua vez exigiu grandes investimentos dos respectivos governos, que passaram a ver com maus olhos a sua desmobilização ao final das campanhas, iniciando o processo que levaria inexoravelmente à formação futura de exércitos permanentes. Com soldados mais bem treinados, as lideranças militares, de que o primeiro grande exemplo seria Gustavo Adolfo, puderam desenvolver estratégias mais complexas e ambiciosas, que Roberts incluiria no segundo setor de sua revolução militar, e tais estratégias passaram a exigir um número cada vez maior de integrantes nas forças militares que se multiplicaram no intenso cenário bélico da Europa do século XVII, aspecto considerado o terceiro componente de sua teoria. Este prodigioso aumento nos efetivos militares levou à quarta e última dimensão deste processo revolucionário, pois acentuou dramaticamente o impacto das atividades bélicas em diversos setores da sociedade: a maior capacidade de destruição, os maiores custos 247 Sua mais recente reimpressão está no volume, já por si só um bom índice desta importância, organizado por ROGERS, Clifford J. The Military Revolution Debate: Readings on the Military Transfomation in Early Modern Europe. Boulder: Westview Press, 1995. pp. 13-35. 124 econômicos e o maior desafio administrativo dos exércitos ampliados fizeram das guerras um problema e um fardo para a população civil e seus governantes maior do que havia sido até então. Durante as primeiras décadas seguintes à publicação do texto de Michael Roberts, sua presença fez se sentir inconteste na grande maioria dos trabalhos que passavam minimamente perto dos eventos bélicos na Europa moderna, sendo sua teoria sempre referenciada, e confirmada. Foi, porém, com os estudos de Geoffrey Parker, que resultaram em um importante artigo em 1976248, e se consolidaram em seu livro The Military Revolution. Military innovation and the rise of the West, 1500-1800, que a teoria da revolução militar começou a ser depurada e reavaliada, principalmente em relação a seus marcos cronológicos e suas relações causais. Se, por um lado, Parker demonstrou a existência anterior, nomeadamente na Itália renascentista, de vários dos desenvolvimentos enunciados por Roberts, bem como a dívida das inovações táticas de Nassau para com a organização militar da Espanha da primeira metade do XVI, por outro, e mais significativamente, questionou incisivamente o papel ocupado por estas inovações enquanto causa impulsionadora de um processo histórico inexorável. Traçando um contexto mais amplo de mudanças táticas e estratégicas nas operações militares da época, Parker consente que estas certamente abriram caminho para o aumento dos efetivos militares que se desenvolveu posteriormente, mas passa afirmar não terem sido elas suficientes para desencadear sozinhas a revolução militar – ele mantém a definição de Roberts, reafirmando com ela o caráter central do estudo de tais transformações militares para a compreensão da história européia do período, e, finalmente, para a compreensão do avanço do poder militar europeu sobre o mundo na era moderna249. Geoffrey Parker, desta forma, aceita e confirma a asserção de Roberts sobre a importância do crescimento dos efetivos militares, considerando-o o aspecto mais visível e comprovativo da revolução militar, mas não aceita a priori sua explicação de que das inovações táticas e estratégicas de Maurício de Nassau e Gustavo Adolfo teria derivado tal crescimento. Primeiro, porque foram outras as mudanças táticas que, antes de Nassau e Gustavo Adolfo, superaram alguns obstáculos postos ao crescimento dos exércitos: com o triunfo dos piqueiros sobre as cavalarias, ainda no século XV, cresceu absoluta e relativamente a importância da infantaria nos exércitos, o que tornou ilimitado o número de 248 PARKER, Geoffrey. The "Military Revolution," 1560-1660 – a Myth? In: The Journal of Modern History. Chicago: The University of Chicago Press, v. 48, n. 2, pp. 195-214, jun. 1976. (Publicado também em ROGERS, C. J. op. cit. pp. 37-54) 249 Cf. Id. The Military Revolution. Military innovation and the rise of the West, 1500-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. 125 homens passível de ser recrutado. Mesmo assim, tal fato teria apenas aberto o caminho para o aumento militar irrestrito, não o garantindo nem o condicionando. O segundo aumento teria ocorrido somente meio século depois, pois se necessitava um vasto número de homens para penetrar no sistema defensivo de fortificações conhecidas como de trace italienne. Depois deste período, localizado em torno de 1530, houve mais quatro décadas de estagnação, pois nenhum governo possuía organização necessária para mobilizar, pagar e prover maiores concentrações de tropas. Precisaria haver importantes mudanças nos recursos financeiros e administrativos dos Estados europeus. Então, e este se torna o argumento forte de Parker, o crescimento dos efetivos militares dependeu não só de fatores internos, táticos e estratégicos, mas também de um número de fatores extrínsecos aos exclusivamente militares. Quatro fatores extrínsecos são então identificados como cruciais, segundo sua análise. Em primeiro lugar, os governos deveriam ser capazes de organizar e controlar grandes forças; não por acaso, as maiores ondas de reforma administrativa na Europa ocidental, nas décadas de 1530 e 1580, e no final do século XVII, coincidem com as principais etapas de crescimento do tamanho dos exércitos. Se a rápida expansão numérica do início do XVII forçou a alguma descentralização nestes procedimentos, por outro lado os governos procuraram sempre manter o controle sobre seus comandantes e exércitos. Sob um segundo enfoque, a expansão numérica dos exércitos era também dependente de certos desenvolvimentos tecnológicos elementares: capacidade de produção de víveres e meios de transporte equivalentes a um grande exército em campanha, assim como o desenvolvimento de estradas capazes de conduzir um grande exército e seu trem de provisão e artilharia. Para tudo isso era preciso dinheiro, necessidade de que derivam os outros dois condicionamentos extrínsecos impostos à revolução militar: precisaria haver um determinado nível de riqueza na sociedade para que um pesado e prolongado gasto militar fosse suportado, e deveria haver formas de mobilização desta riqueza. Segundo os estudos coligidos por Parker, entre 1450 e 1600 a população da Europa quase dobrou, sendo que a de algumas regiões mais do que dobrou, havendo no mesmo período um notável crescimento na riqueza total do continente. Além disso, depois de 1660 identifica-se uma nova leva de crescimento da população e da riqueza européias. Esta nova prosperidade teria sido drenada pela taxação, ou indiretamente através de impostos sobre o consumo, ou diretamente por uma variedade de taxas sobre a terra, o capital e a renda, e o fisco dos governos cresceu por toda parte a partir do século XVI. De qualquer forma, nenhum governo podia arcar com uma guerra prolongada sem taxação em curso: a renda suficiente para um período de paz não poderia prover igualmente os imprevisíveis, porém inevitáveis, custos de uma campanha de vulto. Os 126 Estados, portanto, tinham necessariamente que distribuir os custos de cada guerra em um número de anos de paz, ou poupando antecipadamente ou gastando adiantado a renda dos futuros anos, com a ajuda de empréstimos de banqueiros e mercadores. Todos estes desenvolvimentos, esta transformação de fatores extrínsecos que impediriam a chamada revolução militar, tornaram possível o aumento dos efetivos militares que demonstram os números trazidos por Parker para o início do século XVIII. Neste ponto, este crescimento estagnou mais uma vez sendo suas marcas somente ultrapassadas em 1790, quando novos avanços econômicos, políticos, tecnológicos e financeiros foram alcançados. Seja como for, a revolução nos efetivos militares foi extremamente importante, e teve todas as conseqüências apontadas por Roberts: intensificou a relação entre as atividades bélicas e outras áreas da vida social, aumentou a autoridade do Estado, acentuou a mobilidade social, e ainda retardou o desenvolvimento econômico dos países mais participantes. Além do mais, certamente ajudou a precipitar os confrontos entre governos que comumente são referidos como a crise geral do século XVII. Este crescimento prodigioso da escala das operações militares sozinho merece, segundo Parker, o título de revolução militar que Roberts outorgou na década de 50. Esta concordância conceitual em relação à idéia de revolução militar formulada por Michael Roberts, porém, não pode esconder a alteração estrutural que Geoffrey Parker operou em relação à sua teoria, principalmente através da interposição daqueles fatores extrínsecos aos estritamente militares no nexo causal que teria levado ao incremento do tamanho dos exércitos durante o período analisado. Com efeito, aquilo que na aula inaugural de 1955 aparecia como uma das conseqüências últimas da revolução militar, o fortalecimento dos Estados europeus e de sua capacidade de intervenção na sociedade, na obra de Parker é destacado como condição sine qua non do crescimento dos exércitos, pois só este fortalecimento possibilitaria a organização e controle de grandes forças militares, bem como a organização fiscal tremenda que viabilizasse a mobilização da riqueza produzida no tempo e sua utilização em investimentos bélicos, incluídas entre eles as inovações tecnológicas – capacidade de produção e transporte de víveres, desenvolvimento de estradas – que foram possíveis também apenas devido à ingerência dos Estados neste terreno. Da publicação do livro de Geoffrey Parker em diante, a continuidade do debate acerca das transformações da prática e da vivência das guerras na Europa moderna vem reforçando a importância do estudo sobre este desenvolvimento da capacidade de intervenção dos Estados europeus e seu papel no engendramento desta revolução militar, sobre esta rede de influências recíprocas entre guerra, Estado e tributação que constitui a primeira etapa da formação do 127 Estado moderno250. Um bom exemplo do prosseguimento deste debate, e desta abordagem, por ser aquele que mais interessa ao presente estudo, está no trabalho de Lorraine White. Recentemente, a historiadora demandou esforços na aplicação de diversos elementos das teorias da revolução militar em um estudo de caso sobre a guerra luso-castelhana de 16401668, “that forgotten conflict”251, nas palavras de Geoffrey Parker, de que ora também o presente trabalho se ocupa. Em artigo publicado em 2003, Lorraine White analisa, passo a passo, aspectos da guerra da Restauração relacionados à estratégia e à tática militar, e ao tamanho e composição dos exércitos, confrontando-os com a caracterização da revolução militar feita por Roberts, Parker, mas também incluindo em sua reflexão os mais atuais refinamentos sugeridos pelos trabalhos de John A. Lynn e David Parrot252. Partindo das condições geográficas, climáticas, financeiras e diplomáticas que se impunham aos contendores no período, White inicia suas considerações analisando a resposta dada a elas por castelhanos e portugueses na disposição de suas forças militares nas fronteiras, sua dispersão por diversos fortes e cidades, e na aplicação de estratégias de enfrentamento, tais como o emprego de ações militares simultâneas e coordenadas, inseridas na maior parte das vezes em uma estratégia dominante de guerra de posição, em que os cercos constituíam uma empresa freqüente, sendo a maioria de curta duração, já que ou a conquista da praça se fazia de modo rápido, ou as tropas sitiantes abandonavam o cerco, tanto por encontrarem dificuldades de abastecimento do exército em campanha como por evitarem o confronto direto com tropas inimigas de auxílio aos sitiados. Aquela dispersão dos exércitos em posições espalhadas nas várias regiões de fronteira, tanto do lado português quanto do castelhano, por sua vez, provocou a ausência de um centro de gravidade em ambos os territórios, impossibilitando o alcance de um controle territorial significativo por parte do inimigo, fazendo com que a fronteira permanecesse relativamente estática, mesmo quando do incremento das forças militares em disputa, verificado nos últimos anos da guerra. 250 Cf., como exemplos da variedade de abordagens desta problemática, além dos textos reunidos em ROGERS, C. J. op. cit., as obras: DOWNING, Brian M. The Military Revolution and Political Change. Origins of Democracy and Aristocracy in Early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press, 1992; LYNN, John A. (dir.). Feeding Mars. Logistics in Western Warfare from the Middle Ages to the Present. Boulder, 1993; Id. Giant of the Grand Siècle. The French Army, 1610-1715. Cambridge: Cambridge University Press, 1997; ELTIS, David. The Military Revolution in Early Modern England. London: Routledge & Kegan Paul, 1995; e PARROT, David. Richelieu’s Army. War, Government and Society in France, 1624-1642. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. Uma boa síntese dos temas históricos relacionados a este debate pode ser encontrada em CORVISIER, André. Guerra e Estado. In: ____. A Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1999. 251 PARKER, Geoffrey. The "Military Revolution," 1955-2005: From Belfast to Barcelona and the Hague. In: The Journal of Military History. New York: Society for Military History, v. 69, n. 1, pp. 205-209, jan. 2005. p. 207. Na passagem citada Parker vinha justamente comentando o trabalho de Lorraine White. 252 WHITE, Lorraine. Guerra y revolución militar en la Iberia del siglo XVII. In: Manuscrits. Revista d’história moderna. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, n. 21, pp. 63-93, 2003. 128 Em seguida, a análise comparativa das táticas militares da guerra ibérica em relação às consideradas típicas da revolução militar ocidental inicia-se justamente pela constatação da utilização das técnicas e instrumentos modernos de cerco: sua divisão em três etapas (o sítio, o assédio e o assalto), a presença e o modo de emprego de armas de fogo e explosivos. Da mesma forma, White identifica a presença de fortificações modernas e táticas empregadas em sua defesa diante de um cerco, em tudo similares às desenvolvidas nas regiões européias mais comumente associadas ao foco das teorias da revolução militar: introdução prévia de tropas de reforço e retirada de cavalos, rechaço do sitiante com artilharia e saídas de cavalaria, e posicionamento de defesa de mosqueteiros e piqueiros nas obras exteriores das fortificações. Outro aspecto tático importante comentado pela autora refere-se à presença e densidade das operações de cavalaria na guerra da Restauração. O terreno relativamente aberto e a baixa densidade da população nas fronteiras favoreciam a prática de correrias, estas razias e saques tantas vezes narrados no Mercurio Portuguez, em que se destacava a ação da cavalaria por sua mobilidade. Além disso, a cavalaria era também bastante utilizada para a organização eficiente de uma incursão a assentamentos, e mesmo desempenhava um papel crucial nos assédios às fortificações, atuando nos dois casos em conjunto com a infantaria. White repara nesta utilização, já que a teoria clássica da revolução militar considerava que as fortalezas modernas (defendidas com baluartes) diminuíram a proeminência da cavalaria, mas os mais recentes estudos sobre o exército francês e a guerra dos Trinta Anos destacam uma mudança estrutural neste aspecto, considerando o aumento da proporção da cavalaria nos exércitos a partir da década de 1630, e o papel primordial desempenhado por ela em diversas ações militares, incluindo a defesa e o ataque às fortalezas. Neste sentido, ela pode concluir, era la caballería – no la infantería – quien jugaba un papel decisivo en los principales frentes de la guerra Luso-castellana, al igual que ocurría en otros puntos de la Europa de esa época. La caballería suponía, de hecho, El brazo derecho de la batalla, como probaron los portugueses en 1663 en Ameixial y en 1665 en Montes Claros253 Em relação ao tamanho e à permanência dos exércitos em confronto nesta guerra, elementos bastante frisados pelas teorias da revolução militar, Lorraine White traz dados que mais uma vez confirmam a proximidade dos números encontrados na península ibérica em relação aos de outras regiões da Europa ocidental da época – principalmente nos anos em que a guerra passou à sua fase mais intensa, na década de 1660 – e demonstra também a coincidência do esforço de constituição de um exército permanente, já que os mesmos estudos mais recentes apontam que os problemas de flutuação do tamanho dos exércitos, oriundos de fugas, deserções e da tendência à desmobilização das tropas no fim de campanha, não seriam 253 WHITE, L. op. cit. p. 76. 129 uma peculiaridade da guerra da Restauração, podendo ser verificados em praticamente todas as regiões de conflito da Europa do período. É na referência ao tamanho das unidades que compunham os exércitos, porém, que a guerra ibérica mostra-se mais distante do modelo da revolução militar: se nele uma companhia de infantaria não excedia 100 homens, o padrão de divisão dos terços ibéricos era de 1000 homens em cada. Quando entravam em ação, porém, estes terços eram normalmente divididos em esquadrões ou batalhões, que variavam entre 300 e 700 homens cada. Com bastante acuidade, e mais uma vez aproximando-se dos refinamentos dos recentes estudos da revolução militar, na medida em que enfatiza os elementos conjunturais que determinaram o ritmo e a dimensão das transformações nas práticas militares da época, Lorraine White evidencia como o tamanho destas unidades era flexível, e, afinal, condicionado por uma série de fatores: de um lado, problemas de saúde, deserção, e dificuldades de recrutamento criavam obstáculos para a manutenção de unidades de grande porte; do lado oposto, deveu-se em boa parte à resistência dos governos a sobrevivência da resolução da formação dos terços com uma força nominal de 1000 soldados, em parte pela consciência das queixas à proliferação de oficiais na fronteira, realizadas pelo braço popular em ambas as Cortes, e em parte pelo aumento dos gastos com salários que advinha exatamente deste crescimento da primeira plana do exército. Apesar de não ser este propriamente o enfoque dado por White neste artigo, sua caracterização das táticas, estratégias, organização e tamanho dos exércitos em embate na guerra da Restauração, como se percebe, é constantemente permeada por considerações acerca da atuação dos governos castelhano e português, responsável em boa parte pela conformação destes mesmos aspectos254. Suas conclusões o demonstram suficientemente, já que, se sua principal intenção é demonstrar que as transformações militares verificadas na guerra da Restauração, mais do que provas da expansão das reformas inovadoras associadas à revolução militar, podem ser interpretadas como “una adaptación pragmática a niveles locales e centrales de problemas surgidos y de una terrible escasez – principalmente de recursos humanos y financieros”255, é particularmente a ação dos Estados, com vistas a contornar ou solucionar os problemas encontrados, que se percebe determinando o tipo e o tamanho das tropas em campanha, assim como as definições mais gerais das estratégias de confronto, elementos que, por fim, condicionam diretamente a predominância de tais ou quais táticas militares empreendidas nos combates propriamente ditos. 254 Em sua tese de doutoramento, de 1985, intitulada War and government in a Castilian province: Extremadura 1640-1668, à qual infelizmente não tivemos acesso, por sua vez, Lorraine White parece ter se dedicado mais detidamente ao tema. 255 WHITE, L. op. cit. p. 89. 130 Mantendo estreito diálogo com esta historiografia da guerra européia, o historiador Rui Bebiano, em seu estudo voltado para a análise da escrita sobre a guerra em Portugal entre os séculos XVI e XVIII, buscou como ponto de partida justamente considerar a forma como a prática e a vivência da guerra na Europa moderna desenvolveu-se no período analisado, sempre em forte vínculo com as questões da centralização política e do exercício do poder, constituindo-se a prática da guerra como justificação última do incremento do poder dos Estados europeus de então256. No século XVII, Bebiano afirma ainda em consonância com as observações de Michael Roberts e Geoffrey Parker, a presença da guerra faz-se mais constante, como resultado de querelas cada vez mais alargadas envolvendo os Estados em seu movimento de expansão. Alargam-se as reivindicações e as necessidades dos Estados, dotados agora de uma ambição e capacidade políticas e de um volume de meios mais alargados do que nunca, disseminando cada vez mais a presença social das armas, envolvendo e mobilizando cada vez maiores parcelas das populações européias, nos mais diversos grupos sociais. Simultaneamente, há uma alteração efetiva das capacidades orgânicas e operativas das forças armadas justo quando o centro do poder político passa a dispor de capacidade para o poder aplicar. O impacto desta dupla transformação no espaço europeu é brutal, e não seria diferente dentro de Portugal. Presença quase constante em toda a história da formação de Portugal, a experiência da toma proporções também lá ainda maiores no século XVII, mas principalmente com a guerra da Restauração, que forçou uma integração quase completa no esforço militar de grande parte dos recursos materiais e humanos de que o reino dispunha. Não por acaso, as exigências da guerra ocupam o centro das atenções do governo do Portugal restaurado desde seu princípio, assim como o das atividades diplomáticas. Neste sentido, Bebiano destaca durante a Restauração a detecção de um conjunto de iniciativas voltadas para a centralização política, para alargar a área de ação do poder monárquico, havendo as necessidades militares atuados como um eficiente leitmotiv. É de forma inerente a tal processo que o historiador situa a gradual definição de um conjunto de discursos justificadores do ato guerreiro em Portugal, que se uniu a um conjunto de atitudes no domínio da escrita, e essencialmente repercutiu os propósitos tomados pelo poder régio para atribuir um sentido e criar as condições para a imposição de sua política. Tal expressão pública da imagem da guerra passava não só por obras vultosas de justificação política e militar, mas principalmente por um outro tipo de 256 BEBIANO, Rui. A Pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra: Edições Minerva, 2000. 