Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-graduação em História Social
Dissertação de Mestrado
MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS
Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez
(1663-1666)
Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki
Rio de Janeiro
2009
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Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho
MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS
Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez
(1663-1666)
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ – como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de
Mestre em História.
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki
Rio de Janeiro
2009
CARVALHO, Daniel Pimenta Oliveira de.
Mais na opinião que nas forças: Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do
Mercurio Portuguez/ Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009.
Orientador: Carlos Ziller Camenietzki
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de PósGraduação em História Social, 2009.
Referências Bibliográficas: pp. 181-189
1. Mercurio Portuguez. 2. Política – História – Portugal – Século
XVII. 3. Imprensa – Discurso político.
MAIS NA OPINIÃO QUE NAS FORÇAS
Antonio de Sousa de Macedo e a impressão do Mercurio Portuguez
(1663-1666)
Daniel Pimenta Oliveira de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.
Aprovada por:
______________________________
Presidente, Prof.
______________________________
Prof.
______________________________
Prof.
Rio de Janeiro
Maio de 2009
Para Mariana, minha esposa,
companheira destes meus anos de
estudo e trabalho, e de todos os mais
que virão.
AGRADECIMENTOS
Ao término deste nem tão longo, mas certamente atribulado período de estudos em que foi
produzida esta dissertação, é necessário agradecer a todos aqueles que contribuíram, das mais
diversas formas, para que eu o pudesse atravessar. Agradeço em primeiro lugar à orientação,
dedicação e companheirismo que pude encontrar, desde o tempo da graduação, em Carlos Ziller
Camenietzki, professor que não só acompanhou meu desenvolvimento acadêmico, como também,
e principalmente, me fez entender a importância e a necessidade do estudo da História.
A João Luis Ribeiro Fragoso, que esteve presente em minha banca de qualificação, devo
também, além dos preciosos questionamentos postos na ocasião ao meu trabalho, importantes
aprendizados sobre a História Moderna. A Rodrigo Bentes Monteiro, que esteve na mesma
ocasião, agradeço o cuidado com que leu meu trabalho, as sugestões que me ajudaram a melhor
encaminhá-lo, e a disposição em participar agora também da banca de defesa desta dissertação. A
Norma Côrtes, agradeço por ter aceitado participar também desta última banca, e contribuir assim
para este novo começo em minha trajetória de estudos.
Não posso deixar também de referir aqui o apoio dos amigos, muitos dos quais conheci
justamente por me emaranhar nos estudos da História. A eles, agradeço por todas as conversas,
trocas, dicas e debates, travados nos laboratórios, salas de aula, e outros ambientes menos
acadêmicos.
À minha família, agradeço, mais uma vez, pela justa medida entre educação e liberdade, e
por me ensinar desde cedo os valores que espero nunca conseguir abandonar.
À minha esposa, Mariana, com quem vou construir de hoje em diante minha própria
família, agradeço o cuidado, o carinho, e a paciência.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise do Mercurio Portuguez, publicação
mensal escrita por Antonio de Sousa de Macedo, um dos principais personagens da política
portuguesa do século XVII, àquela altura secretário de Estado no conturbado reinado de D.
Afonso VI em Portugal. Publicado por Macedo entre 1663 e 1666, Mercurio voltava-se para a
divulgação das notícias do reino, principalmente relativas à guerra da Restauração, e para a
afirmação do novo governo. Através do levantamento das principais questões e posições trazidas
pelo periódico, esta análise pretende evidenciar o discurso e as práticas políticas do seu autor e do
grupo ao qual se associou, e que marcou de forma tão acentuada este período final da
Restauração portuguesa.
ABSTRACT
The aim of this work is to present an analysis of “Mercurio Portuguez”, a monthly
publication written by Antonio de Sousa de Macedo, one of the main characters of the Portuguese
politics in the 17th century, at that time the Secretary of State of the troubled reign of D. Afonso
VI in Portugal. Published by Macedo between 1663 and 1666, Mercurio´s purpose was to
publicize the news of the reign, especially those related to the Restoration’s War, and to the
establishment of the new government. Throughout the research of the main questions and
positions brought by the periodical, the analysis intends to evidence the speech and political
practices of the author and of the group to which he was associated with which marked in such an
accentuated way the final period of the Portuguese Restoration.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
10
2 AS PRIMEIRAS BATALHAS DO MERCURIO PORTUGUEZ
34
2.1 EXPECTATIVAS DE PAZ, EM TEMPOS DE CONJURAÇÕES
42
2.2 A PRESSÃO DESDE A FRONTEIRA: DOS RUMORES AOS TUMULTOS
56
2.2.1 Os impactos da perda de Évora
60
3 OS FERVORES DE MARTE, SOB A PENA DO MERCURIO
68
3.1 DISCURSOS SOBRE A GUERRA COTIDIANA
70
3.1.1 Nem tão menores: a valorização dos feitos militares de pequeno porte
71
3.1.2 Uma guerra vil e covarde: a depreciação das investidas inimigas e a
transformação do discurso sobre saques e razias
80
3.2 DO DESENROLAR DA GUERRA, E SUAS MAIS VULTOSAS NOTÍCIAS
92
3.2.1 Após a queda de Évora, a bravura e a superação portuguesas
92
3.2.2 Da superação à superioridade: a defesa da guerra ofensiva e o discurso
sobre o recuo castelhano de 1664
100
3.2.3 A última ameaça: a detração sistemática do empenho inimigo
110
3.3 AS NARRATIVAS DA BATALHA DE MONTES CLAROS, E A
VALORIZAÇÃO DE UMA ÉPOCA
115
4 AS NOVAS DO DISCURSO POLÍTICO
123
4.1 O GOVERNO DA GUERRA
133
4.1.1 A nova forma de provimento: guerra, finanças e governo
136
4.1.2 Os prognósticos do bom governo
145
4.2 ESTADO E DISCURSO, POLÍTICA E TIPOGRAFIAS
155
5 CONCLUSÃO
176
6 REFERÊNCIAS
181
1
INTRODUÇÃO
Enfim, senhor, eu tomara ver este discurso de V.
S.ª impresso com letras de ouro, e que falaram
pelo estilo dele os do nosso desgraçado
Mercúrio, tão pouco ponderado no que diz,
como no que não diz.1
Antonio Vieira, carta a D. Rodrigo de Meneses,
26 de maio de 1664.
As cartas escritas pelo padre Antonio Vieira constituem, de fato, um inestimável
painel da história portuguesa do Seiscentos, através do qual se divisa todas as principais
questões debatidas e vividas em seu tempo. Ainda hoje, passados já quatro séculos do
nascimento do insigne jesuíta, e as milhares de obras que buscaram desde então exaltá-lo,
combatê-lo, ou interpretá-lo, surpreende a infinidade de assuntos trazidos à tona pela leitura
de sua correspondência, índice da intensa participação de seu autor nas mais diversas
conjunturas históricas, todas determinantes para a construção do Portugal e do Brasil da era
moderna. De tal modo que, qualquer estudo que pretenda debruçar-se sobre o período
marcado por sua trajetória, corre o risco de tomá-la como horizonte ou ponto de partida de sua
investigação. O segundo caso, como se nota, é o deste que agora se inicia.
Tamanha era a contumácia de Antonio Vieira em participar e intervir diretamente nos
meandros da política de seu tempo, que mesmo desterrado da corte, vivendo entre achaques e
sangrias, e já em meio ao processo inquisitório que em breve o trancaria nos cárceres do Santo
Ofício de Coimbra2, não se eximia de comentar os principais acontecimentos, celestes e
terrenos, futuros e presentes, pelos quais o destino de Portugal e seu império lhe parecia
condicionado. Em seu epistolário de setembro de 1662 ao mesmo mês de 1665, Vieira
informava seus destinatários sobre o andamento de seus escritos proféticos, discutia os mais
recentes prognósticos astrológicos, inquiria e aconselhava a respeito das estratégias militares
adotadas pelo exército português na guerra travada contra Castela, e, eivado da dissimulação
peculiar ao exercício da política seiscentista3, articulava os métodos e expectativas da
1
VIEIRA, António. Cartas. org. de João Lúcio de Azevedo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997.
v. 2, p. 57.
2
Para a trajetória de Vieira, seguimos, principalmente: AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira.
3ª ed. Lisboa: Clássica Editora, 1992. 2 vols.
3
A prática da dissimulação era tema corrente nos escritos sobre política do século XVII, elemento crucial do
debate acerca da Razão de Estado. Justo Lipsio, por exemplo, incorpora a dissimulação como uma prática
11
oposição política de que fazia parte; seus correspondentes, alguns desterrados como ele, eram
todos opositores, mais ou menos declarados, do governo de D. Afonso VI, iniciado pelo golpe
palaciano que, em junho de 1662, pôs fim à regência de D. Luísa de Gusmão.
Já passadas mais de duas décadas desde o levante restauracionista que separou
Portugal da Coroa de Castela, a guerra entre as duas monarquias chegava à sua etapa mais
intensa, e decisiva. Durante a regência de sua mãe, a conduta e as amizades do rei Afonso
causavam preocupação na corte, onde circulavam já rumores sobre sua incapacidade física e
mental para o exercício do governo, e seu desleixo para com as atividades que em breve
deveria desenvolver. Naquele junho de 1662, enquanto na fronteira do reino as tropas sob
comando de D. Juan José de Áustria, filho ilegítimo do rei castelhano, consolidavam vitórias
como a conquista da praça de Arronches, a viúva do monarca restaurador D. João IV instituía
casa própria ao infante D. Pedro, irmão caçula de Afonso, nomeando para sua corte membros
destacados do governo, da nobreza e do clero portugueses – entre eles, como confessor do
infante, Antonio Vieira – e anunciava para breve a convocação das Cortes que lhe jurariam
herdeiro da coroa no caso de D. Afonso não deixar sucessão. À murmuração que se seguiu a
tais medidas, D. Luisa respondeu rapidamente, declarando a intenção de passar o governo ao
rei no agosto seguinte, quando completaria D. Afonso 19 anos.
Antes disso, porém, o governo da rainha tomou resolução mais dura, e, no dia 17 de
junho, convocou uma assembléia onde, na presença de representantes dos tribunais do Estado,
dos conselhos, e da Casa dos Vinte e Quatro, além dos principais fidalgos e dignitários, foi
lida uma reprimenda aos procedimentos do jovem rei, que o aconselhava a se corrigir, e se
distanciar dos indivíduos de baixa extração com quem vinha se relacionando, e causando
escândalo no reino pelas arruaças em que se envolvia nas madrugadas de Lisboa. O papel ali
lido, dizia-se então, seria da autoria do mesmo Antonio Vieira. Enquanto estava entretido
Afonso em tal reunião, eram presos e degredados estes seus associados, entre os quais se
destacavam, por àquela altura já haverem recebido cargos, rendas e tenças, os irmãos Conti,
Antonio e João, tendo o primeiro cativado as graças do rei a partir da tenda que possuía no
moralmente aceitável, dentro de seu conceito de prudência mista. Já Torquato Acceto ressaltava também a
honestidade da dissimulação, enquanto arte de ocultar uma verdade, oposto à condenada simulação, que
consistiria na afirmação de mentiras. Neste sentido, a dissimulação era prática não só aceita, como plenamente
utilizada no exercício da política seiscentista. Cf. LIPSIO, Justo. Políticas. Madrid: Tecnos, 1997; ACCETO,
Torquato. Da dissimulação honesta. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Sobre o debate em torno da dissimulação
no período, e sua recorrência nas práticas políticas, ver: VILLARI, Rosario. Elogio della dissimulazione: la lotta
politica nel seicento. Roma: Laterza, 1993; CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Dissimulações honestas e cultura
científica na Idade Barroca. In: Sigila. Paris, v. 8, pp. 81-91, 2001; BAKOS, Adrianna E. “Qui nescit
dissimulare, nescit regnare”: Louis XI and Raison d’état during the Reign of Louis XIII. In: Journal of the
History of Ideas. Philadelphia: Temple University, v. 52, n. 3, jul-set. 1991.
12
pátio da Capela Real, onde vendia rendas, fitas e outros adornos. Esta simultânea repreensão
ao rei e prisão de seus apaniguados foi, em todas as histórias que se escreveram do sucedido,
interpretada ou como uma tentativa última da rainha de emendar o filho a quem em meses
encarregaria o governo de Portugal, ou como parte de um estratagema que buscava destituir a
sua autoridade perante os representantes ali reunidos, isolá-lo dos seus favorecidos, e em
breve declarar sua incapacidade para a direção do reino, passando-a ao infante seu irmão; com
o que, diga-se de passagem, por este possuir ainda 14 anos, se estenderia a regência por
alguns mais. Este duplo significado foi também objeto das discussões à época, e D. Afonso,
visto de tal forma acuado, valeu-se da segunda interpretação; a ela e a ele associou-se o
também jovem 3º conde de Castelo Melhor, Luis de Vasconcellos e Souza, visto desde então
como o principal artífice do golpe efetuado dias depois.
Acompanhados de D. Jerônimo Luís de Ataíde, conde de Atouguia, há pouco
destituído do governo das armas do Alentejo, principal foco da guerra travada contra Castela,
pela perda de Arronches, e que havia já indicado sua oposição ao governo da regente ao
declinar de integrar a casa do infante, o rei e Castelo Melhor deslocaram-se para a quinta de
Alcântara, para onde se convocou também Sebastião César de Meneses, que voltara
recentemente da prisão por oito anos em que fora colocado por crime de inconfidência,
Henrique Henriques de Miranda, importante aliado de Castelo Melhor, e logo o visconde de
Vila Nova de Cerveira, D. Diogo de Lima, que havia sido afastado do Paço pela regente logo
após a reprimenda a D. Afonso, a quem procurou acalmar, e se aproximar logo que soube da
prisão dos Conti. De Alcântara, foram chamados outros titulares e fidalgos a se juntarem a seu
rei, e intimada a regente a entregar o governo em definitivo a seu filho, o que, não sem
resistência, ocorreu a 23 de junho.
O governo recém-instaurado caracterizou-se desde cedo pela substituição de ocupantes
dos principais conselhos, como o de Estado, o da Guerra e o da Fazenda, e pela nomeação dos
fidalgos e letrados associados ao rei aos mais altos cargos de comando e influência da corte.
Identificado posteriormente como um triunvirato por seus opositores, devido à proeminência
inicial de Castelo Melhor, que assumiu a função, desocupada desde o reinado de D. Sebastião,
de escrivão da puridade, Atouguia, nomeado para o conselho de Estado, e Sebastião César,
que recebeu o arcebispado de Lisboa e meses depois o cargo de Inquisidor-Geral, o governo
foi ainda composto por Vila Nova de Cerveira, também do conselho de Estado, e estribeiromor do rei, Henrique Henriques, nomeado tenente general da artilharia, entre outros membros
dos conselhos. A eles se uniu no início de agosto Antonio de Sousa de Macedo, ocupando a
13
secretaria de Estado em substituição ao desterrado Pedro Vieira da Silva, que o havia
possuído desde a queda de Francisco de Lucena nos primeiros anos da Restauração.
Não foram poucos os que, neste processo de consolidação da manobra política iniciada
em Alcântara, foram presos ou desterrados pelos novos governantes. Entre eles estava o
duque de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, figura de crescente prestígio durante a
regência de D. Luisa, e o jesuíta Antonio Vieira, um dos primeiros a ser mandado para 50
léguas da corte. Para Vieira, a mudança de governo não significou apenas o início de um
exílio, mas a perda do apoio que até então sustentava a exclusividade e o poder político da
missão jesuítica no Maranhão, e obstruía o intento do Santo Ofício de iniciar seu processo
inquisitório. Sua correspondência a partir daí, como se dizia há pouco, demonstra seu desterro
não ter sido apenas um ato de puro valor simbólico contra o suposto autor do papel de
reprimenda ao rei.
Vez por outra em suas cartas, principalmente quando tratava dos mais recentes eventos
da guerra da Restauração, esta que se travava contra Castela desde 1641, Vieira faz
comentários, sempre mordazes, ao periódico mensal intitulado Mercurio Portuguez, segundo
periódico impresso no reino4, saído desde o início de 1663 da pena do secretário de Estado
Antonio de Sousa de Macedo, impresso pela oficina de Henrique Valente de Oliveira,
impressor régio desde o final da década de 1650. A primeira delas, ao término da escrita a D.
João da Silva, 2º marquês de Gouveia, a 2 de janeiro de 1664:
Muito alentados nos deixa a nova da prevenção e superioridade com que nessa
província estão os nossos generais e Exército. Quererá Nosso Senhor dar-lhe o bom
sucesso que prometem, para que Mercúrio tenha larga matéria para espraiar a
eloqüência, e nos dar neste Janeiro bons princípios de ano novo, que eu torno a
desejar a V. Ex.ª com os maiores aumentos da vida e felicidades.5
Esta dita eloqüência do periódico era sempre alvo da zombaria de Vieira. Duas
semanas depois desta, as notícias recebidas por ele do mesmo marquês sobre as armas da
província da Beira não pareciam boas, “e as que V. Ex.ª remete ao Mercúrio haverão mister
toda a sua eloqüência para que não façam o Janeiro funesto”. Costumava ser assim: trocando
com seus correspondentes informações sobre o estado da guerra nas fronteiras, que nunca
eram as melhores, o jesuíta contestava ironicamente o modo como o periódico do governo
buscava estimular a confiança de seus leitores mesmo vivendo Portugal circunstâncias tão
periclitantes. Um discurso nada surpreendente vindo de quem, nesta mesma carta de 16 de
janeiro de 1664, parabenizava o marquês de Gouveia por estar para completar um ano de
4
O primeiro periódico português, a Gazeta, foi publicado já nos primeiros anos da Restauração, irregular e
atribuladamente entre 1641 e 1647.
5
VIEIRA, A.. op. cit. p. 24.
14
desterro, argumentando que “melhor é ver os touros, ainda que seja de mau palanque, que ter
parte nos riscos deles” 6. Mais de um ano depois, ao comentar sobre prognósticos astrológicos
feitos a partir do cometa presente no céu desde dezembro de 1664, e o fato de que se dizia que
em tudo ele era igual ao que significara a sujeição portuguesa a Castela no tempo de D.
Sebastião, outra vez Vieira desafiava o otimismo publicado pelo secretário de Estado: “Mas o
nosso Mercúrio nos segura de todos estes temores com o pouco medo que tem às prevenções
de Castela. Quererá Deus que assim seja”7. Sempre que podia, o escritor jesuíta escarnecia do
estilo do redator do periódico. Em outra carta a Gouveia, de 8 de dezembro de 1664, após
comentar a difícil situação da Índia portuguesa perante as ambições e as vitórias dos
holandeses nos últimos anos, antes de fechar a epístola Vieira acrescenta: “A oração de
Mercúrio também deve de sair este mês: temos muito e bom latim para os estudantes das
classes menores”8.
Mas é certamente na carta de 26 de maio de 1664, a D. Rodrigo de Meneses, que
Antonio Vieira mais se inflama contra o periódico, e em que se percebe de forma mais patente
a sua oposição ao que ele representava naquele momento em Portugal. D. Rodrigo, outro
importante correspondente de Vieira, gentil-homem da câmara do infante D. Pedro, irmão e
genro do marquês de Marialva, enviara-lhe uma carta dias antes, em que afirmava haver
defendido que o exército português não saísse em campanha naquele ano, mas que adotasse
apenas uma postura defensiva, aproveitando que estava pela primeira vez numericamente
superior ao de Castela. O jesuíta então responde congratulando-o por sua proposta:
Que maior crédito pode desejar Portugal que dizer-se nas nações estrangeiras que,
tendo Castela ajuntado e unido todo o seu poder, foi tão superior o nosso que se não
atreveu a sair em campanha? E que maior utilidade e felicidade para o público e
particular do Reino que conservá-lo em tais circunstâncias, sem perder um homem
nem um cavalo, nem derramar uma gota de sangue, que sempre na casa onde falta
faz triste a vitória, por mui vantajosa que seja? E que maior ventura nem vitória que
conseguir os efeitos dela, sem os riscos de uma batalha nem os danos da guerra?9
Porém, o Mercurio Portuguez não veiculava em suas páginas a mesma concepção, e
em vista disso Vieira continua sua missiva com o comentário posto como epígrafe do presente
trabalho. Bom seria, diz o jesuíta, se se encontrasse no periódico tal discurso, tal prudência;
mas o desgraçado Mercurio, tão pouco ponderado no que dizia, como no que não dizia,
divulgava a opinião de que tal superioridade do exército português deveria ser utilizada “e
pudera considerar, como tão lido nos exemplos de Fábio Máximo, que há ocasiões em que no
6
Ibid. p. 28.
Ibid. p. 128. Carta a D. Rodrigo de Meneses, de 23 de fevereiro de 1665.
8
Ibid. p. 104.
9
Ibid. pp. 56-57.
7
15
não fazer consiste tudo; e que os conselhos dos grandes generais se não desprezem, e que os
rumores do vulgo nem são grandes nem são conselhos”10.
O padre Antonio Vieira, portanto, criticava não só o imponderado otimismo e a débil
eloqüência do Mercurio Portuguez, mas acusava-o de omissão, falsidade, e de incentivar com
sua publicação a aceitação de uma estratégia militar nefasta para o destino de Portugal, o qual
ele se via tão envolvido em prognosticar. Em tom agressivo, o jesuíta considerava que o
discurso do periódico do governo, com tal postura, atendia mais à opinião inconseqüente do
populacho do que à experiência e prudência do conselho dos militares, do passado e do
presente. Não o faria com tamanho empenho, pode-se supor, se considerasse irrelevante
aquela publicação para o desenvolvimento do cenário político português de então. É
certamente a influência dos escritos do secretário de Estado que Vieira debate com seus
aliados, é com ela que ele se debate desde o claustro forçado que o governo e a Inquisição lhe
impunham. Além do mais, tratava-se o seu autor de um antigo desafeto do jesuíta.
Nem dois anos mais velho que Vieira, Antonio de Sousa de Macedo nascera no Porto
a 15 de dezembro de 1606, iniciou seus estudos no Colégio jesuíta de Santo Antão, e passou à
Universidade de Coimbra, onde alcançou o grau de doutor em Direito Civil. Era filho de
Margarida Moreira e Gonçalo de Sousa de Macedo, fidalgo da Casa Real formado em
Cânones, que ocupou cargos de magistratura como os de desembargador dos agravos da Casa
da Suplicação, juiz dos feitos da Coroa e da fazenda, deputado da Junta das Contas do Reino e
da Casa, ou de contador-mor do Reino e da Casa. Com atividades ligadas às da casa de
Bragança, Gonçalo de Macedo foi ainda nomeado, em 1627, testamenteiro de D. Duarte de
Bragança, tio de D. João, em breve o quarto rei deste nome em Portugal. O filho, portanto,
parecia seguir os passos da carreira do pai, e na altura do golpe da Restauração ocupava já o
Desembargo do Porto. Com uma substancial diferença, porém: desde a juventude dedicado
aos estudos dos clássicos, principalmente latinos, Antonio de Sousa de Macedo voltou-se
também desde cedo à publicação de seus próprios escritos, iniciada com a Solemnia Parnassi
Philippo IV Hispaniorum Regi pro recuperata salute solteria11, composta de poesias em
latim, castelhano e português, impressa já em 1624, durante acompanhamento que fez à
10
Ibid. p. 57.
MACEDO, Antonio de Sousa de. Solemnia Parnassi Philippo IV Hispaniorum Regi pro recuperata salute
solteria. Madrid: 1624.
11
16
estadia do pai em Madrid, em que suas precoces qualidades de orador e escritor teriam
chamado a atenção dos ministros do Conselho de Portugal12.
Mas foi nos últimos anos de estudo em Coimbra, na década de 1630, que Macedo
escreveu seus primeiros tratados, e publicou o Flores de España, Excelencias de Portugal,
que assombra pela erudição de tão jovem autor. Literatura de firme propósito polemista, o
Flores de España se incumbe da valorização do reino português, numa descrição glorificadora
da história e dos valores pátrios, quase não dissimulando a crítica ao estado em que se
encontrava o reino anexado à monarquia hispânica. Não cabendo aqui a análise deste seu
primeiro tratado, vale apenas relembrar como o concluiu, após os diversos capítulos de
elogios às características portuguesas, de sua geografia, sua história e seus costumes, em que a
comparação com a excelência menor de Castela fez-se muitas vezes presente:
Algunos dirán, que no viene a buen tiempo este tratado de excelencias de Portugal,
pues segun los infortunios presentes, mejor pudieramos tratar de sus miserias: pero
yo respondo que todo lo que hemos visto en el discurso deste libro tiene tambien oy
Portugal, y tendrá siẽpre por mas q la fortuna pretenda otra cosa (...). Verdad es que
oy no resplandecen tanto estas excelencias en Portugal, como en otro tiempo, pero
no es porque no las aya, sino porque estan escondidas, y suspensas, no se si diga por
falta de premio, y favor, que segun Ciceron son los que crian, y dan calor a las artes,
y todo lo bueno”13
Por tal obra, Antonio de Sousa de Macedo foi incluído com destaque pelo professor
Hernani Cidade entre os autores do que considerou a literatura autonomista do Portugal
filipino14, e deve ter sido ela também justificadora de sua eleição, nos primeiros meses da
Restauração, para integrar a embaixada de D. Antão de Almada e Francisco Rodrigues Leitão
à Inglaterra. Atuando como secretário da embaixada até a conclusão do tratado comercial de
1642, com que Almada retornou a Portugal e Leitão foi enviado a Haia, Macedo ainda
permaneceu em Londres como residente até abril de 1646. Suas cartas deste período
constituem um curioso documento da tumultuada conjuntura política daqueles anos na
Inglaterra, da delicada posição nela ocupada pela diplomacia portuguesa, e do posicionamento
aguerrido do residente, não só na defesa do apoio português à monarquia britânica, como
também em relação aos mais diversos problemas, diplomáticos e bélicos, enfrentados por
Portugal nos primeiros anos da Restauração. Destaque-se ai seu discurso sempre contrário à
entrega de qualquer território do Brasil como parte das negociações de paz com os
12
Sobre a juventude de Macedo, a biografia mais detalhada encontra-se no prefácio de Pedro da Costa de Sousa
de Macedo à edição recente de MACEDO, A. S. Flores de España, Excelencias de Portugal. Lisboa: Alcala
Editores, 2003. (Ed. Fac Símile da primeira, de 1631, impressa por Jorge Rodrigues) pp. IX-XXVI.
13
Ibid. fols. 149v-150r.
14
CIDADE, Hernani. A Literatura Autonomista sob os Filipes. Lisboa: Sá da Costa, 1948. pp. 126-142. Cf.
também SILVA, Cristina Nogueira da. A identidade portuguesa. In: Memória de Portugal: o milénio português.
Lisboa: Círculo de Leitores, 2001. pp. 350-351.
17
holandeses, seu contentamento expresso a cada vez que lhe chegavam notícias sobre sucessos
da resistência à presença destes no nordeste brasileiro, e sua defesa veemente da tomada de
uma postura ofensiva por Portugal na guerra contra Castela15; com efeito, Macedo esteve
sempre em posição diametralmente oposta àquela que Antonio Vieira representava em
Lisboa.
Durante a estadia em Londres, Macedo se destacou ainda como um dos principais
escritores dedicados à justificação da recente separação de Castela, e da aclamação de D. João
IV, pois pôde publicar importantes textos neste sentido, entre os quais se destaca o Lusitania
Liberata ab injusto Castellanorum dominio16, vultosa obra de síntese de seus argumentos
jurídicos e genealógicos em favor da monarquia portuguesa restaurada, destinada à
divulgação nos diversos centros políticos europeus da época. De volta a Lisboa, quando o
governo parlamentar inglês descobriu, através da captura da correspondência de Carlos I
subseqüente à vitória sobre as forças realistas em Naseby, a atuação de Macedo como
intermediário na compra em Amsterdã de material bélico destinado ao partido monárquico, e
sua presença em Londres tornou-se insustentável17, o jurista atuou durante três anos como
desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, não se afastando porém do publicismo
que já o caracterizava, havendo impresso o Panegyrico sobre o milagroso sucesso com que
Deos livrou el Rey Nosso Senhor, da sacrílega treição dos Castelhanos já em setembro de
164718, na seqüência da tentativa de assassinato do monarca durante os festejos de Corpus
Christi.
Em julho de 1650, foi enviado às Províncias Unidas como embaixador, com a
espinhosa tarefa de dar continuidade às negociações de paz com aqueles Estados, em um
período em que a tensão com Portugal crescia ao máximo, devido ao recrudescimento dos
15
Algumas destas cartas, que se encontram em sua totalidade na Biblioteca Pública de Évora, foram publicadas,
em: PRESTAGE, Edgar. Duas Cartas do Dr. Antonio de Sousa de Macedo: escritas de Inglaterra a El-Rei D.
João IV. In: Separata do Boletim da Segunda Classe. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1916. v. 10; e
AMSALAK, Moses Bensabat. Uma carta do doutor António de Sousa de Macedo ao rei d. João IV. Lisboa: s/n,
1930. A análise desta correspondência e da atuação de Macedo foi realizada pelo historiador lusófilo Edgar
Prestage em extenso artigo publicado também como separata do mesmo Boletim de 1916: PRESTAGE, E. O Dr.
António de Sousa de Macedo, residente de Portugal em Londres, 1642-1646. In: Separata do Boletim da
Segunda Classe. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1916. v. 10. Para o conhecimento mais abrangente
das opiniões veiculadas pelo residente no período, deve-se também destacar a proficuidade do livro de PENA
JÚNIOR, Afonso. A arte de furtar e seu autor. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. 2 vols. 2ª
ed., que no esforço de atribuição da autoria da Arte de Furtar a Antonio de Sousa de Macedo, hoje já
praticamente descartada, transcreve várias destas cartas na íntegra, além de inúmeros trechos delas e de outras
suas obras.
16
MACEDO, A. S. Lusitania liberata ab injusto Castellanorum dominio restituta legitimo Principi, Serenissimo
Joanni IV Lusitaniae Regi Potentíssimo. Londres: Richard Hearn, 1945.
17
PRESTAGE, E. op. cit. p. 135 et seq.
18
MACEDO, A. S. Panegyrico sobre o milagroso sucesso com que Deos livrou el Rey Nosso Senhor, da
sacrílega treição dos Castelhanos. Lisboa: Oficina de Paulo Craesbeeck, 1647.
18
confrontos armados no além-mar, e a importantes vitórias portuguesas em Angola e no Brasil.
Havendo sempre Macedo sido um opositor declarado da entrega de Pernambuco aos
holandeses, sua missão em Haia fora uma estranha e arriscada cartada do governo português:
parecia atender aos críticos da proposta da cessão dos territórios conquistados no Brasil,
enviando um de seus mais ativos representantes para representar o reino, mas buscava ao
mesmo tempo enfraquecer tal oposição, pois as credenciais do diplomata o autorizavam a
demitir terras e praças do Brasil, e determinavam que acordasse inclusive sobre a restituição
do território recentemente recuperado pelos levantados de Pernambuco. Segundo
interpretação de Evaldo Cabral de Mello, a “nomeação de Sousa de Macedo era um desses
atos de malabarismo que consistem em fazer executar uma política por alguém que lhe é
contrário, no propósito de dividir a oposição que se lhe move”19.
O que as suas credenciais lhe autorizavam a fazer, porém, o embaixador não chegou a
propor, pois novas instruções, que demonstravam que os conselhos de D. João IV punham-se
contra a entrega do território americano, mandavam-no apenas oferecer a compra de
Pernambuco, a liberação do comércio com a América portuguesa, o monopólio do sal de
Setúbal, satisfação de dívidas, e uma doação 400.000 cruzados para os órfãos da Zelândia, um
dos investidores da Companhia de Comércio das Índias Ocidentais. Com sua proposta
rejeitada, e sua presença rechaçada, a curta e tumultuada estadia de Macedo em Haia serviu
para prorrogar a trégua com as Províncias Unidas, até que o advento da guerra
angloneerlandesa (1652-1654) abriu espaço para a restauração do Recife pelos portugueses.
Descartava-se assim, de modo definitivo, o projeto de entrega de Pernambuco, cujo símbolo
máximo será sempre o chamado Papel Forte do jesuíta Antonio Vieira20.
Antonio de Sousa de Macedo, durante aquela sua segunda e última viagem
diplomática, publicou, além de um Discurso e Pratica que fez aos Estados Geraes das
Provincias unidas21, seu principal tratado político, o Armonia política dos documentos divinos
19
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, s/d. p. 161. Interessado neste livro na atuação diplomática portuguesa em relação a
Pernambuco, o historiador faz importantes comentários, como o citado, sobre a embaixada holandesa de Antonio
de Sousa de Macedo. Sobre ela, também, em uma análise mais geral, e clássica, cf.: PRESTAGE, E. As relações
diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668. Coimbra: Imprensa da
Univerisade, 1928. pp. 233-236.
20
VIEIRA, Pe. Antônio. Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos
holandeses. In: ____. Escritos Históricos e Políticos. org. por Alcir Pécora. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp.
309-368. Sobre o lugar ocupado pelo Papel Forte na trajetória política de Vieira, cf.: AZEVEDO, J. L. op. cit. v.
1, pp. 124-130.
21
MACEDO, A. S. Discurso e Pratica que fez aos Estados Geraes das Provincias unidas estando todos juntos
em Cortes por morte do Principe de Orange sobre a Paz com Portugal por cuja negociação era Embaxador a 6
de Maio de 1651. Haia: 1651.
19
com as conveniencias d'Estado22, dedicado ao príncipe herdeiro D. Teodósio. A partir de
agosto de 1651, de volta a Lisboa, Macedo passou a exercer as funções de conselheiro da
Fazenda, onde mais uma vez atuou no campo oposto ao da política avançada por Antonio
Vieira em Portugal. Respondendo a duas consultas feitas ao Conselho pelo governo, a
primeira em março de 1655 e a segunda em dezembro de 1656, já portanto após a morte de D.
João IV, Macedo teve a oportunidade de demonstrar sua oposição ao alvará régio de 2
fevereiro de 1649, que impedia a Inquisição de concretizar o confisco dos bens dos acusados
em seu Tribunal, cujo decreto havia sido uma importante vitória de Vieira23. Em 1655, o
conselheiro tentou impugnar a resolução de D. João IV de passar ao próprio conselho da
Fazenda a administração dos bens confiscados aos réus do Santo Ofício, utilizando seu
parecer como um verdadeiro manifesto contra o alvará de 1649. Talvez por isso, Antonio de
Sousa de Macedo recebeu em outubro de 1655 a carta de familiar do Santo Ofício. Já durante
o governo da regente, fez-se consulta ao conselho sobre a possibilidade de utilização das
rendas do confisco no socorro ao Estado da Índia, ao que Macedo mais uma vez aproveitou
para censurar a existência do alvará que impedia tal utilização. Um dia após a resposta do
conselho o governo tomava aos depositários 120.000 cruzados; um mês depois, a 2 de
fevereiro de 1657, revogava definitivamente o polêmico alvará24.
Além de conselheiro da Fazenda, Macedo exerceu outros cargos a serviço do Estado,
como o de provedor da Alfândega e Casa da Índia, reformador dos Regimentos da Casa da
Índia, da Feitoria dos Linhos, dos Estanhos e das Ferrarias e da Junta Geral do Comércio do
Brasil, e o de redator das Instruções aos embaixadores enviados aos países do norte europeu,
com os quais mantinha correspondência, preservando aí seu contato com as atividades
diplomáticas. Serviu também, pela antiguidade, como Juiz das Justificações, e foi nomeado
para o conselho do rei ainda pela regente D. Luísa de Gusmão. Fez o discurso no auto de
juramento de D. Afonso VI, em 1656, que imprimiu em Lisboa no mesmo ano, pela oficina de
Henrique Valente de Oliveira25, por onde imprimiu também, em 1662, a sua Relación de las
fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de
Portugal, celebrando, como não podia deixar de fazer quem defendeu enquanto diplomata o
22
Id. Armonia política dos documentos divinos com as conveniencias d'Estado: exemplar de principes no
governo dos gloriosissimos reys de Portugal ao serenissimo principe Dom Theodosio. Haya do Conde: na
officina de Samuel Broun impressor ingrez, 1651.
23
Sobre o modo como foi decretado o alvará, e a defesa dele por Vieira, mesmo no púlpito, cf. AZEVEDO, J. L.
op. cit. v. 1, pp. 131-137.
24
Cf. PENA JÚNIOR, A. op. cit. pp. 204-215.
25
MACEDO, A. S. Falla que fez o D. Antonio de Sousa de Macedo, do Conselho da Fazenda de Sua
Magestade, no Juramento de Rey do muito Alto, e muito Poderoso Dom Affonso VI. nosso Senhor. Lisboa: Na
Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1656.
20
apoio, mesmo que subterrâneo, à causa dos Stuart, a aliança anglo-portuguesa efetivada com o
casamento de D. Catarina de Bragança e Carlos II26.
Quando, em 1662, o rei assume o poder, a influência de Antonio de Sousa de Macedo
é reconhecida na nomeação ao cargo de secretário de Estado, cujas funções são colocadas em
estreita sintonia com as do escrivão da puridade – cujo regimento, inclusive, é escrito pelo
próprio Macedo. O jurista vivia então o auge de sua ascensão na arena política portuguesa,
situado mais uma vez no lado oposto daquele em que lutava o padre Antonio Vieira, que
começava a experimentar os primeiros revezes de sua decadência. Em 1667, a manobra
política que afastou D. Afonso VI do trono começou por derrubar o secretário de Estado,
tendo sido exilado para 30 léguas da Corte. Chegou a passar à Inglaterra, mas voltou a Lisboa
em 1669, onde morreria no primeiro dia de novembro de 1682, conseguindo antes publicar
livros dos mais significativos de sua extensa obra, como o Eva, e Ave ou Maria triumphante.
Theatro da erudiçam, e da philosophia chrystam27 e o Dominio sobre a fortuna, e tribunal da
razão28, mas nunca a autorização para voltar ao Paço da Ribeira e beijar a mão do regente D.
Pedro, pelo que instava através dos ofícios do marquês de Fronteira – o conde da Torre de
seus tempos de secretário de Estado. Na mesma época, também, podia ser visto entre os que
iam a Sintra, acenar e enviar mensagens para D. Afonso, que vivia então enclausurado no
Paço daquela cidade, segundo afirma a tradição, e registrou no século XIX o abade de
Castro29.
Escrever e publicar, entre janeiro de 1663 e dezembro de 166630, o Mercurio
Portuguez, foi, certamente, das mais importantes atribuições de Macedo a serviço do governo
de Afonso VI. Se ao longo de sua produção intelectual ele havia se dedicado tanto à
publicação de volumosos tratados em latim, português e castelhano, mas também à de
26
Relación de las fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de
Portugal Doña Catalina (ya Reiyna de la Gran Bretaña) con el Serenissimo Rey de la Gran Bretaña Carlos
segundo deste nombre. Y todo lo que sucedió hasta embarcarse para Inglatierra Lisboa: En la Officina de
Henrique Valente de Oliveira Impressor delRey N. S., 1662.
27
Eva, e Ave ou Maria triumphante. Theatro da erudiçam, e da philosophia chrystam. Em que se representam os
dous estados do mundo: cahido em Eva, e levantado em Ave. Lisboa: na officina de Miguel Deslandes, 1676.
28
Dominio sobre a fortuna, e tribunal da razaõ: em que se examinam as felicidades, & se beatifica a vida no
patrocinio da Virgem mãy da graça, horoscopo da constellaçaõ melhor afortunada. Lisboa: na officina de
Miguel Deslandes, 1682.
29
“Todo o ladrilho se vê ainda hoje gasto, onde triste e silencioso D. Affonso 6.º passeava, em direitura á janella,
afim de ver o Conde de Castello Melhor, e ao seu antigo amigo Antonio de Souza Macedo, que fora seu
Secretario d’Estado”: SOUSA, Antonio Damaso de Castro e. Descripção do Palacio Real da Villa de Cintra,
que ali teem os Senhores Reis de Portugal. Lisboa: Typographia de A. S. Coelho, 1838. p. 21.
30
Há ainda outros sete números do Mercurio, entre janeiro e julho de 1667, que porém não eram mais escritos
por Antonio de Sousa de Macedo. Este período de publicação não será porém analisado por este estudo, pois traz
diferenças em relação à escrita e ao discurso de Antonio de Sousa de Macedo, e a definição destas diferenças
alargaria por demais o presente trabalho, sem talvez acrescentar dados significativos em relação às suas
principais proposições.
21
impressos de menor vulto, porém com vistas a públicos socialmente mais abrangentes,
naqueles anos voltar-se-ia exclusivamente para este segundo tipo de intervenção escrita. Mas
agora, publicando regular e mensalmente relações com as notícias sobre a guerra e a política
que conduziam os rumos de Portugal, e fazendo-o desde a posição de secretário de Estado,
Macedo poderia melhor compreender e manipular o discurso político e a singular forma de
atuação política que a publicação destes impressos ligeiros continha.
Os cinqüenta e cinco números que integram a coleção completa do Mercurio
Portuguez, aos quais se somam ainda mais dois suplementos, constituem uma documentação
valiosa para o historiador que pretende se debruçar sobre este conturbado período da
formação do Estado português; não, obviamente, por sua atenção à veracidade dos fatos ali
narrados, mas por ser produto e instrumento da ação política daquele governo, portanto objeto
de fundamental interesse para a compreensão das idéias e do exercício político dos homens
que o ocuparam a partir da subida de D. Afonso VI ao governo. Tal compreensão,
necessariamente, deve passar pela percepção do espaço e dos meios de atuação que aqueles
políticos viam diante de si, e para tal, o periódico difundido pela secretaria de Estado, da
autoria de um dos principais nomes do pensamento e da ação política do Portugal seiscentista,
configura-se
material
indispensável,
ainda
não
satisfatoriamente aproveitado
pela
historiografia.
Importante marco da história de Portugal, a Restauração de 1640 foi tema recorrente e
fundamental na sua historiografia. Já em 1679, D. Luis de Meneses, o 3º conde da Ericeira,
dedicava ao príncipe regente D. Pedro a sua Historia de Portugal Restaurado, obra que
fundamentou em grande parte a visão que se teve nos séculos seguintes sobre o desenrolar dos
acontecimentos durante o período restauracionista31. A extensa crônica de Ericeira, desta
forma, consolidou na posteridade seu enfoque sobre os movimentos da guerra, da diplomacia,
e da política portuguesa da Restauração, esta última sempre restrita ao ambiente cortesão,
estendendo-se no máximo aos conselhos militares, e sempre determinada pela intensidade dos
afetos e das intrigas vividas no interior dos palácios.
Além de pouquíssimas vezes referir alguma decisão política do período que não as
voltadas para a definição das estratégias militares ou as diplomáticas, Ericeira não faz
qualquer menção ao grande volume de impressos que circulou em Portugal em diferentes
31
ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado, Parte I, Lisboa, Na Officina de
João Galrão, 1679; Parte II, Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, 1698; a edição consultada por este
trabalho é, no entanto, a mais recente: ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado.
Porto: Livraria Civilização, 1945-46. 4 v.
22
momentos daquelas décadas, nem à existência dos dois periódicos que foram então
produzidos, e certamente debatidos pelos personagens retratados em sua narrativa. A parte de
sua crônica acerca do governo de D. Afonso VI, afinal, sedimentou a visão da ascensão
espúria de um rei demente, e de um ministro ambicioso, que teria maculado a política
portuguesa com ações indignas e indecorosas, além de a marcado com truculência e
arbitrariedade. Inimigo declarado de Antonio de Sousa de Macedo, e também dos seus
métodos políticos, o conde Luis de Meneses calou sobre a publicação e o impacto do
Mercurio Portuguez naqueles vexatórios anos de sua impressão, tentando, e logrando grande
sucesso, diminuir o significado do periódico no contexto histórico sobre o qual desenvolveu
sua pregnante interpretação. A publicação de sua História, de fato, fez parte de um
movimento muito mais amplo de debate sobre os significados da tumultuada conjuntura que
culminara com a deposição do monarca, e a entrega do governo e da rainha a seu irmão32,
porém o passar dos anos fez com que sua narrativa se destacasse daquela conjuntura de
debates e se alçasse à condição de versão oficial, e mais apropriada, do período, pelo que fezse necessário seu comentário aqui, e em vários pontos adiante a discussão e a problematização
de seus pontos de vista, inserindo-os de volta no contexto político sobre o qual sua narrativa
se detém.
Mesmo assim, a produção historiográfica sobre a Restauração começou a se avolumar
a partir da segunda metade do século XVIII. As diversas correntes ideológicas que desde
então dominaram e disputaram o cenário político-intelectual do país, não se limitando a
apresentar soluções para o presente e para o futuro, esforçaram-se por interpretar o passado, e
o período restauracionista atraiu sempre a sua atenção, em medidas variadas. A historiografia
portuguesa foi marcada incessantemente por apropriações deste tema motivadas por claras
intenções de legitimação ideológica; sob a pena de vários historiadores – ideólogos
pombalinos, liberais, republicanos, tradicionalistas, anti-iberistas, e outros mais – o levante de
1640 e a posterior guerra de vinte e oito anos contra Castela assumiam as feições de
arquétipos fundamentadores de sua visão e propostas para a sociedade em que viviam. O
resultado: a proliferação de interpretações por vezes fantasticamente distorcidas de um
32
São outras obras coetâneas sobre o mesmo período: FARIA, Leandro Dorea Caceres e. Catastrophe de
Portugal na deposição d'el-rei D. Affonso o Sexto e subrogação do principe D. Pedro o Unico, justificada nas
calamidades publicas : escrita para justificação dos Portugueses. Lisboa: a custa de Miguel Manescal mercador
de livros na Rua Nova, 1669; A anti-catastrophe: historia d'Elrei D. Affonso 6º de Portugal. Porto : Typographia
da Rua Formosa, 1845; PAIXÃO, Alexandre da. Monstruosidades do Tempo e da Fortuna. ed. de Damião Peres.
Porto: F. Machado, 1938.
23
importante período da história política portuguesa, por mais que esta ou aquela produção
estivesse associada a um imperativo cientificista33.
Durante largo período do século XX, a historiografia sobre a Restauração viu mantidas
tais prerrogativas, e sua visão sobre o tema ligava-se intrinsecamente à ideologia
tradicionalista e integralista que acabou por embasar a construção do Estado Novo português.
Não por coincidência, é neste período que o louvor dos historiadores ao século XVII chega a
seu auge, e o 1 de dezembro – data do levante de 1640 – é elevado a data festiva oficial. Em
1940, durante as comemorações dos trezentos anos da Restauração, é editado o Congresso do
Mundo Português, vultosa obra que apresenta-nos um amplo painel da produção
historiográfica de então, com dois dos seus volumes dedicados exclusivamente à divulgação
de dezenas de artigos sobre o período restauracionista34. De enfoques variados, tais artigos,
contudo, caracterizam-se por uma direção unívoca: a valorização nacionalista e ufanista da
Restauração, seu desenvolvimento e seus heróis. Esta visão, que se disseminou com grande
eficiência, coadunava-se perfeitamente com o discurso veiculado pelo Estado Novo, que
sempre reclamou sua inspiração essencialmente portuguesa, e aí pôde encontrar um ótimo
apoio ideológico em seu favor. Obviamente, porém, este período da historiografia portuguesa
não pode ser considerado de nula contribuição para a compreensão da conjuntura política da
Restauração, pois que, mesmo preocupados com a valorização de tais ou quais feitos e
personagens da história política portuguesa, os mais competentes estudiosos do período
legaram para a contemporaneidade trabalhos com um grande nível de informações, e mesmo
com uma esforçada crítica de fontes. Isso sem contar o fato de que a vocação monumentalista
destes historiadores produziu um incrível volume de publicações de documentação e de obras
do período, sem o qual seria bastante reduzida a possibilidade de concretização de um estudo
como o presente, tão distante dos arquivos lusos.
Para o que interessa a este trabalho, a principal contribuição encontra-se no debate
bem representado pelas obras de Antonio Álvaro Dória e Gastão de Melo de Matos sobre o
conflituoso contexto político dos últimos anos da Restauração. O primeiro, além de
responsável pela reedição comentada da crônica do conde da Ericeira, produziu uma biografia
de Maria Francisca de Sabóia, a nobre francesa que se faria rainha de Portugal casando com
D. Afonso VI, mas morreria deixando viúvo a seu irmão D. Pedro, já governando Portugal
33
Para uma concisa análise destas questões, ver TORGAL, Luis Reis. A Restauração. Breves reflexões sobre sua
historiografia. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1977. n. 1, pp. 23-40.
34
Cf. Congresso do Mundo Português. Lisboa, 1940. vols. 6-7.
24
após a deposição de Afonso, e anulação de seu casamento35. Nesta obra, Dória recorre
amplamente às diversas narrativas sobre o caso publicadas nas décadas subseqüentes à queda
de D. Afonso, dentro e fora de Portugal, dando a dimensão da variedade de versões daquela
conjuntura política, embora não se aprofunde no significado desta variedade. Antes, prefere
divulgar a sua própria versão, defendendo a tomada do poder por D. Afonso em 1662,
elogiando a direção política do conde de Castelo Melhor, embora reprovando seu
autoritarismo, responsável que seria pela vitória na guerra e pela manutenção da
independência portuguesa, e condenando a forma como o poder régio foi passado a D.
Pedro36.
Antonio Dória respondia, com o conjunto de suas observações, à opinião manifestada
anos antes por Gastão de Melo de Matos em um discurso, com o provocativo título de A falsa
história da Restauração. O historiador, que dali em diante se destacaria por seus estudos de
diversas questões da guerra da Restauração – ou das campanhas da Aclamação, como preferia
chamar37 – havia proposto, entre outras revisões da interpretação herdada do pombalismo, a
crítica à desmedida exaltação que se fazia da figura de Castelo Melhor, e à desvalorização do
papel desempenhado por D. Pedro na conquista da paz com Castela e do reconhecimento do
Vaticano da independência portuguesa. Segundo sua visão, a necessária reforma do exército
português teria sido já desencadeada pelos esforços da regência de D. Luisa, que levaram a
Portugal o experiente conde de Schomberg e já algumas levas de soldados estrangeiros, o
elogio às medidas econômicas implementadas por Castelo Melhor não tinham qualquer base,
e a tomada do poder pelo infante D. Pedro o empenhado grupo político que atuara durante o
reinado de D. João IV e a regência de sua esposa pela manutenção da autonomia lusa. Desta
forma, o governo de D. Afonso VI representaria um período de flutuações e dissensões nos
conselhos que por pouco não conduziu ao fracasso a Restauração, e de invasão no país de uma
política estrangeirada, através da influência francesa, problemas superados pelo governo de D.
35
DÓRIA, Antonio Álvaro. A Rainha D. Maria Francisca de Sabóia (1646-1683). Porto: Livraria Civilização,
1944.
36
Na biografia de D. Maria Francisca, Dória esforça-se por produzir uma abordagem mais isenta dos fatos,
mesmo assim não deixando de imprimir algo de sua visão sobre o período e os personagens ali retratados. Mas
esta será então mais claramente declarada em uma obra menor, de divulgação, exclusivamente sobre o golpe
palaciano de 1667: Id. A deposição de D. Afonso VI (1666-1668). Braga: Livraria Editora Braga, 1947.
37
Cf. MATOS, Gastão de Melo de. Um soldado de fortuna do século XVII. Lisboa: 1939; Id. Os terços de Entre
Douro e Minho nas Guerras da Aclamação. Esboço de História Orgânica. Separata de: Revista de Guimarães.
Porto: Sociedade Martin Sarmento, 1940; Id. Memória sobre a organização e a táctica dos exércitos da
Aclamação. Lisboa: 1947.
25
Pedro, este que por sua vez significou o “triunfo da forma política tradicional revigorada em
41, contra idéias estranhas por êle [Castelo Melhor] representadas”38.
Não se pode negar que esta oposição entre Gastão de Melo Matos e Antonio Álvaro
Dória, além de pôr em discussão toda a tradição historiográfica portuguesa em relação ao
tema, revela-se um índice importante das questões que ainda hoje atravessam uma
interpretação da história política da conturbada conjuntura da década de 1660. Mesmo que sua
visão estivesse ainda tão eivada do pendor nacionalista que a historiografia atual busca evitar.
O redirecionamento dos estudos sobre a história política da Restauração, após o
recrudescimento desta historiografia ufanista, deve-se em grande parte ao trabalho de Luís
Reis Torgal, publicado há mais de vinte anos: Ideologia Política e Teoria do Estado na
Restauração inovava pelo esforço em interpretar os problemas ligados às concepções de
Estado em debate na Restauração39. De forma geral, suas idéias sobre uma significativa
produção intelectual de letrados em defesa da independência do reino evidenciam uma
perspectiva em muito devedora das formulações de outro importante historiador português:
José Sebastião da Silva Dias, que em seu livro Portugal e a cultura européia, de 1953,
interpretava a cultura portuguesa como inserida numa lógica essencialmente contrareformista, ortodoxa, sempre fechada às “novidades” do mundo além-pirenaico. Mas se Silva
Dias pôde identificar pensadores políticos portugueses como importantes críticos desta
modorra cultural portuguesa40, Torgal acabou por enquadrar o pensamento político
restauracionista na tradição católica ortodoxa alvejada por seu mestre, muito ligada às
formulações neo-escolásticas, apenas reconhecendo seu enquadramento numa diretriz prática,
ou quando muito, teórico-prática, justificado pela urgência de seus objetivos legitimadores da
Restauração. Na ideologia restauracionista portuguesa, o autor não encontrou qualquer
evidência de um pluralismo transformador da vida política do reino, e insistiu no domínio de
um tom monocórdico, repetitivo. Em decorrência desta perspectiva, em relação à conjuntura
política em que se centra o presente trabalho, Torgal apenas identifica a presença de um
importante conflito político na Corte, e critica os pontos de vista do debate até então travado
sobre ele, negando encontrar-se ali qualquer disputa entre diferentes orientações sóciopolíticas, mas relegando seu comentário à modesta nota de pé de página41.
38
Id. A falsa história da Restauração. Oração inaugural do ano associativo, lida em sessão de 30 de Janeiro de
1937. Lisboa: 1938. p. 16.
39
TORGAL, L. R. Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, 1981. 2 v.
40
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura européia (sécs. XVI a XVIII). Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1953. pp. 299-300.
41
TORGAL, L. R. op. cit. v. 1, p. 97.
26
Voltada, da mesma forma, para a definição dos contornos da história das idéias
políticas em Portugal, a produção do historiador Martim de Albuquerque também deve ser
lembrada aqui. Em vários artigos e ensaios, em grande parte reunidos nos volumes Estudos de
Cultura Portuguesa, além de outros livros publicados, Albuquerque se dedicou à análise
exaustiva dos escritores políticos portugueses do século XVII, destacando, num trabalho de
grande erudição, a influência recebida de conhecidos nomes do pensamento político da época,
como Justo Lipsio, Jean Bodin e Nicolau Maquiavel, bem como de outros escritores seus
contemporâneos42. Por seu lado, porém, Martim de Albuquerque criticou com grande
veemência a metodologia utilizada por Luis Reis Torgal, que, segundo ele, o teria levado a
não perceber o enquadramento do pensamento político português numa concepção barroca, e
superdimensionado sua ligação com as questões práticas do período restauracionista43.
A interpretação da política portuguesa seiscentista encontrou ainda um importante
impulso nos estudos de Diogo Ramada Curto que, principalmente no seu livro O discurso
político em Portugal, apresentava sua reflexão no sentido de uma caracterização do
pensamento político português no século XVII, através da identificação das diversas
instâncias que motivaram e modelaram a produção do discurso político naquele país entre
1600 e 1650. Funções psicológicas, instituições e práticas culturais, além das instâncias de
controle discursivo, são analisadas neste livro a partir de uma documentação primária
extremamente variada, deixando antever a extensão do trabalho ainda por fazer relativo ao
tema. Ramada Curto esforça-se por descrever em seu livro o cenário político e social em que
o pensamento e a ação política se desenvolvem, e se conformam: um Estado em construção,
cuja sociedade vive o aceleramento da expansão de uma cultura letrada, da difusão de
impressos panfletários, e que sente o alargamento e diversificação dos grupos sociais que se
investem de ambição política, de capacidade de intervenção no processo de configuração
daquele Estado44. Neste sentido, sua obra dá um importante passo em direção a uma via de
análise do discurso que se distancia da tendência em que se idenficou Luis Reis Torgal e
Martim de Albuquerque.
Relacionando aqui o debate historiográfico acerca da política no período da
Restauração portuguesa, não se pode também deixar de citar o trabalho de um importante
42
Cf. ALBUQUERQUE, Martim de. Jean Bodin na Península Ibérica. Ensaio de História das Idéias Políticas e
Direito Público. Paris: Calouste Gulbenkian,1978; Id. Estudos de Cultura Portuguesa. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1983-2000; Id. Um Percurso da Construção ideológica do Estado. Lisboa: Quetzal, 2002.
43
Para a crítica a Torgal, ver, principalmente, Id. Para uma teoria política do Barroco em Portugal: a Summa
Política de Sebastião César de Meneses In: Estudos de Cultura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, v. 2, pp. 355-442, 2000.
44
CURTO, Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade
Aberta, 1988.
27
historiador português, Antonio Manuel Hespanha, que, não propriamente preocupado em
compreender a conjuntura política restauracionista, antes a situou em um debate mais
abrangente, a saber, o da definição de um Antigo Regime português, através de um enfoque
sobre as instituições jurídicas definidoras das práticas políticas de então. A abordagem de
Hespanha sobre a história política do Portugal seiscentista se difere muito da dos historiadores
inventariados até aqui, principalmente em relação ao seu ponto de vista sobre a teoria política
da época. Muito mais atento à definição dos parâmetros jurídicos da distribuição do poder
neste Antigo Regime português, o autor do já clássico Às Vésperas do Leviathan se distancia
da análise do pensamento político produzido então, afirmando haver nele pouca eficácia
institucional, ou seja, pouca interferência, que não indireta e eventual, na organização da
política45. Com esta obra, Hespanha descortinou, através de uma torrente informática de dados
sobre as jurisdições e os ofícios do XVII português, um mundo até então inexplorado pela
historiografia, fundamentando a visão de uma distribuição de poderes entre corpos dotados de
grande autonomia, e de práticas jurídicas conduzidas por uma doutrina ainda patrimonialista
do poder político, em que a monarquia ocuparia não mais do que a posição de um poder
preeminente, tendo quase todos os setores de sua atuação limitada pela resistência oferecida
pelos demais corpos políticos, resistência cujos principais promotores seriam os juristas
portugueses, sempre diligentes e coesos em sua visão tradicionalista do poder e suas
instituições. Em sua visão, portanto, o século XVII português ainda não teria assistido à
construção de um Estado moderno em sentido estrito, e nenhum dos eventos políticos
associados à conjuntura restauracionista parece pôr em xeque tal sistema político.
O quadro apresentado por Antonio Hespanha marcou profundamente a historiografia
da era moderna de Portugal a partir de então, definindo novos temas e abordagens que de
várias formas passaram a fundamentar os estudos que se debruçaram sobre a história política
portuguesa do século XVII46. Mesmo assim, com algum tempo a interpretação de Hespanha
45
HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal.
Coimbra: Livraria Almedina, 1994 [Esta não é a primeira edição, havendo outras, da década de 1980, em
espanhol e em português, como uma “Edição do autor” de 1987].
46
Uma boa amostra desta influência pode ser analisada no volume organizado pelo próprio Hespanha dentro do
projeto dirigido por José Mattoso: HESPANHA, A. M. (coord.). O Antigo Regime (1620-1807). In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, v. 4, 1998 [Há também uma edição anterior a esta,
de 1993, mais luxuosa, publicada pelo Círculo de Leitores, que porém não foi a consultada por este trabalho].
Textos de Antonio Hespanha posteriores à publicação do Às vésperas do Leviathan continuaram sempre
trazendo novas questões, que da mesma forma influenciaram a historiografia portuguesa no tema da
Restauração. Destaque-se artigos como: HESPANHA, A. M. A “Restauração” portuguesa nos Capítulos das
Cortes de Lisboa de 1641. In: Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa: Edições Cosmos, n. 9/10, pp. 2962, 1993; e Id. Les autres raisons de la politique. L’economie de la grâce. In: SCHAUB, Jean-Frederic.
Recherche sur l’histoire de l’Etat dans le monde ibérique. Paris: Presses de l’Ècole normale supérieure, pp. 6786, 1993. Sua visão, esboçada nestes trabalhos, do papel desempenhado pelas Cortes e das características de uma
28
passou a ser matizada por estes novos estudos, que vêm reconsiderando o papel
desempenhado pela conjuntura restauracionista em algumas transformações observadas em tal
sistema político. Em primeiro lugar, destacaram-se os trabalhos do historiador Nuno Gonçalo
Monteiro sobre as práticas políticas da nobreza portuguesa. Embora seu principal enfoque
tenha sido as transformações de tais práticas, e do estatuto social nobiliárquico no Portugal do
século XVIII47, Nuno Monteiro pôde estender suas considerações ao momento histórico
antecedente, e interpretou a Restauração como um período de clivagem em relação à
constituição das relações de poder no seio da nobreza, havendo conseguido o poder régio, em
clara estratégia de centralização do poder, atrair o mais eminente setor da aristocracia
portuguesa para a sua área de ação, reduzindo assim o peso social e político da resistência ao
alargamento da intervenção régia oferecida pelas instituições de poder provinciais48.
Mais recentemente, o trabalho de Ângela Barreto Xavier evidenciou a presença de
debates políticos durante a Restauração, observados pela autora principalmente nas sessões
das Cortes de 1668, convocadas exatamente para, entre outras atribuições, a confirmação da
deposição de D. Afonso VI e a definição do estatuto político que se conferiria a D. Pedro,
debates que representavam uma disputa entre diferentes ideais e projetos para a monarquia e
sua relação com a sociedade portuguesa. Enunciados em Cortes, não deixaram tais discursos
de obedecer às estruturas expositivas típicas dos pareceres jurídicos, mas Ângela Xavier
soube demonstrar como, naquele contexto, muitas vezes inclusive os mesmos enunciados
serviram para defender argumentações e propostas distintas, propostas estas que puderam ser
relacionadas aos diferentes tratados políticos produzidos em Portugal no mesmo período49. E
tais tomadas de posição, na ótica da historiadora, indicavam opções políticas distintas, e
mostravam a emergência, com conseqüências para as práticas políticas da época, de um
economia do dom, similar à diagnosticada em sociedades tribais pelo clássico trabalho do antropólogo Marcel
Mauss, na definição de maiores detalhes do funcionamento da política nesta sociedade corporativa descrito pelo
Às Vésperas do Leviathan, encontrou aprofundamento e defesa nas obras posteriores de Pedro Cardim e Mafalda
Soares da Cunha. Cf. CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa:
Cosmos, 1998; Id. Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII. In: Lusitania Sacra. Lisboa:
Universidade Católica Portuguesa, 2ª série, tomo XI. Pp. 21-57, 1999; Id. Religião e ordem social. Em torno dos
fundamentos católicos do sistema político do Antigo Regime. In: Revista de História das Idéias. Coimbra:
Instituto de História de Teoria da Idéias, n. 22, pp. 133-174, 2001; CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de
Bragança (1560-1640). Práticas Senhoriais e Redes Clientelares. Lisboa: Editorial Estampa, 2000.
