II Congreso de Estudios Poscoloniales y III Jornadas de Feminismo Poscolonial
Mesa temática: 4 - Estudos culturales – Literaturas poscoloniales
Título: As frutescências do corpo poético feminino
Autoría: Assunção de Maria Sousa e Silva
Pertenencia institucional: PUC MINAS / Bolsista FAPEPI/CAPES
Correo de contacto: [email protected]
As frutescências do corpo poético feminino
RESUMO
A escrita de autoria feminina em países periferizados, como o Brasil, no contexto da
geopolítica ocidental, demarca uma fase inovadora do sistema literário. Este sistema,
moldado sob visão eurocêntrica, sustenta-se por uma crítica que procura deslegitimar ou
até mesmo ignorar as crescentes produções de autores(as) afrodescendentes que
rompem com a centralidade de outras predominantemente de autores masculinos e
brancos. Com um tom discursivo distanciado daquele apreendido no mundo regido por
uma universalidade e estereotipação que terminam por naturalizar as desigualdades, a
poética de Conceição Evaristo se desenvolve numa escrita que tematiza a história do
sujeitos femininos e negros e seu cotidiano, trazendo para o foco poético as lutas
travadas que acusam a condição subalterna. A eleição deste segmento como sujeito
enunciador do discurso problematiza e questiona o discurso hegemônico de visão
eurocêntrica que predomina no cânone literário brasileiro. As ideias de Inocência Mata,
em diálogo com Ella Shohat, e de Silviano Santiago norteiam este breve artigo cujo
objetivo é refletir sobre a poética da autora afro-brasileira, quando alia a experiência
estética à vivência do cotidiano no contexto pós-colonial brasileiro, denunciando
lugares e posições preestabelecidos aos sujeitos subalternizados. Nos poemas de
Evaristo, reconfiguram-se espaços socioculturais em que o sujeito feminino e o étnico
são esferas propulsoras de novos paradigmas. Sob o ponto de vista dos estudos póscoloniais, o que está em foco na poética de Evaristo são as rasuras das relações
etnicorraciais e de gênero e o modo como elas desempenham duplo papel: de
mantenedor de lugares sociais estratificados e de provocador de novas racionalidades na
assunção da consciência de resistir à condição de subalternidade.
PALAVRAS – CHAVE: Feminino. Poética. Pós-colonial. Sujeito.
Introdução
A escrita de autoria feminina em países periferizados, como o Brasil, no
contexto geopolítico ocidental, demarca uma fase inovadora do sistema literário. Este
sistema, moldado sob uma visão eurocêntrica, sustenta-se por uma crítica que procura
deslegitimar ou até mesmo ignorar a crescente produção de autoras afrodescendentes
que rompe com a centralidade e a hegemonia das produções canônicas
predominantemente de autores masculinos, brancos e sulistas como bem constata
Regina Dalcastegnè no livro Literatura brasileira contemporânea um território
contestado (2012).
Dalcastegnè apresenta as lacunas existentes no cânone literário brasileiro e o
desconforto causado pela inserção de novos autores(as) que fogem dos perfis
cristalizados, como os afrodescendentes e outros, uma vez que suas legitimidades
sempre estão sendo postas em questão. Nesse quadro, a pesquisadora procura refletir
sobre os critérios de valoração estabelecidos, suas origens, motivações e por que eles se
mantêm. Para além, Dalcastegnè, ajuda-nos a pensar quanto à urgência da representação
das produções afrodescendentes no Brasil no quadro contemporâneo, caracterizado por
romances que “privilegia[m] a representação de um espaço social restrito” e trazem
“personagens, em sua maioria, brancas, do sexo masculino das classes médias”
reservando aos demais grupos “os estereótipos”. Mais especificamente, segundo a
pesquisadora, “as mulheres brancas aparecem como donas de casas; as negras como
empregadas domésticas ou prostitutas; os homens negros, como bandidos. Assim o
campo literário, embora permaneça imune às críticas que outros meios de expressão
simbólica costumam receber, reproduz os padrões de exclusão da sociedade brasileira”
(DALCASTEGNÈ, 2012, p. 14).
Com um tom poético-discursivo avesso àquele que apreende o mundo regido por
certa universalidade e estereotipação as quais tendem a naturalizar as desigualdades e
perpetuar exclusão, Conceição Evaristo desenvolve uma escrita que tematiza as lutas
travadas no cotidiano dos sujeitos negros e sua condição racial e de gênero. A opção por
esse segmento contribui para problematizar e questionar a visão hegemônica da
sociedade excludente que confina a mulher, especialmente negra, à condição de
subalternidade.
