REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ®
O preconceito racial no processo de ado?: os desafios da ado? inter-racial em Campo Grande
Resumo: Esta pesquisa identificou alguns obstáculos criados em relação ao adotando e conheceu famílias com filhos adotivos e suas histórias.
Conhecemos o Projeto Padrinho e sua Coordenadora proporcionou-nos a visita aos abrigos, com autorização da Juíza da Vara da Infância.
Acompanhamos também uma criança negra em abrigo até a sua adoção e a rotina de uma família branca, com duas filhas biológicas, que adotou
oito crianças, sendo quatro negras. Para a obtenção de dados, utilizamos a história oral. Os resultados apontam muitos caminhos para uma adoção
bem-sucedida, porém a adoção não é resposta às mazelas da sociedade. Ela precisa readquirir o seu significado, pois, muitas vezes, a exercemos
sem perceber: adotamos os nossos amigos, namorado (a), ... Por que não, então, adotar uma criança de cor diferente da sua? Por que não mais do
que uma? Impulsionar a discussão dessas questões e apontar algumas respostas foi o objetivo desta pesquisa. Este trabalho foi orientado pelo
Professor José Manfroi.
Palavras-chave: 1. Adoção inter-racial. 2. Preconceito. 3. Diversidade cultural. 4. Práticas judiciárias.
INTRODUÇÃO
A palavra adoção tem origem no latim (adoptatio), e associa-se a considerar, olhar para, escolher, perfilhar (Weber, 1999). Houaiss (2001) situa a
origem da palavra no século XV. Para a Língua Portuguesa, adotar “é um verbo transitivo direto” (AURÉLIO, 2004), uma palavra genérica, que de
acordo com a situação pode assumir vários significados, como: optar, escolher, assumir, aceitar, acolher, admitir, reconhecer, entre outros. Para
efeitos jurídicos, adotar significa acolher, mediante ação legal e, por vontade própria, como filho legítimo, uma pessoa desamparada pelos pais
biológicos, conferindo-lhes todos os direitos de um filho natural.
Além do significado desses conceitos, está o significado da ação – o valor que a adoção representa na vida dos indivíduos envolvidos. Passa por
uma extensa possibilidade de questões, de olhares, de discursos, de informações, de análises. Todo filho, biológico ou não, precisa ser adotado
pelos pais. A relação familiar precisa ser dotada de preceitos claros, ligados à ética, à cidadania a ao respeito.
Diante de todas essas possibilidades, optamos por estudar, pesquisar a adoção inter-racial como uma opção que possibilite uma educação para a
diversidade, que dissolva os mecanismos que geram o preconceito e a discriminação que são construídos socialmente e, assim, promova a sua
própria destruição.
Nas sociedades modernas, a adoção é vista como uma medida que possibilita as chances do exercício da maternidade e/ou paternidade. Embora a
convivência familiar em meio adotivo esteja estabelecida no ECA como um direito a todas as crianças e adolescentes, em situação de abandono, seu
acesso ainda é muito dificultado quando se leva em consideração o quesito cor/etnia.
A intolerância às diferenças raciais ainda se configura na atitude de adotantes que expressam suas preferências, geralmente por crianças brancas. O
preconceito continua instaurado em todos os setores da sociedade, sendo assim, não poderia se mostrar diferente na adoção de crianças e
adolescentes afro-descendentes.
Embora qualquer adoção em que as características físicas da criança adotada difiram das características dos pais adotivos seja inter-racial, no Brasil
o termo é usado quase sempre para as adoções de crianças pardas e negras, visto que a maioria absoluta das pessoas interessadas em adotar pela
via legal são brancas.
Silveira (2002, p.65) alega que:
“quando indagados acerca da cor/etnia da criança desejada, apenas 1,4% dos cadastrados revelaram que, particularmente, esse fator não era
importante. Para a autora, esse aspecto conduz a hipótese de que, os traços raciais dos sujeitos são considerados como um poderoso instrumento
de elegibilidade no âmbito das adoções”.