47
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Patrimônio da Aristocracia em
Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998.
48
Já havia algumas observações neste sentido no capítulo: Id. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e
aristocracia. In: MATTOSO, J. op. cit. v. 4, pp. 297-338. Mas esta interpretação tomou forma principalmente em
Id. O “ethos” da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança: algumas notas sobre a Casa e o Serviço ao
Rei. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Instituto de História de Teoria da Idéias, n. 19, pp. 382-402,
1998.
49
XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal
Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
29
pensamento político mais voluntarista, e defensor da acentuada capacidade de intervenção
política do poder régio. Sinais deste discurso, e deste pensamento, não por acaso, foram
encontrados por exemplos em tratados de agentes políticos de relevo na conjuntura que aqui
também se objetivará, como foram Sebastião César de Meneses e Antonio de Sousa de
Macedo.
Ultimamente, Ângela Barreto Xavier enfrentou a difícil tarefa de escrever, em
conjunto com o historiador Pedro Cardim, uma biografia de D. Afonso VI, e o resultado é
bastante representativo das mudanças que já se pode observar nesta historiografia do Antigo
Regime em Portugal, mais de vinte anos passados da publicação do livro de Antonio
Hespanha, principalmente quando se depara com aspectos mais conjunturais da política
portuguesa seiscentista. Diante do desafio de reconstituir a vida, e talvez os pensamentos, de
um personagem que pouquíssimas vezes deixou algo escrito de sua própria pena, mas que foi
caracterizado e julgado por diversas obras, conflitantes discursos que, em diferentes arenas
políticas e culturais, debateram o legado de seu reinado para a constituição de Portugal,
Cardim e Xavier tentaram, com variado êxito, desvincular-se de tais discursos, e produziram
um narrativa que acima de tudo indica a relevância das tensões políticas em que se situou a
vida do monarca, antes, durante e depois de sua ocupação do trono português50. Seguindo a
tendência observada no livro de Ângela Xavier, ali são expostos, além da complexidade dos
partidarismos que convulsionaram a Corte portuguesa nas décadas de 1660 e 1670, os
conflitos ideológicos que muitas vezes, embora jamais de forma estanque, permearam as
disputas políticas do tempo, consolidando-se ainda com mais força a necessidade da análise
da produção intelectual coeva para a compreensão da política portuguesa do XVII. Além
disso, em alguns momentos são verificados eventos que apontam para o fato de que tais
disputas não se limitavam a um ambiente cortesão, tal qual tradicionalmente se o descreve,
mas que também se transformava a configuração das instituições políticas portuguesas, bem
como das forças sociais que delas participavam, e inclusive do entendimento político acerca
destas. Este ponto será decerto mais detidamente analisado adiante neste trabalho, e espera-se
aqui poder contribuir para tal debate com a análise das páginas do Mercurio Portuguez, e com
o questionamento do lugar ocupado pela publicação naquela conjuntura política.
Neste ínterim, outras obras foram produzidas que trataram de aspectos fortemente
relacionados como o objeto de estudo do presente trabalho. Neste sentido, é necessário
destacar a produção daqueles autores que se dedicaram a estudar, de maneira geral, a história
50
CARDIM, P. e XAVIER, A. B. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
30
da imprensa periódica portuguesa. Nenhum deles tendo exatamente centrado suas atenções no
Mercurio Portuguez, debruçados bem mais sobre o desenvolvimento dos periódicos
portugueses a partir do século XVIII, autores como Rocha Martins, Alfredo da Cunha, e um
pouco mais recentemente José Tengarrinha, apenas destacaram, com maior ou menor ênfase,
as suas intenções políticas, de incitamento aos combatentes e à população portuguesa a favor
da guerra, intenções essas responsáveis por uma adulteração propositada das notícias ali
divulgadas. Além disso, são também unânimes em relacionar sua publicação com a
proliferação de periódicos que Antonio de Sousa de Macedo observava na Europa,
principalmente na França, Inglaterra e nos Países Baixos51.
Foi o historiador Rui Bebiano, dedicado a empreender, na esteira de alguns estudiosos
ingleses e franceses, uma reaproximação entre a historiografia portuguesa e os temas
militares, quem procurou de forma mais atenta destacar o papel da impressão do Mercurio
Portuguez. Em seu livro A Pena de Marte, Bebiano contextualiza o XVII português no
processo moderno de laicização e institucionalização da guerra52. Tal processo, segundo ele,
deveria ser valorizado enquanto constituinte da formação do Estado moderno, tanto quanto o
esforço pela direção dos mecanismos do sistema econômicos, pela ampliação da máquina
administrativa, ou pela direção da cultura, fatores até então mais bem trabalhados pela
historiografia. Para Portugal, Bebiano identifica a importância do período restauracionista, em
que o esforço centralizador, muito ligado à conjuntura de guerra, teria ganhado grande
impulso. Neste período, além disso, a necessária e constante busca pela sedimentação de
apoios à causa restauracionista, tanto interna quanto externamente, contribuíram para a
materialização de formas diversas pelas quais o poder régio se imbuiu de atribuir um sentido e
criar as condições para a imposição de sua política. Diversas destas atitudes se concretizariam
no domínio da escrita, tendentes à construção de um sistema de comunicação organizado e
ritualizado, em que se destaca o surgimento da imprensa periódica portuguesa, representado
pela Gazeta e pelo Mercúrio Portuguez. Neste sentido, Rui Bebiano pôde destacar, numa via
de análise que deverá ser problematizada pelo presente trabalho, o propósito de orientação da
opinião contido nestes periódicos, não só em nome da mobilização plena dos entusiasmos e
vontades portuguesas, mas também de um consciente esforço de contra-informação, diante da
51
Nas obras: TENGARRINHA, José. A História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa: Portvgalia Editora,
1965; MARTINS, Rocha. Pequena História da Imprensa Portuguesa. Lisboa: Editorial "Inquérito", 1941; e
CUNHA, Alfredo da. Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa (1641-1821). Lisboa: 1941.
52
BEBIANO, Rui. A Pena de Marte. Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra:
Edições Minerva, 2000.
31
constante e perigosa ação do boato ou da iniciativa propagandística lançada pelo inimigo,
interno ou externo.
Além disso, outros dois livros recentes devem ser comentados aqui, pois se dedicaram
exclusivamente à análise da direção política do governo liderado pelo conde de Castelo
Melhor, com especial ênfase à sua atuação pessoal. O primeiro deles é o Um Escrivão da
Puridade no Poder, de Maria Luísa de Bivar Black. Em um enfoque bastante evocativo da
tradição ufanista comentada páginas acima, sua interpretação pretende evidenciar o conde
como um político que assume o poder, sem hesitações, e desenvolve um trabalho político de
grande eficiência, responsável pela manutenção da separação entre Portugal e Castela, pela
centralização política que seria necessária à vitória na guerra: o trabalho, enfim, de um
“patriota”. Para tal, Black utiliza com freqüência referências ao Mercurio Portuguez, que em
sua obra funciona como um quadro cronológico básico em que a historiadora se apóia para
distinguir etapas da atuação de Castelo Melhor à frente do governo. Afora tal caráter
instrumental, a autora define constantemente o Mercurio como o primeiro porta-voz oficial do
Estado português, defensor da posição da soberania, do poder absoluto do rei, e orientado
sobretudo pelos valores pátrios, no sentido de insuflar o ódio ao castelhano e coragem às
hostes nacionais perante o inimigo53. Tais conclusões acerca do processo político do período,
bem como sobre o caráter e intenções da publicação de Antonio de Sousa de Macedo, poderão
ser redimensionadas por alguns aspectos a ser trabalhados no presente estudo.
O segundo livro foi o publicado por Francisco da Silveira de Vasconcellos e Souza,
descendente do conde de Castelo Melhor, e proprietário de um acervo particular de
documentos e cartas respeitantes à sua trajetória. Sua análise propriamente dita do período e
da atuação política de Castelo Melhor, também voltada para o reconhecimento do patriotismo,
da inteligência, e até do pioneirismo da visão política do conde, é no entanto bastante
imprecisa, e fragmentada. Mesmo assim, seu livro traz uma grande quantidade de informações
nem sempre encontradas juntas em outras obras sobre o período, embora nem sempre
Vasconcellos e Souza fundamente-as suficientemente para que possam ser reafirmadas sem
risco54. Apesar destes problemas, porém, ambos os livros possuem o mérito – que também
favorece o vínculo com uma historiografia ufanista e monumentalizadora – de trazer em
apêndices um conjunto razoavelmente farto de cartas, pareceres, e outros documentos, que
significativamente contribuem para o estudo desta última e polêmica fase da Restauração
53
BLACK. Maria Luísa de Bivar. Um Escrivão da Puridade no Poder: o Conde de Castelo Melhor. Lisboa:
SPB Editores e Livreiros, 1995.
54
SOUZA, Francisco da Silveira de Vasconcellos e Souza. O Ministro de D. Afonso VI. Luís de Vasconcellos e
Souza 3º Conde de Castello Melhor. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2001.
32
portuguesa. Além disso, os dois trabalhos permitem também entrever a variedade de questões
que pelas quais se pode adentrar no estudo deste período.
A escolha feita aqui é a de começar pelo periódico publicado entre 1663 e 1666 pelo
secretário de Estado do governo de D. Afonso VI, e tal escolha não é fortuita. Além do
estranhamento causado pela rara referência a uma publicação mensal de notícias na
historiografia sobre o período, mesmo nas abordagens tradicionais sobre a história da guerra
da Restauração, pesou ainda mais que a impressão do Mercurio poucas vezes tenha sido
considerada enquanto elemento significativo da política realizada por aquele governo. Quando
o foi, tratou-se apenas de comentários esparsos, ou por demais genéricos, sem prévia análise
do conteúdo de suas edições. Porém, tanto os comentários de Antonio Vieira em suas cartas,
quanto os aspectos conturbados e movediços da conjuntura política em que ele era lido,
constituem já indícios de que o papel desempenhado pelo Mercurio nos enfrentamentos
políticos da época não pode ser subestimado, ou compreendido sem o devido exame de seus
exemplares. Além do mais, tais simples indícios de que, em meio a tais conflitos políticos,
posicionava-se um periódico mensal escrito pelo secretário de Estado, revelam já tratar-se aí
de um sinal das transformações dos espaços de atuação política em curso durante a era
moderna.
Para pôr à prova tais suspeitas, e caracterizar alguns traços específicos da atuação
política representada pelo Mercurio Portuguez, faz-se necessário uma leitura detida das
principais questões enfocadas pela sorte de imagens, narrativas, e de discursos veiculados em
suas páginas, leitura que aqui se realizará, na pretensão ao menos de possibilitar e estimular
que novas análises sejam feitas, que possam corrigir as falhas e acrescentar outros elementos e
pontos de vista não contemplados pelo presente trabalho. Neste sentido, as próximas páginas
serão dedicadas à interpretação das notícias publicadas que indicam, desde suas primeiras
edições, alguns dos principais problemas que Antonio de Sousa de Macedo procurava
enfrentar com a impressão do Mercurio. Em seguida, serão descritas e contrastadas as formas
discursivas com que o periódico tratava dos eventos militares daquele último período da
guerra da Restauração, em que se consumiam a maior parte de suas páginas e exemplares. Por
fim, tal interpretação se debruçará sobre as notícias em que Macedo divulgava e defendia as
medidas políticas de seu governo, principalmente as que interferiam nos rumos daquela
guerra, por cujo resultado seria, afinal, definido o destino da monarquia e do reino de
Portugal.
Uma interpretação que pretende permanecer atenta à inserção do Mercurio Portuguez
nas disputas e debates políticos de seu tempo, e voltada em última instância para identificar a
33
posição ocupada por tais impressos nestas disputas. E sempre atenta, seguindo o conselho do
padre Antonio Vieira, ao que o Mercurio diz, mas também ao que ele não diz.
34
2
AS PRIMEIRAS BATALHAS DO MERCURIO PORTUGUEZ
Foi certamente em uma das primeiras semanas de fevereiro de 1663 que saiu da
oficina do impressor régio Henrique Valente de Oliveira o primeiro número do Mercurio
Portuguez, com as novas da Guerra entre Portugal, & Castela. Tratava-se de um opúsculo
com um total de 8 páginas, incluídos a capa e seu verso, que podia ser comprado por 10 réis,
em livrarias, confeitarias, e outros pontos comerciais de Lisboa, e provavelmente em outras
cidades importantes do reino. O frontispício deste primeiro número trazia um subtítulo,
“Começa no principio do anno de 1663”, a indicação de seu autor, as informações sobre o
impressor e a cidade, além da simples referência de que o texto possuía “todas as licenças
necessarias” freqüente em publicações de pequeno volume. Na primeira página de texto, um
título interno anunciava que ali se encontrariam as novas do mês de janeiro de 1663; mas não
era com notícias que o periódico desenvolvia suas primeiras linhas, e sim com uma
justificação de sua presença diante dos olhos dos seus leitores:
Saber os successos de outros Reynos, & Provincias, naõ he sò curiosidade, mas
necessidade aos Politicos; porque de mais do que se aprende pelo exẽplos (que
sendo do mesmo tẽpo, saõ os melhores Mestres) o estado em que se achaõ os outros,
principalmente se saõ vesinhos, ou interessados, he medida per que se regulão, &
encaminhaõ os meios da conservação, & utilidade propria.55
Era para suprir tal necessidade ao exercício da política que o Mercurio Portuguez
declarava ter sido impresso, oferecendo exemplos do presente que servissem como medida
aos políticos também do presente, que os ajudassem na busca dos meios para sua própria
conservação. Tal serviço, até então, vinha sendo realizado pelos castelhanos com maior
aplicação do que pelos portugueses, mais interessados estes em obrar do que em escrever.
Mas os castelhanos, rivais de uma guerra iniciada 22 anos antes, “ou pouco informados, ou
muito ligeiros, ou com demasiada paixaõ”, faltavam com a verdade em seus escritos, fazendo
deles lições prejudiciais a quem lhes dava crédito, “& o peor he, que não sei por que
fatalidade, o tem com os estrangeiros taõ grande, que na opiniaõ mais que nas forças os
atemorìsa Castella”56.
55
Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castela. Novas do mez de janeiro de 1663.
Lisboa: na Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fol. 2r. – O título dos
diferentes números do periódico variou, porém começava sempre com Mercurio Portuguez, que é a forma como
será referido adiante, destacando-se apenas o mês sobre o qual cada edição trata. É importante também advertir
que as edições de 1666 são já compostas por outro impressor, chamado Domingos Carneyro, sediado também na
cidade de Lisboa.
56
Ibid. loc. cit.
35
De fato, desde a tomada pelos castelhanos da cidade de Olivença em 1657, dezenas de
relações, gazetas, e outras espécies de escritos foram publicados em Madrid, mas também em
outras cidades como Sevilha, Granada, Valencia e Salamanca, trazendo notícias sobre os
avanços do exército da monarquia católica sobre o reino rebelde de Portugal57, e o ano
anterior ao do início da publicação do periódico português foi o em que sua incidência cresceu
mais.
O discurso inicial redigido por Antonio de Sousa de Macedo, portanto, apontava para
o efeito nefasto das publicações castelhanas na opinião que se difundia sobre os rumos da
guerra luso-castelhana por toda a Europa. Fazia-se necessário empreender não só a guerra que
se desenvolvia nos campos de batalha oferecidos pelo território fronteiriço com o inimigo,
mas também nesta guerra de informação em que venciam com folga os castelhanos. Através
do primeiro Mercurio Portuguez, o governo anunciava ter se apercebido desta necessidade, ao
mesmo tempo em que apresentava sua mais nova arma, destinada a interferir, como faziam
então os castelhanos, mais na opinião que nas forças, nos rumos do debate internacional sobre
a guerra da Restauração. Que o seu alvo era a opinião estrangeira, era o que o secretário de
Estado fazia questão de frisar: “Para servir ao bem publico da Europa com novas certas da
guerra entre Portugueses, & Castelhanos (unica hoje entre Christaõs) se dispoem Mercurio”58.
Estes inimigos, os perniciosos escritores castelhanos, e este objetivo, transformar a opinião
estrangeira, serão sempre os mais declarados pelo periódico, mas não serão jamais os únicos,
nem os mais relevantes.
Sobreditas a sua utilidade, e a sua função, o periódico passa então a firmar um
compromisso com a veracidade dos fatos que de ali em diante seriam narrados, mês a mês.
Não seria pelo fato de ser português, que os relatos do Mercurio deveriam ser desacreditados,
“antes o receo desta sospeita o fará mais acautelado, para q, seguindo a natureza do seu
Planeta, senaõ desvie dos rayos do sol da verdade”. E anuncia ainda que, afora sua
periodicidade mensal, sempre que houvesse algo digno de se saber antes, “naõ tardará; porque
a velocidade incansavel de suas azas naõ repara em fazer por todo o mundo quantas jornadas
forem convenientes”59. Obviamente, este juramento de fidelidade à verdade não era
exclusividade do periódico, mas um exórdio costumeiro das relações e gazetas do período.
Tome-se como exemplo a dedicatória ao rei Felipe IV da obra Campaña de Portugal por la
57
Ver uma lista destas publicações, em ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Papeles, batallas y público barroco. La
guerra y la restauração portuguesas en la publicística española de 1640 a 1668. Disponível em:
<http://www.fronteira-alorna.pt/Textos/papelesbatallas.htm> Acesso em: 1 de dezembro de 2008.
58
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fols. 2r-2v.
59
Ibid. fol. 2v.
36
parte de Estremadura el año de 1662, de D. Jerônimo Mascarenhas, português que havia
ficado por Castela desde os idos do golpe da Restauração de 1640, e tornou-se um dos
principais escritores a serviço da propaganda dos Áustrias e da recuperação de Portugal, além
de bispo eleito de Leiria60, que merece aqui tal destaque por ter sido um freqüente alvo das
invectivas e das zombarias do Mercurio Portuguez, e designado pelo periódico como o
cronista de D. Juan de Áustria:
Ni el ser esta empressa tan propria de V. M. ni el verla executada por un Hijo suyo,
pudieron apartarme de la puntualidad de los acontecimientos; porque siendo mi fin
escribir solamente el hecho de lo sucedido à las Reales Armas de V. M. en sus
Catholicas Empressas, no me toca mas que referirlos como passaron en verdad, sean
unos, ò otros poço favorables, ò muy gloriosos à la notoria justicia, con que V. M.
las empreende. Los que de esta Campaña que publico, aunque fueron grandes en el
efecto, son mayores por el fin à que miraron; pues en el dictamen de todos los que
discurren sin passion, y con noticias, no se pudieron elegir puestos, que mas miren al
todo de aquella Conquista, que los que con tanta reputacion han ocupado en la
Provincia de Alentejo las Reales Armas de V. M.61
Mas não é pela guerra, no entanto, que se iniciam as notícias do primeiro Mercurio
Portuguez, mas por uma descrição “do Estado em que se acha o governo de Portugal”62. Sua
justificativa é que, esclarecendo-se já neste primeiro número como estava funcionando o
governo, notícias posteriores seriam compreendidas melhor pelos leitores. Mais do que isso,
porém, estava em jogo, logo após uma defesa dos procedimentos e da utilidade do periódico
recém-lançado, associar a ela uma defesa do governo recém-instaurado. Não por acaso,
Antonio de Sousa de Macedo começa sua descrição pelo dia do início do governo, atribuindo
ao evento uma naturalidade certamente incondizente com a memória recente que se tinha
dele:
Em vinte & tres dias de Junho proximo passado do anno de mil & seiscentos &
sessenta & dous, achandose o Serenissmo Rey Dom Affonso VI com idade
competente, a Rainha Regente sua Mãy, presentes os Tribunaes, Titulos, & Fidalgos
da Corte, lhe entregou solẽnemẽte o governo do Reyno, que avia governado seis
annos, sete mezes e dezaseis dias com grande amor, prudencia e fortaleza varonil.
Ficou S. Magestade no mesmo seu quarto do Paço, em que ainda estâ, tratando da
fundação de hũ Cõvẽto de Religiosas, a q sempre determinou retirarse, tanto q a
idade, & necessidade de seu filho o permitisse.63
Bastante sucinta, não se pode sequer chamar de narrativa esta referência do Mercurio
ao golpe do ano anterior. Estava o rei com idade competente, e o governo lhe foi entregue
60
Bispado que, com o fracasso da recuperação de Portugal, nunca chegaria a ocupar. Sobre a trajetória de D.
Jerônimo Mascarenhas há importantes informações em ÁLVAREZ, F. B. Portugal no tempo dos Filipes.
Política, cultura, representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000. pp. 282-289.
61
MASCARENHAS, Jerônimo. Campaña de Portugal por la parte de Estremadura el año de 1662. Madrid: En
la Imprenta de Francisco Xavier Garcia, 1762. fols. 2v-3r. A primeira edição saiu também em Madrid, no ano de
1663.
62
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. loc. cit. Repare-se no gracejo com que a palavra estado é aí iniciada
com letra maiúscula...
63
Ibid. fols. 2v-3r.
37
com toda a solenidade devida. Um discurso seco, de quem dissimula a existência de uma
grande polêmica na sociedade portuguesa sobre o modo como o governo fora instaurado, e
inclusive sobre a dita competência do rei para conduzi-lo. A ênfase na situação da rainha
regente dá indícios do problema. Macedo elogia seu governo, sua postura, como toda a
tradição portuguesa o faria daí em diante, mas não deixa de relembrar o tempo de duração da
regência, em anos, meses e dias, como quem diz que já fora mais do que o suficiente. Estava
agora a viúva do Restaurador no mesmo quarto de sempre, o que refutaria quaisquer
comentários sobre maus tratos e desrespeitos para com a Majestade. Para tal servia também
deixar claro que a decisão de se retirar para um convento era dela própria, e anterior às novas
condições políticas. Escreveria o conde da Ericeira anos depois, logo após tratar da tomada do
governo pelo rei D. Afonso VI, e referir sua reincidência em ações indecorosas:
Entre tantas aflições se dedicava a maior lástima à indecência com que a rainha era
tratada, porque, além de lhe tirarem toda a comunicação dos negócios do reino, lhe
dificultavam a assistência das pessoas que, por obrigação e por afecto, desejavam
não faltar da sua ante-câmara (...). E depois de apurados extraordinários dissabores,
chegou o desacato a tão subido ponto que, não valendo à rainha o sagrado oratório
onde se recolhia, foram profanadas com pedras, as vidraças das janelas, que caíam
para o eirado. E porque não ficasse duvidoso o sacrilégio e o desatino oculto, feriam
o ar indecentíssimas vozes, que se deixavam rasgar da mágoa de ouvir que era
castigada a inocência e a grandeza abatida.64
Este pesaroso discurso do conde seria, provavelmente, um eco das críticas que se fazia
ao isolamento em que, à época narrada, o novo governo procurava manter a regente deposta.
E se, de seu lado, o governo procurava afirmar que nada de impróprio vinha sucedendo com
D. Luisa, e fica evidenciado como o Mercurio Portuguez era utilizado para tal propósito, os
seus opositores por sua parte procuravam talvez se beneficiar deste discurso para reivindicar o
acesso à rainha, tentando manter aí um centro de atração para os descontentes em relação a D.
Afonso e seus ministros. A condição política da rainha era, portanto, uma questão mais
delicada do que aparece à primeira vista, e cabia ao periódico tangenciá-lo da melhor forma
possível. Neste sentido, divulgar que aquele isolamento era decorrente de uma opção da
própria D. Luísa pareceu uma boa solução ao seu redator. De qualquer forma, seria na
descrição propriamente do modo como se estava a governar Portugal que o secretário de
Estado procuraria apoiar melhor o seu discurso.
Em primeiro lugar, Macedo afirma a boa assessoria alcançada por D. Afonso com a
eleição, primeira ação de seu governo, de seis conselheiros de Estado, que desde então lhe
prestavam contínua assistência, e através dos quais “por annos, erudição, manejo de negocios,
64
ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 194546. v. 4, p. 81.
38
& vista de terras estrangeiras, se achaõ todas as noticias do militar, & politico, no secular, &
no Ecclesiastico”65. De acordo com um manuscrito de autoria de uma testemunha dos
acontecimentos, tal conselho foi formado de fato nos primeiros momentos do governo de D.
Afonso, e composto, além do visconde de Vila Nova de Cerveira e do conde de Atouguia,
pelo marquês de Cascais D. Luís Álvares de Castro, pelo conde de Óbidos D. Vasco
Mascarenhas, o conde dos Arcos D. Tomás de Noronha, e pelo presidente da Mesa de
Consciência e Ordens Antonio de Mendonça66. Sem precisar os componentes do conselho,
porém, o redator do Mercurio frisa apenas ter sido a sua eleição ponderada pela experiência e
conhecimento adquiridos durante os últimos anos no trato com as diversas áreas em que o
governo atuava; Portugal e seu monarca, era o seu discurso, estavam em boas mãos, na
assistência contínua de tal conjunto de sábios. Era justamente neste conselho que havia se
operado uma radical substituição dos nomes que antes assessoravam a regente, e cabia ao
periódico, mesmo depois de alguns meses, defender o critério utilizado para tal mudança
política.
Até aí, tratando do modo como o poder havia sido tomado, do que se fizera com a
rainha deposta, e da imediata e justa eleição de um novo grupo de conselheiros, Macedo havia
sido bastante sintético, buscando imprimir ao seu texto naturalidade, e contornando problemas
mais delicados. A principal força deste discurso inaugural do periódico, porém, ele deixaria
para a descrição propriamente do funcionamento do governo:
As cousas maiores se vem & se propõem a elRey em Conselho de Estado pleno,
quando se offerecẽ: o despacho ordinário de consultas & petiçoẽs faz elRey cõ seis
dos mesmos Conselheiros de Estado deputados para isto, & com os dous Secretarios,
a q repartidamente tocaõ as materias, todos os dias q naõ saõ santos à tarde,
assistindo pelo menos hora & meia por relogio de area; com o Secretario de Estado,
nas segundas, quartas, & sestas feiras; com o do Expediẽte & Merces, nas terças,
quintas e sabbados, sendo as quintas feiras destinadas particularmente para merces
em recompensa de serviços; mas nestas assistem de presentes sò dous dos ditos
Conselheiros. Todas as noites, ainda que sejaõ de dias santos, assina elRey os papeis
que deve assinar; no que, por serem muitos, gasta horas inteiras; & dizendoselhe que
para escusar este grande trabalho podia usar de caixilho, como costumaõ os outros
Reys, respondeo, que o faria quando se achasse cançado, & assina tudo de maõ
propria. Alem destas horas de occupação ordinaria, em todas as do dia & da noite,
sendo necessario, acode e despacha extraordinariamente, ou com os Secretarios, ou
com quem convem, os negocios occurrentes q naõ sofrem dilaçaõ: Dá audiencias
geraes todas as quartas, & sestas feiras pela manhãa, & aos fidalgos aos sabbados às
mesmas horas; & outras audiencias particulares sem dia, nem hora certa.67
65
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 3r.
D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 41-42. Este manuscrito, presente no acervo da Biblioteca
da Ajuda e publicado pelo historiador Eduardo Brazão, e a discussão sobre sua autoria, serão comentados
adiante.
67
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fols. 3r-3v.
66
39
Realmente, o texto publicado pelo secretário de Estado está muito distante daquilo que
convencionalmente se espera de uma representação do poder monárquico. O que é ressaltado
aí é uma rotina incessante de trabalho, através da qual o leitor ficava conhecendo a divisão
nos dias da semana dos despachos do rei, seus conselheiros e secretários. E o quadro era de
um trabalho árduo, em que a majestade via-se ocupada noite e dia, quase todos os dias, com
horários fixos e contados no relógio! Macedo trazia ainda a informação de que havia um dia
voltado apenas para o direcionamento das mercês em recompensa de serviços; o governo
buscava nitidamente atrair tais serviços, garantindo não só que seriam recompensados, mas
dizendo o dia e hora em que eles seriam avaliados. Além disso, o periódico informava ao
público os turnos de atendimento do monarca, das audiências gerais e das específicas aos
fidalgos, tudo funcionando em uma rotina previamente determinada, organizada e previsível.
Na construção do discurso apresentado pelo Mercurio Portuguez em sua primeira
edição, portanto, Antonio de Sousa de Macedo opta por tangenciar aqueles temas mais
polêmicos do momento, como o golpe do ano anterior e a situação da rainha, e investe na
valorização da política levada a cabo pelo novo governo, que além de composto por um grupo
de experientes conselheiros, é apresentado com um regular e organizado funcionamento
cotidiano. Em meio a tal descrição, surge a imagem de um rei da mesma forma dedicado ao
trabalho, que mesmo quando lhe é sugerida uma forma de agilizar o seu serviço, utilizando
um caixilho para substituir a assinatura de próprio punho, recusa-se a acompanhar o que já
seria uma tendência em outros governantes. Um monarca diferente, portanto, cujo valor se
observava na aplicação às funções governativas. Sua rotina, continua o Mercurio, ficava então
repartida entre estas atividades, as missas de todas as manhãs, e os jantares com que sempre
Afonso se apresentava às vistas de seus vassalos, para alegrá-los. Até esta prática,
tradicionalmente vinculada a uma representação cortesã de poder soberano, é veiculada pelo
discurso do Mercurio como parte da rotina de trabalho e da disponibilidade do rei. Desta
forma, ficavam tomadas todas as horas do seu dia: “se deixa ver, que poucas ficaõ para se
entreter retirado; sẽdo admiravel em hũ Rey moço taõ repẽtina mudãça a tãto trabalho, &
aplicaçaõ, do ocio, & passatẽpos em q os Príncipes costumaõ ser criados”68. Macedo
pretendia ressaltar a mudança de comportamento do jovem Afonso, e ao mesmo tempo
naturalizar o seu comportamento anterior à posse do governo.
Além de contrariar os rumores sobre a devassidão em que D. Afonso manteria sua
rotina, tal descrição do cotidiano de trabalho e decisão do governo tinha também como
68
Ibid. fol. 3v.
40
importante efeito mitigar a opinião de que o conde de Castelo Melhor viria impondo seu
arbítrio a todas as searas da política portuguesa. A posição ocupada por Luis de Vasconcelos e
Sousa no governo seria sempre um tema polêmico naqueles anos, e o debate sobre ele se
estenderia até as reuniões das Cortes de 1668, mostrando-se um ponto crucial da disputa entre
modelos políticos para a monarquia portuguesa69. Desde cedo objeto de críticas de diversos
setores, que corriam em rumores, cartas e papéis de Lisboa, os poderes atribuídos ao conde
pelo cargo de escrivão da puridade teriam de ser defendidos não só pela publicação no início
de 1663 do Regimento70 do cargo, da responsabilidade do próprio secretário de Estado, como
pela obra Epítome Unico da Dignidade de Grande e Mayor Ministro da Puridade, do
carmelita descalço Francisco do Santíssimo Sacramento, esta já de 166671. Enquanto o
Regimento trouxe a investidura jurídica e uma descrição sumária dos requisitos e das amplas
atribuições do escrivão, o livro do frade de três anos depois investiu largamente na
justificação histórica da presença de um principal conselheiro ao lado do monarca, que se
assentava em desde exemplos bíblicos até os da tradição medieval ibérica72.
Como, portanto, não pudesse deixar de tratar mais diretamente da presença do conde
na política portuguesa de então, Macedo deixa para o final de sua descrição do “Estado do
governo” naquele Mercurio, saído ainda antes do Regimento que seria publicado em março de
1663, um comentário sobre o cargo de escrivão da puridade, não por acaso retornando ao tom
mais sintético com que tratara do início do governo:
Dos Conselheiros de Estado escolheo hum para escrivão da puridade; officio que
costumarão ter os Reys Portugueses; pessoa das maiores do Reyno, de juizo, valor,
expediente, & fidelidade digna de tão grande lugar; com quem, como com primeiro
Ministro, possa tratar as materias mais particulares; & por quem os Vassalos, sem o
temor reverencial que causa a Real presença, possaõ a todo o tempo com mais
liberdade, & facilidade advertilo, & representarlhe suas queixas, & tudo o que for
necessario.73
69
Cf. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal
Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. pp. 142-150.
70
O Regimento do Escrivão da Puridade encontra-se publicado em algumas coletâneas de documentos
portugueses. A transcrição mais visitada é a de SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronológica da
Legislação Portugueza (1657-1674). Lisboa: Imprensa de J.J. A. Silva, 1854-1859. pp. 83-85. Mas encontra-se
também entre os documentos presentes nos anexos de BLACK, Maria Luisa de Bivar. Um Escrivão da Puridade
no Poder: o Conde de Castelo Melhor. 1662-1667. Lisboa: SBP Editores e Livreiros, 1995. pp. 139-143.
71
SANTÍSSIMO SACRAMENTO, Francisco do. Epítome Unico da Dignidade de Grande e Mayor Ministro da
Puridade, e de Sua Muita Antiguidade, e Excellencia. Lisboa: Oficina de João da Costa, 1666. Sobre o autor, ou
melhor, sobre a falta de dados sobre ele, cf. TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e Teoria do Estado na
Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. v. 2, pp. 298-299.
72
Uma análise mais detida dos dois textos, bem como informações sobre as críticas contrárias ao poder cedido
ao cargo, pode encontrar-se em CARDIM, Pedro, e XAVIER, Ângela Barreto. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2006. pp. 138-141. Exclusivamente sobre o livro de Santíssimo Sacramento, ver TORGAL, Luis Reis.
Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. v. 2,
pp. 132-133.
73
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. loc. cit.
41
De forma bem diferente do que apareceria meses depois no Regimento, em que ficava
explícito que absolutamente “tudo o que pertencer ao Estado desta Corôa, se expedirá por sua
ordem e ofício”74, o discurso do primeiro Mercurio Portuguez afirma também a antigüidade
do ofício, mas divulga se tratar de nada mais do que um escolhido entre os outros
conselheiros, por sua condição e qualidades, para assistir mais particularmente ao trabalho do
monarca, e principalmente atuar como um intermediário entre o rei e os vassalos, com quem
estes poderiam expor suas queixas com mais tranqüilidade, sem o temor causado pela vista de
D. Afonso. Parece que então já se fazia a crítica de que Castelo Melhor vinha impedindo ao
máximo o acesso direto ao rei, e impossibilitando totalmente audiências sem a sua presença;
esta sim, portanto, é que trazia temor a alguns vassalos, e em vista disso o comentário do
Mercurio não deixa de se revestir de algum cinismo.
Importante é perceber também que, apesar do que escreveria anos depois D. Luis de
Meneses, não havia qualquer constrangimento por parte do governo de identificar o
restaurado ofício de escrivão da puridade com o de um primeiro ministro75. O principal
objetivo do comentário do periódico do secretário de Estado não fora este, mas o de
considerar as funções do cargo dentro do funcionamento do governo caracterizado até ali, em
que se proclamava sua regularidade, seu empenho, sua eficiência e sabedoria, e
principalmente seu direcionamento para o mais aberto possível relacionamento com os
vassalos e atenção aos seus interesses e demandas. No discurso do Mercurio Portuguez,
importava divulgar o escrivão da puridade como mais uma engrenagem da incessante
máquina administrativa que operava em torno do jovem, mas surpreendentemente dedicado,
rei D. Afonso VI.
Este modo como o periódico procura divulgar o funcionamento regular e acessível do
novo governo, bem como a aplicação do jovem rei aos trabalhos cotidianos que este
funcionamento lhe impunha, ou mesmo rebater as críticas à posição ocupada pelo conde de
Castelo Melhor, já na mesma primeira edição em que o propósito de interferir na opinião dos
estrangeiros sobre a guerra ibérica foi declarado, cabe notar, parece de alguma forma
desmentir a realidade deste propósito. Não se pode imaginar de fato que fosse do interesse dos
políticos franceses, ingleses ou holandeses conhecer a rotina de trabalho do monarca e seus
ministros, os horários de suas audiências, ou o modo como eram divididos os despachos
régios pelos dias da semana. Da mesma forma, não era aos estrangeiros que se devia explicar
74
BLACK, M. L. B. op. cit. p. 141.
“E porque poderia parecer odioso o título de primeiro-ministro, conseguiu o conde o de escrivão da Puridade”:
ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, p. 79.
75
42
o papel desempenhado pelo escrivão da puridade. Com efeito, embora Antonio de Sousa de
Macedo tivesse o costume de enviar o Mercurio Portuguez para os diplomatas portugueses
sediados em outros centros políticos europeus76, e que sua narrativa de feitos bélicos
provavelmente servia como base para publicações nestes centros de textos responsáveis por
divulgar a versão portuguesa dos fatos, já se pode desconfiar, pela primeira edição do
periódico, que a motivação principal de sua publicação pela oficina de Henrique Valente de
Oliveira não era esta. Até porque não era o impacto do Mercurio em terras estrangeiras que
incomodava ao seu mais insigne opositor, o padre Antonio Vieira.
Parece já, portanto, que proclamar que o periódico era uma arma do novo governo,
criada para reconquistar alguma credibilidade portuguesa perdida em terras estrangeiras, era
apenas mais uma das novas trazidas por aquele seu primeiro número, com que talvez se
procurava dissimular outras mais urgentes, e próximas, causas que motivaram sua publicação.
Para se conhecer melhor tais causas, e tais motivações, é preciso se debruçar sobre suas
próximas edições, e buscar identificar quais foram as primeiras batalhas enfrentadas pelo
Mercurio Portuguez.
2.1 EXPECTATIVAS DE PAZ, EM TEMPO DE CONJURAÇÕES
De uma leitura geral do Mercurio Portuguez, sobressai o grande predomínio das
notícias de guerra. Com efeito, como se perceberá em mais detalhes no próximo capítulo, são
raras as edições que não relatem algum feito militar, e são muitos os exemplos das que tratam
quase exclusivamente do desenrolar do conflito com o exército castelhano. Mas alguns
primeiros aspectos do discurso do periódico sobre eventos militares importarão ser analisados
já aqui, pois trazem indícios das primeiras batalhas travadas por Antonio de Sousa de
Macedo, indícios dos problemas, sempre internos ao reino, a que o secretário de Estado
procurou responder, mais ou menos dissimuladamente, e que moldaram os primeiros
contornos de seu discurso, com conseqüências significativas para todas as suas edições a
partir de então.
Na introdução às novas do mês de fevereiro de 1663, com efeito, assim como se fizera
na edição de janeiro em relação ao governo, é abordado rapidamente o estado mais geral da
guerra da Restauração àquela altura: “basta dizer, q trabalhando as Armas Portuguesas, &
76
Através de sua correspondência com o marquês de Sande, embaixador na Inglaterra, que será comentada
adiante, se terá um exemplo desta prática.
43
Castelhanas ha mais de 22 annos, estão hoje tão furiosas, como se este fora o primeiro”77. A
total concentração dos esforços de guerra castelhanos contra Portugal, três anos depois de
firmada a paz com a França, ainda não havia sido suficiente para derrotar os lusitanos. Ao
contrário, argumenta o Mercurio, padeciam naqueles anos os castelhanos ainda mais do que
os portugueses, principalmente por duas razões:
He hũa, bater Castella certa moeda de cóbre, em q ao valor intrinseco acrescẽtou
sete partes de valor extrinseco, para a fazenda Real, sem reparar em que se destrue o
Reyno, & os Vassalos com a muita desta moeda que metem os estrãgeiros, pelo
ganho excessivo. Outra he que, por Castella estar despovoada de gẽte, forma seus
exercitos pella maior parte de Estrangeiros; os quaes, álẽ das grãdes despezas com q
são conduzidos, fazẽ guerra a Portugal sò tres mezes da Primavera (q he só o tẽpo
capaz de campear) & os outros nove mezes do ano a fazẽ aos Castelhanos cõ seus
alojamẽtos tão rigurosos q não se cõtẽtando cõ occupar as casas, obrigão os donos a
q lhes dẽ de comer cõ regalos; cõ o q os naturaes as deixão, & se despovoão lugares
inteiros.78
De acordo com o raciocínio exposto ao leitor, Antonio de Sousa de Macedo
relembrava os idos de 1660, quando se blasonava em Castela que o tratado de paz com a
França anunciava o fim próximo da rebeldia portuguesa, para então traçar um quadro da
conjuntura coeva, suficiente para contrariar aquelas arrogantes expectativas castelhanas.
Introduzindo no Mercurio as primeiras reflexões sobre a situação da guerra já vivida há mais
de duas décadas, Macedo mostra sua preocupação primeira em desmentir a superioridade
militar do inimigo, elemento presente no imaginário e nos comentários castelhanos, europeus,
e certamente também nos portugueses, sobre o conflito desde seus primeiros movimentos79.
Inserindo Castela no padecimento de problemas típicos das guerras daquele tempo, como a
valorização artificial da moeda, coerção das tropas sobre a população nas fronteiras, e
conseqüentes miséria e despovoamento, o periódico pretende apontar para uma igualdade de
perdas e danos entre as forças rivais, ao que se segue a afirmação de que “de ambas as partes
se deseja igualmente a paz”80.
Tal declaração é o ensejo para a primeira notícia daquela edição, sobre uma prática
que vinha sendo realizada na fronteira de Entre-Douro-e-Minho com a Galícia, com o intuito
de organizar uma conferência, em que, mediados pelo rei da Grã-Bretanha, alguns fidalgos
dos mais proeminentes dos dois reinos negociariam os termos de um tratado de paz.
Desnecessário pode ser lembrar que, tratando-se de uma guerra iniciada por um golpe voltado
para a conquista da independência do reino português frente à monarquia de Castela, o
77
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1663. fol. 2r.
Ibid. fols. 2r-2v.
79
Cf. COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. pp. 2325.
80
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1663. fol. 2v.
78
44
estabelecimento da paz firmaria, ao menos em primeira análise, a vitória dos insubordinados
de 1640. O responsável pelo início das negociações teria sido João Nunes da Cunha, “fidalgo
bem conhecido neste Reyno”81, que iniciou o contato com D. Luís de Menezes, marquês de
Penalva, nobre próximo ao duque de Medina de las Torres, eminente político castelhano
daquele tempo.
No momento da publicação do periódico, já estariam designados os comissários de
ambos os lados que participariam da dita conferência: Portugal seria representado pelos
governadores das armas das províncias de Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes,
respectivamente o conde de Prado e o conde de São João, além do próprio João Nunes da
Cunha, e Castela pelo marquês de Penalva, pelo governador da Galícia D. Balthazar de Rojas
Pantoja, e pelo arcebispo de S. Tiago. Não por acaso, Antonio de Sousa de Macedo destaca
nesta notícia, acima de tudo, como os artigos preliminares que informavam a organização da
conferência estabeleciam a igualdade de tratamento entre as partes, pois não só o lugar da
conferência deveria ser eqüidistante de uma das praças que cada rei possuísse naquela
fronteira, como as plenipotências dos comissários deveriam ser passadas na mesma forma,
iniciadas por “Eu elRey”, e mais nenhum título. Mostrava assim o periódico que parecia
resolvido ao menos o ponto que parecia mais difícil: “estando os animos taõ encontrados, &
fica aberta a porta para se tornar a tratar quando Deos seja servido de dar paz a estas duas
Coroas”82.
O tom deste segundo Mercurio Portuguez é, portanto, de concórdia, e se não chega a
difundir total confiança na resolução da conferência de paz, pretende certamente incitar os
leitores a acompanhar com boas expectativas o seu desfecho. Porém, na edição seguinte,
sobre o mês de março daquele ano, Antonio de Sousa de Macedo faz uma menção rápida,
apenas em seu último parágrafo, à conferência sobre o tratado de paz anunciada no número
anterior, notando que ainda não se iniciara pela ausência na raia do Minho do conde de São
João. De forma bem mais seca do que no mês anterior, conclui-se o texto com a afirmação de
que o conde “hoje deve ser chegado àquella parte, & veremos os termos em que se poem este
negocio”83. Durante o resto do ano, e dos próximos, o periódico do secretário de Estado não
traria mais nenhuma notícia sobre o desenvolvimento das negociações.
Porém, outros documentos do período trazem dados inquietantes em relação à
construção do discurso do Mercurio sobre o tema. De acordo com o historiador espanhol
81
Ibid. loc. cit.
Ibid. fol. 3v.
83
Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 4r.
82
45
Rafael Valladares, um conjunto de manuscritos encontrados Arquivo Histórico Nacional de
Madrid dão notícia de que João Nunes da Cunha negociava no Minho não em nome do rei,
mas de sua mãe D. Luísa, e propunha o abandono do trono por um D. Afonso incapaz, em
troca de que o rei Felipe IV instituísse uma casa de lustre para seu irmão D. Pedro, “a
semejanza de las que fundaron el emperador y otros reyes, como la de Florencia”84. O
governo castelhano já teria inclusive chegado a aceitar a proposta, mas a negociação
desbaratou-se quando seu sentido foi descoberto pelos próprios parciais de D. Pedro, e por
influência do embaixador inglês.
Tal documentação referia ainda, como conseqüência desta descoberta, o afastamento e
a posterior reclusão da rainha em um convento, a declaração da maioridade de D. Afonso e os
desterros do marquês de Ferreira e do marquês de Gouveia, entre outros partidários de Cunha.
Neste ponto se observam algumas incongruências desta informação, já que o afastamento da
rainha e a maioridade de Afonso sucederam ainda em meados de 1662, assim como o desterro
do marquês de Ferreira, se se considerar tratar-se de D. Nuno Álvares Pereira de Melo, 4º
marquês de Ferreira, mas já duque de Cadaval desde 1648. Destas ditas conseqüências da
descoberta da conjura, em 1663 deram-se apenas a reclusão de D. Luísa ao convento, em
março, e a saída de Lisboa do marquês de Gouveia, este que Vieira parabenizaria em carta de
16 de janeiro de 1664 por se aproximar o primeiro aniversário de desterro.
Para Valladares, que não comentou tal problema, o caso servia para explicar porque,
quase três anos depois, o embaixador português na Inglaterra Francisco de Melo, marquês de
Sande, tentava fazer crer ao chanceler inglês Lord Clarendon que naquelas práticas do Minho
haviam sido discutidos apenas aqueles capítulos preliminares noticiados pelo Mercurio, que
determinavam “la mediación de Su Majestad Británica, una breve tregua y un modo de tratar
indiferente”85, e que não se buscara então uma paz verdadeira, mas apenas uma concórdia
aparente.
De fato, não só o marquês de Sande não comentaria em 1665 com Clarendon o
suposto golpe contra D. Afonso, que, de acordo com a documentação castelhana João Nunes
da Cunha articulava em 1663, como também não trata dele Antonio de Sousa de Macedo, nem
no Mercurio Portuguez, e tampouco nas cartas enviadas ao mesmo embaixador português no
primeiro semestre daquele ano. Como um dos principais correspondentes de Sande, Macedo
84
VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640~1680. Guerra, conflicto y poderes en la monaqrquía
hispânica. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1998. p. 202.
85
Biblioteca Nacional de Lisboa, Pombalina, ms. 548, fol. 49, D. Francisco de Melo ao Senhor Chanceller [Lord
Clarendon]. Oxford: 6/11/1665, apud: VALLADARES, R. loc. cit.
46
em várias cartas lhe enviava as últimas novidades sobre as práticas desenvolvidas por Cunha
na fronteira com a Galícia. Assim faria, por exemplo, em carta de 20 de fevereiro de 1663:
João Nunes da Cunha he partido para Entre Douro e Minho; o Conde de São João,
que he outro comissario para o tratado chegou aqui há três dias, voltará logo; o
Conde de Prado que he o terçeiro lá está a pé quedo. Na gaseta deste mez de
Fevereiro se deve meter, o que toca a tal tratado.86
Há poucos dias, portanto, de escrever a citada edição do Mercurio sobre fevereiro de
1663, o secretário de Estado trata das negociações do Minho no mesmo pé em que faria no
periódico, com a única diferença de que informa a Sande que o conde de São João estava em
Lisboa, e não na fronteira. Em outra carta ao embaixador, de 29 de março daquele ano, diz
apenas que da “conferençia do Minho não temos ainda novas, porque o Conde de São João há
poucos dias que chegou lá”87: a mesma justificativa, portanto, que encontra-se no Mercurio de
março, que de acordo com a própria carta, àquela altura ainda estava já para ser impresso88. A
última referência de Macedo ao assunto com o marquês de Sande seria em carta de 20 de
maio, mas já sem qualquer esperança:
As conferençias das pazes no Minho se não começarão ainda, porque ouve huma
defferença nas prempotençias conferindo-sse primeiro só por João Nunes da Cunha
com Dom Luis de Menezes, agora vão emendadas, mas não he isto couza de que se
possa esperar bom suççesso, tudo são cavilações castelhanas, mas aqui pareçe que se
não rompa o tratado pela nossa parte.89
Talvez respondendo a um questionamento do próprio embaixador sobre o desenrolar
das negociações de paz, a única coisa informada por Macedo é que teria havido alguma
“diferença” nas plenipotências, ou seja, naquela fórmula inicial da transmissão de poderes aos
comissários, conferidas em um primeiro momento apenas a João Nunes da Cunha e ao
marquês de Penalva. Paira a dúvida, portanto, ao leitor atual da carta, se Macedo dava a
entender ao marquês de Sande apenas a ausência das plenipotências dos outros quatro
comissários previamente designados, ou se ficava claro que a diferença em questão era a não
inclusão da fórmula “Eu elRey” que garantiria a igualdade entre os dois lados da contenda. De
qualquer forma, é nítido que, se houve alguma maquinação por parte de Cunha para derrubar
o monarca português, o secretário de Estado o dissimula, e atribui toda a culpa do insucesso
das negociações aos ardis dos castelhanos. A acusação fazia sentido, inclusive, porque na
86
RAU, Virginia (ed.). Livro de Cartas que Escreverão ao Ilustrissimo senhor Francisco de Mello, Marquês de
Sande, sendo Embaixador Extraordinário em Inglaterra, e França, em os Annos de 658 athe 665. Lisboa:
Instituto de Alta Cultura, 1969. p. 127.
87
Ibid. p. 145.
88
“a gaseta de Março ainda não está impressa; nella não há novidade se não que vespora de Ramos se passou a
Rainha nossa senhora para a quinta, acompanhando-a El Rei, nosso senhor, e o Senhor Infante com toda a
Corte”: Ibid. p. 144.
89
Ibid. p. 151.
47
mesma carta Macedo já enviava notícias a Sande sobre o assédio do exército castelhano
contra a cidade portuguesa de Évora.
Quase três anos depois, na edição do Mercurio Portuguez sobre fevereiro de 1666,
quando novas negociações de paz seriam noticiadas, o periódico apresentaria uma postura
bastante diferente da de três anos antes: o rei inglês, “desejoso do sossego destas duas Coroas,
& de que cessem as morte, & danos que ha vinte & sinco annos se experimentão em guerra
tão porfiada”90, teria enviado dois membros de seu conselho de Estado, Richard Fanshaw e
Robert Southwell, para, respectivamente em Castela e Portugal, promover acertos de paz entre
os reinos. Essa seria, segundo a introdução deste Mercurio, a “nova principal que os zelosos,
& curiosos esperão na Relação presente”91, e isso no mês em que a maioria das suas páginas
estava dedicada à descrição do funeral da rainha D. Luisa, que vivera reclusa em convento
desde março de 1663 até então. A ironia de Antonio de Sousa de Macedo em relação aos
“curiosos” leitores interpreta-se melhor com a leitura dos seus comentários à chegada do
embaixador inglês:
Mercurio ainda que pellos antigos foi tido por fallador, está muito emendado depois
que se naturalizou Portuguez; & assi não conta mais particularidades. Sòmente diz,
& affirma, que a resposta que sua Magestade mãdou dar, foi muito valerosa, muito
arrezoada, & muito agradecida a este bõ officio de elRey da Gram Bretanha, a quem
verdadeiramente deve muito este Reyno por muitas vias. Antes de se dar a resposta
se considerou muito profundamente a materia cõ todas as circunstancias que ha de
presente, & poderaõ succeder no futuro, acerca do estado das cousas de Portugal, de
Castella, & de toda Europa; pello que os amigos pódem estar seguros, & os inimigos
desenganados de que nada passou sem se advirtir.92
Repare-se: o raciocínio que proclamava as conseqüências nefastas da guerra, as mortes
e danos incessantes, o desassossego dos dois reinos envolvidos, reaparece, mas agora é
atribuído exclusivamente ao juízo de Carlos II, cujas boas intenções são devidamente
reconhecidas e louvadas. A postura da política portuguesa e do redator do Mercurio, porém,
representada pela resposta “valorosa” e “arrazoada” de D. Afonso, é agora, no mínimo, mais
cética. E quando o seu discurso volta-se para tranqüilizar amigos e desenganar inimigos,
assegurando a ponderação e a justeza da resposta portuguesa, fica claro que a expectativa de
tais inimigos deveria girar em torno de uma aceitação afobada do governo de D. Afonso em
relação às negociações de paz. Dos inimigos, e também dos mais curiosos, a quem o
periódico, já não mais o falador de outrora, frustra com a atitude prudente de não descrever os
detalhes da resposta a Southwell. Mesmo assim, a opinião que Macedo procura difundir neste
momento explicita-se mais logo adiante, quando declara:
90
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fols. 1r-1v.
Ibid. fol. 1r.
92
Ibid. fols. 1v-2r.
91
48
Se Castella naõ vier no que he justo, serà demonstraçaõ de que Deos a quer acabar
de todo, & ainda que pella guerra puderamos esperar grandes ventagens, com tudo o
que Portugal mais deseja, he hũa boa paz, como a melhor de todas as cousas, &
recomendada por Deos; & para a conseguir, conforme aquela excellente sentença:
Qui vult pacem praeparat bellum; mandou sua Magestade aprestar com toda a
pressa os seus exercitos, principalmente o de Alen-Tejo, que serà luzidissimo.93
Qui vult pacem praeparat bellum: a alusão à famosa sentença de Flávio Vegécio94,
referência primeira dos escritos de arte militar daquele período, marca bem a significativa
mudança do discurso do Mercurio Portuguez, que três anos antes enchia o seu leitor de
esperanças quanto à conclusão positiva da conferência de paz na raia norte do reino. Portugal,
ainda agora, tudo o que quer é uma “boa paz”, mas não em termos injustos, e não sem
ponderar, com uma confiança que não se proclamava em fevereiro de 1663, que a
continuidade da guerra tendia a trazer vantagens para os portugueses. E, sobretudo, não
deixando crer que as movimentações diplomáticas pudessem interferir, ou amainar a
disposição do exército lusitano para a campanha que se aproximava. Quem quer a paz, afinal,
prepara a guerra, e enquanto “se tratava de acordos, foraõ chamados por sua Magestade a
Salvaterra os Védores gérais do exercito, & artilheria de aquella Provincia; & ambos se
expediraõ logo com tudo o necessario”95. Efetivamente, ali se pretendia passar aos leitores a
idéia de que o governo já não mais aceitaria em quaisquer termos a paz com Castela, e que era
nos campos de batalha que se definiriam os contornos da solução diplomática.
Tamanho é o contraste entre as duas abordagens do Mercurio, que, nesta de 1666, da
notícia sobre negociações de paz se chega ao mote dos relatos de guerra do mês, que
começam narrando a entrada em território inimigo de Pedro Jacques de Magalhães,
governador das armas do partido de Riba Côa, província da Beira, com quinhentos cavalos96 e
mil infantes. As tropas teriam saqueado mais de seiscentas cabeças de gado vacum, mais de
duas mil ovelhas, cem cavalgaduras e muitos porcos, chegando para tal a três léguas da praça
castelhana de Ciudad Rodrigo, sem que saísse dela a sua cavalaria para combatê-las, o que, de
acordo com o periódico, era a intenção de fundo da ação portuguesa. Era grande o medo
sentido pelos soldados da cavalaria da praça, comenta Antonio de Sousa de Macedo. Voltando
já dos arredores de Ciudad Rodrigo, Pedro Jacques teria ainda queimado uma atalaia inimiga,
cujos prisioneiros questionaram o ataque, argumentando ser público em Castela que já
estavam feitas as pazes entre os dois reinos. A postura do governador diante da estupefação
93
Ibid. fol. 2r.
Citando de cor, Antonio de Sousa de Macedo altera o primeiro verbo da oração “qui desiderat pacem
praeparat bellum”, de VEGÉCIO, Epitoma Rei Militaris, Prologus, 3.
95
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. loc cit.
96
Note-se que, quando o Mercurio Portuguez fala em cavalos, na linguagem militar do tempo, refere-se ao
animal e seu cavaleiro. “Cavalo”, portanto, é cada um dos integrantes da cavalaria.
94
49
dos prisioneiros retoma e arremata a discussão sobre as negociações de paz, quando ele os
responde dizendo “q esta pratica de pazes poderia ser tal como outra com que ha tres annos
os Castelhanos quizeram entreter pella parte do Minho; & que assi pelejassem, ou tivessem
paciencia, em quanto não estivessem solemnemente celebradas”97.
Só então chega o periódico a relembrar a conferência de paz de 1663, e é interessante
perceber como se conduziu até aí o fio de seu discurso. Da ironia diante da curiosidade que se
disseminava em torno dos rumos da negociação de paz, e também em torno de como eles
seriam relatados pelo Mercurio, e da declarada prudência em não divulgar todos os detalhes
da negociação, passou Macedo a demonstrar a força e o preparo do exército português, e ao
mesmo tempo indicar que derivava da confiança em tal força uma postura firme e madura do
governo diante da bem intencionada missão dos enviados ingleses. Adentrando neste tom na
narração dos feitos bélicos do mês, delega somente à fala de Pedro Jacques a incumbência de
relembrar ao leitor a prática de 1663, denunciá-la como farsa castelhana, e incutir a
constatação de que os tempos de então já eram outros, e outra era a atitude e a posição do
exército português. De fato, como se detalhará no próximo capítulo, os rumos da guerra muito
haviam mudado naqueles três anos, tanto como o discurso do Mercurio Portuguez sobre ela.
Desde a rápida menção feita na edição de março de 1663, esta, posta na boca de Pedro
Jacques de Magalhães, seria a primeira referência do Mercurio às conferências do Minho, e a
interpretação de que elas não passaram de maquinação castelhana seria a mesma da última
carta ao marquês de Sande sobre o assunto. Mais uma vez, se houvera qualquer segunda
intenção por parte dos próprios portugueses envolvidos, Antonio de Sousa de Macedo fazia
questão de nada comentar. Mas a referência a curiosos e inimigos – provavelmente os
mesmos – que esperavam que outra vez o Mercurio Portuguez trouxesse detalhes da reunião
com o embaixador inglês, tal como o periódico, ainda falador, fizera três anos antes, deixa
entrever a tensão interna gerada em torno de negociações daquele tipo. Provavelmente, a crer
na documentação apresentada recentemente por Rafael Valladares, uma herança dos conflitos
subterrâneos vividos em 1663.
Outras narrativas, posteriormente publicadas, sobre o período de governo de D.
Afonso VI, o confirmam, e, ainda mais, demonstram não terem sido eles tão subterrâneos
assim. Na já comentada História do Portugal Restaurado, a crônica do conde da Ericeira Luis
de Meneses sequer menciona as negociações de paz de 1663. Porém, logo após narrar, em
tom repleto do lamento fidalgo que lhe convinha para relembrar tal ocasião, a partida de D.
97
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fol. 2v. O itálico é da própria impressão do Mercurio, pois tratava-se
de uma reprodução, embora parafraseada, da fala do general da Beira.
50
Luísa de Gusmão a 17 de março para o convento de agostinhas descalças em que encerraria
seus dias, Ericeira passa a tratar de algumas dissensões que aconteceram entre o conde de
Atouguia e o conde de Castelo Melhor antes que rainha entrasse em reclusão. De acordo com
a visão que pretendia passar duas décadas após o ocorrido, a desunião entre os condes era
fomentada sub-repticiamente por Sebastião César de Meneses, o outro membro do triunvirato,
como o designara o próprio Ericeira, que ocupara o governo em junho de 1662, e uma boa
ocasião lhe teria sido dada com a partida do rei para Salvaterra98, a que Atouguia não pôde
acompanhar, “obrigado de alguns inconvenientes domésticos”99. Durante a estadia de Afonso
VI em Salvaterra, portanto, é que teria se dado o problema desta forma narrado pelo conde da
Ericeira:
Neste tempo adoeceu D. Luis de Meneses, a quem el-rei havia nomeado general da
artilharia da província de Alentejo; e a respeito do seu achaque se juntavam em casa
de seu irmão o conde D. Fernando, onde ele assistia, o conde de Atouguia, Luis de
Sousa, que naquele tempo era governador da Relação do Porto, agora meretíssimo
cardeal arcebispo de Lisboa e capelão-mor de el-rei, o visconde de Vila Nova,
Manuel de Saldanha, depois bispo de Viseu, e João Nunes da Cunha, também depois
conde de São Vicente. E não havendo na conversação mais assunto que o
divertimento, se tomou motivo desta acidental sociedade, para se supor que mais
alto fim era ocasião desta junta. E passando-se do discurso à prática, se deu notícia
ao conde de Castelo Melhor, que com celeridade deu conta a el-rei, e sem preceder
exame mais jurídico, se passou ordem para que Luís de Sousa fosse desterrado para
Abrantes, João Nunes da Cunha para o Porto e António Sousa Tavares mandou elrei prender na fortaleza de Outão, supondo-o também unido a esta parcialidade. Com
os mais não se fez demonstração alguma, o que manifestou a desigualdade desta
resolução; porque, sendo a culpa igual, era justo que fosse igual o castigo.100
Portanto, enquanto parte dos integrantes da Corte acompanhavam o rei nas caçadas de
Salvaterra, alguns se reuniram na residência do conde da Ericeira, D. Fernando de Meneses
em que estava adoecido o seu irmão D. Luis, com nenhuma finalidade que não a do
divertimento, segundo o próprio, já quando titular da casa e autor daquela História.
Interessante perceber que Ericeira, consciente de para que realidade escrevia, não deixa de
destacar neste ponto, como pouquíssimas vezes faria ao longo do livro, os altos cargos
eclesiásticos e o titulo que seriam alcançados por seus acompanhantes anos depois, não por
acaso durante a regência de D. Pedro. Nada tramavam, porém, aquelas futuras eminências que
então se reuniram em torno de si, tendo sido alguns desterrados sem qualquer exame jurídico
de sua culpa. Entre eles estava João Nunes da Cunha, naquele momento o principal
responsável pelas negociações de paz na raia norte do reino, evento que o cronista se furta a
98
A jornada anual a Salvaterra teria saído no dia 19 de janeiro, de acordo com a notícia do Mercurio Portuguez.
Janeiro de 1663. fol. 3v.
99
ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, p. 182.
100
Ibid. p. 183.
51
relatar, e que, pelo que traz a documentação encontrada por Rafael Valladares, parece estar
diretamente relacionada ao seu desterro.
Seguindo o fio de sua narrativa, Ericeira comenta apenas, como sempre muito apegado
a causas de sentimento e parentesco, que o conde de Atouguia, por ser João Nunes da Cunha
seu primo co-irmão, e Luís de Sousa primo co-irmão de sua mulher, agastou-se com o conde
de Castelo Melhor, foi a Alcântara, para onde já havia voltado D. Afonso, falou a ele, em
público, que os desterrados mereciam grande estimação, e saiu da presença real sem esperar
resposta, voltando imediatamente a Lisboa para acompanhar seus parentes até algumas léguas
fora da cidade. Desta forma, o ocorrido serve em sua narrativa apenas para destacar a suposta
causa do início de um conflito entre os dois primeiros motores do golpe de 1662: “Este
desabrimento foi o princípio de outros, que sucessivamente aconteceram entre o conde de
Atouguia e o de Castelo Melhor, com que quase totalmente ficou entre eles separada a
comunicação”101.