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte em 1946, mora
no Rio de Janeiro, publicou até o momento dois romances Ponciá Vicencio (2003) e
Becos de memória (2006); um livro de contos, Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)
e outro de poemas intitulado Poemas de recordação e outros movimentos (2011). A
poetisa é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense
(UFF – RJ). Professora, participou do Coletivo de Escritores Negros do Rio de Janeiro,
no final da década de 1980, mas só começou a divulgar sua produção literária nos anos
de 1990, estreando na 13ª edição dos Cadernos Negros - uma série de produção de
autores afrodescendentes, do Quimlombhoje/SP que, em 2014, completa 36 anos.
Conceição Evaristo se destaca no cenário literário brasileiro como uma voz que
expressa a cruel situação cotidiana dos excluídos, conforme assinalam Campos e Duarte
(2011). Com estes teóricos também comungamos a visão de que na produção literária
de Evaristo “a mescla da violência e sentimento, de realismo cru e ternura revela o
compromisso e a identificação da intelectual afrodescendente com os irmãos colocados
à margem do desenvolvimento”. A poesia de Conceição Evaristo reverbera a construção
identitária cuja base está na condição étnica e de gênero. Neste sentido, sua poética
explicita, segundo Duarte (2011), “vínculos étnicos e culturais com a herança africana”.
Nesse aspecto, Conceição Evaristo assume com autores(as) afrodescendentes
contemporâneos(as) como Cuti, Esmeralda Ribeiro, Mirian Alves, Edimilson Pereira,
Salgado Maranhão, Ana Maria Gonçalves, Éle Semog, Cidinha Silva, Cristina Sobral,
dentre outros, um projeto literário afro-brasileiro em que orbitam “valores socioculturais
distintos dos abraçados pelas elites [masculinas e] brancas” já bem assinaladas na
pesquisa de Dalcastegnè (2012).
O projeto dos autores afrodescendentes vem se contrapor à visão ocidentalizante
ou eurocêntrica que ainda repercute no sistema literário brasileiro e, ao mesmo tempo,
vem propor, de acordo com Duarte (2011, p. 9), “a afirmação de uma escrita negra ou
afro-brasileira, em que o sentimento de comunidade se sobrepõe ao de nacionalidade”.
São, portanto, escritores(as) conscientes de sua condição de ‘minoria’ perante o poder
cultural e que se valem em grande medida de caminhos alternativos para atingir os
leitores” (DUARTE, 2011, p. 9).
Vale aliar essas considerações peculiares ao contexto literário brasileiro à visão
teórico-crítica de Ella Shohat (2006) quando nos esclarece sobre o legado do
colonialismo, as formas do novo processo de colonização e como se desempenha o
predomínio da visão eurocêntrica nas mais variadas culturas de países subdesenvolvidos
ou em desenvolvimento. A autora afirma que, nessa nova configuração mundial,
embora o controle colonial direto tenha praticamente chegado ao
fim, grande parte do mundo permanece sob a égide de um
neocolonialismo; ou seja uma conjuntura na qual o controle
político e militar deu lugar a formas de controle abstratas,
indiretas, em geral de natureza econômica, que dependem de
uma forte aliança entre o capital estrangeiro e as elites locais”
(SHOHAT, 2006, p. 42).
Interessa, no entanto, perceber que essas formas de controle no plano macro
repercutem de maneira rigorosa nas relações de poder no interior das culturas,
interferindo determinantemente na vida dos seres e nas relações socioculturais. Shohat
(2006) expõe com muita clareza os preceitos que embasam a dominação neocolonial,
reforçada por meio dos “contratos degradantes e dos programas de austeridade”
externos. No caso brasileiro, tais mecanismos de controle externo mesmo aparentemente
sendo menos danosos nos dezesseis últimos anos, porém a situação de exploração e de
violência continua degradante para a grande maioria da população. O Brasil segue com
muito vigor os passos da política do Ocidente. Se por um lado tem havido diminuição
do controle econômico externo, por outro, as “práticas neocolonialistas” continuam a
permear as relações de poder e de hierarquização, provocando a perpetuação de uma
sociedade desigual. E neste cenário de desigualdade, o racismo, o sexismo e o
classicismo “sobrepostos” comungam para o processo de marginalização e exclusão dos
segmentos sociais menos favorecidos.
