UM IDEAL DE PERFEIÇÃO: O CORTERSÃO E AS CORTES RENASCENTISTAS ITALIANAS NO INÍCIO DO SÉCULO XVI Autora: Ana Paula Martins Pereira Orientadora: Dra. Ana Paula Vosne Martins Palavras-chave: Renascimento, Cortesania, Civilidade tarefa de modelar com palavras um perfeito cortesão”1 é o objetivo do jogo escolhido em mais uma noite na corte, onde a conduta social é o alvo das atenções de homens e mulheres instruídos nas chamadas humanidades. Disciplinar o corpo e desenvolver habilidades é uma questão que vai além da boa convivência. Saber a maneira correta de sentar, andar ou comer são aspectos sociais, embora a naturalidade com que aprendemos realizá-los nos faça pensar que são inatos ao homem. A definição dos comportamentos considerados certos é algo que está em constante mutação, segundo Elias2 essa mudança tem ocorrido no sentido da contenção das emoções de modo a demonstrar uma maior sensibilidade do sentimento de repugnância, ou seja, a delicadeza com que se manifesta o comportamento é um indicativo de civilidade. Assim, o comportamento social tem grande influência nas esferas políticas e culturais, visto ser um meio de distinção social. Estas transformações nas maneiras é o que o autor chamou de processo civilizador. Entende-se a expressão civilização como tudo aquilo que uma sociedade se orgulha por considerar mais avançado: técnica, cultura ou comportamento, seja em consideração ao passado, ou à outra cultura. Sendo assim, o momento presente é sempre considerado como o mais civilizado. Elias pensou o processo civilizador na primeira metade do século XX, e a partir de suas idéias outros autores passaram a se preocupar com o comportamento a que grupos sociais estavam sujeitos. Este autor percebe que o Ocidente passa pelo processo em direção a civilização de forma mais acentuada no final da Idade Média, assim outros historiadores procuraram perceber o quanto os usos e costumes influenciaram a vida durante a Renascença. Desta maneira, Haroche e Courtine falam que com a civilidade surge o imperativo da observação das posturas exteriores do corpo3; e em outro momento Haroche percebe a importância política da contenção dos corpos a partir da máxima “controle de si para controle dos outros” que, resgatada dos escritos clássicos de Platão, foi adquirindo cada vez mais significado até se encontrar na sociedade de corte do século XVII, quando a hierarquia social era bastante rígida e o controle social se fazia por mínimos gestos cheios de significado, como por exemplo, o monarca que poderia ser reconhecido pelo andar4. Sendo assim, o controle dos corpos, seja de seus movimentos, de sua expressão ou de necessidades fisiológicas torna-se um imperativo para a distinção social. Durante o Renascimento o advento da imprensa fez com que as premissas do comportamento que eram transmitidas de forma oral fossem publicadas, de maneira a afirmar aquele conjunto de atitudes e divulgá-los para a posteridade. O Renascimento foi um período em que ocorreram grandes mudanças. Apesar de não se configurar como um momento de ruptura com o período medieval, como disse Burckhardt5, foi durante o Renascimento que se estabeleceram avanços técnicos, científicos e artísticos que possibilitaram que a cultura ocidental ultrapassasse, pelo menos “A 1 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. São Paulo, Martins Fontes, 1997. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma História dos costumes. Vol.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. 3 COURTINE, Jean; HAROCHE, Claudine. Histária do rosto. P. 21 4 HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto.Campinas: Papirus, 1998. 5 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Cia das Letras, 1991. 2 em técnica, as demais6. Esses avanços foram possíveis graças ao pensamento humanista desenvolvido na época, que se caracterizava pelo sentimento de civismo, uma grande apreciação das artes, sejam plásticas, literárias ou musicais e a crença na capacidade humana de aperfeiçoamento que ocorre através do conhecimento e do comportamento7, com atitudes repletas de virtudes e honra. O processo civilizador do Ocidente passa a acontecer de forma mais acentuada no final da Idade Média. Ser homem virtuoso, no Renascimento, é um demonstrativo de civilidade, do mesmo modo que saber se portar à mesa ou se vestir de maneira adequada. Todos esses preceitos são constantemente encontrados em manuais de conduta da época, gênero literário que teve grande aceitação do público culto, visto que, com poucas exceções, os manuais de conduta se interessavam em retratar os ambientes da nobreza, como as cortes, proporcionando aos freqüentadores destes o aprendizado das atitudes esperadas. Os manuais de civilidade são um exemplo claro de que o processo civilizador deve ocorrer tanto na esfera social, quanto na individual. Isto significa que a partir do momento em que grupos sociais estabelecem os preceitos considerados civilizados, cada membro do grupo deve se adaptar a eles. Desta forma se o processo civilizador social só é perceptível através de longos períodos de tempo, mas o processo civilizador individual se desenvolve em cada pessoa desde a sua infância, de modo que lhe é ensinado tudo aquilo que é aceito pela sociedade. Assim, manuais de conduta ou etiqueta, são instrumentos utilizados no aprendizado da civilidade individual. Este