Este artigo analisou a realidade de crianças e adolescentes que vivem em abrigos em Campo Grande – MS e o trabalho do Projeto Padrinho, que,
apesar de não ter relação direta com o processo de adoção, é uma referência da iniciativa privada no que diz respeito à responsabilidade social. Por
meio do Projeto, entramos em contato com os “personagens” do nosso estudo: famílias (brancas) que adotaram crianças negras e compartilhamos
de suas histórias de vida.
1. AS ORIGENS DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
No Brasil, a história da adoção teve início no século XX. O assunto foi tratado, pela primeira vez, no Código Civil Brasileiro, em 1916. (GOMIDE,
1999) afirma que a adoção no Brasil foi tratada tradicionalmente como via de mão única, ou seja, buscava-se apenas atender aos anseios de
adotantes. Após essa iniciativa, teve-se ainda a aprovação em 1957, da Lei nº. 3.133; em 1965, da Lei nº. 4.655; e em 1979 da Lei nº. 6.697, que
estabeleceu o Código Brasileiro de Menores.
É apenas em função do bem-estar da criança que a adoção passou a ser aplicada. A proteção da criança foi priorizada em função de qualquer outro
fator que envolvia a adoção, inclusive a impossibilidade dos adotantes em ter filhos.
A partir de 1965, a adoção começou a ser prática incentivada pelo Estado, tornando-se extremamente presente nas políticas de assistência à infância
pobre, tentando regular, em grande medida, suas formas de estar no mundo (AYRES, CARVALHO e SILVA, 2002). “A prática da adoção passa,
então, a ser tomada como um atendimento preventivo à população de crianças excluídas socialmente.” (CUNHA e CUNHA, 2002, p.12)
Em 1990, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA por meio da Lei n.º8.069/90, os processos de adoção foram facilitados.
O documento põe em evidência os interesses do adotando (filho) e estabelece como principal objetivo do processo de adoção assegurar o bem estar
deste: “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos” (BRASIL, ECA, Art. 43, 1999).
A nova lei da adoção, Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009 trouxe inovações, algumas, inclusive, que já eram adotadas pelo Judiciário. Medidas
como não separar irmãos ou autorizar os adotados aterem acesso ao seu processo já vinham sendo praticadas.
Art. 19. “A permanência da criança em programas de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos, salvo comprovada
necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.” (BRASIL. Lei nº 12.010, Art. 19, § 2º,
2009)
A nova lei obriga que os juízes julguem um processo entre sete e oito meses. Institui também uma série de medidas, entre as quais destacamos a
criação de prazos máximos de permanência dos meninos em instituições (2 anos), a criação do cadastro nacional de meninos acolhidos e a criação
do programa de acolhimento familiar (famílias acolhedoras).
Para analisar os efeitos da nova lei, será preciso esperarmos para observar se o prazo de dois anos instituído para o abrigamento de crianças será
eficiente para diminuir o tempo de espera por adoção e/ou suficiente para restituir a criança à sua família de origem.
2. PROJETO PADRINHO – UMA INICIATIVA PREMIADA
O Projeto Padrinho foi implantado no ano 2000, na cidade de Campo Grande/MS, pela então Juíza da Vara da Infância e Juventude, Maria Isabel de
Matos Rocha, como um programa de solidariedade e apoio da sociedade civil às crianças e adolescentes abrigados.
O projeto não tem relação direta com o processo de adoção, mas desde o seu início, pelo menos 50 crianças foram adotadas de forma definitiva
pelos seus padrinhos. A cidade de Campo Grande possui mais de 150 crianças e adolescentes sob a tutela do Estado, que, por algum motivo, não
tem família e vivem em casa de abrigo. Apesar disso, nem todas estão aptas à adoção e, enquanto aguardam decisões judiciais ou pais adotivos,
passam todo o tempo nos abrigos.