Confluindo com a visão de Shohat (2006), Inocência Mata (2012) atenta para os
novos diálogos que se tem travados no seio da crítica pós-colonial com o intento de
construir outros meios de saberes. Para esta, “os atuais estudos culturais têm-se
organizado em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e
duais, que, porém, continuam a perpetuar a supremacia de uma estrutura ideológica e
histórica espácio-temporal” (MATA, 2012, p. 46).
Neste sentido, a pesquisadora santomense assinala que discutir “o pós-colonial
como ideologia é formular uma crítica que não omite ‘as suas tensões e contradições’ e
que ajudar ‘a esclarecer a espacialidade das relações de poder e dominação’ (...) é
percorrer os trilhos que levam a uma geocrítica do eurocentrismo” (MATA, 2012, p. 47).
Isto é,
Uma geocrítica do eurocentrismo pressupõe a instituição de um
desvio em direção a uma outra gramática alternativa com
categorias e perspectivas que neutralizem – ou pelos menos,
façam desvanecer – o peso das mediações metropolitanas da
crítica das produções culturais dos ‘países periféricos’, de
espaços periferizados, relegados a um lugar subalterno na
produção contemporânea de conhecimento (...) (MATA, 2012, p.
47).
Continua Inocência Mata (2012) salientando que
é esse desvio em direção a outro sentido que propõe a inclusão
de outras racionalidades, que vêm percorrendo muitos
estudiosos desses espaços, com especial ênfase para os das
literaturas e culturas latino-americanas, quando consideram, nas
entrelinhas do seu diverso e variado corpo de reflexões sobre
produções dessas geografias culturais, que o estudo do lugar de
cada produção estética passa, também, por uma reflexão sobre o
percurso cultural de uma geração ou de uma nação” (MATA,
2012, p. 47).
Diante disso, situar a poética de Conceição Evaristo e de outros(as) autores(as)
afrodescendentes por tal viés teórico, é acolhe-los numa dinâmica inclusiva e plural
desviante que contribui para inseri-los na dimensão de outras e novas racionalidades.
Silviano Santiago, já bem enfatizara, no ensaio “O entre-lugar do discurso latinoamericano (1978), a contribuição da América Latina para cultura ocidental. Segundo ele,
a “maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição
sistemática dos conceitos de unidade e de pureza”. Se isso acontece no sentido macro
em que se estende a relação entrecontinental, ao focarmos a nação brasileira, podemos
perceber que a literatura produzida por muitos afrodescendentes tende a desmitificar
e/ou desconstruir conceitos que vigoram de forma insistente no seio da literatura
brasileira canônica. Portanto, parece por demais propício considerar as visões teóricas
aqui expostas para iluminar a breve análise dos poemas de Conceição Evaristo a seguir.
A poética de Conceição Evaristo
A poética de Conceição Evaristo traduz uma vivência, ou melhor uma
“escrevivência” - termo criado pela escritora – que aponta para a vivência do eu e de
outros iguais como também para o ato de escrita que traduz o estado da existência dos
próprios sujeitos à deriva dos projetos de nação. Esses sujeitos representam os excluídos
dos projetos nacionais até então realizados para atender as prerrogativas de uma política
neocolonial (ou neoliberal) em detrimento das demandas de inclusão social.
Especialmente, a retomada da história vivida pelos afrodescendentes é a estratégia de
construção poética em “Filhos da rua”.
O banzo renasce em mim.
Do negror de meus oceanos
a dor submerge revisitada
esfolando-me a pele
que se alevanta em sóis
e luas marcantes de um
tempo que está aqui.
O banzo renasce em mim
e a mulher da aldeia
pede e clama na chama negra
que lhe queima entre as pernas
o desejo de retomar
de recolher para
o seu útero-terra
as sementes
que o vento espalhou
pelas ruas...
(EVARISTO, 2011, p. 19)
O poema retoma por alegoria o navio negreiro e faz do eu poético metonímico
do segmento negro no percurso da travessia dos escravos em rota da forçada diáspora. O
sujeito que fala no poema procura traduzir sua condição de alguém tocado pela dor e
pela melancolia que são sequelas históricas herdadas no corpo que inconsciente ou não
perpetuam uma “colonização invisível” (MATA, 2012). É na dor testemunhal que o
sujeito poético revisita os porões da história para retomar a memória da escravidão. O
“renascer do banzo”, verso que moldura inicialmente as duas estrofes do poema, diz da
continuidade do estado de espoliação histórica em que vive a pessoa negra brasileira.