131 produção literária, de teor menos especulativo e conteúdo menos técnico, e dirigida a um público mais vasto. Neste âmbito Bebiano situa as relações e panfletos impressos durante a Restauração, inclusive os dois primeiros periódicos portugueses, a Gazeta e o Mercurio Portuguez, em que identifica uma vontade explícita de suscitar o respeito, a unanimidade e o empenho de que a autoridade monárquica carecia, através da divulgação de idéias e princípios; a fixação, seguindo a expressão da historiadora Michèle Fogel257, de um discurso monárquico acerca da guerra: a construção de um sistema de comunicação organizado e ritualizado capaz de funcionar como instrumento da vontade régia a propósito das coisas de guerra e de instituir um tipo de percepção e interpretação de suas realidades. Para Bebiano, em Portugal tal sistema devia boa parte de sua eficácia pela subordinação das oficinas tipográficas ao poder régio, alcançada por sua concentração geográfica em Lisboa, pela ação da censura, e de forma ainda mais diretiva pela concessão de privilégios de impressão. De acordo com sua tese, a publicação deste tipo de literatura se orientava para alguns objetivos essenciais: tranqüilização dos espíritos, buscando comprovar um completo domínio da situação e também a plena aceitação da legitimidade do gesto insurrecional; reforço dos mecanismos de submissão dos eventuais descontentes, que se manifestavam dentro e fora do reino contra as novas formas de institucionalização política, através da simulação de capacidade de mando e imposição da autoridade superior a que de fato era possível colocar no terreno; mobilização plena dos entusiasmos e das vontades, com vistas ao lançamento de formas eficazes de empenhamento coletivo; além do consciente esforço de contra-informação, diante da constante ação do boato e da iniciativa propagandística lançada pelo inimigo. No centro destas estratégias isolava-se cuidadosamente a figura do monarca, sobre a qual repousava por inteiro a justificação última da luta pela autonomia política, e ao mesmo tempo celebrava-se a guerra como manifestação dinâmica, cujo lançamento e direção se pretendia mostrar inerente à função monárquica. Neste sentido, Rui Bebiano traça sua caracterização do Mercurio Portuguez destacando uma qualidade literária um pouco superior a de outros escritos do gênero, mas principalmente a sua “intenção política muito explícita (...) proposta no eloqüente parágrafo que abre o primeiro número, o qual, pelo conteúdo indicativo, quase programático”258 o autor 257 FOGEL, Michèle. 1620-1660, Constitution et fonctionement d’un discours monarchique sur la guerre. L’information comme cérémonie. In: MÉCHOULAN, Henry (dir.). L'Etat baroque: regards sur la pensée politique de la France du premier XVIIe siècle. Paris: J. Vrin, pp. 335-352, 1985. 258 BEBIANO, R. op. cit. p. 227. – Para suas teses centrais a respeito das características do discurso monárquico acerca da guerra em Portugal no século XVII, cf. principalmente as pp. 209-301, mas também os seus artigos: 132 transcreve quase integralmente, como também se fez no primeiro capítulo do presente trabalho. Considerando assim programático o discurso inaugural do periódico de Antonio de Sousa de Macedo, Bebiano identifica na publicação o desenvolvimento de uma estratégia informativa que teve como objetivo declarado combater outras informações, ou seja, produzir opinião, fazendo-o como resposta ao aparecimento de outros impressos, notadamente em terras estrangeiras, e declarando imparcialidade, eficácia e celeridade no cumprimento de sua missão. Chama atenção, também, para o fato de que o Mercurio ocupava-se de noticiar os eventos de guerra com cuidado formal e evidente preocupação pedagógica, exagerando sempre o número de inimigos mortos e minimizando o dos portugueses, corrigindo ou alterando boatos que circulavam sobre o volume dos ajuntamentos de tropas espanholas, e procurando transmitir ânimo a quem duvidasse e orgulho pelos feitos obtidos, além de utilizar, para efeitos de contra-propaganda, estratégias psicológicas pouco comuns na época, como no caso já comentado da publicação do Voto do marquês de Caracena. Ora, pelo que já se viu até aqui, é bastante precipitado definir os propósitos da publicação do periódico simplesmente a partir da proposta declarada naquela sua primeira edição, e o exame mais detido da construção do seu discurso em relação aos problemas enfrentados pelo governo português nos primeiros meses de 1663, bem como sobre o desenrolar da guerra contra Castela, demonstrou que a produção de opinião objetivada pelo secretário de Estado respondia a questões bem mais difíceis e delicadas do que o combate aos impressos publicados pelos castelhanos, assim como a tarefas bem mais específicas do que a tranqüilização dos espíritos e a mobilização plena das vontades. Por outro lado, as últimas conclusões acerca das notícias do Mercurio sobre a guerra da Restauração evidenciaram que tratou o seu redator de tecer uma estreita ligação entre as vitórias acompanhadas por seus números mensais e a figura do monarca que governava Portugal nos últimos anos. Cabe agora, portanto, debater em que sentido se pode interpretar o discurso do Mercurio Portuguez enquanto afirmativo desta relação entre a centralização política e o exercício da guerra, redimensionada nas últimas décadas pelas teorias da revolução militar da Europa moderna, e que pela avaliação de Rui Bebiano o caracteriza como um discurso monárquico acerca da guerra, ou seja, um instrumento do poder régio, voltado para a defesa de sua função enquanto promotor e dirigente da guerra. Para tal, não pode haver melhor caminho do que analisar as Id. Elementos de um barroco militar. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, v. 11, pp. 113-127, 1989; Id. Literatura Militar da Restauração. In: Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa: Edições Cosmos, n. 9/10, pp. 83-98, 1993; e Id. O Espelho de Marte, ou a guerra como imagem. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, v. 15, pp. 75-116, 1993. 133 notícias publicadas no periódico a respeito da ação do Estado na direção do esforço de guerra português. 4.1 O GOVERNO DA GUERRA Se, no auge de seu comentário à vitória portuguesa na batalha de Montes Claros, Antonio de Sousa de Macedo consolidou no discurso veiculado pelo Mercurio Portuguez o enaltecimento de uma época, não por acaso a época de sua publicação, e a associou à figura do rei D. Afonso VI, naquele momento recebendo seu epíteto de Vitorioso, não foi aquela a primeira vez em que o Mercurio operou esta ligação entre os feitos militares portugueses e a ação governativa do monarca. Já na edição sobre abril de 1663, às vésperas portanto das notícias desastrosas que se publicariam em maio, seu texto se concluía com a reprodução, pela primeira vez no periódico, de uma fala de Afonso VI diante dos membros do Conselho de Estado e do Conselho de Guerra, convocados para ouvir aquela sua proposição no dia 17 de abril. O rei, em tal ocasião, avaliando o empenho com que se preparavam os inimigos para a campanha que se aproximava, fundamentalmente em direção à fronteira do Alentejo, mostrava-se persuadido “a passar em pessoa à aquella Provincia com o Infante meu irmaõ, que para isto se me tem offerecido”259; apesar de compreender o valor e as qualidades dos militares que a governavam, ele pondera, “nesta determinação considero consequencias de grande importancia; por quanto, posto que o meu exercito cõste do poder que sabeis, o acrescentará muito a nobreza do Reyno, que me ha de acompanhar com o amor q sempre teve a seus Reys”260. Publicando esta proposta proferida à alta cúpula do governo, Macedo procurava demonstrar, às vésperas de uma campanha militar que se sabia decisiva para o desenvolvimento da guerra contra Castela, o empenho pessoal do monarca, e de seu irmão D. Pedro, incluindo aí uma convocação da nobreza portuguesa a participar do mesmo empenho. Se o front da Restauração, por um lado, havia sido nos últimos vinte e dois anos um terreno propício à conquista de mercês e titulações, por outro lado era conhecida a ausência de grande quantidade de titulares nas atividades militares durante todo aquele período, para quem a naturalidade com que D. Afonso considerava que seria seguido por toda a nobreza poderia soar inclusive como provocação. Sabendo disso, e da oposição que estava formada ao novo governo desde o golpe de meados de 1662, parece até irônica a afirmação com que o rei 259 260 Mercurio Portuguez. Abril de 1663. fol. 3r. Ibid. fols. 3r-3v. 134 continua o seu discurso, ao especular sobre a quantidade de homens que se disporiam a acompanhá-lo: “Moderarei as emulaçoẽs com que o brio de cada hũ dos Portuguezes quer ser o primeiro a obrar”261. Em seguida, seu discurso anuncia as vantagens trazidas por sua ida ao Alentejo, e o monarca parece dirigir-se não só aos membros de seu governo, mas diretamente a todos os leitores do Mercurio: Naõ tardarâõ as resoluçoens que algũas vezes se vem buscar á Corte cõ dilaçoens muito prejudiciaes. Meus vassallos experimentarâõ que os quero defender sem perdoar ao trabalho de minha pessoa, pois para isto me encarreguei deste governo. Os inimigos se desenganarâõ de haverem de prevalecer contra Rey, & vassallos taõ unidos; & os estrangeiros acabarâõ de se confirmar na opiniaõ que devem ter de nossa constancia, & resoluçaõ.262 Ao anunciar que, com sua presença no Alentejo, mais rapidamente seriam tomadas as resoluções militares, a fala de D. Afonso VI indica a relação direta entre o governo e a direção da guerra, e declara sua intenção de estreitá-la ainda mais. Em uma época em que os últimos avanços do inimigo haviam intensificado a pressão exercida sobre as populações alentejanas, e difundido certamente por todo o reino o temor de que a vitória castelhana poderia estar se aproximando, Antonio de Sousa de Macedo publica o discurso do rei com a clara intenção de divulgar que a sua ascensão ao trono prometia mudanças significativas no governo de Portugal, e em primeiro lugar mudanças nos rumos da guerra que se travava. Nada mais pungente para alcançar tal efeito, neste período, do que anunciar a partida do próprio monarca para o front, o seu empenhamento pessoal na defesa do reino, e do que colocar nas suas palavras tal justificativa para haver se encarregado do governo de Portugal. Sim, porque, como se percebe, quase um ano depois do golpe com que teve fim a regência de D. Luísa – mas apenas alguns meses após o início da publicação do Mercurio – ainda fazia-se imperativo justificar os fundamentos do novo governo. E mesmo que seja também impressa como palavras de D. Afonso a preocupação com a opinião dos inimigos e dos estrangeiros em relação à união, constância e resolução portuguesas, naquele momento parecia muito mais importante, inclusive para redator do periódico, fazer com que os portugueses “experimentassem” o valor e a resolução de seu rei, e seu posicionamento enquanto comandante máximo da força militar destinada à sua defesa. Porém, não se tratava de defender de maneira veemente uma autoridade régia suprema, mas sim situá-la como parte integrante de um novo e eficaz governo da guerra, e de instar, ou ao menos de fazer crer que se instava, a nobreza do reino a participar da mesma disposição que o monarca demonstrava. Nobreza esta que, ao menos em parte, estava presente 261 262 Ibid. fol. 3v. Ibid. loc. cit. 135 nos Conselhos convocados para aquela solenidade, como se depreende da segunda parte de sua fala: Com ser isto assi, & vos confessar que me leva a este intento hum grande desejo de me ver nas hõradas occasioens da guerra que muitas vezes ouço referir, tudo quero regular por vosso conselho, porque a experiencia tem mostrado que nelle cõsistirá o acerto. Chamei o Conselho de Estado, & juntamente o de Guerra para vos ouvir a todos; encarregovos pello que deveis a vossa Patria, & âs obrigaçoens que com o sangue herdastes de vossos avós, que tantas vezes servindo, & acompanhando os meus, a defendèraõ dos mesmos inimigos que hoje, sem escarementarem nas perdas passadas, insistem contumazes em querer senhoreálla, me digais livremente o que vos parecer, sem respeito á minha inclinaçaõ, mas só á cõservaçaõ publica em que por vossas ilustres Casas ides taõ interessados; estando certos em que para o que for necessario, naõ sò me haveis de achar Rey, mas bom companheiro de vassallos que tanto mo merecem.263 Desta forma, a conclusão do discurso de D. Afonso, tal como publicada pelo Mercurio Portuguez, presta-se a desmentir qualquer interpretação de que seu governo tomava as rédeas da direção da guerra a despeito da experiência e eficiência dos órgãos que desde o início do conflito se incumbiam dela, imprimindo até alguma pureza na curiosidade do rei em conhecer o cenário de guerra, e divulgando sua intenção de sempre ouvir e seguir os Conselhos presentes nos assuntos militares, inclusive em relação à mesma proposta que ali se fazia, da jornada do monarca e seu irmão ao Alentejo. Tal precaução faz certamente lembrar a crítica que Vieira faria ao governo e ao Mercurio no ano seguinte, ao afirmar que com a defesa de uma guerra ofensiva estava-se atendendo mais aos clamores do vulgo do que à experiência dos grandes. Ao mesmo tempo, porém, a mesma conclusão não desmente, e reafirma em um tom mais forte a convocação à nobreza, lembrada do que devia à pátria, de suas obrigações trazidas pelo sangue, e retoma o tom provocativo ao referir que da conservação pública dependia a manutenção de suas ilustres casas nobiliárquicas. Intrigante esta dupla mensagem que a fala do monarca envia diretamente aos nobres membros de seu governo, mas ainda é mais significativa a impressão e publicização desta mensagem através do Mercurio Portuguez. Se a intenção mais geral da divulgação da proposta régia de passar ao Alentejo era declarar que a mudança de governo trazia uma nova postura do Estado, e de seu máxime representante, em relação à sua forma de intervenção e direção da guerra, ela passava também por demonstrar que a transformação aí operada incluía um redimensionamento da relação entre o rei e a nobreza, sendo esta simultaneamente ouvida e cobrada em suas atribuições políticas e bélicas. Ao término da reprodução da proposição régia o Mercurio, como se de um observador externo ao governo se tratasse, anuncia: “Não se 263 Ibid. fols. 3v-4r. 136 sabe o que no Conselho se resolveo, mas começa a haver mostras de preparaçoens para a jornada de S. Magestade”264. A notícia da perda de Évora no mês seguinte justificava, porém, que não fosse feita mais qualquer referência à ida de D. Afonso VI para a fronteira. Já a notícia dos tumultos de Lisboa, em que claramente a derrota do exército era atribuída à culpa de membros dos mais proeminentes do governo, certamente trouxe mais subsídios para que Antonio de Sousa de Macedo percebesse a necessidade de divulgar em seu periódico medidas tomadas por D. Afonso e seus ministros que comprovassem mudanças significativas no governo da guerra. 4.1.1 A nova forma de provimento: guerra, finanças e governo Se nos meses posteriores as narrativas da vitória no Ameixal, da subseqüente retomada de Évora, e da defesa de Almeida, trouxeram bons augúrios em relação ao futuro de Portugal na guerra, cabia ao Mercurio Portuguez aproveitar este substrato para recolocar em debate a atuação do governo e seu papel na construção de novas vitórias militares. Neste sentido se pode compreender, por exemplo, as notícias de agosto do mesmo ano em relação ao estado do esforço militar de Castela, pois o periódico refere que, além de perdidos os trens de bagagem e artilharia na batalha do Ameixal, das dificuldades de novos recrutamentos, tanto no reino como no estrangeiro, seria sabido que “se acha aquelle Rey com muito pouco dinheiro para a guerra; pello que, para a continuar usa de extraordinarios arbitrios, & excessivos tributos; & as maióres pessoas, & communidades lhe offerecem donativos; cujo pagamento será mais difficultoso que a promessa”265. Já foi visto como freqüentemente o secretário de Estado utilizava referências a notícias castelhanas para criar paralelos em seu discurso com a situação vivida na guerra dentro das fronteiras portuguesas. Não seria diferente, portanto, ao tratar do mau governo da guerra por Filipe IV, e seu impacto negativo na sociedade castelhana. Esta comparação ficaria mais clara aos leitores do Mercurio já nas primeiras linhas do próximo número, sobre setembro de 1663, em que se anunciava a mudança, a partir do primeiro dia daquele mês, da forma de provimento de pão de munição, palha e cevada para o exército e praças do Alentejo. O assento destes produtos, desde esta data, passava das mãos de um grupo de assentistas e começava a correr pela Junta Geral do Comércio. Antes de iniciar sua explicação sobre a novidade, o redator do periódico pondera que “porque nesta materia se fez ao Reyno o serviço mais importante para a guerra, serà bem declarar o que até agora 264 265 Ibid. fol. 4r. Mercurio Portuguez. Agosto de 1663. fol. 3v. 137 houve, & o que de novo se cõseguiu neste provimẽto”266. A um serviço tão importante para a guerra prestado ao reino, Macedo dedica quase a totalidade deste Mercurio, traçando elementos fundamentais para a compreensão de seu discurso sobre a ação daquele governo na direção da guerra, pois se farão sentir daí por diante em vários outros momentos de sua publicação. Parte sua explicação do modo como era feito tal provimento até então: a cada ano, todo mês de junho celebrava-se o contrato dos assentistas para proverem do início de setembro até o fim de agosto do ano seguinte, obrigando-os a abastecer as praças e o exército a cada dia uma certa quantia de pães para os soldados, e de rações de palha e cevada para os cavalos, por preço então estipulado, conforme ao que os mesmos assentistas esperavam do negócio. A crítica do Mercurio inicia desde já, ao dizer que a este valor os assentistas “ajuntavão os grandes interesses que nos assentos saõ ordinarios, & em algum modo necessarios para os réditos do dinheiro que adiantassem, & pagarem largamente a seus feitores, & sobre tudo ficarem com os ganhos com que costumão enriquecerse”267. Segundo Macedo, estes comerciantes conseguiam desta forma contratos “tanto a seu salvo, que no anno proximo passado se poz hũa condição, pella qual, o pão que se comprasse atè Março, ou Abril corria pello preço acordado, & crescendo o preço do que se comprasse de ahi em diante, seria por conta da fazenda de Sua Magestade”268. Como se não bastasse tamanha desigualdade, que se sofria unicamente pela necessidade que se considerava de haver assentistas, não se vislumbrando outra forma de provimento sem eles, o pagamento da quantia relativa ao assento fora consignado no rendimento das décimas, tributo que desde o início da Restauração havia sido vinculado aos gastos militares, e constituía talvez a principal fonte de arrecadação da Coroa, e também em outros efeitos aplicados para a guerra. Mesmo assim, acrescenta o secretário de Estado, não se satisfaziam com tal quantia, e recebiam ainda outras, “quasi de tudo o que havia no Reyno, dizendo que assi lhes era necessario, em rezão das quebras que haveria nas cobranças”269, obrigando-se apenas a, depois de satisfeitos, devolverem o que restasse aos ministros do rei. Enorme, portanto, era a dependência em que estivera a Coroa em relação a tais assentistas, e enormes eram sempre os seus lucros; e o quadro que Macedo desenha do efeito desta situação era tão desastroso, que bem se poderia considerar que a ele se devia a posição inferior ocupada por Portugal naquela guerra nas últimas décadas: 266 Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 1r. Ibid. fols. 1r-1v. 268 Ibid. fol. 1v. 269 Ibid. loc. cit. 267 138 Deste modo ficavão os assentistas senhores de todos os effeitos, & os Ministros Reaes impossibilitados, não só para fazerem pagas de dinheiro aos soldados, mas ainda para despezas menores, & sendo necessarias tantas alem do pão, cevada, & palha, faltava tudo, & para remedio se recorria a emprestimos forçados, a vendas murmuradas, que não bastavão para suprir a necessidade, & quando em fim se chegava a algũa muito precisa, pediase aos Assentistas que acudissem com algum dinheiro, ou permitissem cobrarse; o que elles disputavão, persuadindo sempre que lhes faltava o devido por seu assento, sem o qual não poderião continuar; & quando se reduzião a acodir com algũa coisa, se fazião por isso extraordinarias merces a elles, a seus parentes, & muitas vezes a seus amigos, & criados, porque a tudo obrigava a necessidade.270 Toda a precariedade encontrada na organização do exército português até então, e da defesa das fronteiras, precariedade que, como já foi visto aqui, fazia-se sentir tanto na rotina dos soldados quanto das populações que com eles conviviam cotidianamente desde o início da guerra271, cujas queixas difundiam-se rapidamente por todo o reino, era atribuída pelo Mercurio Portuguez diretamente à ganância e à avareza dos assentistas. E o Estado português, desde que restaurado, constituía-se até então no grande apoio de sua lucrativa atividade, suportando a carestia que este apoio lhe causava por não ver a possibilidade de outra solução para o abastecimento de viveres às forças militares. Os assentistas logo teriam percebido esta dependência, e utilizavam-na não só para obterem garantia de grandes rendimentos, como também para recusarem-se a efetuar empréstimos ou protelar seus pagamentos. Quando o faziam, conquistavam mercês inusitadas, não só para si como para seus parentes, amigos, e – a intenção do Mercurio claramente é de denunciar um verdadeiro escândalo – até criados! Mas os prejuízos não paravam por aí, pois segundo Macedo a atividade dos assentistas no cumprimento de suas obrigações gerava inúmeras queixas no exército, “justas, ou injustas”, sobre a qualidade do pão e da cevada fornecidos, e outras mais dos Povos, que diziam que, com o pretexto de ser para o assento, se lhes comprava pela taxa estipulada mais pão e cevada do que era necessário, e que depois se revendia com grande lucro. Consciente da gravidade das acusações, Macedo ainda a dilui um pouco: “posto q os Assentistas fossem pessoas de toda a verdade, corrẽdo este negocio por mãos de muitos feitores seus, podia haver desconfiança de alguns”272. Prudência dissimulada a desta ponderação do secretário de Estado, já que todo o seu discurso anterior sobre os interesses e posturas dos assentistas deixava pouca margem para que se acreditasse em sua inocência neste ponto. 