Outro partícipe da política daquele tempo, porém, narrou tais acontecimentos ainda de
maneira diferente, e sua leitura ajuda a redimensioná-los. Trata-se ao autor do manuscrito
encontrado na Biblioteca da Ajuda e publicado em 1940 pelo historiador Eduardo Brazão.
Como a folha de rosto do documento atribuía o texto a Antonio de Sousa de Macedo, Brazão
também o fez, mas em pouco tempo tal autoria foi contestada. O manuscrito traz uma
narrativa, construída aparentemente a partir de anotações diárias, dos principais eventos entre
meados de 1662 e de 1664, com especial atenção em relação às disputas políticas da Corte
lisboeta. Atualmente, não há ainda uma resposta definitiva em relação a quem o escreveu, mas
o mais provável é que tenha sido Gaspar de Faria Severim, secretário de Mercês e Expediente
desde o reinado de D. João IV, ou ainda Pedro Severim de Noronha, seu filho, que ocupou o
cargo do pai desde o final de 1662, e morreu assassinado em 1664. A segunda opção é ainda
mais verossímil, pois Pedro estava então mais próximo dos acontecimentos descritos, e sua
morte seria uma explicação também para a interrupção abrupta da narrativa em agosto de
1664102. De acordo com o conde da Ericeira, a morte de Pedro Severim de Noronha foi a mais
lastimosa ação executada pelas chamadas “patrulha alta” e “baixa”, grupo de facínoras com
que o rei D. Afonso VI saía do Paço de noite a cometer os seus “excessos”103.
101
Ibid. loc. cit.
Sobre o texto e sua autoria, ver: BRAZÃO, Eduardo. Introdução. In: D. Afonso VI. Porto: Livraria
Civilização, 1940. pp. 9-24; PENA JÚNIOR, Afonso. Crítica de atribuição de um manuscrito da Biblioteca da
Ajuda – estudo crítico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943; DÓRIA, Antonio Álvaro. A Rainha D. Maria
Francisca de Sabóia (1646-1683). Porto: Livraria Civilização, 1944. pp. 407-408; XAVIER, A. B. op. cit. p.
150.
103
Cf. ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, pp. 183-184.
102
52
Quem quer que o tenha escrito, o manuscrito traz muito mais detalhes sobre a
conjuntura política das semanas do desterro de João Nunes da Cunha do que Ericeira faria
anos depois. Segundo o autor, teriam seguido o rei a Salvaterra no dia 19 de janeiro, além do
infante D. Pedro, do conde de Castelo Melhor, e de Henrique Henriques de Miranda, nobres
como o conde de Unhão, o conde de Aveiras, o de Sarzedas e o de Serem, entre outros
políticos, funcionários e criados da Corte. E ainda além destes, fizeram-se presentes também o
marquês de Fontes D. Francisco de Sá de Menezes, o conde de Mesquitela D. Noutel de
Castro, e o próprio Pedro Severim de Noronha, pois os três se envolveram em uma pendência,
pelo que foram presos. Já o marquês de Gouveia D. João da Silva, que é tido pela
documentação apresentada por Rafael Valladares como desterrado por ser partidário de
Cunha, teria saído de Lisboa já no dia 25 de janeiro, havendo recebido dias antes a permissão
que pedira, por considerar quebradas as isenções e regalias de seu posto de mordomo-mor do
rei, para se afastar da Corte. A licença lhe teria sido enviada pelo secretário de Estado
Antonio de Sousa de Macedo, mas com o acréscimo de que só poderia voltar a Lisboa com
ordem expressa de Sua Majestade104.
Dias depois, a 6 de fevereiro, regressava a comitiva real das coutadas de Salvaterra, no
mesmo dia sendo soltos Pedro Severim de Noronha e o conde de Mesquitela, tendo sido já o
marquês de Fontes no dia anterior. Na segunda-feira do dia 12 de fevereiro, de acordo com o
autor do manuscrito, é que se faria a prisão de Antonio de Sousa Tavares, pelo corregedor do
crime Miguel Juzarte de Azevedo, e que Antonio de Sousa de Macedo enviaria a Luis de
Sousa a ordem do rei de que se retirasse para Abrantes, de onde não devia sair sem nova
ordem105. Quanto a João Nunes da Cunha, a tensão com o governo iniciara no dia anterior:
No Domingo antecedente havia também o mesmo Secretr.º escrito a João Nunes da
Cunha Gentil homem da Camara do Infante D. P.º e q o fora do Principe D.
Theodosio, e m.to bem visto de El Rey D. João o 4º e era Deputado da junta dos
Tres Estados: q por sua Mag.de o haver nomeado Plenipotenciario na paz com
Castella era servido que elle se fosse logo à Prov.ª do Minho a tratar este negocio.
Respondeo João Nunes que estava prompto p.ª obedecer mas q nem instroçoẽs nem
papeis se lhe tinhão entregues e q tambem havendo feito tres vezes aquella jornada
sobre o mesmo neg.º com grandes despezas esperava q S. Mag.de lhe deferise pr.º a
seus requerim.tos. Na seg.da fr. Teve a reposta deste escrito com outro, em q o
Secretr.º lhe avizava havia S. Mag.de por bem q logo athe o outro dia se partisse:
porq não o fazendo se haveria S. Mag.de por desservido delle.106
Segundo o que se retira do texto desta narrativa, portanto, o governo pressionava a que
o plenipotenciário se dirigisse à raia do Minho com presteza, enquanto este interpunha à sua
ida o recebimento e instruções, e principalmente o atendimento de seus pedidos, que dizia
104
D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 85-88.
Ibid. pp. 89-90.
106
Ibid. p. 91.
105
53
fundamentarem-se nas despesas que a função lhe trazia. À sua insistência, o governo
respondeu com um ultimato. Porém, ainda de acordo com o autor, João Nunes simplesmente
enviou este último escrito de Antonio de Sousa de Macedo, juntamente com o enviado a Luís
de Sousa, ao conde de Atouguia, a quem os ligavam laços de parentesco e amizade, “e ainda a
mais reciproca correspondencia, q os fizera m.to familiares”107. E, da forma como o
descreveria Ericeira, Atouguia respondeu imediatamente, pedindo audiência com o rei, com
poucas palavras ressentindo-se do agravo que se lhe havia feito, voltando logo de Alcântara
para acompanhar a saída dos desterrados. O que este texto acrescenta à informação publicada
por Ericeira são os outros que os acompanharam no cortejo: o visconde de Vila Nova de
Cerveira, o bispo de Targa D. Francisco de Sotto Mayor, e o conde da Ericeira D. Fernando
de Meneses. E, além de relacionar o desterro de João Nunes da Cunha ao exercício de sua
função na negociação de paz com Castela, o autor ainda apresenta o que, de acordo com ele,
se falava sobre o caso nas ruas de Lisboa:
A occazião que o povo da e todos confirmão p.ª estes desterros era haverem
conjurado elles privarem por algũ tempo a El Rey do governo do Rn.º entregandoo
outra vez a R.ª o que se forjava soicedeçe em o dia em q Ella quizesse retirar como
sintentava e q nessa occasião com o impulso do povo abonarião melhor seu desígnio
correndo com o trato Antonio de Sousa Tavares de q.m se fiavão por ser o unico
Ministro q sem nota entrava a falar a S. Mag.de. Fazião do mesmo rancho ao Conde
de Atouguia; e inferiãono da conjectura de não haver querido hir a Salvaterra logo q
nos dias antecedentes a jornada chegou a Lix. Seu primo João Nunes da Cunha (q
canonizavão pr.º mutor do intento) sendo assim q o conde tinha assentado com o de
Castello melhor q hiria, e se esperava por elle naquellas coutadas. Acrescentandosse
fora descuberta a conjuração (q este nome lhe puzerão m.tas) por certos fidalgos q
forão convidados para entrar nella.108
Logo, seria este o “mais alto fim” que se acusou como objetivo da “acidental
sociedade” que se reunia na casa do conde da Ericeira depois da partida do rei para Salvaterra,
e este o “inconveniente doméstico” que impedira a presença do conde de Atouguia nas
caçadas daquele ano: uma conjuração montada para devolver o governo de Portugal a D.
Luísa, que se aproveitaria do momento do seu deslocamento para o convento. Esta acusação
feita pelo autor, convenientemente designada como um rumor do povo, coincide, em alguma
parte, com a documentação espanhola sobre as negociações de paz daqueles meses. Por sua
ótica, Antonio de Sousa de Tavares era uma peça-chave dentro dos planos da conjura, mas seu
idealizador principal seria João Nunes da Cunha. Talvez justamente por seu contato com o
marquês de Penalva em Castela, com quem, de acordo com Rafael Valladares, Cunha já
negociava em nome da rainha. Por outro lado, a suspeita levantada pelo autor do manuscrito
107
108
Ibid. loc. cit.
Ibid. pp. 92-93.
54
não chega a mencionar qualquer traição que envolvesse tratos com castelhanos, o que era
sempre uma acusação utilizada à época.
Na identificação da causa da frustração dos planos, fossem quais fossem, também há
disparidades. Para o autor português, alguns fidalgos foram convidados a participar da
conjuração, e delataram seu intento. Um deles teria sido o conde de Sabugal, alguns dias
depois nomeado para o conselho de guerra, “murmurando o vulgo com bastante fundam.to
que (...) fora provido deste lugar por descobrir a chamada conjuração do Conde de Atouguia,
João Nunes da Cunha, Luis de Sousa &c.ª por ser presuadido a ela por via do Duque de
Cadaval”109. Embora esta última referência à participação do duque o coloque, assim como a
documentação espanhola, entre os partidários de João Nunes da Cunha, ainda permanece
contrastante a informação colhida por Valladares de que a conjura teria sido descoberta pelos
parciais de D. Pedro. Levando em consideração que o próprio Cunha era homem da câmara
do infante, e que alguns de seus partidários estariam associados, como Ericeira fará questão
de destacar, ao posterior governo de D. Pedro enquanto regente após a deposição de D.
Afonso, fica difícil conjecturar quem seriam os indivíduos contrários ao intento que pudessem
ser identificados como aliados do infante. A não ser que, assim como o historiador espanhol
deixou passar despercebida a incongruência que havia em afirmar que à descoberta desta
conjura estava associada a declaração de maioridade de D. Afonso, tal afirmação seja também
um equívoco que Rafael Valladares incorporou, sem exame mais detido, à sua versão do
ocorrido.
Nesta confusa nebulosa criada a partir de diferentes versões e enfoques das disputas
cortesãs travadas em Lisboa nos primeiros meses de 1663, vislumbram-se apenas os
contornos desta que se pode considerar a primeira grande crise política do governo integrado
pelo secretário de Estado Antonio de Sousa de Macedo. Grande pela sorte de atores políticos
que nela se envolveram, pelo nível das acusações que correram a respeito das intenções dos
supostos conjurados, mas principalmente pelo re-ordenamento dos grupos políticos que foi
sua principal conseqüência. Assim como Ericeira, o autor do manuscrito a que se recorreu até
aqui conclui identificando como resultado final daqueles eventos o afastamento do conde de
Atouguia dos principais círculos de decisão política do governo:
O Conde ficou continuando nos cargos q tinha sem alteração algũa; so por si se
absteve de hir as juntas nem tornou a ligar com o Castello Melhor desmanchandosse
a pr.ª triania do governo novo; e em seu lugar entrou nella (seg.do os
contemplativos) o Marques de Marialva pr.º grande opposto ao tal governo.110
109
110
Ibid. p. 96.
Ibid. p. 93.
55
Com tais desterros, afastamentos e aproximações, deslocavam-se as forças em disputa
naqueles últimos anos do Portugal Restaurado. Foi, portanto, a um ambiente ainda assomado
por tais conflitos que Sousa de Macedo dirigiu aquela segunda edição do seu periódico, em
que trazia as boas novas das negociações de paz lideradas pelo “fidalgo bem conhecido” João
Nunes da Cunha. É provável que, de fato, após ter sido desmantelada qualquer possibilidade
de sucesso dos intentos daquela sociedade em que esteve envolvido, Cunha tenha sido
enviado de volta ao Minho, inclusive porque, a crer no que relata o autor do manuscrito, no
prosseguimento da devassa do caso as coisas se acalmaram:
Fesse depois delig.ça por retificar as testemunhas da acuzação: as quais se contão: se
desdisserão; afirmando: não haverem sabido nada deste cazo, e as q mais queriam
comprazer aos Authores do desterro: convinham em q não sabiam couza que
podesse fazer merecedores do castigo q padecião; os condenados.111
Desarticulada a ação que vinha sendo planejada por seus opositores, o governo então
possivelmente reconduziu seu principal organizador de volta para a fronteira do reino, como
dias depois Macedo informaria ao marquês de Sande. Porém, na carta de 20 de maio, em que
o secretário de Estado voltou a falar da conferência de paz, explicando que seu atraso se devia
apenas a uma “diferença” nas plenipotências, o remetente não deixaria de referir logo em
seguida, como quem falava exclusivamente das notícias enviadas sobre o cerco à Évora, que
“o sobredito he a pura verdade, tudo o mais que espalharem os castelhanos será mentira”112.
Àquela altura, certamente os embaixadores castelhanos faziam correr em Inglaterra a versão
encontrada por Rafael Valladares.
Mesmo assim, pelo que foi dito, é difícil acreditar que Macedo e o governo que
representava alimentassem, mesmo em finais de fevereiro, o otimismo que seria divulgado a
respeito das negociações de paz no Mercurio Portuguez sobre aquele mês. Em última análise,
como certamente João Nunes da Cunha tornara-se ainda mais “conhecido no Reino” depois
dos acontecimentos que culminaram com seu desterro, a principal intenção do discurso
otimista do periódico devia ser desvincular o envolvimento de Cunha com uma facção rival
ao governo de sua atuação na organização da conferência do Minho. Se foi assim, a ironia do
comentário de três anos depois, de que o Mercurio não era mais o mesmo falador de antes,
não passou também de nova dissimulação, que servia acima de tudo como justificativa para
não entrar em detalhes publicamente em relação a resposta do governo à proposta de paz
trazida pelos diplomatas ingleses, que, de acordo com alguns testemunhos do período, foi
111
112
Ibid. loc. cit.
RAU, V. loc. cit.
56
peremptória e negativa113. Ao escrever e ao publicar as notícias do mês de fevereiro de 1663,
Macedo sabia que as expectativas que lançava sobre o bom andamento das negociações paz
no Minho eram falsas, assim como o devia saber alguma parte de seus leitores. Se dizia
demais, portanto, o fazia propositadamente, escondendo aquilo sobre o que não dizia, os
meandros da crise política enfrentada pelo governo naquela quaresma. Não dizia, mas foi
justamente o impacto daquela abafada convulsão interna na opinião de seus leitores que o
Mercurio Portuguez teve que combater mais diretamente.
2.2 A PRESSÃO DESDE A FRONTEIRA: DOS RUMORES AOS TUMULTOS
Na organização da edição de março de 1663, como já foi citado, Macedo reservou
apenas as últimas linhas do Mercurio Portuguez para uma rápida e bem pouco estimulante
referência ao atraso da conferência de paz do Minho. Além disso, como indicara em missiva
ao marquês de Sande, tratar-se-ia ali também, enfim, da reclusão de D. Luísa de Gusmão ao
convento de agostinhas descalças que para tal se fundou nas cercanias de Xábregas, a um
quarto de légua de Lisboa. Como parte das movimentações da oposição ao governo realizarase em torno de sua presença no Paço da Ribeira, a notícia de um pacífico e regular traslado da
rainha fazia-se conveniente, como mais um incremento ao esforço em aplacar os ânimos
exaltados desde o mês anterior:
ElRey N. Senhor, o Serenissimo senhor Infante, & toda a Corte, acompanháraõ a
Sua Magestade cõ aquella demonstraçaõ que por tantas razoens lhe era devida.
ElRey N. Senhor lhe concedeo que hũa tença de tres mil cruzados cada anno que
tinha para outra vida, ficasse juro perpetuo para este Convento; principio da
grandeza q se espera terà como fundaçaõ de hũa Princesa taõ generosa.114
Assim ficou, curta e elogiosa, a lembrança do Mercurio do recolhimento da rainha ao
convento, bem diferente do modo detalhado e invectivo – não em relação à rainha, mas à
postura do rei diante de sua mãe naquele momento – como escreveriam os cronistas
posteriores detratores daquele governo115. Entre ela e a última referência à não conclusão das
negociações de paz, a edição de março noticia apenas três “facçoens de Marte, neste mez em
113
Cf. CARDIM, P., e XAVIER, A B. op. cit. pp. 151-155.
Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3r.
115
Cf. ERICEIRA, L. M. conde da. op. cit. v. 4, pp. 178-182; e também: FARIA, Leandro Dorea Caceres e.
Catastrophe de Portugal, na deposição d’el rei D. Affonso o Sexto, & subrogação do Principe D. Pedro o
Unico, justificada nas calamidades publicas : escrita para justificação dos Portugueses. Lisboa: A custa de
Miguel Manescal, mercador de livros da Rua Nova, 1669. pp. 98-104.
114
57
que elle especialmente reyna”116, que trazem indícios de quais seriam as próximas batalhas
enfrentadas pelo periódico do secretário de Estado.
Na primeira delas, em que o já citado Pedro Jacques de Magalhães, pela província da
Beira, entra em Castela para enfrentar as tropas alojadas na vila de Sarça, e estas vêm ao seu
encontro, “os nossos as invistiraõ com tal resoluçaõ, que às cutiladas as fizeraõ recolher pellas
portas dẽtro, tomandolhes alguns cavallos, & trazẽdo todo o gado que se achou naquelles
campos, sem perda algũa nossa”117. Já em Entre-Douro-e-Minho, foram os castelhanos que
atacaram, com trezentos infantes e duas tropas de cavalos, uma aldeia de Vila Nova, e o
Mercurio narra a ação da tropa capitaneada por D. João de Sousa, filho do conde de Prado
governador das armas da província:
pelejousse valerosamente, com muito sangue de parte a parte, ficando hum Cabo
Portuguez com hũa perna passada de duas balas, outro com duas cutiladas na
cabeça. Morreo hum Tenente Gallego, & alguns soldados da parte de Castella; mas
finalmente o inimigo naõ entrou na aldea, & se retirou fogindo vergonhosamente de
numero taõ piqueno dos nossos, que o foraõ seguindo até junto do dito Forte de S.
Luís, trazẽdo alguns prisioneiros.118
Sobressaem, na narração destes feitos, a determinação, a coragem e a força das tropas
portuguesas. No primeiro, ressalta-se a perfeição da ação militar, pela eficiência no combate,
pelo grande proveito do saque auferido, e pela ausência de qualquer perda de soldados. Já na
defesa da aldeia, embora se comente a violência do confronto e o ferimento de dois
portugueses, ao cabo da narrativa do ocorrido predomina a visão da imponência da vitória de
alguns bravos combatentes contra um número bem superior de inimigos, e a desonra da fuga
das tropas castelhanas. Na narrativa das batalhas do mês de março, é clara a intenção não de
difundir a expectativa da paz, mas sim a proficuidade da guerra.
A outra nova militar do mês traz de forma ainda mais marcante este tom de
menosprezo observado em relação ao inimigo. Pela província do Alentejo, o governador das
armas conde de Vila-Flor envia as tropas da cavalaria de Elvas, sob o comando do tenente
general D. João da Silva, para refrear a ousadia da cavalaria de Arronches, praça tomada aos
portugueses em 1661; em ataque a cinco esquadrões inimigos, que comboiavam um grande
número de cavalgaduras que saía a forragear, os portugueses terminam por tomar-lhes
sessenta cavalos e setenta das cavalgaduras, enquanto os perseguia até entrarem na praça.
Quando o Conde Governador das armas deu aquella ordem se achava Dom Manoel
de Atayde, tambem Thenente General da cavalaria, muito doente sangrado dez
vezes, de que no dia antecedente tinha sido a ultima; porém seu brio naõ sofreo ver
ir os cõpanheiros, & ficar elle; & assi animadas as forças corporaes só de seu
116
Mercurio Portuguez. Março de 1663. loc. cit.
Ibid. loc. cit.
118
Ibid. fols. 3v-4r.
117
58
espirito, os acompanhou; em a peleja se houve com tanto valor, que mostrou bem
que pode dar dez sangrias de barato aos Castelhanos.119
O tratamento do periódico sobre o feito, além de enaltecer a inteligência de D. João da
Silva e a bravura de D. Manoel de Ataíde, conclui-se depreciando a inteligência e a bravura
dos castelhanos, e agora de um modo carregado de humor, de sarcasmo. Não foi apenas o brio
individual do tenente general que tornou possível seu bom desempenho na contenda mesmo
após passar por dez sangrias, mas também a fraqueza e a pusilanimidade do oponente. Vinha
fazendo parte, portanto, do discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo, um
enaltecimento que buscava difundir confiança nas forças portuguesas, fundado também no
menoscabo, com inclusive toques de humor, em relação aos castelhanos. O que o periódico
não diz, porém, é que as populações alentejanas não estiveram bem-humoradas no decorrer
daquele mês.
Em carta de 3 de março daquele ano, o conde de Vila-Flor, governador das armas do
Alentejo, instado a informar o governo sobre o estado em que se achavam as vilas de
Monforte e Alter do Chão, e arredores, deixa bem claro como estava a região sujeita à ação do
inimigo, que inclusive vinha ameaçando os moradores, “dizendolhe que não contribuiçem
com tributo algum aos officiaes desta Coroa”120. Havendo recebido informação de que
aquelas vilas se recusavam, por tal constrangimento, a pagar impostos pertencentes à sua
fazenda, Sua Majestade solicitava de Vila-Flor seu parecer, e soluções, a que o conde
respondeu:
ao que procurarei reduzilos será que recolham seus Gados, moveis, Molheres, as
cabeças das Comarcas, ou pela terra dentro, donde cada hum tiver melhor
conviniencia visto estar o tempo tão entrado e os exercitos para sair em campanha,
porque não hé possível divirtirce o exercito em guarnecer aqueles lugares por não ter
nenhum deles genero algum de fortificaçam e que os velhos e mininos sigam os
mesmo caminho com aqueles que precisamente não puderam largar suas cazas, e
que os homens que puderem tomar armas se emcorporem com o exercito ou se
metão de Guarnição na praça mais sircumvezinha e que, passada a Campanha para
os livrar dos males que o inimigo lhe poderia fazer tornandoce para suas cazas com
suas molheres, e bens os mandará Vossa Magestade reparar, e fortificar na melhor
forma que for possivel fortificandoce principalmente Monforte e a Asumar, que sam
os lugares mais vezinhos Arronches.121
Portanto, a notícia que chegava ao governo, e que provavelmente alcançava também
alguma parcela de leitores do Mercurio, era de que a região no entorno de Arronches, desde
que esta praça havia sido tomada pelos castelhanos em 1661, estava a cada dia mais
vulnerável, e trazendo cada vez mais preocupações, estratégicas e financeiras, para a Coroa. O
119
Ibid. fol. 3v.
COELHO, Possidónio M. Laranjo [org.]. Cartas dos Governadores da província do Alentejo a El-Rei D.
João IV e a El-Rei D. Afonso VI. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1940. v. 3, p. 271.
121
Ibid. p. 272.
120
59
conde de Vila-Flor, na mesma missiva, não conclui sem ponderar a possibilidade de os
moradores não aceitarem suas sugestões, nem as garantias que daria em nome do rei, e já
adianta que, se assim fosse, seria a favor de que se investisse contra os mesmos,
argumentando que “o inimigo se hade valer de tudo o que eles tiverem asy de carruagens
como de mantimentos, e provavelmente os obrigará a tomar as armas contra nós e será mais
comviniente que os imposibilitemos para que nos não fasam estes danos”122. O pragmatismo
da solução última proposta pelo governador, expressivo documento da política e da ação
militar do período, revela a dimensão do problema enfrentado naquela zona de combate, e a
conseqüente apreensão que devia disseminar no reino, principalmente em Lisboa, para onde
certamente convergiam os rumores sobre o avanço castelhano, e das dificuldades que havia
para contê-lo.
Fica patente a necessidade, sentida pelo redator do Mercurio Portuguez, de se dirigir
contra tal apreensão. A notícia de uma vitória portuguesa contra a cavalaria sediada em
Arronches, portanto, vinha a calhar, tanto para o conde de Vila-Flor, que a enviou por carta
datada de 21 daquele mês, e precisava demonstrar que tomava providências para minorar o
problema na região, quanto para Antonio de Sousa de Macedo, que, diante do exposto,
interessava-se em divulgar novas alentadoras sobre o desenvolvimento do confronto no
Alentejo. É significativo, neste sentido, que a notícia sobre o feito português iniciasse apenas
com a consideração de que “se licenciava tanto a cavalaria que o inimigo tem em
Arronches”123, dissimulando com ares de desdém a interferência e a preocupação que os
castelhanos causavam na província. Na carta em que enviou a mesma notícia para o rei, VilaFlor não precisara ser tão discreto, pois era de seu interesse enfatizar a utilidade de seu
comando:
Andava tão livre a cavallaria de Arronches pella nossa campanha, e estava tão
costumada a correr as partidas, que nem se lhe dificultava o andar por ella, nem
havia partida que não temese muito o ir tomar lingoa aquella praça pello que me
resolvi a mandarlhe armar asim para a derotar, como tambem para desatemorizar a
nosa gente, e confiar as nosas partidas.124
No mais, é pertinente notar como, fora esta diferença inicial, a abordagem do
Mercurio sobre o acontecimento é quase uma transcrição da carta do governador, o que mais
uma vez confirma como se ajustaram naquele momento os objetivos deste e os do secretário
de Estado. As únicas alterações na informação promovidas pelo periódico foram pequenos
ajustes nos números do feito. Vila-Flor havia escrito que foram capturados, além das setenta
122
Ibid. loc. cit.
Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3r.
124
COELHO, P. M. L. op. cit. v. 3, p. 273.
123
60
cavalgaduras, muitos cavalos, sendo que não mais de quarenta foram trazidos para a partilha,
e outros deveriam ter sido escondidos pelos soldados; Macedo, então, informou a captura de
sessenta cavalos. Já quanto à atuação de D. Manoel de Ataíde, o periódico arredondou para
baixo o número de sangrias sofridas pelo tenente general, que de acordo com a carta do
governador da província haviam sido doze, e não dez: “estando convalecendo de hũa grande
doensa que padeceo de que o sangrarão doze vezes lhe não sofreo o seu zelo ver ir os
companheiros a ocazião sem os acompanhar nella em que procedeo como se podia esperar de
sua callidade”125. Esta diferença nos números, portanto, é praticamente irrelevante, diante da
alteração que Macedo operou no deslocamento da narrativa da carta para a de seu periódico,
trocando “zelo” por “brio”, e enaltecendo com outra ênfase a ação do último personagem,
dizendo que a força com que acompanhou os seus, as buscou em seu espírito, e que lutou
“com tanto valor, que mostrou bem que pode dar dez sangrias de barato aos Castelhanos”126.
Como se pode aferir da comparação entre a notícia veiculada pelo Mercurio e o modo
com ela havia sido descrita ao rei pelo governador das armas do Alentejo, não está na
deturpação da informação a característica mais marcante da distinção entre os dois discursos
sobre o evento. Ao contrário, Antonio de Sousa de Macedo evidentemente utilizou à larga
aquela carta como base para sua escrita, inclusive reproduzindo de forma bem aproximada os
dados numéricos lá pontuados. Mais revelador da função política representada pelo periódico,
portanto, é destacar como os distúrbios causados na região pela cavalaria inimiga são apenas
referidos superficialmente no periódico, e como é na valorização do feito, pela via da ênfase
na inteligência e na bravura do soldado português, tanto quanto pela do sarcasmo e do
deboche em relação às tropas castelhanas, que a sua abordagem se distingue mais da
encontrada na missiva do conde de Vila-Flor. Direcionando a narrativa do feito bélico para
um outro público, mais vasto do que o que teve contato com a carta, Macedo aposta na
introdução destes elementos para combater alguma inquietação que poderia estar se
desenvolvendo em relação ao estado da guerra na principal fronteira do reino, e para difundir
maior confiança no desempenho militar português.
2.2.1 Os impactos da perda de Évora
Porém, quando saiu da oficina do impressor real Henrique Valente de Oliveira o
Mercurio Portuguez com as novas de mayo de 1663, a principal nova do mês já era sabida por
125
126
Ibid. p. 274.
Mercurio Portuguez. Março de 1663. fol. 3v.
61
todos: Évora, até os dias atuais uma das mais importantes cidades de Portugal, havia sido
tomada pelo exército castelhano, liderado por D. Juan de Áustria, filho do monarca Felipe IV.
A chegada da má notícia, causou grande tumulto em Lisboa, registrado na memória
historiográfica portuguesa, como aliás muitos outros exemplos, pela crônica publicada duas
décadas depois pelo conde da Ericeira, em que aparece inclusive o redator do Mercurio, como
o causador do estopim do rompante popular tomou a cidade e chegou a invadir e roubar as
casas de Sebastião César de Meneses, recentemente nomeado inquisidor geral do reino, de
Luis Mendes de Elvas, conselheiro da fazenda do rei, e do marquês de Marialva, governador
das armas da província da Estremadura:
irritado o povo desta desgraça e incitado do indiscreto zelo com que o secretário de
Estado António de Sousa de Macedo (desejando que se acrescentasse o número da
gente que se preparava para socorrer o exército) mandou lançar uma linha no meio
do Terreiro do Paço, fazendo publicar que todos aqueles que, valorosos, a passassem
para a parte do Paço, seriam escolhidos no socorro do exército para a liberdade da
pátria, e concorrendo inumerável povo a tão desusada novidade, sem mais discurso
que a ferocidade natural com que costuma precipitar todas as suas acções, ocuparam
o ar desordenadas vozes, trocando-se o impulso da defesa do reino em insulto
violento e insolentes operações, porque, passando do Terreiro do Paço ao dos
Arcebispos, em que vivia Sebastião César, à casa do marquês de Marialva e à de
Luís Mendes de Elvas, rompendo as portas, assaltando as janelas, desbarataram a
maior parte do precioso que havia dentro, sem causar horror o espetáculo da
multidão dos amotinados mortos da hidropisia de sua própria ambição, e de todo se
destruíram as casas referidas e outras muitas que a barbaridade do povo ameaçava127
Quando se buscou há pouco explicar a emergência de um tom confiante e sarcástico
no Mercurio Portuguez de março daquele ano, obteve-se como provável influência em sua
escrita a difusão de alguma apreensão quanto à ação castelhana no Alentejo. No presente
caso, em que a informação da capitulação de Évora deu origem a uma pequena revolta na
Corte, dirigida, a crer no testemunho de Ericeira, contra políticos de destaque do governo de
Afonso VI, a dimensão, inclusive política, desta apreensão parece já incontornável. Como
porta-voz do governo, o periódico assinado pelo secretário de Estado devia comentar e se
posicionar sobre o ocorrido, tanto em Évora como em Lisboa. O subtítulo da relação de maio,
neste sentido, já indicava o assunto indispensável do mês: “Satisfazendo Mercurio Portuguez
à sua natureza, & á sua promessa de fallar a verdade, ainda que fosse com successos
contrarios, refere os do Mez de Mayo na forma seguinte”128. Como se fosse possível
contornar o tema, o Mercurio aproveita para associar seu enfoque sobre a perda de Évora com
a promessa de atenção à verdade feita no primeiro de seus números.
Inicia-se então o periódico noticiando a saída do exército castelhano da cidade de
Badajoz no dia 6 de maio, com entre seis e sete mil cavalos, e doze mil infantes, sendo destes
127
128
ERICEIRA, L. M. conde da. op.cit. v. 4, pp. 116-117.
Mercurio Portuguez. Maio de 1663. fol. 1r.
62
a maior parte – acrescenta, como que buscando diminuir o impacto de tal número – composta
por estrangeiros, alemães e italianos, vinte peças de artilharia, e um excessivo número de
carruagem. Já as forças portuguesas, por não se saber por onde atacariam os castelhanos,
encontravam-se divididas pelas várias praças; “pensão da guerra defensiva”129, era preciso
esperar o arbítrio do inimigo, para que se formasse um exército de socorro a partir das
guarnições ociosas das praças não atacadas. Repare-se aqui como o Mercurio esforça-se em
explicar o ocorrido, divulgando as causas da queda de Évora como fatores inevitáveis, e
lógicos do ponto de vista da estratégia militar. Soma-se então, a estes elementos, a covardia
do exército invasor, que foi deixando para trás todas as praças em que supôs havia resistência,
empenhando-se apenas em destruir e abrasar os campos por que passava. Évora, escolhida
então como seu alvo, por estar catorze léguas dentro do território português, disporia de
pouquíssima capacidade de resistência, sem fortificação, nem artilharia alguma, se não tivesse
conseguido o governador do Alentejo enviar-lhe, junto com reforço de mil e duzentos infantes
e quatrocentos cavalos, quatro peças de campanha, mas com insuficiente munição. A tomada
da cidade era fatal, não sendo suficiente neste caso a pertinácia dos seus defensores, que afinal
fizeram de tudo para evitá-la:
Investio o Inimigo com muitas avançadas, & sendo de todas rechaçado
valerosamente cõ grande perda, poz baterias de Artelharia ás muralhas velhas, que
brevemente abrírão brecha, & achandose doente o Governador da Praça, se
entregàrão os sitiados a partido no fim de seis dias, não tẽdo já ballas meudas, que
até ali avião suprido com quãto chumbo avia na Cidade, até com o que achàrão nos
orgaõs das Igrejas.130
Évora foi tomada, segundo o Mercurio, no momento em que já marchava para
socorrê-la o exército português, composto por entre dez e onze mil infantes, e perto de quatro
mil cavalos; sabendo, porém, de sua entrega, as tropas se dispuseram tentando evitar a
chegada de comboios que levassem mantimentos ou reforços ao inimigo, para assim forçar a
sua retirada da cidade, e provocar o confronto em campo, “pois não era factivel ir peleijar
com elle dentro da Cidade, como pedia a impaciencia dos soldados”131. As últimas linhas
desta notícia davam ainda conta de que os castelhanos investiam em fortificar a praça tomada,
e corriam por pequenas vilas e lugares da região em busca de mantimentos, que já lhes
faltavam, e muito pouco encontravam. Quando mandavam boletins exigindo a capitulação de
praças maiores, como à vila de Évora-Monte ou à cidade de Beja, estas lhes respondiam
“como merecia a soberba de quem os mandava”132.
129
Ibid. fol. 1v.
Ibid. fol. 2r.
131
Ibid. loc. cit.
132
Ibid. loc. cit.
130
63
É realmente notável o modo como, ao longo do relato – cujas informações mais gerais,
pode-se supor, já eram públicas à época da circulação do periódico –, Antonio de Sousa de
Macedo dissemina uma série de comentários tendentes a atenuar a dimensão calamitosa da
queda de Évora ao poder inimigo, difundir alguma confiança na capacidade militar
portuguesa, certamente abalada na opinião de boa parte de seus leitores, e por fim criar nela
alguma expectativa quanto à retomada breve da cidade. Informar que o exército inimigo era
composto boa parte por mercenários, mostrava que os castelhanos não possuíam capacidade
para adentrar sozinhos em Portugal, e que, ademais, não podiam contar em absoluto com a
fidelidade de suas tropas. Dizer que o critério de escolha dos mesmos sobre que alvo atacar
era o da menor resistência, e que a opção por Évora os havia levado a ilhar-se em uma praça a
catorze léguas da fronteira, no mesmo sentido, buscava sinalizar a fraqueza do seu exército e a
estupidez dos seus comandantes. Ao associar a incapacidade de defesa da cidade a
características inerentes ao tipo de guerra que se travava, mas também à mesma covardia
estulta que escolheu assaltar uma cidade protegida apenas por velhas e frágeis muralhas,
Macedo tentava também apresentar algum lenitivo para a derrota sofrida; e ainda,
demonstrando a persistência daqueles que utilizaram até mesmo parte de órgãos das igrejas da
cidade como balas contra os invasores, bem como a gana pelo combate dos soldados que
vieram em seu socorro após a rendição, procurava com outro recurso eximir de culpa o
exército português, e quiçá resgatar alguma fé em seu valor. Finalmente, o redator do
periódico pretendia fazer crer aos seus leitores que o exército inimigo não vinha podendo
mais do que assaltar pequenas vilas e lugares abertos em busca de seu sustento, já que não
infundia qualquer temor em localidades de maior vulto, possuindo então capacidade
insuficiente para se socorrer durante muito mais tempo, encarcerado que estava pela ação de
isolamento levada a cabo pelo exército português. A má notícia, sob a pena do Mercurio, não
deixava de falar a língua do bom prognóstico.
Novamente, o confronto da narrativa dos eventos de guerra do Mercurio Portuguez
com cartas assinadas pelo conde de Vila-Flor durante o mês da tomada da cidade ajuda a
compreender a operação discursiva engendrada no periódico. Várias das informações
divulgadas pelo periódico são encontradas nesta correspondência, como os números de
infantes e cavalos de que dispunha o exército castelhano, a guarnição e os reforços enviados a
Évora, e as tropas portuguesas que marcharam para socorrê-la, a dificuldade causada à direção
militar lusitana pelo desconhecimento do intuito inimigo, e a estratégia assumida de
posicionar o exército português no sentido de impedir a chegada de comboios que
prolongassem o sustento dos castelhanos em território alentejano. Até mesmo a confiança
64
nesta estratégia é argumentada ali de modo similar ao que o faz Antonio de Sousa de Macedo
em seu relato133. Mais uma vez, é na interpretação destes dados, e na habilidade, descrita
acima, em utilizá-los em favor da difusão de algum sentimento de esperança na resolução
positiva do conflito, que se mostra residir a particularidade do discurso do seu periódico.
Urgia, como a ocorrência de tumultos e roubos em Lisboa no dia da chegada da nova
da perda de Évora já deixou óbvio, através da versão do Mercurio sobre o insucesso, divulgar
um quadro mais otimista do momento vivido em Portugal. E a forma como, na mesma relação
dos eventos do mês de maio, Macedo descreve o desenrolar da desordem naquele dia, acusa
ainda mais a extensão desta urgência:
Em 24 deste Mez de Mayo á tarde chegou a esta Corte de Lisboa a nova da entrega
de Evora, & divulgandose no dia de 25. pola manhãa, foi tal o fervor do Povo para a
defensa de sua Patria, que concorreo tumultuozamente ao Terreiro do Paço
clamando todos que queriaõ ir peleijar com o Castelhano. Sahio elRey nosso Senhor
a hũa janella, & se esforçâraõ os vivas & acclamaçoẽs a sua Real Pessoa; mas como
sempre na Respublicas ha maos que se approveitaõ de semelhantes concursos de
gente, para vinganças & para latrocinios, ouve vozes desconhecidas que levàraõ o
mais vil do Povo a roubar (entre os vivas delRey) tres Casas onde entendèraõ que
havia cabedal; & passariaõ a outras, se os naõ impedira a authoridade de fidalgos
que acodíraõ, & principalmente o respeito das procissoẽs com que saìraõ os
Religiosos de algũs Conventos; & no fim de duas ou tres horas ficou tudo
sossegado.134
A versão da História de Portugal Restaurado sobre o mesmo acontecimento foi
publicada mais de quinze anos depois, em um momento em que os homens que ocuparam os
principais cargos no governo efetivo de D. Afonso VI já tinham sido derrotados na arena
política, havendo D. Luis de Meneses, o 3º conde da Ericeira, assumido posição eminente
exatamente a partir desta derrota. Mesmo com motivos para difamar o grupo político que
antecedeu ao que compunha, porém, é quase indiretamente que ali acusa o “indiscreto zelo”
de Antonio de Sousa de Macedo como a causa da transformação do impulso patriótico do
povo de Lisboa em fúria violenta e insolente. O próprio secretário de Estado, porém,
publicando na mesma Lisboa, no início do mês de junho de 1663, suas considerações sobre o
ocorrido, não chega a comentar a sua presença e atitudes na data, e sequer identifica no povo
que se dirigia ao paço qualquer irritação oriunda da notícia da capitulação de Évora.
Nem seria necessário, porém, confrontar o Mercurio Portuguez com a citada passagem
da obra de Ericeira, para que se verificasse a dissimulação de que Macedo se valeu na
operação de tocar em tema tão delicado àquela altura. Nitidamente tratava-se de tentar
diminuir, na medida do possível, o impacto que o tumulto em Lisboa provavelmente causara
na opinião circulante sobre o apoio da população ao governo de D. Afonso VI. Por isso a
133
134
Cf. COELHO, P. M. L. op. cit. vol. 3, pp. 280-292.
Mercurio Portuguez. Maio de 1663. fol. 2v.
65
arriscada manobra de identificar como intenção primeira, e majoritária, das pessoas que
concorreram ao palácio do governo, a de se apresentar para combater os castelhanos em
Évora; por isso chegar a interpretar o clamor das mesmas como nada mais do que uma
entoada de aclamações ao monarca, e assim, depreciar o assalto às casas de políticos de vulto
como obra de uns poucos arruaceiros, de vil condição, atribuindo-lhes inclusive como único
critério e interesse o subtrair os bens alheios. Mas a duração da desordem nas ruas de Lisboa,
de quase três horas, que ele não escapa de comentar, deixa entrever que não se tratara de um
pequeno incidente, incitado por “vozes desconhecidas” que se aproveitaram da ocasião dada
por vivas ao rei. Cabia ao secretário de Estado mitigar, através da publicação de seu
periódico, o efeito negativo causado na corte, e em outras partes do reino, pela queda de
Évora e pela agitação que acometeu Lisboa dias depois. Assim ele precisou fazê-lo já no
Mercurio sobre o mês de maio, anunciando a breve retomada da cidade tomada pelo inimigo,
e tentando dissimular a dimensão política do tumulto ocorrido diante do paço monárquico.
Antes de concluir a edição de maio, também por isso, era pertinente apresentar
algumas novas ainda mais positivas e alentadoras para os seus leitores. Logo na seqüência da
passagem citada acima, Macedo emenda: “As noticias da entrega de Evora, & do tumulto de
Lisboa, espalhadas pelo Reyno, excitâraõ briosamente tal amor nos Portugueses, que como
por emulaçaõ se offereciaõ por soldados nas companhias que se levantavaõ”135. Realmente
espalhava-se por Portugal, adianta o periódico, a notícia dos eventos que havia há pouco
descrito, porém não se espalhava o mesmo tumulto que acometera a corte. Em Coimbra, todo
o povo se pôs de prontidão para formar tropas e ir socorrer Évora, propósito firme de que foi
dissuadido pelo governador da Universidade Rodrigo de Miranda Henriques; agradecido de
tamanho empenho, o rei então concedeu, notificando por carta à câmara, uma mercê há muito
desejada, “de que o Juiz do Povo daquella Cidade pudesse trazer vara vermelha como o de
Lisboa”136. Com o mesmo fervor se apresentaram gente e cavalaria de vários lugares, com que
já se formavam tropas a ser conduzidas pelo marquês de Marialva, bem conhecido pelos
castelhanos pela derrota que lhes impingiu na “illustre batalha das linhas de Elvas”137.
Em poucas linhas, como se percebe, o Mercurio Portuguez dá conta de noticiar que
por todo o reino a reação à perda de Évora havia sido pacífica e patriótica, reação esta
apontada com alguma ironia como emulação à população de Lisboa, mostrar os benefícios
que se prometiam para as comunidades que assim o faziam, e dar nova prova de que a força
135
Ibid. fol. 2v.
Ibid. fol. 3r.
137
Ibid. loc. cit.
136
66
portuguesa que se reunia seria suficiente para derrotar o invasor, aproveitando para granjear
crédito para o governador das armas da Estremadura, o dono de uma das casas invadidas pela
plebe lisboeta. As várias circunstâncias apresentadas até então, “prometem ás Armas
Portuguezas” e assim o prometia o Mercurio, “um successo taõ gloriozo, como para elles [os
castelhanos] merecido, & lamentavel”138.
A última notícia do mês de maio, embora em uma primeira leitura pareça mais
destoante dentro do propósito daquela edição, é também significativa do quanto influenciou
em sua escrita o impacto da perda de Évora na cidade de Lisboa. Segundo o redator, o
governador das armas de Entre-Douro-e-Minho, o conde de Prado D. Francisco de Sousa,
informou já no dia 23 que a comarca da cidade de Orense, na Galícia,
ficava com as Armas nas maõs, levantada pellas tiranias que padecia nos
alojamentos; & que ja avia mortes neste levantamento; & o exercito Inimigo que se
ajuntava naquella fronteira, fora acodir àquella parte; & o Conde de Prado avia
escrito aos de Orense, offerecendolhes socorro de Infanteria & cavallaria & dinheiro,
com que estava prestes para partir tanto que o avisassem. Não se sabe atègora se isto
foi por diante, mas podese ter por certo que muitas terras de Castella se irão
levantando, pelas opressoẽs que padecem, assi nos alojamentos, como nas
contribuições para a guerra, não reparando aquelle Rey & seus Ministros, em
destruir o proprio por usurpar o alheio.139
Em primeiro lugar, note-se que anunciar o levantamento em armas da cidade de
Orense poderia servir para aplacar alguma expectativa reinante de que forças castelhanas se
preparavam para atacar Portugal também por sua fronteira norte, expectativa a que o
Mercurio dá sentido, mas busca dissipar, quando informa que o exército inimigo que se
juntava teve que abafar a revolta interna. A mesma notícia, porém, adaptava-se também a um
segundo intento: se em Lisboa a população tinha dado, após a tomada de Évora, mostras
violentas de sua indignação com a direção e o rumo da guerra travada, o periódico, ao aludir à
existência em território castelhano de causas e revoluções mais graves, claramente opõe à
preocupação que se disseminava em Portugal a severidade das queixas dos galegos, e a justiça
de sua causa e de sua luta. Além disso, o Mercurio não deixa de estar rebatendo as críticas
feitas ao governo de D. Afonso VI quando aponta para a opressão provocada pela cobiça de
rei e ministros castelhanos contra a sua própria população.
Desde a edição de março de 1663, como foi visto, Antonio de Sousa de Macedo, não
apostou na estratégia de difundir alguma confiança nas forças portuguesas que combatiam as
tropas castelhanas presentes no Alentejo, e para tal parece ter exercido uma considerável
influência a pressão militar e política causada pela ação inimiga no entorno de Arronches. Os
138
139
Ibid. loc. cit.
Ibid. fols. 3r-3v.
67
eventos de maio, portanto, evidenciaram de forma ainda mais pungente que a função do
Mercurio Portuguez deveria ser reagir contra algum pessimismo que se desenvolvia dentro do
reino, e diretamente contra as conseqüências políticas deste sentimento, que não podiam ser
menosprezadas em uma conjuntura política marcada por disputas e conjuras. Daí em diante, a
tessitura do discurso do periódico sobre a guerra da Restauração, e seus movimentos, será em
grande parte resultado dos desdobramentos desta função, e investirá na exploração e no
aprimoramento de vários elementos já utilizados nos primeiros meses da publicação, além de
outros engendrados nos relatos das próximas batalhas, razias, recontros e escaramuças.
68
3
OS FERVORES DE MARTE, SOB A PENA DO MERCURIO
Como já foi dito, a guerra é o principal foco direto das notícias divulgadas pelo
Mercurio Portuguez. Mesmo que em alguns números ela apareça em segundo plano, apenas
em notícias de menor impacto, na maioria deles as lutas travadas em defesa da independência
do reino são os personagens principais do periódico, os que mais chamam a atenção em uma
primeira leitura.
Já naquele seu número inaugural, apesar do inverno de janeiro, em que “a inclemencia
do tempo naõ permite grandes facções militares”140, surgia a possibilidade de referir as
façanhas das tropas do tenente general da cavalaria do Alentejo Pedro César de Meneses,
como a captura de trinta cavalos inimigos ou o ataque bem-sucedido contra seis barcas
castelhanas que percorriam o rio Guadiana para prover a praça de Juromenha, e de comentar a
precisão da investida contra alojamentos castelhanos liderada pelo conde de São João,
governador das armas da província de Trás-os-Montes. Neste último caso, a névoa invernal
apenas teria impedido que fosse maior o dano impingido aos inimigos, quase todos mortos no
assalto. Relatados estes eventos, Antonio de Sousa de Macedo pôde concluir seu primeiro
Mercurio, e reafirmar seu compromisso:
Neste mez de Janeiro naõ ouve outra facçaõ, ou recontro, & porque naõ pareça que
sò se ham de referir os de ventagem para Portugal, promete Mercurio debaixo da
verdade, que tem protestado, que sempre irâ referindo todos os que forem de
consideração, posto que algum (o que Deos naõ permita) succeda contrario; & com
esta promessa, pede que se naõ dè credito aos que elle naõ relatar, como a supostos,
& inventados.141
O discurso de atenção à verdade, exposto, como já foi visto, nos primeiros parágrafos
do periódico, retorna em tom conclusivo, e revela assim o seu objeto principal: a narração da
guerra. É no âmbito da descrição dos movimentos da guerra da Restauração, percebe-se
agora, que o Mercurio anuncia a primazia de seu embate contra os escritores castelhanos, pois
é distorcendo os fatos bélicos que eles estariam convencendo os estrangeiros de sua força.
Anunciada dentro desta lógica a tarefa do novo periódico, o enfoque sobre o desenvolvimento
da guerra mostra-se crucial para o seu intento. Partindo deste ponto, a predominância das
notícias de guerra nas páginas do Mercurio pode ser explicada com mais acuidade: o destaque
maior de tal ou qual assunto na imprensa periódica, moderna ou contemporânea, não pode ser
140
141
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 2v.
Ibid. fol. 4v.
69
compreendido como reflexo direto da importância real deste tema ou evento no mundo, mas
sim associado aos objetivos políticos que conduzem a sua veiculação.
Partindo desta premissa, não é cabido esperar que aqui se proceda a verificação da
autenticidade das notícias relatadas pelo Mercurio Portuguez, como se importasse avaliar o
grau de sua confiabilidade como fonte para o leitor da época, ou pior, para o historiador do
presente. Se, por outro lado, o que se objetiva é compreender o lugar deste periódico enquanto
instrumento político, a destacada centralidade da narração de feitos bélicos em suas edições
indica que os próximos passos de sua análise devem acompanhar exatamente a construção do
discurso de Antonio de Sousa de Macedo sobre a guerra luso-castelhana que vivia em 1663 já
a sua última fase.
É de grande interesse acompanhar como a leitura do Mercurio deixa entrever a
dinâmica da guerra, seus movimentos, sua periodicidade. A época de maior movimentação
bélica situava-se entre os meses de maio e novembro, portanto do fim da primavera até o
outono, com auge no verão, quando os rivais encontravam condições climáticas para reunir
seus exércitos, e direcioná-los a batalhas de grande proporção, tomadas de praças militares, e
outros feitos de maior vulto. Nestes meses, da mesma forma, é quando o periódico narra as
principais notícias sobre o desenvolvimento da luta contra Castela, as mais decisivas batalhas
da guerra da Restauração.
Nos meses de dezembro a abril, as novas do periódico ligadas a eventos de guerra
mostram apenas feitos de menor porte, representando este período uma baixa temporada
militar imposta pelos rigores do inverno na região. A ocorrência deste abrandamento da
guerra, inclusive, dava azo a que o Mercurio elaborasse uma recapitulação dos principais
feitos do ano que terminava, bem como um prognóstico do que se iniciava, respectivamente
nos números de dezembro e janeiro. A edição sobre janeiro de 1665, ao pôr em evidência as
chuvas e o frio daquele inverno, dando justificativa à impossibilidade de seqüência da guerra
durante a estação, comenta:
Na provincia da Beira foi tal o frio, que na praça de Almeida morrêraõ delle dous
soldados estando de centinella nas guaritas da muralha. E deixandose de noite â
janella vasos cõ vinho, se achou pella manhãa feito caramello; o que raras vezes se
vio em Portugal. E dentro das estrebarias se entortaraõ as maõs a alguns cavallos
com frio, de q pereceraõ.142
Em praticamente todos os meses de sua publicação, porém, sua narrativa é pontuada
por estes pequenos recontros entre tropas, escaramuças, ou saques a pequenas vilas e lugares
com roubo de gado, alimento, bebida, e mesmo vestes para os soldados. Feitos militares
142
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1665. fols. 5v-6r.
70
certamente de menor influência no desenvolvimento global do conflito entre Portugal e
Castela, mas que apresentam detalhes bem relevantes sobre as características da guerra
travada entre os dois reinos, e também elementos significativos do discurso elaborado por
Antonio de Sousa de Macedo sobre ela.
3.1 DISCURSOS SOBRE A GUERRA COTIDIANA
Durante os vinte e oito anos da guerra da Restauração, foram relativamente poucos os
combates entre exércitos de grande porte; os que houve, foram certamente decisivos em seus
respectivos períodos, mas resumir-se a analisar aquele conflito pontuando grandes batalhas e
grandes generais, como por muito tempo fez a historiografia política e militar tradicional
portuguesa, implica normalmente no afastamento em relação a um dimensionamento mais
seguro das condições que influenciaram o desenvolvimento e o desfecho da guerra, bem como
na impossibilidade de compreensão do seu papel na sociedade ibérica daquele tempo143.
O historiador espanhol Fernando Cortés Cortés é sem sombra de dúvida um dos
exemplos mais marcantes na península da contestação de uma história da guerra apoiada
apenas na valorização do significado dos feitos de maior vulto, e principalmente um dos mais
importantes estudiosos do impacto da guerra no cotidiano e na economia das regiões de
fronteira. Havendo iniciado seus estudos sobre o tema analisando, entre outras questões, a
depredação e o despovoamento causados pela guerra da Restauração na Extremadura
espanhola, tanto pela ação do exército português como pela das próprias forças castelhanas
alojadas na região144, Cortés passou também a buscar referências de mesmo cariz na
documentação referente às terras de fronteira portuguesas, encontrando aí condições
semelhantes que comprovam a devastação da zona de combate e o assolamento da população,
por exemplo, alentejana, beirã e algarvia, casos enfocados mais detidamente no livro Guerra e
pressão militar nas terras de fronteira.
143
Este enfoque mais tradicionalista da história militar portuguesa, preocupado com a análise tática de batalhas e
uma descrição das hierarquias e funções da organização dos exércitos se mantém ainda hoje. Porém, algumas
obras destacam-se por, mesmo mantendo tais ênfases, procurarem trabalhar a partir delas elementos suscitados
por outros enfoques, de história política e social, dos temas militares: Cf., entre os que tratam do exército e das
batalhas da guerra da Restauração: NUNES, António Pires. Quadros da vida militar – das Ordenações sebásticas
às invasões francesas. In: BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir.). Nova História
Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, v. 5, pp. 45-98, 2004; e ESPÍRITO SANTO, Gabriel do.
Batalhas da História de Portugal. Restauração 1640-1668. Lisboa: QuidNovi, 2006.
144
Cf. CORTÉS, Fernando Cortés. El Real Ejército de Extremadura en la guerra de la Restauración de
Portugal (1640-1668). Cáceres: Ediciones de la Universidad de Extremadura, 1985.
71
Nesta obra, por seu objetivo, afinal, de apontar para o drama vivido pelos habitantes
da fronteira hispano-portuguesa em decorrência de uma guerra prolongada, foi importante
justamente destacar sua característica de violência cotidiana, baseada na ação mais corriqueira
de pequenos destacamentos, ocupados apenas em devastar propriedades, arrasar colheitas, e
saquear tudo o que encontravam. Raramente verificou-se a ocupação do solo inimigo, o que
parecia pouco interessar, de acordo com o autor, aos contendores. Os objetivos destas formas
de luta seriam debilitar o inimigo, econômica e psicologicamente, arruinar e dificultar
atividades agro-pecuárias e comerciais; em suma, desarticular a economia e pressionar
duramente os habitantes, fazendo-os optar por abandonar, e assim desamparar, o território
inimigo. A explicação deste estilo de ação militar, assim sendo, teria duas faces: de um lado
estaria a impossibilidade de ambos os lados para derrotar totalmente o inimigo, e do outro o
excelente negócio e os elevados benefícios que a busca por presas trazia a todos os militares, e
mesmo ao Estado, por seu direito à arrecadação da quinta parte dos despojos alcançados145. A
documentação arrolada e citada pelo historiador para comprovar sua interpretação, porém,
deixa margem para que se questione sua intuição de que havia todo este planejamento a priori
organizando a sucessão de razias que constituiu a maior parte dos movimentos militares ao
longo dos mais de vinte anos de conflito, e de que era possível encontrar, entre os exércitos
em contenda, tamanha consciência de suas reais capacidades de ação, e dano. Por ora, porém,
basta a consideração deste estilo de guerra como um dado importante para a compreensão
desta e de outras guerras européias daquela época, e dos fatores de pressão militar
caracterizados acima, para que se dê a devida importância aos feitos militares de menor vulto
no contexto da guerra da Restauração, e para que aqui se analise o modo como o Mercurio
Portuguez tratou dos mesmos.
3.1.1 Nem tão menores: a valorização dos feitos militares de pequeno porte
Preocupado, como foi visto, em interferir na opinião que se desenvolvia sobre a guerra
contra Castela, Antonio de Sousa de Macedo de alguma forma percebia a importância de
narrar, e comentar, os pequenos sucessos de guerra que marcavam a vida da população e dos
soldados nas terras de fronteira. Se ele tinha razão em afirmar, na segunda edição de seu
periódico, que a guerra estava àquela altura mais intensa do que nos últimos vinte e dois anos,
145
CORTÉS, Fernando Cortés. Guerra e pressão militar nas terras de fronteira. (1640-1668). Lisboa: Livros
Horizonte, 1990. pp. 40-43.
72
e a historiografia atual tem mantido e aprofundado esta visão146, e se nesta fase se realizou a
maioria das suas maiores e mais decisivas batalhas, nem por isso o Mercurio deixa de abordar
esta guerra de recontros, escaramuças e, principalmente, de saques e razias, e de elaborar a
partir deste enfoque elementos cruciais da construção de seu discurso. Em momentos
distintos, o periódico narra com estilos distintos estes feitos de guerra. Em várias ocasiões,
como no exemplar sobre setembro de 1663, ele os aborda apenas sinteticamente, como que
atualizando o leitor das últimas novas, e reafirmando seu discurso de atenção à verdade, que
não permitiria que se deixasse pelo menos de pontuar qualquer evento relacionado à guerra:
Aos oito se tomàraõ entre Olivença & e Jerumenha, vinte cavallos, que o inimigo
trazia de guarda naquella cãpanha. Alguns dias depois tomamos outros sincoenta
cavallos pella parte de Elvas. Em dezanove, ou vinte, Pedro Jacques de Magalhaẽs,
Mestre de Campo general da Provincia da Beira, entrou nos campos de Cidade
Rodrigo, & trouxe trezentos boys, recolhendose sem perda algũa; & se o inimigo
não tivera noticia da entrada antecipadamente, se fizera hũa preza mais consideravel.
Estes bons sucessos tiverão o desconto de que na mesma Provincia da beira, no
partido de Penamacor, nos derrotou o inimigo duas companhias de cavallos, que
cahirão em hũa emboscada, & nos levou della cousa de trinta cavallos, & os dous
Capitaẽs.147
Já em outros casos, sua narrativa se detém mais sobre os feitos, como no caso já citado
de março de 1663, em que na ocasião de um embate contra o inimigo o periódico aproveita
para defender a eficiência dos portugueses, e a frouxidão dos adversários, além de enaltecer o
desempenho dos heróis do dia. Na edição sobre abril de 1664, o Mercurio desenvolve uma
aproximação semelhante, ao noticiar o combate travado por seis tropas de cavalos portuguesas
recém-recrutadas em Entre-Douro-e-Minho, contra três tropas e um terço de infantaria
enviados pelo governador das armas da Galícia. Por duas vezes ao longo do dia o inimigo
atacou as sentinelas da praça da Conceição, para com isso atrair à peleja as tropas
portuguesas. Na ocasião, a narrativa do periódico busca evidenciar a emoção da luta, além de
demonstrar o preparo com que o exército português defende suas praças e seu território, não
deixando de destacar os principais nomes envolvidos no feito:
Tornou à tarde a buscar as cẽtinellas com maior grosso; nós as socorremos; elles
engrossarão mais, nós fizemos o mesmo, & assim se travou uma escaramuça bem
atacada, vindose por vezes ás mãos. Pello q o Mestre de campo João Rebello Leite
Governador da praça lançou fòra o resto da sua cavallaria, & algũa mosquetaria
junto do fosso. Então rebentou o inimigo das emboscadas, mas sendo batido da
146
Cf. COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração.1640-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. pp. 81102, e também os dados recolhidos sobre a distribuição geográfica e temporal das tropas portuguesas em
FREITAS, Jorge Penim. O combatente durante a guerra da Restauração. Vivência e comportamentos dos
militares ao serviço da coroa portuguesa, 1640-1668. Lisboa: Prefácio, 2007. pp. 133-151. Para a visão da
historiografia militar tradicional portuguesa, são exemplos paradigmáticos, pois representam épocas distintas:
CHAGAS, Manuel Pinheiro. A Guerra da Restauração. Lisboa: Lucas & Filho – Editores, 1875; SELVAGEM,
Carlos. Portugal Militar. Compêndio de História Militar e Naval de Portugal. Desde as origens do eatado
portucalense até o fim da dinastia de Bragança. Lisboa: Imprensa Nacional, 1926.
147
Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 3r.
73
nossa artilharia, & mosquetaria, & vẽdo q não podia cortar a nossa gẽte, se retirou cõ
muita perda; (...) Tãbẽ se assinalou Agostinho de Araujo, que era o cabo da guarda;
governava as tropas o Tenente Victoriano de Sousa, que se ouve cõ acerto, e
bizarria; e do mesmo modo Frãcisco de Abreu, que governava a tropa do Capitaõ
Nicolao Ribeiro Picado; & todos os soldados em cõpetẽcia satisfizeraõ a sua
obrigaçaõ. Dos nossos ficâraõ feridos de espada quatro soldados; & hum de hũa bala
em hũa perna; mataraõnos dous cavallos, & algũs ficaraõ feridos.148
A este evento, portanto, o Mercurio dedica mais sua atenção, e assim pede o mesmo
de seu leitor, colocando-o no centro dos acontecimentos, de cada movimento do combate;
mesmo que assim evidencie a violência cotidiana da guerra, o periódico intenciona passar ao
leitor alguma segurança, difundindo confiança na força e na perícia militar portuguesa, nos
heróis que defendem cotidianamente o seu território, perdendo sangue por ele. Além disso,
Macedo nitidamente procura promover laços de identificação com os soldados, por exemplo
designando-os como “nossa gente”, ou ao narrar suas ações inserindo nelas a participação do
leitor, e assim, de toda a população do reino: “nós fizemos o mesmo”.
