Profetas do nosso tempo Alwine de Vos van Steenwijk – Embaixadora do Povo do Quarto Mundo Holandesa de nacionalidade e embaixadora em França nos finais dos anos cinquenta, Alwine de Vos van Steenwijk morreu no início deste ano com 91 anos de idade, deixando-nos um expressivo testemunho de vida entregue à defesa dos mais pobres. Oriunda da aristocracia holandesa, dotada de cultura e de fortuna pessoal, vocacionada para a carreira diplomática e, ainda jovem, dando os seus primeiros passos na diplomacia holandesa em França, foi, por sua iniciativa, ao encontro da grande miséria que, então, nos finais da década de cinquenta, se vivia nos bairros periféricos de Paris. Tinha ouvido falar do Padre Joseph Wresinski e da acção que este começara a empreender em Noisy-le-Grand junto das famílias miseráveis daquele bairro/favela. Deixara-se tocar pela informação que lhe chegara… Quis conhecer de perto a realidade e não hesitou em percorrer as ruas lamacentas daquele populoso bairro de lata. Aí, foi surpreendida por uma dupla e insuspeitada miséria: a dos habitantes extremamente carenciados de coisas tão básicas como bens alimentares, roupas e 1 habitação digna; a insensibilidade dos ricos cujas pretensas dádivas iam em tão mau estado que seriam humilhantes para os pobres, se acaso lhes fossem entregues. Alwine comoveu-se diante do absurdo de uma tal visão e sentiu-se interpelada a responder ao desafio do que vira e escutara nesta sua primeira visita a Noisy-le-Grand. As lágrimas que se lhe soltaram naquele dia deveriam ser convertidas em acção consequente. Através deste encontro, estava descoberta a sua verdadeira vocação de diplomata. Seria embaixadora, mas dos pobres junto dos ricos e das instâncias com poder para mudar as causas originantes da miséria. Encorajada pelo Padre Joseph Wresinski, Alwine começa por criar um Departamento de Pesquisa Social onde passa a recolher a voz e a experiência das famílias pobres, de modo a que os não-pobres delas tomem conhecimento e, assim, possam sensibilizarse para esta problemática social de que, na época, estavam tão distantes. A sua diplomacia serviria para abrir caminho para que a realidade da miséria passasse a estar presente, tanto no mundo científico e académico, como nas instâncias do poder político dos anos 60. Juntamente com o Padre Joseph Wresinski, conseguiram que a questão fosse levada à Assembleia Nacional Francesa, através de relatórios elaborados contando com a própria voz dos empobrecidos e, a partir de então, não mais seria possível ignorar a chaga da miséria nas suas múltiplas facetas juntamente com o reconhecimento da energia e das capacidades criativas e solidárias dos homens e mulheres que eram forçados a suportar condições de vida desumana às portas da prosperidade. Assim se fez caminho e foi possível chegar à ONU e ao reconhecimento de que a pobreza é uma violação de direitos humanos. Foi, certamente, com alegria que, em 17 Outubro 1987, viu Joseph Wresinski juntamente com mais de 100 mil representantes de organizações de direitos humanos 2 vindos dos mais variados países, inaugurar em Paris, no simbólico Trocadero, uma lage com esta inscrição: Defensores dos direitos humanos e do cidadão de todos os países reuniram-se neste adro. Renderam homenagem ás vítimas da fome, da ignorância e da violência. Afirmaram a sua convicção de que a miséria não é fatal. Proclamaram a sua solidariedade com os que lutam através do mundo para a destruir. Onde os homens estão condenados a viver na miséria, aí os direitos humanos são violados. Unir-se para os fazer respeitar é um dever sagrado. Com estes mesmos dizeres, se viria a replicar a declaração e o compromisso gravados em pedra, em muitas outras cidades do mundo, incluindo Lisboa, junto ao Arco da Rua Augusta. Ao longo de toda sua vida adulta, Alwine de Vos van Steenwijk esteve empenhada nesta luta e neste compromisso. Juntamente com o Padre Joseph animou o Movimento ATD – Aide à toute détresse, actualmente com presença em vários países de diferentes continentes e envolvendo uma rede de pessoas e famílias que, sem conhecerem fronteiras, escolhem viver junto dos mais pobres, para, no meio deles, poderem dar-lhes vez e voz nas respectivas comunidades e instâncias políticas e religiosas de cada País ou nos fora mundiais. Com o Pade Joseph ajudou a fundar o Forum Permanente 3 sobre a Extrema Pobreza no Mundo, que, mais tarde, daria lugar ao Forum por um Mundo sem Miséria. A Alwine de Vos van Steenwijk se deve, ao longo de mais de cinquenta anos, a inspiração permanente para uma cultura da dignidade dos empobrecidos e do reconhecimento da miséria como violação de direitos humanos, inspiração que ela veiculava, regularmente, através da Carta aos Amigos do Mundo e, sobretudo pela sua própria vida. Deixa-nos um belo testemunho profético de humanismo e de fidelidade à sua vocação de diplomata ao serviço do Povo do Quarto Mundo. Manuela Silva Maio 2012 4