270 Ibid. fols. 1v-2r. Cf. dados e reflexões, já debatidos no presente trabalho, analisados por: CORTÉS, Fernando Cortés. Guerra e pressão militar nas terras de fronteira. (1640-1668). Lisboa: Livros Horizonte, 1990; FREITAS, Jorge Penim de. O combatente durante a guerra da Restauração. Vivência e comportamentos dos militares ao serviço da coroa portuguesa, 1640-1668. Lisboa: Prefácio, 2007. 272 Ibid. fol. 2r. 271 139 Iniciado o governo de D. Afonso VI já com esta forma de provimento – o último assento teria sido celebrado em junho de 1662, e o golpe realizado no mesmo mês – os ministros que passaram a lhe assistir sofreram os mesmos danos, e em um momento em que todos os meios de financiamento estavam esgotados, e em que as necessidades da guerra se avolumavam, “chegouse quasi a desesperar do remedio; e verdadeiramente concorreo Deos com favor muito especial pera as prevençoens da Campanha passada”273. Com este comentário, Antonio de Sousa de Macedo chega ao ponto pretendido, repassando ao governo anterior a responsabilidade pela causa primeira não só da precária situação do front português nos últimos anos, como também das dificuldades enfrentadas na defesa contra as tropas castelhanas que acabaram por tomar Évora naquele mesmo ano, já sob o novo governo por ele representado. Apenas a intercessão do favor divino pôde, até então, evitar uma derrota definitiva do exército e do reino de Portugal, tão depauperados pela longa manutenção de um sistema de provimento falho, e vicioso. Agora, porém, terminado o prazo do último de tão nefastos contratos, iria Deus por outra via estender seu apoio aos portugueses, podendo enfim fazer do governo político de Portugal o seu instrumento, inspirando o seu principal ministro, o conde de Castelo Melhor. Ao escrivão da puridade Afonso VI teria encarregado o principal manejo dos negócios referidos, e o aperto com que ficava a Coroa lhe dava desde sempre o maior cuidado, até que, estando “reduzida a Companhia geral do Comercio do Brasil”, o conde percebeu, como que inspirado por Deus, que se podiaõ escusar aquelles assentos, administrando a mesma Companhia o dito provimento por conta de S. Magestade, antecipando ella o dinheiro, não levando interesses, & satisfazendose de consignação proporcionada; com o que cessariaõ os lucros dos Assentistas, ficariaõ livres as consignaçoens que sobejassem, seria o pão, & cevada por conta de S. Magestade qual convinha, & não haveria murmuração de que se comprava por taixa para revender sem ella.274 As vantagens da nova forma de provimento, portanto, são desde logo anunciadas: fim dos lucros abusivos dos assentistas, liberação de verbas para outros gastos, e, não menos importante, fim das murmurações sobre a má fé dos responsáveis pelo abastecimento das forças militares. Tudo porque, através do intermédio da Companhia Geral do Comércio do Brasil, a Coroa passaria a se encarregar mais diretamente do fornecimento de pão, cevada e palha, retirando de cena os interesses escusos que o inflacionavam, e causavam queixas e indignação por todo o reino. O conde de Castelo Melhor, que havia sido, como constava no primeiro número do Mercurio Portuguez, escolhido para atuar como um primeiro ministro, 273 274 Ibid. loc. cit. Ibid. loc. cit. 140 cargo para que era necessário ser “pessoa das maiores do Reyno, de juizo, valor, expediente, & fidelidade digna de tão grande lugar”275, confirmava finalmente tais atributos, e era apresentado, agora nomeadamente, como o idealizador deste re-ordenamento do financiamento do esforço de guerra português. Em projeto tão ambicioso, não faltariam dificuldades a serem apontadas, e também o Mercurio não as deixa de referir, como, por exemplo, que a de que comunidade da Companhia não conseguiria fazer entrega pontual dos víveres, pela grande variedade de detalhes englobados pelo provimento, ou o fato de que as despesas com a Armada impossibilitariam o adiantamento da quantia necessária ao provimento. Estes obstáculos, porém, são colocados para que se visualize em seguida o empenho de Castelo Melhor em demovê-los. De acordo com o redator do periódico, “vendo que todos aprovavão o arbitrio, & só duvidavão da execução” o escrivão da puridade insistiu em facilitá-la: “fez papeis, respondeo às objeçoens, fizeraõse Juntas, atè que ultimamente o zello dos Ministros da Companhia géral, que sò reparava na possibilidade, se deixou persuadir das rezoens, & das instancias, & se esforçou a tomar sobre si o grave peso deste negocio”276. Entre a aprovação do arbítrio e a confiança na execução do novo modo de provimento, mas principalmente entre voltar-se o zelo dos ministros para a possibilidade de sua realização e atentarem para as razões por que deviam embarcar naquele empreendimento, aí teria se situado a diligência do conde, responsável, portanto, não só por sua idealização como também por sua aceitação entre os membros da Companhia. Repare-se em que termos o Mercurio Portuguez publica o modo como o projeto foi proposto, e posto em prática: objeções, respostas, papéis, juntas, razões; Antonio de Sousa de Macedo faz questão de veicular que as decisões do governo quanto ao governo da guerra são tomadas mediante o debate de seu conteúdo e de suas implicações, de sua viabilidade. Assim como aparecia meses antes na fala do monarca, a mesma abertura para o diálogo era agora encontrada na atuação de seu principal ministro. Outra semelhança, porém, pode ser também detectada: em ambos os casos, o periódico dava a entender, alguns setores da sociedade precisavam ser pressionados pelo governo a agir de acordo com o bem público, no caso da proposição do rei, a nobreza convocada a ir ao Alentejo, e quando do projeto de Castelo Melhor, os ministros da Companhia do Comércio instados a assumir os riscos do assenhoreamento do provimento das forças militares. A diferença, agora, era que se demonstrava explicitamente haver grupos agindo mais em nome de seus interesses do que da 275 276 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 3v. Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 2v. 141 segurança do reino, e que estes precisavam ser deslocados de suas tradicionais atividades, como se fez no caso dos assentistas. Obviamente, se Antonio de Sousa de Macedo procurava alcançar alguma credibilidade para o que publicava em seu periódico277, não poderia simplesmente inventar ou exagerar uma tal mudança na forma de abastecimento do exército alentejano, nem poderia escrever absurdos sobre o modo como ela fora pensada, e negociada nos últimos meses em Portugal. Como se pôde observar em algumas ocasiões, não está na alteração da informação a principal estratégia do Mercurio Portuguez, mas a ênfase ou a interpretação particular sobre determinado aspecto, assim como algumas prudentes omissões. No presente caso, um documento publicado recentemente entre os anexos do livro O Ministro de D. Afonso VI, de Francisco da Silveira de Vasconcellos e Souza, traz uma importante contribuição, como o autor pretendeu, para a compreensão da atuação daquele governo marcado pela liderança do conde de Castelo Melhor, mas também para a análise desta edição do Mercurio sobre setembro de 1663. Tratase de um parecer, indicado como de março de 1663, de responsabilidade do próprio conde, em que se responde a uma consulta feita pelo rei, justamente a respeito dos problemas representados pela Junta Geral do Comércio em relação ao projeto de transferência do assento do provimento278. Nele, mesmo que indiretamente, percebe-se como, de fato, a postura inicial da Junta dirigente da Companhia em relação aos planos do governo parece ter sido bem aquela referida pelo Mercurio. De acordo com o parecer de Castelo Melhor, a resposta da Junta à proposta emitida pelo monarca apresentava as dificuldades observadas para a realização do provimento do Alentejo através da Companhia; de maneira geral, trazia a consideração de que aquela era uma tarefa de grande dificuldade de efetivação, para a qual ela não possuía experiência, conhecimento, nem cabedais, além de ser alheia às suas funções regulares no reino. Antes disso, porém, a Junta não deixava de avaliar “os grandes interesses que a fazenda de V. Mde tirará de se conseguir este negócio”, em que dizia apresentar tais dificuldades “mais com a tenção de que V. Mde venha em conhecimento, do grande serviço que ela lhe fará neste 277 A conquista de credibilidade será sempre fundamental na construção do discurso dos reportórios de notícias desde suas origens, o que se avalia pela existência simultânea de outros meios pelos quais determinadas informações corriam, ou eram necessariamente conhecidas por parte dos leitores. No caso dos periódicos, que pretendiam criar uma relação de maior durabilidade com seu público, tal exigência fazia-se ainda mais premente. Cf. para o caso inglês, a atenção dada para as estratégias de credibilidade na recente obra: RANDALL, David. Credibility in Elizabethan and Early Stuart Military News. London: Pickering & Chatto, 2008. 278 Resposta à Consulta que fez a V. Mde a Companhia do Comércio, em que propunha as dificuldades e objecções que tinha a haver de correr com o assento. In: SOUZA, Francisco da Silveira de Vasconcellos e. O Ministro de D. Afonso VI. Luís de Vasconcellos e Souza 3º Conde de Castello Melhor. Porto: Câmara Municipal da Vila Nova de Foz Côa, 2001. pp. 184-189. 142 negócio do que com ânimo de se deixar vencer de nenhuma”. Havendo compreendido “que este é o remédio do Reino (...) não se pode crêr que haja obstáculo que não vença por se conseguir o em que vai tanto”279. Desta forma, os representantes da Companhia haviam realmente, como referiria o Mercurio, aprovado o arbítrio, mas duvidado da execução. E se esta era uma forma dissimulada de ostentar uma oposição ao intento, então o comentário subseqüente do parecer do escrivão da puridade revestia-se de fina ironia: “e assim me parece que V. Mde deve mandar agradecer à Junta o ânimo que mostra em todas as matérias que tocam à conservação do Reino e serviço de V. Mde, com a consideração tão acertada de querer antes duvidar alguma do que faltar depois”280. Com esta observação Castelo Melhor parte para responder propriamente às objeções colocadas pela Companhia, e o teor de sua resposta confirma haver alguma dissimulação naquele elogio, pois parece se dirigir de fato, como depois comentaria o secretário de Estado em seu periódico, a quem só reparava na possibilidade ou não da execução do contrato, mas era instado a reparar nas razões que havia para tal. É a impressão que fica da leitura da postura do parecer em relação à principal dificuldade apontada pela Junta, de que o negócio do provimento seria “grande empenho para ela e o meio de sua profissão”. Mesmo com algum comedimento, Castelo Melhor parece estar respondendo a um desaforo: “Será conveniente que V. Mde mande declarar à Junta, pois parece o não tem entendido ainda que V. Mde se há-de valer daquela quantia que pagou aos juros dos interessados, gastos das armadas ficar todos os anos de avanço à Companhia”; ou seja, era pelo empenho da fazenda real que grandes despesas eram poupadas pela Companhia desde sua fundação. E se àquela altura podia então dizer-se senhora do comércio, “parece que deve contribuir com a soma que lhe fica”281. O tom era de forte reprovação da resistência oferecida por um grupo que, de acordo com os argumentos do conde, devia ao governo, e seu empenho, sua ascendência sobre o comércio português. Sua conclusão não deixa dúvidas: Um Príncipe não poderá fazer coisa pior tomada em todo o mundo que fazer um poderoso a troco de deixar muitos destruídos. Poderosa ficará a Companhia se, juntando-se os seus cabedais uns a outros, se lhe não tirar nada deles; miseráveis e pobres ficarão todos os vassalos de V. Mde se, para constervar este poderoso fôr caindo sobre eles todo o castigo, juntando tributo a tributo e trabalho a trabalho, trabalho a trabalho no ir e mandar defender o Reino nas fronteiras e tributo a tributo para se sustentar nelas o exército, ficando só isento de tudo isto o poderoso, que tributo nem trabalho cai nele, um porque não pode outro porque dizem não convém. Se a troco de tanto trabalho se há-de conservar a Companhia, pouco importa a sua duração depois da ruína total do Reino, pois se a Companhia entender que há de 279 Ibid. p. 184. Ibid. loc. cit. 281 Ibid. loc. cit. 280 143 contribuir para a defesa com aquilo que lhe ficar, logo fica satisfeita a dúvida do empenho que a Companhia considera ter neste negócio.282 Fica nítido, portanto, que politicamente não terá sido uma empreitada fácil, como noticiou o Mercurio, convencer os ministros da Companhia a fazer o papel de um grande assentista e cuidar do abastecimento do Alentejo. Negociações intensas certamente travaramse em torno de muitos itens do contrato, como o volume do provimento, a atribuição dos preços dos produtos, e as garantias oferecidas pela Coroa. Seja como for, o fato é que o projeto de mudança na forma de provimento do exército e das praças militares da província se concretizou, e o periódico do secretário de Estado não precisou ser tão incisivo em relação ao significado dos obstáculos postos pela Junta quanto o fora Castelo Melhor em seu parecer. Mesmo assim, Antonio de Sousa de Macedo não se furtou a trazer em sua notícia os detalhes do contrato realizado no início do mês, e avaliar suas conseqüências mais imediatas. O registro é bastante peculiar e significativo, principalmente por se encontrar neste periódico, impresso em Portugal e vendido a entre cinco e dez réis o exemplar, pelo que merece transcrição integral, e leitura atenta: Obrigouse a prover desde logo nas Praças, & Exercito de Alentejo seis mil moios de trigo, & onze mil de cevada para este anno; que he a quantidade que se estima ser necessaria pera o gasto ordinario (alem do mais trigo, & cevada, que por ordẽ de S. Magestade se vai metendo nas Praças pera sobrecelentes dellas, & pera as maiorias do Exercito.) Estimouse cada alqueire de trigo a duzentos & trinta reis, & cada 283 alqueire de cevada a posto nas praças que se lhe sinalarão; o que tudo importou seiscentos & sessenta mil cruzados, entrando quinze por cento das quebras que poderá haver na cobrança, da qual quantia sòmente se lhe derão consignaçoens. E por este preço se obrigou a Companhia ao provimento, suprindo o mais em caso que subisse, para Sua Magestade lho haver de pagar depois de feitas cõtas; como tambem ela restituiria o que sobejasse, se o pão, & cevada custasse menos. De mais disto se haõ de pagar aos feitores por conta da fazenda Real. Dispozse logo a execução como convinha, encarregando mais em particular seu manejo aos Deputados da mesma Junta João Guterres, & Manoel Martins Medina, zelosos, inteligentes, & de todo o credito, & confiança. Por falta da novidade està o anno tão caro, como se vé; & com tudo se entende que sendo os preços do trigo, & cevada varios, conforme a parte aonde se compra, sahirá o trigo hum por outro posto nas praças a dezaseis vintẽis, pouco mais, ou menos o alqueire, & a cevada por ametade; o q se se fizera por assento, não custaria menos de quinhentos reis amassado, com o que jà se vè o dinheiro que se poupa, & continuandose em melhores annos, se pouparà muito mais. Sobre tudo se achão livres todas as mais consignaçoens. Para o amassilho se tem dado a ordem conveniente, a preço muito moderado, correndo pelo Vèdor géral do Exercito. A palha com ser o anno tão falto della, custa ametade do que houvera de custar por assento; e tudo neste mez se tem provido com grande satisfação, & pontualidade.284 282 Ibid. pp. 184-185. Neste trecho há um erro de impressão no Mercurio, que deixa esta lacuna onde se deveria encontrar o preço estipulado do alqueire da cevada. 284 Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fols 2v-3r. 283 144 Desta forma, após fazer longa relação dos danos sofridos nas últimas décadas em Portugal em decorrência de um sistema falho, e corrupto, de provimento, e após divulgar o grande empenho com que o escrivão da puridade, pela primeira vez nomeado no periódico, trabalhara para a sua superação, Macedo divulga em pormenores o novo sistema, pormenores que passo a passo mostravam as soluções alcançadas para os problemas vividos até então. Em primeiro lugar, o contrato trazia a obrigação de abastecimento da quantidade de trigo e cevada estimada como necessária para a campanha, e mesmo assim o governo ainda tratava de diretamente fornecer às praças um pouco mais daqueles produtos, garantindo o sobressalente. O Mercurio Portuguez informa ainda o preço estipulado a ser pago pelo governo para cada alqueire dos produtos, e a soma total do contrato, 660 mil cruzados incluídos os quinze por cento que protegeria a Companhia do prejuízo decorrente de quebras nas cobranças. Uma segurança, que, como foi relatado pelo periódico, a Coroa oferecia também aos assentistas, mas o grande diferencial é que agora as consignações, com que até então ficava presa grande parte da arrecadação das décimas, restringiam-se ao cumprimento da quantia total determinada no contrato. O primeiro resultado da mudança no provimento seria observado no preço final do trigo e da cevada nos postos de venda, mesmo que ainda caro, já notadamente menor do que seria no caso da manutenção do sistema de assentos. Da mesma forma sairiam mais em conta os preços do amassilho e da palha, tão importante para a cavalaria. Em anos de melhores colheitas – o Mercurio nunca poupa expectativas – o preço deveria baixar ainda mais. O outro e ainda mais relevante resultado era o fato de que, pela redução de consignações, todo o mais rendimento, que antes ficava atrelado às exigências e à ganância dos assentistas, estava agora livre para outros investimentos. Por último, apesar das dificuldades vislumbradas meses antes pelos membros da Junta do Comércio, o periódico declarava que naquele mês já o provimento corria na quantidade e pontualidade que se esperava. Certamente a leitura desta notícia devia causar grande impacto, pela divulgação de uma análise tão detida do novo contrato de abastecimento de víveres ao exército, pois que ainda hoje impressiona encontrar em uma publicação ligeira daquele tempo tamanho volume e densidade de informações. Pode-se já perceber que, se de fato passava por função do periódico a defesa da relação intrínseca entre o Estado e a direção da guerra, não era através da celebração dos atributos guerreiros do poder monárquico que Antonio de Sousa de Macedo se propunha a fazê-lo. Como quem não podia deixar qualquer dúvida sobre o objetivo da publicação tão detalhada daquela notícia, o redator conclui: “Do sobredito se infere quanto se deve ao cuidado, & invectiva de quem o ordenou: o serviço que faz a Cõpanhia: o 145 melhoramento de nossas cousas, & como Deos nosso Senhor por todas as vias nos encaminha, o que nos deve animar mais, & desenganar nossos contrários”285. À proteção de Deus, ao serviço da Companhia de Comercio, mas principalmente à determinação e ao modo repreensivo pelo qual o conde de Castelo Melhor pressionou a Companhia a desempenhá-lo; a esta trindade o leitor do Mercurio Portuguez deveria agradecer a transformação que se acompanhava no governo do esforço de guerra português, e nos rumos do conflito travado já há mais de duas décadas contra Castela. 