O discurso sobre a guerra no periódico se dedica com grande freqüência a estes
pequenos enfrentamentos, onde de forma geral sempre se destaca a porfia das tropas
portuguesas, e também sua apurada técnica militar, mesmo em momentos de grande
desvantagem. Em maio de 1666, quando trinta soldados desarmados tiveram que se defender
de uma partida de cavalos inimiga, “os poucos que levavaõ só espadas, com ellas obrárão de
maneira, que nenhum cavallo pode chegar, & só de fòra davão cargas, que os nossos
esperavaõ constantemente, sem embargo de verem o Sargento, & outros quatro, ou sinco
feridos”149. Frieza, técnica, coragem: estas notícias de escaramuças e recontros entre
portugueses e castelhanos, pontuadas ao longo de todo o período de publicação do Mercurio,
funcionavam bem em sua lógica discursiva como um microcosmo do embate entre os dois
reinos, dando na maior parte das vezes ocasião a que se demonstrasse a superioridade
portuguesa em cada detalhe narrado do conflito, e que se buscasse transmitir a tão necessária
confiança no desfecho favorável da guerra.
Da mesma forma, é interessante perceber como a violência inerente a esta guerra de
rápidas entradas em território inimigo é abordada pelo Mercurio. Se, como bem destacou
Cortés Cortés esta atividade bélica de menor vulto, porém intensa, e contínua, é justamente a
que assola e pressiona com mais assiduidade a vida dos moradores das regiões de fronteira, e
se, como já foi evidenciado, as conseqüências políticas nefastas desta pressão influenciaram
decisivamente o discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo nos primeiros meses
148
149
Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fols. 3r-3v.
Mercurio Portuguez. Maio de 1666. fol. 5v.
74
de seu periódico, é de grande valia acompanhar a sua postura diante dos eventos de guerra em
que se punha mais em causa o impacto do conflito sobre a população: as pilhagens que se
efetuavam, praticamente em todos os meses desta fase da guerra acompanhada pelo Mercurio,
tanto em terreno castelhano como no lado português da fronteira.
A edição de novembro de 1663 é exemplar quanto ao cenário de violência em vários
momentos visualizado através do periódico. Em outubro, já se havia noticiado entradas
castelhanas na Beira, com roubo de cavalos, gado, e degolas de portugueses. Já em novembro,
começa a narração de saques orquestrados por Pedro Jacques de Magalhães, governador do
partido de Riba Côa, distrito norte da província Beira, “em vingança das entradas que no mez
passado referimos haverem feito os Castelhanos”. No primeiro dia do mês, o mestre de campo
Manoel Ferreira Rebelo é enviado ao lugar chamado Redonda, “que he de setenta vizinhos, o
qual saqueou, & queimou com morte de alguns Castelhanos, & proveito dos nossos
soldados”. Uma semana depois, Pedro Jacques manda outros sessenta cavalos à Vila de
Pastores, que “foraõ á porta do forte q tem ao redor da Igreja, & tocando a degolar, indo os
moradores fugindo pera elle, degolâraõ oito, feriraõ muitos, entrâraõ o forte, saqueáraõ a
Villa, queimàraõ as casas, & se recolhêraõ sem perda”150.
Ainda mais feroz é a entrada ordenada por Afonso Furtado de Castro do Rio e
Mendonça, recém-chegado para governar as armas do partido do sul da Beira, Penamacor, no
dia dezesseis do mesmo mês. Como resposta à ação inimiga de queimar algumas casas do
lugar de Meimoa, “não tardou o nosso Governador com a vingança”, e enviou seu filho, o
comissário geral da cavalaria Jorge Furtado de Mendonça com cento e trinta cavalos e
duzentos soldados auxiliares “sòbre a Villa de Trebeja seis legoas da de Penamacor, na fralda
da serra de Gata, cujo aspero sitio a tinha livrado atégora de padecer ruìna”, enquanto o
próprio governador seu pai, com artilharia e outros duzentos infantes auxiliares, dava
cobertura à ação três léguas adiante. Sem pudores quaisquer, incentivado por este clima de
vingança que pretendia difundir com o seu periódico, o Mercurio narra o desfecho do feito
deixando bem às claras o quão indefesa se encontrava a vila atacada, e seus moradores:
As duas horas depois da meia noite, sem haver chegado a cavallaria pello intratavel
do caminho, deu o Comissario Jorge Furtado com a infanteria na Villa descuidada,
& a saqueou, e queimou, morrendo alguns miseraveis abrazados nas camas em que
se haviaõ deitado para descançar.151
Assim como ao narrar recontros e escaramuças nos campos e praças das fronteiras do
reino, quando o Mercurio trata dos saques às vilas, dos ataques cruéis aos moradores da
150
151
Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fols. 5r-5v.
Ibid. fol. 5v.
75
região, se mantém nele a operação de inserir o leitor no ambiente mais enérgico, mais
movimentado do conflito, e demonstrar a perseverança, e neste caso até a impiedade dos
soldados e generais envolvidos cotidianamente com a defesa do território, e também com a
ofensa ao inimigo. Quando se tratou de noticiar entradas portuguesas, e respectivos saques em
vilas e lugares castelhanos, muitas vezes, como estas acima, a ferocidade da ação militar foi
descrita. O Mercurio, porém, não escapava à tarefa de justificar a agressão aos lugares em
território inimigo. Nesta edição de novembro de 1663, como se percebeu, a principal razão
apontada é a vingança, indicando que se tratava de responder à crueldade e insolência dos
castelhanos. Mais uma vez, a intenção de Antonio de Sousa de Macedo parece ser a de passar
alguma confiança para o leitor, e ainda a de aplacar qualquer temor vinculado às últimas
entradas efetuadas pelo inimigo. Outro elemento, porém, também importante justificativa do
ataque a lugares desprotegidos, já aparece aí, indicado como o “proveito” obtido pelos
soldados na ação: o saque.
Em vários números do periódico os saques portugueses são abordados, e muitas vezes
percebe-se tal valorização dos despojos alcançados, descritos em alguns momentos com cifras
bem elevadas. Nos últimos meses de 1664, o Mercurio narra uma série de entradas
arrasadoras efetuadas pelo governador das armas de Trás-os-Montes, o já citado conde de São
João, e a quantidade de animais capturados, além de outros bens, é sempre impressionante.
Em outubro, o conde teria repartido suas tropas e enviado para assolar várias localidades em
uma região da Galícia, de acordo com Macedo, nunca antes alcançada pelo exército
português:
Saquearaõse todas aquellas Freguesias, de que se tirâraõ oito mil cabeças de gado
meudo, oitocentos bois, grande quantidades de patacas, & dobroẽs, muitas fazendas,
em tam grande numero, que sendo grande o desejo em todos os nossos soldados,
achàraõ todos remédio commum, porque ainda que a repartiçaõ, que fez a sorte, não
foi igual, todos vierão contentes.152
Mais algumas entradas arrasadoras por Trás-os-Montes são descritas neste número, e a
conclusão do Mercurio anuncia, fazendo relembrar o levantamento da cidade de Orense em
maio de 1663, que alguns lugares da região vinham oferecendo obediência ao rei português,
como Mandin, e mais quatro outros que mostravam intenções de fazer o mesmo. Tais
acontecimentos, explica Macedo, teriam origem nas “notaveis perdas” que Castela, e
principalmente a Galícia, vinha recebendo, e padecendo quase sem resistência. “Os clamores
dos povos saõ iguais” arremata com precisão, “& o Rey sẽse dobrar a tantos gemidos, posto q
152
Mercurio Portuguez. Outubro de 1664. fol. 4r.
76
sem esperãça de remedio”153. Se por um lado, portanto, mostrava-se útil demonstrar a
grandeza dos despojos conseguidos nas entradas na Galícia, parecia ainda argumento mais
definitivo traçar como conseqüência da destemida ação portuguesa a desolação da região
atacada, e o sofrimento dos galegos, que porém não eram ouvidos por seu rei, o que os levava
a recorrer à proteção das armas portuguesas que os atacavam. No mês seguinte, novembro de
1664, o Mercurio volta a tratar das investidas do conde de São João, que “tem sido hum
terribel flagello a Galliza, & a Castella a Velha por aquella parte”, que torna por sua vez a
saquear lugares “a que a fúria dos nossos soldados nunca tinha chegado”, tirando deles cerca
de trezentos bois, mil porcos, mil cabeças de gado miúdo, e outra grande quantidade de
fazenda. O resultado destas subseqüentes e bem-sucedidas entradas portuguesas é logo
anunciado:
Andaõ os inimigos por aquella parte taõ medrosos, que dous ou tres dias antes,
vindo cem cavallos a hum lugarejo nosso, bastou a resistencia de dez lavradores
(que só o defendiaõ) para lhes impedir a entrada, & matarlhes alguns cavallos, &
obrigallos a que, com passo mais que ordinario, se retirassem vergonhosamente.154
Narrar os saques portugueses, bem se nota quando se acompanha as notícias das
entradas das tropas trasmontanas do conde de São João, além de servir para demonstrar, aos
olhos talvez de um leitor preocupado com o impacto das entradas castelhanas em território
português, como o desenrolar cotidiano da guerra vinha trazendo riquezas para Portugal, e
tristezas para Castela, implica também na afirmação deste tipo de feito como parte de uma
estratégia militar eficaz, no sentido inclusive da redução do poderio e até da coragem do
inimigo. Um ano antes, em novembro de 1663, ao focar o Mercurio a atuação das forças
dirigidas pelo conde de Schomberg, governador das armas dos estrangeiros e mestre de
campo general da província do Alentejo, esta estratégia, militar e discursiva, já se mostrava
em pauta. Ordenou ele que algumas tropas saíssem a buscar presas nos campos dos arredores
de Brozas, e que outras, lideradas pelo sargento-mor de batalha João da Silva de Sousa,
atacassem o lugar de Ferregüela, e os soldados tiveram um ótimo dia:
A preza do gado foi grandissima, porèm os que a tomarão, desencaminhárão a maior
parte, como he ordinario. Acharaõse setecentos bois, seis mil ovelhas, tres mil
cabras, mil & quinhentos porcos, trezentas cavalgaduras. A cavallaria do inimigo
com o aviso de que os nossos entravão, abalou de todas as partes, & se ajuntou em
Albuquerque, mas pondose em marcha para Valença, soube que as nossas tropas
estavaõ já encorporadas com o Conde de Schomberg, & com a diligencia que os
Castelhanos tinhão feito para chegarem depressa, deixáraõ pello caminho mais de
cento & sincoenta cavallos mortos de cançasso.155
153
Ibid. fol. 4v.
Mercurio Portuguez. Novembro de 1664. fol. 5v.
155
Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fols. 6r-6v.
154
77
Repare-se que, nesta notícia, por todos os lados se demonstra a eficácia dos saques
efetuados, desde o tamanho da presa até a rapidez com que os destacamentos portugueses
conseguiram frustrar a tentativa dos castelhanos de retaliar sua entrada, e assim lhes impingir
mais um dano, que foi a perda de mais de uma centena de cavalos. Até o fato de que os
soldados portugueses costumavam desviar boa parte dos despojos conseguidos nestas
entradas, hábito denunciado pelo conde de Vila Flor na carta já citada de março do mesmo
ano e não comentado pelo Mercurio daquele mês, é utilizado agora por Antonio de Sousa de
Macedo como recurso para fazer supor ao leitor que o saque havia sido maior, e maior,
portanto, o prejuízo dos inimigos, do que os dados ali expostos revelavam156.
E o tamanho desta pequena vitória, no principal palco de operações da guerra da
Restauração que era fronteira do Alentejo com a Extremadura, é ainda mais acentuado pela
pena do Mercurio, ao continuar comentando a atuação de Schomberg, que vinha governando
a província na ausência do Conde de Vila Flor:
Deixou o Cõde de Schõberg as Villas de Mõforte, Alter, Veiros, & Frõteira com
fortificaçoẽs capazes de recolherem algũas tropas que incomodem o inimigo,
especialmente nos comboys para Arronches. Jà lhe tomàraõ hũ, & trinta & seis
cavallos; & entre outras cartas q depois se houverão de dous soldados de cavallo que
as levavaõ, & foraõ tomados; vimos por hũa de Dom Diogo Cavallero seu General
da cavallaria para Dom Alvaro de Luna Governador de Arronches, o muito que
sentem aquele estorvo, que obrigará (diz elle) a se fazer qualquer comboiy com
grande numero de cavallos, que pereceràõ nestas jornadas; & sem um exercito não
será possível desalojaremnos de alli.157
Pela carta do governador das armas do Alentejo de 3 de março, foi visto como a
presença dos castelhanos em Arronches vinha causando graves transtornos na região, gerando
inclusive o descontentamento e o temor da população, que já se recusava a pagar impostos da
Coroa, afirmando estar sendo ameaçada pelo inimigo. E o Mercurio sobre o mesmo mês de
março, se não se permitiu comentar esta situação calamitosa, fez apenas referência indireta, ao
introduzir a boa notícia de uma vitória contra a cavalaria inimiga sediada naquela praça. Já na
edição que ora se analisa, de novembro do mesmo ano, percebe-se como Macedo mantém seu
discurso afinado com a intenção de diminuir a apreensão reinante em relação à ameaça
representada por Arronches. Neste caso, o Mercurio narra primeiro um conjunto de saques
bem-sucedidos efetuados por tropas portuguesas na região, ressaltando o valor dos despojos, o
proveito dos soldados, e a inépcia do inimigo em se defender. Em seguida é que a narrativa do
156
É de se notar, a título de curiosidade, a presença de D. João da Silva de Sousa nos dois eventos em que há a
referência, na carta de Vila-Flor e no Mercurio, ao desvio de parte dos saques auferidos por entradas
portuguesas. Este interessante personagem da guerra da Restauração é utilizado pelo historiador Jorge Penim de
Freitas ao traçar um perfil do oficial pilhante, ou seja, daquele que busca sobretudo, com sua participação no
conflito, obter lucros pessoais através da pilhagem. Cf. FREITAS, J. P. op. cit. pp. 273-276.
157
Mercurio Portuguez. Novembro de 1663. fol. 6v.
78
periódico insere aqueles saques em uma perspectiva maior de estratégia militar, dando a nova
de que já estavam fortificadas algumas praças nas proximidades de Arronches – relembre-se
que na dita carta Vila-Flor recomendava que se fortificasse Monforte e Assumar – e que elas
já abrigavam destacamentos voltados para estorvar a presença inimiga na praça, através de
ataques aos seus cavalos, inibindo desta forma a sua ação ofensiva na região, bem como
através de saques a comboios que para lá se dirigissem, o que faria com que os castelhanos
precisassem redobrar seu investimento militar se quisessem manter aquela posição
conquistada anos antes. E o sucesso da estratégia de Schomberg, a confirmação de que a
pilhagem portuguesa fazia parte de um movimento maior de alívio da pressão exercida pelo
inimigo na região, vem inclusive através da referência a uma carta encontrada enviada pelo
governador de Arronches, mais um importante despojo dos afortunados saques na região.
Também em novembro, mas já de 1665, outra nova trazida pelo periódico reafirma,
com ainda outros elementos, a utilidade da pilhagem e da devastação do território inimigo
para o desenvolvimento global da guerra. Logo nas primeiras páginas da edição, são narradas
as façanhas do exército unido sob o comando do Conde de Prado, o já referido governador de
Entre-Douro-e-Minho, no reino da Galícia, que teria arrasado todos os lugares dos vales de
Minhoz, Fragoso e Rosal, “que saõ muitos, & outros de fóra delles naquelle circuito
padecéraõ a mesma fortuna”. Entre tantos, destaca a destruição e incêndio de Bouzas, “o
ninho dos armadores da pirataria, Villa de setecentos vizinhos, & riquíssima; em q arderão
armarzens de muitas fazendas, & assucares”. Neste momento chegam notícias de que o vicerei da Galícia, D. Luis Poderico, aguardava os portugueses com quarenta companhias de
cavalos e cinco mil infantes em uma portela chamada San Colmado, inevitável passagem para
o exército de Prado. Os soldados portugueses, segundo o periódico, quiseram seguir para logo
enfrentar o inimigo, mas este, “não se fiãdo na ventagem q tinha de sitio, se assegurou na
distancia, & marchando a Redondella, passou da outra parte da ponte de Sam Payo”158.
Ocupando então, após a frustração de não enfrentar oponente, posição em San Colmado, o
exército português envia uma partida para queimar a vila de Porrinho, localidade de grande
valor para o inimigo, por possuir ali as principais fábricas de suas feitorias:
Executouse com notavel perda sua, arruinandose as moendas (como tambem se fez
em outras partes) rompendose as ditas fabricas, quebrandose os instrumentos que
não se puderão trazer, & tomandose outros, & todos os aprestos; alem dos muitos
mantimentos que havia, com o que terá o inimigo grandissima difficuldade em
sustentar, não sò exercito, mas gente consideravel naquella fronteira.159
158
159
Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fols. 1r-1v.
Ibid. fol. 1v.
79
Nesta abordagem, portanto, Antonio de Sousa de Macedo inclui como fatores
benéficos destas entradas não só o arrasamento e saques imediatos dos lugares e dos bens
encontrados em território castelhano, mas também a destruição de sua capacidade econômica,
da produção em médio prazo dos mantimentos necessários ao sustento do exército, e inclusive
da população da região assolada. Associado a um discurso que proclama o vigor da ação
militar portuguesa, que inclusive amedronta as forças inimigas, há a afirmação simultânea da
inteligência e da eficácia estratégica da sucessão de pilhagens por ela desencadeada. A
conclusão da notícia sobre estes feitos resume o impacto geral da entrada na Galícia,
reafirmando esta simultaneidade entre a utilidade do ganho português e a da perda castelhana:
Os ditos quatro valles de Rozal, Minhoz, Fragoso, & Porrinho, abundantissimos, &
os melhores de toda Galliza, & suas muitas, & nobres povoaçoẽs, ficáraõ destruidos,
queimados, & arrazados, cõ perda que sempre serà lamentavel a seus naturaes, que
em muitos annos se naõ poderâõ aproveitar delles; & ficou dando o inimigo a cada
soldado só hũa quarta de milho, que comiaõ pisado. Os despojos que os nossos
trouxeraõ, saõ increiveis, porque não estavaõ retirados, naõ se imaginado, q
entrariamos tanto dẽtro. Couberaõ a muitos soldados ordinarios peças de prata, &
ouro de bom valor, & muito dinheiro; tal houve, q alcãçou seis mil cruzados em
dobroens dobrados; desmentiose a opinião q havia do pouco cabedal dos Gallegos;
mas a assistencia dos soldados, & exercito, lho acrecentou ha annos, trazẽdo para
alli muito dinheiro de elRey, & dos particulares, para as despezas ordinarias.160
A segurança, portanto, que o Mercurio pretendia passar aos seus leitores através do
acompanhamento da pilhagem e de outros pequenos feitos militares portugueses, passava pelo
reconhecimento das forças pontuais do seu exército espalhadas pelas diversas fronteiras entre
os dois reinos, e também pela consideração dos ganhos auferidos pelos soldados nos campos
de batalha, o que, inclusive, deveria atuar também como importante móbil para a obtenção de
novos combatentes para o front em Lisboa e outras cidades. O historiador Jorge Penim de
Freitas, na obra O combatente durante a guerra da Restauração, demonstrou com grande
propriedade, e fartura de documentação, as dificuldades que se impunham ao recrutamento de
soldados na guerra da Restauração, e como a pilhagem parecia ser a principal, praticamente a
única, motivação daqueles que se dispunham a alistar-se nos terços de infantaria e,
especialmente nas companhias de cavalo do exército português161. O Mercurio Portuguez,
neste contexto, quando relatava a suntuosidade dos saques efetuados, incentivava o
alistamento, mesmo que indiretamente, de novas levas para compor as forças militares do
reino.
Mais do que isto, porém, como se percebe pelas notícias dos saques partidos de Trásos-Montes em 1664, da pilhagem orientada pelo Conde de Schomberg no Alentejo em fins de
160
161
Ibid. fols. 1v-2r.
Cf. FREITAS, J. P. op. cit. principalmente pp. 32-43 e pp. 259-278.
80
1663, tanto como da efetuada pelo exército do Conde de Prado na Galícia em novembro de
1665, o Mercurio construía através delas o discurso de que tais feitos faziam parte de uma
estratégia mais abrangente, e ademais vitoriosa, de minar as forças inimigas, revertendo e
contradizendo o assolamento que os ataques castelhanos estariam trazendo ao território
português e a seus moradores. Imaginar, partindo de tal discurso, que havia por detrás das
razias praticadas pelo exército português a intenção de, através da violência sobre as
populações da fronteira, sabotar suas atividades econômicas e por esta via enfrentar o esforço
de guerra inimigo, confirmando o pressuposto aventado por Fernando Cortés Cortés, talvez
seja ainda arriscado, incluindo-se aqui a precaução de que não se pode tomar as informações
presentes no Mercurio como dados reais, ali verificáveis. Como já foi arrazoado, não faz parte
dos propósitos deste trabalho constatar ou contestar a veracidade dos fatos narrados por
Antonio de Sousa de Macedo. Mais seguro, portanto, e útil, ao intento de caracterizar a função
política da publicação de seu periódico, é perceber que se disseminava, e se reconhecia no seu
discurso sobre a guerra, o impacto das entradas e saques em território castelhano sobre a sua
população, e também sobre os rumos da guerra, se não como objetivo, ao menos como
resultado deste estilo de ação militar, e que esta constatação é inserida nos comentários de
Macedo sobre estes pequenos feitos, com a finalidade evidente de valorizar tais práticas, e a
talvez menos evidente de combater, no terreno da opinião, o efeito político exercido pela
pressão militar inimiga sobre a população portuguesa. Para isso, porém, além de narrar
pequenas e decisivas vitórias dos destacamentos lusitanos, fazia-se necessário também
abordar, e comentar, as entradas e os estragos efetuados pelo inimigo em território português.
3.1.2 Uma guerra vil e covarde: a depreciação das investidas inimigas e a transformação
do discurso sobre saques e razias
Nos primeiros meses de publicação do Mercurio Portuguez, alguns sucessos
contrários foram noticiados, sendo o principal deles a tomada da cidade de Évora, em maio de
1663. Analisando o modo como o evento foi abordado, foi aqui percebido a contento como
Antonio de Sousa de Macedo procurou, relatando tão má notícia, mitigar através de vários
elementos a apreensão que ela já havia gerado no reino, principalmente em Lisboa. Não seria
diferente, em linhas gerais, sua postura diante de outras investidas castelhanas de bem menor
porte, como os saques e escaramuças que em vários momentos são mencionados ao longo das
edições do periódico compostas pelo secretário de Estado. A cada vez que narrava um sucesso
das armas castelhanas, Macedo reafirmava a intenção de não deixar escapar qualquer notícia
81
daquela guerra, mesmo se fosse contrária aos portugueses, e ao mesmo tempo utilizava vários
recursos para minorar o seu impacto na opinião de seus leitores.
Na edição de fevereiro de 1664, a descrição da entrada das tropas sob o comando do
general inimigo duque de Osuna é um bom exemplar das estratégias discursivas do Mercurio:
Pella parte de Almeida, na Provincia da Beira, andáraõ [os castelhanos] nos
primeiros dias deste mez muito soltos com o poder que juntàraõ de Estremadura,
correndo a campanha, por naõ haver com que se lhes fizesse resistencia; porem
havendo o Governador das Armas Pero Jacquez de Magalhaens feito recolher os
gados ao interior da Provincia, & o fato ás Praças, se empregáraõ em destruir alguns
lugares da raya, & por ultima raiva em derrubar duas pontes. Ufano destas facçoẽs
(que o pobre se alegra com pouco) espalhou o Duque de Ossuna papeis, convidando
meo mundo á obediencia de seu Rey; & a elles se lhes respondeo de Portugal com
outros semelhantes, & de zombaria, & finalmente, deixando o seu novo forte
guarnecido, em sinco deste mez se retirou a Ciudad Rodrigo, mas não sem perda,
porq pela parte da nossa praça de Alfaiates, o Capitão de couraças Antonio Ferrão de
Castello Branco lhe tomou hũ comboy de 24 carretas, & algũas cavalgaduras
carregadas. De hũa tapada jũto ao forte lhe tomáraõ uns Portugueses de Almofala
quarenta boys, e da mesma sua Aldea do Bispo lhe tiràraõ muitos.162
Com algum humor, Macedo inicia a notícia dizendo que estavam os inimigos “muito
soltos” no território português, e explica que o faziam em decorrência da ausência de
resistência possível à sua ação na fronteira da província. O que poderia implicar na
consideração de uma falha da organização militar portuguesa, desta forma, é utilizado como
subterfúgio para acusar a covardia dos castelhanos, que não percorreriam a região se estivesse
protegida. Além disso, ainda no intuito de contornar a falta de guarnição que propiciou tal
liberdade ao inimigo, o narrador inclui a informação de que todo o gado e o fato daquela raia,
objetos de cobiça das tropas de Osuna, havia sido recolhido para o interior do território, dando
prova da prevenção com que atuava o governador Pedro Jacques de Magalhães, e minorando
a dimensão do dano causado pela entrada em Portugal. Afinal, a ação militar castelhana, de
destruição de “vários” lugares e derrubada de duas pontes, é descrita como de somenos
importância, e motivada exclusivamente pela raiva do inimigo, frustrado em suas primeiras
intenções de pilhagem. O duque de Osuna, porém, não considerou pequeno o seu feito, e
espalhou papéis exigindo a rendição dos portugueses, atitude ridicularizada pela pena afiada
do Mercurio. Ainda procurando desacreditar o impacto da entrada castelhana, Macedo
contrapõe a ela algumas notícias de saques portugueses bem-sucedidos na mesma região do
conflito.
Estes elementos detrativos da ação militar empreendida pelo inimigo estão presentes
na maior parte das vezes em que o Mercurio Portuguez enfoca os saques e razias que
assolavam o território português nesta última fase da guerra. Um deles é o tratamento irônico
162
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1664. fols. 2r-2v.
82
dispensado a tais feitos, menosprezo tão bem expresso na consideração de que “o pobre se
alegra com pouco”. Sua intenção mais óbvia, portanto, é exatamente fazer pouco dos ataques
castelhanos, neste específico caso os das tropas de Osuna. As próximas linhas da mesma
edição do periódico, porém, deixam entrever que a destruição causada por tais ataques não foi
assim tão desprezível: “Recolhido o inimigo, começou Pero Jacquez de Magalhaẽs a refazer
as pontes, & veo chegando a gente q lhe faltava”163. Era imperioso, bem se vê, consertar o
estrago causado por Osuna na região, assim como incrementar a defesa do território que havia
ficado tão desprotegido. No mês seguinte, uma nova ofensiva do duque na Beira: Pedro
Jacques de Magalhães, reedificando uma das pontes arruinadas, sobre o rio Côa, havia
levantado perto dela uma atalaia, e a guarneceu com vinte mosqueteiros, que agora seria novo
alvo dos castelhanos:
Em vinte deste mez de madrugada foi o Duque de Ossuna cõ seiscentos cavallos, &
mil infantes para derrubar a atalaya. Sahio da praça de Almeida Pedro Jacques, &
mandou occupar os altos de hũa, & outra parte do rio com mangas de mosquetaria;
pelejou a infantaria com armas de fogo, & travouse escaramuça com os batalhoens
de sua vãguarda; em fim foi o inimigo rechaçado com algũa perda.164
Efetivamente não se tratou a derrubada das pontes de uma ação militar fortuita,
inspirada pela raiva de não se haver encontrado gado para o saque planejado. Tendo andado
livremente pelo território português, destruído vários lugares e derrubado duas pontes, o
duque de Osuna talvez tivesse boas razões para se sentir vitorioso. Uma das pontes, inclusive,
só um mês depois o prudente Mercurio informa, postava-se sobre o rio Côa, que atravessava,
de sul a norte, os dois partidos militares em que foi dividida a Beira a partir de 1647165, Riba
Côa e Penamacor. A crer pelos esforços empreendidos pelo governador Pedro Jacques em sua
reconstrução, com instalação de uma atalaia, e pela defesa contra uma tentativa de Osuna de
impedi-la, torna-se patente que a ponte não era um elemento prescindível naquele cenário de
guerra, devendo se tratar de uma importante via de comunicação entre o interior da Beira e
suas terras de fronteira. Antonio de Sousa de Macedo, portanto, tinha também as suas razões
para debochar da investida pontual do inimigo, assim disfarçando seu caráter objetivo, e
estratégico.
O assédio das tropas do duque de Osuna na Beira, porém, não param com a tentativa
de coibir a reconstrução da ponte, demonstrando que suas intenções na região não eram
163
Ibid. fol. 2v.
Mercurio Portuguez. Março de 1664. fol. 1v.
165
Segundo Jorge Penim de Freitas, a divisão da província fora solicitada em Cortes, e teve como ponto de
referência a Vila de Alfaiates: “A partir daquela localidade para norte, até ao rio Douro, estendia-se o partido de
Riba Côa, também designado como partido de Almeida; e de Alfaiates para sul, até ao rio Tejo, tomava forma o
partido de Penamacor, também referido como o de Castelo Branco”: FREITAS, J. P. op. cit. pp. 143-144.
164
83
casuais, e assim também continua o Mercurio, ao narrar cada sua investida, desenvolvendo
seu peculiar humor diante das incursões inimigas. Em junho do mesmo ano, já portanto em
plena campanha de 1664, Osuna adentra em território português, de acordo com o periódico,
com três mil infantes, mil cavalos, sete peças de artilharia, e muitos carros. Mordaz, o
Mercurio comenta a serventia de tamanho poderio:
Parou todo este estrondo em derrubar algũas atalayas que o Governador das armas
Pedro Jacques de Magalhaẽs avia mandado despejar por não terem defensa; & em
fazer guerra vil aos paẽs que segou meos verdes, de que levou muitas carradas. Por
cartas que se lhe tomâraõ em hum Corrêo para sua mulher, & para o Conde de
Graxal, assistente em Salamanca, blasonava muito destas façanhas, avaliando cada
atalaya por hũa Rochela, & cada espiga por cabeça de hum gigante. O Governador
Pedro Jacques, que não se achava com seu poder junto, ainda assi em varios
recontros lhe matou gente, & tomou trinta & tres cavallos, & lhe matou outros, & da
nossa parte se perderaõ só tres cavallos, & houve hum soldado ferido.166
“Todo este estrondo”, escarnece Macedo, mobilizado apenas para derrubar umas
atalaias e fazer “guerra vil” aos pães, ou seja, devastar as plantações de trigo da região, neste
caso recolhendo-o e levando para o território castelhano. O humor do Mercurio Portuguez
opera aqui uma caricatura da ação militar chefiada pelo duque de Osuna, com óbvias
intenções políticas. Sem força, ou melhor, sem coragem para enfrentar o exército português,
Osuna se contenta com fazer guerra aos pães, e ataca apenas alguns postos de observação
portugueses, e ainda envia cartas vangloriando-se do feito, para o seu assistente em
Salamanca e para sua mulher. O sarcasmo do periódico chega ao auge, imprimindo à sua
caracterização do inimigo delírios verdadeiramente quixotescos, e terminando de menosprezar
seu feito mostrando como Osuna o utilizava para fazer pose de guerreiro vitorioso diante da
mulher, e dos seus subordinados. Um ponto, porém, parece incontornável, mesmo à
engenhosa pena do Mercurio: ao denunciar a vileza do ataque às plantações da Beira,
pretende-se com certeza desvalorizar tal ação militar, destacando a sua covardia, mas neste
caso a covardia relaciona-se não só com o medo, mas também com a crueldade de quem a
engendrou; se se reconhece a crueldade do feito, reconhece-se o seu resultado assolador, o seu
impacto na vida dos moradores e na organização do exército lusitano na região. O mesmo
intento, portanto, de desarticular a economia do inimigo, que Macedo procurou elogiar nos
saques portugueses, pode-se encontrar no tipo de entrada operada pelos castelhanos em casos
como o destacado acima, e é este intento, e seu sucesso, que se procura agora envolver no
manto do escárnio e do amesquinhamento.
Não por acaso, portanto, logo após narrar o recolhimento das tropas de Osuna, o
Mercurio traz notícias da resposta de Pedro Jacques de Magalhães aos seus ataques. Em
166
Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 13v.
84
primeiro lugar, organizou uma investida sobre a vila de Sobradillo, “hũa boa povoação, &
rica”, com quatrocentos cavalos e dois mil e quinhentos infantes, força que ali entrou sem
grande resistência dos moradores, que logo se refugiaram em um castelo próximo. O
governador então “mandou saquear a villa, o que se fez com muito vagar; & depois a mandou
queimar”. De acordo com o periódico, a fúria de Pedro Jacques só não investiu contra o tal
castelo em que estavam os moradores porque começou uma forte chuva que engrossou o rio
Águeda e impediu que suas tropas o atravessassem com “os petardos, lanças de fogo, &
granadas, que para isto levávão”. Obrigado pelo mau tempo a se recolher, ainda “mandou
Pedro Jacques dizer ao duque que em saquear, & queimar villas se vingava, & vingaria de lhe
segar paẽs, & derrubar atalayas”167. Antes de terminar a mesma edição, Macedo traz ainda,
como última nova, que o governador da Beira continuava a sua “vingança dos paẽs cortados”:
sabendo da chegada de um comboio de carretas e cavalgaduras em direção ao Forte de Fiel,
saiu com trezentos cavalos de Almeida, e já perto do dito forte o atacou com quarenta cavalos,
tomando sessenta carretas e quarentas cavalgaduras, e atraindo a guarnição do forte para o
combate:
saindo o inimigo a socorrellas, o mandou carregar pello Tenente general da
cavalleria Dom Antonio Maldonado, & fazendoo com menor numero, obrou elle, &
os que com elle hiaõ de maneira, que às cutiladas, metèraõ os batalhoẽs inimigos
pella porta do Forte, & chegáraõ atè á estacada com grande bizarria, matando, &
ferindo muitos soldados, tomando quinze cavallos, & quarenta prisioneiros.168
Bem se nota a relevância, tanto na guerra quanto na opinião, da derrubada de atalaias e
do ataque a plantações de trigo orientados pelo duque de Osuna, se originou estas ações de
retaliação, e se no periódico do secretário de Estado se designou a sua vingança como mote e
justificativa para as entradas em território inimigo. Logo nas primeiras linhas da edição de
dois meses depois, sobre agosto de 1664, ainda se recorria à memória da guerra aos pães para
arrazoar os saques de Pedro Jacques, que no dia três saíra “com dous mil infantes, &
setecentos cavallos pagos, & auxiliares, a fazer em Castella algũa presa, que continuasse a
vingança dos trigos que o Duque de Ossuna havia cortado com a guerra vil que jà vimos”169.
A vingança, portanto, continua, e o leitor do Mercurio acompanha uma série de incursões
dirigidas pelo governador português, representando sempre eficientes tomadas de cavalos e
gado.
Como se percebeu, ao tratar das entradas inimigas, sempre buscando reduzir o impacto
destas novas na opinião dos leitores, Macedo opera no sentido inverso do enfoque de
167
Ibid. fol. 14r.
Ibid. fol. 16r.
169
Mercurio Portuguez. Agosto de 1664. fol. 1r.
168
85
exaltação dos pequenos feitos portugueses, e acusa a mediocridade, a covardia e, como pano
de fundo, a ausência de qualquer pensamento estratégico por detrás dos ataques inimigos a
pequenas localidades, pastos e plantações. Porém, quanto mais, ao longo de suas edições, este
tipo de recurso é utilizado, quanto mais se acusava a covardia dos castelhanos, mais se
tornava necessário incluir a valentia como móbil e justificação dos saques portugueses. Isso
porque, a cada notícia sobre os danos trazidos pelos castelhanos ao território português, mais
se destacava no Mercurio a ausência por parte do inimigo de qualquer intenção de combate
direto.
Já em julho de 1664 encontra-se um dos primeiros exemplos desta postura. Comenta
Macedo em certa altura que os castelhanos entraram por Trás-os-Montes com dezesseis tropas
de cavalos, um terço pago de infantaria, e mais alguns milicianos, indo sobre pequenos
lugares como Lama de Arcos, Vila Meã e Vilarinho, entre outros, e “não levou delles cousa
de sustancia, se bem nas sementeiras fez perda”. Mais um caso, portanto, de ataque direto à
produção agrícola das terras de fronteira. Macedo não deixa, como nota-se em seu discurso,
de subestimar a perda decorrente da entrada, mas faz mais: diz que a província portuguesa se
encontrava com apenas seis tropas, com duzentos e cinqüenta cavalos, trezentos infantes
pagos e alguns terços auxiliares, que comandados pelo mestre de campo Diogo de Brito
Coutinho estiveram buscando o inimigo; porém este, durante toda a ação, “andou como
fugindo; porq tẽdo tanto maior numero de cavalleria, & infanteria paga, se retirava logo, que
imaginava q os nossos hiaõ socorrer; atè q, avẽdo feito guerra mais de salteador, que de
conquistador, se recolheo a Monte Rey”170. À desvalorização da dimensão das razias e saques
inimigos, se soma a acusação de que as tropas que os efetuavam fugiam de possíveis
recontros com as forças portuguesas, mesmo quando estas apresentassem franca desvantagem
numérica. Em meio ao discurso de menosprezo das intenções bélicas castelhanas, vai se
definindo uma oposição nítida entre a covardia inerente a um estilo de guerra mais afeito aos
saques, e o valor e a bravura daquele que procura promover confrontos diretos entre os
exércitos em contenda.
A partir dos últimos meses de 1665, e durante praticamente todas as edições do
Mercurio Portuguez em 1666, período em que de maneira geral reduz-se a dimensão e a
proporção dos feitos bélicos da guerra da Restauração, este discurso avoluma-se e se
consolida no olhar do periódico sobre a guerra. Em outubro de 1665, comenta a entrada e
saque das tropas do marquês de Caracena, general do exército castelhano desde o início do
170
Mercurio Portuguez. Julho de 1664. fol. 8v.
86
ano, nos lugares abertos de Veirós e Fronteira, de onde levou presas e prisioneiros. Quando
começava a queimar as casas de Fronteira, porém, ficou sabendo que o mestre de campo
general e general da cavalaria do Alentejo, Diniz de Melo de Castro, vinha a seu encontro, e,
como quem “entràra em Portugal com preposito de naõ receber visitas, subitamente levantou
maõ do q fazia, & de hum tiro andou sete legoas por se emboscar em Castella; o temor, disse
o Poeta, acrecẽta azas”171. A estratégia do Mercurio é a de menosprezar o ataque castelhano,
mas não exatamente por não haver trazido dano a Portugal, e sim acusando sua covardia em
não esperar as forças portuguesas e enfrentá-las. O sarcasmo do periódico, que aqui
ridiculariza a rapidez da fuga inimiga, se dirige então a inferiorizar a própria tática militar do
saque e destruição dos lugares de fronteira.
No número sobre os eventos de novembro de 1665, o mesmo em que já se havia
narrado a entrada arrasadora do conde de Prado na Galícia, as notícias sobre a província do
Alentejo enfocam a entrada do mesmo Caracena, com toda a cavalaria castelhana, dividida em
dois troços de mil e quinhentos cavalos cada. O primeiro teria apenas queimado quatro casas
nos arredores de Santa Eulália, não conseguindo entrar no lugar por rechaço dos moradores e
alguns soldados que lá se encontravam, e se retirou por Juromenha sem que fizesse outro
dano, “nem levou preza algũa, porque os gados se haviaõ retirado por aviso que tiverão”. Já o
segundo troço não parecia tão fracassado, pois queimara as aldeias e casas no caminho de
Monsaraz, e “se retirava com hũa grandissima preza de gado”172, até que ficou sabendo que
vinham no seu encalço o tenente general D. Luis da Costa com sete companhias de cavalo e
também, com reforços, o mesmo Diniz de Melo de Castro:
bastou isto para tocar logo a recolher, &, de retirada apressada, passou a fugida
vergonhosa, largando cõ o medo toda a preza (exceptas poucas rezes, & porcos que
tinha mandado muito adiante) correndo para o porto do Tarrasal. E tocandolhe
poucos cavallos nossos de noite arma pellos lados, & na retraguarda, se meteo em tal
confusaõ que, tocando as trombetas, perdeo o caminho, & setenta cavallos, e nos
deixou alguns Oficiais prisioneiros, & foi pelo Roncão passar o porto do Zebro, sem
parar senão depois de correr sinco legoas, em que se arruìnou grande parte da
cavallaria.173
Repare-se como aqui se dedica o Mercurio a narrar em tons de comédia a saída do
inimigo do território português, a caracterizá-lo medroso e atrapalhado, deixando para trás a
grande presa que levaria para Castela, e ainda causando a perda dos seus próprios cavalos na
confusão de sua fuga intempestiva. Fuga vergonhosa, e não retirada apressada, indica
Macedo, ironizando o eufemismo próprio da linguagem militar. Para completar a cena cômica
171
Mercurio Portuguez. Outubro de 1665. fol. 3v.
Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fol. 6r.
173
Ibid. fol. 6v.
172
87
pintada acima, o periódico informa ainda que a causa maior do temor do marquês inimigo, os
reforços que trazia Diniz de Melo de Castro, não se concretizou, pois o general da cavalaria
do Alentejo não chegara a conseguir reunir, como pretendia, as tropas de Vila Viçosa com as
de Elvas: Fugit impius nemine persequente; o ímpio foge sem que ninguém o persiga,
arremata recorrendo ao provérbio salomônico174, encaminhando o leitor da comédia à censura
moral dos opositores de Portugal, e passando então a apontar como sua ação covarde fazia
parte de um novo estilo de guerra levado a cabo por Castela, sinal de sua decadência e de sua
inépcia militar:
Tem feito Caracena estes tempos as entradas que vimos, porque (segundo os avisos
que recebemos de Madrid) o novo governo da Rainha tem resoluto seguir outro
estylo de guerra, naõ tratando de batalhas (& faz bem) mas molestando com entradas
a pilhar. Se isto he generoso, & meo de cõquistar, elles o saberaõ, & se he tambem
ordẽ Real, que fujaõ os intrantes tanto que sospeitarem que os nossos os querem
buscar, elles a executaõ pontual, & obedientissimamente.175
Desta forma, o Mercurio Portuguez definitivamente denuncia a indignidade deste
estilo de guerra que privilegia os saques e foge das batalhas, e demonstra assim como este tipo
de ação indica a falência do inimigo, sua incapacidade bélica, e sua covardia inveterada. Nas
edições seguintes à citada, multiplicam-se os exemplos desta abordagem do periódico em
relação às entradas inimigas. Ainda em dezembro de 1665, comenta que trinta cavalos
inimigos que entraram em Portugal, e já levavam presa dos campos de Moura, quando foram
vistos por dez ou doze caçadores, eles, “fazendose lebres, deixaraõ logo a preza, & se puzeraõ
em salvo”176; em março de 1666, faz rápida menção a duas entradas inimigas pelo partido de
Penamacor, diz que uma levou quinhentas ovelhas, e a outra nada, e que como o inimigo
“logo se costuma recolher, com o que acha, ou sem nada, & como naõ espera, naõ ha peleja
que referir das suas entradas”177; dois meses depois, na edição de maio, noticia o saque de
duzentos castelhanos sobre Vilar de Margo, que perseguidos por duas companhias de
infantaria portuguesas perderam seis homens, e vários foram presos, “e os mais se puzerão em
fugida, largãdo as armas, & o que levavão”178. Em julho de 1666, no auge da campanha
militar daquele ano, logo após acompanhar a prevenção com que Diniz de Melo de Castro
surpreendeu um troço de cavalaria inimiga e o perseguiu por quatro léguas lhe tomando
duzentos cavalos, e logo antes de narrar a entrada do inimigo pelo termo de Mértola com mil
e trezentos cavalos e seiscentos infantes, que ao saberem que os buscava o governador de
174
Vulgata, Provérbios, 28, 1.
Mercurio Portuguez. Novembro de 1665. fol. 7r.
176
Mercurio Portuguez. Dezembro de 1665. fol. 2v.
177
Mercurio Portuguez. Março de 1666. fol. 2v.
178
Mercurio Portuguez. Maio de 1666. fol. 4v.
175
88
Beja Diogo Gomes de Figueiredo, com mil cavalos, fugiram direto para Castela, contentandose apenas em queimar três ou quatro palheiros, Macedo coroa o argumento construído nos
últimos meses:
Que pelejando aja bons, ou maos successos, he muito ordinario; mas que de tempos
a esta parte nam queiram ja os castelhanos pelejar, sô busquem o que nam tenha
opposiçam, & achandoa, nam ousem ver nossa cara, como vimos em tantos
successos desta relaçam, he muito pera reparar; vejase como ham de ser
conquistadores.179
É, portanto, através deste discurso tecido mês após mês, que o Mercurio reorganiza,
principalmente durante 1666, sua lógica de detração das investidas castelhanas de pequeno
porte. Como se evidenciou aqui, ao longo das sucessivas publicações Antonio de Sousa de
Macedo vai definindo suas estratégias discursivas, se esforçando no princípio em desmentir a
função estratégica da ação castelhana, de modo inverso ao que fazia quando abordava um
saque ou uma razia portuguesa; mais adiante, porém, concentra-se na acusação da covardia
inerente a este estilo de guerra, e na associação dos saques castelhanos com uma incapacidade
de empreender a guerra mais honrada, e eficiente, que seria o combate direto com as forças
militares portuguesas. Assim, na edição de agosto de 1666, introduzindo sua narração sobre
os saques efetuados pelo marquês de Caracena em Veirós e vários lugares vizinhos, além da
invasão bem-sucedida sobre um pequeno castelo em Cabeça de Vide, o periódico pôde
menosprezar o feito, comentando que “Caracena, como ferido, andou mais prudente, porque
obrou o que pode sem chegar a pelejar”180. Sob este novo prisma, colocado diante das notícias
dos feitos castelhanos de menor vulto em território luso, construiu-se uma distinção moral
entre o saque e a peleja, que passou a atuar no discurso detrator da ação militar castelhana
com mais veemência do que os anteriores recursos destinados a subestimar a dimensão dos
danos por ela impingidos a Portugal.
Como não podia deixar de ser, o domínio deste prisma nas edições de 1666 implicou
também em mudanças substanciais no modo como Macedo passava a descrever os saques e
razias dirigidos pelo exército português contra o território castelhano. Caso exemplar desta
mudança pode ser observado em outra notícia do, citado há pouco, Mercurio de março de
1666. Logo após o passo, já referido, de anunciar a perda de quinhentas ovelhas, criticando
como os entrantes logo se recolheram, sem deixar oportunidades para pelejas, o periódico
passa a noticiar as entradas em território castelhano organizadas por Antonio Soares da Costa,
general da artilharia da Beira, que então governava o partido de Penamacor, de onde haviam
sido retiradas as tais ovelhas. Tendo saído com duzentos cavalos em busca de cinco tropas
179
180
Mercurio Portuguez. Julho de 1666. fol. 7v.
Mercurio Portuguez. Agosto de 1666. fol. 17v.
89
inimigas que entendeu estavam em Saclavim, não as encontrou, mas apenas outros trinta e
seis cavalos, contando com cinco tenentes e um capitão, dos quais tomou trinta e cinco; no
mesmo dia, foi para as proximidades de Silheiros, para atrair sua tropa, mas esta “naõ quiz
sair; trouxeraõ os nossos muitas ovelhas, & cavalgaduras, de cujo numero naõ chegou a
Mercurio certeza”181. No mesmo mês, portanto, subentende-se que houve saques realizados
pelos dois lados na raia da região sul da Beira. Ambos os lados, portanto, reconheciam a
utilidade, quiçá a necessidade, de tais pilhagens no cotidiano da guerra; mas o Mercurio,
empreendendo já outra guerra, em outra arena, faz questão de dizer que os castelhanos
buscavam apenas o saque, e fugiam de confrontos diretos, enquanto os portugueses cruzavam
a fronteira no intuito de provocar batalhas, e quando não as concretizavam, o que afinal
dependia da recíproca coragem dos inimigos, é que se dedicavam ao saque. Repare-se que, a
esta altura, mesmo o ataque de tropas portuguesas contra castelhanos em franca desvantagem
era justificado pela intenção anterior de um combate mais igual, e mais valoroso.
Ao longo deste último ano escrevendo o Mercurio Portuguez, Macedo narra outros
vários pequenos feitos conduzidos por Pedro Jacques de Magalhães, ainda governador do
partido de Riba Côa, e o modo como Macedo aborda tais feitos, bem diferente daqueles
descritos como vingança contra a guerra aos pães empreendida pelo duque de Osuna, mostra
ainda com mais nitidez a significativa alteração do discurso do periódico sobre os pequenos
sucessos de guerra. Se durante a campanha de 1664 bastava a menção à necessária desforra
em relação aos danos impostos por Osuna para justificar os saques portugueses naquela
fronteira, já em 1666 sempre o periódico procurará atribuir ao exército português objetivos
mais honrados do que a simples depredação e saque nas possessões inimigas.
Na edição sobre o mês de fevereiro, sua primeira entrada já foi comentada neste
trabalho, pois veio em seguida aos seus comentários à prática de pazes negociada pelos
emissários ingleses: um belo e portentoso saque, que teve como motivação de fundo atrair à
peleja as tropas de Ciudad Rodrigo, que porém “naõ ousaraõ a passar de hũ alto junto da
Cidade, donde foraõ testemunhas da marcha com que Pedro Jacquez se retirou”. Mas as
investidas do destemido governador não haviam parado por aí: dias depois, entrou e saqueou a
vila de Retortillo, a cinco léguas de Ciudad Rodrigo, lá se alojou com seus seiscentos infantes
e oitocentos cavalos, despedindo na manhã seguinte duas partidas de cavalos a saquear vários
lugares, chegando uma delas até a cinco léguas de Salamanca, pelo que trouxeram despojos
consideráveis, desde gado até peças de ouro e prata; a conclusão da notícia, porém, não deixa
181
Mercurio Portuguez. Março de 1666. fol. 3r.
90
de lembrar porque não havia narrado batalhas naquela região: “se recolheo o nosso
Governador das armas sem que Dom Joam Salamanques General da artilheria, que governa as
de Ciudad Rodrigo, & de aquelle Partido, saisse nem a ver a nossa marcha”182.
Houve que se justificar, portanto, a entrada e os saques efetuados em território
inimigo, pois eles não deviam ser interpretados, como o Mercurio pedia em relação aos
saques castelhanos, como ações covardes de um exército indisposto a batalhas e recontros
com seu opositor. Durante o ano de 1666, em algumas outras edições são narradas entradas
orientadas por Pedro Jacques que efetuam saques nas redondezas de Ciudad Rodrigo, sempre
com o frustrado propósito de provocar um combate direto com a guarnição daquela praça. A
última delas, porém, noticiada no número sobre outubro, é a que merece maior destaque. Mais
uma vez, saía o exército português com o fim de “armar à cavalaria de Ciudad Rodrigo”:
Emboscouse aonde chamão Val dos Canhos, pouco mais de tiro de peça da praça; &
despedio em partidas 130 cavallos a pilhar os campos, os quaes chegàram a
Tamames, sete legoas alem daquella Cidade, passando por muitos lugares, & villas,
sem acharem nelas resistencia, mas sô desconsolaçam, & clamores de se verem sem
defensa. Em tanto foi Pedro Jacquez de Magalhaens sentido na emboscada, pello
que se descobrio aos tres; sahio a cavallaria da praça, mas nam apartou as ancas da
muralha; o que vendo Pedro Jacquez mandou saquear algumas herdades, & que os
soldados vindimassem as vinhas, o que fizeram muito a seu gosto com grande vagar.
Chegàram as nossas partidas bem carregadas, as grupas de fato, & trazendo 700
rezes vacũas, & muitas cavalgaduras, & deixando talada a campanha, & muitas
casas queimadas; o nosso Governador das armas se pos em marcha, vindo jũtamente
caçando às perdizes como por sua casa.183
A serenidade da ação militar portuguesa chega a ser anedótica. Investira o Mercurio
ao longo do ano, em várias ocasiões, no discurso de que as tropas da Beira repetidamente
tentavam atrair as de Ciudad Rodrigo, mas estas não as enfrentavam, explicando assim a
ocorrência de uma série de pilhagens realizadas por Pedro Jacques na região. Agora, nesta
edição de outubro, o periódico incrementa tal discurso descrevendo com tom jocoso as ações
que se tornaram possíveis pela covardia dos castelhanos: os saques efetuados já sete léguas
depois da cidade inimiga, a sossegada colheita das uvas a poucos metros da mesma, e a
tranqüilidade com que as tropas puderam retornar a Portugal, permitindo inclusive o requinte
de uma caça a perdizes durante o percurso. Assim, Antonio de Sousa de Macedo conduz ao
paroxismo sua oposição entre as entradas e saques castelhanos e o mesmo tipo de investida
operada pelos portugueses, construída desde fins de 1665: se nas entradas inimigas verificavase a disposição das tropas lusitanas para sua retaliação, e apenas a covardia castelhana
impossibilitava o confronto direto entre as forças militares dos dois reinos, o exército
português, por sua vez, ao adentrar em território inimigo fazia questão de executar sem pressa
182
183
Mercurio Portuguez. Fevereiro de 1666. fols. 2v-3r.
Mercurio Portuguez. Outubro de 1666. fols. 9r-9v.
91
seus saques, no intuito de enfrentar em batalhas campais a cavalaria castelhana, e mais uma
vez é o temor dos inimigos que as impede.
Neste último caso, porém, Macedo traz ainda outro dado, que reforça o seu propósito,
observado desde os idos de 1663, ao procurar cunhar tal diferenciação entre as pequenas
ações militares de ambos os lados da contenda: se Pedro Jacques não encontrou, nos lugares
saqueados, qualquer resistência, notou porém como aí se disseminava o desconsolo da
população estremenha, que se percebia desamparada pelas forças que a deveriam proteger. Se
o cotidiano de rápidas entradas, saques e razias, de acordo com a historiografia atual sobre a
guerra da Restauração, era o elemento que mais debilitava e assolava a vida dos moradores
das áreas atingidas pelo conflito, ao descrevê-las o redator do Mercurio Portuguez utilizou,
como foi visto, uma série de recursos para valorizar e justificar as ações portuguesas, e
menosprezar as investidas castelhanas. Com isso, se pretendeu sempre abrandar o impacto
que o inevitável assolamento da zona de guerra poderia causar no terreno da opinião, impacto
de inequívoca dimensão política, sentida com bastante força entre março e maio de 1663,
período inicial certamente marcante para a definição das estratégias discursivas do Mercurio,
observadas até aqui no que tange à narrativa dos pequenos eventos militares.
A transformação dos recursos discursivos do periódico, que passou, durante sua
publicação, da valorização da utilidade estratégica das razias à depreciação moral de sua
utilização, serviu sempre, de uma forma ou de outra, à afirmação da superioridade militar
portuguesa, à divulgação de conseqüências nefastas do desenrolar da guerra no território
castelhano, como a pauperização da população e das forças militares inimigas, e à simultânea
mitigação na opinião das mesmas conseqüências em Portugal, mas acompanhou também as
alterações vividas nos rumos da guerra da Restauração. De fato, é bastante significativo que,
ao longo da publicação do Mercurio Portuguez, o simples ganho material dos saques ou a
efetivação de uma vingança contra ações covardes inimigas tenham deixado de ser
justificativa bastante para o anúncio de entradas em território castelhano. Se, como foi
argumentado até aqui, Antonio de Sousa de Macedo pode ter sentido a necessidade de
divulgar razões mais nobres, e valorosas, pelo incremento em seu próprio discurso da censura
moral à pratica de saques e razias, estas duas simultâneas alterações em seu discurso
demonstram um novo posicionamento do redator em relação à posição ocupada por Portugal
naquela guerra. Provavelmente, aliás, correspondiam a uma percepção de que a própria
opinião dos leitores já via o reino em melhores condições diante do inimigo de mais de duas
décadas; ou antes, de que, por sua interferência, este novo olhar podia ser estimulado, e
melhor aproveitado.
92
Em vista destas questões, e considerados até os principais elementos da abordagem do
Mercurio sobre o cotidiano de recontros, saques e razias, que marcou a guerra da Restauração
em sua totalidade, importa agora enquadrar tais aspectos, até para melhor responder aos
problemas suscitados por sua interpretação, em uma compreensão mais geral de seu discurso
sobre aqueles últimos anos do conflito, seu desenvolvimento global e seus principais eventos.
3.2 DO DESENROLAR DA GUERRA, E SUAS MAIS VULTOSAS NOTÍCIAS
O primeiro ano de publicação do Mercurio Portuguez iniciou-se conturbado, tanto no
cenário de guerra como no terreno da política. A denúncia dos planos de um golpe que
colocaria a rainha deposta de volta no trono português, por uma conjuração que envolveu
membros de destaque do novo governo, a não conclusão das negociações de paz que vinham
sendo lideradas pelo suposto mentor da traição, o assolamento da população no entorno de
Arronches, a tomada de Évora e os tumultos de Lisboa, delinearam nos primeiros meses de
1663 um painel adverso, com conseqüências preocupantes para o reino, e principalmente para
o governo de D. Afonso VI. O periódico do secretário de Estado, como foi visto no capítulo
anterior, buscou responder a tamanha pressão política traçando um discurso, principalmente
na edição em que comentava a queda de Évora, afirmativo da capacidade de superação das
forças portuguesas, do apoio dado pela população do reino, revestido em recrutamentos, mas
também denunciador da pressão que Castela impunha sobre a sua própria população em
função do seu esforço de guerra. Esta postura, além de influenciar decisivamente a abordagem
do Mercurio sobre os feitos bélicos de menor vulto, apresentou também desdobramentos no
modo como o periódico elaborou, a partir daí, sua visão sobre o desenrolar da guerra como
um todo, e sobre os seus sucessos de maior dimensão.
3.2.1 Após a queda de Évora, a bravura e a superação portuguesa
Neste sentido, a edição subseqüente à da queda de Évora não poderia ser mais
afortunada, e anunciava em sua capa que junho fora o mês “em que se alcançou a vitoria da
Batalha que se deu no CANAL, e em que foy restaurada a Cidade de EVORA pelos
Portugueses”184. Antes de narrar propriamente os eventos do mês, o Mercurio relembra onde
havia parado de noticiar a conjuntura militar do Alentejo no mês de maio: “deixamos a Dom
184
Mercurio Portuguez. Junho de 1663. fol. 1r.
93
João de Austria entrado em a Cidade de Evora, mandando bolatins a algũs lugares fracos; & o
nosso exercito impedindolhe os combois, & communicação com Castella, entre esperanças de
o reduzir a hũa extrema necessidade”185. Daí em diante, quase a totalidade de suas páginas é
voltada para tratar dos feitos que culminaram com a capitulação das forças castelhanas que
estavam na cidade. No primeiro momento, aproxima-se de Évora o conde de Vila-Flor com o
exército, e aquartela-se junto ao rio Degebe, onde recebeu o primeiro ataque da artilharia
castelhana, que atingira somente dois cavalos portugueses em uma noite inteira de disparos.
Na manhã do dia seguinte, D. Juan José de Áustria lança seus homens “animosamente sobre a
ribeira, que dividia os exercitos”, e o português “peleijou sobre elle porfiadamente, atê q o
inimigo se retirou descõposto para a Cidade cõ grãde perda de mortos, & feridos (...) & na
retirada foi sempre recebendo danno da nossa artilheria, que da outra parte da ribeira o seguio
por sitios que elle não podia evitar”186. Dos portugueses, neste primeiro confronto, teriam
morrido apenas dois ou três, e tal sucesso contrário
desanimou os inimigos de modo, que na tarde do mesmo dia determinou Dom João
retirarse a Castella (dizia elle, que a buscar os socorros, que em Badajoz estavão
juntos) deixando Evora guarnecida com quasi tres mil infantes, seiscentos cavalos,
quatro meos canhões, & outras sete peças de artilheria, alem de trabucos & petardos,
com munições, & mantimentos bastantes. Aquartelouse naõ longe dos nossos
aquella noite, & no escuro silencio della começou a fugir, & quando os nossos o
sentìraõ tinha já marchado muito caminho.187
À batalha que então se deu entre os dois exércitos, no terreno chamado de Ameixal, a
uma légua de Estremoz, o Mercurio dá como causa a fuga sorrateira dos castelhanos, e a ação
decisiva das forças portuguesas de lhes cortar o passo. De acordo com o periódico, ali se
enfrentaram dez mil infantes portugueses e pouco mais de três mil cavalos, contra uma
infantaria castelhana um pouco menor, mas com seis mil cavalos, “excesso que parecia
invencivel, & muito mais estando em hum sitio muito superior, chamado o Canal, alojado em
cabeças de montes, que formavaõ fortalezas inexpugnaveis”188. O confronto, propriamente,
não é narrado por Antonio de Sousa de Macedo, que se explica:
Da disposiçaõ, & particularidades da batalha se imprimio relaçaõ, que escuza repetir
o que jà está dito; nesta sò affirmamos com toda a verdade, que foi a victoria muito
maior do que naquella relaçaõ se disse, porque se fez com brevidade pellos
desejozos, que a pediaõ, & estas cousas se vaõ descobrindo com o tempo,
averiguandose as pessoas que faltaõ, por serem mortas, apparecendo o numero &
calidade dos prisioneiros, & sabendose as circunstancias dos successos. Aqui basta
dizer, que se peleijou sette horas, desde as tres da tarde até as dez da noite, sem
cessar hum momento, e sem haver reserva, ou pessoa que deixasse de peleijar.189
185
Ibid. fol. 2r.
Ibid. fols. 2v-3r.
187
Ibid. fols. 3r-3v.
188
Ibid. fol. 3v.
189
Ibid. fols. 3v-4r.
186
94
A relação a que ele alude parece ser a Relación de la famosa, y memorable vitória que
el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de Villa-Flor, alcançó del exercito
del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Austria, saída assim em castelhano,
mas pelo mesmo impressor do rei português, Henrique Valente de Oliveira, então responsável
pela publicação do Mercurio. O principal elemento que o acusa é o fato de em sua narração
ainda não constar a retomada de Évora, mas apenas a sua conquista pelos castelhanos, e a
sucessão dos eventos até o desfecho da batalha do Ameixal.
A comparação entre as duas narrativas dos mesmos eventos mostra com clareza o
estilo mais sintético da abordagem do periódico, que culmina com a referência superficial à
batalha do Ameixal, que na Relación é narrada nos seus pormenores, desde a formação das
linhas portuguesas, seus terços e seus comandantes, até as consecutivas investidas e
movimentos que definiram a vitória de seu exército190. Diante, portanto, de já haver circulado
uma versão detalhada do feito lusitano, Antonio de Sousa de Macedo opta por construir no
periódico um discurso que resume o sucesso militar, evitando arroubos de emoção ou posturas
anedóticas, e o Mercurio assume a posição daquele que corrobora com a descrição anterior e a
oficializa, com a vantagem, porém, de poder, pelo tempo passado, dimensionar melhor a
importância e a notabilidade da vitória militar ali alcançada. É interessante notar inclusive,
como Macedo comenta com propriedade as causas do caráter ainda parcial das informações
trazidas pela relação, dando a entender tratar-se de texto, ainda que publicado anônimo,
também de sua autoria.