Com o Projeto Padrinho, essas crianças e adolescentes têm a oportunidade de passar os fins de semana em casa de família, em momentos de lazer
e boa convivência. O apadrinhamento é uma alternativa para que as crianças que vivem em abrigos tenham apoio de famílias. Segundo a
coordenadora do Projeto, Rosa Pires de Aquino, “Isso ajuda no desenvolvimento delas”. Ainda segundo Rosa: “a partir dos 7 anos, a criança pode
ser apadrinhada e passar os fins de semana nas casas de famílias.”
Essa oportunidade depende de autorização de um juiz, que analisa a situação das famílias antes de torná-las aptas. Além do apadrinhamento
afetivo, ainda existe o apadrinhamento financeiro, no qual o padrinho pode auxiliar com uma quantia mensal em dinheiro. Existe ainda o padrinho
prestador de serviço, que ajuda prestando serviços gratuitos, inerentes à sua profissão ou ofício e a família acolhedora, no caso, uma família que
acolhe a criança em sua casa, por certo período, até que a justiça decida o caso.
Das crianças que vivem em abrigos, apenas 10% estão judicialmente disponíveis para adoção, seja porque seus pais os entregaram para adoção ou
perderam o poder familiar por decisão judicial. Já a grande maioria dos abrigados pode ter um padrinho enquanto vive nos abrigos, qualquer que
seja o seu futuro: voltar à família biológica ou ser adotado.
O processo de adoção não tem relação direta com as atividades executadas pelo Projeto Padrinho. Na adoção, o adulto torna-se pai da criança. Já o
padrinho será um apoio durante um determinado tempo. No entanto, com a aproximação direta pelo apadrinhamento, ocorre uma desconstrução de
paradigmas e preconceito e, muitas vezes, pode surgir a idéia e a intenção de adoção, que vai depender de outros requisitos e de um processo
judicial próprio, para que o padrinho ingresse no cadastro de adoção.
Muitos padrinhos afetivos acabaram realizando guardas ou adoção tardia, ou melhor, adoção de crianças mais velhas e de crianças negras, e que,
talvez, nunca tivessem ocorrido se crianças e adultos não tivessem sido aproximados pelo Projeto Padrinho. Em agosto de 2007, o Projeto Padrinho
conquistou o prêmio nacional (primeiro lugar na categoria “Poder Judiciário”) no concurso “Mude um destino”, realizado pela AMB ( Associação dos
Magistrados Brasileiros) .
3. UMA EXPERIÊNCIA DE ADOÇÃO INTER-RACIAL.
Com o apoio do Projeto Padrinho e autorização da Juíza da Infância, da Juventude e do Idoso, em Campo Grande, Drª Katy Braun, conhecemos e
acompanhamos a história de duas crianças negras adotadas por uma mãe branca. Primeiramente, conhecemos Gledson, menino negro, 11 anos,
abrigado na casa Vovó Miloca, em Campo Grande – MS. Em vista ao abrigo, conversamos com a assistente social, que nos relatou que Gledson
sentia muita falta do avô e que é um menino muito inteligente. Ela nos contou ainda que ele tinha uma madrinha afetiva e que, inclusive, já havia
passado as férias com a família.
A madrinha afetiva de Gledson era mãe adotiva de sua irmã Maria Eduarda, “Duda”, que estava em um outro abrigo. Logo após adotar a menina, a
mãe adotiva percebeu que a menina sentia muita falta de um irmão (Gledson) e lhe prometeu que iria procurá-lo. Passado algum tempo, descobriu
que Gledson estava num abrigo e, assim, o procurou para que pudesse ver a irmã.
No início, a mãe, Márcia, não pretendia adotá-lo, mas apenas manter contato. Tornou-se, então, sua madrinha afetiva, levando-o para casa nos fins
de semana e passando as férias todos juntos. Com o passar do tempo e do ótimo relacionamento entre os irmãos, optou por pedir a guarda de
Gledson.