4.1.2 Os prognósticos do bom governo Na edição sobre dezembro de 1663, quando inicia uma recapitulação dos principais feitos militares da campanha que terminava, um procedimento que se repetiria a partir daí nas outras edições de fim de ano, Macedo não hesita em relacionar as felicidades vividas com a ação do governo, mesmo tendo que para isso inverter a cronologia dos acontecimentos: Chamo a este anno feliz, porque (como vimos na Rellaçoens de seus sucessos) nelle estabeleceo elRey nosso Senhor o acerto de seu governo. Nelle recolhemos hũa riquíssima Frota, & depois sinco navios juntos do Brasil, & outros das Conquistas. Nelle se deu aos assentos, & provimento das praças, & exercitos hũa nova fórma, que acrecentou muito o cabedal para continuar a guerra. Nelle vencemos, & ganhamos inteiramente a mais gloriosa batalha que virão muitos seculos.286 Se o término do ano mostrava-se boa ocasião para referir em conjunto as vitórias portuguesas contra o inimigo, era propícia também para demonstrar que, além do brio dos soldados e do valor dos comandantes do exército, concorreram decisivamente para a reviravolta narrada pelo Mercurio Portuguez ao longo dos últimos meses a política para a guerra empreendida por D. Afonso, e pelo esforço de seus ministros. A ênfase do discurso do periódico nesta capacidade e eficiência do governo na direção da guerra, principalmente em relação à sua sustentação material, não ficaria isolada, portanto, naquela divulgação da mudança da forma de provimento do exército e das praças. Como o próprio secretário de Estado frisara, uma das melhores conseqüências do contrato com a Companhia de Comércio era o redirecionamento de fluxos de arrecadação para outras áreas, até então constantemente negligenciadas, de investimento associadas ao fortalecimento do poderio militar do reino. Cabia ao Mercurio, daí por diante, comprová-lo. O exemplo mais patente do esforço de Macedo neste sentido talvez esteja na notícia do pagamento realizado às tropas em campanha. De acordo com seu próprio discurso quando da alteração no provimento, 285 286 Ibid. fol. 3r. Mercurio Portuguez. Dezembro de 1663. fol. 5r. 146 devia-se ao grande lucro dos assentistas muitas vezes a impossibilidade da distribuição do soldo no exército, e sempre o atraso em seu pagamento. Mas o novo governo mostra que resolveu este problema já antes do início da campanha militar de 1664. Na edição de abril, imediatamente após comentar do aparecimento de cartazes do duque de Ossuna na Beira, prometendo dinheiro e postos a quem lhe enviasse informações sobre a praça de Almeida, e ajuda para tomá-la, e em seguida fazer menção à resposta valorosa que lhe foi enviada pelo governador Pedro Jacques de Magalhães, o Mercurio anuncia que no dia 8 daquele mês “partiraõ de Lisboa para o exercito de AlẽTejo 147 mil cruzados, q (àlẽ de outras partidas q de pouco tempo a esta parte se enviaraõ) foi hũa bẽ cõsideravel cõtia, fezse paga de dous meses a todo o exercito, & hũ dia destes vai dinheiro para outros dois”287. Além de demonstrar, sub-repticiamente, que com o pagamento das tropas se minorava a influência negativa que cartazes como o de Ossuna poderiam trazer para a defesa do território, a intenção mais óbvia de Macedo era evidenciar os frutos alcançados pela nova política de provimento, pois que já apareciam recursos que podiam ser destinados para o pagamento adiantado de quatro meses – a previsão é bastante otimista – do soldo de todo o exército do Alentejo. Até porque esta informação integrava, com efeito, um conjunto de notícias voltado para divulgar os preparativos feitos para a campanha militar que se iniciava, que regularmente se encontrava nas edições de março, abril e maio de cada ano. Do ponto de vista da narrativa de guerra, estas notícias funcionavam como um rufar dos tambores que anunciavam a proximidade de grandes confrontos, e prognosticavam a vitória portuguesa. Simultaneamente, do ponto de vista do discurso sobre a direção da guerra, eram provas da eficiência do governo em questão. Não por acaso, na mesma edição de abril de 1664, quase na seqüência do pagamento das tropas, é que se noticiava pela primeira vez a ocorrência de exercícios militares no Paço da Ribeira, à vista do rei e do infante, nos dias 14 e 17 daquele mês, como foi observado no capítulo anterior, notícia que se concluía pelo comentário de que “notouse ao embarcar de ambos estes terços que hião os soldados tão contẽtes, & ligeiros, como se fossẽ para hũ bãquete muito festivo”288. Se a conseqüência de tanta alegria deveria ser a vitória portuguesa, sua causa era o empenho do novo governo representado pelo Mercurio. A conclusão da edição, como foi também já comentado, anunciava, antes até da decisão do conselho de Guerra, que o grande, alegre, e já devidamente pago, exército português seria utilizado 287 288 Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fol. 2r. Ibid. fol. 2v. 147 ofensivamente naquela campanha, mas dava também ocasião a que Macedo analisasse a situação dos dois oponentes da guerra às vésperas da campanha: Na provincia de AlẽTejo temos hum bisarro exercito, q muito brevemente sairà em cãpanha. Os Castelhanos da grande rota da batalha do Canal, ficaraõ taõ arruinados, que ainda que (por de algum modo satisfazerem a reputação de seu poder, & as promessas com que, como costumaõ, entretiveram, & enganaram as Naçoẽs Estrangeiras este anno) fizeraõ todo o esforço, não puderão ajuntar cousa que nos dé cuidado, segundo as notícias que atègora temos. Por lhes faltar infantaria, arrastão â fronteira todos os lavradores, & sómente se fião na cavallaria, de que tem numero considerável, posto que muita della não he boa. A nossa gente com a vitoria passada, com boas pagas, & com bõ General, & mais Cabos, està tão animada, que, com o favor de Deos, parece o bom sucesso infallivel; o que no inimigo passa pelo contrario.289 Quando narrava as escaramuças e as batalhas em que se envolvia o exército português, o Mercurio Portuguez freqüentemente assumia a posição de um analista de guerra, utilizando elementos variados da arte militar, e até mesmo condenando alguns, para demonstrar a superioridade das forças lusitanas, bem como do seu desempenho tático. Já nestas outras ocasiões, em que suas linhas se dedicavam a expor os preparativos que se realizavam para a organização logística da frente militar nos primeiros meses do ano, sua análise ascendia a uma escala maior, e apresentava ao leitor um diagnóstico das condições enfrentadas pelos oponentes daquela guerra na montagem de sua capacidade bélica. Nesse âmbito, o discurso do periódico sobre a guerra era constantemente permeado por considerações acerca da conjuntura política vivida em Lisboa e Madrid, e seu impacto sobre as estratégias militares levadas a cabo pelos governos dos dois reinos, como no exemplo acima, ou como na comparação entre a falta de dinheiro e excesso de tributos em Castela e a melhor forma de aproveitamento de recursos representada pelo novo contrato de provimento do front alentejano, tecida entre as edições de agosto e setembro de 1663. Mas era nos prognósticos traçados por Antonio de Sousa de Macedo, nas primeiras edições de cada ano, que esta sua estratégia podia se desenvolver plenamente. Nas últimas linhas da edição de dezembro de 1663, após concluir a recapitulação dos feitos daquele “anno feliz”, o secretário de Estado anunciava que, no número subseqüente, “Mercurio (que He Rey da Mathematica) fará hum juízo do se pode esperar na campanha seguinte”290. Daí por diante, toda edição de janeiro traria uma previsão para o ano que começava, porém não baseada em observações astrológicas, como era comum encontrar-se na época. Suas conjecturas se fariam a partir de uma interpretação da conjuntura político-militar em que se inseriam Portugal e Castela; tratava-se de uma “Astrologia de estado”, como gracejaria Macedo no primeiro 289 290 Ibid. fols 4r-4v. Mercurio Portuguez. Dezembro de 1663. fol. 6r. 148 número de 1666, criticando diretamente aqueles que, como o padre Antonio Vieira, valiam-se de juízos astrológicos como instrumento de intervenção na política portuguesa: “Saber de certo o successo é contingente, reservado a sabeduria divina. O em que Mercurio se affirma, & empenha seu credito he, que nesta duvida formarà Portugal hum bisarro exercito para a campanha seguinte com mayores desígnios q todos os passados”291. A dúvida a que se referia advinha de que as “influẽncias politicas” prognosticavam que, morto o rei castelhano em setembro de 1665, seus ministros, desobrigados de lisonja, tratariam da paz, mas que a rainha regente poderia querer não deixar tão rapidamente o ditame do rei defunto, e demonstrar-se afeita à guerra para parecer mais varonil; Com tudo a necessidade, o juizo os clamores dos povos & os conselhos dos Principes amigos nos mostram as estrellas, que teraõ grande força para persuadir o que convem. Mas ainda no modo de tratar se podem recear cautellas; porém estâ o Sol muyto benigno â prudencia dos Portugueses.292 Assim, Macedo zombava dos prognósticos astrológicos, seus escritores e seus adeptos, parodiando suas influências e astros, enquanto emitia seu juízo da política castelhana sob a regência de Mariana de Áustria, concluindo com a garantia aos seus leitores da formação de um poderoso exército para aquela campanha, garantia que lhe era possível não pela habilidade de leitura dos céus, mas pela condição de membro proeminente do governo. E se mais minúcias não revelava sobre os rumos da guerra, era porque, como tergiversara na edição de janeiro de 1665, “Marte (a quem elle obedece como a senhor desta materia) lhe manda que as naõ diga”293. Porém, dos três escritos durante o período de sua redação do Mercurio, o prognóstico de 1664 é o mais exemplar desta sua utilização como ponto de partida para a divulgação de uma análise em confronto das políticas militares de Portugal e Castela. Seu texto inicia pela observação de que Mercúrio, como rei da matemática, “achou facilmente os Astros benignos” aos portugueses, mas que, ponderando “que suas influencias obedecem ao arbitrio, & disposicoẽs humanas, & obrão segũdo o estado das cousas”294 lhe parecia mais certo levantar um juízo político, inferindo a partir destes antecedentes as suas previsões para aquele ano. Sendo assim, e antes de mais nada, Macedo apresenta aos leitores as bases de sua análise: Por seis cauzas se pódem, & devem moralmente coligir, & medir os progressos da guerra. Justiça das Armas; porque não sò grangea o favor do Ceo, mas tambem anima os vassallos. Numero, & valor de soldados; que he o braço com que se obra. Copia de mantimentos; de que pende a conservação dos exercitos. Cabedal de dinheiro; que he o nervo que tudo sustẽta. Disposição das cousas; da qual 291 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1666. fol. 2v. Ibid. fols. 2r-2v. 293 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1665. fol. 4v. 294 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 1v. 292 149 ordinariamente resultão os successos; & seja licito (dentro dos limites Christãos) ajuntar a boa fortuna, porq esta alenta os combatentes, atemoriza os cõtrarios, & tẽ grãde imperio na opiniaõ.295 Vale a pena aqui destacar como, nesta passagem, a argumentação do Mercurio cercase do tipo de elementos encontrados comumente nas obras de seu tempo dedicadas à política e à arte militares, voltadas em grande parte para o debate de temas encontrados nos textos de Justo Lipsio e Giovanni Botero, que vinham particularmente influenciando a produção intelectual daquela geração em Portugal296. Para qualquer leitor habituado a tais referências, era difícil não reconhecer, por exemplo, a referência ao dinheiro como nervo da guerra encontrada em Lipsio297, sua valorização da justiça da guerra como o primeiro aspecto a ser considerado pela prudência militar de um governante298, ou o modo de Botero identificar o papel da fortuna, cristãmente considerada, no ânimo dos combatentes299, além da, de maneira geral, valorização da análise das condições materiais para o empreendimento bélico, e da capacidade militar no âmbito maior da governação, abordagens que revelavam a sintonia entre os dois autores. O Mercurio Portuguez fazia questão de indicar a tais leitores que os fundamentos de sua análise da realidade portuguesa diversas vezes tecida em suas edições vinculavam-se estreitamente às mais relevantes doutrinas políticas debatidas na época. Em seguida, analisando sobre tais bases a situação em que se encontravam Portugal e Castela, e conjecturar a respeito dos próximos movimentos daquela já longa guerra, caberia ao periódico demonstrar que também a política objetivada pelo governo português partia também dos mesmos fundamentos. Daí por diante, Macedo segue seu discurso observando a situação da guerra presente através destes seis aspectos. Sobre a justiça da causa do monarca português, é taxativo, dizendo rapidamente ser inconteste, inclusive qualificada por demonstrações divinas, sendo reconhecida mesmo pelos castelhanos que “sô por huma cega razão de estado a 295 Ibid. loc. cit. Para esta influência, cf. BEBIANO, R. op. cit. pp. 205-214; 395-406, e também: TORGAL, Luis Reis, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981, e ALBUQUERQUE, Martim de. Um Percurso da Construção Ideológica do Estado: a Recepção Lipsiana em Portugal. Lisboa: Quetzal Editores, 2002. 297 “Luego al príncipe le conviene, antes que dé principio de la guerra, tratar con mucho cuidado de la gente y gastos de Ella. Y mayormente del dinero, el cual es tan necesario que, como los médicos afirman no poder caminar los hombres sin nervios, así tampoco la guerra no puede tener progreso sin el que le da vida y movimiento”: LIPSIO, Justo. Políticas. Madrid: Tecnos, 1997. p. 227. 298 Ibid. pp. 217-222. 299 “A primeira coisa com que o Capitão anima os soldados é a fortuna, e esta não é senão o concurso da virtude divina, com a qual a Divina Majestade acompanha os que Ela escolhe como ministros da sua justiça ou como executores da sua vontade”: BOTERO, João. Da Razão de Estado. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. p. 215. 296 150 impugnam”300. Como se percebe, embora fosse um dever moral incluir entre os fatores determinantes da vitória militar a justiça das armas, já não era mais tempo em que se fizessem necessárias longas digressões justificativas da monarquia dos Bragança, tarefa a que outrora o próprio Antonio de Sousa de Macedo havia se dedicado com tanto empenho301. Sua análise segue de pronto ao número e valor dos soldados empenhados na guerra. Argutamente, o secretário de Estado afirma que, em se tratando de soldados naturais, o número dos portugueses é igual, ou maior do que o do exército castelhano, pois se encontrava Castela menos povoada, e que com admiração se observava como a cada ano aumentavam as tropas lusitanas. Por ser assim, os inimigos precisavam recrutar grande número de soldados estrangeiros, que causavam grande despesa e ainda muitos danos às populações que os tinham que alojar. Como se esta observação pudesse trazer à mente do leitor os prejuízos causados pelos combatentes estrangeiros associados ao exército português, Macedo arremata: “Nós tambem nos ajudamos de naçoẽs, mas com comodidade, porque, não necessitando de tam grande numero, trazemos os que nos bastem, & não o que nos arruínem”302. A presença de soldados estrangeiros em Portugal decerto também era tema polêmico, tanto porque interferia na hierarquia do exército quanto pelas dificuldades ocasionadas por seu alojamento nas fronteiras, principalmente no Alentejo303, e esta passagem traz um bom exemplo do modo como freqüentemente o Mercurio trata da questão, destacando a presença estrangeira como um importante auxílio, mas não determinante, para a conclusão próxima da vitória portuguesa, e tentando diluir as críticas a ela ao apontar danos maiores ocasionados por mercenários do lado castelhano. No caso presente do prognóstico, o argumento servia acima de tudo para contornar o fato de que, somada a presença estrangeira, o tamanho do exército 300 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. loc. cit. Principalmente enquanto atuava na diplomacia portuguesa em Inglaterra, integrando primeiramente a embaixada de D. Antão de Almada, e permanecendo depois em Londres como residente, Macedo comprometeuse com a tarefa de coligir argumentos a favor da Restauração da monarquia portuguesa, e dos direitos ao trono da casa de Bragança. Sua atividade resultou na Lusitania liberata ab injusto Castellanorum dominio restituta legitimo Principi, Serenissimo Joanni IV Lusitaniae Regi Potentíssimo, publicada em Londres em 1645, pela oficina de Richard Hearn, obra síntese da defesa dos Bragança, voltada para a divulgação nos centros políticos de toda a Europa, mas também os livros Juan Caramuel Lobkowitz religioso de la orden de Cister, Abad de Melrosa, etc. Convencido en su libro intitulado Philippus prudens Caroli V. Imp. Jilius Lusitaniae etc. legitimus Rex demonstratus, Impresso en el ano de 1639 y en su respuesta al manifiesto del Reyno de Portugal, impresso en este ano 1642, uma virulenta resposta à obra do abade cisterciense sobre os direitos de Felipe IV, e Genealogia regum Lusitaniae: Serenissimo Principi Theodosio principi lusitaniae, & C.: Serenissimi ac potentissimi Regis Ioannis IV, primogenito. D., um opúsculo com os argumentos genealógicos a favor dos Bragança, ambos publicados por Hearn, em 1642 e 1643, respectivamente. 302 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 3r. 303 Cf. sobre os contingentes estrangeiros da década de 1660, e os conflitos decorrentes de sua presença, FREITAS, J. P. op. cit. pp. 89-96 e 179-185. Sobre especificamente o contingente inglês, informações detalhadas são trazidas por CHILDS, John. The British Brigade in Portugal, 1661-1668. In: Journal of the Society for Army Historical Research, v. 53, pp. 135-147, 1975. 301 151 inimigo era normalmente superior ao do português. Quanto à cavalaria, porém, o redator do periódico admite a superioridade numérica da força contrária, mas pondera que “suprese o numero pella ventajẽ do valor, que de todos os seculos publicaõ as historias, & no presente respeitaõ os Castelhanos pello que experimentaõ”304. Um modo simples, e rápido, de tentar inspirar desprezo pela sempre temida superioridade da cavalaria castelhana. Acerca dos mantimentos, em que também costumeiramente pesava o fato de Castela possuir maior produção agrícola, Macedo argumenta que, apesar disso, além da fertilidade do Alentejo, Portugal os conduzia de forma mais cômoda, pelo rio Tejo e pelo rio de Alcácer, de modo que com apenas poucas léguas por terra se os remetia a qualquer parte do reino, e que os castelhanos, não possuindo todo o necessário na região da Extremadura, transportava-os do interior com muita dificuldade. Mas é em relação ao dinheiro, nervo da guerra, que o Mercurio desenvolve com mais afinco seu discurso, até porque, indiretamente, tratava-se aí de medir o impacto da nova forma de provimento determinada no ano anterior na utilização dos recursos pelo governo. Por tal, e pelo quadro ali delineado por Macedo, o parágrafo merece ser citado integralmente: O cabedal de dinheiro, q he em Castella maior, se faz menos efficaz pello mao governo, que já não tẽ emmenda. Os latrocinios dos administradores, & Cabos, saõ inexcusaveis; os desperdiços saõ incriveis; em conduzir Estrangeiros sem fruto consume excessivas contias. Finalmente, depois de haver esgotado todo o genero de tributos, & alvitres, se vè em estado, que de materia villissima fez dinheiro de valor mui subido, com que tudo lhe custa hum preço muito alto, & os Estrangeiros, pello que avanção, lhe metem irremediavelmente aquella chamada moeda, & por Ella lhe tirão a de ouro, & prata. Naõ deixâraõ seus Ministros de antever esta ruina, mas arrojáraõse a Ella com desesperaçaõ, tomando pretexto de que conquistando Portugal em hum ou dous annos, lhes ficaria lugar de se restituírem; & hoje se achaõ incapazes de remedio, com a guerra nos principios, com os Povos miseraveis, com a fazenda Real empenhada para muitos annos, & taõ impossibilitada, que para a despeza da campanha futura, se levantou elRey com todas as consignaçoẽs do que devia das passadas, sem reparar em que este mao exemplo o privou de todo o Comercio, pois ninguem se fia mais de quem não guardou palavra. As contribuiçoens de Portugal, sem empenho algum para o futuro, administradas mais fielmente, & com boa ordem, suprem ao que parece incrivel; & sendo certo, como he, que em hum exercito de Castella se gasta sete ou oito vezes mais do que em hũ de Portugal igualmẽte numeroso, fica Portugal proporcionadamente, com igual, ou maior cabedal.305 Esta passagem torna-se a mais importante para o prognóstico de 1664, e central em toda a estratégia comparativa construída pelo Mercurio ao longo de suas edições, exatamente porque aí são confrontadas as direções políticas de Portugal e Castela em relação ao conflito que se travava em suas fronteiras, e nela se pode observar com mais clareza o discurso engendrado por Macedo acerca do papel desempenhado pelo Estado no governo da guerra. 304 305 Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 3r. Ibid. fols. 3v-4r. 152 Em uma de suas primeiras edições, o periódico, e provavelmente o governo por ele representado, apostava na notícia de uma jornada do rei D. Afonso ao principal front do conflito, intencionando demonstrar inclusive como com tal disposição o monarca procurava instar pelo mesmo empenho por parte da nobreza portuguesa. Pela má fortuna do início da campanha de 1663, ou pelo peso da questão, alguns meses depois o secretário de Estado muda o foco do seu discurso, e mostra não mais o rei, mas seu principal ministro, tratando pessoalmente de uma reorganização radical da utilização dos recursos disponíveis ao financiamento das forças militares portuguesas. Agora, na edição de abertura do ano seguinte, o Mercurio Portuguez analisa o caráter determinante do modo como o Estado estabelecia sua política de arrecadação tributária, gerenciamento de recursos, e intervenção na economia, para o desenvolvimento dos sucessos militares. Traçando um painel desastroso de uma política econômica castelhana imprudente, irresponsável e desrespeitosa para com a população, o contraste em relação às positivas conseqüências previstas meses antes para a mudança do provimento do Alentejo é tão contundente, que Antonio de Sousa de Macedo se exime de comentar em pormenores a administração fiel e ordenada do cabedal português. Adjetivá-la assim é o quanto bastava para publicar que, apesar da sabida superioridade econômica de Castela, ela não se reverteria mais na superioridade militar tão alardeada, fora e dentro de Portugal. Chegando ao que Macedo chamou de “disposição das cousas”, passa a abordar o estado das praças de ambos os lados, o ânimo dos combatentes e a conjuntura político-militar internacional. Segundo o seu discurso, as praças portuguesas encontravam-se àquela altura de tal forma fortificadas, que para tomar cada uma delas era necessário um exército completo, enquanto as castelhanas, exceto Badajoz, estavam como portas abertas a qualquer intento de conquista. Em relação aos ânimos, ressalta a diferença entre a resolução “de quem peleja por capricho, & teima de outrem, ou pella defensa natural”306: os portugueses sabiam não estarem lutando apenas pela pátria e por seu rei natural, mas simultaneamente pela fazenda, liberdade e honra próprias, enquanto os castelhanos eram levados a morrer à força, sem qualquer interesse ou necessidade. Já no âmbito extra-peninsular, várias ocorrências ameaçavam Castela, que já desamparara o imperador em sua luta contra os turcos, e corria o risco de perder suas possessões na Itália. Natural condição, comenta o Mercurio, pois “que naõ he novo perder o proprio quem pretende o alheo”307. 