Esta memória revisitada encena a trama e revigora o trauma que parece não cicatrizar. A
continuidade descontinua por “sóis” e “luas”, isto é, um ciclo que se refaz
constantemente no ato de “renascer do banzo”, provoca aspiração ao retorno “de
recolher para/ o seu útero-terra/ as sementes/ que o vento espalhou”. “Útero-terra”
remete a um tempo e lugar utópicos onde não haveria a marca da exploração. No desejo
de “retomar” as origens não deixa de explicitar a ideia de reconstituição de uma
irmandade e sentimento de comunidade entre as “sementes” da diáspora espalhada
como via de resistência do povo negro. “Do negror de meus oceanos” ao “desejo [...] de
recolher” atende para essa resistência.
Em “Meu rosário”, Evaristo evidencia a condição feminina negra que constata a
sua invisibilidade numa cultura que se diz mestiça e plural. O eu enunciador se situa
fora do lugar no âmbito do exercício de sua crença religiosa. O poema testemunha a
negação da inclusão cultural na cena que rememora “as coroações de Senhora, em que
as meninas negras, apesar do desejo de coroar a rainha, /tinham que se contentar em
ficar ao pé do altar/ lançando flores” (EVARISTO, 2011, p. 23). Nesse ato de relembrar
uma “memória mal adormecida”, o poema contribui para desmascarar a ideia de “mito
da democracia racial brasileira” tão assegurado nos discursos e nas teorias, mas que cai
por terra no âmbito das relações etnicorraciais. A constatação de uma identidade
brasileira híbrida não dispensa os “lugares cativos” e cristalizados no imaginário
eurocentrado que forja permanentemente a invisibilidade do segmento negro.
Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
padres-nossos, aves-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques
do meu povo
e encontro na memória mal adormecida
as rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações de Senhora, em que as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos
nas minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,
nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
As contas do meu rosário são contas vivas.
(Alguém disse um dia que a vida é uma oração,
eu diria, porém que há vidas-blasfemas).
Nas contas de meu rosário eu teço intumescidos
sonhos de esperanças.
Nas contas do meu rosário eu vejo rostos escondidos
por visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas
de meu rosário.
Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome
no estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas de meu rosário,
eu falo de mim mesma um outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas,
vidas que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário,
que são pedras marcando-me o corpo-caminho.
E neste andar de contas-pedras,
o meu rosário se transmuta em tinta,
me guia o dedo,
me insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conta do meu rosário,
me acho aqui eu mesma
e descubro que ainda me chamo Maria.
(EVARISTO, 2011, p. 22-24)
O poema de versos irregulares identifica, ao mesmo tempo, a indisposição com a
norma e a negação de uma obediência a códigos. A forma do poema alinha-se a uma
concepção de poesia que desconstrói o antigo preceito formal forjado numa dicção de
“unidade” e “pureza” de estilo e procura, a partir da construção dos versos que lembram
o gênero depoimento, remeter à “reviravolta” dos conceitos. Desta maneira, ele introduz
de forma prosaica a problematização do pensamento dominante que tende a colocar fora
de foco a presença africana no âmbito da crença e dos costumes. O efeito discursivo
promove questionamento e denuncia a realidade de subjugamento e desigualdade.
Logo no início do poema, a evocação do elemento híbrido é a chave para a
construção do tecido poemático. O rosário simboliza a predominância de conceber uma
transcendência pela via cristã, representação do legado cultural do catequizador
(português). Porém, o processo de hibridez toma corpo na menção às “contas negras e
mágicas”, numa incisiva identificação de mesclagem entre o ritual cristão e o de matriz
africana, reafirmado na imagem de “Mamãe Oxum”. Assim, modela-se a via sincrética
reiterada nos fios “padres-nossos e ave-marias” e canto à Oxum que perfazem o tecido.
É através da memória individual e coletiva que o poema retoma “os longínquos
batuques” e as “contas” metaforizadas nos “calos nas mãos” produzidos pelo trabalho.