A guarda foi concedida e os irmãos puderam conviver em harmonia, todos na mesma casa. Nessa ocasião, mantivemos contato com Márcia para
marcarmos um dia para futuras gravações. Paralelamente à pesquisa, estávamos produzindo um documentário de curta-metragem sobre adoção
inter-racial.
Algum tempo depois, três meses após esse último contato, encontramos Márcia novamente e agendamos um dia para gravação de depoimentos.
Para nossa surpresa, ao chegarmos à casa da família, encontramos Gledson e sua irmã Duda brincando no quintal da casa. Márcia nos contou,
então, que já havia entrado com o pedido de adoção do Gledson e que ele já estava morando juntos com elas.
Para Márcia a adoção do Gledson foi decidida naturalmente, a partir do convívio que pôde ter a partir do Projeto Padrinho, que lhe facilitou a
aproximação e o convívio com a criança. Contou também para sua decisão o fato dele ser irmão da sua filha adotiva, Duda.
Indagada sobre a questão do preconceito, afinal as crianças são negras e ela tem pele branca e cabelos loiros, Márcia nos relatou que no início,
ainda no processo de adoção da Duda, seus pais ficaram muitos preocupados, pois achavam que ela poderia ter problemas. Márcia é separada do
pai de seus filhos biológicos, já crescidos e independentes e, por isso mesmo, seus pais acreditavam que ela não precisava mais passar por
preocupações e responsabilidades.
Ao contrário dos seus pais, Márcia, que é Professora Doutora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, possui uma boa situação econômica e
acredita que o novo estado de maternidade, agora que se encontra com mais maturidade, está sendo exercida de forma mais prazerosa e que está
exercendo melhor o seu papel de mãe.
Ainda sobre a questão do preconceito racial, afirma que sente que as crianças sofram um certo tipo de preconceito, sempre de forma mais sutil,
velada, mas que isso não interfere no seu relacionamento com elas. Segundo Silva (1999, p.81):
“O mito esconde, na realidade, a verdadeira hierarquia e os conflitos da sociedade brasileira, porque faz parecer que tudo é harmonioso, que apesar
das diferenças, todos estão realmente juntos, não importando as diferenças de cor [...] que todos admiram a beleza da mulata [...] com um mito que
acoberta os conflitos em nome de uma história bonita.”
Esse racismo cordial vem sendo apontado como a forma mais comum de racismo no Brasil, e por ser expresso, torna-se na prática mais complicado
caracterizá-lo, mais difícil de combater e amenizar a denúncia do racismo por meio de uma lógica absurda: se não há racismo, não há motivos para
se organizar e lutar contra algo que não existe. Desta forma, enfraquecem os movimentos e, por conseqüência, todo o poder de manifestação da
população negra.
Uma vez, quando foram à praia, e as crianças ficaram um pouco mais distante delas, percebeu a diferença de tratamento das pessoas quando se
aproximou e, então, perceberam que ela era a mãe das crianças. A partir de então, passaram a tratar as crianças de modo diferente, como se a sua
cor impusesse um status para as crianças.
Mas, para Márcia o importante é a educação que se dá para as crianças, no caso, ela procura explicar para as crianças que o amor é que realmente
importa e só o que importa. Também as valoriza como são, e as faz acreditar que são lindas como são, acentuando e fortalecendo a sua auto-estima.
Na verdade, não importa a cor de um filho, pois a sociedade brasileira é multirracial na sua essência, já que somos mistura de povos, como índios,
negros e brancos, e quem mais foi chegando e aumentando a nossa miscigenação, não fazendo sentido, ainda nos tempos atuais, existir esse tipo
de preocupação.