306 307 Ibid. fol. 4r. Ibid. loc. cit. 153 Quanto à fortuna, esteve ao lado de Portugal em seus confrontos com Castela em todas as batalhas campais memoráveis desde a constituição do reino enquanto tal, já há mais de 550 anos, sendo sempre nelas derrotados os castelhanos, e tomadas todas as suas armas e bagagens, de que os exemplos mais recentes eram a batalha do Canal no ano anterior e a das linhas de Elvas em 1659. Por este costume, entravam já aqueles inimigos aterrorizados em cada combate contra os portugueses, e o modo como procederam na batalha do Canal, retirando-se apressados para não lutar, enquanto o exército lusitano os seguia sem descanso, dava a prova deste temor, que não se verificava no exército castelhano contra outras nações. Grande “império na opinião”, considerara o periódico parágrafos antes, tinha o fato de a fortuna colocar-se sempre ao lado dos portugueses. E era justamente este império que Antonio de Sousa de Macedo procurava auferir, através do Mercurio Portuguez, para o governo que representava. A operação de interpretar os dados apresentados, dentre os seis conjuntos de fatores que determinavam o sucesso na guerra, sempre a favor do lado português da contenda, era com certeza uma estratégia discursiva importante para alcançar tal império, pois trabalhava diretamente com as expectativas dos leitores a respeito do futuro do conflito. Mas o que era mais fundamental para Macedo, como se pode perceber em cada detalhe deste prognóstico otimista para o ano de 1664, era demonstrar que, já que o futuro era determinado não por alinhamentos estelares, mas pelo arbítrio humano, a superação da posição de inferioridade militar que Portugal vivera nas últimas décadas em relação a seu rival naquela guerra era a grande conquista dos homens que se colocaram no poder através do golpe palaciano de 1662, ao lado de D. Afonso VI. Já se pode perceber, portanto, como a mudança de um discurso de superação para o de superioridade militar observado na narrativa de guerra do Mercurio Portuguez entre 1663 e 1664, embora tenha encontrado bons suportes nos sucessos militares narrados, partia antes da preocupação em demonstrar os resultados efetivos da política militar levada a cabo pelo governo, e divulgada em suas páginas. Para tal apontavam as notícias ali divulgadas sobre a eficiência nos preparativos de guerra, com este objetivo se apresentava em detalhes o novo contrato de provimento do Alentejo celebrado em 1663. E era esta impressão que se procurava alcançar com tais prognósticos, juízos, no fundo, sobre o impacto das ações políticas de ambos os lados da guerra em seu desenvolvimento. Era o mau governo castelhano que, além de dedicado a uma guerra injusta, fazia com que elementos como um exército mais numeroso, uma maior produção de víveres e uma maior quantidade de dinheiro empenhado não se revertessem na vitória esperada desde a paz dos Pirineus em 1659, e que via agora seu Estado afogado em dívidas, tendo que arriscar o futuro de seu comércio para manter viva aquela guerra, depauperando sua própria população, 154 que clamava por paz. Do outro lado, era o governo português o responsável pelo aproveitamento máximo de finanças nem tão vultosas, pela eficiência na condução dos mantimentos às terras de fronteira, não precisando para tanto assolar os Povos como se fazia em Castela, e nem gerando qualquer descontentamento que ferisse o ânimo daqueles soldados que lutavam para defender sua pátria, seu rei, sua fazenda, sua liberdade e sua honra. Isto dizia o Mercurio, e nitidamente suas críticas ao governo castelhano, às vezes com mais pujança do que seus elogios ao governo português, dissimuladamente referiam e contestavam as que eram feitas ao modo como o conde de Castelo Melhor se apoderava do comando do reino, desrespeitava hierarquias militares e marginalizava instituições tradicionais da esfera de decisão política. A este fim serviam os comentários sobre o governo castelhano, em que, como em um jogo de espelhos, o secretário de Estado português fazia refletir sobre o inimigo externo as críticas que lhe eram feitas pelo inimigo interno. Neste sentido, a forma como concluiu o prognóstico daquele ano é reveladora: Parece que dos antecedentes propostos se infere bẽ que entre os males da guerra, sempre communs a ambas as partes, posto que Portugal padeça, està Castella de muito peor condição; & que podemos pronosticar gloriosos successos ás Armas Portuguesas. Os mesmo Castelhanos lhos pronosticão, & Povos, & Ministros gritão por paz. Só o Conde de Castrilho, que tudo governa, lhes persuade que tentem outra vez a fortuna nesta campanha, com o dinheiro das consignaçoẽs alheas com que se levantou, como fica dito; & que os Portugueses sempre aceitaraõ a paz cada vez que lha der Castella. Mas enganase, porque os empenhos, & interesses de Portugal com outros principes a poderáõ impedir, & quando lha concedamos serâ com as condiçoẽs a que os reduzir seu Estado.308 Ao considerar que os males da guerra são sempre sofridos por todos os povos envolvidos, Macedo construía seu argumento de que era inevitável que Portugal os padecesse, mas mais importante era enfatizar que Castela os sofria em maior grau. E que as causas pelas quais ali se podia fazer um prognóstico positivo para o desempenho português na próxima campanha eram conhecidas pelos próprios castelhanos, que antevendo a derrota próxima já clamavam por paz, tanto os Povos como os ministros. O mau governo castelhano, a partir daí, passa a ser identificado com a proeminência de um de seus políticos, o conde de Castrilho, com que se cria um óbvio contraponto à atuação em Portugal do conde de Castelo Melhor. Se este representava, como o discurso do Mercurio procurava enunciar, uma prática política calcada na razão e na discussão acerca dos melhores meios para a preservação da autonomia do reino, e vinha colhendo os resultados de uma reforma saneadora da distribuição das finanças e investimentos militares, Castrilho é apresentado como o valido, “que tudo 308 Ibid. fol. 5r. 155 governa”, responsável pessoalmente pela insensatez de Castela em continuar se endividando em nome de uma guerra injusta, e cada vez mais injusta e nefasta para sua própria população. A diferença de conduta entre os dois políticos Macedo procurava destacar através da transformação na relação de forças que, segundo seu periódico, vinha se evidenciando nos últimos movimentos da guerra: se no início de 1663 jactava-se em dizer que ambos os lados desejavam igualmente a paz, já em 1664 anunciava que um tratado de paz talvez já não fosse o melhor negócio para os portugueses, em vista de possíveis alianças com outros príncipes – o secretário de Estado referia-se, com conhecimento de causa, ao interesse do governo francês de Luis XIV em que a guerra peninsular se mantivesse acesa – e que, se o fosse, talvez Castela só o conseguisse mediante a cessão de parte de seu território, certamente apontando aqui para a conquista da Galícia, cuja realização, ou ao menos sua ameaça, parece ter constituído definitivamente parte da agenda militar e diplomática de Lisboa a partir do governo de D. Afonso VI309. 4.2 ESTADO E DISCURSO, POLÍTICA E TIPOGRAFIAS É inegável, portanto, como se buscou demonstrar até aqui, que, como seria esperado de um discurso monárquico acerca da guerra, o Mercurio Portuguez, como pano de fundo de suas narrativas de eventos militares, e mais objetivamente através de sua abordagem das medidas tomadas pelo governo português no direcionamento da guerra da Restauração, tecia uma forte ligação entre o Estado e o exercício da guerra. Decerto não poderia ser diferente em uma época em que, de acordo com a historiografia caracterizada no início deste capítulo, o fortalecimento dos Estados em várias regiões européias vinculava-se de maneira estreita ao controle das atividades militares, e possibilitava o redimensionamento, revolucionário sob tal ótica, do seu volume, de sua presença na sociedade e de impacto nas transformações presenciadas nos últimos cem anos. Neste sentido, a possibilidade de tal discurso no periódico de Antonio de Sousa de Macedo pode ser considerada fruto de tais transformações. Mais difícil, porém, é concluir que elas tenham constituído a motivação de sua escrita. Havendo-se detectado que o Mercurio procurou debater e responder a problemas tão objetivos e específicos da conjuntura política portuguesa daqueles últimos anos da Restauração, analisadas as nuances e mudanças no discurso embutido em sua narração da guerra – 309 Cf., entre outras obras que comentam a política de Luís XIV para Portugal, bem como a questão da utilização diplomática da pressão na Galícia: VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640~1680. Guerra, conflicto y poderes en la monaqrquía hispânica. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1998; CARDIM, Pedro, e XAVIER, Ângela Barreto. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. 156 sondadas as questões políticas que as causaram – e compreendido o modo como o periódico vinculou as vitórias nos campos de batalha a determinadas práticas políticas, pode-se já desconfiar da direção unívoca que Rui Bebiano atribui às gazetas, relações e panfletos publicados em Portugal desde o golpe de dezembro de 1640, que de acordo com ele seria inclusive a mesma em todas as publicações européias deste cariz. Como é normal em análises historiográficas de largos conjuntos de documentos, Bebiano, embora afirme haverem diferenças entre os vários impressos categorizados como discurso monárquico acerca da guerra, deixa de analisar o modo como tais diferenças dificultam uma caracterização tão homogênea. Assim, é a semelhança e não o contraste entre a Gazeta e o Mercurio que define sua interpretação, e os inconvenientes deste método tornamse ainda mais aparentes em suas conclusões sobre os panfletos do período. Ao tratar deles, o autor destaca em primeiro lugar as semelhanças de seu aspecto gráfico, sempre bastante simples e barato, bem como do freqüente anonimato de seus escritores. Adentrando assim no problema da autoria dos panfletos, Bebiano declara que sua qualidade era entretanto “muito diversificada”, incluindo autores de “formação, pendor literário e interesses extremamente amplos e até divergentes”310, englobando desde letrados e clérigos até militares, nobres, mestres universitários e membros da administração régia. Com interesses divergentes, tendese a concluir, a função de tais panfletos não poderia ser a mesma. Mas Bebiano retrocede: A dimensão polígrafa do conjunto da obra escrita de muitos deles é, entretanto, pormenor de importância, uma vez que, para além da pluralidade de interesses que possa revelar – comum aliás, para além das particularidades de cada uma das culturas nacionais, a uma boa parte dos intelectuais da época – denuncia também, no contexto das lutas que a Restauração impunha, a coincidência dos entusiasmos verificáveis na maioria dos meios que se encontravam empenhados na prática da escrita, com os propósitos, tomados como nacionais, que o poder monárquico ia então consubstanciando.311 Torna-se evidente nesta passagem o modo como a definição global de um discurso monárquico acerca da guerra precisa subestimar a variedade, e até a divergência de propósitos encontrada em tão grande conjunto de impressos, pela forma arbitrária pela qual Bebiano sobrepõe à pluralidade de interesses verificadas nos panfletos portugueses uma improvável “coincidência dos entusiasmos” imposta pelas lutas da Restauração. O comentário fugidio com que o historiador afasta a mesma pluralidade de seu escopo interpretativo, afirmando que ela era comum aos intelectuais da época, não pode ser suficiente para fazer esquecer que as divergências de propósitos daqueles diferentes escritores de panfletos, 310 Bebiano, R. A Pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra: Edições Minerva, 2000. p. 231 [grifo meu] 311 Ibid. loc. cit. 157 relações e periódicos atuaram decisivamente na definição das particularidades e mudanças vividas por tal poder monárquico, descrito ali como um progressivo consubstanciador de vontades. Ora, os meandros do discurso político publicizado pelo Mercurio Portuguez trazem indícios de um processo histórico bem menos linear de formação do Estado português do parece o de que Bebiano parece partir para analisar a escrita sobre a guerra no século XVII. Com efeito, espera-se ter demonstrado aqui como a atenção aos aspectos da conturbada conjuntura política em que se insere a publicação daquele periódico é requisito fundamental para a compreensão de suas intenções no terreno do discurso, e ainda mais para a de seu papel no terreno da política. A cada nova militar trazida pelo Mercurio Portuguez, a cada seu enfoque sobre as medidas realizadas pelo monarca e seus ministros, fossem elas abordadas diretamente com o anúncio da assunção de uma nova estratégia militar, da efetivação de uma nova organização do investimento logístico, ou mesmo do pagamento aos soldados, fossem indiretamente através da comparação com os erros castelhanos, mais do que comprovar uma ligação intrínseca e primeva entre o poder monárquico e o exercício da guerra, o que estava principalmente em jogo para Antonio de Sousa de Macedo era divulgar uma relação de causa eficiente entre as práticas e a visão política do novo governo e as vitórias que vinham sendo alcançadas pelo exército português nos campos de batalha. Desta forma, as observações e conclusões delineadas pelo presente trabalho apontam já para a pertinência do estudo destes impressos ligeiros produzidos durante a Restauração, não no sentido da comprovação de uma estratégia do Estado, uniforme ao longo do período, de mobilização das vontades em consonância com o propósito, também contínuo, de alargamento da esfera de ação do poder monárquico, mas sim em direção a uma melhor definição dos conflitos políticos que conduziram a formação da política e do Estado portugueses desde o golpe de 1640. Uma pertinência aliás estimulante, pois, como indica o trabalho de Rui Bebiano, o enfoque sobre tais publicações dirige o olhar historiográfico para um aspecto ainda não suficientemente considerado pelos estudiosos do período em Portugal, qual era o recurso às tipografias enquanto ação política, prática que atinge grandes proporções durante as décadas restauracionistas. Mais uma vez, porém, a abordagem de Bebiano sobre este aspecto, com vistas a fundamentar institucionalmente o desenvolvimento histórico daquele discurso monárquico português, considera uma dimensão unívoca e progressiva da relação entre o Estado e as tipografias, tendente a menosprezar possíveis variações e conflitos. É justamente na seção “Definição de um discurso monárquico” de seu livro que o historiador inicia suas 158 considerações acerca da instalação e funcionamento das tipografias em Portugal, citando as mais importantes e seus proprietários, e comentando já que essencialmente localizavam-se em Lisboa, e que viviam “numa relação de dependência inequívoca e absoluta em relação aos grandes poderes instituídos”312. Uma afirmação forte, e melhor explanada adiante, quando se analisa a forma como a designação de um impressor régio, ao lado da ação dos mecanismos de censura, teria materializado tal dependência: Porém, a expressão superior deste resguardo e desta orientação criteriosa do trabalho tipográfico encontra-se consignada na designação expressa de um impressor régio, o qual fica dotado do privilégio de publicação das leis, dos regimentos e de toda a sorte de obras que as instâncias do paço entendessem dever fazer publicar, desde relações dos principais eventos da monarquia a lembranças históricas de feitos, descrições do território sobre o qual exerce o rei a sua capacidade soberana ou ainda a obras de arte militar. Desde os tempos da actividade de Valentim Fernandes, passando pela de Germão Galharde, João de Barreira, Pedro Craesbeck, António Craesbeck de Melo, Miguel Deslandes, ou, já em pleno século XVIII, do filho deste, Valentim da Costa Deslandes, tal como dos proprietários da Oficina Régia Silviana, que se encontrava, assim, directamente assegurada a comunicação impressa do discurso que a monarquia considerava admissível ou conveniente, a qual seria posterior e definitivamente estabilizada com a fundação, por alvará de 24 de Dezembro de 1768, da Régia Oficina Tipográfica, depois designada como Impressão Régia. Além disso, a continuada nomeação, por parte do soberano, de determinados encadernadores e livreiros para desenvolverem a sua actividade como fornecedores e funcionários da sua casa, de uma forma frequentemente reforçada por laços profissionais que passavam de geração a geração, desenvolveria e completaria de uma maneira perfeita esta ligação. Ela será, pois, fundamental para o lançamento controlado, a partir de 1640, do processo de veiculação ritualizada da imagem do poder da monarquia e dos aspectos de uma realidade que este se propunha conduzir e moldar em plenitude.313 A eleição de um impressor régio, desta forma descrita, surge como uma estratégia de ingerência das atividades tipográficas desde suas origens, e seu desenvolvimento histórico uma linear e ininterrupta consolidação deste controle monárquico, principalmente a partir da restauração do trono português. Uma “continuada nomeação”, ainda mais forte quando o soberano conseguia aproveitar, e ajudar a produzir, laços profissionais que atravessavam gerações de uma mesma família, que teria possibilitado uma cada vez mais eficiente divulgação do poder monárquico, e até dos aspectos da realidade que este pretendia moldar. A grande dificuldade deste tipo de proposição pode ser detectada no modo como o personagem designado ora como “soberano”, ora como “poder da monarquia” e correlatos, adquire na expressão de Bebiano o estatuto de um sujeito histórico regular, estável e unitário, além de privilegiado. Assim, o “soberano” molda, conduz, nomeia, como se se tratasse sempre do mesmo e coerente agente histórico, quando na verdade trata-se ali de alguns séculos de história da monarquia portuguesa. Só para o período da guerra da Restauração, por detrás do 312 313 Ibid. p. 219. Ibid. p. 223. 159 sempre soberano escondem-se dois reis e dois regentes, e uma série inumerável de secretários, conselheiros, presidentes, inquisidores, desembargadores, entre outros cargos nomeados pelos diferentes governos do Portugal restaurado. Mais significativo, porém, para os propósitos do presente trabalho, é notar a ausência neste parágrafo de Henrique Valente de Oliveira, cuja oficina tipográfica publicou os exemplares do Mercurio Portuguez nos seus três primeiros anos. Não é decerto o único impressor delRey não citado nesta lista de Rui Bebiano, e nem o historiador deixou de referilo posteriormente como o impressor do Mercurio; porém, seu livro faz crer ter apenas ele se encarregado desta empreitada314, e não revela em qualquer momento que a esta altura Henrique Valente ocupava a função de impressor régio. Se a omissão não foi consciente, não se pode negar que foi bastante conveniente para os fundamentos de sua interpretação, já que o nome do impressor deveria ser citado justamente entre os dois Craesbeecks, Pedro e Antonio, considerados por Bebiano um caso exemplar da estreita dependência dos impressores com o poder constituído fortalecida por laços familiares315. Henrique Valente de Oliveira, que ao que consta não herdou da família sua oficina tipográfica, iniciou suas atividades impressoras na década de 1650, e tinha em torno de 35 anos quando contra si foi instaurado um processo do Tribunal do Santo Ofício, por acusação de impressão clandestina. De acordo com a descrição do processo depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, seus trâmites foram longos, iniciados em agosto de 1655 e encerrados em janeiro de 1658, tendo sido o réu sentenciado em auto de fé no dia 19 de novembro de 1657316. Curiosamente não obstante, é a partir de 1656 que o volume de suas publicações começa a crescer, mesmo ano em que imprime o folheto com a fala de Antonio de Sousa de Macedo na ocasião do juramento de D. Afonso VI317. Saíram de sua oficina, desde então, obras de diversos gêneros e formatos, desde cartas, discursos e sermões até histórias, rimas e relações as mais variadas, até que no ano de 1659 Henrique Valente já 314 Em sua caracterização do Mercurio, comenta: “Foram todos os seus exemplares compostos a partir da tipografia de Henrique Valente de Oliveira”. Ibid. p. 227. 