Com este discurso, o periódico passa a comentar o número de mortos de ambos os
lados, trezentos portugueses contra quatro mil e quinhentos castelhanos, enumerar entre os
prisioneiros figuras de relevo do exército e da nobreza castelhana, e referir os bens que foram
tomados dos inimigos, desde a secretaria de D. Juan de Áustria, até a grande quantidade de
cavalos, bois e mulas que levavam, passando por todas as suas peças de artilharia, angariados
principalmente na perseguição às tropas que fugiam para Arronches, com o que “todos nossos
soldados ficáraõ ricos, & muitos Officiaes com muitos mil cruzados em dinheiro, dos muitos
190
Como exemplo tenha-se as passagens: “Dióse pues principio al combate (después de jugar el artilleria con
poco efecto) sacando el Conde de Villaflor de la línea de la vanguardia el tercio de Juan Furtado de Mendoza, y
uno de Ingleses sustenidos por algunos esquadrones de caballería, y mandó ganar los puestos, conservando esta
gente con la misma batalla, que marchaba. (...) Y viendo entonces que el enemigo intentava retirarse, resolvió el
Conde que los Generales de la caballería Diniz de Melo de Castro, y Manuel Freire de Andrada invistiesen la
retaguarda, y que las líneas del ejército diesen favor a la caballería según la ocasión (...). Comenzóse una furiosa
pelea, recibiendose reciprocamente tan vivas, y porfiadas cargas, que parecía hundirse las esferas”: Relación de
la famosa, y memorable vitória que el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de Villa-Flor,
alcanço del exercito del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Áustria. Lisboa: En la Officina de
Enrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fols. 4v-5r.
95
despojos, & saco que se deu”191. São destacados, portanto, elementos que anunciam a
grandeza e os benefícios trazidos pela vitória dos portugueses na batalha do Ameixal: à
vantagem inicial castelhana na cavalaria e no terreno, evidência da valentia e da qualidade do
exército português, somam-se a disparidade absoluta nos números de mortos e a excelência do
saque auferido com o desfecho do confronto. Ao narrar a efetiva retomada de Évora, feito não
descrito na Relación, nem por isso o Mercurio abandona seu tom sintético, enfatizando apenas
os dados mais sobrelevantes da ação militar portuguesa. Após comentar a incorporação ao
exército das forças, anunciadas no mês anterior, que o marquês de Marialva conduzia desde
Aldeia Galega, e destacar que o inimigo, durante a permanência na cidade, tratou de se
dedicar a incrementar sua fortificação, assim Macedo chega à sua rendição:
Com tudo, havendoa os Portugueses defendido sete dias, quando naõ tinha artilheria,
nem fortificaçaõ algũa; os Castelhanos a naõ defenderaõ mais que quatro dias,
estando a praça em taõ differente estado. Todavia nos custou a vida de mais de cẽ
homens, & 500 ou 600 feridos; mas vẽdose em fim o inimigo apertado de tres
ataques, que com extraordinario valor se chegàraõ em tão pouco tempo a tiro de
pistola, & com duas brechas, se renderaõ dia de S. Joaõ, capitulando que sahiriaõ
pella brecha, & os Officiaes iriaõ para Castella com duas peças de artilheria, ficando
os mais prisioneiros de guerra atè o fim de Outubro.192
Enxugando de tal forma a sua narrativa, apenas demonstrando como as vantagens
possuídas pelos castelhanos foram, em todos os momentos, superadas pela porfia do exército
português, Macedo direciona o seu discurso para dissipar quaisquer apreensões que haviam se
disseminado na opinião de seus leitores nos meses anteriores. Como não podia deixar de ser,
este Mercurio relata também a chegada da notícia da vitória na batalha do Ameixal “à Corte
de Lisboa, cuja alegria se deixa considerar, & a de todo o Reyno por onde logo voou”, e refere
que houve procissão “de todos os Religiosos com o Senado da Camera, da Capella Real à Sé”,
antecedida por um sermão na dita Capela, e acompanhada pelo rei e pelo infante. Nos dias
seguintes, além de novas procissões organizadas separadamente pelas várias ordens religiosas,
houve “tres noites luminarias, & salvas de artilheria na Cidade”193. Nitidamente, o secretário
de Estado faz questão de demonstrar como, em contraponto com o tumulto que se abateu
sobre Lisboa por ocasião da perda de Évora, desta vez difundira-se apenas alegria pelas ruas
da cidade. Repare-se que, ainda neste caso, a abordagem do periódico manteve-se sintética,
apenas enunciando as diferentes manifestações, calmas e religiosas, de regozijo pela vitória
no Canal, organizadas pelas instituições religiosas e políticas sediadas na corte.
191
Mercurio Portuguez. Junho de 1663. fol. 5r.
Ibid. fols. 6r-6v.
193
Ibid. fol. 5v.
192
96
Na mesma Relación comentada acima, também sua descrição da repercussão em
Lisboa do triunfo das armas portuguesas havia sido mais retumbante, e detalhada. Tendo a
notícia chegado à cidade durante a noite, o seu autor comenta que tais foram os festejos que
“la noche se ha hecho día”. Ao contrário do que se encontraria semanas depois na edição do
Mercurio daquele mês, a relação inclui a população lisboeta em sua narrativa, especialmente
quando chega ao seguinte passo:
Al Pueblo que corrió al Palacio con aclamaciones de vivas, echó de un balcón el
Arzobispo Sebastián César de Meneses del Consejo de Estado de ElRey, nombrado
Inquisidor General, dos mil ducados, diciendo: tomad allá lo que me habeis dejado;
y lo decía porque el día del tumulto, que arriba dijimos, entró la plebe en su casa, y
le llevó lo que tenía; y otros señores y cavalleros hicieron demonstraciones
semejantes.194
Bem se percebe, com este exemplo, que as diferenças narrativas entre a Relación e o
Mercurio Portuguez sobre os eventos de junho de 1663, textos talvez saídos da mesma pena,
não se subscrevem apenas a uma questão de estilo. Se diante dos feitos de guerra já se
destacou a postura mais oficial que o periódico assumiu, através de uma descrição concisa, e
seca, dos confrontos, agora o contraste entre as duas narrativas dos festejos de Lisboa
evidencia o diferente uso político que cada discurso encerra. No primeiro caso, o texto,
impresso ainda antes da retomada de Évora, pretendia aproveitar o calor da notícia sobre o
sucesso no Ameixal, e trazer a emoção do campo de batalha, nomear seus heróis; ao relatar a
alegria que se espalhou em Lisboa com tal notícia, da mesma forma, a relação apostou em
imagens catárticas, que acenassem para a resolução das pendências instauradas com os
tumultos do mês anterior, como a do membro do governo atirando pela janela dinheiro ao
mesmo povo que havia invadido sua casa. Já o Mercurio, por sua vez, em tom sóbrio e
comedido, evita colocar em sua descrição o povo mais uma vez nas ruas, mesmo que
eufórico, e nem comenta ou relembra tão diretamente a desordem que havia tomado a cidade
e os bens de eminentes personagens do governo. Aqui o impacto visual que se busca é
reduzido, no claro intuito de, passado algum tempo dos eventos narrados, remetê-los já a uma
atmosfera mais serena, e isolá-los da tensão política que envolveu os primeiros meses da
publicação do periódico. Era preciso afirmar que já se vivia novos tempos, na guerra e na
política, na fronteira e na corte.
Sobre o desenvolvimento da guerra, os números seguintes do ano de 1663 vão manter
o tom de superação das forças militares portuguesas. Já na edição de julho, o principal sucesso
194
Relación de la famosa, y memorable vitória que el Exercito de ElRey de Portugal, governado por el Conde de
Villa-Flor, alcanço del exercito del Rey de Castilla, governado por su hijo Don Juan de Áustria. Lisboa: En la
Officina de Enrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1663. fols. 8v-9r.
97
narrado é a defesa da praça de Almeida, atacada pelo duque de Osuna com, segundo o
periódico, quase cinco mil infantes, e seiscentos cavalos, aproveitando a pouca guarnição,
nem mil infantes e apenas cento e cinqüenta cavalos, que lá havia por ocasião do envio de
reforços para o socorro a Évora. Não havendo saído qualquer relação sobre o feito da
guarnição de Almeida, o Mercurio volta a dedicar sua pena a uma descrição mais
impressionante dos movimentos de guerra. Quando as atalaias da região puderam avisar a
praça da chegada dos inimigos, houve pouco tempo para que Diogo Gomes de Figueiredo,
governador das armas da Beira durante jornada a Évora de Pedro Jacques de Magalhães,
dispusesse a organização da sua defesa, mas os portugueses a cumpriram com grande valor:
Antes de romper a Alva, avãçou [o inimigo] por sinco partes, duas em que só
pretendeo fazer diversaõ, e tres com todo o vigor, arrimando muitas escadas,
reforçandose mais pello chafariz, & baluarte de S. Frãcisco. Subirão muitos com
grande resoluçaõ em quanto a sua mosquetaria atirava chuveiros de balas, & outros
metiaõ bombas, & granadas na Praça. O escuro da noite accrescentava a confuzaõ,
& o perigo animava mais aos defensores a desprezalo. Todavia os inimigos insistiaõ
de modo, que nenhum baixou senaõ morto, ou muito ferido. No mesmo tempo
arrimáraõ hum petardo à porta que chamão do Barro, onde estava prompta a
cavallaria para entrar. Quiz Deos que o petardo arrebẽtou, & fazendo pouco effeito
na porta, matou & ferio muitos dos seus; com tudo era tal a pertinacia dos que
queriaõ entrar, que chegâraõ algũs a meterse por hum buraco que se abrio na porta,
estãdo com meio corpo dentro eraõ mortos com facilidade, & de fóra desintupindo o
buraco daquelle cadaver, pretendia entrar outro barbaramente por elle mesmo, atè
que o matavaõ.195
A narrativa do periódico, aqui, põe em pauta o desprezo dos portugueses pelo perigo, e
sua corajosa determinação pela defesa de Almeida. Do lado oposto, a pertinácia dos
castelhanos é já o ingrediente motor das cenas de uma bárbara comédia, em que um após o
outro vão sendo mortos os soldados que obstinadamente tentam entrar na praça por um
estreito buraco em uma de suas portas. O cenário é repleto de fogo, e sangue, mas nele a
coragem portuguesa sobressai, tornando possível a vitória de poucos defensores contra a fúria
de uma bem maior força de ataque; a coragem desta, porém, o seu idêntico desprezo pelo
perigo, é tido por inconseqüente, estúpido, objeto do sarcasmo do Mercurio Portuguez. Às
oito da manhã, continua sua narrativa, quando Osuna tentava exortar seus soldados, que já
fraquejavam, uma bala de artilharia acertou o seu cavalo. Desde as muralhas de Almeida,
Osuna foi visto “hir rodando embrulhado em hum capote, & chegandose todos os seus a elle,
o montárão em hum cavalo de hum soldado, em que logo sẽ mais tino voltou a correr, & todos
assi os do seu batalhaõ com os que peleijavam o seguiraõ a quẽ mais corria, sẽ ordem
algũa”196 deixando para trás escadas, armas e munições, não retirando sequer seus mortos do
campo de batalha. Após indicar a morte de quatrocentos castelhanos na investida frustrada,
195
196
Mercurio Portuguez. Julho de 1663. fol. 2r.
Ibid. fol. 2v.
98
contra a de apenas três portugueses, e tecer um elogio à ação de Diogo Gomes de Figueiredo,
que teria suprido a falta de gente com sua disposição, e pelo modo como acudia a todas as
partes durante a defesa da praça, o Mercurio ainda informa que o duque castelhano, chegando
a Ciudad Rodrigo apenas à noite, lá foi “recebido com lagrimas, clamores, & maldiçoens”197.
À descrição da inépcia militar das forças castelhanas, e da fuga de seu líder, a que se seguiu a
fuga descoordenada de todos os soldados, Antonio de Sousa de Macedo acrescenta o impacto
negativo do insucesso em Castela. Se se tratava de demonstrar que a guerra tomava outros
rumos, importava da mesma forma apontar que era já do outro lado da fronteira que se
ouviam clamores e maldições, que era em Castela que os efeitos políticos das derrotas nas
batalhas agora se faziam sentir.
Nos outros meses de 1663, a edição em que de forma mais veemente Macedo
defenderia a superioridade do exército português seria a de outubro, ao referir-se sobre os
feitos capitaneados pelos dois governadores das armas do Entre-Douro-e-Minho e de Trás-osMontes, conde de Prado e conde de São João. Já foi de se reparar, como, em notícias de
menor vulto, o periódico costumou enfatizar o vigor e a eficácia das ações militares
portuguesas na raia norte do reino, e pode-se agora acompanhar a narrativa em que esta
imagem foi mobilizada com maior força, pela primeira vez, imprimindo marcas que seriam
recorrentemente utilizadas pelo discurso do periódico sobre a guerra naquela região. No
primeiro dia de outubro, de acordo com o número daquele mês, saía o conde de São João da
praça de Chaves com cinco mil e quinhentos infantes, mil e trezentos cavalos e oito peças de
artilharia de campanha, marchando ao Vale do Salas, depois ao distrito de Lobios, voltando
pelo Vale do Limia, e ainda outros vales menores, e fertilíssimos, em torno da praça
fortificada inimiga de Monte Rey, onde se juntaram as tropas inimigas imaginando que o
ataque iria sobre ela. No total, São João invadiu e saqueou mais de cento e setenta vilas e
lugares, sem encontrar qualquer resistência que não a da forte chuva que o acompanhou
durante a expedição. Tudo isso, acrescenta Macedo, foi realizado, sem que se gastasse nada
“da fazenda delRey nosso Senhor, mais que o paõ de munição, & no fim da jornada se fez
para ella boa quantia de dinheiro nos mantimentos que se vendèraõ dos sobejos”, lucro que
também se estendeu aos soldados, que voltaram a Portugal carregados de despojos, “em que
entrou bom numero de dobroens, & patacas, & outras cousas preciosas”198. Porém, mesmo
afirmando, como em outras ocasiões, os benefícios dos saques para os portugueses, a ação do
exército de Trás-os-Montes não se restringiu a conquistar riquezas:
197
198
Ibid. fol. 3v.
Mercurio Portuguez. Outubro de 1663. fol. 3r.
99
Foi o principal intento desta guerra de Trás os Mõtes intẽtar o fazer este forte para q
o inimigo acodisse cõ o seu exercito que tinha em Galliza a impedillo, ficar cõ esta
diversaõ a ribeira do Minho menos defẽdida, para o Cõde de Prado a poder passar,
& fortificarse em Galliza, cousa de grãdes cõsequẽcias, assi para nossos designios
sobre aquelle Reyno, como a respeito das praças que o inimigo tem desta parte, a q
só podiamos impedir os socorros, estando nós da outra.199
Tratava-se, então, de uma ação conjunta, idealizada no mês anterior quando da
presença do conde de São João na corte, decisiva para a conquista, em mais uma frente, de
uma posição estratégia favorável na guerra, e levada a cabo com total eficiência. Bem como
se pretendia, D. Balthazar Pantoja, governador das armas da Galícia, move grande parte de
suas forças do Minho para se opor a São João – chegou tarde, porém, para tanto – e deixa
aberto o caminho para que Prado atravessasse o rio com entre quatro e cinco mil infantes, em
direção ao forte de Gaião. As tropas inimigas, sentindo a passagem, correram à margem do
Minho sem demora com um terço de infantaria e duas tropas de cavalos, investindo contra os
portugueses que iam desembarcando, “taõ furiosamente, que alguns cavallos ficáraõ
atravessados nos piques do esquadraõ, que logo pondo o pè em terra se hia formando com
destreza, promptidaõ, & disciplina militar admirável; no que bem se vio a bizarria, & sciencia
dos nossos soldados”200, e com um choque de cavalaria e uma carga de mosquetaria pôs o
inimigo em retirada, matando-lhe vários soldados, e tomando-lhe já aí alguns cavalos e
prisioneiros. Conseguido com tal empenho e destreza o desembarque no lado castelhano do
Minho, a tomada do forte de Gaião, que contava com uma torre com quatro baluartes, em que
havia cinco peças de artilharia, foi ainda mais difícil: “soldados Portuguezes se arrojáraõ, &
lançáraõ de mais de trinta palmos de alto dẽtra do fosso; & subindo por escadas, huns com
lanças de fogo, outros com chuços, houve hũa horrível e porfiada peleja, principalmente em
hum parapeito que o inimigo defendia com pao apique”201. Um a um, os portugueses foram
conseguindo ultrapassar, às cutiladas, a muralha, não escapando nenhum dos defensores da
morte, ou da prisão.
Destacam-se a eficiência, destreza e bizarria na condução e na atuação dos soldados
portugueses, tão importante quanto a inteligência superior observada na organização de uma
ação militar envolvendo as tropas de duas províncias. Conquistado o forte de Gaião, o conde
de Prado já inicia melhorias em sua fortificação, e distribui pelos lugares do entorno um papel
garantindo aos moradores que poderiam continuar a assistir em suas casas e fazendas, se
oferecessem obediência às armas de D. Afonso VI, estando então livres dos tributos cobrados
199
Ibid. loc. cit.
Ibid. fol. 4r.
201
Ibid. fol. 4v.
200
100
pelo “terrivel e impio dominio de Castella”202, e logo muitos dos moradores que ficaram na
região foram reconhecer como senhor ao rei português. Com esta ação, e com este discurso
enunciado pelo Mercurio, Portugal, durante o ano de 1663, passa de território acuado a reino
conquistador, lançando-se com seu poderio e inteligência militar sobre as terras da Galícia, e
não só para a glória dos portugueses, como também para alívio dos galegos, que agora podiam
ver-se livres da presença assoladora do exército castelhano, mote trabalhado pelo periódico,
como já foi referido, desde os primeiros meses de sua publicação.
3.2.2 Da superação à superioridade: a defesa da guerra ofensiva e o discurso sobre o
recuo castelhano de 1664
Tal discurso do Mercurio Portuguez, sobre a força e a maestria do exército português,
se solidifica e ganha ainda novos caracteres ao longo das publicações do ano de 1664, período
em que, efetivamente, a estratégia militar do reino adotou uma postura mais ofensiva em
relação ao inimigo, estratégia que, como visto na introdução deste trabalho, o padre Antonio
Vieira combatia desde o exílio, e alguma parcela dos próprios integrantes do exército lusitano
não recomendaram. De acordo com o historiador Fernando Dores Costa, neste ano houve uma
mobilização militar sem precedentes em Portugal, e o governo divulgava ter vinte e oito mil
homens no exército do Alentejo. Segundo suas conclusões, um estilo mais ofensivo teria sido
forçado pelo Estado, acima de tudo por motivações “meramente” políticas, pois o conde de
Castelo Melhor precisava justificar tamanho recrutamento:
Numa consulta de 26 de maio de 1664 afirmou que poucos dias antes fizera votar os
conselheiros de Estado e Guerra sobre uma outra proposta vinda do Alentejo e
pareceres dos cabos sobre se se devia sair ou não em campanha. Considerara-se
então que seria conveniente sair por duas razões: por reputação e para lograr o fruto
do trabalho que se tivera em juntar um tal exército, empregando-o em coisa que sem
custar dispêndio satisfizesse a despesa do exército. Estando isto disposto, fizera o rei
[ou seja quem em seu nome governava] mercê mandar que se votasse sobre a mesma
matéria já resolvida, pelo que tem para si que esta resolução se não compreendera no
Alentejo, ou seja, não fora obedecida pelos dirigentes do exército.203
A consulta referida por Dores Costa, até por coincidência, data do mesmo dia da carta
de Vieira a Rodrigo de Meneses aprovando sua defesa de que o exército sequer deveria sair
em campanha. Talvez tenha sido esta a outra proposta posta em votação dias antes, e recusada
pelos conselheiros de Estado e da Guerra. Seja como for, é a este debate que o historiador se
remete, deixando claro haver uma disputa pela melhor estratégia a ser efetivada. A decisão
202
203
Ibid. fol. 6r.
COSTA, Fernando Dores. op. cit. p. 99.
101
que partira do governo foi a utilização do exército em alguma conquista, que ao menos
servisse para a reputação das armas portuguesas, e que auferisse lucros que compensassem as
despesas com o maior contingente reunido até então. Na seqüência de seu texto, porém, Dores
Costa comenta apenas quais eram as preocupações que regularmente inibiam a iniciativa
militar portuguesa no Alentejo, relacionadas principalmente ao receio dos efeitos do estio, que
fazia do verão português uma estação de altas temperaturas, e de disseminação de doenças, e
conclui assim seu capítulo sobre os anos decisivos da guerra da Restauração. Desta forma, faz
crer ao leitor que, tal qual parece ser o objetivo de seu livro, busca nele uma primeira
introdução às principais questões suscitadas pelo estudo daquele conflito bélico, que o ano de
1664 terminou sem que o exército do Alentejo tenha cumprido a decisão tomada nos
conselhos de Lisboa. Mas não foi bem assim, como a leitura das edições do Mercurio
Portuguez daquela campanha pode comprovar.
Realmente, como não havia feito no ano anterior, na primavera de 1664 o secretário de
Estado faz questão de anunciar a reunião de forças para o exército. Na edição de abril, noticia
demonstrações e exercícios militares realizados no terreiro do Paço, às vistas do rei, do terço
da Armada Real e do terço da guarnição de Lisboa, enfatizando o colorido das casacas dos
soldados204: “bem se deixa cõsiderar quaõ alegre seria esta diversidade de cores em tãta gẽte,
como tinhão estes terços”. Em seguida, é indicada a partida do terço de Lisboa para o exército
do Alentejo, unido ainda a oitocentos praças recrutados em Aldeia Galega, “& notouse ao
embarcar de ambos estes terços que hião os soldados tão contẽtes, & ligeiros, como se fossẽ
para hũ bãquete muito festivo; pronostico da boa fortuna q os espera cõ o favor de Deos”205.
Ao final daquele Mercurio, Antonio de Sousa de Macedo retorna ao tema militar, e inicia seu
último parágrafo com a frase que terá provocado a ira de Antonio Vieira: “Na provincia de
AlẽTejo temos hum bisarro exercito, q muito brevemente sairà em campanha”206. Sem
qualquer tergiversação, portanto, o “nosso desgraçado” Mercurio dava como certo o que
ainda seria por algum tempo pauta de debate nos conselhos do governo.
204
Antonio de Sousa de Macedo enfatizava as cores das casacas procurando reforçar e multiplicar o impacto que
elas possivelmente provocaram à data dos exercícios no Paço, já que a primeira experiência de uniforme no
exército português teriam sido as casacas azuis das tropas comandadas por Schomberg, prática em primeiro lugar
repetida pelo terço da Armada Real e pelo da guarnição de Lisboa liderado por Roque da Costa Barreto.
Provavelmente Macedo estava noticiando uma das primeiras aparições públicas dos uniformes destes terços.
Sobre os uniformes, ver: RODRIGUES, Manuel Ribeiro. 300 anos de uniformes militares do exército de
Portugal: 1660-1960. Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1998; e também NUNES,
António Pires. op. cit. p. 59.
205
Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fol. 2v.
206
Ibid. fol. 4r.
102
A leitura do número seguinte, sobre o mês de maio, alguns dias após o envio da carta a
D. Rodrigo, provavelmente atiçou ainda mais a indignação do jesuíta. Nele, após comentar a
chegada de infantes ingleses e franceses para integrar as forças portuguesas, o Mercurio
informa mais detidamente sobre o estado do exército alentejano:
Hà muitos dias q temos em Alem Tejo dezesete mil infantes pagos, quasi todos
soldados velhos, seis mil e quinhẽtos auxiliares igualmẽte exercitados, & 6 mil
cavallos. Entrão neste numero quasi 4 mil infantes, & mil e duzẽtos cavallos
Ingrezes, Francezes, & Alemaẽs. Destes temos hum Terço que o Castelhano cõduzio
de Alemanha cõ grãde despeza, & a falta de pagas os fez passar para nòs. Todos os
mais saõ Portugueses muito luzidos; parece q das pedras nos nascem soldados.207
Desta forma, através do Mercurio Portuguez o secretário de Estado divulga um
número ainda maior do que o referido por Dores Costa208, chegando a 29.500 os soldados
presentes na província. No periódico, este número serve ainda como fonte de comparação
com a situação do exército inimigo, que, desde que foi arruinado pelo insucesso em Évora,
possuiria apenas sete mil infantes, todos “estrangeiros mal seguros, e milicianos violentados”,
pouca artilharia, e sete mil cavalos, o “nervo de seu poder”, mas dos quais três mil seriam de
pouco serviço, pela idade avançada das bestas. D. Juan de Áustria “vendose com poder
inferior, & com gente intimidada pella contraria fortuna que experimẽta, naõ se atreve a sair;
o que os nossos atègora esperáraõ para terem parte certa em que o buscassem, com o que se
poderia dar fim a esta guerra”; assim o Mercurio justifica a postura ofensiva de Portugal na
fronteira do Alentejo, pois “vendose finalmente que naõ sae, determina o nosso exercito porse
em campanha aos 4 de Junho”209.
No discurso do periódico, portanto, não aparece uma associação natural entre a grande
mobilização para o exército e uma estratégia militar mais agressiva. Ao contrário, de acordo
com seus argumentos, esperar um ataque das parcas forças castelhanas seria a melhor maneira
de vencer a guerra definitivamente, e apenas a prudência, temerosa, do exército inimigo teria
determinado que se realizasse alguma facção, que se desse o primeiro passo da campanha
daquele ano. Como se percebe, não tratava o Mercurio Portuguez simplesmente de
demonstrar aos seus leitores que o vultoso recrutamento realizado pelo governo teria
serventia, mas sim de responder àqueles que, como Rodrigo de Meneses e Antonio Vieira,
207
Mercurio Portuguez. Maio de 1664. fols. 3r-3v.
Fernando Dores Costa apenas refere que o governo divulgava a presença de 28 mil soldados no exército, mas
não diz exatamente aonde o fazia. Certamente não no Mercurio Portuguez, que somente nesta edição de maio
trouxe os seus números. Mas a diferença entre a quantia encontrada pelo historiador e a divulgada pelo periódico
revelam que certamente a fonte do primeiro era anterior ao dia de 9 maio, que é quando o Mercurio diz terem
chegado da Inglaterra 330 infantes, a que se teriam somado dez dias depois 800 infantes e 350 soldados para a
cavalaria, enviados pelos franceses. Portanto, as últimas levas estrangeiras perfaziam 1480 homens, justamente a
diferença entre o que informa o periódico e a quantia encontrada por Dores Costa.
209
Ibid. fols. 3v-4r.
208
103
defendiam que aquele grande exército não deveria ser exposto aos riscos de uma campanha,
se nem os castelhanos mostravam-se dispostos a expor o seu.
A edição de junho de 1664, mas uma vez afortunada, anuncia já em sua capa a vitória
consumada, a principal notícia do mês: “Sitio, e tomada da importante Praça de Valença Pello
Exercito delRey N. S. D. Affonso VI, De que he Capitaõ General o Marquez de Marialva”210.
De fato, Macedo confirma a previsão feita anteriormente, D. Juan de Áustria “prudentemente,
attendendo mais à realidade q à opiniaõ, não sahio de suas praças fortificadas; pello que o
nosso exercito se resolveo a sair”211. A narrativa do feito começa então com a saída do
exército da cidade de Estremoz, e com a sua descrição detalhada, abrangendo desde seus
números mais gerais – dezenove terços de infantaria com 12.524 portugueses, 3.300 infantes
estrangeiros em cinco terços, 4.944 cavalos sendo 1.020 franceses e ingleses, além de 15
peças de artilharia e outros apetrechos – até sua formação, informando como os batalhões de
infantes e cavalos estavam dispostos nas linhas de combate, da vanguarda à retaguarda, e seus
respectivos cornos esquerdos e direitos. O discurso do periódico, nesse ínterim, volta-se com
nitidez para transmitir a grandiosidade do exército português:
Era necessaria hũa larga, & muito elegãte discripçaõ para reprèzẽtar em algũ modo a
excellẽcia, & bizarria deste exercito; porq, alẽ de ser quasi todo de hũa mesma
lingoa, & nação, taõ valerosa por natureza, & taõ victoriosa por costume, cõcorre
serẽ todos soldados velhos, todos de idade juvenil, & cõpetẽte para as armas, sem
entrarẽ em tam grande numero (salvo em algũs Cabos) homẽs de maior idade, nẽ
mininos, & todos alegres, & cõ hũ ardẽte desejo de vir às maõs cõ os cõtrarios. Os
cavallos de bõ corpo, na idade mais robusta, & muito bẽ pẽsados. Ajuntase o
agradavel da vista, q as cartas q delle se escrevẽ, & as pessoas q o virão, cõparão á
de hũ prado florido na Primavera, pella variedade de cores de q se veste.212
A partir deste ponto, o Mercurio comenta as diferentes cores das casacas dos vários
terços e companhias que compunham tal exército, aproveitando para enumerar seus principais
oficiais. Pode-se perceber, portanto, como Macedo realmente investe na exaltação do exército
português de maneira que ainda não havia feito. Nesta narrativa, sua habilidade e eficiência
são comprovadas de antemão pela experiência e pela potência dos soldados e cavalos, e sua
força é demonstrada pelo impacto visual de sua disposição e número, refletidos na grande
variedade de cores que se espalha sobre o campo que ampara sua marcha. Repare-se,
inclusive, como um importante fator de valorização do exército português é ser constituído
basicamente por soldados portugueses, de mesma língua e nação, por um lado fazendo
210
Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 1r.
Ibid. fol. 2v.
212
Ibid. fols. 3r-3v. Não se estranhe, porém, a aparente contradição na passagem “todos soldados velhos, todos
de idade juvenil”: soldado velho era aquele com relevante experiência militar, em combate, e não de idade
avançada. O grande problema da pouca quantidade de soldados velhos, que afligia os portugueses nos primeiros
anos da Restauração, vinte anos depois estava necessariamente resolvido.
211
104
referência à predominância, em vários outros momentos comentada e criticada, de
mercenários nas tropas castelhanas, mas por outro sinalizando uma via de identificação do
leitor com os homens que lutavam na fronteira.
Tendo buscado, até aí, difundir tal confiança no valor da organização militar
portuguesa, Macedo passa a demonstrar o raciocínio estratégico que a teria direcionado sobre
Valença. Tentar retomar alguma localidade perdida durante a guerra, como Olivença,
Arronches ou Juromenha, seria esforço vão, explica o periódico, pelos danos que o mau clima
de suas regiões, naquele período de calmas, traria para o exército que lá tentasse se fixar; mau
clima que, inclusive, vinha sendo a causa de grande mortandade dos castelhanos ali alojados.
Não deixando, assim, de comentar como a posse de praças portuguesas vinha contribuindo
para a ruína de Castela, o periódico traz ainda o último e mais forte argumento contra a
recuperação de uma delas: “sobre tudo se considerou que para esta recuperação aviamos de
alojar o exercito nas nossas terras fazendolhes guerra; & se tratassemos de conquistar a
faríamos, & sustentariamos á custa do inimigo”213. A inteligência, mais uma vez, coordena a
ação militar lusitana, que decide por tomar Valença, escolhida entre outras praças castelhanas
por não possuir aquele mesmo inconveniente do clima que se observava em Badajoz, ou a
falta de água que era preocupante em Albuquerque. Tratava-se, portanto, de declarar que
aquele exército grandioso era capaz de feitos como a tomada de Badajoz ou a retomada de
Olivença, e que apenas o não fazia por não parecer tão vantajoso a uma visão militar mais
previdente e estratégica, e assim ressaltar a exatidão das resoluções portuguesas. Ao mesmo
tempo Macedo procurava causar a impressão de que o Mercurio Portuguez noticiava não só o
desenvolvimento das ações militares portuguesas, como divulgava a seus leitores detalhes do
debate e das razões que concluíram pela escolha daquela ação. O que ele não dizia, porém, é
que o principal ponto em discussão, o debate em que a oposição ao governo aparentemente
concentrou suas forças, não teria sido em torno desta decisão, mas de se alguma ação deveria
ou não ser levada a cabo.
Porém, se o periódico do secretário de Estado não comentou diretamente os
argumentos da oposição contra a assunção de uma postura militar ofensiva, não deixaria de
responder aos críticos, em primeiro lugar através do modo de disposição de sua narrativa.
Após aquela longa introdução ao principal feito bélico do mês, em que de forma tão
minuciosa o Mercurio descreveu o tamanho, a disposição e as cores do exército do Alentejo,
reproduziu o pensamento estratégico por detrás da escolha de Valença como seu alvo, e ainda
213
Ibid. fol. 4v.
105
acompanhou todos os passos de sua marcha até o front, ao abordar propriamente o cerco à
praça sua narrativa é extremamente sintética, citando apenas os principais movimentos de
cada dia da batalha, entre 15 e 18 daquele mês. Tenha-se como exemplo o parágrafo mais
curto, sobre o penúltimo dia do cerco:
Aos 17 se defendeo a Praça com mais calor que atè aly, metẽdo algũas ballas de
artilheria nos nossos quarteis, ainda que com pouco effeito. A tarde tornou a
cavallaria inimiga a fazer a mesma mostra, mas sempre de muito longe, & se tornou
ao alojamento passado. Neste dia chegáraõ de Castello de Vide outros dous meos
canhoẽs, & duas meas colũbrinas, com que a bateria se esforçou furiosamente, &
ficamos a tiro de pistolla.214
Uma narrativa mais técnica, porém, mas que nem por isso deixa de ter um resultado
impactante. A pena de Antonio de Sousa de Macedo conduz o leitor por uma descrição do
evento que se exime de colocá-lo no cerne da luta, mas, por outro lado, o situa como que
acima do ocorrido, dando ocasião a uma análise quase fria do confronto, que, por sua vez, faz
crer o exército português como um verdadeiro impassível e imbatível gigante. Isso na medida
em que se dá menos ênfase na narrativa ao sangue, ao esforço, e à dureza da guerra, e se
sobressalta a perícia, a estratégia militar e o cálculo racional, de um exército cuja força havia
sido descrita a partir da visualização de seu tamanho e disposição. Se se deduz da referida
carta de Antonio Vieira que um dos argumentos de maior pregnância levantados, e
possivelmente difundidos, pelos seus opositores era o de que uma postura defensiva manteria
aquele grande exército “sem perder um homem nem um cavalo, nem derramar uma gota de
sangue, que sempre na casa onde falta faz triste a vitória, por mui vantajosa que seja”215,
deduz-se também a conveniência de um enfoque narrativo menos atento à violência vivida na
tomada de Valença.
Tal efeito de grandiosidade, alcançado por uma visão mais estrutural e menos
sangüínea da ação militar portuguesa, se une à atenção que é dada, logo adiante, sobre as
negociações para a entrega da cidade, em que se inclui até mesmo a suposta transcrição das
Capitulações concedidas pelo marquês de Marialva, a partir deste ano o general do exército
português, ao governador da praça conquistada. Verídico ou não, o documento serve ali para
ressaltar a superioridade, mas também a civilidade e a generosidade dos portugueses. De
acordo com a transcrição, concedeu-se o prazo de quatro dias para que D. Juan de Áustria
viesse em seu socorro, e que se este então desbaratasse as forças portuguesas, o governador
estaria livre da entrega de Valença; não chegando tal reforço, mesmo assim, Marialva garantia
a saída pacífica das tropas castelhanas da praça, bem como a da fazenda dos soldados, dos
214
215
Ibid. fol. 6v.
VIEIRA, António. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. v. 2, p. 57.
106
paisanos e dos religiosos que se decidissem por partir, e prometia inclusive fornecer os carros
necessários para o transporte dos enfermos. O governador estaria obrigado apenas a “entregar
todos os mantimentos, & muniçoẽs que ouver na praça pertencentes à guarnição, sem que
nisso haja nenhum descaminho, ou divirtimento”216. Tamanha generosidade dos portugueses,
seguindo o fio da narrativa tecida por Macedo, é então reconhecida pelos moradores dos
lugares do entorno da praça de Valença, que prontamente apresentam seu autos de obediência
ao rei D. Afonso VI, um deles, do lugar de San Vicente, também transcrito no periódico, bem
como o salvo conduto passado aos seus moradores pelo marquês de Marialva, outra prova da
benignidade do exército português:
Por quanto os moradores do lugar de S. Vicẽte vieraõ dar obediencia a S. Magestade
que Deos guarde, se lhes concede em nome do dito Senhor que possão lograr suas
fazendas, & bens livremente, trazendo seus gados na campanha, sem que as partidas
deste exercito lhes fação damno algum, para cujo effeito recorréraõ ao Governador
da praça de Valença, que lhes dará salvos condutos para poderem pastar seus gados
seguramente, advertindo que em tudo o que se lhes encomendar do serviço de S.
Magestade se haverâm com grãde zello, não tomando armas contra nós, amparando
todas as partidas que por aquelle lugar passarẽ, trazendo todos os mantimentos
necessarios a vẽder a este exercito, & praça de Valença, com cominação de que
procedendo pello contrario em algũa maneira se usarà com elles do ultimo rigor.
Dada na Campanha sobre Valença a 24 de junho de 1664.217
Se em 1663 os problemas com que se iniciou a campanha militar influenciaram no
Mercurio Portuguez a elaboração de um discurso de reviravolta, de superação, que opunha à
superioridade numérica castelhana a bravura e a eficácia dos combatentes portugueses, na
campanha de 1664, estimulado pela maior mobilização de homens para o confronto, e
principalmente pela articulação da oposição ao governo em torno da defesa da manutenção de
uma estratégia de estilo defensivo, Antonio de Sousa de Macedo tece uma narrativa da guerra
já bem diferente, que enfatiza a grandiosidade do exército português através de uma
visualização mais técnica de sua organização, e em que se dispensa uma descrição
pormenorizada do feito militar. Na tomada de Valença, basta que se poste o exército
português diante da praça, basta que execute movimentos simples, para que se imponha sobre
o inimigo. No ano de 1664, portanto, no discurso do periódico, a posição de Portugal na raia
do Alentejo é a de “senhor da campanha”, e nesta condição, Macedo enfatiza que os
portugueses atuam de forma oposta a que faziam os castelhanos na campanha de 1663. Em
primeiro lugar, porque escolhem com melhor tino a facção a ser empreendida, e assim o
secretário de Estado promete aos leitores que estes não acompanharão a mesma comédia de
erros encenada um ano antes pelos inimigos em Évora. E em segundo lugar porque a presença
216
217
Mercurio Portuguez. Junho de 1664. fol. 8v.
Ibid. 9v-10r.
107
do exército lusitano em território inimigo faz-se sentir de outra forma, rigorosa mas
benevolente, conquistando o apoio da população castelhana da fronteira, sempre tão
maltratada por aqueles que a deviam defender.
A notícia da tomada de Valença é significativa justamente porque ali Macedo constrói
sua argumentação fazendo esta ligação profícua entre o caráter mais técnico de sua narrativa e
a demonstração da benignidade das tropas portuguesas, e de seus líderes. Da superioridade
bélica portuguesa, que o periódico anuncia ter sido conquistada naquele ano, conduz-se à sua
superioridade moral, observada na justeza de seu comportamento diante do inimigo derrotado
e, principalmente, dos moradores da região conquistada. Se a motivação inicial para a
construção daquele discurso foi, mais do que mascarar a intenção “meramente” política que
Dores Costa identificou na proposta do governo de uma estratégia militar mais ofensiva, mas
principalmente responder às questões absoluta e incontornavelmente políticas que marcaram o
debate em Lisboa e no Alentejo sobre a campanha militar daquele ano, o resultado mais
significativo para o seu discurso sobre a guerra foi a utilização desta ofensiva como um
ingrediente fundamental para a solidificação em tal discurso da idéia não mais da superação
portuguesa, mas de sua superioridade, como já dito, militar e moral.
Durante os meses seguintes de 1664, não há mais nenhuma referência à conquista de
uma nova praça efetuada diretamente pelo exército português, mas nem por isso deixam de
haver notícias muito úteis para a continuidade do discurso do Mercurio sobre a ascendência
de Portugal na guerra da Restauração. Na edição sobre agosto, comenta-se rapidamente a
tomada de dez ou doze cavalos junto a Arronches, que porém não foram socorridos pela
cavalaria da praça, por estarem os seus cavalos muito fracos de fome. A esta notícia, Macedo
acrescentou, oportunamente, a informação de que, desde a inaugurada a presença portuguesa
em Valença, e pelo simultâneo acrescentamento da cavalaria de Monforte operado pelo
marquês de Marialva, as forças portuguesas no Alentejo vinham impedindo a chegada de
comboios a Arronches, já por conta disso reduzida “a hum miseravel estado, com que as faltas
que padece, sobre o malissimo clima de seu sitio, a fazem morada só de desesperados”218.
Para demonstrar a penúria que se passava na praça, o periódico cita ainda duas cartas
encontradas, de seu governador para o francês conde de Marsin, que substituía D. Juan de
Áustria no comando do exército estremenho, e para o mestre de campo general D. Diego
Cavallero, em que informava a falta de mantimentos e a urgência do envio de algum comboio.
Na seqüência, o Mercurio narra uma tomada de seis cavalos empreendida pela cavalaria de
218
Mercurio Portuguez. Agosto de 1664. fol. 5v.
108
Elvas, com que se soube também da fome que havia em Badajoz, e outra de vinte cavalos de
Olivença, porém “taõ fracos de fome q mal puderaõ chegar às nossas Praças”219.
A estratégia de Antonio de Sousa era bem clara, pois proclamava a falência das forças
inimigas justamente naquelas praças sobre as quais em junho havia dito que não seriam bons
alvos para o exército português se dedicar. Na edição seguinte, de setembro de 1664, o título
do periódico trazia a boa nova, Mercurio Portuguez, com a recuperaçam da Praça de
Arronches, e os mais sucessos deste Mez de septembro do anno de 1664, e seu primeiro
parágrafo reafirmava a perspicácia da tomada de Valença:
Bem quizeraõ os Castelhanos, nesta campanha passada, que o nosso exercito fosse
sitiar a Praça de Arronches, para que sobre ela perecesse, naõ só por causa de sua
fortificação, mas principalmente pellas doẽças de seu malissimo clima no veraõ;
porèm Deos, que, por sua bondade, governa nossos conselhos, ordenou (como no
mez de Junho referimos) que fossemos sobre Valença de Alcantara, com a
consideraçaõ de que naquella só acçaõ empreendiamos dous effeitos, que eram
ganhar taõ importante Praça, & de hũa parte com ella, de outra parte com algũas
nossas pequenas, que fortificassemos, impedir os mantimentos á de Arronches, com
que viesse a perderse por assedio.220
Como o leitor do presente trabalho pode lembrar, em junho o periódico não fizera
qualquer referência a este último intuito compondo a decisão pela tomada de Valença, e é
interessante notar como o seu discurso pretendia, três meses depois, difundir uma falsa
memória sobre este elemento em seus leitores. Havendo então o marquês de Marialva
fortificado algumas praças no circuito de Arronches, e repartido entre elas mil e quatrocentos
cavalos, que fizeram o trabalho de interceptar e afugentar a chegada de mantimentos à praça,
o Mercurio segue com a notícia da resolução, nos conselhos de Madrid, a favor do seu
abandono e desmantelamento. Para tal, teve de sair de Badajoz o conde de Marsin com três
mil cavalos e quatro mil infantes, fingindo que fariam alguma facção, para se meter em
Arronches e de lá sair com toda a artilharia e munição que puderam, e então pôr fogo nas
minas dispostas para a destruição da praça:
Porẽ, como não anda venturoso em acertar, forão feitas na superficie da terra, pello q
só fizeraõ effeito nos lugares por onde arrebentàraõ, deixãdo em pé a maior parte das
casas da Villa, & a fortificação ẽ estado, q, quãdo a queiramos reparar, se fará cõ
pouca despeza. Tornou a levar as escadas sẽ intẽtar obrar cõ ellas, por medo dos
nossos o seguirem, & deu graças a Deos de se retirar ẽ paz, por quãto por ser a
retirada breve, & ter seguros os passos; como dissemos, se lẽbrarão os nossos do
proverbio: ao inimigo q foge, põte de prata.221
Com este final toque de humor, Macedo ressalta a paz com que Portugal enfim se
livrou da incômoda presença castelhana em Arronches, demonstrando a inteligência da ação
219
Ibid. fol. 7r.
Mercurio Portuguez. Setembro de 1664. fol. 1r.
221
Ibid. fol. 2r.
220
109
militar portuguesa na região, e apontando para as conseqüências de uma posição de
superioridade na campanha, e da utilização desta superioridade na ação ofensiva de meses
atrás. Agora já os castelhanos deixam, e ainda de modo atrapalhado, não conseguindo destruir
a praça abandonada, as posições alcançadas dentro do território português na época em que
estavam no ataque. Mais adiante, no mesmo periódico, quando noticiava os feitos militares de
Pedro Jacques de Magalhães na Beira, que empreendia sua vingança dos pães cortados pelo
duque de Osuna, Macedo comenta que os despojos de um saque na região, em que entravam
cartas do secretário do conselho de Guerra castelhano, e entre elas uma enviada pelo
governador do forte de Vale de la Mula, onde “consta a grande necessidade que nelle se
padece, por as nossas partidas andarem continuadamẽte impedindolhe os comboys”222. Desta
forma, o secretário de Estado português buscava suscitar a expectativa por um novo recuo dos
inimigos, por um novo indício da falência do esforço de guerra castelhano.
Na edição seguinte, o Mercurio introduz-se nas novas do mês de outubro relatando
mais um abandono de posição pelos inimigos, não exatamente na Beira, mas na fronteira da
Extremadura com a província do Alentejo. De acordo com seu redator, após haverem deixado
Arronches, pela necessidade que ali passavam, minaram também, e explodiram a sua própria
praça, com medo de que fosse tomada pelos portugueses, e que a partir dela levassem mais
danos ao território e ao exército castelhano, como o fizeram a partir de Valença. Anuncia-se aí
o temor do inimigo diante da ofensiva portuguesa, e Macedo não perde a oportunidade de
tecer seu comentário sardônico. Não poderia, afinal, conquistar “um Reyno da Terra, quem
confessa, que não pòde sustentar as suas praças. Parece que o Conde Marsin (para quem
apellàrão de seus maos sucessos) determina conquistarlhes o Reyno do Ceo, para o que he o
melhor meyo deixar o alheo, & o proprio”223. Além de haver abandonado uma praça
conquistada anos antes, os castelhanos agora, e o Mercurio lhes ironiza a abnegação, largam
também as próprias possessões, tamanha é a imponência do exército português no Alentejo.
No mês de novembro, é anunciado o sucesso da mesma estratégia de obstrução da
chegada de comboios ao forte de Vale de la Mula, comentada na edição sobre setembro. No
último dia de outubro, chegou o inimigo com segredo ao dito forte, com grande infantaria e
cavalaria, e tratou de minar, derrubar e queimar sua edificação. Na madrugada, carregou-se
com o que pôde, e se pôs em retirada; mais uma vez, porém, o periódico denuncia a pressa
com que o fizeram, e como as minas desta vez sequer explodiram, de modo que lá as tropas
portuguesas quando chegaram encontraram armas, munições, farinha, muita ferragem
222
223
Ibid. fol. 4v.
Mercurio Portuguez. Outubro de 1664. fol. 1v.
110
aproveitável para a artilharia, e até bacalhau, além da fortificação em estado pouco arruinado,
“que se a quizermos deffender, se repararà com quinhentos cruzados, pouco mais, ou
menos”224. No comentário final a mais este recuo do exército inimigo, Macedo deixa ver com
precisão como pretendeu explorar o significado destes sucessivos eventos:
Este era aquelle Forte, que os Castelhanos avaliavaõ por importantissimo para esta
guerra, de cuja fabrica (sendo na sua propria terra) o Duque de Osuna se jactou
tanto, & seu Rey em carta de vinte & quatro de Junho do anno presente com
palavras de muita honra lhe agradeceo o danno que elle avisava, que de alli fazia a
nossas terras. Assi vaõ largando, & derrubando o em que trabalharaõ tanto tempo:
Lapidem, quem reprobaverunt aedificantes; ou então errâraõ, ou agora; o certo he,
que então erráraõ, & agora erraõ, que assi succede a quem anda desgraciado.225
“A pedra que desprezaram os edificadores, esta foi posta por cabeça de ângulo”, diz a
passagem do salmo bíblico citada pelo Mercurio226. Da mesma forma, cada praça deixada
para trás pelo exército castelhano, própria ou alheia, servia como pedra angular do discurso
sobre a guerra da Restauração desenvolvido por Antonio de Sousa de Macedo em seu
periódico durante o ano de 1664. A cada praça perdida ao longo do ano, por ataque português
ou por apressado abandono, seus comentários aludem a um outro tempo da guerra, ao tempo
em que os castelhanos ganharam tais posições, e que em vão se gabavam de sua superioridade
na zona de combate. Agora, e isto é o que principalmente defende o Mercurio Portuguez, já
eram outros tempos, em que as atitudes aturdidas dos castelhanos demonstravam o fracasso de
seu esforço de guerra, e em que a vitória, depois de longos anos de guerra, se mostrava mais
próxima de Portugal. Ao relembrar aos leitores do tempo em que Castela se jactava de sua
dominação, inclusive, Macedo opera também a valorização não só das vitórias alcançadas
desde então pelas armas portuguesas, mas anuncia também a derrota dos papéis castelhanos,
inimigos declarados do seu periódico desde os seus primeiros números. Desmentia-se nos
campos de batalha a propalada superioridade do exército inimigo, e o Mercurio Portuguez
assumia a tarefa de difundir a boa nova, ao mesmo tempo anunciando a sua vitória contra as
patranhas castelhanas.
3.2.3 A última ameaça, e a detração sistemática do empenho inimigo
Se o ano de 1664 havia sido de boas notícias para Portugal, havendo o Mercurio
Portuguez aproveitado para demonstrar a retração da presença castelhana na fronteira com
Portugal, e assim tecer ótimas expectativas quanto ao desfecho favorável do conflito, o ano
224
Mercurio Portuguez. Novembro de 1664. fol. 5r.
Ibid. fols. 5r-5v.
226
Vulgata. Salmos, 117, 22.
225
111
seguinte representou certamente o retorno de alguma apreensão no reino, estimulada
principalmente pela chegada em Lisboa de um impresso com o “Voto del Marquez de
Carracena”, novo general do exército castelhano, que o periódico português faz questão de
comentar, e inclusive transcrever, em sua edição de março de 1665. No suposto discurso do
general inimigo, este reconhece o fracasso até então do esforço militar de Castela, e a má
aplicação dos recursos financeiros em uma estratégia de tomada de praças, que teria servido
apenas para manter viva a resistência portuguesa, e acena com sua solução para a vitória, que
seria concentrar as forças castelhanas, cerca de trinta mil homens, para chegar a Lisboa; além
disso, o tom do seu autor é bastante violento, e defende o extermínio da população portuguesa
como único caminho para aplacar a rebeldia lusitana, e garantir a posse castelhana daquela
província perdida: “No queden en pie sus Ciudades, purifique el fuego aquella feissima
mancha de la ofendida Magestad, y en las ruínas abrazadas, les quede a los futuros
horrendissimo padron”227.
Não se pode deixar de notar que a própria transcrição, ou invenção, de um texto como
este nas páginas do periódico impresso pelo secretário de Estado de D. Afonso VI, não
poderia ter outro intuito que o de estimular nos leitores seus brios contra um discurso tão
odiento. Porém, é incontornável concluir que, mais uma vez, Antonio de Sousa de Macedo se
esforçava por dissipar algum temor quanto à ameaça representada pelo novo governador das
armas castelhanas, tivesse ou não ela circulado em Portugal em tal papel, ou apenas entre as
bocas e ouvidos da população. Nas primeiras linhas do voto transcrito, seu autor anuncia que
usará da pluma para contar ao rei o que fará com a espada, mas que lhe era mais pesada a
pluma do que a lança, e que havia nascido mais para ser escrito, do que para escrever.
Baseado nisto, o comentário de Macedo, antecedendo a transcrição do texto, anuncia que “os
successos hão de ser tão vãos, como he o voto” e ameaça o marquês de ser o próximo alvo de
seu periódico: “o que receo he, que as plumas que agora despreza para a mão, estimarà
despois para os pés, calçando a la mode; mas prometolhe que a de Mercurio escreverà delle,
para que se verifique o que diz, nací, quiçâ, mâs a ser escrito, que a escrivir, &c.”228.
Com efeito, assim como fez em relação a D. Juan de Áustria, ao conde de Marsin e ao
duque de Osuna, durante os dois últimos anos de sua redação do Mercurio Macedo se
empenhará com grande freqüência na detração da imagem do marquês de Caracena. Na
edição de maio de 1665, comenta-se a chegada do general a Badajoz, e como seu primeiro
movimento uma saída com a cavalaria a apenas poucos passos de sua muralha, de onde pôde
227
228
Mercurio Portuguez. Março de 1665. fol. 4r.
Ibid. fol. 1v.
112
ver, mas nada fez contra, alguns cavalos portugueses tomarem uma sentinela, pelo que “não
vieraõ com muito medo do tal General”. Continua ainda o periódico informando que, depois
desta ação de Caracena, a segunda foi “mandar 25 cavallos á Raya de Portugal a espalhar
papeis com castelhanadas. Sahírão algũs nossos de Campo Mayor, & tomáraõ treze, o que se
diz que elle sentio muito”229. Desde seus primeiros passos na fronteira, portanto, a pena do
Mercurio esforça-se por tratar com humor, e difundir descrédito sobre o personagem que,
afinal, representava a mais nova ameaça à integridade do reino português e seu exército. Em
outubro do mesmo ano, quatro meses após a derrota castelhana na decisiva batalha de Montes
Claros – cuja narrativa no Mercurio será comentada adiante – o escárnio do discurso do
periódico em relação a Caracena já está bem sólido, e é desenvolvido principalmente em torno
do questionamento da sua coragem, tão alardeada no voto transcrito meses antes. Neste mês,
Caracena teria juntado dois mil infantes e três mil cavalos, tudo o que conseguiu na
Extremadura, e entrado em Portugal na companhia de D. Diego Cavallero, seu mestre de
campo general, e do príncipe de Parma, general da cavalaria estrangeira:
Este aparato de Generaes, ainda que não correspondia a taõ poucos soldados,
prometia hũa grande empreza, suprindo sua authoridade, & valor o numero da gente.
Mas o que fizeraõ foi queimar o que acháraõ nas herdades, & montes desertos; &
encontrãdo rebanhos de ovelhas, as degolláraõ a todas estes Leoens de Espanha em
boa guerra. Supponho que o Marquez de Caracena he hum General discreto, &
galante, que lé os Poetas como Alexandre a Homero, e assi leria no insigne Camoens
aquelle verso
Que he fraqueza entre ovelhas ser leão.230
Esta degola de ovelhas capitaneada pelos principais nomes do exército castelhano
àquela altura, dá bem a dimensão do tipo de cena em que, durante 1665 e 1666, o Mercurio
Portuguez colocará o marquês de Caracena, além de trazer um exemplo bem significativo da
abordagem sarcástica com que normalmente denunciava a covardia do inimigo. Nestes anos,
ao referir-se ao general castelhano, Macedo sempre, de alguma forma, remete-se ao
imaginário de fúria e crueldade que parece ter se disseminado a respeito de Caracena quando
de sua assunção no comando militar de Castela, e o desmente através de imagens como esta,
em que mostra que a blasonada ira do marquês apenas se revelava diante de inofensivas
ovelhas. Neste caso, ainda aproveita para, de modo sutil, equivaler ao que representavam os
versos de Homero, no tempo de Alexandre, a poesia de Camões no seu tempo, como se se
tratasse de inevitável leitura para um general castelhano de então231. Bem a seu estilo,
229
Mercurio Portuguez. Maio de 1665. fol. 3r.
Mercurio Portuguez. Outubro de 1665. fol. 3r.
231
A passagem citada pelo Mercurio está, como não podia deixar de ser, em Os Lusíadas, I, 68, e é até os dias
atuais um de seus mais conhecidos versos, citado, assim como o fez Macedo, como um aforismo.
230
113
Antonio de Sousa de Macedo vale-se de uma notícia de guerra para também defender a
superioridade das letras portuguesas dentro da península ibérica232.
Como se já pôde talvez perceber, o trecho analisado acima apresenta também
consonância com aquele discurso elaborado na mesma época sobre os pequenos feitos
castelhanos, que se encaminhava para a desvalorização dos saques sem intenção de batalha.
De fato, são da mesma época, outubro e novembro de 1665, outras duas novas de guerra já
comentadas aqui, a da entrada de Caracena em Veirós e Fronteira que durou apenas o tempo
em que não chegou o socorro português, e a que fez referência ao “novo estilo” de guerra
dirigido pelo marquês de Caracena, que segundo o periódico tratava apenas de molestar com
saques, e fugia constantemente de confrontos diretos com as forças militares portuguesas. As
primeiras linhas da edição de dezembro do mesmo ano confirmam o seu insistente
investimento neste discurso:
Dissemos no mez passado que por avisos de Madrid sabiamos que o novo governo
tinha determinado escusar a custosa experiencia das batalhas, & fazer hostilidades
com entradas repentinas a roubar, & destruir as terras abertas da fronteira; & que
com esta ordem fizera o Marquez de Caracena algũas, das quaes, quando o
buscavaõ, se retirára, ou fugira. Dizem os que o conhecèrão fóra de Espanha, que
este modo de guerra he muito conforme seu natural, mais inclinado a tretas, que a
pelejar em descuberto (ainda que affecte publicar outra cousa) & assi se acomodou
facilmente a usallo, levado tambem do interesse de canonizar em Madrid um subito
assalto por hũa larga campanha, & hũa aldeia queimada sem defença por uma praça
fortissima conquistada com muito sangue.233
Repare-se, desta forma, como neste período de consolidação do discurso contrário a
estas simples “hostilidades” cometidas por Castela na zona de combate, tal recurso constituía
a base da detração operada em relação ao marquês de Caracena, e sua postura na guerra,
procurando por aí Macedo também denunciar como o general viria distorcendo seus feitos
perante o governo e a população castelhana, fazendo-os parecer mais importantes do que de
fato eram – assim como havia feito em relação ao duque de Osuna em 1664. No mesmo
número do periódico, o parágrafo citado serve de introdução a outras notícias de entradas
castelhanas pelo Alentejo, em que mais uma vez se destaca a sua indisposição para enfrentar
batalhas de maior porte, como em um incêndio a uma aldeia cujos moradores já haviam sido
retirados pelo exército português, sobre que o redator conclui: “se isto he ser pilhante, ou
conquistador, julguem os peritos na Arte. Virtus aut dolus quis in hoste requirat, só se
232
Em sua obra Flores de España, Excelencias de Portugal, impressa ainda em 1631, uma das tônicas do
discurso do jovem Antonio de Sousa de Macedo já era definir a valorização de vários aspectos da cultura e da
sociedade portuguesa em detrimento de elementos castelhanos correspondentes. Cf. MACEDO, Antonio de
Sousa de. Flores de España, Excelencias de Portugal. Lisboa: Alcala Editores, 2003. Ed. Fac-Sim.
233
Mercurio Portuguez. Dezembro de 1665. fol. 1r.
114
entende quando o estratagema he capaz de effeito grande”234. O preceito da arte militar,
retirado do poema de Virgílio235, que recomenda não se pergunte se é astúcia ou coragem o
motor da ação de um inimigo, Antonio de Sousa de Macedo argumenta não se aplicar a este
inimigo, cujos feitos, de pequeno efeito, seriam suficientes para revelar sua covardia.
O tom mais geral do discurso do Mercurio Portuguez sobre a guerra, ao longo de
1665, pelo que foi referido, dirigiu-se exatamente a mitigar o impacto da chegada de um novo
general inimigo, que representava uma nova e decisiva investida contra Portugal, e
demonstrar em variadas ocasiões a falsidade das suas ameaças. Neste ínterim, a estratégia do
periódico se encaminhou cada vez mais à acusação de que suas entradas não se tratavam de
nada além de vãs pilhagens. Desta forma, agora se pode interpretar em mais amplo âmbito, foi
esta intenção primeira, de desacreditar o perigo que se aproximava do reino com as tropas
lideradas pelo marquês de Caracena, que afinal deu origem àquele discurso detrativo da
pilhagem, transformador, como foi considerado aqui, da abordagem do Mercurio sobre os
pequenos feitos de guerra já a partir do final de 1665, e que se consolidou na narrativa das
edições do periódico de 1666.
Neste último ano de redação do periódico por Antonio de Sousa de Macedo, a tônica
dominante em seu discurso sobre a guerra é aquela observada em relação aos feitos menores,
já analisada a contento, portanto, em seção anterior deste capítulo. Ao longo do ano, narramse apenas pequenas entradas dirigidas pelos castelhanos, inclusive pelo marquês de Caracena,
em que se repete a denúncia de sua constante esquiva de batalhas, mesmo que algumas
acabem acontecendo, sempre por pressão e presteza dos portugueses. Pelo lado português, os
feitos de maior vulto descritos são as entradas e tomadas de algumas praças pelo seu exército
na região de fronteira com a Andaluzia, narradas principalmente nas suas edições de janeiro,
fevereiro, maio e junho, e basta aqui confirmar que, mesmo tratando dos lucrativos saques
auferidos pelos portugueses em uma região que até então não havia sido atingida por suas
tropas, o Mercurio Portuguez empenha-se em justificar tais saques relatando a ausência de
socorros enviados por Castela, o que tornava impossível, como nos vários relatos de pequenos
feitos portugueses naquele ano, a realização de batalhas contra o exército inimigo, que sempre
primeiramente se almejava.
Definitiva, porém, como já foi dito, para que se pudesse estabelecer de modo tão
veemente este discurso, teria sido uma significativa alteração nas posições ocupadas por
Castela e Portugal naqueles últimos anos de guerra acompanhados e narrados pelo Mercurio
234
235
Ibid. fol. 2r.
Virgílio. A Eneida, 2, 390.
115
Portuguez. Alteração esta pela qual se empenharam os soldados portugueses na guerra
cotidiana e nas principais batalhas daquele período mais intenso da guerra da Restauração, e a
qual Antonio de Sousa de Macedo empenhou-se também para provar diante de seus leitores, e
opositores. Neste sentido, ainda mais definitiva fora a batalha de Montes Claros, travada em
junho de 1665, inconteste o mais decisivo evento militar desta última fase do conflito lusocastelhano, e assim também o fora a edição e o discurso do Mercurio sobre os sucessos
daquele mês.
3.3 AS NARRATIVAS DA BATALHA DE MONTES CLAROS, E A VALORIZAÇÃO
DE UMA ÉPOCA
O Mercurio Portuguez sobre maio de 1665, após comentar, do modo que aqui já ficou
referido, os primeiros passos do marquês de Caracena, anunciou a sua saída da cidade de
Badajoz, com suas tropas, que teriam se alojado entre Xevora e Botova, três léguas adiante,
ainda em território castelhano, de frente para a região de Arronches. Não desprovido de
alguma prudência, Antonio de Sousa de Macedo se exime de dimensionar o exército inimigo:
Ali está parado até o dia em q se imprime esta relação, q he em 2 de Junho. Não se
sabe, com a certeza cõ q Mercurio professa escrever, o numero que traz; no mez
seguinte se dirá, & o do nosso exercito (q entẽdemos q cõ o favor de Deos ha de ser
melhor). Não pudemos dar agora conta de ambos, como prometemos na relação de
Abril, porq o inimigo se dilatou mais do q promettia; & o nosso teve, & tẽ razoẽs
para esperar que o inimigo marche, antes de totalmente se pór em cãpanha, para o
que está com toda a promptidão.236
Se durante as publicações de 1664 o discurso do periódico havia justificado ações
militares portuguesas mais ofensivas na fronteira do Alentejo pela ausência de investidas
castelhanas, o que se refletia na acusação do desmantelamento de suas forças, já agora, no
início da campanha seguinte, o Mercurio, sem subterfúgios, volta a defender as razões de uma
estratégia defensiva, explicando a espera da saída das tropas portuguesas pela demora em o
fazer do inimigo. Defensiva também é a estratégia discursiva de Macedo, que prefere não
prever de forma veemente a vitória próxima dos portugueses, e, diante da grande expectativa
que certamente reinava na Corte, diz contar com o favor de Deus para que seja o exército
português maior do que o castelhano.