4. ONZE AMORES – UMA EXPERIÊNCIA DE AMOR.
O começo dessa história começou ainda no Ceará, quando Denise já tinha duas filhas e, por problemas de saúde, não podia mais engravidar. Mas a
vontade de continuar a ter filhos era enorme. O primeiro filho adotado veio, então, recém-nascido, não por sua opção, mas por destino mesmo. Foi
uma experiência de amor à primeira vista e, mesmo com o menino apresentando alguns sinais de comprometimento ou atraso no seu
desenvolvimento, segundo os médicos, ela não teve dúvidas e assumiu a sua maternidade. O menino não só desenvolveu-se muito bem, como hoje
é um pré-adolescente muito inteligente, que joga xadrez, e comporta-se como uma pessoa normal da sua idade.
Depois, a família veio para Campo Grande e conheceu o Projeto Padrinho, por intermédio da sua coordenadora Rosa Pires de Aquino, a quem deve
a oportunidade de conhecer seus outros sete filhos adotivos. Cada história de adoção foi uma história de superação e amor. Denise é casada com
Carlos Chiapetta, advogado, e passou por momentos muito difíceis, quando, por exemplo, seu marido esteve desempregado, e eles com oito
crianças em casa par sustentar. Nem tudo foram flores... Denise conta que chegou a ter somente um vestido para sair. Recebiam desde alimentos
até roupas, doadas por pessoas estranhas e conhecidas. Mas nunca pensaram em devolver as crianças ou pensavam em como seria melhor a
situação se estivessem sem eles.
Para aqueles que questionam como se faz para viver com 14 pessoas em casa, sim, agora são 14 (após três meses do contato inicial, ao
retornarmos à casa de Denise, constatamos que sua família havia aumentado mais uma vez. Agora haviam chegado mais dois adolescentes: Daniel
e Dayane, ambos de 16 anos, Denise nos conta que a sua filosofia de vida é simples. Eles não têm a preocupação de ter a casa impecável, com
móveis bonitos ou coisas como carro. Ela se preocupa com a alimentação da família e sua saúde, em primeiro lugar. Aliás, Denise nos confidencia
ainda que “ninguém na família tem um plano de saúde”, e que, “Graças a Deus, ninguém fica doente.”
Apesar das restrições, conseguem viver de maneira muito boa para todos. Não consegue, por exemplo, sair com todos os dez filhos e um neto para
tomar sorvete no Mac Donald’s , no Shopping. Porém, de vez em quando, a metade sai para passear no Shopping e, no outro mês, vai a outra
metade. Seus programas costumam ser em casa mesmo. Reúnem os amigos em casa e fazem pipoca, assistem a filmes na televisão, fazem festa
na sala, armam barracas de camping no quintal e todos dormem por lá, enfim, tudo vira festa... Também aproveitam para passear nos parques das
cidades, ou em outras áreas livres.
Como todos deveriam fazer, valorizam as coisas simples, que nós, muitas vezes, que só temos um ou dois filhos ignoramos e tentamos dar de ”tudo”
que está ao nosso alcance para eles, achando que isso trará mais felicidade. Às vezes, nos esquecemos de valorizar o que realmente importa: as
coisas simples. Para a família Chiapetta, o importante é estar todos juntos, é compartilhar, dividir, somar. A adoção aqui adquire o seu real
significado. Todo filho, biológico ou não, branco ou negro, precisa ser adotado pelos seus pais, o que importa para Denise é que sejam cidadãos do
bem, que estudem, tenham uma boa base espiritual e que sigam seus sonhos. Para nós, que só temos filhos biológicos, fica essa lição: todo filho
biológico precisa ser realmente adotado por nós. Não basta suprirmos as suas necessidades básicas, é preciso apenas o básico: dar amor e
educar!!!
Um Breve Depoimento:
A Mãe dos 10 e avó de Um.
“Ah… Agora eu vou falar do meu amor, esse que eu tenho para os meus onze amores. Eu sou a mãe e tem o pai. O neto que é também um filho que
veio da filha. Aqui é uma casa não muito grande que se transformou num lar sem fim. O amor é regra única, básica. Amor incondicional e ponto.