As lembranças inventariam as sonegações diárias que tolhem a dignidade social e
histórica, deixando vir à tona a crueza da invisibilidade que o cenário de exclusão social
e cultural reitera. Os efeitos do processo de subalternização estão simbolizados e
disseminados na menção a elementos de espaços sociais: trabalho, fábricas, ruas,
escolhas..., remetendo a cenários da gradativa espoliação a que o sujeito negro fora
confinado. É através do rosário, como metáfora da “vida-blasfema”, que a realidade de
“fome no estômago, no coração e nas cabeças vazias” se instala. Antes, porém, ele
ocupa a função de espelhamento dos “rostos escondidos por visíveis e invisíveis grande”
e neste termo, só resta ao eu enunciador “embal[ar] a dor da luta perdida nas contas”.
Por fim, na descrição do rosário, a predominância da aura cristã se dilui no solo
das negociações culturais mesmo que, no final do poema, o eu poético reitere a
importância de seu nome “Maria”, o mesmo da Virgem consagrada nas contas do
rosário. Nos últimos versos, imagem das contas que se transmutam em pedra, “contaspedras” reflete o movimento que aproxima o rezar, o contar e o poetar como ato de
maceramento das contas do rosário. O exercício poético traduz a busca da identidade
que é, em certa medida, reconstruída, mesmo que fragmentada e deslocada pelas
contradições e sonegações.
No contexto poético que tão bem espelha a crueza da situação em que os sujeitos
estão vitimados pela violência social e pela busca de identidade, o poema “Da menina, a
pipa” expõe outras questões centradas especificamente no feminino. Conceição Evaristo
toca em um dos pontos cruciais de exclusão do feminino: a violência sexual que traz
consigo outros males, a perda precoce da infância e da adolescência, o banimento e o
estado abjeto do corpo feminino.
Da menina a pipa
e a bola da vez
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua
um barbante áspero,
másculo cerol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.
E quando o papel
seda esgarçada
da menina
estilhaçou-se entre
as pedras da calçada
a menina rolou
entre a dor
e o abandono.
E depois, sempre dilacerada,
a menina expulsou de si
uma boneca ensanguentada que afundou num banheiro
público qualquer. (EVARISTO, 2011, p. 44)
A violência impressa no corpo feminino se explicita no manuseio poético de
termos / signos recolhidos da esfera semântica infantil, com sentidos deslocados, e na
utilização das combinações frasais nas quais os versos redimensionam a perda da
subjetividade do ser. O título “Da menina, a pipa”, construído por meio de anacoluto,
enuncia um destocamento sintático que se estende à brutalidade da tragédia vivida pela
mulher, principalmente a mulher pobre. Essa inversão frasal explora deslocamento
semântico e espelha a ruptura com a fase da infância realizada pelo “cerol cruel/ [que]
rompe a tênue linha/ da pipa-borboleta da menina” (EVARISTO, 2011, p. 44). A pureza
ou o estado normal inicial, simbolizado pela maciez da pele infantil da menina que
brinca livre na rua, é quebrada pela drástica e violenta presença do “barbante áspero”
que transpõe a linha da livre brincadeira para estabelecer o estado de terror provocado
pelo estupro e pelo abandono.
A imagem metafórica da “pipa-borboleta” coloca a menina em contraposição ao
“másculo cerol” com que a figura masculina é significada. Essa imagem se desdobra
gradualmente em outra, a da menina, violentada numa referência aos mecanismos de
sustentação da subordinação da mulher no sistema patriarcal. A personagem central, a
menina, representa um segmento que não tem voz e, subjugada pelo poder masculino ou
por outro poder, é abandonada para vivenciar o drama retomado pela metáfora da
“boneca ensanguentada”. A cena do aborto como única saída para seu banimento
repercute no estado de dilaceramento da subjetividade feminina. O sujeito feminino, em
crise, não encontra espaço de superação de sua condição de espoliado, porque está
controlado “entre a dor e o abandono” por forças exteriores a si mesmo.
O poema, por isso, sintoniza-se com o que Rita Segato (2014) expõe em
entrevista a Karina Bidaseca1, ao tratar sobre o corpo feminino. Na entrevista, Segato
considera que no corpo feminino projetava-se um “campo de batalh[a] onde se
plantavam as bandeiras do controle territorial”2 no contexto de guerra não convencional.