315 Sobre as atividades da família Craesbeeck, ver D’ALCOCHETE. Nuno Daupias. L’Officina Craeesbeeckiana de Lisbonne. In: Arquivos do Centro Cultural Português. Paris: v. 11, pp. 601-637, 1975; alguns documentos e informações sobre a vida e atividades de Paulo Craesbeeck e Antonio Craesbeeck de Melo encontram-se respectivamente em DESLANDES, Venâncio. Documentos para a história da tipografia portuguesa nos séculos XVI e XVII. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988. pp. 217-220; 243-246. 316 Processo de Henrique Valente de Oliveira. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo 10646. Os limites geográficos impostos à pesquisa desta dissertação impediram o contato direto com o processo, sendo possível apenas seu conhecimento através do sítio eletrônico fundado pelo projeto Torre do Tombo Online: http://ttonline.dgarq.gov.pt/. Acesso em: 28 fev. 2009. 317 MACEDO, Antonio de Sousa de. Falla que fez o D. Antonio de Sousa de Macedo, do Conselho da Fazenda de Sua Magestade, no Juramento de Rey do muito Alto, e muito Poderoso Dom Affonso VI. nosso Senhor. Lisboa: Na Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1656. 160 preenche o cargo de impressor régio318. Já nesta condição, é mantido o vínculo de sua oficina com os escritos de Antonio de Sousa de Macedo, com a publicação do suas Decisiones Supremi em 1660319, e de sua relação sobre as festas lisboetas em comemoração ao casamento da infanta D. Catarina com o rei Carlos II da Inglaterra320 em 1662, aliança revigorada então no mesmo ano por sua nomeação como secretário de Estado de D. Afonso VI. Entre 1663 e 1665, são impressos por Henrique Valente de Oliveira não só as edições mensais do Mercurio Portuguez, assim como as relações de batalhas analisadas aqui anteriormente, entre outras que narravam os mesmos feitos, mas também obras de bastante diverso cariz, como vilancicos, sermões, certames de academias literárias, entre muitos poemas, discursos e obras de maior volume. A edição do Mercurio sobre janeiro de 1666, porém, já saía da oficina de Domingos Carneiro. Neste ano, ao que tudo indica a atividade impressora de Henrique Valente se encerra, havendo nele publicado apenas os vilancicos cantados no dia de reis na Capela Real321, e o primeiro volume de uma nova edição da Ásia Portuguesa de Manuel de Faria e Sousa322. Os outros dois volumes desta obra seriam impressos apenas em 1674 e 1675, já por Antonio Craesbeeck de Melo, impressor régio desde 1666, tendo publicado inclusive, já nesta função, as edições do Mercurio Portuguez – já de outro e desconhecido autor – entre fevereiro e julho de 1667, que seriam as últimas323. Enquanto era Henrique Valente ainda impressor delRey, Craesbeeck de Melo fora nomeado impressor de Sua Alteza, cargo ligado portanto à 318 Cf. DESLANDES, V. op. cit. pp. 236-237. MACEDO, A. S. Decisiones Supremi Senatus Justitiae Lusitaniae, & Supremi Consilii Fisci, ac patrimonii Regis : cum gravissimis Collegis decretae, ac in lucem editae . Ulissippone: ex praelo Henrici Valente de Oliveira Typographi Regii, 1660. 320 Relación de las fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de Portugal Doña Catalina (ya Reiyna de la Gran Bretaña) con el Serenissimo Rey de la Gran Bretaña Carlos segundo deste nombre. Y todo lo que sucedió hasta embarcarse para Inglatierra Lisboa: En la Officina de Henrique Valente de Oliveira Impressor delRey N. S., 1662. 321 Villancicos que se cantarão na Capella do muito alto, & poderoso Rey D. Affonso VI. Nosso Senhor. Nas Matinas, e Festa dos Reys. Lisboa : na Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1666. 322 SOUSA, Manuel de Faria e. Asia Portuguesa Tomo I. Lisboa: en la Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1666. 323 As edições de 1667 do Mercurio Portuguez, portanto, além da saída de Antonio de Sousa de Macedo, trazem ainda novas mudanças de impressor. Domingos Carneiro vinha sendo o responsável por sua impressão desde a edição de janeiro de 1666, mas já o número sobre janeiro de 1667 sairia da oficina de João da Costa, e a partir de fevereiro, como fica dito, passa para Antonio Craesbeeck de Melo, já designado como impressor delRey. Este período de publicação, de fato, não foi analisado pelo presente estudo, pois se pretendeu traçar uma análise de conjunto do discurso publicizado por Antonio de Sousa de Macedo através do periódico. Os números de 1667, saídos de anônima pena, apresentam uma linguagem mais rebuscada e empolada, já com uma postura bastante diferente da impressa por Antonio de Sousa de Macedo nos seus quatro anos à frente do periódico. Embora não se possa negar que estes últimos seis meses do Mercurio, até pelas transformações que representam, não acrescentassem novos pontos para os debates que aqui vêm sendo levantados, mas os limites, mesmo temporais, desta pesquisa impuseram manter como recorte do corpus a autoria de Macedo, evitando inclusive adentrar nos conflitos políticos de 1667, que afinal o retiraram, não só do periódico, mas da posição política que ocupava, e mesmo da cidade de Lisboa. 319 161 casa do infante D. Pedro, instituída pelo governo de D. Luisa de Gusmão meses antes do golpe de 1662. Tal designação aparece já em algumas das obras publicadas pelo impressor em 1663, como uma reedição dos Lusíadas comentados por João Franco Barreto324. E este impressor de Sua Alteza, antes de tornar-se o de Sua Majestade, seria o responsável ainda pela publicação de obras que de alguma forma colocavam-se em terreno oposto ao governo de D. Afonso VI. No ano de 1665, por exemplo, sairia de sua oficina o sermão pregado pelo frei Cristóvão de Almeida nas exéquias do conde de Soure, D. João da Costa325, desterrado para Loulé em 25 de agosto de 1662326, morto por doença no início de 1664 sem ter voltado a Lisboa327. Em 1666 seria também Craesbeeck a publicar a Epitome da vida e acçoens de Dom Pedro entre os reys de Castella, o primeiro deste nome328, juntamente com um Panegirico ao serenissimo rey D. João o IV restaurador do reyno lusitano329, obras do já comentado João Nunes da Cunha, futuro conde de São Vicente, na altura de sua nomeação como Vice-rei do Estado da Índia, o que o conde da Ericeira interpretou anos depois como a forma que o governo finalmente alcançou para livrar-se de um antigo opositor, que àquela altura havia se aproximado do infante D. Pedro330. Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim, na mais recente biografia de D. Afonso VI, também destacam que João Nunes da Cunha se colocou “desde o início, no partido do infante D. Pedro”331, que sua nomeação para Vice-rei “mais pode ser visto como uma punição – um desterro simbólico – do que uma promoção”332, e que a publicação destes dois livros, escritos entre 1663 e 1665, “aparentemente inócuos”, não deixava de provocar de alguma forma aquele governo: 324 CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas: com os argumentos do Ldo João Franco Barreto: com hum Epitome de sua vida. Lisboa: a custa de Antonio Craesbeeck de Mello, impressor de Sua Alteza, 1663. 325 ALMEIDA, Cristóvão. Sermam nas exequias do Conde de Soure. Pregado no Collegio de S. Agostinho desta cidade de Lisboa no anno de 1664. Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1665. 326 D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. p. 68. 327 Ibid. pp. 195-196. A posição central ocupada pelo conde de Soure entre determinado grupo de opositores do governo de D. Afonso VI pode ser dimensionada pela reverência com que a crônica do conde da Ericeira sempre trata de suas participações no exército, na política e na diplomacia portuguesa, que culmina com o elogio posto na seqüência da referência à morte de D. João da Costa. Cf. ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 1945-46. v. 4, pp. 243-247. 328 CUNHA, João Nunes da. Epitome da vida, e acçoens de Dom Pedro entre os reys de Castella o primeiro deste nome. Lisboa: na officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1666. 329 Id. Panegirico ao Serenissimo Rey D. João o IV. restaurador do Reyno Lusitano. Lisboa: na officina de António Craesbeeck de Mello, 1666. 330 O modo como Ericeira descreve as motivações que moveram os conflitos políticos da década de 1660 é sempre eivado dos sentimentos ligados a laços de amizade, com que tradicionalmente a fidalguia portuguesa representava suas alianças, e neste caso não seria diferente. De acordo com sua crônica, Cunha teria sido nomeado Vice-rei e enviado à Índia “tanto em benefício daquele Estado pelas singulares virtudes de que era composto, quanto pelo ciúme que causava aos ministros a assistência que fazia ao infante”: ERICEIRA, L. M., conde da. op. cit. v. 4, p. 371. 331 CARDIM, P., e XAVIER, A. B. op. cit. . p. 163. 332 Ibid. p. 156. 162 ”Repletas de muitas advertências sobre a governação, estas duas obras mostram bem que a literatura possuía, na época, uma valência política aproveitada por muitos”333. Antes, porém, destes três livros, em 1664, já havia publicado o Retrato de Prudentes, Espelho de Ignorantes, do jesuíta Francisco Ayres, obra que, dissimulada em preceitos de ascese, e elogios da verdadeira prudência cristã, fazia eco às críticas disseminadas contra o valimento do conde de Castelo Melhor, principalmente quando aplicava seus ensinamentos na descrição de uma oposição entre dois tipos de valido, um imbuído do amor divino, outro do mundano, um que se governava por aquela prudência, outro apenas por sua vontade e busca de prazeres e poderes. O primeiro, pretendendo acima de tudo ser valido de Deus, alcançaria Sua graça; o segundo, desejando como bem mais precioso a amizade do rei, selava seu pacto com o Diabo e garantia o caminho de sua danação: Puderamos preguntar a hum destes, homem, se he licito darlhe este nome, que mal te fez Christo pois tantos agravos cometes contra elle? que bens recebes, ou esperas receber de Satanás, pois tanto fazes por seres de sua parcialidade? responder-meha que ama a Christo, & que arrenega do demonio, porém hũa couza affirma com a boca, & outra mostra com as obras, pois muitas vezes, por conservar a amizade do amigo quebra com Deos, sendo que nunca o homem deve ter por amigo, o que o faz inimigo de Deos.334 Embora não se possa ainda, precipitadamente a partir de informações assim esparsas e incompletas, tirar delas qualquer conclusão sobre a relação entre as tipografias e as facções políticas, nem sobre o significado político da mudança de impressores régios durante a Restauração, não deixa de ser inquietante notar como o impressor de Sua Alteza, que depois derrubaria o governo do irmão, publicava obras de dissimulada, mas nem por isso desapercebida, oposição ao mesmo governo, e também curioso o fato de que a transição de Craesbeeck daquele cargo para o de impressor de Sua Majestade parece antecipar a que concretizaria depois, com a transferência do poder régio para o infante D. Pedro. De qualquer, forma, tais especulações são já suficientes para que se aponte para a lacuna existente na 333 Ibid. p. 120. AYRES, Francisco. Retrato de Prudentes, Espelho de Ignorantes: aos primeiros alimento espiritual de bons acertos, aos segundos avizo de seus enganos. Lisboa: Na Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor de S. ALTEZA, 1664. p 264. Também os mais recentes biógrafos de D. Afonso VI interpretam o livro do padre Ayres como uma crítica ao escrivão da puridade. Tendo sido dedicado a Sebastião César de Meneses já afastado do governo, eles aventam a hipótese de que a oposição entre o valido prudente e o voluntarioso referia-se respectivamente a Meneses e Castelo Melhor. Cf. CARDIM, P., e XAVIER, A. B. op. cit. pp. 140-141. A tal hipótese pode-se acrescentar a informação de que foi durante o longo período compreendido pelos trâmites das licenças do livro – a primeira é de 12 de dezembro de 1662 e a última de 1 de abril de 1664 – que Sebastião César de Meneses teria sido acusado de traição e se retirado a um convento capuchino. Segundo o autor do manuscrito publicado por Eduardo Brazão, Meneses teria sido o articulador do retorno de Antonio Conti a Portugal em junho de 1663, presença incômoda que Castelo Melhor tratou de manter fora de Lisboa; a 11 de julho o conde convocou os ministros da Junta da Inconfidência para instaurar devassa contra o arcebispo e inquisidor-geral, a partir de cartas encontradas entre as bagagens do exército castelhano derrotado em Évora que indicariam comunicações suas com Castela. Cf. D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 150-160. 334 163 historiografia a respeito destas tipografias, seus donos, seus financiadores e suas relações com o Estado, assim como bastam para que se ponha em questão a visão de Bebiano de uma progressão linear do controle exercido pelo “soberano” sobre as oficinas, sempre alcançando o sucesso na medida de seus interesses. Com efeito, perguntar pelo papel desempenhado pelas tipografias na política portuguesa significa adentrar em um dos terrenos mais estimulantes trabalhados pela historiografia das últimas décadas sobre a Europa moderna, que é o das transformações provocadas nos mais diversos setores da vida e da cultura européias pela invenção de Gutenberg e pela sua variada utilização pelos homens que o sucederam. Em estudo pioneiro, Elizabeth Eisenstein, de maneira bastante inovadora e provocativa, situou o impacto do surgimento da tipografia na base de três das mais importantes transformações culturais da Europa moderna: a expansão do Renascimento, a consolidação da Reforma protestante, e o caráter renovador da chamada Revolução Científica do século XVII. Embora em vários momentos Eisenstein tenha demonstrado o efeito impulsionador da instalação de oficinas impressoras para tais processos históricos, sua tese mais modesta é a de que eles não poderiam ter alcançado tamanho impacto na Europa moderna se não existissem as tipografias e as novas formas de produção e circulação de textos e imagens que foram suas primeiras conseqüências335. Desta forma, a autora retirou o estudo sobre o desenvolvimento desta tecnologia de um nicho apenas voltado para a descrição de evoluções técnicas, e o alçou em definitivo para o âmbito do debate acerca das transformações e conflitos que marcaram a Europa a partir do século XV, constituindo-o como elemento incontornável para a sua compreensão, embora talvez nem tão preponderante como ela pretendeu indicar. O maior empenho de Elizabeth Eisenstein foi o da caracterização das conseqüências inerentes ao surgimento da imprensa, tais quais: a disseminação ampliada dos produtos culturais abrangidos por tal tecnologia, com aumento da produção e alterações na recepção; o alcance de maior padronização, e seus efeitos para as trocas culturais entre as diversas regiões e períodos da Europa; a partir daí, a racionalização, codificação de catalogação e um novo processo de coleta de dados, e um grande incremento no poder de preservação, trazendo fixidez e mudança cumulativas, e a persistência de estereótipos, clichês, bem como de divisões sócio-lingüísticas. Estas transformações, encaradas como inevitáveis, é que foram então aplicadas na proposição de novas abordagens para aqueles três emblemáticos conjuntos de eventos que marcaram a era moderna. Menos atenção, porém, a autora dedicou à análise 335 Cf. EISENSTEIN, Elizabeth. A revolução da cultura impressa. Os primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1998. 164 das novas relações sociais engendradas pela aliança entre a intelectualidade européia e os comerciantes e artesãos, que se dedicaram conjuntamente ao desenvolvimento da cultura impressa, e também às diversas conformações desta cultura em meio à formação de diversos Estados e à transformação de suas instituições e de sua capacidade de intervenção social. Em relação à primeira questão, de fato Eisenstein esboça alguma interpretação, e tenta demonstrar o quão nova no contexto europeu seria aquela nova figura do impressor, sujeito socialmente posicionado entre as conjunturas do mercado e as do conhecimento e da cultura, e identifica-o como agente fundamental da revolução anunciada no titulo de sua obra. Porém sua pesquisa não se debruçou, como nos outros temas, sobre dados e casos que representassem as particularidades e as variantes do papel desempenhado por este novo ator social, de modo que sua abordagem conclui pela identificação da necessidade de novos desenvolvimentos e aprofundamentos336. Já acerca do problema da relação com os Estados, seus comentários são ainda mais esparsos. Em primeiro lugar, há aquela afirmação da imprensa enquanto estabilizadora e acirrante das divisões sócio-lingüísticas que fortaleceriam as fronteiras em que cada um dos Estados se desenvolveu337. Em momentos posteriores, Eisenstein relembra, já se baseando em estudos anteriores ao seu338, que a circulação de impressos e gravuras permitiu às dinastias reinantes uma nova forma de veiculação de retratos dos governantes, estendendo o alcance de seu carisma, e novas maneiras também de publicar os seus propósitos políticos, dando exemplos como os das atuações neste sentido de Richelieu na França, Henrique VIII e Thomas Cromwell na Inglaterra e Filipe II na Espanha339. Por 336 Cf. Ibid. pp. 109-125. Ibid. pp. 98-99. 338 Principalmente o livro da década de 1970 de Joseph KLAITS, sobre a propaganda monárquica na França de Luís XIV, a que infelizmente a presente pesquisa teve acesso apenas através das referências de Eisenstein. A passagem que a autora cita da obra de Klaits, sendo transcrita aqui, indicará sua relevância para o estudo de impressos como o Mercurio Portuguez: “Os príncipes, que até então só haviam utilizado os incômodos métodos do manuscrito para comunicar-se com seus súditos, aderiram rapidamente à imprensa para anunciar declarações de guerra, divulgar relatos de batalhas, promulgar tratados ou debater assuntos mais controversos, sob a forma de panfletos. Eram esforços no sentido de [...] “vencer a guerra psicológica que preparava e acompanhava as operações militares” dos monarcas [...] A coroa inglesa, sob Henrique VIII e Thomas Cromwell, utilizou-se sistematicamente tanto do Parlamento quanto da imprensa para conquistar o apoio público em favor da Reforma [...] Na França, a regência de Luís XIII assistiu à última reunião dos Estados Gerais antes de 1789; ela também viu a fundação do primeiro jornal patrocinado pela realeza na Europa. A substituição da volátil assembléia pela controlada Gazette semanal constitui um episódio da mesma época, sintomático da importância que o cardeal Richelieu atribuía à imprensa, nos seus desígnios de fortalecimento do poder do Estado.”: KLAITS, Joseph. Printed Propaganda under Louis XIV. Absolute Monarchy and Public Opinion. Princeton: Princeton University Press, 1976, apud: EISENSTEIN, E. op. cit. pp. 114-115. Percebe-se aí, embora uma passagem isolada seja pouco para qualquer afirmação, a tradição onde Rui Bebiano buscaria exemplos transpirenaicos de sua visão sobre a formação do poder monárquico em sua relação com o recurso às tipografias e suas relações, panfletos e periódicos. 339 Ibid. pp. 112-116; 179-181. Quanto a Filipe II, Eisenstein comenta apenas seu patrocínio na publicação de Bíblias, mas o historiador Fernando Bouza Alvarez posteriormente analisou seu intenso envolvimento com estratégias de propaganda impressa: Cf. ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Documentos antigos e imprensas novas 337 165 outro lado, a mesma imprensa teria sido utilizada para a efetivação do intento de contestação do poder do Estado, já que as tensões tradicionais entre corte, regiões rurais, e outros segmentos das populações européias foram exacerbadas a partir de então por verdadeiras guerras de propaganda340. Apesar disso, porém, a autora faz questão de afirmar que, em se tratando da revolução que a imprensa teve a capacidade de impulsionar, o fortalecimento de Estados centralizados em unidades políticas de maior dimensão territorial teria sido mais um obstáculo do que um terreno fértil para os impressores, tanto quanto o domínio exercido pelo catolicismo tridentino em determinadas regiões: Suas empresas floresciam melhor em reinos frouxamente federados do que em entidades fortemente consolidadas; em principados pequenos, mais do que em outros em expansão. As políticas de censura fizeram deles os opositores naturais não só das autoridades das igrejas, como dos burocratas, dos regulamentos e do papelório do mundo leigo. Como agentes independentes, eles atendiam os órgãos de publicidade e davam apoio dissimulado a uma “terceira força” que não se vinculava a qualquer Igreja ou Estado. Contudo, esta terceira força era obviamente relacionada com os interesses dos primeiros capitalistas da Era Moderna.341 Desta forma, Elizabeth Eisenstein demonstra como sua ênfase sobre os aspectos da cultura impressa das regiões em que ela a encontrou mais florescente constitui, afinal, limites para a observação da variedade de desenvolvimentos das relações entre as tipografias e os diferentes processos políticos vividos pela Europa moderna. Com efeito, como seu modelo de revolução cultural não se verifica em regiões como as da França, da península ibérica e de alguns Estados italianos, a autora tende a considerar tais espaços como de menor relevância para a compreensão do impacto causado pela imprensa. Porém, as considerações, por ela referidas, acerca da entrada transformadora das tipografias nas lutas políticas pelas quais se definiram as formações destes mesmos Estados indicam que este impacto não pode ser sumariamente subestimado. Até porque, como a mesma autora ressaltou, a própria natureza do homem enquanto animal político, com o advento da imprensa, “passaria a enquadrar-se menos dentro dos modelos clássicos, depois que os tribunos do povo deixaram de ser oradores em praças públicas para se transformarem em editores de folhetins informativos e de gazetas”342. Como o tipo de intervenção política levada a cabo por Antonio de Sousa de Macedo através do Mercurio Portuguez deixou claro ao longo do presente estudo, não foram só os tribunos do povo, mas também os arautos do governo e os escritores políticos transformaram-se em tais editores. na pretensão ao trono português. Sobre a propaganda escrita de D. Filipe I. In: ____. Portugal no tempo dos Filipes. Poder, cultura e representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, pp. 39-60, 2000. 