Esse prazer de estar junto, grudadinho é incomparável a qualquer prazer do mundo. Existe entre nós essa colinha que faz a diferença em tudo.
E cada vez que eu engravido pelo coração, ele se expande igual uma barriga e quer abraçar o mundo inteiro e chora por tudo e ri de qualquer coisa.
Algumas pessoas não compreendem a dimensão desse amor que cresce a cada instante. Mas também, quem ama não se importa muito com isso.
Você já viu como se comportam os casais apaixonados? Eles se importam com o que pensam deles? Assim é o meu amor quando engravido pelo
coração.
Depois vêm os desafios, vêm as vitórias e aí o jardim já floriu todo e é só respirar fundo pra sentir os perfumes diversos. Ah... Que perfumes!!! Somos
jardineiros, o plantio é no coração de quem se ama e no nosso próprio. Nós reconstruímos muitas coisas neles e em nós mesmos. Por que acima de
tudo precisamos deles porque o amor nasceu e o amor nasceu porque era preciso que aprendêssemos a amar assim sem amarras e
incondicionalmente.
Cada um dos meus onze amores é uma história de amor que eu vivi e escrevi no livro da minha alma. Um dia, quem sabe eu arrume tempo (risos)
pra escrever minha história de amor com cada um dos meus onze amores... Mas gente... Pode ser que venham ainda mais amores... Meu coração é
fértil e não há anticoncepcionais para adoção, GRAÇAS A DEUS!!! ” (Denise Chiapetta – mãe biológica de 2 meninas e mãe de coração de 8 filhos
adotivos, 1 neto e sendo os 11 amores, todos de coração)
5. UMA FAMÍLIA MULTIRRACIAL.
“Bom, falando de adoção inter-racial (quando a criança pertence a uma raça diferente da dos pais adotivos), algo que também vivenciei na minha
família, a coisa mais importante é estabelecer entre a família, uma ligação forte e segura, superando as diferenças físicas.
Nós vivemos em um mundo preconceituoso demais... Já escutei tanto absurdo, coisas que não entram na minha cabeça. “Sou racista porque sou
antigo”, “Sou racista porque tenho descendência européia” (?!), “Sou racista porque foi minha criação”... Bom, com o conhecimento que temos hoje,
as justificativas que as pessoas arranjam são cada vez mais esfarrapadas! Já escutei coisas também do tipo “se você pode ter um filho loirinho,
porque vai querer um pretinho?” entre outros absurdos, que definitivamente, não entendo. Algumas pessoas em menor intensidade, outras,
declaradas, mas a verdade é que estamos em um país muito racista.
Aqui crianças negras ou com traços negróides, têm menos chances de serem adotadas e estão sujeitas a serem institucionalizadas por grande
tempo. A maioria prefere menina, de até dois anos, branca.
Meus pais não especificaram a raça, nem a idade. Tenho quatro irmãos negros e dois com traços negróides e índios. No começo, lembro que
negavam a própria raça... As meninas queriam alisar os cabelos... Os meninos diziam que não eram negros. Minha irmã Louise trabalhou muito com
todos, através da música. Ela gosta muito de Rap, de Black Music e através dos clipes, elogiava muitos artistas, mostrava as cantoras, como
cuidavam do cabelo, como eram lindas e os cantores também. Sendo nossas adoções na maioria tardias, foi bem positivo para eles.
No caso de adoções feitas em “último caso”, quando os pais não podem procriar biologicamente e não tenham podido elaborar o luto pela sua
esterilidade, aparecem alguns problemas em relação à adoção inter-racial. Acontece que esses pais, segundo Freud, revivem suas fantasias
narcísicas por meio de seus filhos: seus anseios de perfeição e imortalidade estão concentrados no seu olhar sobre eles. Quando as diferenças
físicas são gritantes, a descontinuidade biológica é evocada com freqüência, e pode haver dificuldades em sentir a criança como um filho legítimo.