Entrevista de Rita Segato a Karina Bidaseca in “Muyer y cuerpo bajo control” In
Partindo da noção de corpo como território para a compreensão dos aspectos e da
necessidade de uma política de identidade em rede, a pesquisadora considera que o
corpo feminino é o “último espaço de soberania, o último que controlamos quando
todas as outras posses estão perdidas” (SEGATO, 2014). Textualmente ela diz que
o corpo das mulheres é particularmente afetado por este
paradigma territorial que domina hoje o pensamento
contemporâneo. (...) a violência sexual tem componente muito
mais expressivos do que instrumentais, não persegue um fim,
não é para obter um serviço. A violência sexual é expressiva. A
agressão ao corpo de uma mulher, sexual, física, expressa uma
dominação, uma soberania territorial, sobre um território-corpo
emblemático (SEGATO, 2014, s/p).
No poema “Da menina, a pipa” de Conceição Evaristo, o corpo – menina –
mulher se encena como cruelmente atingido pela presença da violência do masculino. É
um corpo que não pode ter controle sobre si, pois está dilacerado e sob domínio do
outro-sujeito detentor da força, bem figurado na imagem do “barbante áspero, / másculo
cerol, cruel/ [que] rompeu a tênue linha/ da pipa-borboleta da menina”. O poema se
encerra com a morte física do nascituro e a morte simbólica da menina/mulher no
espaço da cidade, local de medo e insegurança: “E depois, sempre dilacerada, / a
menina expulsou de si/ uma boneca ensanguentada que afundou num banheiro / público
qualquer.” Para a menina dilacerada pela violência, o espaço público não é da
negociação de identidades nem tão pouco onde ela pode exercer a soberania sobre seu
corpo; ele se configura como o lugar de massacre e aniquilamento.
Algumas considerações finais
A poesia de Conceição Evaristo, acolhendo predominantemente questões que
abalam as subjetividades femininas, articula um discurso poético comprometido que
denuncia a exploração da mulher negra brasileira e sua condição subalterna. Para isso,
evoca a história e a memória, evidenciando continuas dominação e exclusão pelas quais
o sujeito feminino está submetido na sociedade contemporânea. Sociedade em que
predomina o controle de outras formas patriarcais e neocoloniais sobre corpos
marginalizados em que lhes são sonegados plenos exercícios de identidades plurais.
Permanece-se outrossim a égide do controle sobre os corpos, do controle muitas
vezes invisível, nas relações de poder de feição patriarcal e neocolonial, que soterram os
direitos humanos. Na arte, na literatura e especialmente na poesia, no entanto, prevalece,
a construção comunicativa que revigora sentido e sentimento é de solidariedade entre os
sujeitos subalternizados, como adubo das sementes que se frutificam na partilha das
vozes de corpos fraturados. Em Conceição Evaristo isso procede pela veia ácida e lírica.
Com essa breve leitura de três poemas de Evaristo, reafirma-se que é na
utilização de recursos como inversão, metáfora, metonímica e da memória, como
estratégia discursiva, que se efetua a dinâmica da construção de sentidos e se empreende
um espaço poético de grande vigor crítico-reflexivo. A escrevivência de Evaristo aponta
para a história e nela projeta a vivência do cotidiano e a condição do sujeito feminino
negro em confronto com o outro - masculino, com a sociedade e consigo mesmo.
Conceição Evaristo nos oferece suas frutescências-poemas que escancaram
feridas ainda não cicatrizadas e mostram a necessidade de novas racionalidades.
- Da solidão do fruto –
Do meu corpo
ofereço as minhas frutescências,
casca, polpa, semente
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.
[...]
- Da partilha do fruto –
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de que me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.
(EVARISTO, 2011, p. 78).
BIBLIOGRAFIA
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Nandyala, 2011.
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DUARTE, Eduardo De Assis. Entre Orfeu e Exu, a afrodescendência toma a palavra. In.
DUARTE, Eduardo de Assis; Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica.
v. 1. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea um território
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MATA, Inocência. O pós-colonial como ideologia: os estudos literários e a ordem
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SEGATO, Rita. “Muyer y cuerpo bajo control. Entrevista à Karina Bidaseca. REVISTA
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SHOHAT, Ella. Do eurocentrismo ao policentrismo. In. SHOHAT, Ella & STAM,
ROBERT. Crítica da imagem eurocêntrica. (Trad.) Marcos Soares. São Paulo: Cosac
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SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura
nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da
Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
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