trabalho utiliza como fonte o manual O Cortesão, de Baldassare Castiglione publicado pela primeira vez em 1528. É um manual escrito em forma de diálogo, de modo que as discussões presentes no livro nem sempre cheguam à conclusões claras, deixando espaço para as interpretações dos leitores. A obra retrata a constituição do ser social perfeito e a sociabilidade da corte de forma idealizada. Burke apresenta indícios de que este manual fosse uma “resposta a uma época de crise política e mudança social”8, visto que o modo de vida das cortes renascentistas estava sendo ameaçado por avanços técnicos e mudanças políticas, como as monarquias centralizadas em países vizinhos, nas quais a hierarquia social das cortes se enrijecia cada vez mais, desta forma a maneira ideal como a corte de Urbino é descrita se configura como um meio de afirmar o papel social da nobreza italiana. Fica claro ao entrar em contato com o livro O Cortesão9 que o autor possuía uma preocupação em transmitir aos seus leitores uma idéia de civilidade a partir da convivência amistosa e agradável presente na obra e dos ideais de homens e mulheres que são apresentados. Assim a obra se mostrou interessante para este trabalho que tem como objetivo identificar o ideal de perfeição que os nobres renascentistas almejavam alcançar. Essa identificação é possível por entender que foi um livro que teve grande aceitação do público, visto o número expressivo de publicações e traduções que a obra sofreu por toda a Europa nos séculos XVI, XVII e início do XVIII. Esse ideal nos leva a problematizar a que tipo de sociabilidade este ser perfeito estava sujeito. Burckhardt10 considera as cortes renascentistas como a forma mais elevada de sociabilidade, onde a beleza desta formação social era ditada pela convivência e pelo decoro. No entanto, é possível perceber um contraste com o contexto renascentista que, segundo Delumeau11, se define também por um lado obscuro, repleto de perseguições e traições, se distanciando da abordagem de Burckhardt e da idealização de Castiglione. 6 DELUMEAU, J. A civilização do Renascimeto. Vol. 1. Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 20. Preceito encontrado no livro Dignidade dos homens, de Pico dela Mirandola (São Paulo: Editora Escala), publicado em 1486. 8 BURKE, Peter. As fortunas do Cortesão. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p. 47. 9 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 10 Op. Cit. BURCKHARDT, Jacob. 11 Op. Cit. DELUMEAU, Jean. 7 Assim o trabalho se divide em três capítulos. O primeiro denominado “A Renascença à época de Castiglione” se dedica a analisar o contexto em que a fonte foi redigida, ou seja, procura explicar as características do Renascimento e do pensamento humanista, assim como entender o que significava viver em uma corte renascentista italiana, observando os papéis sociais dos indivíduos que ali conviviam. Ainda no primeiro capítulo é apresentada a fonte e seu autor, identificando os personagens, que foram humanistas que viveram na Itália do final do século XV, e observando a estrutura da obra. O segundo capítulo “A educação do homem de corte” se concentra na figura do cortesão, enfocando primeiramente sua formação como homem de armas e como humanista. Em seguida, procura identificar as atitudes que estes indivíduos deveríam ter frente aos seus pares, visando uma agradável sociabilidade constituída de conversas de cunho filosófico ou histórico, além divertimentos como a dança e o cortejo das damas. Assim nota-se a importância da civilidade na formação deste cortesão. No entanto, o que se destaca no capítulo é a importância que sua relação social com o príncipe adquire. A partir da premissa de controle corporal identificamos um dever cívico do cortesão, ou seja, a civilidade interferindo na esfera política, pois todas as habilidades conferidas ao cortesão devem ser repassadas ao príncipe, com o intuito de que este governe com sabedoria e justiça, objetos da civilidade. O último capítulo fala do contraste das idéias sobre a mulher renascentista, a partir da discussão que se instala entre os personagens: por um lado o pensamento misógino e por outro um elogio à virtude feminina. A partir desta discussão, que segue até o final do livro, identificamos a dama palaciana perfeita como uma mulher que acima de tudo é honrada e virtuosa, além de versada nas humanidades. Isto porque sua principal relação social se faz com o cortesão, não apenas como boa mãe e esposa dedicada, mas principalmente como um agente civilizador, responsável por uma maior contenção do corpo e dos instintos masculinos, assim como inspiração para as realizações artísticas, como a poesia e a música. Enfim, ainda que o cortesão ou a dama palaciana idealizados não tenham saído das páginas do livro, é possível perceber que um comportamento novo estava se estabelecendo, prevendo um conjunto de práticas limitadas pelo sentimento de vergonha e decoro também pela preocupação com o bem estar do outro, sendo um passo importante no processo civilizador. Essa sociabilidade preocupada com o bem estar do outro e com o aperfeiçoamento individual teve uma curta duração, entretanto é possível perceber sua influência na formação da sociedade de corte do século XVII, mais rígida e preocupada com o controle social, e num conjunto de costumes civilizados que reconhecemos até hoje.