340 Ibid. p.115. 341 EISENSTEIN, E. op. cit. pp. 197-198. 342 Ibid. p. 113. 166 Desde a publicação a obra de Eisenstein, e em muito inspirados por suas observações e provocações, uma série de novos estudos vêm sendo realizados procurando analisar o exercício político do século XVII, nas mais diferentes regiões e configurações políticas, enquanto atravessado pelos novos meios de atuação possibilitados pela expansão das tipografias. Tomadas em conjunto, tais obras343, embora sustentem diferentes visões acerca do nível de intervenção dos Estados nas sociedades européias de então, têm chamado atenção para o papel da imprensa enquanto formadora de dispositivos responsáveis em seus contextos pela articulação de um espaço público, e de uma opinião pública, que Jürgen Habermas teria considerado inviáveis em sua tese clássica acerca da esfera pública burguesa344. Da leitura desta historiografia pode-se ter a exata dimensão da extensão e importância da atividade tipográfica para uma substancial transformação do exercício da política que ocorria simultânea, mas não isoladamente por toda a Europa daquele século, e da variedade de estratégias de utilização desta tecnologia em meio aos conflitos políticos travados na Inglaterra, na França, na Monarquia Hispânica, nas Províncias Unidas, em diversos centros políticos da península itálica e do Sacro-Império, e até na Escandinávia. Em tão diferentes contextos históricos e geográficos, sobressaem sempre a disseminação de panfletos, relações e periódicos, e a constatação de que sua publicação, leitura e debate constituem já práticas que 343 Entre outras, são estas as que puderam ser consultadas pelo presente estudo: DUCCINI, H. L’État sur la place publique. Pamphlets et libelles dans la premiére moitié du XVII. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 289-300; CLAIR, Pierre. L’information au quotidien: discours politique et vision du monde dans le Mercure Français et quelques autres gazettes. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 301-334; DUCCINI, Hélène. Discours e realité sociale: le révèlateur des pamphlets. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 369-420; CUST, Richard. News and Politics in early 17th-century England. In: Past & Present. Oxford: Oxford University Press, n. 112, pp. 60-90, 1986; VIVO, Filippo de. Information and communication in Venice. Rethinking early modern politics. Oxford: Oxford University Press, 2007; todos os estudos antes reunidos por DOOLEY, Brendan, e BARON, Sabrina A (ed.). The Politics of Information in Early Modern Europe. Londres: Routledge, 2001; e alguns dos artigos publicados na revista Manuscrits. Revista d’história moderna. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, n. 23, 2005. 344 Cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. A saber, foi nesta obra que o filósofo alemão desenvolveu de forma mais geral sua interpretação sobre a sociedade que lhe é contemporânea, partindo da análise do percurso histórico da esfera pública e suas instituições, feitas politicamente atuantes a partir do século XVIII, e apropriadas, grosso modo, pela lógica de consumo a partir da segunda metade do século XIX. Seria apenas a partir do XVIII que Habermas identificaria a transformação da esfera pública, antes enquanto o espaço da representação do poder público, no que ele chama de esfera pública burguesa, o espaço politicamente atuante onde se reúnem as pessoas privadas, representantes de seus interesses privados, que neste período se tornam publicamente relevantes. Da mesma forma, e talvez de forma ainda mais rigorosa, o conceito de opinião pública é ali definido como surgido a partir de tal conjuntura; seria o nome designado à expressão mesma do discurso desta transformada esfera pública, da sociedade civil, demonstração objetiva de sua força e inserção na política moderna. A opinião pública, no entendimento de Habermas, surge na sociedade moderna, e ali, historicamente, se torna o princípio organizador do moderno Estado de Direito. Para o autor, o século XVII ainda herdaria sua concepção de esfera pública da Idade Média, enquanto espaço de representatividade pública do poder senhorial e, então, monárquico. Da mesma forma, não surgida ainda a concepção de opinião pública, o que se observa no período é a ocorrência da noção de opinião, enquanto opinião do vulgo, terreno incerto, necessariamente isento de capacidade de intervenção política, ou enquanto reputação, aquilo que se pretende difundir nos outros sobre si, ou sobre o princípio de poder vigente, por exemplo. 167 conformam a base de um passo crucial do estabelecimento da política moderna, transformando o exercício e o pensamento político em toda parte do continente europeu. Em um mundo em que os temas políticos são mais vasta e organizadamente publicizados, em que a opinião de leitores passa a ser o terreno objetivado pelo discurso político, os meios e os fins da política jamais seriam os mesmos. Diante do modo como a utilização dos novos meios de comunicação e o desenvolvimento de novas políticas de informação estiveram na base de uma transformação política de tal magnitude, não se pode mais concordar com a visão de Habermas sobre o espaço público do século XVII, em que se podia apenas vislumbrar ação do monarca de representação de seu poder ainda senhorial, diante de um corpo inerme de súditos incapazes de qualquer interferência significativa no modo como se praticava ou naquilo que se produzia socialmente através das práticas políticas integradas ao funcionamento do Estado. Mesmo a visão de Rui Bebiano sobre o discurso monárquico acerca da guerra, e principalmente o modo como descreve os objetivos e as formas de manipulação e controle das tipografias exercidas pelo Estado português da Restauração, parecem bastante carregados desta compreensão iluminista com que Habermas subentendeu as sociedades do Antigo Regime, ou do ponto de vista a partir do qual Elizabeth Eisenstein subestimou a vida política sob a égide de Estados suficientemente consolidados. Certamente não foi visualizando tais súditos e tal mundo político que Antonio de Sousa de Macedo escreveu suas edições do Mercurio Portuguez. De fato, a historiografia portuguesa das últimas décadas não se constituiu em terreno propício para a observação daquelas transformações políticas no século XVII português. A abordagem tradicional sobre a história da imprensa periódica em Portugal, onde se encontram talvez os primeiros comentários ao Mercurio Portuguez da historiografia portuguesa do século XX, teve sempre sua visão sobre os primeiros periódicos portugueses obnubilada pela consideração do advento de uma verdadeira liberdade de imprensa no Portugal posterior à Revolução do Porto, traçando assim em sua análise apenas a constatação depreciativa de seu caráter parcial345. Posteriormente, as questões debatidas por Luis Reis Torgal e Martim de Albuquerque, se significaram uma renovação nos estudos do pensamento político português 345 Cf. principalmente TENGARRINHA, José. A História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa: Portugalia Editora, 1965. pp. 35-39. Anteriormente, porém, algumas considerações sobre o período haviam sido feitas por MARTINS, Rocha. Pequena História da Imprensa Portuguesa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1941. pp. 17-26, e CUNHA, Alfredo da. Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa (1641-1821). Lisboa: 1941. pp. 35-63. 168 do XVII, ativeram-se sobremaneira ao terreno da história das idéias, não chegando a focalizar os impressos ligeiros do tempo e refletir sobre seu papel no exercício da política346. Este tema, afinal, encontrou espaço no livro de Diogo Ramada Curto sobre o discurso político português da primeira metade do século XVII. Isso porque, procurando analisar os dispositivos que conformaram a produção do discurso neste período, Curto identificou uma notável progressão do número de escritores e do recurso às tipografias, bem como uma multiplicação de funções do Estado perante a sociedade, e da variedade de instrumentos e agentes voltados para o exercício da política. Neste sentido, ter-se-ia ampliado significativamente o campo de atuação de produtores intelectuais no espaço público, definido justamente por suas relações com a produção e a transmissão de discursos políticos orais ou escritos, e haver-se-ia consolidado uma opinião pública enquanto alvo de tais discursos, que continha em si extratos sociais cada vez mais diversificados. Em poucas palavras, “na primeira metade do século XVII, assiste-se a uma diversificação das formas de participação e de acesso ao discurso político, entendendo este como discurso comprometido no processo de construção do Estado moderno”347. Embora muito mais preocupado em caracterizar as instituições e práticas culturais que condicionavam a produção dos discursos políticos seiscentistas do que em perceber de que modo eles integravam as disputas políticas daquele tempo, Diogo Ramada Curto ressaltou alguns aspectos da política portuguesa já bem mais adequados à compreensão do papel político de um periódico como o Mercurio Portuguez do que se fizera até então. Porém, a forma paradigmática como a obra Às vésperas do Leviathan, de Antonio Manuel Hespanha, marcou a partir da mesma época a historiografia portuguesa do Antigo Regime, refreou por algum tempo o prosseguimento da pesquisa sobre o ambiente político português da era moderna tal qual Curto o caracterizou. Com efeito, a análise de Hespanha do sistema político português do século XVII ao prender-se sobretudo, já que o autor considerou a jurisprudência como o âmago de tal sistema, às práticas e às instituições jurídicas que o regulavam, e ao negar capacidade de interferência na organização da política ao que ele chamou de alvitrismo político – associado ao arbitrium e não à prudentia, base de tal jurisprudentia – não deixava espaço para que se considerasse apropriado situar em tal sistema 346 Cf. TORGAL, L. R. op. cit., ALBUQUERQUE, M. op. cit., e ainda ALBUQUERQUE, M. Para uma teoria política do Barroco em Portugal: a Summa Política de Sebastião César de Meneses In: Estudos de Cultura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, v. 2, pp. 355-442, 2000. 347 CURTO, Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade Aberta, 1988. p. 137. 169 o conjunto de escritos ligeiros cuja publicação se intensificou durante alguns períodos da Restauração348. Ademais, Hespanha, ao definir a estreita área de ação da monarquia diante da autonomia dos demais corpos políticos, comenta como uma de suas atribuições o direito exclusivo que possuía de ostentar os símbolos reais, e como conseqüência conferir títulos, brasões e distinções superiores, indica que estes “desempenharam um papel determinante nos mecanismos de acumulação de capital simbólico desta época”349; logo adiante, ao tratar do deslocamento da estratégia política régia, a partir de meados do século XV, “para campos diversos do jurídico-jurisdicional, procurando construir espaços de produção de poder em que a sua situação fosse mais favorável”350, o oferecimento de benesses matérias e simbólicas é interpretado como o cerne da atuação da monarquia na busca por impor modelos de conduta. Sob esta ótica, mesmo algum espaço dentre os investimentos simbólicos do poder régio não parece ser adequado para se localizar o recurso do Estado às tipografias. Por sua vez, as transformações que foram identificadas, na introdução deste trabalho, na historiografia do Antigo Regime português nas duas décadas posteriores à publicação do livro de Hespanha, embora não tenham com muita ênfase abordado o papel das tipografias e suas publicações, ou a emergência de transformações no espaço público com que se poderia compreender tal papel, já não ignoram tais questões, nem sua dimensão politicamente relevante. Em um primeiro momento, o livro de Ângela Barreto Xavier sobre os debates políticos observados nas Cortes de 1668, trouxe já uma nota de pé de página em que se comenta a existência de pasquins na Lisboa no final do ano de 1667, já retirado D. Afonso VI do governo, e faz rápida referência ao fato de que alguma historiografia inglesa e francesa 348 Isso apesar das últimas frases da conclusão de seu livro: “A polarização do poder político numa entidade única, soberana erga exteros as súbditos – o tal Estado que Th. Hobbes personificou no Leviathan e cuja problematização constitui uma das linhas de força do pensamento político dos nossos dias – não se tinha ainda produzido. Alguns dos seus prenúncios são já visíveis, não tanto no plano prático-institucional. Mas nos tópicos e fórmulas que povoam a literatura política e social, cuja progressiva eficácia é favorecida, não só pelo paradigma teoricista do racionalismo, mas também pela reprodução alargada que a imprensa, a vulgarização dos hábitos de leitura e o abandono do latim como língua técnica garantem, agora, à mensagem escrita. O Leviathan não é, ainda, o sol do mundo político. Mas, entre nuvens e sombras, a sua aurora incerta distingue-se já”: HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 528. Por tal conclusão se podem colocar alguns problemas não trabalhados por Hespanha até aquele momento. Se tais elementos configuram os prenúncios de um Estado que ainda não existia, e se alguns deles já estavam, como no caso da imprensa, em desenvolvimento desde antes do século XVII, porque eles ainda não exerciam influência sobre a configuração do sistema político português, já que em algum momento passarão a exercer? Afinal, quando e por que passam a exercer? 349 Ibid. p. 491. 350 Ibid. p. 495. 170 vinha já considerando tais elementos como dispositivos de formação da opinião pública351. Já na biografia de D. Afonso VI produzida pela mesma autora e pelo historiador Pedro Cardim a aparição destes pasquins, bem como de relações impressas, e principalmente do Mercurio Portuguez, passa a ser bastante recorrente. Em diversos momentos surgem referências a notícias divulgadas pelo periódico de Antonio de Sousa de Macedo, e inclusive ao modo como elas ali se encontraram, pois tais referências prestam-se, em tal biografia, não apenas como fonte para informações não encontradas em outros registros, como também para evidenciar determinadas posturas adotadas pelo governo, e o Mercurio é designado ali como “o principal canal de propaganda do governo de Afonso VI”352. Desta forma, os dois autores parecem já, como ainda não se havia visto na historiografia portuguesa sobre o Antigo Regime, situar o periódico e outros impressos enquanto armas utilizadas em meio às tensões políticas ali analisadas. Outras duas considerações expostas na biografia do monarca, além de indicar importantes diferenças em relação ao modo como Antonio Hespanha construiu sua compreensão do funcionamento da política portuguesa, trazem ainda questões a que a análise até aqui realizada do Mercurio Portuguez pode ser remetida. Ao término de seus comentários sobre o golpe de 1662, os biógrafos expõem já um balanço do governo que o sucedeu: Não é injusto, aliás, denominar este governo que, num ápice de cinco anos, instituiu a desgraça de seu rei e a glória do reino – pois durante estes anos travaram-se as batalhas que permitiram assinar a paz com a Monarquia Hispânica – como um “governo vitorioso”. Do ponto de vista interno, essa vitória só se tornou possível, em nossa opinião, por se terem alterado alguns dos mecanismos de decisão política, por se ter verificado uma concentração de poder (tornando-o, efectivamente, mais autoritário) que tornou a acção política mais eficaz.353 É inegável como esta interpretação se distancia daquela visão em que a monarquia ocupava apenas um lugar preeminente em um sistema de corpos autônomos, limitadores de sua ação. De acordo com Cardim e Xavier, o governo de Castelo Melhor logrou uma considerável concentração de poder, responsável pela redefinição dos rumos da guerra. Os termos em que os biógrafos colocam o problema demonstram como o estudo detido sobre aspectos mais conjunturais da política portuguesa trazem à tona questões que poderiam ser consideradas anacrônicas pela ótica de Hespanha, fazendo inclusive relembrar os termos do debate, descrito na introdução deste trabalho, entre as posições representadas por Gastão de Melo de Matos e Antonio Álvaro Dória. Não se tratará aqui, obviamente, de demonstrar a 351 XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. pp. 34-35. Alguns dos autores já então citados em tal nota foram aqui também destacados, como Hélène Duccini, Pierre Clair e Richard Cust. 352 CARDIM, P. e XAVIER, A. B. op. cit. p. 119. 353 Ibid. p. 113. 171 partir desta opinião divulgada recentemente que o Mercurio, afinal, estava certo quando defendia que as práticas políticas do novo governo haviam virado a guerra para o lado português. Mas fica mais claro perceber que não era em vão que o periódico investia em tal discurso, confeccionando, como foi visto aqui, tanto em suas narrativas da guerra como em notícias mais propriamente acerca da política militar do governo. A questão de se o governo de D. Afonso VI vinha conduzindo bem ou não o esforço militar português era certamente um debate vivo dentro de Portugal, e em torno dele articulavam-se as alianças e rupturas que modificavam a cada passo o mundo político português. É nesta arena que a publicação do Mercurio Portuguez se insere, e a escolha por este tipo de atuação política não pode ser tida por ingênua ou casual. Fazia parte do modo como Antonio de Sousa de Macedo, e não só ele, compreendia o campo da ação política, bem como o ambiente social em que ela se dava. Uma outra consideração encontrada nesta biografia é bastante reveladora neste sentido. Vinham os dois autores comentando os conflitos que inflamavam a relação entre o governo régio e duas importantes instituições da cidade de Lisboa, o senado da câmara e a Casa dos Vinte e Quatro, principalmente quanto à gestão e cobrança de tributos, e conflitos de jurisdição, no mais das vezes ligados aos mesmos tributos. De maneira geral, as duas casas ofereciam variadas formas de resistência a mudanças impostas pelo governo no tocante aos impostos, além de protelarem uma série de pagamentos devidos. E quando questões financeiras atribulavam a política em Lisboa, os gestos políticos faziam-se extremamente significativos. Assim, a partir de 1663 o senado da câmara de Lisboa teria feito queixa em relação a uma iniciativa tida pelo escrivão da puridade de comunicação direta com a Casa dos Vinte e Quatro, a qual deveria tradicionalmente ser mediada pela própria câmara. O episódio que deu origem ao problema ocorreu logo em seguida à contenção dos tumultos que tomaram Lisboa após a queda de Évora, e é comentado pelo autor do manuscrito publicado por Eduardo Brazão: Seg.da fr.ª 28 foi o Conde de Castello Milhor a caza dos vinte e quatro (He hũa q tem no Hospital Real de Lix.ª onde o Juiz do povo com vinte e quatro homẽs, e seu escrivaõ eleitos dos officios da Cid.e se juntaõ a tratar do dir.to Civil da Rep.ca) Nella se assentou na Cadr.ª do juiz do povo q em outra poz a sua mão direita: e lhe propoz q.to Sua Mag.de estava agradecido à quietaçaõ com q o povo procedera despois do motim: declarou em q se tinhaõ gastado as somas de dr.o q se haviaõ cobrado, o como se provera o exercito como S. Mag.de e Alteza estavaõ dispostos a passar a Alentejo se necessr.º fosse q a deixava de fazer por não convir de prez.te: q a nobresa passaria logo: e por fazer mais benevolo o povo lhe levou hũ decreto p.lo qual Sua Mag.de habilitava p.ª seu serv.º e p.ª as honras aos filhos do Officiaes q fossem à caza: couza que antes não tinhaõ e so alcançaraõ outro de El Rey q está no Ceo porq lhe dezia ter Gr.de consideração a este respeito pª seus filhos serem despensados. Acção foi esta necessaria mas indecorosa pois se vio o valido em altura de Sapatr.º, e Alfayate dando satisfaçaõ aos outros, e naõ reparando a lhes criar huã comfiança de a esperarem e procurarem todas as vezes q lhes entrar o 172 fastio de algũa acção particular, ou do governo em comum, e huã demonstraçao não temeraria de Sobordinar a Mag.de ao povo; e q.m a disculpou mais com o temor do passado, e com o receyo do futuro naõ pode negar fora hũa couza m.to extraordinr.ª e nunca vista; pois em figura de Ministro Real naõ fora àquella caza ninguem, e q q.do era necess.