Tal estratégia foi bem sucedida, pois na edição sobre o mês de junho o periódico pôde
trazer os números de que ficara devedor com a certeza da vitória alcançada, e já bem
conhecida por seus leitores. O exército castelhano, segundo sua narrativa, saíra do entorno de
236
Mercurio Portuguez. Maio de 1665. fol. 3v.
116
Xevora e Botova com entre catorze e quinze mil infantes, mais de sete mil e seiscentos
cavalos, e catorze peças de artilharia, quase todas de grande porte, e lançou-se sobre Vila
Viçosa, cuja tomada deveria causar grande impacto, por ter sido assento dos duques de
Bragança antes de se tornarem reis, mas também pela crença de “que seria facil de render, por
não ter fortificação contra exercito, por quanto era cõdemnada por sitio”237. Porém, tal
facilidade não se verificou, pois que os mil e trezentos homens governados por Cristóvão de
Brito Pereira a protegeriam com grande valor. Sucederam-se vários bombardeios, baterias e
assaltos furiosos dos inimigos por diversas partes da praça, morrendo sempre muitos dos seus
soldados, que não deram descanso algum aos sitiados; mas estes, entretanto, se defenderam
com igual obstinação, e constância, tendo sido muitos os feitos heróicos ali observados, que o
periódico se dispensou de relatar:
Basta dizer que a praça, que se imaginava subsistiria tres ou quatro dias, se defendeo
nove; e quando foi socorrida, como logo veremos, estava para se defender outros
dez, ou doze. O mais que o inimigo cõseguio depois de entrar o arrabalde, foi o
cõtinuar insolẽcias, de que não se isentarão os Convẽtos, q barbaramẽte forão
roubados, atè os das Religiosas, padecendo mais nisto o a Esperança em que se
alojárão os soldados para de alli pelejarem. O que ganhou por força foi sò hum
pouco da muralha velha da Villa junto ao poço. Morrérão dos seus mais de mil &
quinhentos, & teve outros tantos feridos. Dos nossos ficáraõ mortos gloriosamente
cento e doze, e houve feridos quatrocentos e trinta.238
A crer nos números informados pelo periódico, restavam apenas setecentos e
cinqüenta soldados em combate pela guarnição de Vila Viçosa, que dificilmente se
defenderiam por mais doze dias dos mais de vinte mil inimigos que ainda se postavam diante
da cidade, mesmo que até ali com poucos avanços no cerco, mas agora a vitória assegurada
permitia o recurso a especulações mais otimistas. De qualquer forma, surge neste momento
em sua narrativa o socorro do capitão general português, o marquês de Marialva, com
dezesseis mil infantes e quase seis mil cavalos, que saiu de Estremoz com grande alegria dos
soldados: “todos assi no exercito como na Corte tinhão a victoria por infallivel, & avia já dias
q se destinavaõ festas para a celebrar; no que se via que impulso superior lhes dava tanta
certeza”239. A inferioridade numérica das tropas portuguesas, que anunciada na edição de
maio causaria talvez alguma apreensão nos leitores do Mercurio, agora podia ser descrita
como fator revelador da inabalável fé do reino no sucesso de suas armas, e Macedo,
afirmando tamanha certeza, simultaneamente divulgava o favorecimento divino aos
portugueses e censurava aqueles que, na ocasião, por alguma razão não demonstraram
confiança na vitória lusitana.
237
Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fol. 1v.
Ibid. fol. 2v.
239
Ibid. fol. 4r.
238
117
A esta altura o periódico já havia nomeado os cabos maiores do exército português, e
parte então para narrar sua marcha até Montes Claros, lugar com um campo pouco espaçoso,
“cercado de outeiros, asperezas & vinhas”, em que foi encontrado pelas tropas castelhanas,
cuja diminuição pelas perdas no cerco a Vila Viçosa fora compensada pela chegada de
reforços vindos de Badajoz. Aconselhado a não sair de Vila Viçosa, por ali possuir vantagem
no terreno, o marquês de Caracena teria respondido que não havia saído para tomar a cidade,
mas sim conquistar Portugal vencendo uma única e rápida batalha. Sua conhecida soberba
vinha acrescida com a resolução para isto que lhe tinha sido enviada de Madrid, a que
comenta o Mercurio:
tanta he a cegueira daquelles Ministros, que se não desenganão cõ tantas experiẽcias
das que perderaõ; & o que os seus antepassados, andando mais vẽturosos, naõ
puderam acabar em quinhentos annos, que foi vencer hũa sò batalha das muitas que
tivemos, querem elles fazer agora em q se vem taõ mal afortunados. Mais se
enganavaõ em cuidar que, ainda que vencessem muitas, conquistariaõ o Reyno; bem
se vè que naõ conhecem o que emprendem, nem com quem trataõ.240
À arrogância e presunção de Caracena, que seria muitas vezes objeto da acusação do
discurso sobre a guerra do periódico durante suas futuras edições, aqui Antonio de Sousa de
Macedo soma a mesma petulância e estupidez por parte do governo de Castela, que não
reconhecia a histórica superioridade das armas lusitanas, e a emenda com o elogio à bravura
contumaz do povo português241, que mais uma vez se faria verificar no campo de batalha de
Montes Claros. Encontrados os dois exércitos, a luta começava às 10 da manhã do dia 17 de
junho, e merecem aqui ser citados na íntegra, com extensão maior do que o habitual, os seus
dois últimos parágrafos, que representam o clímax e a conclusão do confronto, para que se
dimensione o primor alcançado neste número pela narrativa do Mercurio Portuguez:
Resolveose o inimigo ao ultimo intẽto; & obstinadamẽte perseverou em hũa terribel
investida, oferecendo cõ desesperaçaõ os peitos dos cavallos aos botes das picas dos
nossos terços, que ajudavaõ a cavallaria, para rompellos; mas elles cõ o mayor valor,
& admiravel cõstancia, estiveraõ firmes, & fizeraõ grande mortandade nos que
investiaõ. Caracena, de hũ alto em que estava apartado, vendo esta firmeza se deu
entaõ por perdido, e disse: a infanteria do inimigo firme; a nossa cavallaria se
revolve, perdida he nossa armada, & o inimigo tem um grande dia; & conheceu o
acerto com q os nossos entremeteraõ aquella infanteria com os esquadroens de
cavallos, & quanto lhe valera ter elle feito o mesmo; porque a nossa cavallaria
entretãto degolava, rompia, & desbaratava a sua, sem embargo de que esta pelejava
tambem mui esforçadamente; mas tinhaõ os nossos a ventagẽ de que confundindose
por vezes cõ a furia do conflito, nelle mesmo, sem cessar, se reformavaõ, &
compunhaõ os soldados quasi sem diligencia de officiaes, cousa nunca ou raramente
vista em outra naçaõ, & já succedida à nossa na famosa vitória do AmeixIal, no que
240
Ibid. fol. 4v.
No tratado Flores de España, Excelencias de Portugal, já citado acima, Macedo, ao discorrer sobre as
excelências da fortaleza lusitana, elaborou uma longa apresentação da constante vitória dos portugueses contra
os castelhanos, em que baseia-se, mais de três décadas depois, para tecer este comentário no Mercurio
Portuguez. Cf. MACEDO, Antonio de Sousa de. op. cit. fols. 153v-210v.
241
118
se vê sua singular destreza na milicia. Assi se foi adiantãdo a nossa cavallaria, &
aquelles terços, & outros visinhos ganhãdo a terra que o inimigo hia perdendo.
No mesmo tempo fervia o Marte no outro corno da infanteria. Pelejavase cõ a mayor
porfia, & cõ a mayor braveza; vindo os terços às picas, & às espadas. A ira dos
nossos, por multiplicar armas, feria os inimigos até cõ as pedras de paredes q alli
havia caidas; eraõ muitas estas, valados, & embaraços de vinhas, mas o valor, & o
desejo de avançar tudo facilitava. As tropas de cavallos, que assistiaõ naquella parte
naõ estavaõ ociosas; fizeraõ seu dever muito galhardamente.242
Nesta abordagem sobre o principal confronto daquela última fase guerra da
Restauração, Antonio de Sousa de Macedo conseguiu reunir com grande habilidade dois
estilos que foram utilizados na montagem de sua narrativa de guerra ao longo de toda a
publicação do Mercurio: uma descrição mais técnica, com tendência à síntese, e outra mais
exaltada, de linguagem imponente, evocativa de imagens fortes, arrebatadoras. Desta forma, o
discurso do periódico alcança sua máxima eficiência em apregoar, através da descrição do
feito, a porfia e a força inerentes aos portugueses, e ao mesmo tempo sua destreza e perícia na
arte militar. Alcançava-se um amálgama mais completo entre a pujança que pedia a
representação de tão intensos fervores de Marte, e a objetividade que devia servir aos sempre
propalados interesses informativos daquele Mercurio.
Nas primeiras linhas desta edição, o Mercurio anunciou, assim como havia feito
quando do relato da retomada de Évora, que em “relações particulares, por se dever
especialidade a ações tão ilustres, se contaram já os sucessos principais deste mês de Junho”,
mas que desta vez, “por naõ se faltar ao fio desta narraçaõ ordinaria, se repetirá o mesmo;
porèm sò na substancia (que basta para conhecimento do sucedido)”243. Tais relações, que
mais uma vez Macedo comenta com a propriedade de quem as havia escrito, foram um
Mercurio Portuguez Extraordinario, de como fueron assoladas la Placa de Sarça, y la villa
de Ferreira en Castilla, por las Armas Portuguesas, sobre tais entradas anunciadas no título,
comentadas apenas rapidamente na parte final da edição do Mercurio de junho, e a Relación
verdadera, y pontual, de la gloriosíssima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros
alcançò el Exercito delRey de Portugal. O fato de estes textos, em que se inclui uma
publicação extraordinária do Mercurio, estarem escritos também em castelhano, de terem sido
ambos impressos pelo impressor do rei, bem como a semelhança do título da relação com
aquela sobre a retomada de Évora, confirmam a hipótese de que, tanto em 1663 quanto em
1665, o autor do periódico era também o das relações de guerra ali referidas.
A narrativa da Relación verdadera é muito mais longa do que a da edição do Mercurio
Portuguez que ora se analisa, percorrendo pormenores dos confrontos em Vila Viçosa e
242
243
Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fols. 5v-6v.
Ibid. fol 1r.
119
Montes Claros, nomeando vários combatentes e apontando seus feitos heróicos, e chegando
ao auge do rebuscamento da linguagem com que ali se descreve os movimentos dos combates.
As semelhanças, porém, são agora muitos mais visíveis do que em 1663, e a comparação do
trecho abaixo com o do periódico citado logo acima permite notar os diferentes intuitos que
embasaram sua confecção:
Hasta que el enemigo, juntando una gran multitud, determinó esforzarse más; y con
obstinación perseveró en nuevo, & terrible combate, ofreciendo desesperadamente
los pechos de los caballos al bote de las picas de nuestros tercios por romperlas.
Habián advertido los Maesses de Campo a los soldados, que en su firmeza estava su
salud, y aunque se viesen hacer pedazos, no se moviese el resto, si queria salvar la
vida. Ni tronco al viento desatado, ni roca a la mar tempestuosa, mostró estabilidad
mayor, y el enemigo qual Austro, que no puede derribar el monte opuesto, gira
furioso sin effecto, y como las espumosas ondas conspiran multiplicadas contra la
peña, en que se quiebran, así con porfiada ira buscaba la muerte en nuestras armas.
Entonces dijo Caracena, que lo miraba de alto, sin bajar a remediallo: La infantería
del enemigo firme, nuestra caballeria se revuelve, perdida es nuestra armada, y el
enemigo tiene un gran dia.244
Comparados os trechos dos dois escritos, percebe-se nitidamente a operação de síntese
efetuada por Macedo na composição daquele Mercurio, que se atém a uma descrição mais
simples, e técnica, da batalha de Montes Claros, suprimindo esta linguagem mais elaborada –
que chega, como em várias outras passagens, a emular os versos homéricos – porém
mantendo imagens fortes em sua narrativa, como a do choque entre os cavalos do inimigo e as
picas da infantaria portuguesa. Mantém ele também esta última cena, da fala do marquês de
Caracena reconhecendo sua derrota, postado de um alto a observar a batalha, posição em que
o periódico ainda lhe colocaria em outras ocasiões, denunciando sua covardia e desonradez.
Se na Relación verdadera Macedo buscava recursos de escrita requintados, constituindo uma
peça literária mais elevada, e tencionando por esta via glorificar, e alçar à fama o feito
português, ou ao menos demonstrar sua proeminência, já o Mercurio Portuguez tratava-se de
uma “narração ordinária”, em que mensalmente o secretário de Estado trazia, segundo seu
discurso, a totalidade dos sucessos da guerra travada contra Castela, em suas diferentes
fronteiras, construindo um panorama mais abrangente do estado do conflito, importando
substancialmente através dele demonstrar a solidez do exército e da causa portuguesa. Neste
sentido, o relevo dos eventos do mês de junho justifica a adoção de uma narrativa igualmente
altiva, mas que porém não se desvia da proposta mais geral do periódico, e o efeito discursivo
alcançado por tal narrativa consolida e lança novas bases para a afirmação da superioridade
244
Relación verdadera, y pontual, de la gloriosíssima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros
alcançò el Exercito delRey de Portugal. Lisboa: en la Officina de Henrique Valente de Olivera, Impressor
delRey nuestro Señor, 1665. fols. 17r-17v.
120
das armas portuguesas defendida, com as nuances já detectadas, na grande maioria de suas
publicações.
Para Antonio de Sousa de Macedo, enquanto redator do Mercurio, mais do que a
exaltação de feitos heróicos, mais do que o rebuscamento da linguagem na descrição das
batalhas, importava, através de suas novas, edificar um discurso político sobre a guerra que se
enfrentava, acima de tudo afirmando a grandiosidade daquele momento vivido por Portugal,
daquela época retratada nas páginas do seu periódico. De mais valia, e mais decisivo para a
confecção de seu discurso sobre a guerra, do que narrar em detalhes seus eventos, era
comentá-los, tirar deles conclusões, em que mais diretamente Macedo defendia seus
argumentos. Nesta mesma e crucial edição de junho de 1665, após narrar a fuga de Caracena e
seu exército, após enumerar todo o despojo conquistado com a batalha de Montes Claros,
entre armas, munições, secretarias e mantimentos, e após referir o número de mortos e feridos
no confronto – do lado castelhano perdera-se 3500 cavalos, mais de 4000 infantes, e de
número equivalente de feridos morrera praticamente a metade, enquanto foram 2000 os
portugueses feridos e apenas 700 mortos – o Mercurio Portuguez conclui, com a imponência
que a ocasião merecia:
Esta foi a famosa victoria de Mõtes Claros, a vigessima prima, q em batalha cãpal
(de mais de outros recontros particulares) houveraõ os Portugueses dos Castelhanos,
não havendo este ganhado cõtra nós nẽ hũa, desde o princípio de Portugal; cousa bẽ
notavel, & cõtudo se não desenganão. E foi a quinta q em tão poucos annos de
Reinado ganhárão as armas de elRey N. S. D. Affonso VI, a quẽ, cõ o favor de
Deos, se dá justamẽte o titulo de Victorioso. Nella vẽcerãos os Portugueses a todas
as naçoẽs de Europa, (salva a hõra q nellas reconhecemos) porq de todas trouxe o
Castelhano o mais escolhido de soldados velhos, & Cabos de opinião, cõ excessivas
despezas, & grãdes diligẽcias, até fazer q o Emperador, para desocupallos, acordasse
paz indigna cõ o Turco. Não vẽcemos por golpe repentino de fortuna, nẽ por
occasião em q o esforço ou a arte não pudesse obrar; vẽcemos em claro dia, em cãpo
aberto, tendo elles o sitio superior, q escolhérão, tẽdo maior poder (pois o seu
excesso de cavallos era maior q o nosso de infantes) em cõbate de oito horas
cõtinuas, em q palmo & palmo fomos ganhãdo a terra que perdiaõ, havẽdo quasi hũa
legoa dõde começou a batalha aõde se acabou; no q tudo se exercitou quanto ensina
a arte militar, & se apurou o valor.245
Pela análise de Fernando Dores Costa, nesta última fase da guerra da Restauração,
foram decisivas para a vitória portuguesa duas derrotas, totalmente inesperadas, do exército
castelhano, nas batalhas do Ameixal e de Montes Claros, esta última esgotando por completo
a capacidade militar de Castela. No fim das contas, de acordo com o historiador, o desfecho
do conflito teria se definido por estas meras contingências246. Antonio de Sousa de Macedo,
por sua vez, parece reconhecer mesmo em seu tempo a existência deste tipo de apreciação do
245
246
Mercurio Portuguez. Junho de 1665. fols. 8r-8v.
Cf. COSTA, Fernando Dores. op. cit. pp. 96-115.
121
desenrolar da guerra, e de suas principais batalhas, e afia o seu discurso para a contestação de
argumentos que reservassem ao sopro do acaso a explicação dos triunfos portugueses. Esforço
e arte, resume o Mercurio, foram os elementos que garantiram o sucesso das armas
portuguesas nos campos de Montes Claros, e assim o periódico defenderia constantemente em
sua abordagem sobre a maior parte das novas de guerra ali divulgadas. Neste sentido, a
batalha de Montes Claros é tão definitiva para o curso da guerra da Restauração quanto para a
consolidação das estratégias discursivas trabalhadas pelo secretário de Estado em sua
publicação mensal, descritas e analisadas até aqui.
Tamanha é a importância do feito para o Mercurio Portuguez, que seu comentário dá
azo a que ele seja incluído, retomando o raciocínio exposto algumas páginas antes, no
inventário das maiores vitórias alcançadas contra os castelhanos, os inimigos de sempre,
desde a constituição de Portugal. Macedo, mantendo uma importante marca de sua produção
intelectual, faz mais uma vez das suas letras um terreno de defesa e promoção da tradição
portuguesa, da guerreira neste caso. Mas vai além, ou aquém, e situa o sucesso alcançado em
Montes Claros no rol daqueles que destinam, pela primeira vez em seu periódico, o epíteto de
Vitorioso ao rei D. Afonso VI, pondo claramente sob sua égide a valorização das glórias
daquele tempo, de que o Mercurio vinha sendo o mais regular e autorizado divulgador. Se foi
perene a intenção de, como observado aqui nos diferentes aspectos do desenvolvimento do
discurso do periódico, desde a constatação da infrutuosidade, ou até do risco político
envolvido nas negociações de paz de 1663, proclamar a superioridade da força militar
portuguesa, e de interferir na opinião circulante acerca dos rumos da guerra travada em suas
fronteiras, combatendo-se aí muitas vezes a insegurança, o descrédito, e a oposição que se
desenvolviam na Corte e em outras partes do reino, este último comentário consolida uma
nova e transversal luz sobre o papel político desempenhado por sua impressão.
Se até aqui se pode concluir que, como linha mestra da composição das novas de
guerra do Mercurio Portuguez, atuou um empenho pela afirmação da magnitude do tempo
que se vivia em Portugal, e que em vários momentos seu discurso se dirigia para combater ou
dissimular as críticas avançadas no campo da oposição política ao governo por ele
representado, torna-se ainda mais significativo que em um momento tão crucial daquela
publicação seu redator tenha feito questão de associar a tal magnitude o reinado de D. Afonso,
formulando talvez o epíteto que afinal a tradição reservou ao polêmico monarca. Em vista
disso, torna-se agora necessário, para que se aproxime com mais acuidade da compreensão
deste papel político, o exame do discurso engendrado por Antonio de Sousa de Macedo no
periódico, certamente de forma menos recorrente, mas talvez mais explícita, sobre este rei, e
122
mais propriamente sobre a ação de seu governo na direção do esforço de guerra português,
qual será o objetivo das próximas linhas.
123
4
AS NOVAS DO DISCURSO POLÍTICO
Depois de travado algum contato com a historiografia européia sobre a guerra na Era
Moderna é que se tem a dimensão exata da importância seminal da aula inaugural proferida
em Belfast pelo professor Michael Roberts, em 1955, e publicada no ano seguinte sob o título
de The Military Revolution, 1560-1660247. Até então, os historiadores de temas militares não
atribuíam qualquer relevo aos eventos bélicos do século XVI na constituição de suas
interpretações acerca da história da guerra no Ocidente. Roberts, por sua vez, introduziu a
interpretação de que a centúria entre 1560 e 1660 havia acompanhado uma revolução no
modo de se fazer guerra na Europa ocidental, e de que esta podia ser observada em quatro
áreas distintas.
Em primeiro lugar, destacou as inovações táticas introduzidas por Maurício de Nassau,
enquanto capitão-general do exército das Províncias Unidas em fins do século XVI, e
incrementadas na geração seguinte por Gustavo Adolfo no exército da Suécia, em torno da
substituição dos enormes esquadrões de piqueiros por formações lineares e menores na
infantaria, bem como da introdução das armas de fogo na cavalaria, e do subseqüente
aprimoramento das manobras militares para o seu melhor aproveitamento. Estas
transformações táticas, segundo Roberts, teriam atuado como causa eficiente do processo
mais abrangente daquela revolução militar, pois requereram maior treinamento e disciplina
das tropas, o que por sua vez exigiu grandes investimentos dos respectivos governos, que
passaram a ver com maus olhos a sua desmobilização ao final das campanhas, iniciando o
processo que levaria inexoravelmente à formação futura de exércitos permanentes. Com
soldados mais bem treinados, as lideranças militares, de que o primeiro grande exemplo seria
Gustavo Adolfo, puderam desenvolver estratégias mais complexas e ambiciosas, que Roberts
incluiria no segundo setor de sua revolução militar, e tais estratégias passaram a exigir um
número cada vez maior de integrantes nas forças militares que se multiplicaram no intenso
cenário bélico da Europa do século XVII, aspecto considerado o terceiro componente de sua
teoria. Este prodigioso aumento nos efetivos militares levou à quarta e última dimensão deste
processo revolucionário, pois acentuou dramaticamente o impacto das atividades bélicas em
diversos setores da sociedade: a maior capacidade de destruição, os maiores custos
247
Sua mais recente reimpressão está no volume, já por si só um bom índice desta importância, organizado por
ROGERS, Clifford J. The Military Revolution Debate: Readings on the Military Transfomation in Early Modern
Europe. Boulder: Westview Press, 1995. pp. 13-35.
124
econômicos e o maior desafio administrativo dos exércitos ampliados fizeram das guerras um
problema e um fardo para a população civil e seus governantes maior do que havia sido até
então.
Durante as primeiras décadas seguintes à publicação do texto de Michael Roberts, sua
presença fez se sentir inconteste na grande maioria dos trabalhos que passavam minimamente
perto dos eventos bélicos na Europa moderna, sendo sua teoria sempre referenciada, e
confirmada. Foi, porém, com os estudos de Geoffrey Parker, que resultaram em um
importante artigo em 1976248, e se consolidaram em seu livro The Military Revolution.
Military innovation and the rise of the West, 1500-1800, que a teoria da revolução militar
começou a ser depurada e reavaliada, principalmente em relação a seus marcos cronológicos e
suas relações causais. Se, por um lado, Parker demonstrou a existência anterior,
nomeadamente na Itália renascentista, de vários dos desenvolvimentos enunciados por
Roberts, bem como a dívida das inovações táticas de Nassau para com a organização militar
da Espanha da primeira metade do XVI, por outro, e mais significativamente, questionou
incisivamente o papel ocupado por estas inovações enquanto causa impulsionadora de um
processo histórico inexorável. Traçando um contexto mais amplo de mudanças táticas e
estratégicas nas operações militares da época, Parker consente que estas certamente abriram
caminho para o aumento dos efetivos militares que se desenvolveu posteriormente, mas passa
afirmar não terem sido elas suficientes para desencadear sozinhas a revolução militar – ele
mantém a definição de Roberts, reafirmando com ela o caráter central do estudo de tais
transformações militares para a compreensão da história européia do período, e, finalmente,
para a compreensão do avanço do poder militar europeu sobre o mundo na era moderna249.
Geoffrey Parker, desta forma, aceita e confirma a asserção de Roberts sobre a
importância do crescimento dos efetivos militares, considerando-o o aspecto mais visível e
comprovativo da revolução militar, mas não aceita a priori sua explicação de que das
inovações táticas e estratégicas de Maurício de Nassau e Gustavo Adolfo teria derivado tal
crescimento. Primeiro, porque foram outras as mudanças táticas que, antes de Nassau e
Gustavo Adolfo, superaram alguns obstáculos postos ao crescimento dos exércitos: com o
triunfo dos piqueiros sobre as cavalarias, ainda no século XV, cresceu absoluta e
relativamente a importância da infantaria nos exércitos, o que tornou ilimitado o número de
248
PARKER, Geoffrey. The "Military Revolution," 1560-1660 – a Myth? In: The Journal of Modern History.
Chicago: The University of Chicago Press, v. 48, n. 2, pp. 195-214, jun. 1976. (Publicado também em ROGERS,
C. J. op. cit. pp. 37-54)
249
Cf. Id. The Military Revolution. Military innovation and the rise of the West, 1500-1800. Cambridge:
Cambridge University Press, 1988.
125
homens passível de ser recrutado. Mesmo assim, tal fato teria apenas aberto o caminho para o
aumento militar irrestrito, não o garantindo nem o condicionando. O segundo aumento teria
ocorrido somente meio século depois, pois se necessitava um vasto número de homens para
penetrar no sistema defensivo de fortificações conhecidas como de trace italienne. Depois
deste período, localizado em torno de 1530, houve mais quatro décadas de estagnação, pois
nenhum governo possuía organização necessária para mobilizar, pagar e prover maiores
concentrações de tropas. Precisaria haver importantes mudanças nos recursos financeiros e
administrativos dos Estados europeus. Então, e este se torna o argumento forte de Parker, o
crescimento dos efetivos militares dependeu não só de fatores internos, táticos e estratégicos,
mas também de um número de fatores extrínsecos aos exclusivamente militares.
Quatro fatores extrínsecos são então identificados como cruciais, segundo sua análise.
Em primeiro lugar, os governos deveriam ser capazes de organizar e controlar grandes forças;
não por acaso, as maiores ondas de reforma administrativa na Europa ocidental, nas décadas
de 1530 e 1580, e no final do século XVII, coincidem com as principais etapas de crescimento
do tamanho dos exércitos. Se a rápida expansão numérica do início do XVII forçou a alguma
descentralização nestes procedimentos, por outro lado os governos procuraram sempre manter
o controle sobre seus comandantes e exércitos. Sob um segundo enfoque, a expansão
numérica dos exércitos era também dependente de certos desenvolvimentos tecnológicos
elementares: capacidade de produção de víveres e meios de transporte equivalentes a um
grande exército em campanha, assim como o desenvolvimento de estradas capazes de
conduzir um grande exército e seu trem de provisão e artilharia.
Para tudo isso era preciso dinheiro, necessidade de que derivam os outros dois
condicionamentos extrínsecos impostos à revolução militar: precisaria haver um determinado
nível de riqueza na sociedade para que um pesado e prolongado gasto militar fosse suportado,
e deveria haver formas de mobilização desta riqueza. Segundo os estudos coligidos por
Parker, entre 1450 e 1600 a população da Europa quase dobrou, sendo que a de algumas
regiões mais do que dobrou, havendo no mesmo período um notável crescimento na riqueza
total do continente. Além disso, depois de 1660 identifica-se uma nova leva de crescimento da
população e da riqueza européias. Esta nova prosperidade teria sido drenada pela taxação, ou
indiretamente através de impostos sobre o consumo, ou diretamente por uma variedade de
taxas sobre a terra, o capital e a renda, e o fisco dos governos cresceu por toda parte a partir
do século XVI. De qualquer forma, nenhum governo podia arcar com uma guerra prolongada
sem taxação em curso: a renda suficiente para um período de paz não poderia prover
igualmente os imprevisíveis, porém inevitáveis, custos de uma campanha de vulto. Os
126
Estados, portanto, tinham necessariamente que distribuir os custos de cada guerra em um
número de anos de paz, ou poupando antecipadamente ou gastando adiantado a renda dos
futuros anos, com a ajuda de empréstimos de banqueiros e mercadores.
Todos estes desenvolvimentos, esta transformação de fatores extrínsecos que
impediriam a chamada revolução militar, tornaram possível o aumento dos efetivos militares
que demonstram os números trazidos por Parker para o início do século XVIII. Neste ponto,
este crescimento estagnou mais uma vez sendo suas marcas somente ultrapassadas em 1790,
quando novos avanços econômicos, políticos, tecnológicos e financeiros foram alcançados.
Seja como for, a revolução nos efetivos militares foi extremamente importante, e teve todas as
conseqüências apontadas por Roberts: intensificou a relação entre as atividades bélicas e
outras áreas da vida social, aumentou a autoridade do Estado, acentuou a mobilidade social, e
ainda retardou o desenvolvimento econômico dos países mais participantes. Além do mais,
certamente ajudou a precipitar os confrontos entre governos que comumente são referidos
como a crise geral do século XVII. Este crescimento prodigioso da escala das operações
militares sozinho merece, segundo Parker, o título de revolução militar que Roberts outorgou
na década de 50.
Esta concordância conceitual em relação à idéia de revolução militar formulada por
Michael Roberts, porém, não pode esconder a alteração estrutural que Geoffrey Parker operou
em relação à sua teoria, principalmente através da interposição daqueles fatores extrínsecos
aos estritamente militares no nexo causal que teria levado ao incremento do tamanho dos
exércitos durante o período analisado. Com efeito, aquilo que na aula inaugural de 1955
aparecia como uma das conseqüências últimas da revolução militar, o fortalecimento dos
Estados europeus e de sua capacidade de intervenção na sociedade, na obra de Parker é
destacado como condição sine qua non do crescimento dos exércitos, pois só este
fortalecimento possibilitaria a organização e controle de grandes forças militares, bem como a
organização fiscal tremenda que viabilizasse a mobilização da riqueza produzida no tempo e
sua utilização em investimentos bélicos, incluídas entre eles as inovações tecnológicas –
capacidade de produção e transporte de víveres, desenvolvimento de estradas – que foram
possíveis também apenas devido à ingerência dos Estados neste terreno.
Da publicação do livro de Geoffrey Parker em diante, a continuidade do debate acerca
das transformações da prática e da vivência das guerras na Europa moderna vem reforçando a
importância do estudo sobre este desenvolvimento da capacidade de intervenção dos Estados
europeus e seu papel no engendramento desta revolução militar, sobre esta rede de influências
recíprocas entre guerra, Estado e tributação que constitui a primeira etapa da formação do
127
Estado moderno250. Um bom exemplo do prosseguimento deste debate, e desta abordagem,
por ser aquele que mais interessa ao presente estudo, está no trabalho de Lorraine White.
Recentemente, a historiadora demandou esforços na aplicação de diversos elementos das
teorias da revolução militar em um estudo de caso sobre a guerra luso-castelhana de 16401668, “that forgotten conflict”251, nas palavras de Geoffrey Parker, de que ora também o
presente trabalho se ocupa. Em artigo publicado em 2003, Lorraine White analisa, passo a
passo, aspectos da guerra da Restauração relacionados à estratégia e à tática militar, e ao
tamanho e composição dos exércitos, confrontando-os com a caracterização da revolução
militar feita por Roberts, Parker, mas também incluindo em sua reflexão os mais atuais
refinamentos sugeridos pelos trabalhos de John A. Lynn e David Parrot252.
Partindo das condições geográficas, climáticas, financeiras e diplomáticas que se
impunham aos contendores no período, White inicia suas considerações analisando a resposta
dada a elas por castelhanos e portugueses na disposição de suas forças militares nas fronteiras,
sua dispersão por diversos fortes e cidades, e na aplicação de estratégias de enfrentamento,
tais como o emprego de ações militares simultâneas e coordenadas, inseridas na maior parte
das vezes em uma estratégia dominante de guerra de posição, em que os cercos constituíam
uma empresa freqüente, sendo a maioria de curta duração, já que ou a conquista da praça se
fazia de modo rápido, ou as tropas sitiantes abandonavam o cerco, tanto por encontrarem
dificuldades de abastecimento do exército em campanha como por evitarem o confronto
direto com tropas inimigas de auxílio aos sitiados. Aquela dispersão dos exércitos em
posições espalhadas nas várias regiões de fronteira, tanto do lado português quanto do
castelhano, por sua vez, provocou a ausência de um centro de gravidade em ambos os
territórios, impossibilitando o alcance de um controle territorial significativo por parte do
inimigo, fazendo com que a fronteira permanecesse relativamente estática, mesmo quando do
incremento das forças militares em disputa, verificado nos últimos anos da guerra.
250
Cf., como exemplos da variedade de abordagens desta problemática, além dos textos reunidos em ROGERS,
C. J. op. cit., as obras: DOWNING, Brian M. The Military Revolution and Political Change. Origins of
Democracy and Aristocracy in Early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press, 1992; LYNN, John
A. (dir.). Feeding Mars. Logistics in Western Warfare from the Middle Ages to the Present. Boulder, 1993; Id.
Giant of the Grand Siècle. The French Army, 1610-1715. Cambridge: Cambridge University Press, 1997;
ELTIS, David. The Military Revolution in Early Modern England. London: Routledge & Kegan Paul, 1995; e
PARROT, David. Richelieu’s Army. War, Government and Society in France, 1624-1642. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001. Uma boa síntese dos temas históricos relacionados a este debate pode ser
encontrada em CORVISIER, André. Guerra e Estado. In: ____. A Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editora, 1999.
251
PARKER, Geoffrey. The "Military Revolution," 1955-2005: From Belfast to Barcelona and the Hague. In:
The Journal of Military History. New York: Society for Military History, v. 69, n. 1, pp. 205-209, jan. 2005. p.
207. Na passagem citada Parker vinha justamente comentando o trabalho de Lorraine White.
252
WHITE, Lorraine. Guerra y revolución militar en la Iberia del siglo XVII. In: Manuscrits. Revista d’história
moderna. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, n. 21, pp. 63-93, 2003.
128
Em seguida, a análise comparativa das táticas militares da guerra ibérica em relação às
consideradas típicas da revolução militar ocidental inicia-se justamente pela constatação da
utilização das técnicas e instrumentos modernos de cerco: sua divisão em três etapas (o sítio,
o assédio e o assalto), a presença e o modo de emprego de armas de fogo e explosivos. Da
mesma forma, White identifica a presença de fortificações modernas e táticas empregadas em
sua defesa diante de um cerco, em tudo similares às desenvolvidas nas regiões européias mais
comumente associadas ao foco das teorias da revolução militar: introdução prévia de tropas de
reforço e retirada de cavalos, rechaço do sitiante com artilharia e saídas de cavalaria, e
posicionamento de defesa de mosqueteiros e piqueiros nas obras exteriores das fortificações.
Outro aspecto tático importante comentado pela autora refere-se à presença e
densidade das operações de cavalaria na guerra da Restauração. O terreno relativamente
aberto e a baixa densidade da população nas fronteiras favoreciam a prática de correrias, estas
razias e saques tantas vezes narrados no Mercurio Portuguez, em que se destacava a ação da
cavalaria por sua mobilidade. Além disso, a cavalaria era também bastante utilizada para a
organização eficiente de uma incursão a assentamentos, e mesmo desempenhava um papel
crucial nos assédios às fortificações, atuando nos dois casos em conjunto com a infantaria.
White repara nesta utilização, já que a teoria clássica da revolução militar considerava que as
fortalezas modernas (defendidas com baluartes) diminuíram a proeminência da cavalaria, mas
os mais recentes estudos sobre o exército francês e a guerra dos Trinta Anos destacam uma
mudança estrutural neste aspecto, considerando o aumento da proporção da cavalaria nos
exércitos a partir da década de 1630, e o papel primordial desempenhado por ela em diversas
ações militares, incluindo a defesa e o ataque às fortalezas. Neste sentido, ela pode concluir,
era la caballería – no la infantería – quien jugaba un papel decisivo en los principales
frentes de la guerra Luso-castellana, al igual que ocurría en otros puntos de la
Europa de esa época. La caballería suponía, de hecho, El brazo derecho de la batalla,
como probaron los portugueses en 1663 en Ameixial y en 1665 en Montes Claros253
Em relação ao tamanho e à permanência dos exércitos em confronto nesta guerra,
elementos bastante frisados pelas teorias da revolução militar, Lorraine White traz dados que
mais uma vez confirmam a proximidade dos números encontrados na península ibérica em
relação aos de outras regiões da Europa ocidental da época – principalmente nos anos em que
a guerra passou à sua fase mais intensa, na década de 1660 – e demonstra também a
coincidência do esforço de constituição de um exército permanente, já que os mesmos estudos
mais recentes apontam que os problemas de flutuação do tamanho dos exércitos, oriundos de
fugas, deserções e da tendência à desmobilização das tropas no fim de campanha, não seriam
253
WHITE, L. op. cit. p. 76.
129
uma peculiaridade da guerra da Restauração, podendo ser verificados em praticamente todas
as regiões de conflito da Europa do período. É na referência ao tamanho das unidades que
compunham os exércitos, porém, que a guerra ibérica mostra-se mais distante do modelo da
revolução militar: se nele uma companhia de infantaria não excedia 100 homens, o padrão de
divisão dos terços ibéricos era de 1000 homens em cada. Quando entravam em ação, porém,
estes terços eram normalmente divididos em esquadrões ou batalhões, que variavam entre 300
e 700 homens cada. Com bastante acuidade, e mais uma vez aproximando-se dos
refinamentos dos recentes estudos da revolução militar, na medida em que enfatiza os
elementos conjunturais que determinaram o ritmo e a dimensão das transformações nas
práticas militares da época, Lorraine White evidencia como o tamanho destas unidades era
flexível, e, afinal, condicionado por uma série de fatores: de um lado, problemas de saúde,
deserção, e dificuldades de recrutamento criavam obstáculos para a manutenção de unidades
de grande porte; do lado oposto, deveu-se em boa parte à resistência dos governos a
sobrevivência da resolução da formação dos terços com uma força nominal de 1000 soldados,
em parte pela consciência das queixas à proliferação de oficiais na fronteira, realizadas pelo
braço popular em ambas as Cortes, e em parte pelo aumento dos gastos com salários que
advinha exatamente deste crescimento da primeira plana do exército.
Apesar de não ser este propriamente o enfoque dado por White neste artigo, sua
caracterização das táticas, estratégias, organização e tamanho dos exércitos em embate na
guerra da Restauração, como se percebe, é constantemente permeada por considerações
acerca da atuação dos governos castelhano e português, responsável em boa parte pela
conformação destes mesmos aspectos254. Suas conclusões o demonstram suficientemente, já
que, se sua principal intenção é demonstrar que as transformações militares verificadas na
guerra da Restauração, mais do que provas da expansão das reformas inovadoras associadas à
revolução militar, podem ser interpretadas como “una adaptación pragmática a niveles locales
e centrales de problemas surgidos y de una terrible escasez – principalmente de recursos
humanos y financieros”255, é particularmente a ação dos Estados, com vistas a contornar ou
solucionar os problemas encontrados, que se percebe determinando o tipo e o tamanho das
tropas em campanha, assim como as definições mais gerais das estratégias de confronto,
elementos que, por fim, condicionam diretamente a predominância de tais ou quais táticas
militares empreendidas nos combates propriamente ditos.
254
Em sua tese de doutoramento, de 1985, intitulada War and government in a Castilian province: Extremadura
1640-1668, à qual infelizmente não tivemos acesso, por sua vez, Lorraine White parece ter se dedicado mais
detidamente ao tema.
255
WHITE, L. op. cit. p. 89.
130
Mantendo estreito diálogo com esta historiografia da guerra européia, o historiador
Rui Bebiano, em seu estudo voltado para a análise da escrita sobre a guerra em Portugal entre
os séculos XVI e XVIII, buscou como ponto de partida justamente considerar a forma como a
prática e a vivência da guerra na Europa moderna desenvolveu-se no período analisado,
sempre em forte vínculo com as questões da centralização política e do exercício do poder,
constituindo-se a prática da guerra como justificação última do incremento do poder dos
Estados europeus de então256. No século XVII, Bebiano afirma ainda em consonância com as
observações de Michael Roberts e Geoffrey Parker, a presença da guerra faz-se mais
constante, como resultado de querelas cada vez mais alargadas envolvendo os Estados em seu
movimento de expansão. Alargam-se as reivindicações e as necessidades dos Estados, dotados
agora de uma ambição e capacidade políticas e de um volume de meios mais alargados do que
nunca, disseminando cada vez mais a presença social das armas, envolvendo e mobilizando
cada vez maiores parcelas das populações européias, nos mais diversos grupos sociais.
Simultaneamente, há uma alteração efetiva das capacidades orgânicas e operativas das forças
armadas justo quando o centro do poder político passa a dispor de capacidade para o poder
aplicar. O impacto desta dupla transformação no espaço europeu é brutal, e não seria diferente
dentro de Portugal.
Presença quase constante em toda a história da formação de Portugal, a experiência da
toma proporções também lá ainda maiores no século XVII, mas principalmente com a guerra
da Restauração, que forçou uma integração quase completa no esforço militar de grande parte
dos recursos materiais e humanos de que o reino dispunha. Não por acaso, as exigências da
guerra ocupam o centro das atenções do governo do Portugal restaurado desde seu princípio,
assim como o das atividades diplomáticas. Neste sentido, Bebiano destaca durante a
Restauração a detecção de um conjunto de iniciativas voltadas para a centralização política,
para alargar a área de ação do poder monárquico, havendo as necessidades militares atuados
como um eficiente leitmotiv. É de forma inerente a tal processo que o historiador situa a
gradual definição de um conjunto de discursos justificadores do ato guerreiro em Portugal,
que se uniu a um conjunto de atitudes no domínio da escrita, e essencialmente repercutiu os
propósitos tomados pelo poder régio para atribuir um sentido e criar as condições para a
imposição de sua política. Tal expressão pública da imagem da guerra passava não só por
obras vultosas de justificação política e militar, mas principalmente por um outro tipo de
256
BEBIANO, Rui. A Pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra:
Edições Minerva, 2000.
131
produção literária, de teor menos especulativo e conteúdo menos técnico, e dirigida a um
público mais vasto.
Neste âmbito Bebiano situa as relações e panfletos impressos durante a Restauração,
inclusive os dois primeiros periódicos portugueses, a Gazeta e o Mercurio Portuguez, em que
identifica uma vontade explícita de suscitar o respeito, a unanimidade e o empenho de que a
autoridade monárquica carecia, através da divulgação de idéias e princípios; a fixação,
seguindo a expressão da historiadora Michèle Fogel257, de um discurso monárquico acerca da
guerra: a construção de um sistema de comunicação organizado e ritualizado capaz de
funcionar como instrumento da vontade régia a propósito das coisas de guerra e de instituir
um tipo de percepção e interpretação de suas realidades. Para Bebiano, em Portugal tal
sistema devia boa parte de sua eficácia pela subordinação das oficinas tipográficas ao poder
régio, alcançada por sua concentração geográfica em Lisboa, pela ação da censura, e de forma
ainda mais diretiva pela concessão de privilégios de impressão.
De acordo com sua tese, a publicação deste tipo de literatura se orientava para alguns
objetivos essenciais: tranqüilização dos espíritos, buscando comprovar um completo domínio
da situação e também a plena aceitação da legitimidade do gesto insurrecional; reforço dos
mecanismos de submissão dos eventuais descontentes, que se manifestavam dentro e fora do
reino contra as novas formas de institucionalização política, através da simulação de
capacidade de mando e imposição da autoridade superior a que de fato era possível colocar no
terreno; mobilização plena dos entusiasmos e das vontades, com vistas ao lançamento de
formas eficazes de empenhamento coletivo; além do consciente esforço de contra-informação,
diante da constante ação do boato e da iniciativa propagandística lançada pelo inimigo. No
centro destas estratégias isolava-se cuidadosamente a figura do monarca, sobre a qual
repousava por inteiro a justificação última da luta pela autonomia política, e ao mesmo tempo
celebrava-se a guerra como manifestação dinâmica, cujo lançamento e direção se pretendia
mostrar inerente à função monárquica.
Neste sentido, Rui Bebiano traça sua caracterização do Mercurio Portuguez
destacando uma qualidade literária um pouco superior a de outros escritos do gênero, mas
principalmente a sua “intenção política muito explícita (...) proposta no eloqüente parágrafo
que abre o primeiro número, o qual, pelo conteúdo indicativo, quase programático”258 o autor
257
FOGEL, Michèle. 1620-1660, Constitution et fonctionement d’un discours monarchique sur la guerre.
L’information comme cérémonie. In: MÉCHOULAN, Henry (dir.). L'Etat baroque: regards sur la pensée
politique de la France du premier XVIIe siècle. Paris: J. Vrin, pp. 335-352, 1985.
258
BEBIANO, R. op. cit. p. 227. – Para suas teses centrais a respeito das características do discurso monárquico
acerca da guerra em Portugal no século XVII, cf. principalmente as pp. 209-301, mas também os seus artigos:
132
transcreve quase integralmente, como também se fez no primeiro capítulo do presente
trabalho. Considerando assim programático o discurso inaugural do periódico de Antonio de
Sousa de Macedo, Bebiano identifica na publicação o desenvolvimento de uma estratégia
informativa que teve como objetivo declarado combater outras informações, ou seja, produzir
opinião, fazendo-o como resposta ao aparecimento de outros impressos, notadamente em
terras estrangeiras, e declarando imparcialidade, eficácia e celeridade no cumprimento de sua
missão. Chama atenção, também, para o fato de que o Mercurio ocupava-se de noticiar os
eventos de guerra com cuidado formal e evidente preocupação pedagógica, exagerando
sempre o número de inimigos mortos e minimizando o dos portugueses, corrigindo ou
alterando boatos que circulavam sobre o volume dos ajuntamentos de tropas espanholas, e
procurando transmitir ânimo a quem duvidasse e orgulho pelos feitos obtidos, além de
utilizar, para efeitos de contra-propaganda, estratégias psicológicas pouco comuns na época,
como no caso já comentado da publicação do Voto do marquês de Caracena.
Ora, pelo que já se viu até aqui, é bastante precipitado definir os propósitos da
publicação do periódico simplesmente a partir da proposta declarada naquela sua primeira
edição, e o exame mais detido da construção do seu discurso em relação aos problemas
enfrentados pelo governo português nos primeiros meses de 1663, bem como sobre o
desenrolar da guerra contra Castela, demonstrou que a produção de opinião objetivada pelo
secretário de Estado respondia a questões bem mais difíceis e delicadas do que o combate aos
impressos publicados pelos castelhanos, assim como a tarefas bem mais específicas do que a
tranqüilização dos espíritos e a mobilização plena das vontades. Por outro lado, as últimas
conclusões acerca das notícias do Mercurio sobre a guerra da Restauração evidenciaram que
tratou o seu redator de tecer uma estreita ligação entre as vitórias acompanhadas por seus
números mensais e a figura do monarca que governava Portugal nos últimos anos. Cabe
agora, portanto, debater em que sentido se pode interpretar o discurso do Mercurio Portuguez
enquanto afirmativo desta relação entre a centralização política e o exercício da guerra,
redimensionada nas últimas décadas pelas teorias da revolução militar da Europa moderna, e
que pela avaliação de Rui Bebiano o caracteriza como um discurso monárquico acerca da
guerra, ou seja, um instrumento do poder régio, voltado para a defesa de sua função enquanto
promotor e dirigente da guerra. Para tal, não pode haver melhor caminho do que analisar as
Id. Elementos de um barroco militar. In: Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, v.
11, pp. 113-127, 1989; Id. Literatura Militar da Restauração. In: Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa:
Edições Cosmos, n. 9/10, pp. 83-98, 1993; e Id. O Espelho de Marte, ou a guerra como imagem. In: Revista de
História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, v. 15, pp. 75-116, 1993.
133
notícias publicadas no periódico a respeito da ação do Estado na direção do esforço de guerra
português.
4.1 O GOVERNO DA GUERRA
Se, no auge de seu comentário à vitória portuguesa na batalha de Montes Claros,
Antonio de Sousa de Macedo consolidou no discurso veiculado pelo Mercurio Portuguez o
enaltecimento de uma época, não por acaso a época de sua publicação, e a associou à figura
do rei D. Afonso VI, naquele momento recebendo seu epíteto de Vitorioso, não foi aquela a
primeira vez em que o Mercurio operou esta ligação entre os feitos militares portugueses e a
ação governativa do monarca. Já na edição sobre abril de 1663, às vésperas portanto das
notícias desastrosas que se publicariam em maio, seu texto se concluía com a reprodução, pela
primeira vez no periódico, de uma fala de Afonso VI diante dos membros do Conselho de
Estado e do Conselho de Guerra, convocados para ouvir aquela sua proposição no dia 17 de
abril.
O rei, em tal ocasião, avaliando o empenho com que se preparavam os inimigos para a
campanha que se aproximava, fundamentalmente em direção à fronteira do Alentejo,
mostrava-se persuadido “a passar em pessoa à aquella Provincia com o Infante meu irmaõ,
que para isto se me tem offerecido”259; apesar de compreender o valor e as qualidades dos
militares que a governavam, ele pondera, “nesta determinação considero consequencias de
grande importancia; por quanto, posto que o meu exercito cõste do poder que sabeis, o
acrescentará muito a nobreza do Reyno, que me ha de acompanhar com o amor q sempre teve
a seus Reys”260. Publicando esta proposta proferida à alta cúpula do governo, Macedo
procurava demonstrar, às vésperas de uma campanha militar que se sabia decisiva para o
desenvolvimento da guerra contra Castela, o empenho pessoal do monarca, e de seu irmão D.
Pedro, incluindo aí uma convocação da nobreza portuguesa a participar do mesmo empenho.
Se o front da Restauração, por um lado, havia sido nos últimos vinte e dois anos um terreno
propício à conquista de mercês e titulações, por outro lado era conhecida a ausência de grande
quantidade de titulares nas atividades militares durante todo aquele período, para quem a
naturalidade com que D. Afonso considerava que seria seguido por toda a nobreza poderia
soar inclusive como provocação. Sabendo disso, e da oposição que estava formada ao novo
governo desde o golpe de meados de 1662, parece até irônica a afirmação com que o rei
259
260
Mercurio Portuguez. Abril de 1663. fol. 3r.
Ibid. fols. 3r-3v.
134
continua o seu discurso, ao especular sobre a quantidade de homens que se disporiam a
acompanhá-lo: “Moderarei as emulaçoẽs com que o brio de cada hũ dos Portuguezes quer ser
o primeiro a obrar”261. Em seguida, seu discurso anuncia as vantagens trazidas por sua ida ao
Alentejo, e o monarca parece dirigir-se não só aos membros de seu governo, mas diretamente
a todos os leitores do Mercurio:
Naõ tardarâõ as resoluçoens que algũas vezes se vem buscar á Corte cõ dilaçoens
muito prejudiciaes. Meus vassallos experimentarâõ que os quero defender sem
perdoar ao trabalho de minha pessoa, pois para isto me encarreguei deste governo.
Os inimigos se desenganarâõ de haverem de prevalecer contra Rey, & vassallos taõ
unidos; & os estrangeiros acabarâõ de se confirmar na opiniaõ que devem ter de
nossa constancia, & resoluçaõ.262
Ao anunciar que, com sua presença no Alentejo, mais rapidamente seriam tomadas as
resoluções militares, a fala de D. Afonso VI indica a relação direta entre o governo e a direção
da guerra, e declara sua intenção de estreitá-la ainda mais. Em uma época em que os últimos
avanços do inimigo haviam intensificado a pressão exercida sobre as populações alentejanas,
e difundido certamente por todo o reino o temor de que a vitória castelhana poderia estar se
aproximando, Antonio de Sousa de Macedo publica o discurso do rei com a clara intenção de
divulgar que a sua ascensão ao trono prometia mudanças significativas no governo de
Portugal, e em primeiro lugar mudanças nos rumos da guerra que se travava. Nada mais
pungente para alcançar tal efeito, neste período, do que anunciar a partida do próprio monarca
para o front, o seu empenhamento pessoal na defesa do reino, e do que colocar nas suas
palavras tal justificativa para haver se encarregado do governo de Portugal. Sim, porque,
como se percebe, quase um ano depois do golpe com que teve fim a regência de D. Luísa –
mas apenas alguns meses após o início da publicação do Mercurio – ainda fazia-se imperativo
justificar os fundamentos do novo governo. E mesmo que seja também impressa como
palavras de D. Afonso a preocupação com a opinião dos inimigos e dos estrangeiros em
relação à união, constância e resolução portuguesas, naquele momento parecia muito mais
importante, inclusive para redator do periódico, fazer com que os portugueses
“experimentassem” o valor e a resolução de seu rei, e seu posicionamento enquanto
comandante máximo da força militar destinada à sua defesa.
Porém, não se tratava de defender de maneira veemente uma autoridade régia
suprema, mas sim situá-la como parte integrante de um novo e eficaz governo da guerra, e de
instar, ou ao menos de fazer crer que se instava, a nobreza do reino a participar da mesma
disposição que o monarca demonstrava. Nobreza esta que, ao menos em parte, estava presente
261
262
Ibid. fol. 3v.
Ibid. loc. cit.
135
nos Conselhos convocados para aquela solenidade, como se depreende da segunda parte de
sua fala:
Com ser isto assi, & vos confessar que me leva a este intento hum grande desejo de
me ver nas hõradas occasioens da guerra que muitas vezes ouço referir, tudo quero
regular por vosso conselho, porque a experiencia tem mostrado que nelle cõsistirá o
acerto. Chamei o Conselho de Estado, & juntamente o de Guerra para vos ouvir a
todos; encarregovos pello que deveis a vossa Patria, & âs obrigaçoens que com o
sangue herdastes de vossos avós, que tantas vezes servindo, & acompanhando os
meus, a defendèraõ dos mesmos inimigos que hoje, sem escarementarem nas perdas
passadas, insistem contumazes em querer senhoreálla, me digais livremente o que
vos parecer, sem respeito á minha inclinaçaõ, mas só á cõservaçaõ publica em que
por vossas ilustres Casas ides taõ interessados; estando certos em que para o que for
necessario, naõ sò me haveis de achar Rey, mas bom companheiro de vassallos que
tanto mo merecem.263
Desta forma, a conclusão do discurso de D. Afonso, tal como publicada pelo Mercurio
Portuguez, presta-se a desmentir qualquer interpretação de que seu governo tomava as rédeas
da direção da guerra a despeito da experiência e eficiência dos órgãos que desde o início do
conflito se incumbiam dela, imprimindo até alguma pureza na curiosidade do rei em conhecer
o cenário de guerra, e divulgando sua intenção de sempre ouvir e seguir os Conselhos
presentes nos assuntos militares, inclusive em relação à mesma proposta que ali se fazia, da
jornada do monarca e seu irmão ao Alentejo. Tal precaução faz certamente lembrar a crítica
que Vieira faria ao governo e ao Mercurio no ano seguinte, ao afirmar que com a defesa de
uma guerra ofensiva estava-se atendendo mais aos clamores do vulgo do que à experiência
dos grandes. Ao mesmo tempo, porém, a mesma conclusão não desmente, e reafirma em um
tom mais forte a convocação à nobreza, lembrada do que devia à pátria, de suas obrigações
trazidas pelo sangue, e retoma o tom provocativo ao referir que da conservação pública
dependia a manutenção de suas ilustres casas nobiliárquicas.
Intrigante esta dupla mensagem que a fala do monarca envia diretamente aos nobres
membros de seu governo, mas ainda é mais significativa a impressão e publicização desta
mensagem através do Mercurio Portuguez. Se a intenção mais geral da divulgação da
proposta régia de passar ao Alentejo era declarar que a mudança de governo trazia uma nova
postura do Estado, e de seu máxime representante, em relação à sua forma de intervenção e
direção da guerra, ela passava também por demonstrar que a transformação aí operada incluía
um redimensionamento da relação entre o rei e a nobreza, sendo esta simultaneamente ouvida
e cobrada em suas atribuições políticas e bélicas. Ao término da reprodução da proposição
régia o Mercurio, como se de um observador externo ao governo se tratasse, anuncia: “Não se
263
Ibid. fols. 3v-4r.
136
sabe o que no Conselho se resolveo, mas começa a haver mostras de preparaçoens para a
jornada de S. Magestade”264.
A notícia da perda de Évora no mês seguinte justificava, porém, que não fosse feita
mais qualquer referência à ida de D. Afonso VI para a fronteira. Já a notícia dos tumultos de
Lisboa, em que claramente a derrota do exército era atribuída à culpa de membros dos mais
proeminentes do governo, certamente trouxe mais subsídios para que Antonio de Sousa de
Macedo percebesse a necessidade de divulgar em seu periódico medidas tomadas por D.
Afonso e seus ministros que comprovassem mudanças significativas no governo da guerra.
4.1.1 A nova forma de provimento: guerra, finanças e governo
Se nos meses posteriores as narrativas da vitória no Ameixal, da subseqüente retomada
de Évora, e da defesa de Almeida, trouxeram bons augúrios em relação ao futuro de Portugal
na guerra, cabia ao Mercurio Portuguez aproveitar este substrato para recolocar em debate a
atuação do governo e seu papel na construção de novas vitórias militares. Neste sentido se
pode compreender, por exemplo, as notícias de agosto do mesmo ano em relação ao estado do
esforço militar de Castela, pois o periódico refere que, além de perdidos os trens de bagagem
e artilharia na batalha do Ameixal, das dificuldades de novos recrutamentos, tanto no reino
como no estrangeiro, seria sabido que “se acha aquelle Rey com muito pouco dinheiro para a
guerra; pello que, para a continuar usa de extraordinarios arbitrios, & excessivos tributos; &
as maióres pessoas, & communidades lhe offerecem donativos; cujo pagamento será mais
difficultoso que a promessa”265. Já foi visto como freqüentemente o secretário de Estado
utilizava referências a notícias castelhanas para criar paralelos em seu discurso com a situação
vivida na guerra dentro das fronteiras portuguesas. Não seria diferente, portanto, ao tratar do
mau governo da guerra por Filipe IV, e seu impacto negativo na sociedade castelhana.
Esta comparação ficaria mais clara aos leitores do Mercurio já nas primeiras linhas do
próximo número, sobre setembro de 1663, em que se anunciava a mudança, a partir do
primeiro dia daquele mês, da forma de provimento de pão de munição, palha e cevada para o
exército e praças do Alentejo. O assento destes produtos, desde esta data, passava das mãos de
um grupo de assentistas e começava a correr pela Junta Geral do Comércio. Antes de iniciar
sua explicação sobre a novidade, o redator do periódico pondera que “porque nesta materia se
fez ao Reyno o serviço mais importante para a guerra, serà bem declarar o que até agora
264
265
Ibid. fol. 4r.
Mercurio Portuguez. Agosto de 1663. fol. 3v.
137
houve, & o que de novo se cõseguiu neste provimẽto”266. A um serviço tão importante para a
guerra prestado ao reino, Macedo dedica quase a totalidade deste Mercurio, traçando
elementos fundamentais para a compreensão de seu discurso sobre a ação daquele governo na
direção da guerra, pois se farão sentir daí por diante em vários outros momentos de sua
publicação.
Parte sua explicação do modo como era feito tal provimento até então: a cada ano,
todo mês de junho celebrava-se o contrato dos assentistas para proverem do início de
setembro até o fim de agosto do ano seguinte, obrigando-os a abastecer as praças e o exército
a cada dia uma certa quantia de pães para os soldados, e de rações de palha e cevada para os
cavalos, por preço então estipulado, conforme ao que os mesmos assentistas esperavam do
negócio. A crítica do Mercurio inicia desde já, ao dizer que a este valor os assentistas
“ajuntavão os grandes interesses que nos assentos saõ ordinarios, & em algum modo
necessarios para os réditos do dinheiro que adiantassem, & pagarem largamente a seus
feitores, & sobre tudo ficarem com os ganhos com que costumão enriquecerse”267. Segundo
Macedo, estes comerciantes conseguiam desta forma contratos “tanto a seu salvo, que no anno
proximo passado se poz hũa condição, pella qual, o pão que se comprasse atè Março, ou Abril
corria pello preço acordado, & crescendo o preço do que se comprasse de ahi em diante, seria
por conta da fazenda de Sua Magestade”268.
Como se não bastasse tamanha desigualdade, que se sofria unicamente pela
necessidade que se considerava de haver assentistas, não se vislumbrando outra forma de
provimento sem eles, o pagamento da quantia relativa ao assento fora consignado no
rendimento das décimas, tributo que desde o início da Restauração havia sido vinculado aos
gastos militares, e constituía talvez a principal fonte de arrecadação da Coroa, e também em
outros efeitos aplicados para a guerra. Mesmo assim, acrescenta o secretário de Estado, não se
satisfaziam com tal quantia, e recebiam ainda outras, “quasi de tudo o que havia no Reyno,
dizendo que assi lhes era necessario, em rezão das quebras que haveria nas cobranças”269,
obrigando-se apenas a, depois de satisfeitos, devolverem o que restasse aos ministros do rei.
Enorme, portanto, era a dependência em que estivera a Coroa em relação a tais assentistas, e
enormes eram sempre os seus lucros; e o quadro que Macedo desenha do efeito desta situação
era tão desastroso, que bem se poderia considerar que a ele se devia a posição inferior
ocupada por Portugal naquela guerra nas últimas décadas:
266
Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 1r.
Ibid. fols. 1r-1v.
268
Ibid. fol. 1v.
269
Ibid. loc. cit.
267
138
Deste modo ficavão os assentistas senhores de todos os effeitos, & os Ministros
Reaes impossibilitados, não só para fazerem pagas de dinheiro aos soldados, mas
ainda para despezas menores, & sendo necessarias tantas alem do pão, cevada, &
palha, faltava tudo, & para remedio se recorria a emprestimos forçados, a vendas
murmuradas, que não bastavão para suprir a necessidade, & quando em fim se
chegava a algũa muito precisa, pediase aos Assentistas que acudissem com algum
dinheiro, ou permitissem cobrarse; o que elles disputavão, persuadindo sempre que
lhes faltava o devido por seu assento, sem o qual não poderião continuar; & quando
se reduzião a acodir com algũa coisa, se fazião por isso extraordinarias merces a
elles, a seus parentes, & muitas vezes a seus amigos, & criados, porque a tudo
obrigava a necessidade.270
Toda a precariedade encontrada na organização do exército português até então, e da
defesa das fronteiras, precariedade que, como já foi visto aqui, fazia-se sentir tanto na rotina
dos soldados quanto das populações que com eles conviviam cotidianamente desde o início da
guerra271, cujas queixas difundiam-se rapidamente por todo o reino, era atribuída pelo
Mercurio Portuguez diretamente à ganância e à avareza dos assentistas. E o Estado português,
desde que restaurado, constituía-se até então no grande apoio de sua lucrativa atividade,
suportando a carestia que este apoio lhe causava por não ver a possibilidade de outra solução
para o abastecimento de viveres às forças militares. Os assentistas logo teriam percebido esta
dependência, e utilizavam-na não só para obterem garantia de grandes rendimentos, como
também para recusarem-se a efetuar empréstimos ou protelar seus pagamentos. Quando o
faziam, conquistavam mercês inusitadas, não só para si como para seus parentes, amigos, e –
a intenção do Mercurio claramente é de denunciar um verdadeiro escândalo – até criados!