As diferenças físicas entre pais e filhos evidenciam a percepção da descontinuidade biológica e põe à prova a confiança na estabilidade da relação. A
criança pode testar os pais para ver a consistência do vinculo com a família. Isso acontece também pelo medo da criança de ser abandonada
novamente... O que acontece em alguns casos... Já escutei delírios absurdos, como: “você não sabe a herança genética dessa criança, ele pode
matar todos vocês” (!) “ela será prostituta como a mãe biológica”(!) “ele tem psicopatia (criança de 2 anos, absolutamente normal)”. Alguns casos de
pais, que não podiam ter filhos, fazem a adoção, conseguem ter filhos e abandonam novamente o adotivo, a criança é abandonada duas vezes.
Algo importante é trabalhar com a criança a questão do racismo existente na nossa sociedade. Não podemos ignorar que convivemos com o racismo.
A conscientização dos pais quanto a este tema e seu enfrentamento dentro da realidade são essenciais para que eles possam ajudá-la neste
processo.
Quer saber, hoje somos todos aqui em casa tão parecidos. Meus irmãos são lindos demais, cada um com seu jeitinho, sua raça, seu estilo. Como é
bom amar! Como é bom não ser racista e encontrar esses grandes amores da minha vida... Eles são parte de mim e hoje não imagino minha vida
sem o sorrisão do Alexandre, sem o olhar meigo da Ana Flávia, sem as brincadeiras do Roniel, sem a solicitude e companhia do Diego, sem a
amizade da Dania, sem o carinho enorme da Viviane... Sem o amor de todos eles.
Nenhuma adoção é fácil, temos que compreender todo o processo traumático que passaram de rejeição e abandono... Às vezes podem ser
agressivos, podem ser hostis, mas só querem testar o amor que temos... Passada essa fase, é só alegria.
Reflitam! Espero que ajude! Beijos para todos!”
(Texto postado por Annalies Chiapetta, às 10h35min no seu blog onze amores.blogspot.com e gentilmente cedido para este artigo).
Como constatamos no depoimento acima, a auto-estima é fundamental para o sucesso de uma adoção inter-racial. Ela baseia-se em reconhecer-se
como pertencente a determinado grupo étnico, e identificar-se, mesmo sem levantar bandeiras. Ser negro, sentir-se negro e sentir-se bem assim, em
qualquer lugar é o grande desafio, uma questão de atitude, como a de aceitar as pessoas com suas diferenças.
Segundo Souza (2002), os processos de diferenciação que a nossa espécie é capaz de realizar, estabelecem cisões na dimensão complexa da ponte
que, ao mesmo tempo em que separa as margens, as reúne: lugares de muitos passantes que pedem pontes para realizar a travessia em direção ao
encontro.
“Sempre e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens (e mulheres) para lá e para cá, de
modo que eles possam alcançar outras margens. A ponte reúne enquanto passagem que atravessa”. (FLEURI, 2000, p.109)
A juíza Drª Katy Braun, da Vara da Infância e Juventude de Campo Grande-MS, relata que:
“Após tragédias recentes, como a do Haiti, eu chegava a receber um alto número de procura, por telefone, de informações de como fazer para adotar
uma criança da Haiti. Com artistas como Angelina Jolie e Madonna adotando crianças negras de países pobres, eu creio que há um desejo de
satisfazer mais o ego do que o desejo real de adoção por parte desses pretendentes a pai. Ao dizer que aqui em Campo Grande, nos abrigos,
encontrariam crianças à espera de adoção, acabavam desistindo da idéia. Sempre me perguntava: Será que as crianças negras do Haiti são mais
bonitas do que as daqui?”