º seu aprazim.to para tributos, ou semelhantes inpoziçoẽs se lhe communicava o negocio em a Camara. Mas não faltou travesso q dicesse q como o Conde de Castel Milhor alem do valim.to havia abrogado asi todos os officios da Caza Real, e dos Tribunaes queria unir tambem este da Cid.e e povo, por não haver couza em q não tivesse jurisdição e exercício. Devia este zelozo querer arguir a ambição do Conde: mas não devia saber, não tem ambiçaõ q.m he Senhor de tudo.354 A cada passo político mais ousado do escrivão da puridade, somavam-se as críticas ao abuso de poder que representavam. Neste caso específico, acusava-se a ampliação indecorosa da jurisdição do poder representado por Castelo Melhor e, de acordo com seus críticos, dominado por ele. Porém, o gesto, e o decreto trazido pelo conde, representavam não só o desrespeito aos trâmites tradicionais da política lisboeta, mas um nivelamento simbólico entre um ministro real e os representantes de mais baixos estratos sociais da cidade, além do alçamento da condição política destes, ao se habilitar os filhos dos membros da Casa para serviços e honras que lhes eram até aí inacessíveis. O comentário da biografia reflete sobre tal visão: um autor da época comentaria que essa ação tinha sido necessária mas indecorosa, pois nivelara o valido (os fidalgos?) ao sapateiro e ao alfaiate (...). Por outro lado, ao permitir que os filhos dos oficiais da casa – mecânicos – alcançassem postos e honras que anteriormente lhes estariam vedados, criava condições para uma maior homogeneização social.355 Assim como o Mercurio Portuguez nas edições de 1663, a iniciativa do escrivão da puridade buscava dar uma resposta (essa a necessidade) ao nível de tensão política e social demonstrado pelos tumultos de Lisboa. E o discurso representado por seu gesto também continha como elementos cruciais alguns dos que foram analisados nas páginas do periódico. A primeira proposição de Castelo Melhor diante dos oficiais da Casa dos Vinte e Quatro teria sido o agradecimento à quietação com que os grupos sociais ali representados tinham procedido depois do motim, o que faz relembrar a tentativa do Mercurio de dissimular a dimensão política do ocorrido. Simultaneamente, porém, o conde ao sentar-se na cadeira do Juiz do Povo faz uma demonstração de poder, do destemor do governo, mas também de que ele estava mais aberto a ouvir e inserir as demandas daqueles grupos em sua política. Neste último sentido, questão que surge no comentário do autor da época mas que escapou ao dos autores da biografia de D. Afonso VI, a abertura do governo era demonstrada não só pelo decreto do governo habilitando mecânicos aos serviços e às honras do poder régio, mas ao 354 355 D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 130-131. CARDIM, P. e XAVIER, A. B. op. cit. pp. 160-161. 173 modo como Castelo Melhor prestou contas naquele momento da utilização dos recursos feita pelo governo (esse o indecoro, pois aí o anônimo identifica o nivelamento entre valido e sapateiro). Assim também o fazia o Mercurio Portuguez na medida em que ia desenvolvendo o seu discurso. Ao mesmo tempo em que demonstrava a força e o destemor do governo, buscava diluir as acusações de autoritarismo, apresentando um governo preparado e organizado para ouvir as queixas e as propostas dos conselhos e dos demais setores políticos e sociais portugueses. Um governo que apresentava propostas transformadoras da realidade presente, mas que não as aplicavam sem debatê-las com as instituições competentes. E se tal governo, através da polêmica visita à Casa dos Vinte e Quatro, permitia-se prestar conta de seus atos diante de uma platéia pouco nobre, a publicação do Mercurio procurava provar que isto era feito, diretamente pelo secretário de Estado, aberta e mensalmente. E isso o fazia procurando responder e intervir no ambiente político instável que Antonio de Sousa de Macedo via em torno e dentro do governo de que era um dos expoentes representantes. Como foi visto em várias de suas edições, através do que o Mercurio dizia, e do que não dizia, embora aquele governo tenha iniciado diante do recrudescimento da guerra no front, as principais batalhas travadas pelo periódico eram as disputas políticas que encontrava dentro das fronteiras do reino. Por um lado, a pena do Mercurio investia no mascaramento das queixas e conjuras dirigidas contra o rei e seus ministros, sobre as quais fazia apenas dissimuladas menções, traçando um quadro de harmonia, regularidade e intenso trabalho do novo governo, e outro de força, inteligência e superação no ambiente militar. Seu discurso apresentava um Portugal unido e renovado contra o poderoso, mas cada vez mais ridículo e enfraquecido inimigo externo. Neste sentido a única oposição àquele governo – e Macedo procurava fazer crer que qualquer oposição a ele – era a movida pelos interesses castelhanos. Por outro lado, o Mercurio era também o espaço da defesa da política implantada pelo governo, não só das práticas que indicavam o esforço de alargamento da área de ação do poder régio, mas também de um conjunto de medidas tornadas possíveis por tal esforço, destinadas a operar nítidas transformações em relação ao legado deixado pelo governo anterior, deposto em 1662. O resultado mais palpável destas transformações, e mais visivelmente anunciado pelo periódico, observava-se nos campos de batalha, e acompanhavase em Lisboa pelas narrativas mensais do Mercurio. Outros aspectos desta mudança, porém, eram destacados pela pena do secretário de Estado, entre elas a dedicação do monarca e de seus ministros e uma nova postura política diante da direção da guerra, desde a adoção de estratégias mais ofensivas, até uma reestruturação das finanças e da logística militar. E ainda 174 mais sub-repticiamente, buscava o próprio Mercurio Portuguez significar também tal mudança, simbolizando talvez uma iniciativa de alcançar o apoio e uma relação mais direta com setores da sociedade em que certamente o novo governo identificava uma notável força política. Antes de mais nada, o secretário de Estado intencionava demonstrar, através da publicação de seu periódico, a afinidade do governo com o empreendimento de uma publicização da política, agora posta diante de mais vasta e indistinta sociedade. Isto Antonio de Sousa de Macedo não pretenderia se identificasse como seu público apenas diplomatas e políticos estrangeiros, e muito menos se apenas nobres cortesãos. A publicação do Mercurio Portuguez dá indícios da percepção de uma nova arena política, em que as armas em combate eram os impressos, os discursos, as idéias. Um terreno em que Macedo viu a capacidade e a necessidade da intervenção do Estado, posto que não o controlava, mais na opinião que nas forças. A percepção da relevância política desta opinião certamente não era exclusividade ou pioneirismo de Antonio de Sousa de Macedo; mas o modo com que as práticas políticas deviam lidar com ela era certamente uma questão que, entre outras, dividia a política portuguesa de então. Macedo, e também outros políticos de seu tempo, procurou estimular a existência e a importância desta arena pública, e jamais menosprezou a força política das exigências representadas pelo público cuja opinião considerava necessário conquistar, e convencer. Opositores daquele governo, como o padre Antonio Vieira, não deixaram de perceber como a publicização das medidas políticas do governo procurava conquistar uma base de apoio que limitasse o sucesso da resistência a tais propostas oferecida pela ação da oposição no plano interno dos mecanismos mais tradicionais da política. Outros opositores, como João Nunes da Cunha, Francisco Ayres, e posteriormente os anônimos autores dos pasquins e papéis que se disseminariam a partir de 1667, buscaram também se servir das mesmas armas adotadas por Macedo, e faziam publicar também suas críticas e suas provocações contra o governo. Neste terreno, a argumentação e também a dissimulação eram partes constituintes da arte de governar, e da de enfrentar o governo. Porém, nos espaços em que tais textos eram lidos, e discutidos, tal dissimulação não devia, e nem podia pretender, esconder as posições dos contendores daquela batalha pela opinião, ou não eles não a conquistariam. Cabe aos historiadores do presente a tarefa de não se deixar enganar, tal como os leitores coevos não se deixavam. Uma década após a queda de Antonio de Sousa de Macedo, do conde de Castelo Melhor e de D. Afonso VI, outro opositor daquele governo, D. Luis de Meneses, já conde da 175 Ericeira, publicou sua versão da história do Portugal restaurado, e, não por acaso, calou sobre a difusão de impressos durante o período, e calou sobre a existência desta arena política em que atuava a publicação do Mercurio Portuguez. Com o tempo, o que era uma opção política de Ericeira tornou-se uma versão oficial e fiel dos acontecimentos, um relato isento em que os historiadores podiam encontrar os principais personagens e fatos daquela época, na guerra, na diplomacia, e na política cortesã. A historiografia sobre a Restauração, e principalmente sobre o período de publicação do Mercurio, demorou muito para se desvencilhar dos termos e dos enfoques colocados por aquela narrativa, e demorou ainda mais para reencontrar os outros espaços em que a política portuguesa se desenvolveu, se transformou. O estudo feito até aqui do Mercurio Portuguez, embora notadamente limitado pelo que ainda há de obscuro e incompleto em relação à compreensão do enredo político em que esteve inserido, procurou dar mais um passo, pouco seguro, mas consciente, em direção à superação deste incômodo legado. 176 5 CONCLUSÃO Antigamente era cousa mui presada ter um conselheiro de Estado para saber um segredo; agora se compra tudo isto com um vintém.356 Antonio Vieira, carta ao marquês de Gouveia, 23 de fevereiro de 1665. Na introdução deste trabalho, foram as cartas do padre Antonio Vieira, e suas críticas ao Mercurio Portuguez, em meio às confabulações trocadas com seus correspondentes, que despertaram os primeiros movimentos da interpretação, que até aqui se realizou, do discurso do periódico sobre a guerra da Restauração e sobre o governo de D. Afonso VI, por ele representado diante de seus leitores. Foi por sua pena mordaz que se trouxe à tona, em primeiro lugar, a relevância daquele segundo periódico português no cenário político com que o jesuíta se debatia. Se Vieira se preocupava, diante de outros como ele opositores do governo constituído a partir de junho de 1662, em ironizar, e até contestar o modo como Antonio de Sousa de Macedo divulgava os movimentos da guerra, e suas propostas políticas trazidas à público, era porque entendia ser o seu periódico um ingrediente interveniente no desenvolvimento da política portuguesa, tanto ou mais do que as conjunturas astrológicas sempre comentadas em sua correspondência. Na carta em que destilava sua crítica mais áspera e direta ao Mercurio, acusava o secretário de Estado de atender ali, com conseqüências nefastas para o destino de Portugal, aos rumores do vulgo, da população de baixa extração, em detrimento dos conselhos representados pelos grandes de Portugal. O jesuíta sabia que caberia a uma facção da nobreza combater, minar, e até mesmo derrubar o novo governo, e que ela deveria a todo momento ser estimulada a desempenhar tal papel. Neste intuito é que, já agora se pode ver com mais clareza, se incluía a detração do lugar ocupado pelo Mercurio Portuguez, e seu redator, naquela conjuntura, pois sua própria existência servia para o diagnóstico de uma inversão de valores políticos representada pelo novo governo, justificativa ótima para o fortalecimento da oposição que, as cartas de Vieira dão mostra suficiente, articulava-se permanentemente e se intensificava a cada novo desterro, mau palanque de onde se poderia, segundo o próprio padre, observar a salvo – e quiçá atiçar – 356 VIEIRA, António. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. v. 2, pp. 125-126. 177 a fúria dos touros que se anunciava. E era isto que Vieira fazia, e outros certamente o acompanhavam, ao declarar que a publicação do periódico traduzia-se no reforço da pressão do vulgo sobre as esferas de decisão políticas e militares de Portugal. Tal também era intenção do comentário presente na carta de 23 de fevereiro de 1665 ao marquês de Gouveia, cujo regresso a Lisboa havia sido permitido desde o aniversário do rei no ano anterior, posto como epígrafe da presente conclusão. Na missiva, Vieira referira os mesmos prognósticos pessimistas sobre o cometa que comentaria a D. Rodrigo de Meneses em carta do mesmo dia, e aconselhara prudência ao marquês por estar de volta ao jogo de tabuleiro que lhe parecia a Corte de então, e passou então a criticar a mais recente edição do Mercurio, sobre o mês de janeiro, em que seu prognóstico político, além de menosprezar qualquer presságio político-astrológico aventado por seus inimigos, e divulgar descrédito e destemor em relação às prevenções militares de Castela, trazia novidades sobre a política castelhana, e informações sobre os preparativos lusos para a próxima campanha. Se antigamente prezava-se muito a proximidade com um conselheiro do Estado para conhecer tais segredos, agora era possível comprá-los por um vintém. Pode-se crer, talvez, ter sido uma hipérbole própria ao exercício da oposição política a acusação de que Macedo com seu periódico tornava os rumores do populacho partícipes da decisão política portuguesa daqueles anos, mas é inegável o acerto com que Vieira identificava uma substantiva ampliação da esfera de debate político representada por sua publicação, e o estudo que ora se finaliza pretendeu acima de tudo corroborar com tal percepção. Ao longo dele, buscou-se identificar e interpretar o discurso tecido por Antonio de Sousa de Macedo através da publicização mensal dos eventos militares e políticos que definiriam os rumos da monarquia e do reino restaurados décadas antes. Para tal, o conselho retirado da queixa de Antonio Vieira fez-se baliza metodológica: era preciso enfocar tanto o que o periódico dizia, como o que deixava de dizer. Para um resultado por vezes reiterativo, mas espera-se que jamais monocórdio, pesou a necessidade sentida de destacar insistências, e nuances, para uma apreciação completa do posicionamento do Mercurio Portuguez diante dos problemas analisados. Em primeiro lugar, a partir da leitura do discurso justificativo do primeiro número do periódico, e das notícias e comentários divulgados em suas edições subseqüentes, foram apresentados os primeiros elementos que importaram a seu redator considerar, através dos quais se procurou vislumbrar os inimigos que viu necessário combater de pronto, enquanto nas fronteiras do reino aproximavam-se as batalhas definitivas com o castelhano. Em torno 178 destas edições centrou-se o primeiro capítulo da dissertação. Pôde-se então avaliar que, apesar do esforço inicial em fundamentar a publicação como arma de convencimento dos políticos estrangeiros, terreno em que o inimigo externo mostrava-se experiente e eficaz, mais na opinião que nas forças conquistando sua condescendência, tal utilidade se desvanecia diante dos problemas internos a que o periódico buscava responder. Conjurações, tormentos impostos à população pela intensificação da guerra, além de impostos tormentosos, tumultos e motins, foram determinantes na definição do discurso do Mercurio desde seus primeiros meses de impressão. A afirmação de que o objetivo daqueles textos era diplomático, ilusionismo que decerto não escapava aos observadores mais argutos, cumpria principalmente a função de dissimular a dissidência interna que motivava o recurso à tipografia. Para a interpretação neste sentido, foram importantes aliados as cartas enviadas ao governo desde a fronteira tumultuada do Alentejo de 1663, bem como as outras narrativas daqueles eventos, escritas simultânea ou posteriormente ao periódico. O segundo capítulo, dedicado como esteve a ressaltar os diferentes âmbitos e momentos das formas narrativas da guerra do período abarcado pela redação de Antonio de Sousa de Macedo, ateve-se mais ao texto do Mercurio, objetivando compreender em última instância quais questões colocavam-se ao secretário de Estado em sua descrição dos diferentes eventos militares nas fronteiras de Portugal, e como elas plasmavam seu discurso sobre eles. Neste sentido, percebeu-se em primeiro lugar como Macedo considerou importante, em se tratando daqueles pequenos recontros, escaramuças e saques que assolavam cotidianamente a população da zona de combate, valorizar os protagonizados e vencidos pelas tropas portuguesas, e ao mesmo tempo diminuir o impacto na opinião, do perigo representado pelas investidas castelhanas. Já quanto aos feitos militares de maior vulto, acompanhou-se quase cronologicamente a transformação da linha mestra do discurso do periódico: em 1663, a partir da retomada de Évora, Macedo entoa a capacidade de superação das forças portuguesas, identificando na bizarria e eficiência dos soldados, e na inteligência dos chefes militares, a sua causa imediata; em 1664, aproveita o recuo do investimento militar castelhano no Alentejo e o incremento do português, para, além de defender publicamente a polêmica adoção de uma estratégia militar ofensiva, demonstrar a agora superioridade do exército português ao castelhano, moldando sua narrativa de modo a divulgar vitórias limpas, sem derramamento quase do sangue português, desta forma, inclusive, respondendo ao tipo de crítica representado pela carta de Antonio Vieira a D. Rodrigo de Meneses; entre os anos de 1665 e 1666, o advento do último grande esforço pela recuperação militar de Portugal, simbolizado pela chegada do marquês de 179 Caracena ao comando do exército castelhano, o empenho de sua narrativa de guerra volta-se para a detração da estratégia inimiga, para o que a vitória na batalha de Montes Claros contribuiu tão decisivamente quanto para a derrota definitiva de Castela. Foi na narrativa desta batalha, de junho de 1665, que Macedo atribuiu a Afonso VI a epítome de Vitorioso, com que se percebeu que o enfoque de seu periódico sobre a guerra, considerado em seu conjunto, prestava-se à exaltação de uma época, época de sua publicação, e do governo que representava, o que motivou o objeto de análise do terceiro e último capítulo desta dissertação, partindo das notícias do Mercurio Portuguez sobre o Estado e sua atuação em relação à guerra. Nele, pôde-se perceber como o secretário de Estado procurava vincular à transformação que seu periódico acompanhava e valorizava, mês a mês, na situação de Portugal diante de seu adversário na guerra da Restauração, a mudança de governo iniciada com o golpe palaciano de junho de 1662. Se até então era conhecida e temida a superioridade do exército de Castela, numérica e tática, e se constantemente ponderava-se que a recuperação de Portugal só não se havia realizado pela prioridade dada por Felipe IV a outros fronts, discurso que os impressos castelhanos após o tratado dos Pirineus veicularam não só na Europa transpirenaica, as derrotas com que o avanço do inimigo foi interrompido deram azo a que o Mercurio não só combatesse tais argumentos, e o que deles ficou impresso na opinião dos portugueses, como atribuísse a antiga inferioridade ao mau governo até então verificado no reino, o que o governo de D. Afonso VI procurava, e alcançava, corrigir a tempo. É com este intuito que Macedo publica a fala de Afonso aos conselhos da Guerra e do Estado, e sua proposta de fazer jornada ao Alentejo, simultaneamente representando a seus leitores que o monarca pressionava a nobreza a participar do esforço militar premente àquela altura, mas que nem por isso colocava suas vontades acima das determinações dos membros daqueles conselhos – como Vieira acusaria, quase um ano depois. Neste discurso, porém, destaca-se principalmente o elogio à atuação do escrivão da puridade Luis de Vasconcellos e Souza, conde de Castelo Melhor, iniciado discretamente já na primeira edição do periódico, mas realizado já com estrondo meses depois, com a notícia da mudança do provimento das praças e exército do Alentejo, passagem das mais significativas da novidade representada pela publicação do Mercurio no Portugal daquele tempo, mas principalmente da modalidade de intervenção política que o secretário de Estado através dele defendia e assumia como marca daquele governo, pois com tal notícia, além de disponibilizar por um vintém os meandros da medida política ali anunciada, divulgava a preocupação do governo em, antes de aplicá-la, convencer aqueles que a criticavam de sua importância e plausibilidade. 180 Encerrando o último capítulo, após percorrer e demonstrar importantes conseqüências da divulgação daquele grande feito, mais político do que bélico, para a continuidade das notícias do periódico sobre os preparativos de guerra, e da exaltação da política militar portuguesa, sempre em comparação com os erros castelhanos – com que Macedo dissimuladamente rebatia as críticas vigentes ao rigor dos impostos, à malversação de fundos, e ao valimento de Castelo Melhor – importou considerar que, apesar de o discurso do Mercurio Portuguez trazer dados que podem ser incorporados à tese historiográfica acerca da reciprocidade causal entre o fortalecimento da máquina estatal e o incremento da atividade bélica na Europa da chamada revolução militar, para a compreensão do periódico, objetivo primeiro desta dissertação, mais do que defender o vínculo entre Estado e guerra, era urgente para o secretário de Estado defender a relação entre o governo e a vitória. Para tal o impelia a instabilidade política vivida pelo governo que o Mercurio representava, e para combater a oposição política que a cada momento se armava e se reorganizava é que Macedo fez do recurso à tipografia e da publicização da política suas principais armas. Sobre a articulação e a evolução desta oposição, e de outras mais, ao governo de D. Afonso VI, e sobre as práticas e projetos políticos que estiveram em pauta nestes turbulentos anos em que, junto com o monarca, ocuparam este governo homens como o conde de Castelo Melhor e Antonio de Sousa de Macedo, ainda há muito que elucidar, e distinguir, e apontar a indefinição deste campo de estudos espera-se ter sido uma função, ao menos, além daquela já declarada de estimular novas leituras do Mercurio Portuguez, do trabalho que por enquanto se encerra. 181 6 REFERÊNCIAS Textos de época: A anti-catastrophe: historia d'Elrei D. Affonso 6º de Portugal. Porto : Typographia da Rua Formosa, 1845. ACCETO, Torquato. 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