Mas os prejuízos não paravam por aí, pois segundo Macedo a atividade dos assentistas no
cumprimento de suas obrigações gerava inúmeras queixas no exército, “justas, ou injustas”,
sobre a qualidade do pão e da cevada fornecidos, e outras mais dos Povos, que diziam que,
com o pretexto de ser para o assento, se lhes comprava pela taxa estipulada mais pão e cevada
do que era necessário, e que depois se revendia com grande lucro. Consciente da gravidade
das acusações, Macedo ainda a dilui um pouco: “posto q os Assentistas fossem pessoas de
toda a verdade, corrẽdo este negocio por mãos de muitos feitores seus, podia haver
desconfiança de alguns”272. Prudência dissimulada a desta ponderação do secretário de
Estado, já que todo o seu discurso anterior sobre os interesses e posturas dos assentistas
deixava pouca margem para que se acreditasse em sua inocência neste ponto.
270
Ibid. fols. 1v-2r.
Cf. dados e reflexões, já debatidos no presente trabalho, analisados por: CORTÉS, Fernando Cortés. Guerra e
pressão militar nas terras de fronteira. (1640-1668). Lisboa: Livros Horizonte, 1990; FREITAS, Jorge Penim
de. O combatente durante a guerra da Restauração. Vivência e comportamentos dos militares ao serviço da
coroa portuguesa, 1640-1668. Lisboa: Prefácio, 2007.
272
Ibid. fol. 2r.
271
139
Iniciado o governo de D. Afonso VI já com esta forma de provimento – o último
assento teria sido celebrado em junho de 1662, e o golpe realizado no mesmo mês – os
ministros que passaram a lhe assistir sofreram os mesmos danos, e em um momento em que
todos os meios de financiamento estavam esgotados, e em que as necessidades da guerra se
avolumavam, “chegouse quasi a desesperar do remedio; e verdadeiramente concorreo Deos
com favor muito especial pera as prevençoens da Campanha passada”273. Com este
comentário, Antonio de Sousa de Macedo chega ao ponto pretendido, repassando ao governo
anterior a responsabilidade pela causa primeira não só da precária situação do front português
nos últimos anos, como também das dificuldades enfrentadas na defesa contra as tropas
castelhanas que acabaram por tomar Évora naquele mesmo ano, já sob o novo governo por ele
representado. Apenas a intercessão do favor divino pôde, até então, evitar uma derrota
definitiva do exército e do reino de Portugal, tão depauperados pela longa manutenção de um
sistema de provimento falho, e vicioso. Agora, porém, terminado o prazo do último de tão
nefastos contratos, iria Deus por outra via estender seu apoio aos portugueses, podendo enfim
fazer do governo político de Portugal o seu instrumento, inspirando o seu principal ministro, o
conde de Castelo Melhor.
Ao escrivão da puridade Afonso VI teria encarregado o principal manejo dos negócios
referidos, e o aperto com que ficava a Coroa lhe dava desde sempre o maior cuidado, até que,
estando “reduzida a Companhia geral do Comercio do Brasil”, o conde percebeu, como que
inspirado por Deus,
que se podiaõ escusar aquelles assentos, administrando a mesma Companhia o dito
provimento por conta de S. Magestade, antecipando ella o dinheiro, não levando
interesses, & satisfazendose de consignação proporcionada; com o que cessariaõ os
lucros dos Assentistas, ficariaõ livres as consignaçoens que sobejassem, seria o pão,
& cevada por conta de S. Magestade qual convinha, & não haveria murmuração de
que se comprava por taixa para revender sem ella.274
As vantagens da nova forma de provimento, portanto, são desde logo anunciadas: fim
dos lucros abusivos dos assentistas, liberação de verbas para outros gastos, e, não menos
importante, fim das murmurações sobre a má fé dos responsáveis pelo abastecimento das
forças militares. Tudo porque, através do intermédio da Companhia Geral do Comércio do
Brasil, a Coroa passaria a se encarregar mais diretamente do fornecimento de pão, cevada e
palha, retirando de cena os interesses escusos que o inflacionavam, e causavam queixas e
indignação por todo o reino. O conde de Castelo Melhor, que havia sido, como constava no
primeiro número do Mercurio Portuguez, escolhido para atuar como um primeiro ministro,
273
274
Ibid. loc. cit.
Ibid. loc. cit.
140
cargo para que era necessário ser “pessoa das maiores do Reyno, de juizo, valor, expediente,
& fidelidade digna de tão grande lugar”275, confirmava finalmente tais atributos, e era
apresentado, agora nomeadamente, como o idealizador deste re-ordenamento do
financiamento do esforço de guerra português.
Em projeto tão ambicioso, não faltariam dificuldades a serem apontadas, e também o
Mercurio não as deixa de referir, como, por exemplo, que a de que comunidade da
Companhia não conseguiria fazer entrega pontual dos víveres, pela grande variedade de
detalhes englobados pelo provimento, ou o fato de que as despesas com a Armada
impossibilitariam o adiantamento da quantia necessária ao provimento. Estes obstáculos,
porém, são colocados para que se visualize em seguida o empenho de Castelo Melhor em
demovê-los. De acordo com o redator do periódico, “vendo que todos aprovavão o arbitrio, &
só duvidavão da execução” o escrivão da puridade insistiu em facilitá-la: “fez papeis,
respondeo às objeçoens, fizeraõse Juntas, atè que ultimamente o zello dos Ministros da
Companhia géral, que sò reparava na possibilidade, se deixou persuadir das rezoens, & das
instancias, & se esforçou a tomar sobre si o grave peso deste negocio”276. Entre a aprovação
do arbítrio e a confiança na execução do novo modo de provimento, mas principalmente entre
voltar-se o zelo dos ministros para a possibilidade de sua realização e atentarem para as razões
por que deviam embarcar naquele empreendimento, aí teria se situado a diligência do conde,
responsável, portanto, não só por sua idealização como também por sua aceitação entre os
membros da Companhia.
Repare-se em que termos o Mercurio Portuguez publica o modo como o projeto foi
proposto, e posto em prática: objeções, respostas, papéis, juntas, razões; Antonio de Sousa de
Macedo faz questão de veicular que as decisões do governo quanto ao governo da guerra são
tomadas mediante o debate de seu conteúdo e de suas implicações, de sua viabilidade. Assim
como aparecia meses antes na fala do monarca, a mesma abertura para o diálogo era agora
encontrada na atuação de seu principal ministro. Outra semelhança, porém, pode ser também
detectada: em ambos os casos, o periódico dava a entender, alguns setores da sociedade
precisavam ser pressionados pelo governo a agir de acordo com o bem público, no caso da
proposição do rei, a nobreza convocada a ir ao Alentejo, e quando do projeto de Castelo
Melhor, os ministros da Companhia do Comércio instados a assumir os riscos do
assenhoreamento do provimento das forças militares. A diferença, agora, era que se
demonstrava explicitamente haver grupos agindo mais em nome de seus interesses do que da
275
276
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1663. fol. 3v.
Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fol. 2v.
141
segurança do reino, e que estes precisavam ser deslocados de suas tradicionais atividades,
como se fez no caso dos assentistas.
Obviamente, se Antonio de Sousa de Macedo procurava alcançar alguma credibilidade
para o que publicava em seu periódico277, não poderia simplesmente inventar ou exagerar uma
tal mudança na forma de abastecimento do exército alentejano, nem poderia escrever absurdos
sobre o modo como ela fora pensada, e negociada nos últimos meses em Portugal. Como se
pôde observar em algumas ocasiões, não está na alteração da informação a principal estratégia
do Mercurio Portuguez, mas a ênfase ou a interpretação particular sobre determinado aspecto,
assim como algumas prudentes omissões. No presente caso, um documento publicado
recentemente entre os anexos do livro O Ministro de D. Afonso VI, de Francisco da Silveira de
Vasconcellos e Souza, traz uma importante contribuição, como o autor pretendeu, para a
compreensão da atuação daquele governo marcado pela liderança do conde de Castelo
Melhor, mas também para a análise desta edição do Mercurio sobre setembro de 1663. Tratase de um parecer, indicado como de março de 1663, de responsabilidade do próprio conde, em
que se responde a uma consulta feita pelo rei, justamente a respeito dos problemas
representados pela Junta Geral do Comércio em relação ao projeto de transferência do assento
do provimento278.
Nele, mesmo que indiretamente, percebe-se como, de fato, a postura inicial da Junta
dirigente da Companhia em relação aos planos do governo parece ter sido bem aquela referida
pelo Mercurio. De acordo com o parecer de Castelo Melhor, a resposta da Junta à proposta
emitida pelo monarca apresentava as dificuldades observadas para a realização do provimento
do Alentejo através da Companhia; de maneira geral, trazia a consideração de que aquela era
uma tarefa de grande dificuldade de efetivação, para a qual ela não possuía experiência,
conhecimento, nem cabedais, além de ser alheia às suas funções regulares no reino. Antes
disso, porém, a Junta não deixava de avaliar “os grandes interesses que a fazenda de V. Mde
tirará de se conseguir este negócio”, em que dizia apresentar tais dificuldades “mais com a
tenção de que V. Mde venha em conhecimento, do grande serviço que ela lhe fará neste
277
A conquista de credibilidade será sempre fundamental na construção do discurso dos reportórios de notícias
desde suas origens, o que se avalia pela existência simultânea de outros meios pelos quais determinadas
informações corriam, ou eram necessariamente conhecidas por parte dos leitores. No caso dos periódicos, que
pretendiam criar uma relação de maior durabilidade com seu público, tal exigência fazia-se ainda mais premente.
Cf. para o caso inglês, a atenção dada para as estratégias de credibilidade na recente obra: RANDALL, David.
Credibility in Elizabethan and Early Stuart Military News. London: Pickering & Chatto, 2008.
278
Resposta à Consulta que fez a V. Mde a Companhia do Comércio, em que propunha as dificuldades e
objecções que tinha a haver de correr com o assento. In: SOUZA, Francisco da Silveira de Vasconcellos e. O
Ministro de D. Afonso VI. Luís de Vasconcellos e Souza 3º Conde de Castello Melhor. Porto: Câmara Municipal
da Vila Nova de Foz Côa, 2001. pp. 184-189.
142
negócio do que com ânimo de se deixar vencer de nenhuma”. Havendo compreendido “que
este é o remédio do Reino (...) não se pode crêr que haja obstáculo que não vença por se
conseguir o em que vai tanto”279. Desta forma, os representantes da Companhia haviam
realmente, como referiria o Mercurio, aprovado o arbítrio, mas duvidado da execução. E se
esta era uma forma dissimulada de ostentar uma oposição ao intento, então o comentário
subseqüente do parecer do escrivão da puridade revestia-se de fina ironia: “e assim me parece
que V. Mde deve mandar agradecer à Junta o ânimo que mostra em todas as matérias que
tocam à conservação do Reino e serviço de V. Mde, com a consideração tão acertada de
querer antes duvidar alguma do que faltar depois”280. Com esta observação Castelo Melhor
parte para responder propriamente às objeções colocadas pela Companhia, e o teor de sua
resposta confirma haver alguma dissimulação naquele elogio, pois parece se dirigir de fato,
como depois comentaria o secretário de Estado em seu periódico, a quem só reparava na
possibilidade ou não da execução do contrato, mas era instado a reparar nas razões que havia
para tal.
É a impressão que fica da leitura da postura do parecer em relação à principal
dificuldade apontada pela Junta, de que o negócio do provimento seria “grande empenho para
ela e o meio de sua profissão”. Mesmo com algum comedimento, Castelo Melhor parece estar
respondendo a um desaforo: “Será conveniente que V. Mde mande declarar à Junta, pois
parece o não tem entendido ainda que V. Mde se há-de valer daquela quantia que pagou aos
juros dos interessados, gastos das armadas ficar todos os anos de avanço à Companhia”; ou
seja, era pelo empenho da fazenda real que grandes despesas eram poupadas pela Companhia
desde sua fundação. E se àquela altura podia então dizer-se senhora do comércio, “parece que
deve contribuir com a soma que lhe fica”281. O tom era de forte reprovação da resistência
oferecida por um grupo que, de acordo com os argumentos do conde, devia ao governo, e seu
empenho, sua ascendência sobre o comércio português. Sua conclusão não deixa dúvidas:
Um Príncipe não poderá fazer coisa pior tomada em todo o mundo que fazer um
poderoso a troco de deixar muitos destruídos. Poderosa ficará a Companhia se,
juntando-se os seus cabedais uns a outros, se lhe não tirar nada deles; miseráveis e
pobres ficarão todos os vassalos de V. Mde se, para constervar este poderoso fôr
caindo sobre eles todo o castigo, juntando tributo a tributo e trabalho a trabalho,
trabalho a trabalho no ir e mandar defender o Reino nas fronteiras e tributo a tributo
para se sustentar nelas o exército, ficando só isento de tudo isto o poderoso, que
tributo nem trabalho cai nele, um porque não pode outro porque dizem não convém.
Se a troco de tanto trabalho se há-de conservar a Companhia, pouco importa a sua
duração depois da ruína total do Reino, pois se a Companhia entender que há de
279
Ibid. p. 184.
Ibid. loc. cit.
281
Ibid. loc. cit.
280
143
contribuir para a defesa com aquilo que lhe ficar, logo fica satisfeita a dúvida do
empenho que a Companhia considera ter neste negócio.282
Fica nítido, portanto, que politicamente não terá sido uma empreitada fácil, como
noticiou o Mercurio, convencer os ministros da Companhia a fazer o papel de um grande
assentista e cuidar do abastecimento do Alentejo. Negociações intensas certamente travaramse em torno de muitos itens do contrato, como o volume do provimento, a atribuição dos
preços dos produtos, e as garantias oferecidas pela Coroa. Seja como for, o fato é que o
projeto de mudança na forma de provimento do exército e das praças militares da província se
concretizou, e o periódico do secretário de Estado não precisou ser tão incisivo em relação ao
significado dos obstáculos postos pela Junta quanto o fora Castelo Melhor em seu parecer.
Mesmo assim, Antonio de Sousa de Macedo não se furtou a trazer em sua notícia os detalhes
do contrato realizado no início do mês, e avaliar suas conseqüências mais imediatas. O
registro é bastante peculiar e significativo, principalmente por se encontrar neste periódico,
impresso em Portugal e vendido a entre cinco e dez réis o exemplar, pelo que merece
transcrição integral, e leitura atenta:
Obrigouse a prover desde logo nas Praças, & Exercito de Alentejo seis mil moios de
trigo, & onze mil de cevada para este anno; que he a quantidade que se estima ser
necessaria pera o gasto ordinario (alem do mais trigo, & cevada, que por ordẽ de S.
Magestade se vai metendo nas Praças pera sobrecelentes dellas, & pera as maiorias
do Exercito.) Estimouse cada alqueire de trigo a duzentos & trinta reis, & cada
283
alqueire de cevada a
posto nas praças que se lhe sinalarão; o que tudo
importou seiscentos & sessenta mil cruzados, entrando quinze por cento das quebras
que poderá haver na cobrança, da qual quantia sòmente se lhe derão consignaçoens.
E por este preço se obrigou a Companhia ao provimento, suprindo o mais em caso
que subisse, para Sua Magestade lho haver de pagar depois de feitas cõtas; como
tambem ela restituiria o que sobejasse, se o pão, & cevada custasse menos. De mais
disto se haõ de pagar aos feitores por conta da fazenda Real.
Dispozse logo a execução como convinha, encarregando mais em particular seu
manejo aos Deputados da mesma Junta João Guterres, & Manoel Martins Medina,
zelosos, inteligentes, & de todo o credito, & confiança. Por falta da novidade està o
anno tão caro, como se vé; & com tudo se entende que sendo os preços do trigo, &
cevada varios, conforme a parte aonde se compra, sahirá o trigo hum por outro posto
nas praças a dezaseis vintẽis, pouco mais, ou menos o alqueire, & a cevada por
ametade; o q se se fizera por assento, não custaria menos de quinhentos reis
amassado, com o que jà se vè o dinheiro que se poupa, & continuandose em
melhores annos, se pouparà muito mais.
Sobre tudo se achão livres todas as mais consignaçoens. Para o amassilho se tem
dado a ordem conveniente, a preço muito moderado, correndo pelo Vèdor géral do
Exercito. A palha com ser o anno tão falto della, custa ametade do que houvera de
custar por assento; e tudo neste mez se tem provido com grande satisfação, &
pontualidade.284
282
Ibid. pp. 184-185.
Neste trecho há um erro de impressão no Mercurio, que deixa esta lacuna onde se deveria encontrar o preço
estipulado do alqueire da cevada.
284
Mercurio Portuguez. Setembro de 1663. fols 2v-3r.
283
144
Desta forma, após fazer longa relação dos danos sofridos nas últimas décadas em
Portugal em decorrência de um sistema falho, e corrupto, de provimento, e após divulgar o
grande empenho com que o escrivão da puridade, pela primeira vez nomeado no periódico,
trabalhara para a sua superação, Macedo divulga em pormenores o novo sistema, pormenores
que passo a passo mostravam as soluções alcançadas para os problemas vividos até então. Em
primeiro lugar, o contrato trazia a obrigação de abastecimento da quantidade de trigo e cevada
estimada como necessária para a campanha, e mesmo assim o governo ainda tratava de
diretamente fornecer às praças um pouco mais daqueles produtos, garantindo o sobressalente.
O Mercurio Portuguez informa ainda o preço estipulado a ser pago pelo governo para cada
alqueire dos produtos, e a soma total do contrato, 660 mil cruzados incluídos os quinze por
cento que protegeria a Companhia do prejuízo decorrente de quebras nas cobranças. Uma
segurança, que, como foi relatado pelo periódico, a Coroa oferecia também aos assentistas,
mas o grande diferencial é que agora as consignações, com que até então ficava presa grande
parte da arrecadação das décimas, restringiam-se ao cumprimento da quantia total
determinada no contrato.
O primeiro resultado da mudança no provimento seria observado no preço final do
trigo e da cevada nos postos de venda, mesmo que ainda caro, já notadamente menor do que
seria no caso da manutenção do sistema de assentos. Da mesma forma sairiam mais em conta
os preços do amassilho e da palha, tão importante para a cavalaria. Em anos de melhores
colheitas – o Mercurio nunca poupa expectativas – o preço deveria baixar ainda mais. O outro
e ainda mais relevante resultado era o fato de que, pela redução de consignações, todo o mais
rendimento, que antes ficava atrelado às exigências e à ganância dos assentistas, estava agora
livre para outros investimentos. Por último, apesar das dificuldades vislumbradas meses antes
pelos membros da Junta do Comércio, o periódico declarava que naquele mês já o provimento
corria na quantidade e pontualidade que se esperava.
Certamente a leitura desta notícia devia causar grande impacto, pela divulgação de
uma análise tão detida do novo contrato de abastecimento de víveres ao exército, pois que
ainda hoje impressiona encontrar em uma publicação ligeira daquele tempo tamanho volume
e densidade de informações. Pode-se já perceber que, se de fato passava por função do
periódico a defesa da relação intrínseca entre o Estado e a direção da guerra, não era através
da celebração dos atributos guerreiros do poder monárquico que Antonio de Sousa de Macedo
se propunha a fazê-lo. Como quem não podia deixar qualquer dúvida sobre o objetivo da
publicação tão detalhada daquela notícia, o redator conclui: “Do sobredito se infere quanto se
deve ao cuidado, & invectiva de quem o ordenou: o serviço que faz a Cõpanhia: o
145
melhoramento de nossas cousas, & como Deos nosso Senhor por todas as vias nos encaminha,
o que nos deve animar mais, & desenganar nossos contrários”285. À proteção de Deus, ao
serviço da Companhia de Comercio, mas principalmente à determinação e ao modo
repreensivo pelo qual o conde de Castelo Melhor pressionou a Companhia a desempenhá-lo; a
esta trindade o leitor do Mercurio Portuguez deveria agradecer a transformação que se
acompanhava no governo do esforço de guerra português, e nos rumos do conflito travado já
há mais de duas décadas contra Castela.
4.1.2 Os prognósticos do bom governo
Na edição sobre dezembro de 1663, quando inicia uma recapitulação dos principais
feitos militares da campanha que terminava, um procedimento que se repetiria a partir daí nas
outras edições de fim de ano, Macedo não hesita em relacionar as felicidades vividas com a
ação do governo, mesmo tendo que para isso inverter a cronologia dos acontecimentos:
Chamo a este anno feliz, porque (como vimos na Rellaçoens de seus sucessos) nelle
estabeleceo elRey nosso Senhor o acerto de seu governo. Nelle recolhemos hũa
riquíssima Frota, & depois sinco navios juntos do Brasil, & outros das Conquistas.
Nelle se deu aos assentos, & provimento das praças, & exercitos hũa nova fórma,
que acrecentou muito o cabedal para continuar a guerra. Nelle vencemos, &
ganhamos inteiramente a mais gloriosa batalha que virão muitos seculos.286
Se o término do ano mostrava-se boa ocasião para referir em conjunto as vitórias
portuguesas contra o inimigo, era propícia também para demonstrar que, além do brio dos
soldados e do valor dos comandantes do exército, concorreram decisivamente para a
reviravolta narrada pelo Mercurio Portuguez ao longo dos últimos meses a política para a
guerra empreendida por D. Afonso, e pelo esforço de seus ministros.
A ênfase do discurso do periódico nesta capacidade e eficiência do governo na direção
da guerra, principalmente em relação à sua sustentação material, não ficaria isolada, portanto,
naquela divulgação da mudança da forma de provimento do exército e das praças. Como o
próprio secretário de Estado frisara, uma das melhores conseqüências do contrato com a
Companhia de Comércio era o redirecionamento de fluxos de arrecadação para outras áreas,
até então constantemente negligenciadas, de investimento associadas ao fortalecimento do
poderio militar do reino. Cabia ao Mercurio, daí por diante, comprová-lo. O exemplo mais
patente do esforço de Macedo neste sentido talvez esteja na notícia do pagamento realizado às
tropas em campanha. De acordo com seu próprio discurso quando da alteração no provimento,
285
286
Ibid. fol. 3r.
Mercurio Portuguez. Dezembro de 1663. fol. 5r.
146
devia-se ao grande lucro dos assentistas muitas vezes a impossibilidade da distribuição do
soldo no exército, e sempre o atraso em seu pagamento. Mas o novo governo mostra que
resolveu este problema já antes do início da campanha militar de 1664. Na edição de abril,
imediatamente após comentar do aparecimento de cartazes do duque de Ossuna na Beira,
prometendo dinheiro e postos a quem lhe enviasse informações sobre a praça de Almeida, e
ajuda para tomá-la, e em seguida fazer menção à resposta valorosa que lhe foi enviada pelo
governador Pedro Jacques de Magalhães, o Mercurio anuncia que no dia 8 daquele mês
“partiraõ de Lisboa para o exercito de AlẽTejo 147 mil cruzados, q (àlẽ de outras partidas q de
pouco tempo a esta parte se enviaraõ) foi hũa bẽ cõsideravel cõtia, fezse paga de dous meses a
todo o exercito, & hũ dia destes vai dinheiro para outros dois”287.
Além de demonstrar, sub-repticiamente, que com o pagamento das tropas se minorava
a influência negativa que cartazes como o de Ossuna poderiam trazer para a defesa do
território, a intenção mais óbvia de Macedo era evidenciar os frutos alcançados pela nova
política de provimento, pois que já apareciam recursos que podiam ser destinados para o
pagamento adiantado de quatro meses – a previsão é bastante otimista – do soldo de todo o
exército do Alentejo. Até porque esta informação integrava, com efeito, um conjunto de
notícias voltado para divulgar os preparativos feitos para a campanha militar que se iniciava,
que regularmente se encontrava nas edições de março, abril e maio de cada ano. Do ponto de
vista da narrativa de guerra, estas notícias funcionavam como um rufar dos tambores que
anunciavam a proximidade de grandes confrontos, e prognosticavam a vitória portuguesa.
Simultaneamente, do ponto de vista do discurso sobre a direção da guerra, eram provas da
eficiência do governo em questão.
Não por acaso, na mesma edição de abril de 1664, quase na seqüência do pagamento
das tropas, é que se noticiava pela primeira vez a ocorrência de exercícios militares no Paço
da Ribeira, à vista do rei e do infante, nos dias 14 e 17 daquele mês, como foi observado no
capítulo anterior, notícia que se concluía pelo comentário de que “notouse ao embarcar de
ambos estes terços que hião os soldados tão contẽtes, & ligeiros, como se fossẽ para hũ
bãquete muito festivo”288. Se a conseqüência de tanta alegria deveria ser a vitória portuguesa,
sua causa era o empenho do novo governo representado pelo Mercurio. A conclusão da
edição, como foi também já comentado, anunciava, antes até da decisão do conselho de
Guerra, que o grande, alegre, e já devidamente pago, exército português seria utilizado
287
288
Mercurio Portuguez. Abril de 1664. fol. 2r.
Ibid. fol. 2v.
147
ofensivamente naquela campanha, mas dava também ocasião a que Macedo analisasse a
situação dos dois oponentes da guerra às vésperas da campanha:
Na provincia de AlẽTejo temos hum bisarro exercito, q muito brevemente sairà em
cãpanha. Os Castelhanos da grande rota da batalha do Canal, ficaraõ taõ arruinados,
que ainda que (por de algum modo satisfazerem a reputação de seu poder, & as
promessas com que, como costumaõ, entretiveram, & enganaram as Naçoẽs
Estrangeiras este anno) fizeraõ todo o esforço, não puderão ajuntar cousa que nos dé
cuidado, segundo as notícias que atègora temos. Por lhes faltar infantaria, arrastão â
fronteira todos os lavradores, & sómente se fião na cavallaria, de que tem numero
considerável, posto que muita della não he boa. A nossa gente com a vitoria passada,
com boas pagas, & com bõ General, & mais Cabos, està tão animada, que, com o
favor de Deos, parece o bom sucesso infallivel; o que no inimigo passa pelo
contrario.289
Quando narrava as escaramuças e as batalhas em que se envolvia o exército português,
o Mercurio Portuguez freqüentemente assumia a posição de um analista de guerra, utilizando
elementos variados da arte militar, e até mesmo condenando alguns, para demonstrar a
superioridade das forças lusitanas, bem como do seu desempenho tático. Já nestas outras
ocasiões, em que suas linhas se dedicavam a expor os preparativos que se realizavam para a
organização logística da frente militar nos primeiros meses do ano, sua análise ascendia a uma
escala maior, e apresentava ao leitor um diagnóstico das condições enfrentadas pelos
oponentes daquela guerra na montagem de sua capacidade bélica. Nesse âmbito, o discurso do
periódico sobre a guerra era constantemente permeado por considerações acerca da conjuntura
política vivida em Lisboa e Madrid, e seu impacto sobre as estratégias militares levadas a
cabo pelos governos dos dois reinos, como no exemplo acima, ou como na comparação entre
a falta de dinheiro e excesso de tributos em Castela e a melhor forma de aproveitamento de
recursos representada pelo novo contrato de provimento do front alentejano, tecida entre as
edições de agosto e setembro de 1663.
Mas era nos prognósticos traçados por Antonio de Sousa de Macedo, nas primeiras
edições de cada ano, que esta sua estratégia podia se desenvolver plenamente. Nas últimas
linhas da edição de dezembro de 1663, após concluir a recapitulação dos feitos daquele “anno
feliz”, o secretário de Estado anunciava que, no número subseqüente, “Mercurio (que He Rey
da Mathematica) fará hum juízo do se pode esperar na campanha seguinte”290. Daí por diante,
toda edição de janeiro traria uma previsão para o ano que começava, porém não baseada em
observações astrológicas, como era comum encontrar-se na época. Suas conjecturas se fariam
a partir de uma interpretação da conjuntura político-militar em que se inseriam Portugal e
Castela; tratava-se de uma “Astrologia de estado”, como gracejaria Macedo no primeiro
289
290
Ibid. fols 4r-4v.
Mercurio Portuguez. Dezembro de 1663. fol. 6r.
148
número de 1666, criticando diretamente aqueles que, como o padre Antonio Vieira, valiam-se
de juízos astrológicos como instrumento de intervenção na política portuguesa: “Saber de
certo o successo é contingente, reservado a sabeduria divina. O em que Mercurio se affirma,
& empenha seu credito he, que nesta duvida formarà Portugal hum bisarro exercito para a
campanha seguinte com mayores desígnios q todos os passados”291. A dúvida a que se referia
advinha de que as “influẽncias politicas” prognosticavam que, morto o rei castelhano em
setembro de 1665, seus ministros, desobrigados de lisonja, tratariam da paz, mas que a rainha
regente poderia querer não deixar tão rapidamente o ditame do rei defunto, e demonstrar-se
afeita à guerra para parecer mais varonil;
Com tudo a necessidade, o juizo os clamores dos povos & os conselhos dos
Principes amigos nos mostram as estrellas, que teraõ grande força para persuadir o
que convem. Mas ainda no modo de tratar se podem recear cautellas; porém estâ o
Sol muyto benigno â prudencia dos Portugueses.292
Assim, Macedo zombava dos prognósticos astrológicos, seus escritores e seus adeptos,
parodiando suas influências e astros, enquanto emitia seu juízo da política castelhana sob a
regência de Mariana de Áustria, concluindo com a garantia aos seus leitores da formação de
um poderoso exército para aquela campanha, garantia que lhe era possível não pela habilidade
de leitura dos céus, mas pela condição de membro proeminente do governo. E se mais
minúcias não revelava sobre os rumos da guerra, era porque, como tergiversara na edição de
janeiro de 1665, “Marte (a quem elle obedece como a senhor desta materia) lhe manda que as
naõ diga”293.
Porém, dos três escritos durante o período de sua redação do Mercurio, o prognóstico
de 1664 é o mais exemplar desta sua utilização como ponto de partida para a divulgação de
uma análise em confronto das políticas militares de Portugal e Castela. Seu texto inicia pela
observação de que Mercúrio, como rei da matemática, “achou facilmente os Astros benignos”
aos portugueses, mas que, ponderando “que suas influencias obedecem ao arbitrio, &
disposicoẽs humanas, & obrão segũdo o estado das cousas”294 lhe parecia mais certo levantar
um juízo político, inferindo a partir destes antecedentes as suas previsões para aquele ano.
Sendo assim, e antes de mais nada, Macedo apresenta aos leitores as bases de sua análise:
Por seis cauzas se pódem, & devem moralmente coligir, & medir os progressos da
guerra. Justiça das Armas; porque não sò grangea o favor do Ceo, mas tambem
anima os vassallos. Numero, & valor de soldados; que he o braço com que se obra.
Copia de mantimentos; de que pende a conservação dos exercitos. Cabedal de
dinheiro; que he o nervo que tudo sustẽta. Disposição das cousas; da qual
291
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1666. fol. 2v.
Ibid. fols. 2r-2v.
293
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1665. fol. 4v.
294
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 1v.
292
149
ordinariamente resultão os successos; & seja licito (dentro dos limites Christãos)
ajuntar a boa fortuna, porq esta alenta os combatentes, atemoriza os cõtrarios, & tẽ
grãde imperio na opiniaõ.295
Vale a pena aqui destacar como, nesta passagem, a argumentação do Mercurio cercase do tipo de elementos encontrados comumente nas obras de seu tempo dedicadas à política e
à arte militares, voltadas em grande parte para o debate de temas encontrados nos textos de
Justo Lipsio e Giovanni Botero, que vinham particularmente influenciando a produção
intelectual daquela geração em Portugal296. Para qualquer leitor habituado a tais referências,
era difícil não reconhecer, por exemplo, a referência ao dinheiro como nervo da guerra
encontrada em Lipsio297, sua valorização da justiça da guerra como o primeiro aspecto a ser
considerado pela prudência militar de um governante298, ou o modo de Botero identificar o
papel da fortuna, cristãmente considerada, no ânimo dos combatentes299, além da, de maneira
geral, valorização da análise das condições materiais para o empreendimento bélico, e da
capacidade militar no âmbito maior da governação, abordagens que revelavam a sintonia entre
os dois autores. O Mercurio Portuguez fazia questão de indicar a tais leitores que os
fundamentos de sua análise da realidade portuguesa diversas vezes tecida em suas edições
vinculavam-se estreitamente às mais relevantes doutrinas políticas debatidas na época. Em
seguida, analisando sobre tais bases a situação em que se encontravam Portugal e Castela, e
conjecturar a respeito dos próximos movimentos daquela já longa guerra, caberia ao periódico
demonstrar que também a política objetivada pelo governo português partia também dos
mesmos fundamentos.
Daí por diante, Macedo segue seu discurso observando a situação da guerra presente
através destes seis aspectos. Sobre a justiça da causa do monarca português, é taxativo,
dizendo rapidamente ser inconteste, inclusive qualificada por demonstrações divinas, sendo
reconhecida mesmo pelos castelhanos que “sô por huma cega razão de estado a
295
Ibid. loc. cit.
Para esta influência, cf. BEBIANO, R. op. cit. pp. 205-214; 395-406, e também: TORGAL, Luis Reis,
Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981, e
ALBUQUERQUE, Martim de. Um Percurso da Construção Ideológica do Estado: a Recepção Lipsiana em
Portugal. Lisboa: Quetzal Editores, 2002.
297
“Luego al príncipe le conviene, antes que dé principio de la guerra, tratar con mucho cuidado de la gente y
gastos de Ella. Y mayormente del dinero, el cual es tan necesario que, como los médicos afirman no poder
caminar los hombres sin nervios, así tampoco la guerra no puede tener progreso sin el que le da vida y
movimiento”: LIPSIO, Justo. Políticas. Madrid: Tecnos, 1997. p. 227.
298
Ibid. pp. 217-222.
299
“A primeira coisa com que o Capitão anima os soldados é a fortuna, e esta não é senão o concurso da virtude
divina, com a qual a Divina Majestade acompanha os que Ela escolhe como ministros da sua justiça ou como
executores da sua vontade”: BOTERO, João. Da Razão de Estado. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação
Científica, 1992. p. 215.
296
150
impugnam”300. Como se percebe, embora fosse um dever moral incluir entre os fatores
determinantes da vitória militar a justiça das armas, já não era mais tempo em que se fizessem
necessárias longas digressões justificativas da monarquia dos Bragança, tarefa a que outrora o
próprio Antonio de Sousa de Macedo havia se dedicado com tanto empenho301.
Sua análise segue de pronto ao número e valor dos soldados empenhados na guerra.
Argutamente, o secretário de Estado afirma que, em se tratando de soldados naturais, o
número dos portugueses é igual, ou maior do que o do exército castelhano, pois se encontrava
Castela menos povoada, e que com admiração se observava como a cada ano aumentavam as
tropas lusitanas. Por ser assim, os inimigos precisavam recrutar grande número de soldados
estrangeiros, que causavam grande despesa e ainda muitos danos às populações que os tinham
que alojar. Como se esta observação pudesse trazer à mente do leitor os prejuízos causados
pelos combatentes estrangeiros associados ao exército português, Macedo arremata: “Nós
tambem nos ajudamos de naçoẽs, mas com comodidade, porque, não necessitando de tam
grande numero, trazemos os que nos bastem, & não o que nos arruínem”302. A presença de
soldados estrangeiros em Portugal decerto também era tema polêmico, tanto porque interferia
na hierarquia do exército quanto pelas dificuldades ocasionadas por seu alojamento nas
fronteiras, principalmente no Alentejo303, e esta passagem traz um bom exemplo do modo
como freqüentemente o Mercurio trata da questão, destacando a presença estrangeira como
um importante auxílio, mas não determinante, para a conclusão próxima da vitória
portuguesa, e tentando diluir as críticas a ela ao apontar danos maiores ocasionados por
mercenários do lado castelhano. No caso presente do prognóstico, o argumento servia acima
de tudo para contornar o fato de que, somada a presença estrangeira, o tamanho do exército
300
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. loc. cit.
Principalmente enquanto atuava na diplomacia portuguesa em Inglaterra, integrando primeiramente a
embaixada de D. Antão de Almada, e permanecendo depois em Londres como residente, Macedo comprometeuse com a tarefa de coligir argumentos a favor da Restauração da monarquia portuguesa, e dos direitos ao trono da
casa de Bragança. Sua atividade resultou na Lusitania liberata ab injusto Castellanorum dominio restituta
legitimo Principi, Serenissimo Joanni IV Lusitaniae Regi Potentíssimo, publicada em Londres em 1645, pela
oficina de Richard Hearn, obra síntese da defesa dos Bragança, voltada para a divulgação nos centros políticos
de toda a Europa, mas também os livros Juan Caramuel Lobkowitz religioso de la orden de Cister, Abad de
Melrosa, etc. Convencido en su libro intitulado Philippus prudens Caroli V. Imp. Jilius Lusitaniae etc. legitimus
Rex demonstratus, Impresso en el ano de 1639 y en su respuesta al manifiesto del Reyno de Portugal, impresso
en este ano 1642, uma virulenta resposta à obra do abade cisterciense sobre os direitos de Felipe IV, e
Genealogia regum Lusitaniae: Serenissimo Principi Theodosio principi lusitaniae, & C.: Serenissimi ac
potentissimi Regis Ioannis IV, primogenito. D., um opúsculo com os argumentos genealógicos a favor dos
Bragança, ambos publicados por Hearn, em 1642 e 1643, respectivamente.
302
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 3r.
303
Cf. sobre os contingentes estrangeiros da década de 1660, e os conflitos decorrentes de sua presença,
FREITAS, J. P. op. cit. pp. 89-96 e 179-185. Sobre especificamente o contingente inglês, informações detalhadas
são trazidas por CHILDS, John. The British Brigade in Portugal, 1661-1668. In: Journal of the Society for Army
Historical Research, v. 53, pp. 135-147, 1975.
301
151
inimigo era normalmente superior ao do português. Quanto à cavalaria, porém, o redator do
periódico admite a superioridade numérica da força contrária, mas pondera que “suprese o
numero pella ventajẽ do valor, que de todos os seculos publicaõ as historias, & no presente
respeitaõ os Castelhanos pello que experimentaõ”304. Um modo simples, e rápido, de tentar
inspirar desprezo pela sempre temida superioridade da cavalaria castelhana.
Acerca dos mantimentos, em que também costumeiramente pesava o fato de Castela
possuir maior produção agrícola, Macedo argumenta que, apesar disso, além da fertilidade do
Alentejo, Portugal os conduzia de forma mais cômoda, pelo rio Tejo e pelo rio de Alcácer, de
modo que com apenas poucas léguas por terra se os remetia a qualquer parte do reino, e que
os castelhanos, não possuindo todo o necessário na região da Extremadura, transportava-os do
interior com muita dificuldade. Mas é em relação ao dinheiro, nervo da guerra, que o
Mercurio desenvolve com mais afinco seu discurso, até porque, indiretamente, tratava-se aí de
medir o impacto da nova forma de provimento determinada no ano anterior na utilização dos
recursos pelo governo. Por tal, e pelo quadro ali delineado por Macedo, o parágrafo merece
ser citado integralmente:
O cabedal de dinheiro, q he em Castella maior, se faz menos efficaz pello mao
governo, que já não tẽ emmenda. Os latrocinios dos administradores, & Cabos, saõ
inexcusaveis; os desperdiços saõ incriveis; em conduzir Estrangeiros sem fruto
consume excessivas contias. Finalmente, depois de haver esgotado todo o genero de
tributos, & alvitres, se vè em estado, que de materia villissima fez dinheiro de valor
mui subido, com que tudo lhe custa hum preço muito alto, & os Estrangeiros, pello
que avanção, lhe metem irremediavelmente aquella chamada moeda, & por Ella lhe
tirão a de ouro, & prata. Naõ deixâraõ seus Ministros de antever esta ruina, mas
arrojáraõse a Ella com desesperaçaõ, tomando pretexto de que conquistando
Portugal em hum ou dous annos, lhes ficaria lugar de se restituírem; & hoje se achaõ
incapazes de remedio, com a guerra nos principios, com os Povos miseraveis, com a
fazenda Real empenhada para muitos annos, & taõ impossibilitada, que para a
despeza da campanha futura, se levantou elRey com todas as consignaçoẽs do que
devia das passadas, sem reparar em que este mao exemplo o privou de todo o
Comercio, pois ninguem se fia mais de quem não guardou palavra. As
contribuiçoens de Portugal, sem empenho algum para o futuro, administradas mais
fielmente, & com boa ordem, suprem ao que parece incrivel; & sendo certo, como
he, que em hum exercito de Castella se gasta sete ou oito vezes mais do que em hũ
de Portugal igualmẽte numeroso, fica Portugal proporcionadamente, com igual, ou
maior cabedal.305
Esta passagem torna-se a mais importante para o prognóstico de 1664, e central em
toda a estratégia comparativa construída pelo Mercurio ao longo de suas edições, exatamente
porque aí são confrontadas as direções políticas de Portugal e Castela em relação ao conflito
que se travava em suas fronteiras, e nela se pode observar com mais clareza o discurso
engendrado por Macedo acerca do papel desempenhado pelo Estado no governo da guerra.
304
305
Mercurio Portuguez. Janeiro de 1664. fol. 3r.
Ibid. fols. 3v-4r.
152
Em uma de suas primeiras edições, o periódico, e provavelmente o governo por ele
representado, apostava na notícia de uma jornada do rei D. Afonso ao principal front do
conflito, intencionando demonstrar inclusive como com tal disposição o monarca procurava
instar pelo mesmo empenho por parte da nobreza portuguesa. Pela má fortuna do início da
campanha de 1663, ou pelo peso da questão, alguns meses depois o secretário de Estado muda
o foco do seu discurso, e mostra não mais o rei, mas seu principal ministro, tratando
pessoalmente de uma reorganização radical da utilização dos recursos disponíveis ao
financiamento das forças militares portuguesas.
Agora, na edição de abertura do ano seguinte, o Mercurio Portuguez analisa o caráter
determinante do modo como o Estado estabelecia sua política de arrecadação tributária,
gerenciamento de recursos, e intervenção na economia, para o desenvolvimento dos sucessos
militares. Traçando um painel desastroso de uma política econômica castelhana imprudente,
irresponsável e desrespeitosa para com a população, o contraste em relação às positivas
conseqüências previstas meses antes para a mudança do provimento do Alentejo é tão
contundente, que Antonio de Sousa de Macedo se exime de comentar em pormenores a
administração fiel e ordenada do cabedal português. Adjetivá-la assim é o quanto bastava para
publicar que, apesar da sabida superioridade econômica de Castela, ela não se reverteria mais
na superioridade militar tão alardeada, fora e dentro de Portugal.
Chegando ao que Macedo chamou de “disposição das cousas”, passa a abordar o
estado das praças de ambos os lados, o ânimo dos combatentes e a conjuntura político-militar
internacional. Segundo o seu discurso, as praças portuguesas encontravam-se àquela altura de
tal forma fortificadas, que para tomar cada uma delas era necessário um exército completo,
enquanto as castelhanas, exceto Badajoz, estavam como portas abertas a qualquer intento de
conquista. Em relação aos ânimos, ressalta a diferença entre a resolução “de quem peleja por
capricho, & teima de outrem, ou pella defensa natural”306: os portugueses sabiam não estarem
lutando apenas pela pátria e por seu rei natural, mas simultaneamente pela fazenda, liberdade
e honra próprias, enquanto os castelhanos eram levados a morrer à força, sem qualquer
interesse ou necessidade. Já no âmbito extra-peninsular, várias ocorrências ameaçavam
Castela, que já desamparara o imperador em sua luta contra os turcos, e corria o risco de
perder suas possessões na Itália. Natural condição, comenta o Mercurio, pois “que naõ he
novo perder o proprio quem pretende o alheo”307.
306
307
Ibid. fol. 4r.
Ibid. loc. cit.
153
Quanto à fortuna, esteve ao lado de Portugal em seus confrontos com Castela em todas
as batalhas campais memoráveis desde a constituição do reino enquanto tal, já há mais de 550
anos, sendo sempre nelas derrotados os castelhanos, e tomadas todas as suas armas e
bagagens, de que os exemplos mais recentes eram a batalha do Canal no ano anterior e a das
linhas de Elvas em 1659. Por este costume, entravam já aqueles inimigos aterrorizados em
cada combate contra os portugueses, e o modo como procederam na batalha do Canal,
retirando-se apressados para não lutar, enquanto o exército lusitano os seguia sem descanso,
dava a prova deste temor, que não se verificava no exército castelhano contra outras nações.
Grande “império na opinião”, considerara o periódico parágrafos antes, tinha o fato de
a fortuna colocar-se sempre ao lado dos portugueses. E era justamente este império que
Antonio de Sousa de Macedo procurava auferir, através do Mercurio Portuguez, para o
governo que representava. A operação de interpretar os dados apresentados, dentre os seis
conjuntos de fatores que determinavam o sucesso na guerra, sempre a favor do lado português
da contenda, era com certeza uma estratégia discursiva importante para alcançar tal império,
pois trabalhava diretamente com as expectativas dos leitores a respeito do futuro do conflito.
Mas o que era mais fundamental para Macedo, como se pode perceber em cada
detalhe deste prognóstico otimista para o ano de 1664, era demonstrar que, já que o futuro era
determinado não por alinhamentos estelares, mas pelo arbítrio humano, a superação da
posição de inferioridade militar que Portugal vivera nas últimas décadas em relação a seu
rival naquela guerra era a grande conquista dos homens que se colocaram no poder através do
golpe palaciano de 1662, ao lado de D. Afonso VI. Já se pode perceber, portanto, como a
mudança de um discurso de superação para o de superioridade militar observado na narrativa
de guerra do Mercurio Portuguez entre 1663 e 1664, embora tenha encontrado bons suportes
nos sucessos militares narrados, partia antes da preocupação em demonstrar os resultados
efetivos da política militar levada a cabo pelo governo, e divulgada em suas páginas. Para tal
apontavam as notícias ali divulgadas sobre a eficiência nos preparativos de guerra, com este
objetivo se apresentava em detalhes o novo contrato de provimento do Alentejo celebrado em
1663. E era esta impressão que se procurava alcançar com tais prognósticos, juízos, no fundo,
sobre o impacto das ações políticas de ambos os lados da guerra em seu desenvolvimento.
Era o mau governo castelhano que, além de dedicado a uma guerra injusta, fazia com
que elementos como um exército mais numeroso, uma maior produção de víveres e uma
maior quantidade de dinheiro empenhado não se revertessem na vitória esperada desde a paz
dos Pirineus em 1659, e que via agora seu Estado afogado em dívidas, tendo que arriscar o
futuro de seu comércio para manter viva aquela guerra, depauperando sua própria população,
154
que clamava por paz. Do outro lado, era o governo português o responsável pelo
aproveitamento máximo de finanças nem tão vultosas, pela eficiência na condução dos
mantimentos às terras de fronteira, não precisando para tanto assolar os Povos como se fazia
em Castela, e nem gerando qualquer descontentamento que ferisse o ânimo daqueles soldados
que lutavam para defender sua pátria, seu rei, sua fazenda, sua liberdade e sua honra. Isto
dizia o Mercurio, e nitidamente suas críticas ao governo castelhano, às vezes com mais
pujança do que seus elogios ao governo português, dissimuladamente referiam e contestavam
as que eram feitas ao modo como o conde de Castelo Melhor se apoderava do comando do
reino, desrespeitava hierarquias militares e marginalizava instituições tradicionais da esfera de
decisão política. A este fim serviam os comentários sobre o governo castelhano, em que,
como em um jogo de espelhos, o secretário de Estado português fazia refletir sobre o inimigo
externo as críticas que lhe eram feitas pelo inimigo interno. Neste sentido, a forma como
concluiu o prognóstico daquele ano é reveladora:
Parece que dos antecedentes propostos se infere bẽ que entre os males da guerra,
sempre communs a ambas as partes, posto que Portugal padeça, està Castella de
muito peor condição; & que podemos pronosticar gloriosos successos ás Armas
Portuguesas. Os mesmo Castelhanos lhos pronosticão, & Povos, & Ministros gritão
por paz. Só o Conde de Castrilho, que tudo governa, lhes persuade que tentem outra
vez a fortuna nesta campanha, com o dinheiro das consignaçoẽs alheas com que se
levantou, como fica dito; & que os Portugueses sempre aceitaraõ a paz cada vez que
lha der Castella. Mas enganase, porque os empenhos, & interesses de Portugal com
outros principes a poderáõ impedir, & quando lha concedamos serâ com as
condiçoẽs a que os reduzir seu Estado.308
Ao considerar que os males da guerra são sempre sofridos por todos os povos
envolvidos, Macedo construía seu argumento de que era inevitável que Portugal os padecesse,
mas mais importante era enfatizar que Castela os sofria em maior grau. E que as causas pelas
quais ali se podia fazer um prognóstico positivo para o desempenho português na próxima
campanha eram conhecidas pelos próprios castelhanos, que antevendo a derrota próxima já
clamavam por paz, tanto os Povos como os ministros. O mau governo castelhano, a partir daí,
passa a ser identificado com a proeminência de um de seus políticos, o conde de Castrilho,
com que se cria um óbvio contraponto à atuação em Portugal do conde de Castelo Melhor. Se
este representava, como o discurso do Mercurio procurava enunciar, uma prática política
calcada na razão e na discussão acerca dos melhores meios para a preservação da autonomia
do reino, e vinha colhendo os resultados de uma reforma saneadora da distribuição das
finanças e investimentos militares, Castrilho é apresentado como o valido, “que tudo
308
Ibid. fol. 5r.
155
governa”, responsável pessoalmente pela insensatez de Castela em continuar se endividando
em nome de uma guerra injusta, e cada vez mais injusta e nefasta para sua própria população.
A diferença de conduta entre os dois políticos Macedo procurava destacar através da
transformação na relação de forças que, segundo seu periódico, vinha se evidenciando nos
últimos movimentos da guerra: se no início de 1663 jactava-se em dizer que ambos os lados
desejavam igualmente a paz, já em 1664 anunciava que um tratado de paz talvez já não fosse
o melhor negócio para os portugueses, em vista de possíveis alianças com outros príncipes – o
secretário de Estado referia-se, com conhecimento de causa, ao interesse do governo francês
de Luis XIV em que a guerra peninsular se mantivesse acesa – e que, se o fosse, talvez
Castela só o conseguisse mediante a cessão de parte de seu território, certamente apontando
aqui para a conquista da Galícia, cuja realização, ou ao menos sua ameaça, parece ter
constituído definitivamente parte da agenda militar e diplomática de Lisboa a partir do
governo de D. Afonso VI309.
4.2 ESTADO E DISCURSO, POLÍTICA E TIPOGRAFIAS
É inegável, portanto, como se buscou demonstrar até aqui, que, como seria esperado
de um discurso monárquico acerca da guerra, o Mercurio Portuguez, como pano de fundo de
suas narrativas de eventos militares, e mais objetivamente através de sua abordagem das
medidas tomadas pelo governo português no direcionamento da guerra da Restauração, tecia
uma forte ligação entre o Estado e o exercício da guerra. Decerto não poderia ser diferente em
uma época em que, de acordo com a historiografia caracterizada no início deste capítulo, o
fortalecimento dos Estados em várias regiões européias vinculava-se de maneira estreita ao
controle das atividades militares, e possibilitava o redimensionamento, revolucionário sob tal
ótica, do seu volume, de sua presença na sociedade e de impacto nas transformações
presenciadas nos últimos cem anos. Neste sentido, a possibilidade de tal discurso no periódico
de Antonio de Sousa de Macedo pode ser considerada fruto de tais transformações. Mais
difícil, porém, é concluir que elas tenham constituído a motivação de sua escrita. Havendo-se
detectado que o Mercurio procurou debater e responder a problemas tão objetivos e
específicos da conjuntura política portuguesa daqueles últimos anos da Restauração,
analisadas as nuances e mudanças no discurso embutido em sua narração da guerra –
309
Cf., entre outras obras que comentam a política de Luís XIV para Portugal, bem como a questão da utilização
diplomática da pressão na Galícia: VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640~1680. Guerra,
conflicto y poderes en la monaqrquía hispânica. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1998; CARDIM, Pedro, e
XAVIER, Ângela Barreto. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
156
sondadas as questões políticas que as causaram – e compreendido o modo como o periódico
vinculou as vitórias nos campos de batalha a determinadas práticas políticas, pode-se já
desconfiar da direção unívoca que Rui Bebiano atribui às gazetas, relações e panfletos
publicados em Portugal desde o golpe de dezembro de 1640, que de acordo com ele seria
inclusive a mesma em todas as publicações européias deste cariz.
Como é normal em análises historiográficas de largos conjuntos de documentos,
Bebiano, embora afirme haverem diferenças entre os vários impressos categorizados como
discurso monárquico acerca da guerra, deixa de analisar o modo como tais diferenças
dificultam uma caracterização tão homogênea. Assim, é a semelhança e não o contraste entre
a Gazeta e o Mercurio que define sua interpretação, e os inconvenientes deste método tornamse ainda mais aparentes em suas conclusões sobre os panfletos do período. Ao tratar deles, o
autor destaca em primeiro lugar as semelhanças de seu aspecto gráfico, sempre bastante
simples e barato, bem como do freqüente anonimato de seus escritores. Adentrando assim no
problema da autoria dos panfletos, Bebiano declara que sua qualidade era entretanto “muito
diversificada”, incluindo autores de “formação, pendor literário e interesses extremamente
amplos e até divergentes”310, englobando desde letrados e clérigos até militares, nobres,
mestres universitários e membros da administração régia. Com interesses divergentes, tendese a concluir, a função de tais panfletos não poderia ser a mesma. Mas Bebiano retrocede:
A dimensão polígrafa do conjunto da obra escrita de muitos deles é, entretanto,
pormenor de importância, uma vez que, para além da pluralidade de interesses que
possa revelar – comum aliás, para além das particularidades de cada uma das
culturas nacionais, a uma boa parte dos intelectuais da época – denuncia também, no
contexto das lutas que a Restauração impunha, a coincidência dos entusiasmos
verificáveis na maioria dos meios que se encontravam empenhados na prática da
escrita, com os propósitos, tomados como nacionais, que o poder monárquico ia
então consubstanciando.311
Torna-se evidente nesta passagem o modo como a definição global de um discurso
monárquico acerca da guerra precisa subestimar a variedade, e até a divergência de
propósitos encontrada em tão grande conjunto de impressos, pela forma arbitrária pela qual
Bebiano sobrepõe à pluralidade de interesses verificadas nos panfletos portugueses uma
improvável “coincidência dos entusiasmos” imposta pelas lutas da Restauração. O comentário
fugidio com que o historiador afasta a mesma pluralidade de seu escopo interpretativo,
afirmando que ela era comum aos intelectuais da época, não pode ser suficiente para fazer
esquecer que as divergências de propósitos daqueles diferentes escritores de panfletos,
310
Bebiano, R. A Pena de Marte. Escrita da guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-XVIII). Coimbra:
Edições Minerva, 2000. p. 231 [grifo meu]
311
Ibid. loc. cit.
157
relações e periódicos atuaram decisivamente na definição das particularidades e mudanças
vividas por tal poder monárquico, descrito ali como um progressivo consubstanciador de
vontades.
Ora, os meandros do discurso político publicizado pelo Mercurio Portuguez trazem
indícios de um processo histórico bem menos linear de formação do Estado português do
parece o de que Bebiano parece partir para analisar a escrita sobre a guerra no século XVII.
Com efeito, espera-se ter demonstrado aqui como a atenção aos aspectos da conturbada
conjuntura política em que se insere a publicação daquele periódico é requisito fundamental
para a compreensão de suas intenções no terreno do discurso, e ainda mais para a de seu papel
no terreno da política. A cada nova militar trazida pelo Mercurio Portuguez, a cada seu
enfoque sobre as medidas realizadas pelo monarca e seus ministros, fossem elas abordadas
diretamente com o anúncio da assunção de uma nova estratégia militar, da efetivação de uma
nova organização do investimento logístico, ou mesmo do pagamento aos soldados, fossem
indiretamente através da comparação com os erros castelhanos, mais do que comprovar uma
ligação intrínseca e primeva entre o poder monárquico e o exercício da guerra, o que estava
principalmente em jogo para Antonio de Sousa de Macedo era divulgar uma relação de causa
eficiente entre as práticas e a visão política do novo governo e as vitórias que vinham sendo
alcançadas pelo exército português nos campos de batalha.
Desta forma, as observações e conclusões delineadas pelo presente trabalho apontam
já para a pertinência do estudo destes impressos ligeiros produzidos durante a Restauração,
não no sentido da comprovação de uma estratégia do Estado, uniforme ao longo do período,
de mobilização das vontades em consonância com o propósito, também contínuo, de
alargamento da esfera de ação do poder monárquico, mas sim em direção a uma melhor
definição dos conflitos políticos que conduziram a formação da política e do Estado
portugueses desde o golpe de 1640. Uma pertinência aliás estimulante, pois, como indica o
trabalho de Rui Bebiano, o enfoque sobre tais publicações dirige o olhar historiográfico para
um aspecto ainda não suficientemente considerado pelos estudiosos do período em Portugal,
qual era o recurso às tipografias enquanto ação política, prática que atinge grandes proporções
durante as décadas restauracionistas.
Mais uma vez, porém, a abordagem de Bebiano sobre este aspecto, com vistas a
fundamentar institucionalmente o desenvolvimento histórico daquele discurso monárquico
português, considera uma dimensão unívoca e progressiva da relação entre o Estado e as
tipografias, tendente a menosprezar possíveis variações e conflitos. É justamente na seção
“Definição de um discurso monárquico” de seu livro que o historiador inicia suas
158
considerações acerca da instalação e funcionamento das tipografias em Portugal, citando as
mais importantes e seus proprietários, e comentando já que essencialmente localizavam-se em
Lisboa, e que viviam “numa relação de dependência inequívoca e absoluta em relação aos
grandes poderes instituídos”312. Uma afirmação forte, e melhor explanada adiante, quando se
analisa a forma como a designação de um impressor régio, ao lado da ação dos mecanismos
de censura, teria materializado tal dependência:
Porém, a expressão superior deste resguardo e desta orientação criteriosa do trabalho
tipográfico encontra-se consignada na designação expressa de um impressor régio, o
qual fica dotado do privilégio de publicação das leis, dos regimentos e de toda a
sorte de obras que as instâncias do paço entendessem dever fazer publicar, desde
relações dos principais eventos da monarquia a lembranças históricas de feitos,
descrições do território sobre o qual exerce o rei a sua capacidade soberana ou ainda
a obras de arte militar. Desde os tempos da actividade de Valentim Fernandes,
passando pela de Germão Galharde, João de Barreira, Pedro Craesbeck, António
Craesbeck de Melo, Miguel Deslandes, ou, já em pleno século XVIII, do filho deste,
Valentim da Costa Deslandes, tal como dos proprietários da Oficina Régia Silviana,
que se encontrava, assim, directamente assegurada a comunicação impressa do
discurso que a monarquia considerava admissível ou conveniente, a qual seria
posterior e definitivamente estabilizada com a fundação, por alvará de 24 de
Dezembro de 1768, da Régia Oficina Tipográfica, depois designada como Impressão
Régia. Além disso, a continuada nomeação, por parte do soberano, de determinados
encadernadores e livreiros para desenvolverem a sua actividade como fornecedores e
funcionários da sua casa, de uma forma frequentemente reforçada por laços
profissionais que passavam de geração a geração, desenvolveria e completaria de
uma maneira perfeita esta ligação. Ela será, pois, fundamental para o lançamento
controlado, a partir de 1640, do processo de veiculação ritualizada da imagem do
poder da monarquia e dos aspectos de uma realidade que este se propunha conduzir
e moldar em plenitude.313
A eleição de um impressor régio, desta forma descrita, surge como uma estratégia de
ingerência das atividades tipográficas desde suas origens, e seu desenvolvimento histórico
uma linear e ininterrupta consolidação deste controle monárquico, principalmente a partir da
restauração do trono português. Uma “continuada nomeação”, ainda mais forte quando o
soberano conseguia aproveitar, e ajudar a produzir, laços profissionais que atravessavam
gerações de uma mesma família, que teria possibilitado uma cada vez mais eficiente
divulgação do poder monárquico, e até dos aspectos da realidade que este pretendia moldar. A
grande dificuldade deste tipo de proposição pode ser detectada no modo como o personagem
designado ora como “soberano”, ora como “poder da monarquia” e correlatos, adquire na
expressão de Bebiano o estatuto de um sujeito histórico regular, estável e unitário, além de
privilegiado. Assim, o “soberano” molda, conduz, nomeia, como se se tratasse sempre do
mesmo e coerente agente histórico, quando na verdade trata-se ali de alguns séculos de
história da monarquia portuguesa. Só para o período da guerra da Restauração, por detrás do
312
313
Ibid. p. 219.
Ibid. p. 223.
159
sempre soberano escondem-se dois reis e dois regentes, e uma série inumerável de secretários,
conselheiros, presidentes, inquisidores, desembargadores, entre outros cargos nomeados pelos
diferentes governos do Portugal restaurado.
Mais significativo, porém, para os propósitos do presente trabalho, é notar a ausência
neste parágrafo de Henrique Valente de Oliveira, cuja oficina tipográfica publicou os
exemplares do Mercurio Portuguez nos seus três primeiros anos. Não é decerto o único
impressor delRey não citado nesta lista de Rui Bebiano, e nem o historiador deixou de referilo posteriormente como o impressor do Mercurio; porém, seu livro faz crer ter apenas ele se
encarregado desta empreitada314, e não revela em qualquer momento que a esta altura
Henrique Valente ocupava a função de impressor régio. Se a omissão não foi consciente, não
se pode negar que foi bastante conveniente para os fundamentos de sua interpretação, já que o
nome do impressor deveria ser citado justamente entre os dois Craesbeecks, Pedro e Antonio,
considerados por Bebiano um caso exemplar da estreita dependência dos impressores com o
poder constituído fortalecida por laços familiares315.
Henrique Valente de Oliveira, que ao que consta não herdou da família sua oficina
tipográfica, iniciou suas atividades impressoras na década de 1650, e tinha em torno de 35
anos quando contra si foi instaurado um processo do Tribunal do Santo Ofício, por acusação
de impressão clandestina. De acordo com a descrição do processo depositado no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, seus trâmites foram longos, iniciados em agosto de 1655 e
encerrados em janeiro de 1658, tendo sido o réu sentenciado em auto de fé no dia 19 de
novembro de 1657316. Curiosamente não obstante, é a partir de 1656 que o volume de suas
publicações começa a crescer, mesmo ano em que imprime o folheto com a fala de Antonio
de Sousa de Macedo na ocasião do juramento de D. Afonso VI317. Saíram de sua oficina,
desde então, obras de diversos gêneros e formatos, desde cartas, discursos e sermões até
histórias, rimas e relações as mais variadas, até que no ano de 1659 Henrique Valente já
314
Em sua caracterização do Mercurio, comenta: “Foram todos os seus exemplares compostos a partir da
tipografia de Henrique Valente de Oliveira”. Ibid. p. 227.