É fundamental respeitar o outro, as diferenças, os pontos de vista divergentes do nosso. Não fazê-lo pode acarretar o estabelecimento de barreiras e
resistências que dificultarão em muito a realização do objetivo fundamental: assegurar a todas as crianças o direito a ter uma família. Ir ao encontro
da criança, da criança real, daquela que reclama um direito, não menos do que isso, um direito, não um favor, não uma caridade, um direito
assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma experiência de adoção inter-racial pode ser considerada como uma das mais ricas experiências de educação intercultural, abrindo amplas
possibilidades de acolhimento das diferenças. Encontrar um lugar onde as diferenças possam ser articuladas e não excluídas: aqui encontramos uma
possibilidade de formação de identidades que não se estabelece em polaridades, mas sim em interação.
A relação com o outro pressupõe a existência de reciprocidade, de encontros, sem seleção de qualquer categoria (negro, branco, homem, mulher).
As pessoas pesquisadas desmistificaram a idéia de que somente a adoção de bebês ou crianças de até três anos, saudáveis e com características
semelhantes às do casal adotante têm mais chances de sucesso na adoção.
As dificuldades encontradas nas famílias que adotaram crianças negras não são maiores ou mais significativas do que as encontradas no seio de
uma família com filhos biológicos, sejam eles brancos ou negros. A desconstrução desses preconceitos fez-se durante todo o processo da pesquisa e
do conhecimento das histórias relatadas. A formação de famílias multirraciais pesquisadas demonstra que a constituição de uma família passa pela
convivência, diálogo e amor, afinal o que realmente importa para a formação de uma família.
Em Campo Grande, constatamos que o número de crianças negras nos abrigos não é maior do que o número de crianças brancas. Mais um mito
desfeito. Começamos a pesquisa achando que encontraríamos um número maior de crianças negras para adoção.
Um fato que, talvez, justifique essa constatação seja o excelente trabalho feito pela Vara de Infância e Juventude de Campo Grande já há algum
tempo. Para o processo de adoção há um cuidadoso acompanhamento das famílias pretendentes à adoção por um grupo de profissionais
habilitados, como psicólogos e assistentes sociais, que orientam e avaliam se os pretendentes estão aptos para a adoção.
O Projeto Padrinho também estimula a diminuição do preconceito ao aproximar as pessoas daquelas crianças que, a princípio, teriam mais
dificuldades em encontrar uma família adotiva. Crianças negras, crianças mais velhas, meninos, enfim, todos aqueles que fogem ao padrão mais
procurado: menina, até 3 anos, no máximo, e de cor branca.
Adotar alguém não é resposta às mazelas da sociedade, também não é resposta à necessidade que alguns têm de fazer caridade. A adoção não
pode ser movida por sentimentos altruístas ou de pena, de revolta por práticas governamentais equivocadas. Adotar não é sinônimo de
generosidade. A adoção é ímpar e deve ser plena, movida por um único desejo: ser mãe ou pai. Compreender o processo da adoção, seu aspecto
legal e, principalmente, o interior de cada ser (daquele que adota e daquele que é adotado), suas razões e emoções é fundamental para a
estruturação desse instituto (adoção) que representa, sim, indiretamente, apenas uma pequena contribuição às mazelas da sociedade. Apenas isso
e não por isso.
O exercício da paternagem e da maternagem compreende muito mais do que o cuidado objetivo da criança, compreende a sua construção como ser
humano, a sua estruturação psicoemocional e física. A educação do filho é igual para o biológico e para o adotado, seja ele branco ou negro, índio ou
mulato. Filho é filho e não se pode negligenciar os valores, encontrar desculpas, tais como “porque ele é adotado...”
É imprescindível que ao filho, adotado ou não, branco ou negro, seja conferido amor, responsabilidades e limites educacionais, sabendo-se que
todos, inclusive as crianças, possuem direitos e deveres. Já se perguntou: “Que mundo deixarei para meu filho?” E que tal se perguntar: “Que filho
deixarei para este mundo?”
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