315
Sobre as atividades da família Craesbeeck, ver D’ALCOCHETE. Nuno Daupias. L’Officina Craeesbeeckiana
de Lisbonne. In: Arquivos do Centro Cultural Português. Paris: v. 11, pp. 601-637, 1975; alguns documentos e
informações sobre a vida e atividades de Paulo Craesbeeck e Antonio Craesbeeck de Melo encontram-se
respectivamente em DESLANDES, Venâncio. Documentos para a história da tipografia portuguesa nos séculos
XVI e XVII. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988. pp. 217-220; 243-246.
316
Processo de Henrique Valente de Oliveira. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tribunal do Santo Ofício.
Inquisição de Lisboa. Processo 10646. Os limites geográficos impostos à pesquisa desta dissertação impediram o
contato direto com o processo, sendo possível apenas seu conhecimento através do sítio eletrônico fundado pelo
projeto Torre do Tombo Online: http://ttonline.dgarq.gov.pt/. Acesso em: 28 fev. 2009.
317
MACEDO, Antonio de Sousa de. Falla que fez o D. Antonio de Sousa de Macedo, do Conselho da Fazenda
de Sua Magestade, no Juramento de Rey do muito Alto, e muito Poderoso Dom Affonso VI. nosso Senhor.
Lisboa: Na Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1656.
160
preenche o cargo de impressor régio318. Já nesta condição, é mantido o vínculo de sua oficina
com os escritos de Antonio de Sousa de Macedo, com a publicação do suas Decisiones
Supremi em 1660319, e de sua relação sobre as festas lisboetas em comemoração ao casamento
da infanta D. Catarina com o rei Carlos II da Inglaterra320 em 1662, aliança revigorada então
no mesmo ano por sua nomeação como secretário de Estado de D. Afonso VI. Entre 1663 e
1665, são impressos por Henrique Valente de Oliveira não só as edições mensais do Mercurio
Portuguez, assim como as relações de batalhas analisadas aqui anteriormente, entre outras que
narravam os mesmos feitos, mas também obras de bastante diverso cariz, como vilancicos,
sermões, certames de academias literárias, entre muitos poemas, discursos e obras de maior
volume. A edição do Mercurio sobre janeiro de 1666, porém, já saía da oficina de Domingos
Carneiro. Neste ano, ao que tudo indica a atividade impressora de Henrique Valente se
encerra, havendo nele publicado apenas os vilancicos cantados no dia de reis na Capela
Real321, e o primeiro volume de uma nova edição da Ásia Portuguesa de Manuel de Faria e
Sousa322.
Os outros dois volumes desta obra seriam impressos apenas em 1674 e 1675, já por
Antonio Craesbeeck de Melo, impressor régio desde 1666, tendo publicado inclusive, já nesta
função, as edições do Mercurio Portuguez – já de outro e desconhecido autor – entre fevereiro
e julho de 1667, que seriam as últimas323. Enquanto era Henrique Valente ainda impressor
delRey, Craesbeeck de Melo fora nomeado impressor de Sua Alteza, cargo ligado portanto à
318
Cf. DESLANDES, V. op. cit. pp. 236-237.
MACEDO, A. S. Decisiones Supremi Senatus Justitiae Lusitaniae, & Supremi Consilii Fisci, ac patrimonii
Regis : cum gravissimis Collegis decretae, ac in lucem editae . Ulissippone: ex praelo Henrici Valente de
Oliveira Typographi Regii, 1660.
320
Relación de las fiestas que se hizieron en Lisboa con la nueva del casamiento de la Serenissima Infanta de
Portugal Doña Catalina (ya Reiyna de la Gran Bretaña) con el Serenissimo Rey de la Gran Bretaña Carlos
segundo deste nombre. Y todo lo que sucedió hasta embarcarse para Inglatierra Lisboa: En la Officina de
Henrique Valente de Oliveira Impressor delRey N. S., 1662.
321
Villancicos que se cantarão na Capella do muito alto, & poderoso Rey D. Affonso VI. Nosso Senhor. Nas
Matinas, e Festa dos Reys. Lisboa : na Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N. S., 1666.
322
SOUSA, Manuel de Faria e. Asia Portuguesa Tomo I. Lisboa: en la Officina de Henrique Valente de Oliveira,
1666.
323
As edições de 1667 do Mercurio Portuguez, portanto, além da saída de Antonio de Sousa de Macedo, trazem
ainda novas mudanças de impressor. Domingos Carneiro vinha sendo o responsável por sua impressão desde a
edição de janeiro de 1666, mas já o número sobre janeiro de 1667 sairia da oficina de João da Costa, e a partir de
fevereiro, como fica dito, passa para Antonio Craesbeeck de Melo, já designado como impressor delRey. Este
período de publicação, de fato, não foi analisado pelo presente estudo, pois se pretendeu traçar uma análise de
conjunto do discurso publicizado por Antonio de Sousa de Macedo através do periódico. Os números de 1667,
saídos de anônima pena, apresentam uma linguagem mais rebuscada e empolada, já com uma postura bastante
diferente da impressa por Antonio de Sousa de Macedo nos seus quatro anos à frente do periódico. Embora não
se possa negar que estes últimos seis meses do Mercurio, até pelas transformações que representam, não
acrescentassem novos pontos para os debates que aqui vêm sendo levantados, mas os limites, mesmo temporais,
desta pesquisa impuseram manter como recorte do corpus a autoria de Macedo, evitando inclusive adentrar nos
conflitos políticos de 1667, que afinal o retiraram, não só do periódico, mas da posição política que ocupava, e
mesmo da cidade de Lisboa.
319
161
casa do infante D. Pedro, instituída pelo governo de D. Luisa de Gusmão meses antes do
golpe de 1662. Tal designação aparece já em algumas das obras publicadas pelo impressor em
1663, como uma reedição dos Lusíadas comentados por João Franco Barreto324.
E este impressor de Sua Alteza, antes de tornar-se o de Sua Majestade, seria o
responsável ainda pela publicação de obras que de alguma forma colocavam-se em terreno
oposto ao governo de D. Afonso VI. No ano de 1665, por exemplo, sairia de sua oficina o
sermão pregado pelo frei Cristóvão de Almeida nas exéquias do conde de Soure, D. João da
Costa325, desterrado para Loulé em 25 de agosto de 1662326, morto por doença no início de
1664 sem ter voltado a Lisboa327. Em 1666 seria também Craesbeeck a publicar a Epitome da
vida e acçoens de Dom Pedro entre os reys de Castella, o primeiro deste nome328, juntamente
com um Panegirico ao serenissimo rey D. João o IV restaurador do reyno lusitano329, obras
do já comentado João Nunes da Cunha, futuro conde de São Vicente, na altura de sua
nomeação como Vice-rei do Estado da Índia, o que o conde da Ericeira interpretou anos
depois como a forma que o governo finalmente alcançou para livrar-se de um antigo opositor,
que àquela altura havia se aproximado do infante D. Pedro330. Ângela Barreto Xavier e Pedro
Cardim, na mais recente biografia de D. Afonso VI, também destacam que João Nunes da
Cunha se colocou “desde o início, no partido do infante D. Pedro”331, que sua nomeação para
Vice-rei “mais pode ser visto como uma punição – um desterro simbólico – do que uma
promoção”332, e que a publicação destes dois livros, escritos entre 1663 e 1665,
“aparentemente inócuos”, não deixava de provocar de alguma forma aquele governo:
324
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas: com os argumentos do Ldo João Franco Barreto: com hum Epitome de sua
vida. Lisboa: a custa de Antonio Craesbeeck de Mello, impressor de Sua Alteza, 1663.
325
ALMEIDA, Cristóvão. Sermam nas exequias do Conde de Soure. Pregado no Collegio de S. Agostinho desta
cidade de Lisboa no anno de 1664. Lisboa: Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1665.
326
D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. p. 68.
327
Ibid. pp. 195-196. A posição central ocupada pelo conde de Soure entre determinado grupo de opositores do
governo de D. Afonso VI pode ser dimensionada pela reverência com que a crônica do conde da Ericeira sempre
trata de suas participações no exército, na política e na diplomacia portuguesa, que culmina com o elogio posto
na seqüência da referência à morte de D. João da Costa. Cf. ERICEIRA, Luis de Meneses, conde da. História de
Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 1945-46. v. 4, pp. 243-247.
328
CUNHA, João Nunes da. Epitome da vida, e acçoens de Dom Pedro entre os reys de Castella o primeiro
deste nome. Lisboa: na officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1666.
329
Id. Panegirico ao Serenissimo Rey D. João o IV. restaurador do Reyno Lusitano. Lisboa: na officina de
António Craesbeeck de Mello, 1666.
330
O modo como Ericeira descreve as motivações que moveram os conflitos políticos da década de 1660 é
sempre eivado dos sentimentos ligados a laços de amizade, com que tradicionalmente a fidalguia portuguesa
representava suas alianças, e neste caso não seria diferente. De acordo com sua crônica, Cunha teria sido
nomeado Vice-rei e enviado à Índia “tanto em benefício daquele Estado pelas singulares virtudes de que era
composto, quanto pelo ciúme que causava aos ministros a assistência que fazia ao infante”: ERICEIRA, L. M.,
conde da. op. cit. v. 4, p. 371.
331
CARDIM, P., e XAVIER, A. B. op. cit. . p. 163.
332
Ibid. p. 156.
162
”Repletas de muitas advertências sobre a governação, estas duas obras mostram bem que a
literatura possuía, na época, uma valência política aproveitada por muitos”333.
Antes, porém, destes três livros, em 1664, já havia publicado o Retrato de Prudentes,
Espelho de Ignorantes, do jesuíta Francisco Ayres, obra que, dissimulada em preceitos de
ascese, e elogios da verdadeira prudência cristã, fazia eco às críticas disseminadas contra o
valimento do conde de Castelo Melhor, principalmente quando aplicava seus ensinamentos na
descrição de uma oposição entre dois tipos de valido, um imbuído do amor divino, outro do
mundano, um que se governava por aquela prudência, outro apenas por sua vontade e busca
de prazeres e poderes. O primeiro, pretendendo acima de tudo ser valido de Deus, alcançaria
Sua graça; o segundo, desejando como bem mais precioso a amizade do rei, selava seu pacto
com o Diabo e garantia o caminho de sua danação:
Puderamos preguntar a hum destes, homem, se he licito darlhe este nome, que mal te
fez Christo pois tantos agravos cometes contra elle? que bens recebes, ou esperas
receber de Satanás, pois tanto fazes por seres de sua parcialidade? responder-meha
que ama a Christo, & que arrenega do demonio, porém hũa couza affirma com a
boca, & outra mostra com as obras, pois muitas vezes, por conservar a amizade do
amigo quebra com Deos, sendo que nunca o homem deve ter por amigo, o que o faz
inimigo de Deos.334
Embora não se possa ainda, precipitadamente a partir de informações assim esparsas e
incompletas, tirar delas qualquer conclusão sobre a relação entre as tipografias e as facções
políticas, nem sobre o significado político da mudança de impressores régios durante a
Restauração, não deixa de ser inquietante notar como o impressor de Sua Alteza, que depois
derrubaria o governo do irmão, publicava obras de dissimulada, mas nem por isso
desapercebida, oposição ao mesmo governo, e também curioso o fato de que a transição de
Craesbeeck daquele cargo para o de impressor de Sua Majestade parece antecipar a que
concretizaria depois, com a transferência do poder régio para o infante D. Pedro. De qualquer,
forma, tais especulações são já suficientes para que se aponte para a lacuna existente na
333
Ibid. p. 120.
AYRES, Francisco. Retrato de Prudentes, Espelho de Ignorantes: aos primeiros alimento espiritual de bons
acertos, aos segundos avizo de seus enganos. Lisboa: Na Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor
de S. ALTEZA, 1664. p 264. Também os mais recentes biógrafos de D. Afonso VI interpretam o livro do padre
Ayres como uma crítica ao escrivão da puridade. Tendo sido dedicado a Sebastião César de Meneses já afastado
do governo, eles aventam a hipótese de que a oposição entre o valido prudente e o voluntarioso referia-se
respectivamente a Meneses e Castelo Melhor. Cf. CARDIM, P., e XAVIER, A. B. op. cit. pp. 140-141. A tal
hipótese pode-se acrescentar a informação de que foi durante o longo período compreendido pelos trâmites das
licenças do livro – a primeira é de 12 de dezembro de 1662 e a última de 1 de abril de 1664 – que Sebastião
César de Meneses teria sido acusado de traição e se retirado a um convento capuchino. Segundo o autor do
manuscrito publicado por Eduardo Brazão, Meneses teria sido o articulador do retorno de Antonio Conti a
Portugal em junho de 1663, presença incômoda que Castelo Melhor tratou de manter fora de Lisboa; a 11 de
julho o conde convocou os ministros da Junta da Inconfidência para instaurar devassa contra o arcebispo e
inquisidor-geral, a partir de cartas encontradas entre as bagagens do exército castelhano derrotado em Évora que
indicariam comunicações suas com Castela. Cf. D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 150-160.
334
163
historiografia a respeito destas tipografias, seus donos, seus financiadores e suas relações com
o Estado, assim como bastam para que se ponha em questão a visão de Bebiano de uma
progressão linear do controle exercido pelo “soberano” sobre as oficinas, sempre alcançando
o sucesso na medida de seus interesses.
Com efeito, perguntar pelo papel desempenhado pelas tipografias na política
portuguesa significa adentrar em um dos terrenos mais estimulantes trabalhados pela
historiografia das últimas décadas sobre a Europa moderna, que é o das transformações
provocadas nos mais diversos setores da vida e da cultura européias pela invenção de
Gutenberg e pela sua variada utilização pelos homens que o sucederam. Em estudo pioneiro,
Elizabeth Eisenstein, de maneira bastante inovadora e provocativa, situou o impacto do
surgimento da tipografia na base de três das mais importantes transformações culturais da
Europa moderna: a expansão do Renascimento, a consolidação da Reforma protestante, e o
caráter renovador da chamada Revolução Científica do século XVII. Embora em vários
momentos Eisenstein tenha demonstrado o efeito impulsionador da instalação de oficinas
impressoras para tais processos históricos, sua tese mais modesta é a de que eles não
poderiam ter alcançado tamanho impacto na Europa moderna se não existissem as tipografias
e as novas formas de produção e circulação de textos e imagens que foram suas primeiras
conseqüências335. Desta forma, a autora retirou o estudo sobre o desenvolvimento desta
tecnologia de um nicho apenas voltado para a descrição de evoluções técnicas, e o alçou em
definitivo para o âmbito do debate acerca das transformações e conflitos que marcaram a
Europa a partir do século XV, constituindo-o como elemento incontornável para a sua
compreensão, embora talvez nem tão preponderante como ela pretendeu indicar.
O maior empenho de Elizabeth Eisenstein foi o da caracterização das conseqüências
inerentes ao surgimento da imprensa, tais quais: a disseminação ampliada dos produtos
culturais abrangidos por tal tecnologia, com aumento da produção e alterações na recepção; o
alcance de maior padronização, e seus efeitos para as trocas culturais entre as diversas regiões
e períodos da Europa; a partir daí, a racionalização, codificação de catalogação e um novo
processo de coleta de dados, e um grande incremento no poder de preservação, trazendo
fixidez e mudança cumulativas, e a persistência de estereótipos, clichês, bem como de
divisões sócio-lingüísticas. Estas transformações, encaradas como inevitáveis, é que foram
então aplicadas na proposição de novas abordagens para aqueles três emblemáticos conjuntos
de eventos que marcaram a era moderna. Menos atenção, porém, a autora dedicou à análise
335
Cf. EISENSTEIN, Elizabeth. A revolução da cultura impressa. Os primórdios da Europa Moderna. São
Paulo: Ática, 1998.
164
das novas relações sociais engendradas pela aliança entre a intelectualidade européia e os
comerciantes e artesãos, que se dedicaram conjuntamente ao desenvolvimento da cultura
impressa, e também às diversas conformações desta cultura em meio à formação de diversos
Estados e à transformação de suas instituições e de sua capacidade de intervenção social.
Em relação à primeira questão, de fato Eisenstein esboça alguma interpretação, e tenta
demonstrar o quão nova no contexto europeu seria aquela nova figura do impressor, sujeito
socialmente posicionado entre as conjunturas do mercado e as do conhecimento e da cultura, e
identifica-o como agente fundamental da revolução anunciada no titulo de sua obra. Porém
sua pesquisa não se debruçou, como nos outros temas, sobre dados e casos que
representassem as particularidades e as variantes do papel desempenhado por este novo ator
social, de modo que sua abordagem conclui pela identificação da necessidade de novos
desenvolvimentos e aprofundamentos336. Já acerca do problema da relação com os Estados,
seus comentários são ainda mais esparsos. Em primeiro lugar, há aquela afirmação da
imprensa enquanto estabilizadora e acirrante das divisões sócio-lingüísticas que fortaleceriam
as fronteiras em que cada um dos Estados se desenvolveu337. Em momentos posteriores,
Eisenstein relembra, já se baseando em estudos anteriores ao seu338, que a circulação de
impressos e gravuras permitiu às dinastias reinantes uma nova forma de veiculação de retratos
dos governantes, estendendo o alcance de seu carisma, e novas maneiras também de publicar
os seus propósitos políticos, dando exemplos como os das atuações neste sentido de Richelieu
na França, Henrique VIII e Thomas Cromwell na Inglaterra e Filipe II na Espanha339. Por
336
Cf. Ibid. pp. 109-125.
Ibid. pp. 98-99.
338
Principalmente o livro da década de 1970 de Joseph KLAITS, sobre a propaganda monárquica na França de
Luís XIV, a que infelizmente a presente pesquisa teve acesso apenas através das referências de Eisenstein. A
passagem que a autora cita da obra de Klaits, sendo transcrita aqui, indicará sua relevância para o estudo de
impressos como o Mercurio Portuguez: “Os príncipes, que até então só haviam utilizado os incômodos métodos
do manuscrito para comunicar-se com seus súditos, aderiram rapidamente à imprensa para anunciar declarações
de guerra, divulgar relatos de batalhas, promulgar tratados ou debater assuntos mais controversos, sob a forma de
panfletos. Eram esforços no sentido de [...] “vencer a guerra psicológica que preparava e acompanhava as
operações militares” dos monarcas [...] A coroa inglesa, sob Henrique VIII e Thomas Cromwell, utilizou-se
sistematicamente tanto do Parlamento quanto da imprensa para conquistar o apoio público em favor da Reforma
[...] Na França, a regência de Luís XIII assistiu à última reunião dos Estados Gerais antes de 1789; ela também
viu a fundação do primeiro jornal patrocinado pela realeza na Europa. A substituição da volátil assembléia pela
controlada Gazette semanal constitui um episódio da mesma época, sintomático da importância que o cardeal
Richelieu atribuía à imprensa, nos seus desígnios de fortalecimento do poder do Estado.”: KLAITS, Joseph.
Printed Propaganda under Louis XIV. Absolute Monarchy and Public Opinion. Princeton: Princeton University
Press, 1976, apud: EISENSTEIN, E. op. cit. pp. 114-115. Percebe-se aí, embora uma passagem isolada seja
pouco para qualquer afirmação, a tradição onde Rui Bebiano buscaria exemplos transpirenaicos de sua visão
sobre a formação do poder monárquico em sua relação com o recurso às tipografias e suas relações, panfletos e
periódicos.
339
Ibid. pp. 112-116; 179-181. Quanto a Filipe II, Eisenstein comenta apenas seu patrocínio na publicação de
Bíblias, mas o historiador Fernando Bouza Alvarez posteriormente analisou seu intenso envolvimento com
estratégias de propaganda impressa: Cf. ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Documentos antigos e imprensas novas
337
165
outro lado, a mesma imprensa teria sido utilizada para a efetivação do intento de contestação
do poder do Estado, já que as tensões tradicionais entre corte, regiões rurais, e outros
segmentos das populações européias foram exacerbadas a partir de então por verdadeiras
guerras de propaganda340. Apesar disso, porém, a autora faz questão de afirmar que, em se
tratando da revolução que a imprensa teve a capacidade de impulsionar, o fortalecimento de
Estados centralizados em unidades políticas de maior dimensão territorial teria sido mais um
obstáculo do que um terreno fértil para os impressores, tanto quanto o domínio exercido pelo
catolicismo tridentino em determinadas regiões:
Suas empresas floresciam melhor em reinos frouxamente federados do que em
entidades fortemente consolidadas; em principados pequenos, mais do que em
outros em expansão. As políticas de censura fizeram deles os opositores naturais não
só das autoridades das igrejas, como dos burocratas, dos regulamentos e do
papelório do mundo leigo. Como agentes independentes, eles atendiam os órgãos de
publicidade e davam apoio dissimulado a uma “terceira força” que não se vinculava
a qualquer Igreja ou Estado. Contudo, esta terceira força era obviamente relacionada
com os interesses dos primeiros capitalistas da Era Moderna.341
Desta forma, Elizabeth Eisenstein demonstra como sua ênfase sobre os aspectos da
cultura impressa das regiões em que ela a encontrou mais florescente constitui, afinal, limites
para a observação da variedade de desenvolvimentos das relações entre as tipografias e os
diferentes processos políticos vividos pela Europa moderna. Com efeito, como seu modelo de
revolução cultural não se verifica em regiões como as da França, da península ibérica e de
alguns Estados italianos, a autora tende a considerar tais espaços como de menor relevância
para a compreensão do impacto causado pela imprensa. Porém, as considerações, por ela
referidas, acerca da entrada transformadora das tipografias nas lutas políticas pelas quais se
definiram as formações destes mesmos Estados indicam que este impacto não pode ser
sumariamente subestimado. Até porque, como a mesma autora ressaltou, a própria natureza
do homem enquanto animal político, com o advento da imprensa, “passaria a enquadrar-se
menos dentro dos modelos clássicos, depois que os tribunos do povo deixaram de ser oradores
em praças públicas para se transformarem em editores de folhetins informativos e de
gazetas”342. Como o tipo de intervenção política levada a cabo por Antonio de Sousa de
Macedo através do Mercurio Portuguez deixou claro ao longo do presente estudo, não foram
só os tribunos do povo, mas também os arautos do governo e os escritores políticos
transformaram-se em tais editores.
na pretensão ao trono português. Sobre a propaganda escrita de D. Filipe I. In: ____. Portugal no tempo dos
Filipes. Poder, cultura e representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, pp. 39-60, 2000.
340
Ibid. p.115.
341
EISENSTEIN, E. op. cit. pp. 197-198.
342
Ibid. p. 113.
166
Desde a publicação a obra de Eisenstein, e em muito inspirados por suas observações e
provocações, uma série de novos estudos vêm sendo realizados procurando analisar o
exercício político do século XVII, nas mais diferentes regiões e configurações políticas,
enquanto atravessado pelos novos meios de atuação possibilitados pela expansão das
tipografias. Tomadas em conjunto, tais obras343, embora sustentem diferentes visões acerca do
nível de intervenção dos Estados nas sociedades européias de então, têm chamado atenção
para o papel da imprensa enquanto formadora de dispositivos responsáveis em seus contextos
pela articulação de um espaço público, e de uma opinião pública, que Jürgen Habermas teria
considerado inviáveis em sua tese clássica acerca da esfera pública burguesa344. Da leitura
desta historiografia pode-se ter a exata dimensão da extensão e importância da atividade
tipográfica para uma substancial transformação do exercício da política que ocorria
simultânea, mas não isoladamente por toda a Europa daquele século, e da variedade de
estratégias de utilização desta tecnologia em meio aos conflitos políticos travados na
Inglaterra, na França, na Monarquia Hispânica, nas Províncias Unidas, em diversos centros
políticos da península itálica e do Sacro-Império, e até na Escandinávia. Em tão diferentes
contextos históricos e geográficos, sobressaem sempre a disseminação de panfletos, relações e
periódicos, e a constatação de que sua publicação, leitura e debate constituem já práticas que
343
Entre outras, são estas as que puderam ser consultadas pelo presente estudo: DUCCINI, H. L’État sur la place
publique. Pamphlets et libelles dans la premiére moitié du XVII. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 289-300;
CLAIR, Pierre. L’information au quotidien: discours politique et vision du monde dans le Mercure Français et
quelques autres gazettes. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 301-334; DUCCINI, Hélène. Discours e realité
sociale: le révèlateur des pamphlets. In: MÉCHOULAN, H. op. cit. pp. 369-420; CUST, Richard. News and
Politics in early 17th-century England. In: Past & Present. Oxford: Oxford University Press, n. 112, pp. 60-90,
1986; VIVO, Filippo de. Information and communication in Venice. Rethinking early modern politics. Oxford:
Oxford University Press, 2007; todos os estudos antes reunidos por DOOLEY, Brendan, e BARON, Sabrina A
(ed.). The Politics of Information in Early Modern Europe. Londres: Routledge, 2001; e alguns dos artigos
publicados na revista Manuscrits. Revista d’história moderna. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona,
n. 23, 2005.
344
Cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. A
saber, foi nesta obra que o filósofo alemão desenvolveu de forma mais geral sua interpretação sobre a sociedade
que lhe é contemporânea, partindo da análise do percurso histórico da esfera pública e suas instituições, feitas
politicamente atuantes a partir do século XVIII, e apropriadas, grosso modo, pela lógica de consumo a partir da
segunda metade do século XIX. Seria apenas a partir do XVIII que Habermas identificaria a transformação da
esfera pública, antes enquanto o espaço da representação do poder público, no que ele chama de esfera pública
burguesa, o espaço politicamente atuante onde se reúnem as pessoas privadas, representantes de seus interesses
privados, que neste período se tornam publicamente relevantes. Da mesma forma, e talvez de forma ainda mais
rigorosa, o conceito de opinião pública é ali definido como surgido a partir de tal conjuntura; seria o nome
designado à expressão mesma do discurso desta transformada esfera pública, da sociedade civil, demonstração
objetiva de sua força e inserção na política moderna. A opinião pública, no entendimento de Habermas, surge na
sociedade moderna, e ali, historicamente, se torna o princípio organizador do moderno Estado de Direito. Para o
autor, o século XVII ainda herdaria sua concepção de esfera pública da Idade Média, enquanto espaço de
representatividade pública do poder senhorial e, então, monárquico. Da mesma forma, não surgida ainda a
concepção de opinião pública, o que se observa no período é a ocorrência da noção de opinião, enquanto opinião
do vulgo, terreno incerto, necessariamente isento de capacidade de intervenção política, ou enquanto reputação,
aquilo que se pretende difundir nos outros sobre si, ou sobre o princípio de poder vigente, por exemplo.
167
conformam a base de um passo crucial do estabelecimento da política moderna,
transformando o exercício e o pensamento político em toda parte do continente europeu. Em
um mundo em que os temas políticos são mais vasta e organizadamente publicizados, em que
a opinião de leitores passa a ser o terreno objetivado pelo discurso político, os meios e os fins
da política jamais seriam os mesmos.
Diante do modo como a utilização dos novos meios de comunicação e o
desenvolvimento de novas políticas de informação estiveram na base de uma transformação
política de tal magnitude, não se pode mais concordar com a visão de Habermas sobre o
espaço público do século XVII, em que se podia apenas vislumbrar ação do monarca de
representação de seu poder ainda senhorial, diante de um corpo inerme de súditos incapazes
de qualquer interferência significativa no modo como se praticava ou naquilo que se produzia
socialmente através das práticas políticas integradas ao funcionamento do Estado. Mesmo a
visão de Rui Bebiano sobre o discurso monárquico acerca da guerra, e principalmente o
modo como descreve os objetivos e as formas de manipulação e controle das tipografias
exercidas pelo Estado português da Restauração, parecem bastante carregados desta
compreensão iluminista com que Habermas subentendeu as sociedades do Antigo Regime, ou
do ponto de vista a partir do qual Elizabeth Eisenstein subestimou a vida política sob a égide
de Estados suficientemente consolidados. Certamente não foi visualizando tais súditos e tal
mundo político que Antonio de Sousa de Macedo escreveu suas edições do Mercurio
Portuguez.
De fato, a historiografia portuguesa das últimas décadas não se constituiu em terreno
propício para a observação daquelas transformações políticas no século XVII português. A
abordagem tradicional sobre a história da imprensa periódica em Portugal, onde se encontram
talvez os primeiros comentários ao Mercurio Portuguez da historiografia portuguesa do
século XX, teve sempre sua visão sobre os primeiros periódicos portugueses obnubilada pela
consideração do advento de uma verdadeira liberdade de imprensa no Portugal posterior à
Revolução do Porto, traçando assim em sua análise apenas a constatação depreciativa de seu
caráter parcial345. Posteriormente, as questões debatidas por Luis Reis Torgal e Martim de
Albuquerque, se significaram uma renovação nos estudos do pensamento político português
345
Cf. principalmente TENGARRINHA, José. A História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa: Portugalia
Editora, 1965. pp. 35-39. Anteriormente, porém, algumas considerações sobre o período haviam sido feitas por
MARTINS, Rocha. Pequena História da Imprensa Portuguesa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1941. pp. 17-26, e
CUNHA, Alfredo da. Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa (1641-1821). Lisboa: 1941.
pp. 35-63.
168
do XVII, ativeram-se sobremaneira ao terreno da história das idéias, não chegando a focalizar
os impressos ligeiros do tempo e refletir sobre seu papel no exercício da política346.
Este tema, afinal, encontrou espaço no livro de Diogo Ramada Curto sobre o discurso
político português da primeira metade do século XVII. Isso porque, procurando analisar os
dispositivos que conformaram a produção do discurso neste período, Curto identificou uma
notável progressão do número de escritores e do recurso às tipografias, bem como uma
multiplicação de funções do Estado perante a sociedade, e da variedade de instrumentos e
agentes voltados para o exercício da política. Neste sentido, ter-se-ia ampliado
significativamente o campo de atuação de produtores intelectuais no espaço público, definido
justamente por suas relações com a produção e a transmissão de discursos políticos orais ou
escritos, e haver-se-ia consolidado uma opinião pública enquanto alvo de tais discursos, que
continha em si extratos sociais cada vez mais diversificados. Em poucas palavras, “na
primeira metade do século XVII, assiste-se a uma diversificação das formas de participação e
de acesso ao discurso político, entendendo este como discurso comprometido no processo de
construção do Estado moderno”347. Embora muito mais preocupado em caracterizar as
instituições e práticas culturais que condicionavam a produção dos discursos políticos
seiscentistas do que em perceber de que modo eles integravam as disputas políticas daquele
tempo, Diogo Ramada Curto ressaltou alguns aspectos da política portuguesa já bem mais
adequados à compreensão do papel político de um periódico como o Mercurio Portuguez do
que se fizera até então.
Porém, a forma paradigmática como a obra Às vésperas do Leviathan, de Antonio
Manuel Hespanha, marcou a partir da mesma época a historiografia portuguesa do Antigo
Regime, refreou por algum tempo o prosseguimento da pesquisa sobre o ambiente político
português da era moderna tal qual Curto o caracterizou. Com efeito, a análise de Hespanha do
sistema político português do século XVII ao prender-se sobretudo, já que o autor considerou
a jurisprudência como o âmago de tal sistema, às práticas e às instituições jurídicas que o
regulavam, e ao negar capacidade de interferência na organização da política ao que ele
chamou de alvitrismo político – associado ao arbitrium e não à prudentia, base de tal
jurisprudentia – não deixava espaço para que se considerasse apropriado situar em tal sistema
346
Cf. TORGAL, L. R. op. cit., ALBUQUERQUE, M. op. cit., e ainda ALBUQUERQUE, M. Para uma teoria
política do Barroco em Portugal: a Summa Política de Sebastião César de Meneses In: Estudos de Cultura
Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, v. 2, pp. 355-442, 2000.
347
CURTO, Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade
Aberta, 1988. p. 137.
169
o conjunto de escritos ligeiros cuja publicação se intensificou durante alguns períodos da
Restauração348.
Ademais, Hespanha, ao definir a estreita área de ação da monarquia diante da
autonomia dos demais corpos políticos, comenta como uma de suas atribuições o direito
exclusivo que possuía de ostentar os símbolos reais, e como conseqüência conferir títulos,
brasões e distinções superiores, indica que estes “desempenharam um papel determinante nos
mecanismos de acumulação de capital simbólico desta época”349; logo adiante, ao tratar do
deslocamento da estratégia política régia, a partir de meados do século XV, “para campos
diversos do jurídico-jurisdicional, procurando construir espaços de produção de poder em que
a sua situação fosse mais favorável”350, o oferecimento de benesses matérias e simbólicas é
interpretado como o cerne da atuação da monarquia na busca por impor modelos de conduta.
Sob esta ótica, mesmo algum espaço dentre os investimentos simbólicos do poder régio não
parece ser adequado para se localizar o recurso do Estado às tipografias.
Por sua vez, as transformações que foram identificadas, na introdução deste trabalho,
na historiografia do Antigo Regime português nas duas décadas posteriores à publicação do
livro de Hespanha, embora não tenham com muita ênfase abordado o papel das tipografias e
suas publicações, ou a emergência de transformações no espaço público com que se poderia
compreender tal papel, já não ignoram tais questões, nem sua dimensão politicamente
relevante. Em um primeiro momento, o livro de Ângela Barreto Xavier sobre os debates
políticos observados nas Cortes de 1668, trouxe já uma nota de pé de página em que se
comenta a existência de pasquins na Lisboa no final do ano de 1667, já retirado D. Afonso VI
do governo, e faz rápida referência ao fato de que alguma historiografia inglesa e francesa
348
Isso apesar das últimas frases da conclusão de seu livro: “A polarização do poder político numa entidade
única, soberana erga exteros as súbditos – o tal Estado que Th. Hobbes personificou no Leviathan e cuja
problematização constitui uma das linhas de força do pensamento político dos nossos dias – não se tinha ainda
produzido. Alguns dos seus prenúncios são já visíveis, não tanto no plano prático-institucional. Mas nos tópicos
e fórmulas que povoam a literatura política e social, cuja progressiva eficácia é favorecida, não só pelo
paradigma teoricista do racionalismo, mas também pela reprodução alargada que a imprensa, a vulgarização dos
hábitos de leitura e o abandono do latim como língua técnica garantem, agora, à mensagem escrita. O Leviathan
não é, ainda, o sol do mundo político. Mas, entre nuvens e sombras, a sua aurora incerta distingue-se já”:
HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal. Coimbra:
Livraria Almedina, 1994. p. 528. Por tal conclusão se podem colocar alguns problemas não trabalhados por
Hespanha até aquele momento. Se tais elementos configuram os prenúncios de um Estado que ainda não existia,
e se alguns deles já estavam, como no caso da imprensa, em desenvolvimento desde antes do século XVII,
porque eles ainda não exerciam influência sobre a configuração do sistema político português, já que em algum
momento passarão a exercer? Afinal, quando e por que passam a exercer?
349
Ibid. p. 491.
350
Ibid. p. 495.
170
vinha já considerando tais elementos como dispositivos de formação da opinião pública351. Já
na biografia de D. Afonso VI produzida pela mesma autora e pelo historiador Pedro Cardim a
aparição destes pasquins, bem como de relações impressas, e principalmente do Mercurio
Portuguez, passa a ser bastante recorrente. Em diversos momentos surgem referências a
notícias divulgadas pelo periódico de Antonio de Sousa de Macedo, e inclusive ao modo
como elas ali se encontraram, pois tais referências prestam-se, em tal biografia, não apenas
como fonte para informações não encontradas em outros registros, como também para
evidenciar determinadas posturas adotadas pelo governo, e o Mercurio é designado ali como
“o principal canal de propaganda do governo de Afonso VI”352. Desta forma, os dois autores
parecem já, como ainda não se havia visto na historiografia portuguesa sobre o Antigo
Regime, situar o periódico e outros impressos enquanto armas utilizadas em meio às tensões
políticas ali analisadas.
Outras duas considerações expostas na biografia do monarca, além de indicar
importantes diferenças em relação ao modo como Antonio Hespanha construiu sua
compreensão do funcionamento da política portuguesa, trazem ainda questões a que a análise
até aqui realizada do Mercurio Portuguez pode ser remetida. Ao término de seus comentários
sobre o golpe de 1662, os biógrafos expõem já um balanço do governo que o sucedeu:
Não é injusto, aliás, denominar este governo que, num ápice de cinco anos, instituiu
a desgraça de seu rei e a glória do reino – pois durante estes anos travaram-se as
batalhas que permitiram assinar a paz com a Monarquia Hispânica – como um
“governo vitorioso”. Do ponto de vista interno, essa vitória só se tornou possível, em
nossa opinião, por se terem alterado alguns dos mecanismos de decisão política, por
se ter verificado uma concentração de poder (tornando-o, efectivamente, mais
autoritário) que tornou a acção política mais eficaz.353
É inegável como esta interpretação se distancia daquela visão em que a monarquia
ocupava apenas um lugar preeminente em um sistema de corpos autônomos, limitadores de
sua ação. De acordo com Cardim e Xavier, o governo de Castelo Melhor logrou uma
considerável concentração de poder, responsável pela redefinição dos rumos da guerra. Os
termos em que os biógrafos colocam o problema demonstram como o estudo detido sobre
aspectos mais conjunturais da política portuguesa trazem à tona questões que poderiam ser
consideradas anacrônicas pela ótica de Hespanha, fazendo inclusive relembrar os termos do
debate, descrito na introdução deste trabalho, entre as posições representadas por Gastão de
Melo de Matos e Antonio Álvaro Dória. Não se tratará aqui, obviamente, de demonstrar a
351
XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da Política no Portugal
Seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. pp. 34-35. Alguns dos autores já então citados em tal nota foram
aqui também destacados, como Hélène Duccini, Pierre Clair e Richard Cust.
352
CARDIM, P. e XAVIER, A. B. op. cit. p. 119.
353
Ibid. p. 113.
171
partir desta opinião divulgada recentemente que o Mercurio, afinal, estava certo quando
defendia que as práticas políticas do novo governo haviam virado a guerra para o lado
português. Mas fica mais claro perceber que não era em vão que o periódico investia em tal
discurso, confeccionando, como foi visto aqui, tanto em suas narrativas da guerra como em
notícias mais propriamente acerca da política militar do governo. A questão de se o governo
de D. Afonso VI vinha conduzindo bem ou não o esforço militar português era certamente um
debate vivo dentro de Portugal, e em torno dele articulavam-se as alianças e rupturas que
modificavam a cada passo o mundo político português. É nesta arena que a publicação do
Mercurio Portuguez se insere, e a escolha por este tipo de atuação política não pode ser tida
por ingênua ou casual. Fazia parte do modo como Antonio de Sousa de Macedo, e não só ele,
compreendia o campo da ação política, bem como o ambiente social em que ela se dava.
Uma outra consideração encontrada nesta biografia é bastante reveladora neste
sentido. Vinham os dois autores comentando os conflitos que inflamavam a relação entre o
governo régio e duas importantes instituições da cidade de Lisboa, o senado da câmara e a
Casa dos Vinte e Quatro, principalmente quanto à gestão e cobrança de tributos, e conflitos de
jurisdição, no mais das vezes ligados aos mesmos tributos. De maneira geral, as duas casas
ofereciam variadas formas de resistência a mudanças impostas pelo governo no tocante aos
impostos, além de protelarem uma série de pagamentos devidos. E quando questões
financeiras atribulavam a política em Lisboa, os gestos políticos faziam-se extremamente
significativos. Assim, a partir de 1663 o senado da câmara de Lisboa teria feito queixa em
relação a uma iniciativa tida pelo escrivão da puridade de comunicação direta com a Casa dos
Vinte e Quatro, a qual deveria tradicionalmente ser mediada pela própria câmara. O episódio
que deu origem ao problema ocorreu logo em seguida à contenção dos tumultos que tomaram
Lisboa após a queda de Évora, e é comentado pelo autor do manuscrito publicado por
Eduardo Brazão:
Seg.da fr.ª 28 foi o Conde de Castello Milhor a caza dos vinte e quatro (He hũa q
tem no Hospital Real de Lix.ª onde o Juiz do povo com vinte e quatro homẽs, e seu
escrivaõ eleitos dos officios da Cid.e se juntaõ a tratar do dir.to Civil da Rep.ca)
Nella se assentou na Cadr.ª do juiz do povo q em outra poz a sua mão direita: e lhe
propoz q.to Sua Mag.de estava agradecido à quietaçaõ com q o povo procedera
despois do motim: declarou em q se tinhaõ gastado as somas de dr.o q se haviaõ
cobrado, o como se provera o exercito como S. Mag.de e Alteza estavaõ dispostos a
passar a Alentejo se necessr.º fosse q a deixava de fazer por não convir de prez.te: q
a nobresa passaria logo: e por fazer mais benevolo o povo lhe levou hũ decreto p.lo
qual Sua Mag.de habilitava p.ª seu serv.º e p.ª as honras aos filhos do Officiaes q
fossem à caza: couza que antes não tinhaõ e so alcançaraõ outro de El Rey q está no
Ceo porq lhe dezia ter Gr.de consideração a este respeito pª seus filhos serem
despensados. Acção foi esta necessaria mas indecorosa pois se vio o valido em
altura de Sapatr.º, e Alfayate dando satisfaçaõ aos outros, e naõ reparando a lhes
criar huã comfiança de a esperarem e procurarem todas as vezes q lhes entrar o
172
fastio de algũa acção particular, ou do governo em comum, e huã demonstraçao não
temeraria de Sobordinar a Mag.de ao povo; e q.m a disculpou mais com o temor do
passado, e com o receyo do futuro naõ pode negar fora hũa couza m.to extraordinr.ª
e nunca vista; pois em figura de Ministro Real naõ fora àquella caza ninguem, e q
q.do era necess.º seu aprazim.to para tributos, ou semelhantes inpoziçoẽs se lhe
communicava o negocio em a Camara. Mas não faltou travesso q dicesse q como o
Conde de Castel Milhor alem do valim.to havia abrogado asi todos os officios da
Caza Real, e dos Tribunaes queria unir tambem este da Cid.e e povo, por não haver
couza em q não tivesse jurisdição e exercício. Devia este zelozo querer arguir a
ambição do Conde: mas não devia saber, não tem ambiçaõ q.m he Senhor de tudo.354
A cada passo político mais ousado do escrivão da puridade, somavam-se as críticas ao
abuso de poder que representavam. Neste caso específico, acusava-se a ampliação indecorosa
da jurisdição do poder representado por Castelo Melhor e, de acordo com seus críticos,
dominado por ele. Porém, o gesto, e o decreto trazido pelo conde, representavam não só o
desrespeito aos trâmites tradicionais da política lisboeta, mas um nivelamento simbólico entre
um ministro real e os representantes de mais baixos estratos sociais da cidade, além do
alçamento da condição política destes, ao se habilitar os filhos dos membros da Casa para
serviços e honras que lhes eram até aí inacessíveis. O comentário da biografia reflete sobre tal
visão:
um autor da época comentaria que essa ação tinha sido necessária mas indecorosa,
pois nivelara o valido (os fidalgos?) ao sapateiro e ao alfaiate (...). Por outro lado, ao
permitir que os filhos dos oficiais da casa – mecânicos – alcançassem postos e
honras que anteriormente lhes estariam vedados, criava condições para uma maior
homogeneização social.355
Assim como o Mercurio Portuguez nas edições de 1663, a iniciativa do escrivão da
puridade buscava dar uma resposta (essa a necessidade) ao nível de tensão política e social
demonstrado pelos tumultos de Lisboa. E o discurso representado por seu gesto também
continha como elementos cruciais alguns dos que foram analisados nas páginas do periódico.
A primeira proposição de Castelo Melhor diante dos oficiais da Casa dos Vinte e Quatro teria
sido o agradecimento à quietação com que os grupos sociais ali representados tinham
procedido depois do motim, o que faz relembrar a tentativa do Mercurio de dissimular a
dimensão política do ocorrido. Simultaneamente, porém, o conde ao sentar-se na cadeira do
Juiz do Povo faz uma demonstração de poder, do destemor do governo, mas também de que
ele estava mais aberto a ouvir e inserir as demandas daqueles grupos em sua política. Neste
último sentido, questão que surge no comentário do autor da época mas que escapou ao dos
autores da biografia de D. Afonso VI, a abertura do governo era demonstrada não só pelo
decreto do governo habilitando mecânicos aos serviços e às honras do poder régio, mas ao
354
355
D. Afonso VI. Porto: Livraria Civilização, 1940. pp. 130-131.
CARDIM, P. e XAVIER, A. B. op. cit. pp. 160-161.
173
modo como Castelo Melhor prestou contas naquele momento da utilização dos recursos feita
pelo governo (esse o indecoro, pois aí o anônimo identifica o nivelamento entre valido e
sapateiro).
Assim também o fazia o Mercurio Portuguez na medida em que ia desenvolvendo o
seu discurso. Ao mesmo tempo em que demonstrava a força e o destemor do governo,
buscava diluir as acusações de autoritarismo, apresentando um governo preparado e
organizado para ouvir as queixas e as propostas dos conselhos e dos demais setores políticos e
sociais portugueses. Um governo que apresentava propostas transformadoras da realidade
presente, mas que não as aplicavam sem debatê-las com as instituições competentes. E se tal
governo, através da polêmica visita à Casa dos Vinte e Quatro, permitia-se prestar conta de
seus atos diante de uma platéia pouco nobre, a publicação do Mercurio procurava provar que
isto era feito, diretamente pelo secretário de Estado, aberta e mensalmente.
E isso o fazia procurando responder e intervir no ambiente político instável que
Antonio de Sousa de Macedo via em torno e dentro do governo de que era um dos expoentes
representantes. Como foi visto em várias de suas edições, através do que o Mercurio dizia, e
do que não dizia, embora aquele governo tenha iniciado diante do recrudescimento da guerra
no front, as principais batalhas travadas pelo periódico eram as disputas políticas que
encontrava dentro das fronteiras do reino. Por um lado, a pena do Mercurio investia no
mascaramento das queixas e conjuras dirigidas contra o rei e seus ministros, sobre as quais
fazia apenas dissimuladas menções, traçando um quadro de harmonia, regularidade e intenso
trabalho do novo governo, e outro de força, inteligência e superação no ambiente militar. Seu
discurso apresentava um Portugal unido e renovado contra o poderoso, mas cada vez mais
ridículo e enfraquecido inimigo externo. Neste sentido a única oposição àquele governo – e
Macedo procurava fazer crer que qualquer oposição a ele – era a movida pelos interesses
castelhanos. Por outro lado, o Mercurio era também o espaço da defesa da política implantada
pelo governo, não só das práticas que indicavam o esforço de alargamento da área de ação do
poder régio, mas também de um conjunto de medidas tornadas possíveis por tal esforço,
destinadas a operar nítidas transformações em relação ao legado deixado pelo governo
anterior, deposto em 1662. O resultado mais palpável destas transformações, e mais
visivelmente anunciado pelo periódico, observava-se nos campos de batalha, e acompanhavase em Lisboa pelas narrativas mensais do Mercurio. Outros aspectos desta mudança, porém,
eram destacados pela pena do secretário de Estado, entre elas a dedicação do monarca e de
seus ministros e uma nova postura política diante da direção da guerra, desde a adoção de
estratégias mais ofensivas, até uma reestruturação das finanças e da logística militar. E ainda
174
mais sub-repticiamente, buscava o próprio Mercurio Portuguez significar também tal
mudança, simbolizando talvez uma iniciativa de alcançar o apoio e uma relação mais direta
com setores da sociedade em que certamente o novo governo identificava uma notável força
política.
Antes de mais nada, o secretário de Estado intencionava demonstrar, através da
publicação de seu periódico, a afinidade do governo com o empreendimento de uma
publicização da política, agora posta diante de mais vasta e indistinta sociedade. Isto Antonio
de Sousa de Macedo não pretenderia se identificasse como seu público apenas diplomatas e
políticos estrangeiros, e muito menos se apenas nobres cortesãos. A publicação do Mercurio
Portuguez dá indícios da percepção de uma nova arena política, em que as armas em combate
eram os impressos, os discursos, as idéias. Um terreno em que Macedo viu a capacidade e a
necessidade da intervenção do Estado, posto que não o controlava, mais na opinião que nas
forças.
A percepção da relevância política desta opinião certamente não era exclusividade ou
pioneirismo de Antonio de Sousa de Macedo; mas o modo com que as práticas políticas
deviam lidar com ela era certamente uma questão que, entre outras, dividia a política
portuguesa de então. Macedo, e também outros políticos de seu tempo, procurou estimular a
existência e a importância desta arena pública, e jamais menosprezou a força política das
exigências representadas pelo público cuja opinião considerava necessário conquistar, e
convencer. Opositores daquele governo, como o padre Antonio Vieira, não deixaram de
perceber como a publicização das medidas políticas do governo procurava conquistar uma
base de apoio que limitasse o sucesso da resistência a tais propostas oferecida pela ação da
oposição no plano interno dos mecanismos mais tradicionais da política. Outros opositores,
como João Nunes da Cunha, Francisco Ayres, e posteriormente os anônimos autores dos
pasquins e papéis que se disseminariam a partir de 1667, buscaram também se servir das
mesmas armas adotadas por Macedo, e faziam publicar também suas críticas e suas
provocações contra o governo. Neste terreno, a argumentação e também a dissimulação eram
partes constituintes da arte de governar, e da de enfrentar o governo. Porém, nos espaços em
que tais textos eram lidos, e discutidos, tal dissimulação não devia, e nem podia pretender,
esconder as posições dos contendores daquela batalha pela opinião, ou não eles não a
conquistariam. Cabe aos historiadores do presente a tarefa de não se deixar enganar, tal como
os leitores coevos não se deixavam.
Uma década após a queda de Antonio de Sousa de Macedo, do conde de Castelo
Melhor e de D. Afonso VI, outro opositor daquele governo, D. Luis de Meneses, já conde da
175
Ericeira, publicou sua versão da história do Portugal restaurado, e, não por acaso, calou sobre
a difusão de impressos durante o período, e calou sobre a existência desta arena política em
que atuava a publicação do Mercurio Portuguez. Com o tempo, o que era uma opção política
de Ericeira tornou-se uma versão oficial e fiel dos acontecimentos, um relato isento em que os
historiadores podiam encontrar os principais personagens e fatos daquela época, na guerra, na
diplomacia, e na política cortesã. A historiografia sobre a Restauração, e principalmente sobre
o período de publicação do Mercurio, demorou muito para se desvencilhar dos termos e dos
enfoques colocados por aquela narrativa, e demorou ainda mais para reencontrar os outros
espaços em que a política portuguesa se desenvolveu, se transformou.
O estudo feito até aqui do Mercurio Portuguez, embora notadamente limitado pelo que
ainda há de obscuro e incompleto em relação à compreensão do enredo político em que esteve
inserido, procurou dar mais um passo, pouco seguro, mas consciente, em direção à superação
deste incômodo legado.
176
5
CONCLUSÃO
Antigamente era cousa mui presada ter um
conselheiro de Estado para saber um segredo;
agora se compra tudo isto com um vintém.356
Antonio Vieira, carta ao marquês de Gouveia,
23 de fevereiro de 1665.
Na introdução deste trabalho, foram as cartas do padre Antonio Vieira, e suas críticas
ao Mercurio Portuguez, em meio às confabulações trocadas com seus correspondentes, que
despertaram os primeiros movimentos da interpretação, que até aqui se realizou, do discurso
do periódico sobre a guerra da Restauração e sobre o governo de D. Afonso VI, por ele
representado diante de seus leitores. Foi por sua pena mordaz que se trouxe à tona, em
primeiro lugar, a relevância daquele segundo periódico português no cenário político com que
o jesuíta se debatia.
Se Vieira se preocupava, diante de outros como ele opositores do governo constituído
a partir de junho de 1662, em ironizar, e até contestar o modo como Antonio de Sousa de
Macedo divulgava os movimentos da guerra, e suas propostas políticas trazidas à público, era
porque entendia ser o seu periódico um ingrediente interveniente no desenvolvimento da
política portuguesa, tanto ou mais do que as conjunturas astrológicas sempre comentadas em
sua correspondência. Na carta em que destilava sua crítica mais áspera e direta ao Mercurio,
acusava o secretário de Estado de atender ali, com conseqüências nefastas para o destino de
Portugal, aos rumores do vulgo, da população de baixa extração, em detrimento dos conselhos
representados pelos grandes de Portugal. O jesuíta sabia que caberia a uma facção da nobreza
combater, minar, e até mesmo derrubar o novo governo, e que ela deveria a todo momento ser
estimulada a desempenhar tal papel.
Neste intuito é que, já agora se pode ver com mais clareza, se incluía a detração do
lugar ocupado pelo Mercurio Portuguez, e seu redator, naquela conjuntura, pois sua própria
existência servia para o diagnóstico de uma inversão de valores políticos representada pelo
novo governo, justificativa ótima para o fortalecimento da oposição que, as cartas de Vieira
dão mostra suficiente, articulava-se permanentemente e se intensificava a cada novo desterro,
mau palanque de onde se poderia, segundo o próprio padre, observar a salvo – e quiçá atiçar –
356
VIEIRA, António. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. v. 2, pp. 125-126.
177
a fúria dos touros que se anunciava. E era isto que Vieira fazia, e outros certamente o
acompanhavam, ao declarar que a publicação do periódico traduzia-se no reforço da pressão
do vulgo sobre as esferas de decisão políticas e militares de Portugal. Tal também era
intenção do comentário presente na carta de 23 de fevereiro de 1665 ao marquês de Gouveia,
cujo regresso a Lisboa havia sido permitido desde o aniversário do rei no ano anterior, posto
como epígrafe da presente conclusão.
Na missiva, Vieira referira os mesmos prognósticos pessimistas sobre o cometa que
comentaria a D. Rodrigo de Meneses em carta do mesmo dia, e aconselhara prudência ao
marquês por estar de volta ao jogo de tabuleiro que lhe parecia a Corte de então, e passou
então a criticar a mais recente edição do Mercurio, sobre o mês de janeiro, em que seu
prognóstico político, além de menosprezar qualquer presságio político-astrológico aventado
por seus inimigos, e divulgar descrédito e destemor em relação às prevenções militares de
Castela, trazia novidades sobre a política castelhana, e informações sobre os preparativos
lusos para a próxima campanha. Se antigamente prezava-se muito a proximidade com um
conselheiro do Estado para conhecer tais segredos, agora era possível comprá-los por um
vintém. Pode-se crer, talvez, ter sido uma hipérbole própria ao exercício da oposição política a
acusação de que Macedo com seu periódico tornava os rumores do populacho partícipes da
decisão política portuguesa daqueles anos, mas é inegável o acerto com que Vieira
identificava uma substantiva ampliação da esfera de debate político representada por sua
publicação, e o estudo que ora se finaliza pretendeu acima de tudo corroborar com tal
percepção.
Ao longo dele, buscou-se identificar e interpretar o discurso tecido por Antonio de
Sousa de Macedo através da publicização mensal dos eventos militares e políticos que
definiriam os rumos da monarquia e do reino restaurados décadas antes. Para tal, o conselho
retirado da queixa de Antonio Vieira fez-se baliza metodológica: era preciso enfocar tanto o
que o periódico dizia, como o que deixava de dizer. Para um resultado por vezes reiterativo,
mas espera-se que jamais monocórdio, pesou a necessidade sentida de destacar insistências, e
nuances, para uma apreciação completa do posicionamento do Mercurio Portuguez diante dos
problemas analisados.
Em primeiro lugar, a partir da leitura do discurso justificativo do primeiro número do
periódico, e das notícias e comentários divulgados em suas edições subseqüentes, foram
apresentados os primeiros elementos que importaram a seu redator considerar, através dos
quais se procurou vislumbrar os inimigos que viu necessário combater de pronto, enquanto
nas fronteiras do reino aproximavam-se as batalhas definitivas com o castelhano. Em torno
178
destas edições centrou-se o primeiro capítulo da dissertação. Pôde-se então avaliar que, apesar
do esforço inicial em fundamentar a publicação como arma de convencimento dos políticos
estrangeiros, terreno em que o inimigo externo mostrava-se experiente e eficaz, mais na
opinião que nas forças conquistando sua condescendência, tal utilidade se desvanecia diante
dos problemas internos a que o periódico buscava responder. Conjurações, tormentos
impostos à população pela intensificação da guerra, além de impostos tormentosos, tumultos e
motins, foram determinantes na definição do discurso do Mercurio desde seus primeiros
meses de impressão. A afirmação de que o objetivo daqueles textos era diplomático,
ilusionismo que decerto não escapava aos observadores mais argutos, cumpria principalmente
a função de dissimular a dissidência interna que motivava o recurso à tipografia. Para a
interpretação neste sentido, foram importantes aliados as cartas enviadas ao governo desde a
fronteira tumultuada do Alentejo de 1663, bem como as outras narrativas daqueles eventos,
escritas simultânea ou posteriormente ao periódico.
O segundo capítulo, dedicado como esteve a ressaltar os diferentes âmbitos e
momentos das formas narrativas da guerra do período abarcado pela redação de Antonio de
Sousa de Macedo, ateve-se mais ao texto do Mercurio, objetivando compreender em última
instância quais questões colocavam-se ao secretário de Estado em sua descrição dos diferentes
eventos militares nas fronteiras de Portugal, e como elas plasmavam seu discurso sobre eles.
Neste sentido, percebeu-se em primeiro lugar como Macedo considerou importante, em se
tratando daqueles pequenos recontros, escaramuças e saques que assolavam cotidianamente a
população da zona de combate, valorizar os protagonizados e vencidos pelas tropas
portuguesas, e ao mesmo tempo diminuir o impacto na opinião, do perigo representado pelas
investidas castelhanas.
Já quanto aos feitos militares de maior vulto, acompanhou-se quase cronologicamente
a transformação da linha mestra do discurso do periódico: em 1663, a partir da retomada de
Évora, Macedo entoa a capacidade de superação das forças portuguesas, identificando na
bizarria e eficiência dos soldados, e na inteligência dos chefes militares, a sua causa imediata;
em 1664, aproveita o recuo do investimento militar castelhano no Alentejo e o incremento do
português, para, além de defender publicamente a polêmica adoção de uma estratégia militar
ofensiva, demonstrar a agora superioridade do exército português ao castelhano, moldando
sua narrativa de modo a divulgar vitórias limpas, sem derramamento quase do sangue
português, desta forma, inclusive, respondendo ao tipo de crítica representado pela carta de
Antonio Vieira a D. Rodrigo de Meneses; entre os anos de 1665 e 1666, o advento do último
grande esforço pela recuperação militar de Portugal, simbolizado pela chegada do marquês de
179
Caracena ao comando do exército castelhano, o empenho de sua narrativa de guerra volta-se
para a detração da estratégia inimiga, para o que a vitória na batalha de Montes Claros
contribuiu tão decisivamente quanto para a derrota definitiva de Castela.
Foi na narrativa desta batalha, de junho de 1665, que Macedo atribuiu a Afonso VI a
epítome de Vitorioso, com que se percebeu que o enfoque de seu periódico sobre a guerra,
considerado em seu conjunto, prestava-se à exaltação de uma época, época de sua publicação,
e do governo que representava, o que motivou o objeto de análise do terceiro e último capítulo
desta dissertação, partindo das notícias do Mercurio Portuguez sobre o Estado e sua atuação
em relação à guerra. Nele, pôde-se perceber como o secretário de Estado procurava vincular à
transformação que seu periódico acompanhava e valorizava, mês a mês, na situação de
Portugal diante de seu adversário na guerra da Restauração, a mudança de governo iniciada
com o golpe palaciano de junho de 1662. Se até então era conhecida e temida a superioridade
do exército de Castela, numérica e tática, e se constantemente ponderava-se que a recuperação
de Portugal só não se havia realizado pela prioridade dada por Felipe IV a outros fronts,
discurso que os impressos castelhanos após o tratado dos Pirineus veicularam não só na
Europa transpirenaica, as derrotas com que o avanço do inimigo foi interrompido deram azo a
que o Mercurio não só combatesse tais argumentos, e o que deles ficou impresso na opinião
dos portugueses, como atribuísse a antiga inferioridade ao mau governo até então verificado
no reino, o que o governo de D. Afonso VI procurava, e alcançava, corrigir a tempo.
É com este intuito que Macedo publica a fala de Afonso aos conselhos da Guerra e do
Estado, e sua proposta de fazer jornada ao Alentejo, simultaneamente representando a seus
leitores que o monarca pressionava a nobreza a participar do esforço militar premente àquela
altura, mas que nem por isso colocava suas vontades acima das determinações dos membros
daqueles conselhos – como Vieira acusaria, quase um ano depois. Neste discurso, porém,
destaca-se principalmente o elogio à atuação do escrivão da puridade Luis de Vasconcellos e
Souza, conde de Castelo Melhor, iniciado discretamente já na primeira edição do periódico,
mas realizado já com estrondo meses depois, com a notícia da mudança do provimento das
praças e exército do Alentejo, passagem das mais significativas da novidade representada pela
publicação do Mercurio no Portugal daquele tempo, mas principalmente da modalidade de
intervenção política que o secretário de Estado através dele defendia e assumia como marca
daquele governo, pois com tal notícia, além de disponibilizar por um vintém os meandros da
medida política ali anunciada, divulgava a preocupação do governo em, antes de aplicá-la,
convencer aqueles que a criticavam de sua importância e plausibilidade.
180
Encerrando o último capítulo, após percorrer e demonstrar importantes conseqüências
da divulgação daquele grande feito, mais político do que bélico, para a continuidade das
notícias do periódico sobre os preparativos de guerra, e da exaltação da política militar
portuguesa, sempre em comparação com os erros castelhanos – com que Macedo
dissimuladamente rebatia as críticas vigentes ao rigor dos impostos, à malversação de fundos,
e ao valimento de Castelo Melhor – importou considerar que, apesar de o discurso do
Mercurio Portuguez trazer dados que podem ser incorporados à tese historiográfica acerca da
reciprocidade causal entre o fortalecimento da máquina estatal e o incremento da atividade
bélica na Europa da chamada revolução militar, para a compreensão do periódico, objetivo
primeiro desta dissertação, mais do que defender o vínculo entre Estado e guerra, era urgente
para o secretário de Estado defender a relação entre o governo e a vitória. Para tal o impelia a
instabilidade política vivida pelo governo que o Mercurio representava, e para combater a
oposição política que a cada momento se armava e se reorganizava é que Macedo fez do
recurso à tipografia e da publicização da política suas principais armas.
Sobre a articulação e a evolução desta oposição, e de outras mais, ao governo de D.
Afonso VI, e sobre as práticas e projetos políticos que estiveram em pauta nestes turbulentos
anos em que, junto com o monarca, ocuparam este governo homens como o conde de Castelo
Melhor e Antonio de Sousa de Macedo, ainda há muito que elucidar, e distinguir, e apontar a
indefinição deste campo de estudos espera-se ter sido uma função, ao menos, além daquela já
declarada de estimular novas leituras do Mercurio Portuguez, do trabalho que por enquanto se
encerra.
181
6
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